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JULIA KRISTEVA

PODERES DO HORROR
ENSAIO SOBRE A ABJEÇÃO 1

I – APROXIMAÇÃO DA ABJEÇÃO

Não há fera que não tenha um reflexo do infinito;


Não há pupila abjeta e vil que não toque
O raio vindo do alto, às vezes terno e às vezes feroz
V. Hugo, A lenda dos séculos.

Nem sujeito, nem objeto

Há, na abjeção, uma dessas violentas e obscuras revoltas do ser contra aquilo
que o ameaça e que lhe parece vir de um fora ou de um dentro exorbitante, jogado ao
lado do possível, do tolerável, do pensável. Está lá, bem perto, mas inassimilável. Isso
solicita, inquieta, fascina o desejo que, no entanto, não se deixa seduzir. Assustado, ele
se desvia. Enojado, ele rejeita. Um absoluto o protege do opróbrio, com orgulho a ele se
fia e o guarda. Mas, ao mesmo tempo, mesmo assim, esse elã, esse espasmo, esse salto é
lançado em direção de um outro lugar tão tentador quanto condenado. Incansavelmente,
como um bumerangue indomável, um polo de atração e de repulsão coloca aquele no
qual habita literalmente fora de si.
Quando eu sou invadida pela abjeção, esse emaranhado feito de afetos e de
pensamentos, que assim chamo, não possui, propriamente falando, um objeto definível.
O abjeto não é um ob-jeto diante de mim, que eu nomeio e imagino. Não é muito menos
2
esse ob-jetiado [ob-jeu], pequeno “a” em fuga indefinidamente na busca sistemática
do desejo. O abjeto não é o meu correlato que, oferecendo-me um apoio sobre qualquer
um outro ou qualquer coisa outra, permite-me ser, mais ou menos, destacada ou
autônoma. Do objeto, o abjeto tem somente uma qualidade – aquela de se opor ao eu

1
Kristeva, Julia. Pouvoirs de l’horreur: Essai sur l’abjection. Paris: Éditions du Seuil, 1980, “Approche
de l’abjection”, pp. 07-27. Tradução de Allan Davy Santos Sena (allandavy@hotmail.com). Traduções
cotejadas: Kristeva, Julia. Poderes de la perversión: Ensayo sobre Louis-Ferdinand Céline. Traducción
Nicolás Rosa. México: Siglo XXI Editores, 2006 / Kristeva, Julia. Powers of horror: An essay on
abjection. Translated by Leon S. Roudiez. New York: Columbia University Press, 1982.
2
Na terminologia de Lacan, objetalidade refere-se ao campo das relações objetais, como uma relação a
objetos distintos ao eu, já objetidade refere-se ao objeto a, causa do desejo (N. do T.).
2

[je]. Mas se o objeto, fazendo oposição, me equilibra na trama frágil de um desejo de


sentido que, de fato, me homologa indefinidamente, infinitamente a ele, o abjeto, pelo
contrário, objeto baixo 3, é radicalmente um excluído e me lança lá onde o sentido
desmorona. Um certo “eu” [moi] que se fundiu com seu mestre, um super-eu, lhe
enxotou abertamente. Ele está de fora, fora do conjunto do qual parece não reconhecer
as regras do jogo. Contudo, desse exílio, o abjeto não cessa de desafiar seu mestre. Sem
(lhe) dar sinal, solicita uma descarga, uma convulsão, um grito. A cada eu seu objeto, a
cada super-eu seu abjeto. Não é a toalha branca ou o tédio que se propaga da repressão,
não são as versões e conversões do desejo que tiranizam os corpos, as noites, os
discursos. Mas um sofrimento brutal no qual o “eu” se acomoda, sublime e devastado,
pois “eu” o deposito [verse] na conta do pai (pai-versão [perversão]?) 4: eu o suporto, já
que eu imagino que tal é o desejo do outro. Surgimento massivo e abrupto de uma
estranheza que, mesmo que me tenha sido familiar numa vida opaca e olvidada, agora
me acedia como radicalmente separada, repugnante. Não eu. Não isso. Mas tampouco
nada. Um “qualquer coisa” que eu não reconheço como coisa. Um peso de sem sentido
que não tem nada de insignificante e que me esmaga. Na beira da inexistência e da
alucinação, de uma realidade que, se eu a reconheço, ela me aniquila. O abjeto e a
abjeção são as minhas salvaguardas. Delineamentos de minha cultura.

O impróprio [impuro] 5

Nojo de comida, de sujeira, de dejeto, de lixo. Espasmos e vômitos que me


protegem. Repulsa, ânsia que me afasta e me desvia da sujidade, da cloaca, do imundo.
Ignomínia da acomodação, do não tomar partido, da traição. Sobressalto fascinado que
ali me conduziu e dali me separou.

3
O termo “abjeto” tem origem no latim abiectus, particípio perfeito passivo do verbo abicio, junção de ab
(para longe, distante, para baixo) e iacio (jogar, lançar, arremessar): “jogar, lançar, arremessar, ejetar,
expelir, expulsar para longe”, “deixar de lado”, “abandonar”, “colocar para baixo”, “afastar”, “retirar”,
“derrubar”, “cuspir”. Já o termo “objeto” tem origem em obiectus, particípio perfeito passivo do verbo
obicio, junção de ob (em direção de, contra o, em relação a, em face de) e iacio (jogar, lançar,
arremessar): “lançar, jogar, arremessar, pôr na direção de”, “colocar no caminho de”, “ajustar a”,
“ajeitar”, “arranjar”, “oferecer”, “apresentar”, “expor”, “interpor”, “confrontar” (N. do T.).
4
Jogo de palavras intraduzível entre version (versão), conversion (conversão), la verse au père (depositar
[na conta] do pai ou derramar/despejar sobre o pai) e père-version (“pai-versão”, homófono, em francês,
de perversão) (N. do T.).
5
No original, impropre, “impróprio”, “aquilo não convém”, mas que também pode ter o sentido de
“impuro”, “maculado”, “imundo”, “sujo”. No texto, a autora lida com os vários sentidos do termo (N. do
T.).
3

O nojo alimentar é, talvez, a forma mais elementar e mais arcaica da abjeção.


