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Poderes Do Horror de Julia Kristeva Capi PDF
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PODERES DO HORROR
ENSAIO SOBRE A ABJEÇÃO 1
I – APROXIMAÇÃO DA ABJEÇÃO
Há, na abjeção, uma dessas violentas e obscuras revoltas do ser contra aquilo
que o ameaça e que lhe parece vir de um fora ou de um dentro exorbitante, jogado ao
lado do possível, do tolerável, do pensável. Está lá, bem perto, mas inassimilável. Isso
solicita, inquieta, fascina o desejo que, no entanto, não se deixa seduzir. Assustado, ele
se desvia. Enojado, ele rejeita. Um absoluto o protege do opróbrio, com orgulho a ele se
fia e o guarda. Mas, ao mesmo tempo, mesmo assim, esse elã, esse espasmo, esse salto é
lançado em direção de um outro lugar tão tentador quanto condenado. Incansavelmente,
como um bumerangue indomável, um polo de atração e de repulsão coloca aquele no
qual habita literalmente fora de si.
Quando eu sou invadida pela abjeção, esse emaranhado feito de afetos e de
pensamentos, que assim chamo, não possui, propriamente falando, um objeto definível.
O abjeto não é um ob-jeto diante de mim, que eu nomeio e imagino. Não é muito menos
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esse ob-jetiado [ob-jeu], pequeno “a” em fuga indefinidamente na busca sistemática
do desejo. O abjeto não é o meu correlato que, oferecendo-me um apoio sobre qualquer
um outro ou qualquer coisa outra, permite-me ser, mais ou menos, destacada ou
autônoma. Do objeto, o abjeto tem somente uma qualidade – aquela de se opor ao eu
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Kristeva, Julia. Pouvoirs de l’horreur: Essai sur l’abjection. Paris: Éditions du Seuil, 1980, “Approche
de l’abjection”, pp. 07-27. Tradução de Allan Davy Santos Sena (allandavy@hotmail.com). Traduções
cotejadas: Kristeva, Julia. Poderes de la perversión: Ensayo sobre Louis-Ferdinand Céline. Traducción
Nicolás Rosa. México: Siglo XXI Editores, 2006 / Kristeva, Julia. Powers of horror: An essay on
abjection. Translated by Leon S. Roudiez. New York: Columbia University Press, 1982.
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Na terminologia de Lacan, objetalidade refere-se ao campo das relações objetais, como uma relação a
objetos distintos ao eu, já objetidade refere-se ao objeto a, causa do desejo (N. do T.).
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O impróprio [impuro] 5
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O termo “abjeto” tem origem no latim abiectus, particípio perfeito passivo do verbo abicio, junção de ab
(para longe, distante, para baixo) e iacio (jogar, lançar, arremessar): “jogar, lançar, arremessar, ejetar,
expelir, expulsar para longe”, “deixar de lado”, “abandonar”, “colocar para baixo”, “afastar”, “retirar”,
“derrubar”, “cuspir”. Já o termo “objeto” tem origem em obiectus, particípio perfeito passivo do verbo
obicio, junção de ob (em direção de, contra o, em relação a, em face de) e iacio (jogar, lançar,
arremessar): “lançar, jogar, arremessar, pôr na direção de”, “colocar no caminho de”, “ajustar a”,
“ajeitar”, “arranjar”, “oferecer”, “apresentar”, “expor”, “interpor”, “confrontar” (N. do T.).
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Jogo de palavras intraduzível entre version (versão), conversion (conversão), la verse au père (depositar
[na conta] do pai ou derramar/despejar sobre o pai) e père-version (“pai-versão”, homófono, em francês,
de perversão) (N. do T.).
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No original, impropre, “impróprio”, “aquilo não convém”, mas que também pode ter o sentido de
“impuro”, “maculado”, “imundo”, “sujo”. No texto, a autora lida com os vários sentidos do termo (N. do
T.).
