Você está na página 1de 16

384

PONTES, Nicole; BRITO, Simone. “Contra o efeito Lúcifer: esboço para


uma teoria sociológica do mal”. RBSE – Revista Brasileira de Sociologia
da Emoção, v. 13, n. 39, pp. 384-398, dezembro de 2014. ISSN 1676-
8965
DOSSIÊ
http://www.cchla.ufpb.br/rbse/Index.html

Contra o efeito Lúcifer


Esboço para uma teoria sociológica do mal

Nicole Pontes
Simone Brito

Resumo: O objetivo deste trabalho é indicar caminhos para uma Teoria Sociológica do Mal, enfati-
zando aspectos relacionados à permanência histórica do mal e sua importância como fonte para uma
teoria que explore as fronteiras entre sociologia, teoria crítica e psicanálise. Para tanto, construiremos
uma crítica à teoria sociológica do Mal de Jeffrey Alexander (2001, 2009), que aponta para uma solu-
ção culturalista insatisfatória, assim como uma crítica à abordagem situacional da psicologia social,
representada por Phillip Zimbardo (2007). Essa discussão será elaborada através de três momentos
distintos: (1) apresentando uma crítica à teoria dos valores em Alexander, a partir das perspectivas crí-
ticas de Bauman e Adorno, (2) explorando os aspectos situacionais e estruturais do Efeito Lúcifer
(ZIMBARDO, 2007), enfatizando que sua existência pode ser considerada como "mecanismo de fu-
ga", como apresentado pro Erich Fromm (1941, 1990, 1992); e, por fim (3) fazendo uma leitura da
noção de habitus de Pierre Bourdieu e de processos civilizadores de Norbert Elias, focadas na dimen-
são da ‘incorporação’, desenvolvendo uma análise mais satisfatória sobre a experiência do mal e da
maldade. Palavras-Chave: Sociologia do Mal, efeito Lúcifer, Elias, Bourdieu.

Introdução determinista ao transformar a ação para o


mal, e problemas relacionados à responsabi-
O objetivo deste trabalho é indicar
lidade e outros aspectos morais da ação, em
caminhos para a elaboração de uma Teoria
um problema situacional. Essa discussão
Sociológica do Mal, enfatizando aspectos
será elaborada através de três momentos
relacionados à permanência histórica do mal
distintos, porém interdependentes: (1) apre-
e sua importância como fonte para uma teo-
sentando uma crítica à teoria dos valores em
ria sócio-analítica crítica e interdisciplinar
Alexander, a partir das perspectivas críticas
que explore as fronteiras entre sociologia,
de Bauman e Adorno, (2) explorando os
teoria crítica e psicanálise. Para tanto, cons-
aspectos situacionais e estruturais do Efeito
truiremos uma crítica à teoria sociológica do
Lúcifer (ZIMBARDO, 2007), enfatizando
Mal de Jeffrey Alexander (2001, 2009), que
que sua existência histórica pode ser consi-
aponta para uma solução culturalista insatis-
derada como "mecanismo de fuga", como
fatória, assim como uma crítica à abordagem
apresentado por Erich Fromm (1941, 1990,
da psicologia social, representada por Phillip
1992) a partir do qual o peso da responsabi-
Zimbardo (2007), que cai num reducionismo

RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 13, n. 39, dez. 2014 DOSSIÊ – PONTES/BRITO
385

lidade, e todos os aspectos morais das ações vidade (TURNER, 2010) nas Ciências Soci-
para o mal, são removidos do indivíduo e ais apresenta imediatamente algumas ques-
localizados na sociedade, através da geração tões para a teoria sociológica: (1) Como
e reprodução de um sistema de relações hu- explicar que um problema fundamental para
manas que se baseia historicamente na dis- os pais fundadores da disciplina, especial-
sociação do caráter social; e, por fim (3) de- mente para Durkheim, perdeu a sua centrali-
monstrando como é possível, através de uma dade e só agora volta a ser retomado? (2)
leitura da noção de habitus de Pierre Bour- Como os desenvolvimentos recentes em
dieu e de processos civilizadores de Norbert áreas afins como a psicologia e a filosofia,
Elias, principalmente através de uma leitura bem como transformações sociais importan-
focada na dimensão da ‘incorporação’, en- tes, especialmente no campo da ciência, vêm
contrarmos uma perspectiva sociológica ‘forçando’ o retorno deste tema? E, (3) co-
mais satisfatória para falar sobre a experiên- mo dar sentido a diversidade de trabalhos
cia do mal e da maldade. que estão em debate neste “novo” campo?
Para compreender o tipo de proble- Cada um desses problemas se constitui em
matização aqui tratada, é necessário perce- uma linha de pesquisa per se e, dessa forma,
ber que a tematização do mal só pode ter este trabalho pretende, de forma mais mo-
lugar num contexto mais amplo de proble- desta, oferecer uma contribuição apenas ao
mas morais. Dessa maneira, não pretende- último.
mos analisar o problema do mal como fato Assim, entendemos que uma das
isolado, mas refletir como essa discussão questões mais fundamentais ordenando o
está, de fato, no cerne de uma reflexão mais debate no campo é: se atores sociais expli-
ampla sobre o problema da moralidade que cam aspectos da vida através da categoria
vem ganhando importância na teoria socio- específica do mal, essa valoração pode ser
lógica recente. É possível afirmar que, nos entendida como uma dimensão da cultura ou
últimos anos, estamos assistindo ao que Mi- requer uma especificidade de compreensão?
chéle Lamont chamou de “retorno da mora- Zygmunt Bauman (1996), seguindo a tradi-
lidade” na pesquisa sociológica. Assim, co- ção da Teoria Crítica e, em parte, a perspec-
mo exemplo dessa afirmação, podemos citar tiva Adorniana acerca da vida reta, afirma
alguns debates centrais que ajudaram a mol- que a experiência da moralidade, seja bon-
dar o campo da sociologia da moralidade: o dade ou maldade, precisa, por razões tanto
problema do Holocausto e das lógicas de éticas quanto epistemológicas, ser separada
genocídio no contexto da discussão sobre das práticas culturais. As razões éticas di-
modernidade e pós-modernidade (Bauman, zem respeito aos efeitos do relativismo radi-
1996; Alexander, 2009), o problema do uni- cal para a crítica social: caso os valores mo-
versalismo e da construção de universais rais sejam tão somente parte da cultura, não
(ALEXANDER, 2004), a discussão sobre a é mais possível se contrapor a valores ‘desu-
origem dos valores e os modos de justificar manos’ (uma vez que estes são construções
(Boltanski &Thévenot, 2006), a relação en- sociais e válidos para um certo grupo, em
tre economia e valores (ZELIZER, 1994 e determinado período histórico). Os motivos
2010), a questão das transformações dos epistemológicos, seguindo Weber, fazem
padrões morais operada pela mídia (TES- referência à idéia de que na experiência so-
TER, 1997; Boltanski, 1999), dentre outros. cial os atores estabelecem a distinção entre
A idéia de um recente ‘renasci- os valores morais e outros tipos de valores e
mento’ da pesquisa sobre valores (HITLIN isso, por si só, justificaria uma distinção
& VAISEY, 2010; JOAS, 2000) e normati- sociológica.

RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 13, n. 39, dez. 2014 DOSSIÊ – PONTES/BRITO
386

Já em Fromm, encontramos uma (ainda que este seja apenas um modelo nor-
necessidade de definição dos valores morais mativo) não seria solapar as bases episte-
como forma de racionalidade ética, como mológicas da sociologia? A idéia deste tra-
saída para uma frustração humana histórica, balho é tentar apresentar uma visão alterna-
que limita as possibilidades de liberdade, tiva para a compreensão sociológica da ex-
criatividade e amor. A ação para o mal se periência da maldade. Assim, traremos um
apresenta então como diagnóstico de um diálogo alternativo que possa servir como
problema mais amplo, que ultrapassa uma modelo para pensar a moralidade de uma
explicação "situacional" do mal, trazendo à perspectiva sociológica, e particularmente, a
tona a necessidade da moralidade como me- sociologia do mal. Norbert Elias (1997) es-
diação das relações humanas, independentes tabelece uma conexão entre um habitus so-
de seus contextos específicos. cial e a emergência de processos civilizado-
Para Alexander, o problema do mal, res. Ou seja, seria possível identificar nos
segundo uma perspectiva sociológica, é mais modos de comportamento historicamente
um problema de significação cultural para a estabelecidos, mecanismos sociais que orga-
qual a disciplina possui o necessário arca- nizam os sentimentos e emoções de modo a
bouço teórico de interpretação. Alexander possibilitar a violência, a lógica do bode
(2001) discute como atos de transgressão expiatório e a desumanização, por exemplo.
são identificados com o mal e a maldade. Contudo, em termos teóricos, a noção de
Dessa forma, reflete como a utilização desta habitus em Elias está ainda muito próxima
categoria de avaliação varia historicamente e da noção genérica de ethos e também da
está relacionada a processos de estigmatiza- vida psíquica.
ção. Ao desenvolver as categorias correlatas Nesse sentido, a partir do esforço
da maldade utilizadas na esfera política, esse teórico em conectar a noção de habitus em
autor fornece uma importante ferramenta Elias e Bourdieu, estaremos diante de uma
para o estudo da moralidade. Contudo, po- teoria do habitus capaz de explicar melhor
demos perceber nesta interpretação particu- os processos de ‘incorporação’ de emoções e
lar o tipo de problema que Bauman identi- valores. Em Bourdieu, essa faceta da incor-
fica com a fraqueza da sociologia: uma poração está presente de forma fundante na
normalização do mal. idéia de habitus, em seu aspecto relacional,
Outra abordagem para o problema mutável, mas também constante e estrutu-
do mal é apresentada por Phillip Zimbardo rado. A idéia é que esses autores nos permi-
em o Efeito Lúcifer. Nesse texto o autor tem pensar de forma mais consistente a
defende que o contexto e a situação são for- constituição e normalização de processos
ças exteriores que, quando exercidas sobre o sociais civilizadores (muitas vezes identifi-
indivíduo, suspendem sua capacidade de cados como exemplo do mal e de sua irra-
distinção moral entre bem e mal. O mal, cionalidade). Mais ainda, fornecem ele-
portanto, aparece como fruto de uma força mentos teórico-metodológicos para a com-
situacional que impede escolhas e direciona preensão de como as metáforas da morali-
ações, anulando qualquer capacidade crítica dade são experienciadas (enquanto senti-
aos sujeitos e, de maneira muito mais peri- mentos, expressão de emoções e práticas
gosa, sua capacidade de ser responsável pe- incorporadas), especialmente, como os indi-
las mesmas. víduos articulam as diferenças entre confi-
Então, cabe a pergunta: Reconhecer gurações de valores morais e outros tipos de
que a moralidade (e, portanto, o mal) está valores. Portanto, na discussão aqui pro-
relacionada a uma experiência pré-social posta, pretendemos, além de apresentar os

RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 13, n. 39, dez. 2014 DOSSIÊ – PONTES/BRITO
387

debates centrais da sociologia da morali- O SPE envolveu um conjunto de 24


dade, demonstrar como a discussão sobre de universitários distribuídos em dois grupos
uma análise sociológica do mal pode encon- como guardas e prisioneiros de uma cadeia
tra nas perspectivas de Pierre Bourdieu e de criada no sótão do departamento de psicolo-
Norbert Elias (ainda que este não fosse o gia da universidade, onde os mesmo deve-
foco de ambos) uma teoria das práticas soci- riam desempenhar os papéis que lhes foram
ais e da experiência moral mais consistente designados por duas semanas. O processo de
que aquelas apresentadas por Jeffrey Ale- escolha dos candidatos envolveu uma pré-
xander e Phillip Zimbardo.1 seleção entre 70 candidatos para garantir sua
sanidade mental, garantir que não fossem
O Efeito Lúcifer e a abordagem situacio-
usuários de drogas, ex-presidiários ou pos-
nal do Mal
suíssem algum tipo de deficiência, estabele-
O experimento em psicologia social cendo assim os parâmetros de normalidade
realizado em 1971 na universidade de Stan- psicológica requeridos como controle que
ford, conhecido como The Stanford Prison foram mais tarde utilizados para discutir
Experiment (SPE), é decisivamente um dos como os papéis sociais desempenhados du-
trabalhos de pesquisa mais amplamente co- rante o funcionamento de uma instituição
nhecidos sobre a centralidade do comporta- carcerária e a própria situação prisional tem
mento humano para a compreensão da natu- o poder de transformar pessoas até então
reza do mal e da maldade e aparece como boas em pessoas capazes de perpetrar ações
opção segunda opção entre 234,000,000 de moralmente erradas. Para dar maior veraci-
resultados quando a palavra-chave experi- dade ao processo de encarceramento, os es-
ment é utilizada. Phillip Zimbardo, reno- tudantes-prisioneiros e os carcereiros não
mado professor de psicologia da universi- foram previamente avisados do dia de início
dade de Stanford na Califórnia, e responsá- do estudo, sendo que alguns dos carcereiros,
vel à época pela execução do experimento, já exercendo seus papéis, participaram dos
tornou-se um expoente nos estudos sobre atos de prisão dos futuros prisioneiros; estes,
como pessoas aparentemente comuns, nor- por sua vez, foram também surpreendidos
mais, podem perpetrar atos malignos. Esse num domingo pela manhã por um carro de
estudo serviu de base para o que, anos mais polícia verdadeiro que chegava para dar-lhes
tarde, quando finalmente pronto para discor- voz de prisão, sendo levados para a delega-
rer sobre o controverso experimento, Phillip cia de polícia, fichados e fotografados. Só
Zimbardo chamou de efeito lúcifer. Vale algumas horas mais tarde, quando já esta-
salientar que a teoria do efeito Lúcifer serviu vam sendo divididos em suas celas e rece-
também como ponto de defesa controverso, bendo ordens de como se comportar na pri-
nos anos de 2006 - 2008, para argumentar são, perceberam então que o experimento
em favor dos soldados do Centro de Inteli- começara. Projetado inicialmente para durar
gência e Prisão Militar de Abu Ghraib que duas semanas, o SPE durou apenas seis dias
haviam sido acusados de torturar e humilhar devido ao desenrolar de eventos surpreen-
de forma brutal prisioneiros de guerra no dentes e inesperados que envolveram desde
Iraque. tortura psicológica e humilhação a castigos
corporais, infligidos pelos então carcereiros
aos prisioneiros. È importante lembrar tam-
1
bém que durante o curso dos eventos na fal-
Ver página oficial do experimento em: sa prisão, os pais puderam visitas seus filhos
http://www.lucifereffect.com encarcerados, um padre e um advogado esti-

RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 13, n. 39, dez. 2014 DOSSIÊ – PONTES/BRITO
388

veram presentes e um comitê de falsos ofici- sar de considerar o contexto situacional co-
ais de condicional entrevistou cada uma dos mo importante fator para o engajamento na
prisioneiros, sem que qualquer um deles ação violenta, Zimbardo parece ainda tentar
tenha requerido que o experimento fosse justificá-la como resposta a um sistema de
terminado. À época o estudo chocou as co- pressão estabelecido por forças superiores,
munidades acadêmicas trazendo à tona di- que funcionam como uma corrente causal
lemas éticos sobre os limites da pesquisa perfeita onde a força exercida pela estrutura
com seres humanos, ainda que outros expe- chega sem nenhuma dissipação ou perda de
rimentos tão controversos quanto este, por energia até o fim de determinada ação. Tudo
exemplo, o estudo famoso sobre obediência ocorre como se num vácuo, sem nenhuma
à autoridade de Stanley Milgram também possibilidade de interferência entre a deter-
estivessem sendo realizados ao mesmo tem- minação estrutural da situação e a ação indi-
po com resultados também chocantes. Po- vidual. Segundo, embora essa leitura seja
rém, a problematização mais importante bastante distinta daquelas que consideram a
trazida à tona pelo estudo é como fatores ação maligna como traço de uma personali-
psicológicos e sociais interagem na defini- dade mal ajustada, e mais acertada no que
ção das ações para o mal. diz respeito à importância do contexto na
Segundo a teoria esboçada em The realização de tais ações, ela ainda falha por
Lucifer Effect, a emergência de ações malig- não enxergar um contexto histórico mais
nas perpetradas por indivíduos racionais, abrangente que produz não uma força situa-
sadios e conscientes de desempenhar um cional determinante das ações de personali-
papel que lhes foi prescrito deve ser com- dades arrefecidas pela falta de controle da
preendida a partir de um conjunto de fatores própria situação, mas um sistema historica-
estruturais determinantes que definem atra- mente informado, como apontado por Erich
vés de sua força persuasiva as ações de cada Fromm, que gera um tipo de mecanismo de
indivíduo inserido nessa situação específica. fuga baseado numa lógica estrutural que
As ações individuais são consideradas fruto define tipos ideais de caráter social, adequa-
de um contexto situacional extremo, onde dos a seu tempo. Ou seja, a situação da qual
tanto fatores ambientais imediatos quanto Zimbardo fala parece possuir um escopo
elementos psicológicos desembocam numa muito reduzido, focado ainda num caso es-
ação maligna inesperada. No caso do expe- pecífico, enquanto que a idéia de contexto
rimento acima descrito, e dos soldados em apresentada por Fromm nos dá uma dimen-
Abu Ghraib, pode-se então observar que as são histórica mais aprofundada, fazendo uso
ações de humilhação e dor infligidas aos tanto de elementos culturais, quanto econô-
prisioneiros são causadas não por escolhas micos e sociais na construção do caráter
individuais, mas por determinantes externos social do mal em uma determinada época
que demandam deles certos comportamen- histórica.
tos, o que pode levar a ações dissonantes A proposta de Fromm em Escape
daquelas consideradas normais em outras from Freedom oferece uma alternativa psi-
circunstâncias, estando seus perpetradores, cológica e sociológica para a compreensão
portanto, protegidos sob o manto da con- de certos traços morais presentes no mundo
formidade e da obediência às regras necessá- contemporâneo que podem nos ajudar a sis-
rias a sua sobrevivência naquela situação. tematizar e compreender a permanência do
No entanto, podemos enxergar dois mal como fruto do desenvolvimento de um
problemas centrais nessa abordagem do mal caráter social dissociativo, com tendências
como fruto de uma situação. Primeiro, ape- ao autoritarismo e a rendição da liberdade

RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 13, n. 39, dez. 2014 DOSSIÊ – PONTES/BRITO
389