Quando essa pele na superfície do leite, inofensiva, fina como a folha de papel do
cigarro, desprezível como restos cortados de unhas, apresenta-se aos olhos, ou toca os
lábios, um espasmo da glote e, ainda mais baixo, do estômago, do ventre, de todas as
vísceras, crispa o corpo, provoca lágrimas e a bílis, faz palpitar o coração, transpirar
testa e mãos. Com a vertigem que nubla a visão, a náusea me contorce contra essa nata,
e me separa da mãe, do pai que me apresentam-na. Desse elemento, signo de seu desejo,
“eu” não quero nada, “eu” nada quero saber, “eu” não o assimilo, eu o expulso. Mas,
porque esse alimento não é um “outro” para “mim”, que sou apenas no desejo deles, eu
me expulso, eu me cuspo, eu me abjeto no mesmo movimento pelo qual “eu” pretendo
me colocar. Esse detalhe, insignificante, talvez, mas que eles buscam, carregam,
apreciam, me impõem, essa migalha me vira do avesso, embrulha-me o estômago:
assim veem, eles, que eu estou a ponto de me tornar outra ao preço de minha própria
morte. Nesse trajeto onde “eu” me torno, eu dou à luz a mim na violência do soluço, do
vômito. Protesto mudo do sintoma, violência excruciante da convulsão, inscrito,
certamente, em um sistema simbólico, mas no qual, sem querer nem poder integrar-se
para lhe responder, isso reage, isso ab-reage. Isso abjeta.
O cadáver (cadere, cair), aquilo que irremediavelmente caiu, [que é] cloaca e
morte, perturba mais violentamente ainda a identidade daquele que se confronta como
um acaso frágil e falacioso. Uma ferida com sangue e pus, ou o odor adocicado e acre
de um suor, de uma putrefação, não significa morte. Diante da morte significada – por
exemplo, um encefalograma plano – eu compreenderia, reagiria ou aceitaria. Não, como
um teatro da verdade, sem disfarce e sem máscara, tanto o dejeto como o cadáver me
indicam aquilo que eu descarto permanentemente para viver. Esses humores 6, essa
imundície, essa merda são aquilo que a vida suporta com muito custo e ao custo da
morte. Ali eu estou nos limites de minha condição de viva. Desses limites se livra o meu
corpo como [corpo] vivo. Esses dejetos caem para que eu viva, até que, de perda em
perda, nada mais me reste, e que meu corpo caia por inteiro para além do limite, cadere,
cadáver. Se o lixo significa o outro lado do limite, onde eu não sou e que me permite
ser, o cadáver, o mais repugnante dos dejetos, é um limite que a tudo invade. Já não sou

6
“Humor” em seu sentido original, referente à medicina praticada na Antiguidade, ou seja, à teoria dos
quatro humores, dos quatros fluídos corporais que afetariam a constituição dos indivíduos; a saber:
sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra, que procederiam, respectivamente, do coração, sistema
respiratório, fígado e baço (N. do T.).
4

mais eu que expulso, “eu” sou expulsa. O limite se tornou um objeto. Como posso eu
ser sem limite? Este outro lugar que eu imagino para além do presente, ou que eu
alucino para poder, em um presente, vos falar, vos pensar, está aqui agora, jogado,
abjetado, no “meu” mundo. Desprovido de mundo, pois, eu desvaneço. Nessa coisa
insistente, crua, insolente, sob o sol escaldante do necrotério cheio de adolescentes
confusos, nessa coisa que não demarca mais e, portanto, não significa mais nada, eu
contemplo o desmoronamento de um mundo que apagou seus limites: desvanecimento.
O cadáver – visto sem Deus e fora da ciência – é o cúmulo da abjeção. É a morte
infestando a vida. Abjeto. Ele é um rejeitado do qual não dá para se separar, do qual não
dá para se proteger como se faria com um objeto. Estranheza imaginária e ameaça real,
ele nos chama e acaba por nos devorar.
Não é, pois, a ausência de limpeza [propreté] ou de saúde que torna abjeto, mas
aquilo que perturba uma identidade, um sistema, uma ordem. Aquilo que não respeita os
limites, os lugares, as regras. O intermediário, o ambíguo, o misto. O traidor, o
mentiroso, o criminoso em sã consciência, o violador sem vergonha, o assassino que
alega salvar... Todo crime, por assinalar a fragilidade da lei, é abjeto, mas o crime
premeditado, o assassinato acobertado, a vingança hipócrita o são mais ainda porque
redobram e aumentam essa exibição da fragilidade legal. Aquele que renuncia a moral
não é abjeto – pode haver grandeza na amoralidade e mesmo no crime que ostenta sua
falta de respeito à lei, revoltado, liberador e suicida. A abjeção, em si, é imoral,
tenebrosa, oscilante, suspeita: um terror que se dissimula, uma raiva que sorri, uma
paixão por um corpo que lhe troca ao invés de lhe aquecer, um devedor que lhe vende,
um amigo que lhe apunhala...
Nas salas escuras desse museu que hoje resta de Auschwitz, vejo uma pilha de
sapatos de crianças, ou algo parecido que já tenha visto em outros lugares, sob uma
árvore de natal, por exemplo, bonecas, eu acho. A abjeção do crime nazi atinge seu
apogeu quando a morte que, de toda maneira, mata-me, se mistura ao que, no meu
universo vivo, deveria me salvar da morte: à infância, à ciência, entre outras coisas...

A abjeção de si

Se é verdade que o abjeto solicita e pulveriza simultaneamente o sujeito,


compreende-se que ele experimenta sua força máxima quando, cansado de suas vãs
5

tentativas de se reconhecer fora de si, o sujeito encontra o impossível nele mesmo:


quando percebe que o impossível é o seu ser mesmo, descobre que não é outro que o
abjeto. A abjeção de si será a forma culminante dessa experiência do sujeito ao qual é
revelado que todos os seus objetos repousam somente sobre a perda inaugural fundante
de seu próprio ser. Nada melhor do que a abjeção de si para demonstrar que toda
abjeção é de fato reconhecimento da falta fundadora de todo ser, sentido, linguagem,
desejo. Passa-se sempre muito rápido pela palavra “falta”, e a psicanálise hoje em dia só
retém dela o produto mais ou menos fetichista, o “objeto da falta”. Mas, caso se imagine
(e deve-se imaginar, pois é o trabalho da imaginação que aqui é fundador) a experiência
da falta mesma como logicamente preambular ao ser e ao objeto – ao ser do objeto –,
então se compreende que seu único significado é abjeção, e, com ainda mais razão,
abjeção de si. Sendo seu significante... a literatura. A cristandade mística fez dessa
abjeção de si a prova última da humildade diante de Deus, como testemunha essa Santa
Elisabeth, que “por mais que tenha sido uma grande princesa, amava sobretudo a
abjeção de si mesma”. 7
A questão permanece aberta à provação, desta vez laica, que a abjeção pode
representar para aquele que, no chamado reconhecimento da castração, desvia-se de
suas perversas escapatórias, para oferecer para si mesmo seu próprio corpo e seu próprio
eu como os não-objetos mais preciosos, caídos, abjetos, perdidos doravante como
apropriados. Ver-se-á que o fim da cura analítica pode nos conduzir para esta direção.
Tormentos e delícias do masoquismo.
Essencialmente diferente da “inquietante estranheza” 8, e também mais violenta,
a abjeção se constrói sobre o não reconhecimento de seus próximos: nada lhe é familiar,
nem mesmo uma sombra de recordação. Imagino uma criança que engoliu
precocemente seus pais, que se vê “totalmente só”, assustada, e, para se salvar, rejeita e
vomita tudo aquilo que lhe é oferecido, todos os presentes, objetos. Ela tem, poderia ter
o sentido do abjeto. Antes mesmo que as coisas sejam para ela – antes, pois, que sejam
significáveis –, ela as ex-pulsa, dominada pela pulsão, e faz para si um território cercado
pelo abjeto. Figura sagrada. O medo cimenta seu recinto adjacente a um outro mundo,

7
Saint François de Sales, Introduction à la vie dévote, t. III, 1.
8
“Inquietante estranheza” é a tradução francesa tradicional para o termo psicanalítico “Unheimlich”
(“estranha familiaridade”), conforme o conceito definido por Freud no texto “Das Unheimlich”,
publicado em 1919. Em inglês, o termo é geralmente traduzido como “uncanny”. Em português, Paulo
César de Souza traduz o termo como “inquietante” (cf. Freud, Sigmund. Obras Completas. Vol. 14, 1917-
1920. São Paulo: Cia. das Letras, pp. 249-283) [N. do T.].
6

vomitado, expulsado, caído. Aquilo que ela engoliu no lugar do amor maternal é um
vazio, ou, mais ainda, uma raiva maternal sem palavras pela palavra do pai; é disso que
ela tenta se purgar, incansavelmente. Que conforto ela encontra nesse nojo? Talvez um
pai, existente, mas vacilante, amável, mas instável, simples aparição, mas que aparece
permanentemente. Sem ele a sagrada criança não teria provavelmente nenhum sentido
do sagrado; sujeito nulo, confundir-se-ia com o despejo de não-objetos sempre caídos
dos quais tenta, pelo contrário, armada com abjeção, salvar-se. Pois não está louco
aquele pelo qual o abjeto existe. Do torpor que a congelou diante do corpo intocável,
impossível, ausente da mãe, esse torpor que cortou seus ímpetos de seus objetos, isto é,
de suas representações, desse torpor, eu digo, deve advir, com o nojo, uma palavra – o
medo. O fóbico não tem outro objeto além do abjeto. Mas esta palavra “medo” – bruma
fluída, umidade insaciável –, mal advém e logo se esvai, como uma miragem, e
impregna de inexistência, de fulgor alucinatório e fantasmático, todas as palavras da
língua. Assim, com o medo colocado entre parênteses, o discurso só se torna sustentável
com a condição de se confrontar sem cessar com esse outro lugar, peso repelente e
repelido, fundo de memória inacessível e íntimo: o abjeto.

Para além do inconsciente

Isto é, há existências que não se sustentam sobre um desejo, sendo o desejo


sempre [desejo] de objetos. Tais existências se fundam sobre a exclusão. Elas se
distinguem claramente daquelas entendidas como neuroses ou psicoses, que articulam a
negação e suas modalidades, a transgressão, a denegação e a forclusão. Suas dinâmicas
colocam em questão a teoria do inconsciente, uma vez que esta é tributária de uma
dialética da negatividade.
A teoria do inconsciente supõe, como se sabe, uma repressão de conteúdos
(afetos e representações) que, deste modo, não ascendem à consciência, mas operam no
sujeito modificações, sejam de discursos (lapsus, etc), sejam de corpos (sintomas),
sejam dos dois (alucinações, etc.). Correlativamente à noção de repressão, Freud propôs
aquela da denegação para pensar a neurose, e de rejeição (forclusão) para situar a
psicose. A assimetria das duas repressões se acentua pelo fato de que a denegação recai
sobre o objeto enquanto que a forclusão afeta o desejo em si mesmo (aquilo que Lacan,
em conformidade com Freud, interpreta como “forclusão do Nome do Pai”).
7

Não obstante, face ao ab-jeto e, mais especificamente, à fobia e à clivagem do eu


[moi] (ainda voltaremos a isso), pode-se indagar se essas articulações da negatividade
próprias ao inconsciente (herdadas por Freud da filosofia e da psicologia) não estão
caducas. Os conteúdos “inconscientes” permanecem aqui excluídos, mas de uma
maneira estranha: não tão radicalmente para permitir a diferenciação sólida
sujeito/objeto, e, todavia, com uma nitidez suficiente para que uma posição de defesa,
de recusa, mas também de elaboração sublimatória possa ter lugar. Como se a oposição
fundamental estivesse, aqui, entre Eu [Je] e Outro, ou, mais arcaicamente ainda, entre
Dentro e Fora. Como se esta oposição subsumisse aquela, elaborada a partir das
neuroses, entre Consciente e Inconsciente.
Por conta da oposição ambígua Eu/Outro, Dentro/Fora – oposição vigorosa, mas
permeável, violenta, mas incerta –, os conteúdos “normalmente” inconscientes nos
neuróticos se tornam, então, explícitos, quando não conscientes, nos discursos e nos
comportamentos “limites” (borderlines 9). Com frequência, esses conteúdos se
manifestam abertamente nas práticas simbólicas, sem, no entanto, se integrarem à
consciência julgadora dos sujeitos em questão. Por tornarem impertinente a oposição
consciente/inconsciente, esses sujeitos e seus discursos são terrenos propícios de uma
discursividade sublimatória (“estética” ou “mística”, etc.) bem mais do que científica ou
racionalista.

Um exilado que pergunta: “Onde?”

Aquele pelo qual o abjeto existe é, pois, um jogado [jeté] que (se) coloca, (se)
separa, (se) situa e, portanto, erra, ao invés de se reconhecer, de desejar, de pertencer
ou de recusar. Situacionista em certo sentido, e não sem riso – porque rir é uma maneira
de colocar ou descolocar a abjeção. Forçosamente dicotômico, um pouco maniqueísta,
divide, exclui e, sem, propriamente falando, querer conhecer suas abjeções, tampouco as
ignora. Aliás, frequentemente, ali se inclui, jogando, assim, dentro de si o bisturi que
opera suas separações.

