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29/12/2014 Tempo Freudiano

O cross cap de Lacan ou "asfera"1
Bernard Vandermersch ­ 31/01/2008

Para introduzir o cross cap

Este  estranho  objeto  foi  apresentado  por  Lacan  pela  primeira  vez  em  16  de
maio de 1962 em seu seminário A Identificação, como suporte da estrutura da
fantasia.

Mas  sabemos  que  ele  já  estava  pronto  em  1959.  Em  uma  nota  redigida  em
1966, no momento da publicação nos Escritos de seu artigo ‘Questão preliminar
a todo tratamento da psicose’ (1959), Lacan já nos assinala que “este esquema
R evidencia, é um plano projetivo”, isto é, um cross cap.

Esse esquema R mostra que o “campo da realidade só funciona se obturando
com a tela da fantasia”. Em outras palavras, não temos acesso natural ao real,
mas só pela mediação da fantasia.

A visão é sem dúvida o sentido que mais nos dá a ilusão de um acesso direto
ao campo da realidade.

No entanto, é um campo bem achatado o que ela nos propõe. Ela projeta todos
os pontos do espaço, situados numa mesma reta que passa pelo centro óptico
do olho, num mesmo ponto da retina. Nosso espaço em três dimensões reduz­
se assim a um pedaço de superfície esférica, a retina. A visão opera então uma
redução dimensional.

Assim faz o pintor, que aplica as leis da perspectiva, e melhor ainda o aparelho
fotográfico e a câmera.

Mas, enquanto o quadro ou a foto reconhecem seu limite, até mesmo o exaltam
por uma moldura, o olho o apaga. Aliás, virando a cabeça ele vê tudo (exceto o
que há na cabeça!).

Pela visão, o mundo se fechou numa esfera, ou seja,  numa  superfície,  com  a


exceção notável do próprio olhar.

É aqui, com esse esquema projetivo alargado em todos os sentidos, que Freud
estabelece sua representação topológica do eu:

“O  eu,  diz  Freud  em  ‘O  Ego  e  o  Id’,  é,  antes  de  tudo,  um  eu  corporal,  não  é
somente uma superfície, mas é mesmo a projeção de uma superfície”. Em nota,
ele  precisa:  “ou  seja:  o  eu  é  afinal  derivado  de  sensações  corporais,
principalmente  daquelas  que  têm  sua  fonte  na  superfície  do  corpo,  e,  além
disso, [...] ele representa a superfície do aparelho mental”.

Nesta  concepção,  o  aparelho  psíquico  e  o  corpo  são  como  uma  bola  (3


dimensões) onde o eu seria a zona de contato com o mundo exterior (ou seja,
segundo  o  esquema,  um  pedaço  de  esfera:  2  dimensões).  Em  conseqüência,
esta topologia esférica induz a idéia de um eu­superfície separando um mundo
“exterior” e um inconsciente “interior”, opaco, visceral. A psicanálise seria uma
“psicologia das profundezas”.

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Lacan dá um passo essencial

Lacan  demonstra  claramente  que  o  inconsciente  descoberto  por  Freud  é


estruturado como uma linguagem. Daí a noção de um sujeito suposto na origem
das  manifestações  do  inconsciente  (lapsos,  atos  falhos,  sonhos,  sintomas).
Para o sujeito, nem o corpo nem o mundo exterior serão dados imediatamente,
mas  somente  através  da  linguagem.  Aliás,  apenas  os  sintomas  que  vão  se
revelar tendo uma estrutura de linguagem podem ser ditos sintomas do sujeito.

Esse sujeito, Lacan o define como o referente desconhecido de uma função: “o
que  representa  um  significante  para  um  outro  significante”.  Invisível,  mas
apenas  situável,  não  é  no  entanto  um  sujeito  desencarnado:  a  linguagem,  a
ordem simbólica, só produzirá um sujeito se encontrar um corpo vivo para aí se
incorporar.

A  introdução  do  termo  sujeito,  pouco  usual  em  Freud,  é  aqui  exigida  pela
estrutura de linguagem. Quanto ao eu, ele guarda a função de imagem projetada
do corpo, imagem que seduz o sujeito. Mas retomemos nossa realidade, senão
visível, pelo menos pensável, da qual faz parte nosso eu. Podemos dizer: tudo
que se vê (ou pode se ver), para um sujeito, é significante. A imagem esférica
do mundo, para um sujeito, é feita de significantes.