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“Humor” em seu sentido original, referente à medicina praticada na Antiguidade, ou seja, à teoria dos
quatro humores, dos quatros fluídos corporais que afetariam a constituição dos indivíduos; a saber:
sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra, que procederiam, respectivamente, do coração, sistema
respiratório, fígado e baço (N. do T.).
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mais eu que expulso, “eu” sou expulsa. O limite se tornou um objeto. Como posso eu
ser sem limite? Este outro lugar que eu imagino para além do presente, ou que eu
alucino para poder, em um presente, vos falar, vos pensar, está aqui agora, jogado,
abjetado, no “meu” mundo. Desprovido de mundo, pois, eu desvaneço. Nessa coisa
insistente, crua, insolente, sob o sol escaldante do necrotério cheio de adolescentes
confusos, nessa coisa que não demarca mais e, portanto, não significa mais nada, eu
contemplo o desmoronamento de um mundo que apagou seus limites: desvanecimento.
O cadáver – visto sem Deus e fora da ciência – é o cúmulo da abjeção. É a morte
infestando a vida. Abjeto. Ele é um rejeitado do qual não dá para se separar, do qual não
dá para se proteger como se faria com um objeto. Estranheza imaginária e ameaça real,
ele nos chama e acaba por nos devorar.
Não é, pois, a ausência de limpeza [propreté] ou de saúde que torna abjeto, mas
aquilo que perturba uma identidade, um sistema, uma ordem. Aquilo que não respeita os
limites, os lugares, as regras. O intermediário, o ambíguo, o misto. O traidor, o
mentiroso, o criminoso em sã consciência, o violador sem vergonha, o assassino que
alega salvar... Todo crime, por assinalar a fragilidade da lei, é abjeto, mas o crime
premeditado, o assassinato acobertado, a vingança hipócrita o são mais ainda porque
redobram e aumentam essa exibição da fragilidade legal. Aquele que renuncia a moral
não é abjeto – pode haver grandeza na amoralidade e mesmo no crime que ostenta sua
falta de respeito à lei, revoltado, liberador e suicida. A abjeção, em si, é imoral,
tenebrosa, oscilante, suspeita: um terror que se dissimula, uma raiva que sorri, uma
paixão por um corpo que lhe troca ao invés de lhe aquecer, um devedor que lhe vende,
um amigo que lhe apunhala...
Nas salas escuras desse museu que hoje resta de Auschwitz, vejo uma pilha de
sapatos de crianças, ou algo parecido que já tenha visto em outros lugares, sob uma
árvore de natal, por exemplo, bonecas, eu acho. A abjeção do crime nazi atinge seu
apogeu quando a morte que, de toda maneira, mata-me, se mistura ao que, no meu
universo vivo, deveria me salvar da morte: à infância, à ciência, entre outras coisas...
A abjeção de si
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Saint François de Sales, Introduction à la vie dévote, t. III, 1.
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“Inquietante estranheza” é a tradução francesa tradicional para o termo psicanalítico “Unheimlich”
(“estranha familiaridade”), conforme o conceito definido por Freud no texto “Das Unheimlich”,
publicado em 1919. Em inglês, o termo é geralmente traduzido como “uncanny”. Em português, Paulo
César de Souza traduz o termo como “inquietante” (cf. Freud, Sigmund. Obras Completas. Vol. 14, 1917-
1920. São Paulo: Cia. das Letras, pp. 249-283) [N. do T.].
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vomitado, expulsado, caído. Aquilo que ela engoliu no lugar do amor maternal é um
vazio, ou, mais ainda, uma raiva maternal sem palavras pela palavra do pai; é disso que
ela tenta se purgar, incansavelmente. Que conforto ela encontra nesse nojo? Talvez um
pai, existente, mas vacilante, amável, mas instável, simples aparição, mas que aparece
permanentemente. Sem ele a sagrada criança não teria provavelmente nenhum sentido
do sagrado; sujeito nulo, confundir-se-ia com o despejo de não-objetos sempre caídos
dos quais tenta, pelo contrário, armada com abjeção, salvar-se. Pois não está louco
aquele pelo qual o abjeto existe. Do torpor que a congelou diante do corpo intocável,
impossível, ausente da mãe, esse torpor que cortou seus ímpetos de seus objetos, isto é,
de suas representações, desse torpor, eu digo, deve advir, com o nojo, uma palavra – o
medo. O fóbico não tem outro objeto além do abjeto. Mas esta palavra “medo” – bruma
fluída, umidade insaciável –, mal advém e logo se esvai, como uma miragem, e
impregna de inexistência, de fulgor alucinatório e fantasmático, todas as palavras da
língua. Assim, com o medo colocado entre parênteses, o discurso só se torna sustentável
com a condição de se confrontar sem cessar com esse outro lugar, peso repelente e
repelido, fundo de memória inacessível e íntimo: o abjeto.