No lugar de se interrogar sobre seu “ser”, ele se interroga sobre seu lugar: “Onde
eu estou?” muito mais do que “O que eu sou?”. Pois o espaço que preocupa o jogado, o

9
Fronteiriços.
8

excluído, não é jamais um, nem homogêneo, nem totalizável, mas essencialmente
divisível, maleável, catastrófico. Construtor de territórios, de línguas, de obras, o jogado
não cessa de delimitar seu universo, cujos confins fluídos – já que constituídos por um
não objeto, o abjeto – põem em cheque constantemente sua solidez e o impelem a
recomeçar. Construtor infatigável, o jogado é em suma um extraviado. Um viajante em
uma noite sem fim. Tem o sentido do perigo, da perda que representa o pseudo-objeto
que lhe atrai, mas não pode deixar de se arriscar no momento mesmo em que se separa.
E quanto mais se extravia, mas se salva.

Tempo: esquecimento e trovão

Pois, é deste extravio em terreno excluído que ele obtém seu gozo. Este abjeto
do qual não cessa de se separar é, em suma, para ele, uma terra de esquecimento
constantemente rememorada. Em um tempo apagado, o abjeto deve ter sido um polo
magnético de luxúria. Mas a cinza do esquecimento serve agora de tela e reflete a
aversão, a repugnância. O próprio [limpo] (no sentido de incorporado e incorporável) se
torna sujo, o procurado vira banido, a fascinação pelo opróbrio. É então que o tempo
esquecido surge bruscamente e condensa em um relâmpago fulgurante uma operação
que, caso fosse pensada, seria a reunião de dois termos opostos, mas que, devido a essa
fulguração, descarrega-se como um trovão. O tempo da abjeção é duplo: tempo do
esquecimento e do trovão, do infinito velado e do momento em que a revelação rebenta.

Gozo e afeto

Gozo, em suma. Já que o extraviado se considera o equivalente de um Terceiro.


Assegura-se do julgamento deste, age em nome de seu poder para condenar, funda-se
sobre sua lei para esquecer ou rasgar o véu do esquecimento, mas também para erigir
seu objeto como caduco. Como caído. Ejetado pelo Outro. Estrutura ternária, caso se
queira, tida como pedra angular pelo Outro, mas “estrutura” exorbitada, topologia da
catástrofe. Pois, ao se fazer um alter ego, o Outro cessa de ter em mãos os três polos do
triângulo em que se sustenta a homogeneidade subjetiva, e deixa cair o objeto em um
real abominável, inacessível a não ser pelo gozo. Nesse sentido, somente o gozo faz
com que o abjeto exista como tal. Não se pode conhecê-lo, não se pode desejá-lo, só se
pode gozá-lo. Violentamente e com dor. Uma paixão. E, como no gozo em que o objeto
9

dito “a” do desejo irrompe com o espelho quebrado em que o Eu [moi] cede sua imagem
para se mirar no Outro, o abjeto não tem nada de objetivo, nem mesmo de objetal. Ele é
simplesmente uma fronteira, um dom repulsivo que o Outro, tornado alter ego, deixa
tombar para que “eu” [je] não desapareça nele, mas encontre nessa sublime alienação,
uma existência destituída [caída]. Um gozo, pois, no qual o sujeito é tragado, mas no
qual o Outro, por seu turno, lhe impede de se afogar tornando-o repugnante.
Compreende-se, assim, por que tantas vítimas do abjeto são vítimas fascinadas, quando
não dóceis e complacentes.
Fronteira sem dúvida, a abjeção é sobretudo ambiguidade. Porque, ao demarcar,
ela não separa radicalmente o sujeito daquilo que o ameaça – pelo contrário, ela o
reconhece em perigo perpétuo. Mas também porque a abjeção mesma é um misto de
julgamento e afeto, de condenação e de efusão, de signos e de pulsões. Do arcaísmo da
relação pré-objeto, da violência imemorial com a qual um corpo se separa de um outro
para ser, a abjeção conserva aquela noite em que se perde o contorno da coisa
significada e em que só atua o afeto imponderável. Seguramente, se sou afetada por
aquilo que não me aparece ainda como uma coisa, é porque leis, relações, estruturas
mesmas de sentido me governam e me condicionam. Esse comando, esse olhar, essa
voz, esse gesto, que fazem a lei para meu corpo assustado, constituem e provocam um
afeto e não ainda um símbolo. Dirijo-me em vão a ele para excluí-lo daquilo que não
será, para mim, um mundo assimilável. Evidentemente, eu sou apenas como qualquer
outro: lógica mimética do advento do Eu, dos objetos e dos signos. Mas quando Eu [je]
(me) busco, (me) perco, ou gozo, então o “Eu” é heterogêneo. Desconforto, mal-estar,
vertigem dessa ambiguidade que, pela violência de uma revolta contra, delimita um
espaço a partir do qual surgem signos, objetos. Assim retorcido, tecido, ambivalente,
um fluxo heterogêneo demarca um território, que posso dizer que é meu porque o Outro,
tendo me habitado como alter-ego, indicou-me pelo desgosto.
Isso quer dizer uma vez mais que o fluxo heterogêneo, que demarca o abjeto e
10
devolve [excreta] abjeção, já habita um animal humano altamente alterado. Só
experimento a abjeção quando um Outro se coloca no lugar e local daquilo que será o
“Eu” [moi]. Não mais um outro com o qual eu me identifico, nem que incorporo, mas
um Outro que me precede e me possui, e por essa possessão me faz ser. Possessão

10
O verbo “renvoyer” costuma ser empregado com o sentido de “despedir”, “mandar embora”,
“devolver”, “remeter”, mas também pode ter o sentido de “expulsar”, “rejeitar”, “ejetar”, “expelir”,
“excretar”.
10

anterior ao meu advento: ser-ali do simbólico que um pai poderia ou não encarnar.
Inerência da significância ao corpo humano.

