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O cross cap de Lacan ou "asfera"1
Bernard Vandermersch 31/01/2008
Para introduzir o cross cap
Este estranho objeto foi apresentado por Lacan pela primeira vez em 16 de
maio de 1962 em seu seminário A Identificação, como suporte da estrutura da
fantasia.
Mas sabemos que ele já estava pronto em 1959. Em uma nota redigida em
1966, no momento da publicação nos Escritos de seu artigo ‘Questão preliminar
a todo tratamento da psicose’ (1959), Lacan já nos assinala que “este esquema
R evidencia, é um plano projetivo”, isto é, um cross cap.
Esse esquema R mostra que o “campo da realidade só funciona se obturando
com a tela da fantasia”. Em outras palavras, não temos acesso natural ao real,
mas só pela mediação da fantasia.
A visão é sem dúvida o sentido que mais nos dá a ilusão de um acesso direto
ao campo da realidade.
No entanto, é um campo bem achatado o que ela nos propõe. Ela projeta todos
os pontos do espaço, situados numa mesma reta que passa pelo centro óptico
do olho, num mesmo ponto da retina. Nosso espaço em três dimensões reduz
se assim a um pedaço de superfície esférica, a retina. A visão opera então uma
redução dimensional.
Assim faz o pintor, que aplica as leis da perspectiva, e melhor ainda o aparelho
fotográfico e a câmera.
Mas, enquanto o quadro ou a foto reconhecem seu limite, até mesmo o exaltam
por uma moldura, o olho o apaga. Aliás, virando a cabeça ele vê tudo (exceto o
que há na cabeça!).
É aqui, com esse esquema projetivo alargado em todos os sentidos, que Freud
estabelece sua representação topológica do eu:
“O eu, diz Freud em ‘O Ego e o Id’, é, antes de tudo, um eu corporal, não é
somente uma superfície, mas é mesmo a projeção de uma superfície”. Em nota,
ele precisa: “ou seja: o eu é afinal derivado de sensações corporais,
principalmente daquelas que têm sua fonte na superfície do corpo, e, além
disso, [...] ele representa a superfície do aparelho mental”.
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29/12/2014 Tempo Freudiano
Lacan dá um passo essencial
Esse sujeito, Lacan o define como o referente desconhecido de uma função: “o
que representa um significante para um outro significante”. Invisível, mas
apenas situável, não é no entanto um sujeito desencarnado: a linguagem, a
ordem simbólica, só produzirá um sujeito se encontrar um corpo vivo para aí se
incorporar.
A introdução do termo sujeito, pouco usual em Freud, é aqui exigida pela
estrutura de linguagem. Quanto ao eu, ele guarda a função de imagem projetada
do corpo, imagem que seduz o sujeito. Mas retomemos nossa realidade, senão
visível, pelo menos pensável, da qual faz parte nosso eu. Podemos dizer: tudo
que se vê (ou pode se ver), para um sujeito, é significante. A imagem esférica
do mundo, para um sujeito, é feita de significantes.
Ora, a propriedade do significante é ser diferente de todos os outros e mesmo
dele próprio. Diremos então, em primeira aproximação, que todo significante
equivale a seu oposto, ou que todo objeto significante é ao mesmo tempo ele
mesmo e seu contrário: a = a.
Aliás essa é uma intuição de Freud, que ele expõe em seu artigo sobre o
sentido oposto das palavras primitivas, de 1910 (Über den Gegensinn der
Urworte).
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Fig. 2
O cross cap é então a forma topológica da fantasia fundamental que condiciona
a realidade, ou seja, o real passado pelo crivo do significante. Mas essa forma
que guarda o sujeito escapa a ele. Sua aptidão para sustentar a realidade tem a
ver com o fato de que ela liga o sujeito ao objeto que causa seu desejo. Esse
laço é recalcado desde a origem na própria estrutura do cross cap. É o
recalque originário.
Com efeito, essa forma aparentemente homogênea é de fato um composto
heterogêneo do sujeito e do objeto. Quando um significante faz corte nessa
forma, o sujeito é o produto da operação, o objeto, seu resto, a moldura não
percebida da realidade do sujeito. Retomaremos isto mais adiante ao estudar a
estrutura do cross cap.