individual como mecanismo de fuga num negar também que sua abordagem cultura-
mundo de sofrimento e solidão. Dessa ma- lista, baseada numa lógica da legitimação do
neira, podemos considerar o conceito de discurso nativo como definição última da
caráter social como alternativa que traz em condição de maldade de certas ações oferece
si o aspecto histórico necessário para com- um escopo de análise reduzido e limitador.
preensão do mal como categoria permanente De acordo com Alexander, o pro-
nas ações humanas no mundo contemporâ- blema da ação moral permaneceu presente
neo. Esse caráter social, que funciona como sob formas distintas de compreender os as-
categoria analítica com grande aproximação pectos sociais da crença religiosa, a defini-
ao conceito de tipos ideais de Weber, é ção do divino, tanto quanto na busca pela
constituído com base naqueles aspectos da definição de atrocidades como o Holocausto.
experiência coletiva que são compartilhados Porém, sua articulação sempre esteve neces-
por determinados grupos e que são histori- sariamente relacionada a definições do bem.
camente definidos pelo desenvolvimento de A ação maligna, ou os desvios morais para o
todos os aspectos da vida humana. Dessa mal sempre figuraram simplesmente como
maneira, podemos então falar de um caráter negação do bem, como aquilo que é outro
social global contemporâneo, ou de um gru- que não o bem. A sua tentativa de construir
po, nação etc., e traçar suas raízes for- uma teoria culturalista do Mal, apesar de ser
mativas, seus processos transformativos e importante para situar o problema na teoria
seus mecanismos de reprodução através da sociológica contemporânea, sofre de uma
observação de características permanentes e grave deficiência: que é a permanência nu-
comuns a todos os seus membros. ma forma de relativismo sociológico no qual
Vale salientar ainda que apesar de a maldade, apesar de sua suposta tentativa
dar importância central ao papel da cultura de ir além de sua definição como oposto do
na formação e manutenção de um caráter bem, é o resultado de uma construção social
social, Fromm não lhe dá o posto central peculiar.
nesse processo, igualando-o aos demais pro- O problema dessa perspectiva, ainda
cessos sociais, econômicos e afetivos na que não queiramos discutir os problemas
definição do caráter social de um determi- filosóficos da moralidade, é que ela desca-
nado período histórico. Lembrando que ou- racteriza a experiência do mal. A partir de
tras perspectivas também são importantes no Alexander não é possível entender a recor-
sentido de localizar sociologicamente o pro- rência histórica dessa forma social. A prin-
blema da maldade, a proposta de Fromm cipal crítica a essa perspectiva sociológica e
pode servir antecipadamente como forma de os seus problemas para a prática da discipli-
criticar a abordagem mais tendenciosamente na são delineados em momentos diferentes
cultural e relativista oferecida por Alexander por Adorno e Bauman. O argumento desen-
em seu Towards a Sociology of Evil. volvido aqui é delineado a partir dos pro-
blemas apresentados por estes autores.
A teoria dos Valores Culturais e o pro-
Para Adorno, o problema central da
blema do Holocausto
teoria da moralidade é a relação de tensão
Embora seja impossível ignorar a entre o comportamento particular (o indiví-
importância do trabalho desenvolvido por duo e seus interesses) e todo o universal que
Jeffrey Alexander para trazer o problema da se lhe opõe (ADORNO, 2000, p. 18). En-
permanência do mal e os estudos sobre mo- quanto a discussão sobre a ética propõe um
ralidade novamente ao centro das discussões discurso ‘novo’ e revelador, daí a sua impor-
sociológicas contemporâneas, não se pode tância no sistema capitalista, a discussão em

RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 13, n. 39, dez. 2014 DOSSIÊ – PONTES/BRITO
390

termos da ‘moralidade’ e ação moral revela- quais são as consequências para a sociologia
ria que o problema dos valores requer um da perspectiva adorniana.
pensamento sobre o sistema, ou sobre a Ainda que, como demonstrou Nisbet,
‘comunidade’ que organiza tais valores. a sociologia só tenha se constituído como
Nesse sentido, a Sociologia nasceu campo independente ao romper com os pro-
como uma tentativa de responder aos pro- blemas e métodos da filosofia moral, as an-
blemas da moralidade e, ainda de acordo tigas tensões foram herdadas pela nova ciên-
com Adorno (idem), o trabalho de Durkheim cia. Se, como aponta Adorno, o uso do ter-
representa um importante passo para todo o mo moralidade, apesar de seu caráter re-
pensamento sobre a moral: ao expor as in- pressivo e conservador tão escarnecido por
consistências do discurso moderno sobre a Nietzsche, coloca o problema dos valores de
liberdade, mas principalmente por revelar os uma maneira que é diretamente ligada à
processos que se desenvolvem a partir da perspectiva sociológica, por que então afir-
tensão entre particular versus universal, in- mar que existe um problema teórico e meto-
divíduo versus sociedade. É corrente na teo- dológico na forma como a Sociologia trata o
ria sociológica contemporânea a tentativa de tema da moral?
criticar essa oposição, mas para o desenvol- Para responder a essa questão pas-
vimento do argumento aqui apresentado é samos a expor o argumento de Zygmunt
fundamental enfatizá-la. A sociologia dur- Bauman em sua obra “Modernidade e Holo-
kheimiana é comumente criticada por apre- causto” onde temos uma verdadeira luta no
sentar o mundo das regras sociais como ex- interior da teoria sociológica para a delimi-
terno ao indivíduo e, especialmente, por essa tação da experiência moral. A questão que
externalidade poder ser percebida na prática. Bauman nos apresenta é: por que algumas
Para Adorno, essa seria a descrição mais fiel pessoas permanecem morais sob condições
da experiência moral e Durkheim teria dado imorais? (BAUMAN, 1998, p. 23). Essa per-
um passo adiante dos filósofos morais ao gunta, eco da questão aristotélica, surge no
demonstrar que as escolhas morais não são momento em que Bauman tenta explicar
apenas processos mentais, mas que estão sociologicamente a atitude heroica daqueles
imbricadas no mundo ‘impuro’ da coerção. alemães que tentaram salvar judeus no auge
Nesse sentido, ao tentar distinguir a experi- do regime nazista. Como a sociologia pode
ência moral para a pesquisa sociológica, explicar os mais radicais atos de moralidade
podemos afirmar que aquela não se encaixa (arriscar a própria vida para salvar um estra-
na naturalidade da vida social; a moralidade nho) sem perder o seu significado e trans-
revela a oposição, recorrentemente enco- formá-lo numa ação racional?
berta pela normalidade da vida social, entre Essa crítica à tradição sociológica
o indivíduo e o mundo e, nesse sentido, seu torna-se ainda mais importante por ser ima-
feitio se aproxima muito mais de uma crise nente; ao pesquisar as tentativas da disci-
na experiência. plina de explicar o fenômeno da moralidade,
Ao manter como problema funda- o autor encontrou aporias fundamentais na
mental da experiência moral a tensão entre forma como o pensamento sociológico trata
ação individual e um universal que se lhe a moralidade e os modos de justificação de
opõe, o pensamento de Adorno ‘abre’ a dis- valores. Essas aporias estão ligadas, pri-
cussão sobre a possibilidade de uma ação meiro, à aplicação da idéia de “determinan-
reta, terreno da filosofia moral, para uma tes sociais” da moralidade (idem) e, se-
dimensão sociológica. Cabe agora perguntar gundo, ao uso de um relativismo radical: a

RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 13, n. 39, dez. 2014 DOSSIÊ – PONTES/BRITO
391

idéia de que todos os valores são social- dade de se explicitar os valores próprios da
mente construídos. sociologia quanto a impede de reconhecer
Dessas aporias emergem dois pro- atos desumanos. Mas, aqui acredito que
blemas importantes. Do ponto de vista teó- chegamos ao ponto até onde a sociologia de
rico, não existe um conceito sociológico de Bauman pode ajudar na construção de uma
moralidade em que o ‘significado moral’ sociologia da moralidade. Afinal, não se
seja preservado. Ou seja, como explicar do trata de dar a sociologia poderes para arbi-
ponto de vista sociológico que alguém arris- trar ou legislar sobre questões morais, mas
que sua própria vida para salvar outrem? Ou, tão somente reconhecer os seus limites (no
no exemplo de Bauman, como explicar a- sentido kantiano). Também, não se trata de
queles atos de heroísmo quando conside- defender uma versão positivista de sociolo-
ramos que não havia uma recompensa no gia da moralidade, mas tão somente reco-
horizonte da ação? Numa situação em que as nhecer a existência de um “em si” 2 da expe-
regras correntes distinguem os seres entre riência moral que é desnaturado quando se
humanos e não-humanos, como explicar a busca conhecer a sua causa. Em termos di-
ocorrência de eventual solidariedade entre retos, a “ação moral em si” (note-se: não me
indivíduos desses dois mundos? A idéia de refiro à experiência, nem aos valores e mo-
que os atos heroicos se justificam pela es- dos de justificação moral) não possui deter-
pera de algum tipo de recompensa é sim- minantes sociais. Os defensores de Bauman
plesmente falha. No caso do bombeiro que argumentarão que é isto que está em jogo
morre para salvar uma criança, não existiria em sua “Ética Pós-Moderna” (1997), mas é
muita racionalidade em trocar a vida por forçoso reconhecer que não é esse o cami-
uma medalha ou foto no jornal. Do ponto de nho seguido no desenvolvimento posterior,
vista das histórias analisadas por Bauman de sua fase ‘líquida’.
alemães que, em pleno regime nazista, sal- Bauman (1993) tenta concretizar o
varam judeus, as informações de uma possí- projeto de uma sociologia da moralidade
vel recompensa eram inexistentes. capaz de não desnaturar a própria natureza
Para evitar a idéia de que o que está da moralidade. Porém, devido a sua percep-
em jogo nessa problematização é apenas a ção limitada do problema da normatividade,
busca de uma justificativa emotivista para o constrói um projeto político e não um ‘mo-
estabelecimento da natureza das ações mo- delo’ de pensamento ou uma teoria. Se-
rais, é possível recorrer ao significado que guindo Levinas, Bauman afirma que o cui-
os atores dão a esses atos no contexto da dado com o ‘outro’ me é imposto junto com
ação e assim garantir que existe um signifi- minha condição humana e que a vida social
cado distinto. Como demonstrou Bauman, seria a história da manipulação dessa condi-
quando os indivíduos que realizam atitudes ção primeira. Ao afirmar que a moralidade é
morais heroicas são questionados “por que pré-social, o autor chega a confrontar o pro-
agiram como agiram?”, a resposta sempre se blema, mas não desenvolve quais seriam as
dá em torno de um “não sei” ou “não pen- consequências desta idéia para a disciplina.
sei”. Então, a questão que Bauman traz para
a Sociologia é: por que os atores sociais não 2
Reconheço que aqui estamos diante de um pro-
conseguem criar um discurso sobre tais a- blema filosófico. Ao se usar a idéia kantiana de um
tos? ‘limite’, não seria possível falar de um ‘em si’ da
Segundo, em termos epistemológi- experiência moral. Mas, essa ambivalência está pre-
cos, a radicalização da noção de “construção sente no próprio pensamento de Adorno que faz uso
social de valores” elimina tanto a possibili- também de categorias hegelianas, permitindo assim
que se pense a uma experiência moral ‘em si’.

RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 13, n. 39, dez. 2014 DOSSIÊ – PONTES/BRITO
392

Os problemas se somam, especialmente dimento do problema. O fato de que Elias


quando esta idéia se une a uma recusa em não aponta explicitamente para uma socio-
pensar qualquer forma normativa: o que se- logia da moralidade reforça o nosso argu-
ria esse momento pré-social? Como explicá- mento de que a ‘matéria’ da moralidade é
lo? diluída no discurso sobre as práticas cultu-
Na verdade, essa teoria ou pensa- rais e sociais.
mento capaz de discutir os problemas da O “processo civilizador” é caracteri-
moralidade não é apresentado para além do zado como um aumento nas formas de “i-
‘discurso edificante’. O problema do projeto dentificação” entre seres humanos. Elias nos
baumaniano, que é o problema geral daquela lembra o fato de que já não nos agrada mais
um dia tão ambiciosa vertente pós-moderna, a luta dos gladiadores, possuímos hoje uma
é confundir o autoritarismo das normas soci- maior sensibilidade que se sente agredida
ais e políticas com as necessárias normas e diante da violência e que tenta evitar a sua
limites que estruturam e ordenam o pensa- imagem. Ainda que esse processo não im-
mento e a crítica. Não que estruturas de pen- plique necessariamente um aumento no re-
samento não possam carregar elementos de conhecimento do sofrimento e dor, estamos
autoritarismo, mas mesmo um pensamento aqui no terreno dos valores e da norma-
negativo mais radical precisa se estruturar e tividade, e mais precisamente, diante de um
revelar fundamentos. Nesse caso, Bauman padrão que organiza o encontro com o outro.
repete a mesma fórmula do tipo de perspec- Todavia, o mais importante aspecto da teoria
tiva que criticou em Weber: o simples reco- eliasiana para uma análise da moralidade
nhecimento da possibilidade de ação moral, contemporânea não é demonstrar as etapas
uma forma vazia e incapaz de integrar o do desenvolvimento da sensibilidade e da
problema e as tensões da moralidade á prá- identificação, mas, principalmente, apontar
tica da disciplina. uma ambiguidade crucial presente no seio
Apresentados estes problemas, a das modernas formas de sociabilidade: o
questão se torna como fornecer um modelo aumento da inter-relação entre os indivíduos
de sociologia que responde às críticas apre- é seguido pelo aumento da sensação de iso-
sentadas por Bauman. É importante perceber lamento (SMITH, 2000, p. 128). Elias de-
que só a partir do reconhecimento da especi- monstra como, historicamente, um maior
ficidade da experiência moral é que pode- reconhecimento do outro se desenvolveu
mos pensar em constituir uma sociologia do lado a lado com uma valorização de padrões
mal. que estabelecem a distância social.
Extraindo dessa observação conse-
Processo Civilizador e Moralidade
quências não pretendidas por Elias, podemos
Na tentativa de esclarecer nosso ar- dizer que o nível de internalização das nor-
gumento e para uma melhor compreensão mas na sociedade moderna é tão alto e tão
dos contornos de uma sociologia da mal- violento que chegamos a uma situação em
dade, apresentamos uma breve discussão que o processo de identificação, enquanto
sobre a teoria do processo civilizador de moralidade, foi esvaziado. Num viés nega-
Norbert Elias. Pode parecer que esta discus- tivo, a teoria do processo civilizador pode
são está deslocada, mas seu objetivo é iden- ser lida como a comprovação de que o au-
tificar o tipo de problemas que estamos a- mento na identificação (uma forma social)
pontando na maneira como o olhar socioló- não possui necessariamente nenhum conte-
gico analisa a moralidade e, ao mesmo tem- údo moral. O fato de que o entretenimento
po, as suas contribuições para o enten- contemporâneo se dá, por exemplo, através

RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 13, n. 39, dez. 2014 DOSSIÊ – PONTES/BRITO
393

do futebol, ao invés da luta sangrenta entre como possibilidade do processo de reconhe-


gladiadores, não implica nenhuma compai- cimento. Caso quiséssemos sustentar que a
xão pelos gladiadores ou pelo sofrimento experiência da maldade é correlata do pro-
humano em geral, talvez essa repulsa seja cesso de reconhecimento, teríamos impor-
apenas uma questão de “higiene”. tantes aliados na filosofia social para ajudar
Contudo, a radicalidade do empi- a construir esse argumento (Adorno, por
rismo adotado por Elias como meta da pes- exemplo). Todavia, aqui ficamos apenas
quisa sociológica salvaguarda a disciplina com uma versão fraca desse argumento ao
do problema de fundamentar a normativi- tomar as idéia de Elias de que (1) a sociabi-
dade. Elias encontra uma solução empirista lidade se desenvolve numa tensão entre re-
para tratar o problema dos valores e trans- conhecimento e dissociação e (2) a experi-
forma as discussões sobre a moralidade, e ência de dissociação é parte da experiência
obviamente uma discussão sobre o mal, nu- do mal. Dessa maneira, a visão eliasiana não
ma metafísica indesejada. apresenta o mal como situação recorrente e
Estamos diante de um grande pro- sim como processo histórico e refuta a pers-
blema para a teoria sociológica: a experiên- pectiva de Zimbardo que, no final das con-
cia do mal não se deixa apreender entre os tas, é uma interpretação da maldade apegada
extremos da empiria e do transcendental. às suas bases transcendentais segundo uma
Por não trazer para análise do processo de perspectiva vulgar: a sua idéia de ‘situação’
identificação a variada gama de valoração pode ser trocada por destino ou vontade di-
moral usada pelos atores, a compreensão do vina sem grandes transformações dos cami-
fenômeno moral é diminuída na teoria so- nhos adotados para a sua pesquisa.
ciológica de Norbert Elias. Contudo, é pre- Ao tomarmos essa perspectiva pro-
ciso reconhecer que a perspectiva Eliasiana cessual podemos entender que, ao menos na
apresenta um passo fundamental para a história do ocidente (que é onde se estabe-
construção de uma sociologia da maldade. A lece a idéia de mal que estamos traba-
percepção da relação entre reconhecimento e lhando), a experiência da maldade, como
dissociação como uma oposição traz uma distanciamento do outro, está associada ao
contribuição substantiva para a compreensão desenvolvimento da própria noção de indi-
das bases sociais do mal: a ocorrência da víduo. Mas, aqui ainda estamos diante de
maldade é inserida na prática social e, mais uma certa noção difusa da maldade- uma
ainda, na experiência histórica. Aqui, esta- possibilidade histórica, uma parte da socia-
mos diante de uma leitura particular da obra bilidade. Um outro problema que temos ago-
de Norbert Elias que oferece uma dupla con- ra é pensar nas maneiras como essa forma
tribuição para a sociologia: (a) romper com ‘difusa’ se torna um conjunto de práticas
a dimensão ideológica de nossa própria so- reconhecidas e estabelecidas apesar de sua
ciedade que associa processo de reconhe- natureza. Nesse sentido, temos que re-
cimento ao aumento da preocupação moral conhecer um ‘momento de verdade’ na teo-
e, ainda, (b) romper também com resquícios ria de Zimbardo: o mal possui roteiro e re-
de uma explicação puramente metafísica da gras definidos. Nossa discordância de Zim-
maldade que a associam com uma espécie bardo, como foi esboçada acima está na sua
de ‘acidente’ ou ruptura da experiência. percepção das bases que permitem encenar
Nossa leitura de Elias apresenta-a, esse roteiro. Assim, passamos a apresentar
contra suas próprias bases, como uma teoria nossa idéia de como a teoria de Bourdieu é
capaz de contribuir para a compreensão da importante na tentativa de resolver esse pro-
transcendentalidade do mal ao inscrevê-lo blema.

RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 13, n. 39, dez. 2014 DOSSIÊ – PONTES/BRITO
394