Aquele pelo qual o abjeto existe é, pois, um jogado [jeté] que (se) coloca, (se)
separa, (se) situa e, portanto, erra, ao invés de se reconhecer, de desejar, de pertencer
ou de recusar. Situacionista em certo sentido, e não sem riso – porque rir é uma maneira
de colocar ou descolocar a abjeção. Forçosamente dicotômico, um pouco maniqueísta,
divide, exclui e, sem, propriamente falando, querer conhecer suas abjeções, tampouco as
ignora. Aliás, frequentemente, ali se inclui, jogando, assim, dentro de si o bisturi que
opera suas separações.
No lugar de se interrogar sobre seu “ser”, ele se interroga sobre seu lugar: “Onde
eu estou?” muito mais do que “O que eu sou?”. Pois o espaço que preocupa o jogado, o
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Fronteiriços.
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excluído, não é jamais um, nem homogêneo, nem totalizável, mas essencialmente
divisível, maleável, catastrófico. Construtor de territórios, de línguas, de obras, o jogado
não cessa de delimitar seu universo, cujos confins fluídos – já que constituídos por um
não objeto, o abjeto – põem em cheque constantemente sua solidez e o impelem a
recomeçar. Construtor infatigável, o jogado é em suma um extraviado. Um viajante em
uma noite sem fim. Tem o sentido do perigo, da perda que representa o pseudo-objeto
que lhe atrai, mas não pode deixar de se arriscar no momento mesmo em que se separa.
E quanto mais se extravia, mas se salva.
Pois, é deste extravio em terreno excluído que ele obtém seu gozo. Este abjeto
do qual não cessa de se separar é, em suma, para ele, uma terra de esquecimento
constantemente rememorada. Em um tempo apagado, o abjeto deve ter sido um polo
magnético de luxúria. Mas a cinza do esquecimento serve agora de tela e reflete a
aversão, a repugnância. O próprio [limpo] (no sentido de incorporado e incorporável) se
torna sujo, o procurado vira banido, a fascinação pelo opróbrio. É então que o tempo
esquecido surge bruscamente e condensa em um relâmpago fulgurante uma operação
que, caso fosse pensada, seria a reunião de dois termos opostos, mas que, devido a essa
fulguração, descarrega-se como um trovão. O tempo da abjeção é duplo: tempo do
esquecimento e do trovão, do infinito velado e do momento em que a revelação rebenta.
Gozo e afeto
dito “a” do desejo irrompe com o espelho quebrado em que o Eu [moi] cede sua imagem
para se mirar no Outro, o abjeto não tem nada de objetivo, nem mesmo de objetal. Ele é
simplesmente uma fronteira, um dom repulsivo que o Outro, tornado alter ego, deixa
tombar para que “eu” [je] não desapareça nele, mas encontre nessa sublime alienação,
uma existência destituída [caída]. Um gozo, pois, no qual o sujeito é tragado, mas no
qual o Outro, por seu turno, lhe impede de se afogar tornando-o repugnante.
Compreende-se, assim, por que tantas vítimas do abjeto são vítimas fascinadas, quando
não dóceis e complacentes.