Façamos aqui uma pequena reserva: a conivência do cross cap com o campo
escópico sugere que ele daria apenas uma visão (é o caso de dizêlo) parcial
do laço do sujeito com seu objeto. Poderíamos admitir a possibilidade de que a
fantasia se forme a partir de outros modelos topológicos. Aliás Lacan sugeriu
(em seu seminário ‘De um Outro ao outro’) que os objetos oral, anal, escópico,
vocal tenham cada um sua própria maneira topológica de sustentar a realidade:
esfera, toro, cross cap ou garrafa de Klein. A coisa se complica se
reconhecemos que, fora da psicose e da perversão, na fantasia do neurótico, o
objeto se apresenta comumente sob duas facetas ao mesmo tempo (escópico
anal, por exemplo).
Descrição do cross cap
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Lacan chama de cross cap o conjunto do objeto conhecido em topologia sob o
nome de esfera mitrada, feita de um pedaço de esfera completada por uma
mitra (ou cross cap). O cross cap em topologia é apenas uma parte do cross
cap de Lacan. Aqui nos conformaremos, no entanto, ao uso lacaniano.
Fig. 3 Cross cap mitre
Fig. 4
Vemos que o cross cap parece um pouco uma esfera (Lacan o chama também
de asfera). Como ela, ele é uma superfície sem borda. A linha ΦΩ não é uma
borda. É uma linha de intersecção da superfície por ela mesma. De fato, cada
ponto desta linha corresponde a dois pontos diferentes e distantes do cross
cap. Para ir de um destes pontos até aquele que se encontra no mesmo lugar
sobre a linha, é preciso fazer um percurso sobre a superfície (Fig. 5).
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Se prolongarmos esse percurso, penetramos no « interior » do cross cap, para
voltar a sair se ultrapassarmos novamente esta linha.
Conclusão: o cross cap, diferentementeda esfera, não divide o espaço em torno
em um exterior e um interior. Suas duas faces estão em continuidade, de modo
que podemos dizer que só há uma, como na banda de Möbius. (Fig. 6).
Se com Lacan (L’Étourdit) só se conta os trajetos que se fecham (pois uma
frase só toma seu sentido com a última palavra), vemos que é possível traçar
vários tipos de alças fechadas.
Alças simples de dois tipos:
Em primeiro lugar: podese circundar um ponto qualquer da superfície por uma
alça circular situada em sua vizinhança. Se cortarmos o cross cap segundo
este traçado, obtemos um disco comum e um outro pedaço que guarda a
propriedade möbiana de só ter uma face. (Fig. 7)
Em segundo lugar : podese traçar uma alça que parta de um ponto da
superfície e atravesse uma vez a linha de intersecção ΦΩ antes de se fechar
no avesso exato do ponto de partida. Um corte segundo este traçado não divide
a superfície mas a reduz a um disco. Separando os lábios do corte vêse
desenharse na abertura uma banda de Möbius virtual. (Fig. 8)
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Fig. 8
Podese traçar alças de duas voltas. Para isso, partindo de um ponto da
superfície, atravessase a linha de intersecção e depois, como um planeta em
gravitação em torno de seu astro, girase em torno do ponto Φ para atravessar
uma segunda vez a linha ΦΩ antes de reencontrar o ponto de partida, desta
vez do lado direito. Um corte segundo este traçado divide a superfície em um
disco contornado que se atravessa a si mesmo e uma banda de Möbius, ela
também bastante deformada por sua autotravessia. Podese verificar no
entanto sua respectiva natureza colorindo cada um destes objetos até
encontrar uma borda. Fazendo isso, no final da operação teremos colorido
apenas uma face do disco, mas a totalidade da banda de Möbius.
A banda de Möbius é o sujeito, na medida em que esse corte o revela. O disco
centrado pelo ponto Φ é o que resta, o não möbiano escondido no cross cap, o
objeto a. O conjunto dá a fórmula da fantasia: S◊a. (Fig. 9)
Fig. 9
Consideremos agora a banda de Möbius: tratase de uma superfície limitada por
uma única borda fechada, portanto circular. Podese colar nesta borda a borda
de um disco. A superfície fechada assim obtida é um cross cap.
