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RESENHA TEMÁTICA
PSICODINÂMICA DE DEJOURS1
Tânia Franco
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A CENTRALIDADE DO TRABALHO NA VISÃO DA PSICODINÂMICA DE DEJOURS
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social europeu no século XIX vão resultar numa Assim, o autor identifica o terceiro período
crescente redefinição do papel do Estado na soci- a partir de 1968, no contexto do esgotamento do
edade. padrão taylorista-fordista como padrão de acumu-
O segundo período (I Guerra a 1968), carac- lação e como forma eficaz de controle social. Ao
teriza-se por um movimento operário com bases longo desses três períodos o autor observa que
sólidas e força política, com crescente diversifica- ocorreu uma ampliação da problemática saúde e
ção das reivindicações e uma pauta específica de trabalho com o foco sendo crescentemente dirigi-
proteção à saúde dadas as próprias característi- do para a saúde mental do trabalhador. Até então a
cas da Segunda revolução industrial, que não cabe dimensão psíquica do trabalhador havia sido abor-
aprofundar no momento com a preocupação dada sob a perspectiva dos métodos de seleção
precípua e restrita de proteger o corpo (dos aci- psicológica voltada para o funcionamento das or-
dentes de trabalho, das substâncias contaminantes, ganizações empresariais.
das doenças profissionais, além do acesso a trata- As tentativas de reestruturação de tarefas a
mento e assistência). Durante a II Guerra partir dos sinais de crise do taylorismo-fordismo
institucionaliza-se a medicina do trabalho, a Pre- propiciaram o debate em torno de questões como
vidência Social e Comitês de Higiene Industrial, os objetivos do trabalho, a relação homem-tarefa,
correspondendo à última série de medidas sociais as crescentes cargas intelectuais e psicossensoriais
no campo da saúde do trabalho na França. do trabalho em diversos ramos e setores, e o de-
Em suma, o período de 1914 a 1968 é mar- créscimo das cargas físicas. Novas condições de
cado pelo tema das condições de trabalho e pela trabalho fazem emergir e se descobrir sofrimentos
passagem das lutas pela sobrevivência para as lu- insuspeitos até então. O tema da relação saúde
tas pela saúde do corpo. As condições de trabalho mental-trabalho desemboca na problematização da
abrangem para Dejours (1987, p. 25): organização do trabalho, tanto nos movimentos
operários (primeiramente) quanto no campo cien-
(...) ambiente físico (temperatura, pressão, baru- tífico.
lho, vibração, irradiação, altitude etc), ambiente
químico (produtos manipulados, vapores, gases
tóxicos, poeiras, fumaças), ambiente biológico Testes, pesquisas, questionários abertos ou fecha-
(...), condições de higiene, de segurança, e carac- dos, estatísticas, números e quantificações de-
terísticas antropométricas do posto de trabalho. vem ser abandonados por não serem capazes de
dar conta do processo. A partir de então se con-
frontam sem intermediário a vontade e o desejo
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abordagem de questões muito complexas, marcadas sofrimento suplementar das mulheres mas, tam-
pelo determinismo tecnológico, para as quais as bém, as possibilidades (a serem pesquisadas) de
soluções correspondem às mudanças técnicas deslocamento da problemática psicopatológica, e
importantes, sem dúvida, como a hermetização de a derivação da violência das relações de trabalho
processos contaminantes e/ou soluções contra as mulheres ou seja, o uso das relações
individualizantes que passam pela educação do tra- domésticas e familiares de dominação (violência
balhador para aderir aos equipamentos de prote- contra crianças e adolescentes, por exemplo) como
ção individual EPI, como via única de preven- procedimento defensivo contra o sofrimento de-
ção e supostamente eficaz, transferindo para o in- corrente da divisão do trabalho, propiciando parte
divíduo a responsabilidade por uma situação co- da recuperação psíquica dos homens, conforme
letiva e de gestão. Noutras palavras, tais aborda- Dejours (1989).2
gens têm mascarado esta realidade e alimentado
2
Kergoat e Hirata têm mantido um profícuo debate e le-
soluções individualizantes que deixam intocadas vantado a necessidade da psicodinâmica do trabalho in-
as condições do processo de trabalho e de sua orga- corporar a dimensão da divisão sexual do trabalho na
análise do sofrimento de homens e mulheres e seus res-
nização dimensões coletivas, sociais e políticas. pectivos mecanismos de defesa coletiva e individuais.