No limite da repressão originária

Se, por conta deste outro, um espaço se delimita separando o abjeto daquilo que
será um sujeito e seus objetos, é porque uma repressão que se poderia dizer “primária”
se opera antes do surgimento do Eu, de seus objetos e de suas representações. Estes, por
sua vez, tributários de uma outra repressão, a “secundária”, chegam apenas a posteriori
sobre um fundamento já balizado, enigmático, cujo retorno sob forma fóbica, obsessiva,
psicótica, ou, geralmente de maneira mais imaginária, sob forma de abjeção, nos indica
os limites do universo humano.
Em tal limite, e no limite, pode-se dizer [ainda] que não há inconsciente, o qual
se constrói quando representações e afetos (ligados ou não a elas) formam uma lógica.
Aqui, ao contrário, a consciência não adquiriu seus direitos de transformar em
significantes as demarcações fluídas de territórios ainda instáveis em que um “eu” [je]
em formação não deixa de se extraviar. Não estamos mais na esfera da consciência, mas
nesse limite da repressão originária que encontrou, todavia, uma marca intrinsecamente
corporal e já significante, sintoma e signo: a repugnância, o asco, a abjeção.
Efervescência do objeto e do signo que não são do desejo, mas de uma significância
intolerável, e que, embora oscilem entre o sem-sentido e o real impossível, apresentam-
se, malgrado o “eu” [moi] (que não é), como abjeção.

Premissas do signo, revestimentos do sublime

Detenhamos-nos um pouco aqui. Se o abjeto já é um esboço de signo para um


não-objeto, no limiar da repressão original, compreende-se que ele se aproxima, por um
lado, do sintoma somático e, por outro, da sublimação. O sintoma: uma linguagem que,
furtando-se, estrutura no corpo um estrangeiro inassimilável, monstro, tumor e câncer,
que os mecanismos auditivos do inconsciente não escutam, pois é fora das trilhas do
sentido do desejo que seu sujeito extraviado se aconchega. A sublimação, ao contrário,
nada mais é do que a possibilidade de nomear o pré-nominal, o pré-objetal, que de fato
não é mais do que um trans-nominal, um trans-objetal. No sintoma, o abjeto me invade,
torno-me ele. Pela sublimação, eu o possuo. O abjeto é cercado pelo sublime. Não é o
11

mesmo momento do trajeto, mas é o mesmo sujeito e o mesmo discurso que os fazem
existir.
Pois o sublime tampouco tem objeto. Quando o céu estrelado, a vastidão do
oceano ou um vitral de raios violeta me fascinam, é um feixe de sentidos, de cores, de
palavras, de carícias, sussurros, odores, suspiros, cadências que surgem, envolvem-me,
elevam-me e me conduzem para além das coisas que vejo, escuto ou penso. O “objeto”
sublime se dissolve nos transportes de uma memória sem fundo. É ele que, de estação
em estação, de lembrança em lembrança, de amor em amor, transfere esse objeto ao
ponto luminoso do resplendor onde eu me perco para ser. Logo que o percebo, que o
nomeio, o sublime desencadeia – ele sempre já desencadeia – uma cascata de
percepções e de palavras que expandem a memória ao infinito. Esqueço-me, então, o
ponto de partida e me encontro postada em um universo segundo, deslocado do
universo onde “eu” [je] sou: deleite e perda. Não inferior, mas sempre com e por meio
da percepção e das palavras, o sublime é um acréscimo que nos infla, que nos excede e
que nos faz estar ao mesmo tempo aqui, jogados, e lá, como outros e brilhantes.
Divergência, clausura impossível. Desperdício completo, alegria: fascinação.

Antes do começo: a separação

O abjeto pode aparecer, então, como a sublimação mais frágil (de um ponto de
vista sincrônico), mais arcaica (de um ponto de vista diacrônico) de um “objeto” ainda
inseparável das pulsões. O abjeto é um pseudo-objeto que se constitui antes, mas que só
aparece nas brechas da repressão secundária. O abjeto será, pois, o “objeto” da
repressão originária.
Mas o que é a repressão originária? Diremos: a capacidade do ser falante,
sempre já habitado pelo Outro, de dividir, rejeitar, repetir. Sem que uma divisão, uma
separação, um sujeito/objeto seja constituído (não ainda, ou não mais). Por quê? Pode
ser que por conta da angústia maternal, incapaz de se apaziguar no ambiente simbólico.
O abjeto nos confronta, por um lado, nesses estados frágeis em que o homem
erra nos territórios do animal. Assim, por meio da abjeção, as sociedades primitivas
delimitaram uma zona precisa de sua cultura a fim de separá-la do mundo ameaçador do
animal ou da animalidade, imaginados como representantes da morte e do sexo.
12

O abjeto nos confronta, por outro lado, e dessa vez na nossa arqueologia pessoal,
em nossas tentativas mais antigas de nos separar da entidade maternal, antes mesmo de
ex-istir fora dela, graças à autonomia da linguagem. Separação violenta e mal-
ajambrada, sempre espreitada pela recaída na dependência de um poder tão
reconfortante quanto sufocante. A dificuldade de uma mãe reconhecer (ou de se fazer
reconhecer por) uma instância simbólica – dito de outro modo, seus problemas com o
falo que o pai ou o marido representa para ela – não é evidentemente de natureza a
ajudar o futuro sujeito a deixar a pousada natural. Se a criança pode servir como índice
de autenticação para a sua mãe, não há, contudo, nenhuma razão para que esta lhe sirva
de intermediário em sua própria autonomização e autenticação. Nesse corpo a corpo, a
luz simbólica que um terceiro, o pai eventualmente, pode trazer, serve para o futuro
sujeito, principalmente se ele se encontra dotado de uma constituição pulsional robusta,
continuar a guerra relutante [à son corps défendant] 11, com aquilo que, a partir da mãe,
se torna um abjeto. Repelindo, rejeitando; repelindo-se, rejeitando-se. Ab-jetando.
Nessa guerra que molda o ser humano, o mimetismo, pelo qual ele se homologa
a um outro para tornar-se a si mesmo, é, em suma, logicamente e cronologicamente,
secundário. Antes de ser como, “eu” não sou, mas separo, rejeito, ab-jeto. A abjeção,
em um sentido mais amplo, diacrônico subjetivo, é uma pré-condição do narcisismo.
Ela lhe é co-existensiva e o fragiliza permanentemente. A imagem mais ou menos bela
em que eu me miro ou me reconheço repousa sobre uma abjeção que a quebra quando a
repressão, vigia permanente, relaxa.