Incorporação e o habitus da maldade como elementos mais contemporâneos e


ainda não completamente incorporados à
Assim como a teoria eliasiana apre-
trajetória individual.
sentada acima, a teoria do habitus de Pierre
O habitus é caracterizado como en-
Bourdieu não oferece uma leitura específica
tidade fluida, como processo constante, de
sobre a maldade. No entanto, ainda com o
incorporação permanente de novos elemen-
intuito de estabelecer aqui uma agenda para
tos quem podem gerar tensão e modificação
a discussão sociológica do mal que dê conta
da trajetória do sujeito. O habitus como es-
de aspectos da criação e manutenção de uma
trutura duradoura, não condiciona direta-
noção de maldade na qual estão fundamen-
mente a ação do sujeito, mas funciona como
tados os aspectos morais do mundo ociden-
um prisma, direcionando suas potencialida-
tal, vale à pena tentar compreender como
des através de certas categorias incorporadas
sua abordagem relacional da construção do
pela experiência do passado e que necessi-
conceito de habitus como espaço fluído de
tam ser atualizadas a todo instante no pre-
interação entre o sujeito e o mundo social
leva a uma compreensão mais aprofundada sente. Portanto, o sujeito está a todo instante
investido seriamente no mundo, experimen-
do estabelecimento de características histo-
tando com certa regularidade situações de
ricamente fundamentadas das ações voltadas
desconforto e de deslocamento tanto quanto
para o mal, sua permanência e seu reconhe-
situações em que seu habitus aparece bem
cimento para além de abordagens que caiam
ajustado ao mundo do qual faz parte.
num determinismo cultural exacerbado, num
No entanto, se levarmos em consi-
personalismo individualista ou, finalmente
deração que a trajetória e historicidade de
numa abordagem situacional que não dá
um indivíduo não apenas configuram, mas
conta da permanência histórica do fenô-
também transformam seu habitus, como
meno.
falar de regularidade de processos coletivos
O conceito de habitus surge, já des-
na vida social? Como extrapolar a partir
de muito cedo, no contexto da explicação
dessa individualidade idiossincrática e che-
bourdiesiana, como ferramenta de explica-
gar a um habitus ‘genérico’, onde grupos
ção não apenas do processo de reprodução
compartilhem certas disposições?
de estruturas objetivas do mundo, mas tam-
È aqui que os processos de codifica-
bém como forma de compreensão e explica-
ção, objetificação e formalização do mundo
ção dos processos transformativos e de ade-
surgem como “uma operação de ordem sim-
quação do sujeito ao mundo social, ou seja,
bólica” (BOURDIEU, 1990a, p. 80) que
como processo de incorporação de elemen-
formaliza e normatiza as ações, gerando um
tos do espaço social, mas também como
conjunto de ações possíveis que “asseguram
forma complexa de adaptação e reestrutura-
um nível mínimo de comunicação” (idem)
ção das suas condições de existência, res-
entre os sujeitos. Esta codificação (formal,
ponsável por sua ação no mundo.
normatizada e legítima) é o processo que
O habitus se forma através de pro-
pressupõe ações de violência simbólica atra-
cessos psicossociais, portanto objetivos (pe-
vés do qual podemos derivar a validade uni-
la incorporação) e subjetivos (na forma de
versal de condutas e ações específicas, trans-
socialização e de experiências singulares) de
formando-as, desta maneira, em ações legí-
acumulação, pela experiência individual e
timas. A compreensão desse processo de
coletiva, de elementos do mundo exterior
codificação é de extrema importância, pois
em camadas formadoras incorporadas ao
longo da vida do sujeito, possuindo camadas ela explicita a forma como o habitus, em sua
forma dispositiva, aparece como elemento
mais profundas e mais sedimentadas, assim

RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 13, n. 39, dez. 2014 DOSSIÊ – PONTES/BRITO
395

duplamente estruturado por uma realidade mal podem cruzar fronteiras culturais e ser
objetiva, mas também por uma trajetória de universalmente reconhecidas.
experiências individuais, respondendo assim
Conclusão
a capacidade de ajuste desse habitus a novas
situações, mas também a capacidade de mu- O objetivo deste trabalho foi o de
dança decorrente de modificações nas traje- desenvolver uma agenda para a construção
tórias, tanto individuais quanto coletivas, no de uma Teoria Sociológica do Mal através
espaço social. da crítica das abordagens de Phillip Zim-
É a partir dessa possibilidade do ha- bardo e Jeffrey Alexander, tendo como pano
bitus na sua forma historicamente prevalente de fundo a teoria crítica de Bauman e Ador-
e constante que podemos relacioná-lo ao no, apontando para novas possibilidades
problema da existência e permanência do através da utilização da idéia de processos
mal no mundo ocidental. Se levarmos em civilizadores de Norbert Elias e do conceito
consideração que os aspectos que definem de habitus e incorporação de Pierre Bourdi-
uma ação para o mal na sociedade contem- eu.
porânea estão presentes na gênese de um Nessa trajetória, a abordagem perso-
habitus ocidental, podemos então começar a nalista, bem como a abordagem situacional
entender como os indivíduos não apenas são da Psicologia Social, tanto quanto uma a-
capazes de reconhecer e julgar, mas também bordagem relativista da cultura foram con-
justificar ou rejeitar as ações malignas. sideradas limitadoras da possibilidade de
Essas ações derivadas de aspectos explicação sociológica do problema do mal
compartilhados de uma habitus coletivos ou por não serem capazes de apreender as-
podem definir então o que chamaremos ago- pectos coletivos e históricos da permanência
ra de habitus da maldade. O habitus da do mal como categoria de análise ou por não
maldade se constitui de maneira similar ao darem conta dos processos de universaliza-
processo de formação do caráter social em ção a partir dos quais a maldade pode ser
Erich Fromm, a partir de elementos da expe- reconhecida.
riência compartilhada historicamente por Podemos concluir então que na bus-
indivíduos de uma mesma época através da ca da compreensão do mal, devemos dese-
incorporação de elementos que definem o nhar um projeto de análise que dê conta não
que será considerado como imoral. Podemos apenas dos aspectos apontados por Norbert
então reconhecer como, a partir de um pro- Elias, que dizem respeito à importância his-
cesso de dupla historicidade, a das forças tórica dos processos de distanciamento para
estruturais e a da formação do habitus da a emergência e permanência das ações con-
maldade, poderá então surgir uma agenda sideradas moralmente imorais, mas também
sociológica para a compreensão do mal. buscar enfatizar, através da dupla histo-
Essa dupla historicização deve dar ricização proposta por Bourdieu, como as
conta não apenas dos aspectos específicos da categorias presentes no habitus da maldade
formação da idéia de maldade e suas formas da sociedade ocidental contemporânea se
históricas, mas de como essas formas são formam e se perpetuam, cruzando inclusive
incorporadas, repassadas e transformadas fronteiras culturais.
dentro do espaço social, seja ele específico – Bibliografia
dando conta, por exemplo, das diferenças
culturais nos processo de racionalização do ADORNO, T.W. & HORKHEIMER, M.
mal – ou mais abrangente – buscando expli- (1985). A Dialética do esclarecimento. Rio
car, por exemplo, como certas ações para o de Janeiro: Jorge Zahar.

RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 13, n. 39, dez. 2014 DOSSIÊ – PONTES/BRITO
396

ADORNO, T. W. (2000). Problems of Mo- BRITO, S. M.; MORAIS, J. V.; BARRETO,


ral Philosophy. Cambridge: Polity Press T.V . (2011a). Regras do Jogo versus Re-
gras Morais: Para uma Sociologia do 'Fair
ADORNO, T. W. (2001). Metaphysics:
Play'. Revista Brasileira de Ciências Sociais
Concepts and problems. Cambridge: Polity
(Impresso), v. 77, p. 133-147.
Press
BOURDIEU, Pierre. (1977). Outline of a
ADORNO, T. W. (2006). History and Free-
Theory of Practice. Cambridge: Cambridge
dom. Cambridge: Polity Press
University Press.
ADORNO, T. W. (2008). Minima Moralia:
BOURDIEU, Pierre. (1990a). In Other
Reflexões a partir da vida lesada. Rio de
Words: Essays towards and reflexive Soci-
Janeiro: Azougue.
ology. Stanford: Stanford University Press.
ADORNO, T. W. (2009). Dialética Nega-
BOURDIEU, Pierre. (1990b). The Logic of
tiva. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Practice. Stanford: Stanford University
ALEXANDER, J. (2001). ‘Towards a Soci- Press.
ology of Evil’. In; Maria Pía Lara (Ed). Re-
BOURDIEU, Pierre. (1998c). Razões Práti-
thinking Evil: contemporary perspectives.
cas. Tradução de Mariza Corrêa. 9ª. Edição,
pp: 153-72. Berkeley: University of Califor-
Campinas, Papirus.
nia Press.
DE VRIES, H. (2005). Minimal Theologies:
BAUMAN, Z. (1997). Ética Pós-Moderna.
Critiques of Secular Reason in Adorno and
São Paulo: Paulus.
Levinas. Baltimore, Maryland: Johns Hop-
BAUMAN, Z. (1998). Modernidade e Holo- kins University Press.
causto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
ELIAS, N. & DUNNING, E. (1995). De-
BAUMAN, Z. (1999). Modernidade e Am- porte y ocio en el proceso de civilización.
bivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. México: Fondo de Cultura Economico
BERNSTEIN, J. M. (2001). Adorno. Disen- ELIAS, N. & SCOTSON, J. L. (2000). Os
chantment and Ethics. New York: Cam- estabelecidos e os outsiders: sociologia das
bridge University Press. relações de poder a partir de uma comuni-
BERNSTEIN, R. J. (2002). Radical Evil: a dade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
philosophical interrogation. Oxford: Polity ELIAS, N. (1994). O processo civilizador.
Press. Vol1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
BOLTANSKI, L. & THÉVENOT, L. (2006) ELIAS, N. (1997). Os alemães. A luta pelo
On Justification: Economies of Worth. poder e a evolução do habitus no século XIX
Princeton University Press. e XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
BOLTANSKI, L. (1999) Distant Suffering: FREUD, S. (2010). O mal-estar na Cultura .
Morality, Media and Politics. Cambridge: São Paulo: L&PM Editores.
Cambridge University Press.
FROMM, Erich. (1941). Escape from Free-
BRITO, S. (2007). “Negative Morality: A- dom. New York, Rinehart & Co.
dorno’s sociology”. Tese de Doutorado de-
FROMM, Erich. (1990). The Sane Society.
fendida no Departamento de Sociologia da
New York, Henry Holt
Lancaster University (Reino Unido).

RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 13, n. 39, dez. 2014 DOSSIÊ – PONTES/BRITO
397

HITLIN, S & VAISEY, S. (eds.) (2010). ROSE, G. (1981). Hegel contra sociology.
Handbook of the sociology of morality. New London: Athlone; N.J.: Humanities Press
York: Springer. SILBER, J. R. (1991). Kant at Auschwitz.
HORKHEIMER, M. (1993). Between phi- In: Proceedings of the Sixth International
losophy and social science: selected early Kant Congress. Eds. G. Funke and T.
writings. Cambridge, Mass.: MIT Press. Seebohm, p. 177-211.
KALLSCHEUER O. (1995). And Who is SMITH, D. (2001). Norbert Elias and mod-
My Neighbor? In: Social Research, 62/1. ern social theory. London: Sage Publica-
New York, N.Y.: Graduate Faculty of Polit- tions.
ical and Social Sciences, New School for SMITH, K. (2004). Further towards a soci-
Social Research. ology of Evil. In: Thesis Eleven 79: 65-74.
KORSGAARD, C. M. (1996). The sources London, Thousand Oaks, CA and New Del-
of normativity. New York: Cambridge Uni- hi: Sage Publications.
versity Press. TESTER, K. (1997). Moral culture. London;
LEMERT, E. M. (1997). The trouble with Thousand Oaks: Sage
Evil, social control at the edge of Morality. TIEDEMANN, R. (Ed). (2003). Can one
New York: State University of New York live after Auschwitz? A philosophical read-
Press. er. California: Stanford University Press.
Milgram, S. (1974). Obedience to Authority: ZELIZER, V. (1994). The social meaning of
An Experimental View. New York: Harper money: pin money, paychecks, poor relief,
and Row. and other currencies. New York:Basic
MACINTYRE, A. (2001). Depois da Books
Virtude. Bauru: Edusc. ZELIZER,V. (2010). Economic lives: how
NISBET, R. (1980). Conservantismo. In: culture shapes the economy. Princenton:
BOTTOMORE, T. & NISBET, R. História Princenton University Press.
da análise sociológica. Rio de Janeiro: Za- ZIMBARDO, Phillip. (2007). The Lucifer
har Editores. Effect: understanding how good people turn
ROSE, G. (1978). The Melancholy Science. evil. New York: Random House.
An introduction to the thought of Theodor
W. Adorno. London: Macmillan.

Abstract: This paper aims at leading the path for the development of a Sociological Theory of Evil by
shedding a new light onto aspects related to the historical permanence of evil and its role as an im-
portant theoretical issue that should be investigated by crossing the boundaries between sociology,
critical theory and psychoanalysis. To do so, the authors will first engage in a critical reading of Jef-
frey Alexander´s approach (2001, 2009) which offers an unsatisfactory cultural solution to the prob-
lem of evil and second, will investigate the situational approach developed by Phillip Zimbardo
(2007), while pointing out to some problematic issues that arise from it. The work proposed will take
the form of three distinct moments: (1) a critical presentation of Alexander´s theory of values that will
be supported by Bauman and Adorno's work, (2) a careful reading of the situational and structural de-
terminism underlying the Lucifer Effect (Zimbardo, 2007), emphasizing its existence as an “escape
mechanism”, as proposed by Erich Fromm (1941, 1990, 1992) and, last but not least, (3) offer a more

RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 13, n. 39, dez. 2014 DOSSIÊ – PONTES/BRITO
398

satisfactory answer to the problem of evil and evil doing that will focus on the dimension of “incorpo-
ration” found in Pierre Bourdieu's notion of “habitus” and Norbert Elias´ civilizing processes. Key-
words: Sociology of Evil, Lucifer Effect, Elias, Bourdieu

RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 13, n. 39, dez. 2014 DOSSIÊ – PONTES/BRITO
399

RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 13, n. 39, dez. 2014 DOSSIÊ – PONTES/BRITO

Você também pode gostar