Mas um disco é uma superfície retrátil. É possível, por uma transformação
topológica (ou seja, sem furálo ou esgarçálo) reduzilo a um ponto. Do mesmo
modo um cross cap é uma banda de Möbius cuja borda foi retraída até poder
fechala por um ponto comum “não möbiano”. (Fig. 10)
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Fig. 10
Um cross cap é então uma superfície heterogênea, é a união de um disco e de
uma banda de Möbius. O disco é uma superfície orientável, ou seja, na qual
direita e esquerda se distinguem. A banda de Möbius é não orientável, pois
basta fazer deslizar o desenho de uma mão esquerda ao longo da banda para
transformálo, ao final de um giro, no desenho de uma mão direita.
Disco e banda de Möbius são então dois tipos de espaço muito diferentes e
uma heterogeneidade fundamental se esconde portanto no cerne da
homogeneidade aparente do cross cap, ou seja, da realidade “esférica”
construída na fantasia. “É a topologia esférica desse objeto dito a que se projeta
sobre a outra do composto heterogêneo que o cross cap constitui.” (L’Étourdit).
Observação : se tivéssemos colado na borda da banda de Möbius a borda de
uma outra banda de Möbius, no lugar da de um disco, teríamos obtido uma
garrafa de Klein. (Fig. 11). Esta última – que, por outro lado, tem muitas
propriedades comuns com o cross cap – não possui portanto essa mesma
heterogeneidade.
Fig. 11
Significação clínica das propriedades do cross cap
1. Na ausência de borda, todo circuito pode se fechar. “Em nossas asferas,
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o corte, o corte fechado, é o dito. Ele faz sujeito: o que quer que ele
circunscreva... (L’Étourdit). Com efeito, uma frase só toma seu sentido
com o enunciado de seu último termo. O “sujeito” desta frase é então um
efeito retroativo de seu fechamento.
2. É possível passar de uma face à outra sem ultrapassar nenhuma borda,
o que dá conta da possibilidade do recalque e do retorno do recalcado.
3. é possível traçar alças duplas, ou seja, significantes. A alça dupla
simboliza com efeito a diferença do significante consigo mesmo. Ela
produz sujeito.
Mas ao menos Um ponto escapa a esta lei e vai dar à fantasia sua “gravidade”.
Esse ponto de exceção, o falo, constitui o ponto que dá sentido a todos os
outros, mas onde o próprio sentido se anula, salvaguardando a possibilidade do
não sentido.
Nota: Na figura do cross cap, o lugar do falo pode ser discutido (Boletim da ALI
n°113, 114). Lacan o situa no nível do ponto Φ, singularidade no centro da
figura. (Singularidade quer dizer lugar de ruptura da continuidade de uma
função). Esse ponto singular não pode, no entanto, ser considerado como
concentrando em si mesmo a propriedade möbiana do cross cap. O disco
destacado pelo corte em alça dupla (Fig. 9) não possui essa propriedade
möbiana embora possua o ponto Φ. Esse ponto não é então o ao menos Um
ponto möbiano. Charles Melman pôde dizer que é a linha ΦΩ que representa o
falo. É mais exato, pois ela, com suas duas extremidades, concentra com efeito
a propriedade möbiana. Se a retiramos, resta apenas um disco.
Enfim, é possível demonstrar (cf. M.Darmon no Boletim da ALI n° 114) que toda
imersão do plano projetivo (há outras além do cross cap) não induz
forçosamente uma singularidade forte como o ponto Φ pois ela não pode se
fazer sem linha de interpenetração. Então, é esta linha principalmente que
resulta da presença escondida do falo no cross cap.
O plano projetivo é a única das quatro variedades simples de superfície (esfera,
toro, cross cap, garrafa de Klein) que possui a um só tempo todas essas
propriedades que aliás não são independentes.
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Por que dar uma representação visual do plano projetivo ?
Lacan não se interessa apenas pelas propriedades intrínsecas dos objetos
topológicos. Ele leva em consideração propriedades que só aparecem quando
esses objetos são imersos em nosso espaço em três dimensões, “em
presentificação”. Ele trabalha com “figuras (embora esses objetos possam ser
descritos unicamente por escritas matemáticas). Seria uma concessão ao que
ele chamou de “nossa debilidade mental”, nossa alienação imaginária?
Talvez, mas tratase sobretudo de levar em conta uma outra de suas hipóteses
fundamentais, a saber, que três dimensões são necessárias para dar conta do
sujeito: real, simbólico e imaginário. Essas três dimensões do sujeito podem
definir um espaço, semelhante, numa primeira abordagem, ao espaço que aloja
nosso corpo.