“Khóra”, receptáculo do narcisismo

Atenhamo-nos por um instante nessa aporia freudiana chamada repressão


originária. Origem curiosa, onde aquilo que é reprimido não pode verdadeiramente ser
mantido no lugar, e onde aquele que reprime já toma sempre sua força e autoridade
emprestadas daquilo que é aparentemente muito secundário: a linguagem. Não falemos,
pois, de origem, mas de instabilidade da função simbólica naquilo que ela tem de mais

11
A expressão “à son corps défendant”, que literalmente significa “em defesa de seu corpo”, possui
figurativamente o sentido de “contra a sua vontade”, “com relutância”, “a despeito de si mesmo”, “a
contragosto”, “com repugnância”. Uma possível explicação para a origem do sentido figurado da
expressão reside no fato de que, ao se defender de um ataque, é necessário, mesmo que a contragosto,
recorrer à violência. Provavelmente, a autora faz aqui um jogo entre o significado literal e o sentido
figurado da expressão.
13

significativo, a saber, o interdito do corpo materno (defesa contra o autoerotismo e tabu


do incesto). É a pulsão que, aqui, reina para constituir um estranho espaço que nós
nomearemos, com Platão (Timeu, 45-53), uma khóra, um receptáculo.
Em benefício do eu [moi] ou contra o eu, as pulsões, de vida ou de morte, têm
por função correlacionar este “ainda não eu” com um “objeto”, para constituir tanto um
quanto o outro. Dicotômico (dentro/fora, eu [moi]/não eu) e repetitivo, este movimento
tem, contudo, qualquer coisa de centrípeto: ele visa colocar o eu [moi] como centro de
um sistema solar de objetos. Que, uma vez forçado a retornar [ao centro], o movimento
pulsional acabe por se tornar centrífugo, a se agarrar, pois, no Outro e a se produzir
como signo para assim fazer sentido – eis o que é, propriamente falando, exorbitante.
Mas, a partir desse momento, quando reconheço minha imagem como signo e
me altero para me significar, uma outra economia se instala. O signo reprime a khóra e
seu eterno retorno. Somente o desejo será doravante testemunha desse batimento
“originário”. Mas o desejo ex-patria o eu [moi] para um outro sujeito e não admite mais
as exigências do eu a não ser como narcisistas. O narcisismo, então, aparece como uma
regressão em retirada do outro, um retorno a um refúgio autocontemplativo,
conservador, autossuficiente. De fato, tal narcisismo não é jamais a imagem sem ruga
do deus grego numa fonte plácida. Os conflitos das pulsões atoladas no fundo
perturbam sua água e trazem tudo aquilo que, para um dado sistema de signos, ao não se
integrar, é da abjeção.
A abjeção é, pois, uma espécie de crise narcisística: ela testemunha a
efemeridade desse estado que se denomina, sabe-se deus por que com ciúme
reprobatório, de “narcisismo”; mais ainda, a abjeção confere ao narcisismo (à coisa e ao
conceito) seu status de “aparência”.
No entanto, basta que um interdito, que pode ser um super-eu, barre o desejo que
tende em direção ao outro – ou que este outro, como seu papel o exige, não satisfaça –,
para que o desejo e seus significantes retrocedam o caminho para o “mesmo”,
perturbando assim as águas de Narciso. É precisamente no momento da perturbação
narcisística (estado que, em suma, é permanente do ser falante por pouco que ele se
escute falar), que a repressão secundária, com seu revestimento de meios simbólicos,
procura transferir para sua conta, assim descoberta, os recursos da repressão originária.
A economia arcaica é atraída para a plena luz do dia, significada, verbalizada. Suas
14

12
estratégias (rejeição, separação, repetição-abjeção ) encontram, portanto, uma
existência simbólica, à qual a própria lógica do simbólico, os argumentos, as
demonstrações, as provas, devem se conformar. É então que o objeto cessa de ser
circunscrito, arrazoado, separado: ele aparece como... abjeto.
Duas causas aparentemente contraditórias provocam essa crise narcisística que
traz, com sua verdade, a visão do abjeto. Uma excessiva severidade do Outro,
confundida com o Uno e com a Lei. A falência do Outro que transparece no colapso dos
objetos do desejo. Nos dois casos, o abjeto aparece para sustentar o “eu [je]” no Outro.
O abjeto é a violência do luto por um “objeto” para sempre já perdido. O abjeto derruba
o muro da repressão e de seus julgamentos. Ele reconduz o eu [moi] à fonte dos limites
abomináveis dos quais, para ser, este se separou – ele o reconduz ao não-eu, à pulsão, à
morte. A abjeção é uma ressurreição que passa pela morte (do eu [moi]). É uma
alquimia que transforma a pulsão de morte em despertar de vida, de nova significância.

Perverso ou artístico

O abjeto está relacionado com a perversão. O sentimento de abjeção que eu


experimento está ancorado no super-eu. O abjeto é perverso porque não abandona nem
assume um interdito, uma regra, uma lei; mas distorce-os, extravia-os, corrompe-os;
serve-se deles, usa-os, para melhor negá-los. Mata em nome da vida: é o déspota
progressista; vive ao serviço da morte: é o traficante geneticista; realimenta o
sofrimento do outro para seu próprio bem: é o cínico (e o psicanalista); estabelece seu
poder narcísico fingindo expor seus abismos: é o artista que exerce sua arte como um
“negócio”... A corrupção é sua figura mais conhecida, mais evidente. Ela é a figura
socializada do abjeto.
Faz-se necessário uma adesão inabalável ao Interdito, à Lei, para que este
[caráter] intermediário [entre-deux] perverso da abjeção seja enquadrada e apartada.
Religião, Moral, Direito. Evidentemente sempre arbitrários, para mais ou para menos;
invariavelmente opressivos, bem mais do que menos; dificilmente dominantes, cada vez
mais.
A literatura contemporânea não os substitui. Ao invés disso, parece ser escrita a
partir da insustentabilidade das posições super-euísticas ou perversas. Ela constata a