Fronteira sem dúvida, a abjeção é sobretudo ambiguidade. Porque, ao demarcar,
ela não separa radicalmente o sujeito daquilo que o ameaça – pelo contrário, ela o
reconhece em perigo perpétuo. Mas também porque a abjeção mesma é um misto de
julgamento e afeto, de condenação e de efusão, de signos e de pulsões. Do arcaísmo da
relação pré-objeto, da violência imemorial com a qual um corpo se separa de um outro
para ser, a abjeção conserva aquela noite em que se perde o contorno da coisa
significada e em que só atua o afeto imponderável. Seguramente, se sou afetada por
aquilo que não me aparece ainda como uma coisa, é porque leis, relações, estruturas
mesmas de sentido me governam e me condicionam. Esse comando, esse olhar, essa
voz, esse gesto, que fazem a lei para meu corpo assustado, constituem e provocam um
afeto e não ainda um símbolo. Dirijo-me em vão a ele para excluí-lo daquilo que não
será, para mim, um mundo assimilável. Evidentemente, eu sou apenas como qualquer
outro: lógica mimética do advento do Eu, dos objetos e dos signos. Mas quando Eu [je]
(me) busco, (me) perco, ou gozo, então o “Eu” é heterogêneo. Desconforto, mal-estar,
vertigem dessa ambiguidade que, pela violência de uma revolta contra, delimita um
espaço a partir do qual surgem signos, objetos. Assim retorcido, tecido, ambivalente,
um fluxo heterogêneo demarca um território, que posso dizer que é meu porque o Outro,
tendo me habitado como alter-ego, indicou-me pelo desgosto.
Isso quer dizer uma vez mais que o fluxo heterogêneo, que demarca o abjeto e
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devolve [excreta] abjeção, já habita um animal humano altamente alterado. Só
experimento a abjeção quando um Outro se coloca no lugar e local daquilo que será o
“Eu” [moi]. Não mais um outro com o qual eu me identifico, nem que incorporo, mas
um Outro que me precede e me possui, e por essa possessão me faz ser. Possessão
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O verbo “renvoyer” costuma ser empregado com o sentido de “despedir”, “mandar embora”,
“devolver”, “remeter”, mas também pode ter o sentido de “expulsar”, “rejeitar”, “ejetar”, “expelir”,
“excretar”.
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anterior ao meu advento: ser-ali do simbólico que um pai poderia ou não encarnar.
Inerência da significância ao corpo humano.
Se, por conta deste outro, um espaço se delimita separando o abjeto daquilo que
será um sujeito e seus objetos, é porque uma repressão que se poderia dizer “primária”
se opera antes do surgimento do Eu, de seus objetos e de suas representações. Estes, por
sua vez, tributários de uma outra repressão, a “secundária”, chegam apenas a posteriori
sobre um fundamento já balizado, enigmático, cujo retorno sob forma fóbica, obsessiva,
psicótica, ou, geralmente de maneira mais imaginária, sob forma de abjeção, nos indica
os limites do universo humano.
Em tal limite, e no limite, pode-se dizer [ainda] que não há inconsciente, o qual
se constrói quando representações e afetos (ligados ou não a elas) formam uma lógica.
Aqui, ao contrário, a consciência não adquiriu seus direitos de transformar em
significantes as demarcações fluídas de territórios ainda instáveis em que um “eu” [je]
em formação não deixa de se extraviar. Não estamos mais na esfera da consciência, mas
nesse limite da repressão originária que encontrou, todavia, uma marca intrinsecamente
corporal e já significante, sintoma e signo: a repugnância, o asco, a abjeção.
Efervescência do objeto e do signo que não são do desejo, mas de uma significância
intolerável, e que, embora oscilem entre o sem-sentido e o real impossível, apresentam-
se, malgrado o “eu” [moi] (que não é), como abjeção.
mesmo momento do trajeto, mas é o mesmo sujeito e o mesmo discurso que os fazem
existir.