Ver Hirata (2002a), (2002b), Dejours (2002).
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durante muitos anos, as preocupações sociais e das defesas contra a doença e o sofrimento acen-
políticas, cujo mal-estar dos operários
especializados tornou-se o leitmotiv tanto na li- tua-se o diálogo da psicopatologia com a sociolo-
teratura patronal quanto na imprensa e meios de gia do trabalho. A psicopatologia aproxima-se da
comunicação. (por isso ...) primeiras investiga-
ções orientadas para O.S. (...) à pesquisa de uma teoria sociológica pela questão da ação social, do
patologia mental resultante do trabalho
repetitivo, sob pressão de tempo, às manobras na sujeito-agente social e sua prática no mundo da
construção civil e os servidores públicos france- vida e do trabalho. No nosso entender, há uma
ses e imigrantes. (...) Nesta época, nossas
tematizações ainda eram sobre a relação traba- convergência com o conceito de habitus de
lho-saúde mental, segundo um modelo causalista Bourdieu, trazendo elementos da dimensão indi-
emprestado da patologia somática de origem pro-
fissional, sem abandonar a esperança de encon- vidual pulsões, sofrimento, defesas e estratégias
trar evidências de doenças mentais específicas de sobrevivência que permitem enriquecer a com-
do trabalho. Dejours e Abdoucheli (1994, p.121-
122, grifo nosso). preensão sobre o espaço social do trabalho e a cons-
trução do habitus nesta específica esfera de soci-
Contudo, os resultados de pesquisa indica- alização dos agentes.4
vam que os problemas psíquicos conduziam mais Como vimos, as pesquisas em psicopatologia
a uma fragilização que favorecia a eclosão de do- permitiram constatar que o sofrimento no trabalho
enças do corpo ou aos não se fazem acompanhar necessariamente por uma
descompensação psicopatológica (ou seja, uma
comportamentos que, embora insólitos, não po- ruptura do equilíbrio psíquico que se manifesta
diam ser considerados como patológicos (poste-
riormente ligados às estratégias defensivas des- pela eclosão de uma doença mental). De acordo
tinadas precisamente a lutar contra o medo e
suas conseqüências mórbidas) e lógicas que con- com Dejours, este fato se deve à construção de
duziam ao consumo excessivo de bebidas alcoó- defesas pelo sujeito que lhe permitem controlar o
licas, mas não a doenças mentais caracterizadas
(...) Dejours e Abdoucheli (1994, p. 121). sofrimento. Assim, foi possível detectar pelos es-
tudos clínicos, além dos mecanismos de defesa
Assim as investigações foram sendo clássicos desvendados pela psicanálise, as defe-
redirecionadas no sentido de focalizar sas construídas e empregadas coletivamente pelos
trabalhadores.
(...) comportamentos estranhos, insólitos ou pa-
radoxais visando destacar uma semiologia (ou Consistem nas estratégias coletivas de defe-
seja, um conjunto de signos característicos) com sa que trazem a marca das pressões do trabalho.
um valor descritivo generalizável ao conjunto de
uma categoria ocupacional (...) patognomônica Tais estratégias coletivas de defesa foram descritas
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de uma situação de trabalho supostamente ho- para os operários da construção civil, para os ope-
mogênea. (...) Por derivação, esboçou-se, pouco a
pouco, outro modelo teórico que tentava dar con- radores de processo nas indústrias químicas, dos
ta dos dados empíricos, buscando (...) tematizar
o sofrimento no trabalho e as defesas contra a trabalhadores de manutenção em usinas nuclea-
doença. Um modelo no qual os trabalhadores res, dos soldados do Exército, dos marinheiros,
permanecem, sejam quais forem as circunstân-
cias, sujeitos de seu trabalho, pensam sobre sua das enfermeiras, dos médicos e cirurgiões, dos
situação e organizam sua conduta, seu compor- pilotos de caça. (Dejours, 1987, 1997,1999 a).