12
No original: “rejetantes, séparantes, répétantes-abjectantes”.
15

impossibilidade da Religião, da Moral, do Direito – seus abusos, sua aparência


necessária e absurda. Como a perversão, usa-os, distorce-os, diverte-se com eles.
Contudo, guarda sua distância com relação ao abjeto. O escritor, fascinado pelo abjeto,
imaginando sua lógica, ali se projeta, introjeta, e perverte a língua – o estilo e o
conteúdo – em consequência. Mas, por outro lado, como o sentimento de abjeção é, ao
mesmo tempo, juiz e cúmplice do abjeto, assim também o é a literatura que o confronta.
Deste modo, poder-se-ia dizer que, em tal literatura, realiza-se um cruzamento das
categorias dicotômicas do Puro e do Impuro, do Interdito e do Pecado, da Moral e do
Imoral.
Para o sujeito solidamente instalado no seu super-eu, uma tal escritura participa
necessariamente do [caráter] intermediário [entre-deux] que caracteriza a perversão; e
por essa razão provoca, por seu turno, abjeção. Não obstante, há um relaxamento do
super-eu para o qual esses textos apelam. Escrevê-los supõe a capacidade de imaginar o
abjeto, isto é, de se ver em seu lugar e de somente descartá-lo por meio de
deslocamentos de jogos de linguagem. É apenas após sua morte, eventualmente, que o
escritor da abjeção escapará de sua cota de dejeto, desperdício ou abjeto. Então, ou ele
cairá no esquecimento ou ascenderá ao posto de ideal incomensurável. A morte será,
pois, o curador chefe de nosso museu imaginário; ela nos protegerá em última instância
dessa abjeção que a literatura contemporânea se diz capaz de empregar quando a
enuncia. Uma proteção que ajusta suas contas com a abjeção, mas talvez também com a
questão embaraçosa, incandescente, do fato literário em si, que, promovido ao status de
sagrado, encontra-se truncado de sua especificidade. A morte faz, assim, a limpeza de
nosso universo contemporâneo. Em [nos] purificando [da] literatura, ela constitui nossa
religião laica.

Tal abjeção – tal sagrado

A abjeção acompanha todas as construções religiosas, e ela reaparece, para ser


elaborada de uma nova maneira, quando estas entram em colapso. Podem-se distinguir
diversas estruturações da abjeção que determinam os tipos de sagrado.
A abjeção aparece como rito da imundície [souillure] e da contaminação
[pollution] no paganismo que acompanha as sociedades em que predomina ou sobrevive
16

o [poder] matrilinear. Toma seu aspecto de exclusão de uma substância (nutritiva ou


ligada à sexualidade), cuja operação coincide com o sagrado uma vez que o instaura.
A abjeção persiste como exclusão ou tabu (alimentar ou outro) nas religiões
monoteístas, em particular no judaísmo, mas deslizando em direção a formas mais
“secundárias” como transgressão (da Lei) na mesma economia monoteísta. Ela
encontra, enfim, com o pecado cristão, uma elaboração dialética, integrando-se como
alteridade ameaçadora, mas sempre nomeável, sempre totalizável, no Verbo cristão.
As diversas modalidades de purificação do abjeto – as diversas catarses –
constituem a história das religiões, terminando nessa catarse por excelência que é a arte,
aquém e além da religião. Vista por esse ângulo, a experiência artística, enraizada no
abjeto que ela enuncia e, assim, purifica, aparece como o componente essencial da
religiosidade. Talvez seja por isso que ela está destinada a sobreviver ao colapso das
formas históricas das religiões.

Fora do sagrado, o abjeto se escreve

Na modernidade ocidental e em razão da crise do cristianismo, a abjeção


encontrou resonâncias mais arcaicas, culturalmente anteriores ao pecado, para reaver
seu status bíblico e mesmo, mais ainda, aquele da imundície [impureza] das sociedades
primitivas. Em um mundo em que o Outro se encontra caído, o esforço estético –
descida às fundações do edifício simbólico – consiste em retraçar as fronteiras frágeis
do ser falante, ao mais próximo de sua alvorada, dessa “origem” sem fundo que é a
repressão originária. Nessa experiência conduzida doravante pelo Outro, “sujeito” e
“objeto”, repelem-se, afrontam-se, desmoronam-se e recomeçam, inseparáveis,
contaminados, condenados, no limite do assimilável, do pensável: abjetos: A grande
literatura moderna se desdobra sobre tal terreno: Dostoiévski, Lautréamont, Proust,
Artaud, Kafka, Céline...

Dostoiévski

O abjeto é, para Dostoiévski, o “objeto” de Os Demônios: é o alvo e o móvel de


uma existência cujo sentido se perde na degradação absoluta por ter rejeitado
absolutamente o limite (moral, social, religioso, familiar, individual) como absoluto,
17

Deus. A abjeção oscila, então, entre o esvanecimento de todo sentindo e de toda


humanidade, queimados como nas chamas de um incêndio, e o êxtase de um eu [moi]
que, tendo perdido seu Outro e seus objetos, alcança, no momento preciso de seu
suicídio, o auge da harmonia com a terra prometida. São abjetos tanto Vierkhoviénski
como Kiríllov, tanto o assassino como o suicida.
Um grande incêndio de noite sempre produz uma impressão que irrita e
alegra; é nisso que se baseiam os fogos de artifício; mas, nesse caso, os
fogos são distribuídos por configurações graciosas e regulares e, com sua
plena segurança, produzem uma impressão de brejeirice e leveza como
depois de uma taça de champanhe. Outra coisa é um incêndio de verdade: aí
o horror, uma espécie de sentimento de perigo pessoal e ao mesmo tempo
uma impressão hilariante deixada pelo fogo noturno produzem no espectador
(é claro que não no próprio morador vítima do incêndio) certo abalo cerebral
e algo como um convite aos seus próprios instintos destrutivos que, ai!, estão
ocultos em qualquer alma, até na alma do conselheiro titular mais obediente
e familiar... Essa sensação sombria é quase sempre enlevante. “Palavra que
não sei se se pode contemplar um incêndio sem algum prazer!” 13