Ora, a propriedade do significante é ser diferente de todos os outros e mesmo
dele  próprio.  Diremos  então,  em  primeira  aproximação,  que  todo  significante
equivale  a  seu  oposto,  ou  que  todo  objeto  significante  é  ao  mesmo  tempo  ele
mesmo e seu contrário: a = ­ a.

Aliás  essa  é  uma  intuição  de  Freud,  que  ele  expõe  em  seu  artigo  sobre  o
sentido  oposto  das  palavras  primitivas,  de  1910  (Über  den  Gegensinn  der
Urworte).

Se  aceitarmos  essa  equivalência  do  significante  a  seu  contrário,  podemos


identificar  cada  ponto  da  esfera  visual  a  seu  oposto.  O  objeto  produzido  por
esta  operação  chama­se  plano  projetivo,  e  sua  imersão  mais  simples  no
espaço de três dimensões é o cross cap.

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Fig. 2

O cross cap é então a forma topológica da fantasia fundamental que condiciona
a realidade, ou seja, o real passado pelo crivo do significante. Mas essa forma
que guarda o sujeito escapa a ele. Sua aptidão para sustentar a realidade tem a
ver com o fato de que ela liga o sujeito ao objeto que causa seu desejo. Esse
laço  é  recalcado  desde  a  origem  na  própria  estrutura  do  cross  cap.  É  o
recalque originário.

Com  efeito,  essa  forma  aparentemente  homogênea  é  de  fato  um  composto
heterogêneo  do  sujeito  e  do  objeto.  Quando  um  significante  faz  corte  nessa
forma,  o  sujeito  é  o  produto  da  operação,  o  objeto,  seu  resto,  a  moldura  não
percebida da realidade do sujeito. Retomaremos isto mais adiante ao estudar a
estrutura do cross cap.

Façamos aqui uma pequena reserva: a conivência do cross cap com o campo
escópico sugere que ele daria apenas uma visão (é o caso de dizê­lo)  parcial
do laço do sujeito com seu objeto. Poderíamos admitir a possibilidade de que a
fantasia  se  forme  a  partir  de  outros  modelos  topológicos.  Aliás  Lacan  sugeriu
(em seu seminário ‘De um Outro ao outro’) que os objetos oral, anal, escópico,
vocal tenham cada um sua própria maneira topológica de sustentar a realidade:
esfera,  toro,  cross  cap  ou  garrafa  de  Klein.  A  coisa  se  complica  se
reconhecemos que, fora da psicose e da perversão, na fantasia do neurótico, o
objeto se apresenta comumente sob duas facetas ao mesmo tempo (escópico­
anal, por exemplo).

Descrição do cross cap

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Lacan chama de cross cap o conjunto do objeto conhecido em topologia sob o
nome  de  esfera  mitrada,  feita  de  um  pedaço  de  esfera  completada  por  uma
mitra (ou cross cap). O cross cap em topologia é apenas uma parte do cross
cap de Lacan. Aqui nos conformaremos, no entanto, ao uso lacaniano.

Fig. 3 Cross cap mitre

Fig. 4

Vemos que o cross cap parece um pouco uma esfera (Lacan o chama também
de a­sfera). Como ela, ele é uma superfície sem borda. A linha Φ­Ω não é uma
borda. É uma linha de intersecção da superfície por ela mesma. De fato, cada
ponto desta linha corresponde a dois pontos diferentes e distantes do cross
cap. Para ir de um destes pontos até aquele que se encontra no mesmo lugar
sobre a linha, é preciso fazer um percurso sobre a superfície (Fig. 5).

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Se prolongarmos esse percurso, penetramos no « interior » do cross cap, para
voltar a sair se ultrapassarmos novamente esta linha.

Conclusão: o cross cap, diferentementeda esfera, não divide o espaço em torno
em um exterior e um interior. Suas duas faces estão em continuidade, de modo
que podemos dizer que só há uma, como na banda de Möbius. (Fig. 6).

Se  com  Lacan  (L’Étourdit)  só  se  conta  os  trajetos  que  se  fecham  (pois  uma
frase só toma seu sentido com a última palavra), vemos que é possível traçar
vários tipos de alças fechadas.