Pois o sublime tampouco tem objeto. Quando o céu estrelado, a vastidão do
oceano ou um vitral de raios violeta me fascinam, é um feixe de sentidos, de cores, de
palavras, de carícias, sussurros, odores, suspiros, cadências que surgem, envolvem-me,
elevam-me e me conduzem para além das coisas que vejo, escuto ou penso. O “objeto”
sublime se dissolve nos transportes de uma memória sem fundo. É ele que, de estação
em estação, de lembrança em lembrança, de amor em amor, transfere esse objeto ao
ponto luminoso do resplendor onde eu me perco para ser. Logo que o percebo, que o
nomeio, o sublime desencadeia – ele sempre já desencadeia – uma cascata de
percepções e de palavras que expandem a memória ao infinito. Esqueço-me, então, o
ponto de partida e me encontro postada em um universo segundo, deslocado do
universo onde “eu” [je] sou: deleite e perda. Não inferior, mas sempre com e por meio
da percepção e das palavras, o sublime é um acréscimo que nos infla, que nos excede e
que nos faz estar ao mesmo tempo aqui, jogados, e lá, como outros e brilhantes.
Divergência, clausura impossível. Desperdício completo, alegria: fascinação.
O abjeto pode aparecer, então, como a sublimação mais frágil (de um ponto de
vista sincrônico), mais arcaica (de um ponto de vista diacrônico) de um “objeto” ainda
inseparável das pulsões. O abjeto é um pseudo-objeto que se constitui antes, mas que só
aparece nas brechas da repressão secundária. O abjeto será, pois, o “objeto” da
repressão originária.
Mas o que é a repressão originária? Diremos: a capacidade do ser falante,
sempre já habitado pelo Outro, de dividir, rejeitar, repetir. Sem que uma divisão, uma
separação, um sujeito/objeto seja constituído (não ainda, ou não mais). Por quê? Pode
ser que por conta da angústia maternal, incapaz de se apaziguar no ambiente simbólico.
O abjeto nos confronta, por um lado, nesses estados frágeis em que o homem
erra nos territórios do animal. Assim, por meio da abjeção, as sociedades primitivas
delimitaram uma zona precisa de sua cultura a fim de separá-la do mundo ameaçador do
animal ou da animalidade, imaginados como representantes da morte e do sexo.
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O abjeto nos confronta, por outro lado, e dessa vez na nossa arqueologia pessoal,
em nossas tentativas mais antigas de nos separar da entidade maternal, antes mesmo de
ex-istir fora dela, graças à autonomia da linguagem. Separação violenta e mal-
ajambrada, sempre espreitada pela recaída na dependência de um poder tão
reconfortante quanto sufocante. A dificuldade de uma mãe reconhecer (ou de se fazer
reconhecer por) uma instância simbólica – dito de outro modo, seus problemas com o
falo que o pai ou o marido representa para ela – não é evidentemente de natureza a
ajudar o futuro sujeito a deixar a pousada natural. Se a criança pode servir como índice
de autenticação para a sua mãe, não há, contudo, nenhuma razão para que esta lhe sirva
de intermediário em sua própria autonomização e autenticação. Nesse corpo a corpo, a
luz simbólica que um terceiro, o pai eventualmente, pode trazer, serve para o futuro
sujeito, principalmente se ele se encontra dotado de uma constituição pulsional robusta,
continuar a guerra relutante [à son corps défendant] 11, com aquilo que, a partir da mãe,
se torna um abjeto. Repelindo, rejeitando; repelindo-se, rejeitando-se. Ab-jetando.
Nessa guerra que molda o ser humano, o mimetismo, pelo qual ele se homologa
a um outro para tornar-se a si mesmo, é, em suma, logicamente e cronologicamente,
secundário. Antes de ser como, “eu” não sou, mas separo, rejeito, ab-jeto. A abjeção,
em um sentido mais amplo, diacrônico subjetivo, é uma pré-condição do narcisismo.
Ela lhe é co-existensiva e o fragiliza permanentemente. A imagem mais ou menos bela
em que eu me miro ou me reconheço repousa sobre uma abjeção que a quebra quando a
repressão, vigia permanente, relaxa.