Existem segundos – apenas uns cinco ou seis simultâneos – em que você


sente de chofre a presença de uma harmonia eterna plenamente atingida. Isso
não é da terra; não estou dizendo que seja do céu, mas que o homem não
consegue suportá-lo em sua forma terrestre. Precisa mudar fisicamente ou
morrer. É um sentimento claro e indiscutível. É como se de súbito você
sentisse toda natureza e dissesse: sim isso é verdade! [...] O mais terrível é
que é extraordinariamente claro e há essa alegria. Se passar de cinco
segundos a alma não suportará e deverá desaparecer. Nesses cinco segundos
eu vivo uma existência e por eles dou toda a minha vida porque vale à pena.
Para suportar dez segundos é preciso mudar fisicamente. Acho que o homem
deve deixar de procriar. Para que filhos, para que desenvolvimento se o
objetivo foi alcançado? No Evangelho está escrito que na ressurreição não
haverá partos, serão como anjos de Deus. Uma alusão. Sua mulher está
dando à luz? 14
13
Recorremos aqui à tradução de Paulo Bezerra em: Dostoiévski, Fiódor. Os Demônios. São Paulo: Ed.
34, pp. 502. Na tradução utilizada por Kristeva: “La vue d'un grand feu dans la nuit produit toujours une
impression à la fois énervante et excitante : c'est ce qui explique l'action des feux d'artifice. Mais ceux-ci
obéissent à un certain plan ornemental, et, de plus, ne présentent aucun danger ; aussi éveillent-ils des
sensations légères, capiteuses, pareilles à celles que provoque une coupe de champagne. Il en est
autrement d'un incendie : ici l'effroi et le sentiment d'un certain danger personnel qui viennent se joindre
à l'excitation joyeuse suscitée par le feu nocturne, produisent chez le spectateur (sauf si lui-même est
atteint par le sinistre, bien entendu) une sorte de commotion nerveuse, réveillent en lui ces instincts de
destruction qui, hélas, dorment en toute âme, même dans l'âme la plus timide du plus rassis des
fonctionnaires. Cette obscure sensation est presque toujours enivrante. Je doute qu'il soit possible de
contempler un incendie sans y goûter un certain plaisir” (Dostoïevski, Les Démons, trad. Boris de
Schloezer, Gallimard, 1955, p. 540).
14
Cf. Dostoiévski, Fiódor. Os Demônios. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Ed. 34, pp. 571-572. Na
tradução utilizada por Kristeva : “Il y a des instants, ils durent cinq ou six secondes, quand vous sentez
soudain la présence de l'harmonie éternelle, vous l'avez atteinte. Ce n'est pas terrestre : je ne veux pas
dire que ce soit une chose céleste, mais que l'homme sous son aspect terrestre est incapable de la
supporter. Il doit se transformer physiquement ou mourir. C'est un sentiment clair, indiscutable, absolu.
Vous saisissez tout à coup la nature entière et vous dites : oui, c'est bien comme ça, c'est vrai [...]. Le
plus terrible, c'est que c'est si épou- vantablement clair. Et une joie si immense avec ça ! Si elle durait
plus de cinq secondes, l'âme ne la supporterait pas et devrait disparaître. En ces cinq secondes, je vis
18

Vierkhoviénski é abjeto, na sua utilização ardilosa e dissimulada de ideais que já


não existem, a partir do momento em que falta o Interdito (chame-se Deus). Stavróguin
é, talvez, um pouco menos, pois seu imoralismo comporta o riso e a recusa, algo
artístico, uma despesa gratuita e cínica que evidentemente capitaliza-se em proveito de
um narcisismo privado, mas que não serve a um poder arbitrário e exterminador. Pode-
se ser cínico sem ser irremediavelmente abjeto; a abjeção, ela, é sempre provocada por
aquilo que tenta se entender com a lei pisoteada.

O caderno dele tem boas coisas escritas – continuou Vierkhoviénski –, tem


espionagem. No esquema dele cada membro da sociedade vigia o outro e é
obrigado a delatar. Cada um pertence a todos, e todos a cada um. Todos são
escravos e iguais na escravidão. Nos casos extremos recorre-se à calúnia e ao
assassinato, mas o principal é a igualdade. A primeira coisa que fazem é
rebaixar o nível da educação, das ciências e dos talentos. O nível elevado das
ciências e das aptidões só é acessível aos talentos superiores, e os talentos
superiores são dispensáveis! Os talentos superiores sempre tomaram o poder
e foram déspotas, e sempre trouxeram mais depravação do que utilidade;
eles serão expulsos ou executados. A um Cícero corta-se a língua, a um
Copérnico furam-se os olhos, um Shakespeare mata-se a pedradas – eis o
chigaliovismo. Os escravos devem ser iguais: sem despotismo ainda não
houve nem liberdade nem igualdade, mas na manada deve haver igualdade, e
eis aí o chigaliovismo! Ah, ah, ah, está achando estranho? Sou a favor do
chigaliovismo! 15

Dostoiévski radiografou a abjeção sexual, moral, religiosa como um colapso das


leis paternas. Afinal, não é o universo de Os Demônios um universo de pais repudiados,

toute une vie et je donnerais pour elles toute ma vie, car elles la valent. Pour supporter cela dix secondes,
il faudrait se transformer physiquement. Je pense que l'homme doit cesser d'engendrer. A quoi bon des
enfants, à quoi bon le développement de l'humanité si le but est atteint ? Il est dit dans l'Évangile
qu'après la résurrection, on n'engendrera plus et que tous seront comme des anges de Dieu. C'est une
allusion. Votre femme accouche?” (Dostoïevski, Les Démons, trad. Boris de Schloezer, Gallimard, 1955,
p. 619).
15
Cf. Dostoiévski, Fiódor. Os Demônios. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Ed. 34, 2004, p. 407.
Na tradução utilizada por Kristeva: “Son projet est remarquable, reprit Verkhovenski. Il établit
l'espionnage. Chez lui, tous les membres de la société s'épient mutuellement et sont tenus de rapporter
tout ce qu'ils apprennent. Chacun appartient à tous, et tous appartiennent à chacun. Tous les hommes
sont esclaves et égaux dans l'esclavage ; dans les cas extrêmes, on a recours à la calomnie et au meurtre
; mais le principal, c'est que tous soient égaux. Avant tout, on abaisse le niveau de l'instruction, des
sciences et des talents. Le niveau élevé n'est accessible qu'aux talents ; donc, pas de talents. Les hommes
de talents s'emparent toujours du pouvoir et deviennent des despotes. Ils ne peuvent faire autrement ; ils
ont toujours fait plus de tort que de bien. Il faudra les bannir et les mettre à mort. Cicéron aura la langue
arrachée, Copernic aura les yeux crevés, Shakespeare sera lapidé. Voilà le chigaliovisme ! Les esclaves
doivent être égaux. Sans despotisme, il n'y a jamais eu encore ni liberté ni égalité. Or, l'égalité doit
régner dans le troupeau. Voilà le chigaliovisme ! Ha ! ha ! ha !... cela vous étonne ? Je suis pour
Chigaliov” (Dostoïevski, Les Démons, trad. Boris de Schloezer, Gallimard, 1955, p. 441).
19

fictícios ou mortos, em que reinam, como fetiches ferozes, mas não menos
fantasmáticos, matronas com vertigens de poder? E é ao simbolizar o abjeto, ao entregar
magistralmente o gozo de enunciá-lo, que Dostoiévski se livrava desse impiedoso peso
maternal.

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