Alças simples de dois tipos:

Em primeiro lugar: pode­se circundar um ponto qualquer da superfície por uma
alça  circular  situada  em  sua  vizinhança.  Se  cortarmos  o  cross  cap  segundo
este  traçado,  obtemos  um  disco  comum  e  um  outro  pedaço  que  guarda  a
propriedade möbiana de só ter uma face. (Fig. 7)

  

Em  segundo  lugar  :  pode­se  traçar  uma  alça  que  parta  de  um  ponto  da
superfície e atravesse uma vez a linha de intersecção Φ­Ω antes de se fechar
no avesso exato do ponto de partida. Um corte segundo este traçado não divide
a  superfície  mas  a  reduz  a  um  disco.  Separando  os  lábios  do  corte  vê­se
desenhar­se na abertura uma banda de Möbius virtual. (Fig. 8)

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Fig. 8

Pode­se  traçar  alças  de  duas  voltas.  Para  isso,  partindo  de  um  ponto  da
superfície, atravessa­se a linha de intersecção e depois, como um planeta em
gravitação em torno de seu astro, gira­se em torno do ponto Φ para atravessar
uma  segunda  vez  a  linha  Φ­Ω  antes  de  reencontrar  o  ponto  de  partida,  desta
vez do lado direito. Um corte segundo este traçado divide a superfície em um
disco  contornado  que  se  atravessa  a  si  mesmo  e  uma  banda  de  Möbius,  ela
também  bastante  deformada  por  sua  auto­travessia.  Pode­se  verificar  no
entanto  sua  respectiva  natureza  colorindo  cada  um  destes  objetos  até
encontrar  uma  borda.  Fazendo  isso,  no  final  da  operação  teremos  colorido
apenas uma face do disco, mas a totalidade da banda de Möbius.

A banda de Möbius é o sujeito, na medida em que esse corte o revela. O disco
centrado pelo ponto Φ é o que resta, o não möbiano escondido no cross cap, o
objeto a. O conjunto dá a fórmula da fantasia: S◊a. (Fig. 9)

Fig. 9

Consideremos agora a banda de Möbius: trata­se de uma superfície limitada por
uma única borda fechada, portanto circular. Pode­se colar nesta borda a borda
de um disco. A superfície fechada assim obtida é um cross cap.

Mas  um  disco  é  uma  superfície  retrátil.  É  possível,  por  uma  transformação
topológica (ou seja, sem furá­lo ou esgarçá­lo) reduzi­lo a um ponto. Do mesmo
modo um cross cap é uma banda de Möbius cuja borda foi retraída até poder
fecha­la por um ponto comum “não möbiano”. (Fig. 10)

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Fig. 10

Um cross cap é então uma superfície heterogênea, é a união de um disco e de
uma  banda  de  Möbius.  O  disco  é  uma  superfície  orientável,  ou  seja,  na  qual
direita  e  esquerda  se  distinguem.  A  banda  de  Möbius  é  não  orientável,  pois
basta fazer deslizar o desenho de uma mão esquerda ao longo da banda para
transformá­lo, ao final de um giro, no desenho de uma mão direita.

Disco  e  banda  de  Möbius  são  então  dois  tipos  de  espaço  muito  diferentes  e
uma  heterogeneidade  fundamental  se  esconde  portanto  no  cerne  da
homogeneidade  aparente  do  cross  cap,  ou  seja,  da  realidade  “esférica”
construída na fantasia. “É a topologia esférica desse objeto dito a que se projeta
sobre a outra do composto heterogêneo que o cross cap constitui.” (L’Étourdit).

Observação : se tivéssemos colado na borda da banda de Möbius a borda de
uma  outra  banda  de  Möbius,  no  lugar  da  de  um  disco,  teríamos  obtido  uma
garrafa  de  Klein.  (Fig.  11).  Esta  última  –  que,  por  outro  lado,  tem  muitas
propriedades  comuns  com  o  cross  cap  –  não  possui  portanto  essa  mesma
heterogeneidade.

Fig. 11

Significação clínica das propriedades do cross cap

1.  Na ausência de borda, todo circuito pode se fechar. “Em nossas asferas,

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o  corte,  o  corte  fechado,  é  o  dito.  Ele  faz  sujeito:  o  que  quer  que  ele
circunscreva...  (L’Étourdit).  Com  efeito,  uma  frase  só  toma  seu  sentido
com o enunciado de seu último termo. O “sujeito” desta frase é então um
efeito retroativo de seu fechamento.

2.  É possível passar de uma face à outra sem ultrapassar nenhuma borda,
o que dá conta da possibilidade do recalque e do retorno do recalcado.

3.  é  possível  traçar  alças  duplas,  ou  seja,  significantes.  A  alça  dupla
simboliza  com  efeito  a  diferença  do  significante  consigo  mesmo.  Ela
produz sujeito.