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A expressão “à son corps défendant”, que literalmente significa “em defesa de seu corpo”, possui
figurativamente o sentido de “contra a sua vontade”, “com relutância”, “a despeito de si mesmo”, “a
contragosto”, “com repugnância”. Uma possível explicação para a origem do sentido figurado da
expressão reside no fato de que, ao se defender de um ataque, é necessário, mesmo que a contragosto,
recorrer à violência. Provavelmente, a autora faz aqui um jogo entre o significado literal e o sentido
figurado da expressão.
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estratégias (rejeição, separação, repetição-abjeção ) encontram, portanto, uma
existência simbólica, à qual a própria lógica do simbólico, os argumentos, as
demonstrações, as provas, devem se conformar. É então que o objeto cessa de ser
circunscrito, arrazoado, separado: ele aparece como... abjeto.
Duas causas aparentemente contraditórias provocam essa crise narcisística que
traz, com sua verdade, a visão do abjeto. Uma excessiva severidade do Outro,
confundida com o Uno e com a Lei. A falência do Outro que transparece no colapso dos
objetos do desejo. Nos dois casos, o abjeto aparece para sustentar o “eu [je]” no Outro.
O abjeto é a violência do luto por um “objeto” para sempre já perdido. O abjeto derruba
o muro da repressão e de seus julgamentos. Ele reconduz o eu [moi] à fonte dos limites
abomináveis dos quais, para ser, este se separou – ele o reconduz ao não-eu, à pulsão, à
morte. A abjeção é uma ressurreição que passa pela morte (do eu [moi]). É uma
alquimia que transforma a pulsão de morte em despertar de vida, de nova significância.
Perverso ou artístico
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No original: “rejetantes, séparantes, répétantes-abjectantes”.
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Dostoiévski
toute une vie et je donnerais pour elles toute ma vie, car elles la valent. Pour supporter cela dix secondes,
il faudrait se transformer physiquement. Je pense que l'homme doit cesser d'engendrer. A quoi bon des
enfants, à quoi bon le développement de l'humanité si le but est atteint ? Il est dit dans l'Évangile
qu'après la résurrection, on n'engendrera plus et que tous seront comme des anges de Dieu. C'est une
allusion. Votre femme accouche?” (Dostoïevski, Les Démons, trad. Boris de Schloezer, Gallimard, 1955,
p. 619).
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Cf. Dostoiévski, Fiódor. Os Demônios. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Ed. 34, 2004, p. 407.
Na tradução utilizada por Kristeva: “Son projet est remarquable, reprit Verkhovenski. Il établit
l'espionnage. Chez lui, tous les membres de la société s'épient mutuellement et sont tenus de rapporter
tout ce qu'ils apprennent. Chacun appartient à tous, et tous appartiennent à chacun. Tous les hommes
sont esclaves et égaux dans l'esclavage ; dans les cas extrêmes, on a recours à la calomnie et au meurtre
; mais le principal, c'est que tous soient égaux. Avant tout, on abaisse le niveau de l'instruction, des
sciences et des talents. Le niveau élevé n'est accessible qu'aux talents ; donc, pas de talents. Les hommes
de talents s'emparent toujours du pouvoir et deviennent des despotes. Ils ne peuvent faire autrement ; ils
ont toujours fait plus de tort que de bien. Il faudra les bannir et les mettre à mort. Cicéron aura la langue
arrachée, Copernic aura les yeux crevés, Shakespeare sera lapidé. Voilà le chigaliovisme ! Les esclaves
doivent être égaux. Sans despotisme, il n'y a jamais eu encore ni liberté ni égalité. Or, l'égalité doit
régner dans le troupeau. Voilà le chigaliovisme ! Ha ! ha ! ha !... cela vous étonne ? Je suis pour
Chigaliov” (Dostoïevski, Les Démons, trad. Boris de Schloezer, Gallimard, 1955, p. 441).
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fictícios ou mortos, em que reinam, como fetiches ferozes, mas não menos
fantasmáticos, matronas com vertigens de poder? E é ao simbolizar o abjeto, ao entregar
magistralmente o gozo de enunciá-lo, que Dostoiévski se livrava desse impiedoso peso
maternal.