No entanto, o plano projetivo é um objeto que não pode ser mergulhado em
nosso espaço R3. É bastante surpreendente que um espaço em três
dimensões não possa alojar uma superfície que só tem duas. E no entanto tudo
se passa como se essa superfície fosse pesada demais para se alojar no
espaço de nosso corpo.
Em topologia, a noção de imersão “resolve” a impossibilidade do mergulho. Ela
o faz ao preço de aceitar que um único ponto do espaço R3 corresponda a
vários pontos diferentes e não vizinhos do objeto imerso.
Hipótese: Para o sujeito, essa superocupação do corpo pela linguagem traduz
se pelo que se chama de afetos. A angústia de “castração” seria assim a
tradução de um excesso do corpolinguagem no corpo vivo, evocando essa
operação dita castração (operação simbólica). Descompletando o corpo
linguagem de seu objeto ela o torna apto a habitar o corpo vivo. Na ausência de
tal operação simbólica (na psicose especialmente), a tendência a abrir
realmente o corpo ou a retirar uma parte dele para aliviálo não é rara.
Alguns cortes atípicos
Vimos que o corte em alça dupla em torno do ponto Φ dá a estrutura da
fantasia, separando o sujeito (banda de Möbius) do objeto a (disco). Ele revela
assim a heterogeneidade que apóia o sujeito, não numa imagem de si mas em
algo irredutivelmente diferente que sustenta sua divisão.
Existe um tipo de corte que só passa uma vez pela linha de interpenetração.
Esse corte “simples” abre o cross cap e o reduz inteiramente a um disco. Esse
corte pode ser considerado como o caso limite de um corte duplo cujos dois
giros se aproximaram de tal modo que chegaram a se confundir. Nesse caso há
perda da autodiferença do significante. (ver Fig. 8)
Hipótese : Essa disposição evoca uma tentativa para um sujeito de se fazer
representar por um significante sem perda de gozo (sem perda do disco). Um
tal significante, cujo caráter decisivo o sujeito recusaria, perde sua auto
diferença e portanto sua natureza de significante. Ele se impõe sem fazer
sentido para o sujeito. É possível reconhecer aí a origem do efeito
psicossomático. Esse efeito se explicaria pelo caráter de sinal que um
significante tornado unívoco assumiria assim para o corpo vivo. Esse sinal
poderia anexar a si uma função biológica e desviála de seu funcionamento, no
modelo do condicionamento pavloviano. (cf. "Inscrit, montré, non articulé" em Le
trimestre psychanalytique, 1988, n° 5).
Um outro tipo de corte a considerar é aquele que não “concluiria” no segundo
giro. Percebese então que o cross cap não permite que esse corte possa se
fechar mais além. Diferentemente do toro, o cross cap impõe uma coerção
muito estrita quanto ao número inteiro de giros. Se a alça dupla é mesmo a
estrutura do ato, na medida em que o ato é significante, a falta de realização do
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ato leva a uma repetição infinita dos giros em torno do falo. Esse trajeto
descreve uma espiral em que uma de suas extremidades se enrola em torno do
falo, envolvendoo cada vez mais, sem jamais atingilo. Inversamente, a outra
extremidade se afasta cada vez mais do ponto Φ tendendo a se aproximar de si
mesma. No limite, todo o cross cap é reduzido a uma lamínula biface.
Hipótese: Reconhecemos aqui o mecanismo próprio à neurose obsessiva. Por
mais longe que o corte vá, ele nunca vai separar o cross cap em duas partes, o
objeto permanece ligado. Daí resulta uma hipocondria específica e a sensação
de invasão por pensamentos sujos ou obscenos. Poderemos aproximar disso
as verificações vãs de toda ação que visa a fechar ou a fazer alça.
Conhecemos também a incidência dos números não inteiros nessa neurose, a
falta de fechamento do ato original perturbando o cômputo por inteiros. A falta de
separação do objeto a tem por efeito que o real, como impossível, nunca é
atualizado, mas apenas sempre procrastinado (adiado para o dia seguinte) num
giro suplementar ilusório. (cf. "Topologie de la névrose obsessionnelle" em Le
trimestre psychanalytique, 1992, n° 2)
Consultar também :
1 NT Para ler o texto original, em francês:
http://www.freudlacan.com/articles/article.php?url_article=bvandermersch310108
Tradução: Sergio Rezende
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