4.  Sua  construção  implica,  como  vimos,  a  equivalência  dos  contrários  e


responde portanto à lei do significante a = não a.

Mas ao menos Um ponto escapa a esta lei e vai dar à fantasia sua “gravidade”.
Esse  ponto  de  exceção,  o  falo,  constitui  o  ponto  que  dá  sentido  a  todos  os
outros, mas onde o próprio sentido se anula, salvaguardando a possibilidade do
não sentido.

Nota: Na figura do cross cap, o lugar do falo pode ser discutido (Boletim da ALI
n°113,  114).  Lacan  o  situa  no  nível  do  ponto  Φ,  singularidade  no  centro  da
figura.  (Singularidade  quer  dizer  lugar  de  ruptura  da  continuidade  de  uma
função).  Esse  ponto  singular  não  pode,  no  entanto,  ser  considerado  como
concentrando  em  si  mesmo  a  propriedade  möbiana  do  cross  cap.  O  disco
destacado  pelo  corte  em  alça  dupla  (Fig.  9)  não  possui  essa  propriedade
möbiana embora possua o  ponto  Φ.  Esse  ponto  não  é  então  o  ao  menos  Um
ponto möbiano. Charles Melman pôde dizer que é a linha Φ­Ω que representa o
falo. É mais exato, pois ela, com suas duas extremidades, concentra com efeito
a propriedade möbiana. Se a retiramos, resta apenas um disco.

Enfim, é possível demonstrar (cf. M.Darmon no Boletim da ALI n° 114) que toda
imersão  do  plano  projetivo  (há  outras  além  do  cross  cap)  não  induz
forçosamente  uma  singularidade  forte  como  o  ponto  Φ  pois  ela  não  pode  se
fazer  sem  linha  de  interpenetração.  Então,  é  esta  linha  principalmente  que
resulta da presença escondida do falo no cross cap.

A  heterogeneidade  da  estrutura  do  cross  cap  mostra  que  o  imaginário  da


fantasia  (S◊a)  é  fundado  numa  alteridade  radical  (mas  também  numa
reversibilidade)  entre  o  sujeito  e  o  objeto,  diferentemente  do  imaginário  do
espelho,  fundado  numa  simetria  entre  o  eu  e  sua  imagem,  simetria  que  induz
entre eles uma rivalidade sem dialética.

O plano projetivo é a única das quatro variedades simples de superfície (esfera,
toro,  cross  cap,  garrafa  de  Klein)  que  possui  a  um  só  tempo  todas  essas
propriedades que aliás não são independentes.

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Por que dar uma representação visual do plano projetivo ?

Lacan  não  se  interessa  apenas  pelas  propriedades  intrínsecas  dos  objetos
topológicos. Ele leva em consideração propriedades que só aparecem quando
esses  objetos  são  imersos  em  nosso  espaço  em  três  dimensões,  “em
presentificação”. Ele trabalha com “figuras (embora esses objetos possam ser
descritos unicamente por escritas matemáticas). Seria uma concessão ao que
ele chamou de “nossa debilidade mental”, nossa alienação imaginária?

Talvez, mas trata­se sobretudo de levar em conta uma outra de suas hipóteses
fundamentais, a saber, que três dimensões são necessárias para dar conta do
sujeito:  real,  simbólico  e  imaginário.  Essas  três  dimensões  do  sujeito  podem
definir um espaço, semelhante, numa primeira abordagem, ao espaço que aloja
nosso corpo.

No  entanto,  o  plano  projetivo  é  um  objeto  que  não  pode  ser  mergulhado  em
nosso  espaço  R3.  É  bastante  surpreendente  que  um  espaço  em  três
dimensões não possa alojar uma superfície que só tem duas. E no entanto tudo
se  passa  como  se  essa  superfície  fosse  pesada  demais  para  se  alojar  no
espaço de nosso corpo.

Em topologia, a noção de imersão “resolve” a impossibilidade do mergulho. Ela
o  faz  ao  preço  de  aceitar  que  um  único  ponto  do  espaço  R3  corresponda  a
vários pontos diferentes e não vizinhos do objeto imerso.

Hipótese: Para o sujeito, essa super­ocupação do corpo pela linguagem traduz­
se  pelo  que  se  chama  de  afetos.  A  angústia  de  “castração”  seria  assim  a
tradução  de  um  excesso  do  corpo­linguagem  no  corpo  vivo,  evocando  essa
operação  dita  castração  (operação  simbólica).  Descompletando  o  corpo­
linguagem de seu objeto ela o torna apto a habitar o corpo vivo. Na ausência de
tal  operação  simbólica  (na  psicose  especialmente),  a  tendência  a  abrir
realmente o corpo ou a retirar uma parte dele para aliviá­lo não é rara.

Alguns cortes atípicos

Vimos  que  o  corte  em  alça  dupla  em  torno  do  ponto  Φ  dá  a  estrutura  da
fantasia, separando o sujeito (banda de Möbius) do objeto a (disco). Ele revela
assim a heterogeneidade que apóia o sujeito, não numa imagem de si mas em
algo irredutivelmente diferente que sustenta sua divisão.

Existe  um  tipo  de  corte  que  só  passa  uma  vez  pela  linha  de  interpenetração.
Esse corte “simples” abre o cross cap e o reduz inteiramente a um disco. Esse
corte  pode  ser  considerado  como  o  caso  limite  de  um  corte  duplo  cujos  dois
giros se aproximaram de tal modo que chegaram a se confundir. Nesse caso há
perda da auto­diferença do significante. (ver Fig. 8)

Hipótese  :  Essa  disposição  evoca  uma  tentativa  para  um  sujeito  de  se  fazer
representar por um significante sem perda de gozo (sem perda do disco). Um
tal  significante,  cujo  caráter  decisivo  o  sujeito  recusaria,  perde  sua  auto­
diferença  e  portanto  sua  natureza  de  significante.  Ele  se  impõe  sem  fazer
sentido  para  o  sujeito.  É  possível  reconhecer  aí  a  origem  do  efeito
psicossomático.  Esse  efeito  se  explicaria  pelo  caráter  de  sinal  que  um
significante  tornado  unívoco  assumiria  assim  para  o  corpo  vivo.  Esse  sinal
poderia anexar a si uma função biológica e desviá­la de seu funcionamento, no
modelo do condicionamento pavloviano. (cf. "Inscrit, montré, non articulé" em Le
trimestre psychanalytique, 1988, n° 5).

Um outro tipo de corte a considerar é aquele que não “concluiria” no segundo
giro. Percebe­se então que o cross cap não permite que esse corte possa se
fechar  mais  além.  Diferentemente  do  toro,  o  cross  cap  impõe  uma  coerção
muito  estrita  quanto  ao  número  inteiro  de  giros.  Se  a  alça  dupla  é  mesmo  a
estrutura do ato, na medida em que o ato é significante, a falta de realização do

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ato  leva  a  uma  repetição  infinita  dos  giros  em  torno  do  falo.  Esse  trajeto
descreve uma espiral em que uma de suas extremidades se enrola em torno do
falo, envolvendo­o cada vez mais, sem jamais atingi­lo. Inversamente,  a  outra
extremidade se afasta cada vez mais do ponto Φ tendendo a se aproximar de si
mesma. No limite, todo o cross cap é reduzido a uma lamínula biface.

Hipótese: Reconhecemos aqui o mecanismo próprio à neurose obsessiva. Por
mais longe que o corte vá, ele nunca vai separar o cross cap em duas partes, o
objeto permanece ligado. Daí resulta uma hipocondria específica e a sensação
de invasão por pensamentos sujos ou obscenos. Poderemos aproximar  disso
as  verificações  vãs  de  toda  ação  que  visa  a  fechar  ou  a  fazer  alça.
Conhecemos também a incidência dos números não inteiros nessa neurose, a
falta de fechamento do ato original perturbando o cômputo por inteiros. A falta de
separação  do  objeto  a  tem  por  efeito  que  o  real,  como  impossível,  nunca  é
atualizado, mas apenas sempre procrastinado (adiado para o dia seguinte) num
giro  suplementar  ilusório.  (cf.  "Topologie  de  la  névrose  obsessionnelle"  em  Le
trimestre psychanalytique, 1992, n° 2)

Consultar também : 

os  Seminários  de  Lacan,  em  especial  A  identificação,  A  angústia,  A  lógica  da


fantasia.
os Essais de topologie lacanienne de Marc Darmon (edições da ALI).

1 NT ­ Para ler o texto original, em francês:
http://www.freud­lacan.com/articles/article.php?url_article=bvandermersch310108
Tradução: Sergio Rezende

    
    
 
 

http://www.tempofreudiano.com.br/site/artigos/detalhe.asp?cod=74 10/10

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