tamento e seu discurso, com uma coerência fun-
dada na compreensão que se supõe que eles te- A psicopatologia do trabalho, tendo a con-
nham da condição que seu estado traz ao traba- cepção psicanalítica do funcionamento psíquico
lho. Penetramos então em uma problemática que
não utiliza mais o esquema causalista: renunci- como um de seus pilares teóricos,
amos à idéia de que o comportamento dos traba-
lhadores fosse determinado pela própria vonta-
de ou pela força das pressões da situação. (...) reinterroga de maneira resoluta o impacto
Dejours e Abdoucheli (1994, p.121-122, grifos da realidade exterior sobre o sujeito, aventuran-
nossos). do-se, portanto fora do campo estritamente limi-
4
Para definir as relações entre as classes, o habitus e a
Entendemos que a partir desta mudança de individualidade orgânica - individualidade esta que nunca
perspectiva da superação de um esquema se pode evacuar completamente do discurso sociológi-
co, na medida em que, imediatamente dado à percepção
causalista e da problematização do sofrimento e imediata (...), ela é também socialmente designada e re-
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tado por uma psicanálise que em geral só se inte- do trabalho e a doença mental interpõe-se um
ressa pelas fontes endógenas de sofrimento (es- indivíduo, não somente capaz de compreender
tas últimas se referem à história precoce e à re- sua situação, mas capaz também de reagir e se
petição inconsciente de conflitos insuficiente- defender. Ocorre que as reações de defesa são
mente resolvidos, herdados da infância). (Dejours, fortemente singularizadas em função do passa-
1989, p. 97, grifos nossos). do, da história e da estrutura de personalidade
de cada sujeito. Dejours e Abdoucheli (1994: p.
123, grifos nossos).5
Nesta perspectiva a concepção teórica
dejouriana precisou fazer face a dois problemas A construção do caminho metodológico para
básicos. Em primeiro lugar, a contradição relati- adentrar esta questão permitiu, no nosso enten-
va ao patológico e ao não patológico. Esta tam- der, avançar significativamente na compreensão das
bém foi anteriormente enfrentada e superada por mediações entre as dimensões individual e coleti-
Freud na psicanálise, ao considerar o não patoló- va. Acompanhemos o raciocínio de Dejours:
gico como necessário objeto de estudo da psicaná-
lise, conferindo-lhe estatuto científico e amplian- Já que os elos entre pressões do trabalho e doença
mental são fortemente singularizados em fun-
do o campo de visão e de abordagem médica, em- ção de procedimentos psíquicos próprios do su-
jeito, seria lógico, para tentar entender esses elos
bora tenha tido como ponto de partida o estado intermediários escolher uma metodologia que
patológico. privilegiasse as entrevistas individuais. (...) con-
duzem inevitavelmente a fazer ressaltar aquilo
Em segundo lugar, a contradição entre o que, na ordem singular, está ligado, em parte, ao
domínio da psicopatologia tradicionalmente liga- passado do sujeito e a sua história familiar (en-
tendida essencialmente como a história das rela-
da à ordem individual e o trabalho. Para Dejours ções afetivas crianças-pais). Esta metodologia
significava, precisamente, deslindar uma leva a não conceder valor significativo à situa-
ção material, social e profissional do sujeito,
exceto na medida em que ela reativa os impasses
contradição entre o domínio da psicopatologia afetivos que marcam sua biografia. A realidade
tradicionalmente ligada à ordem individual (a concreta das situações não interessa quase nada
doença mental só tem sentido para um indiví- ao psicanalista, que, de seu lado, rompeu desde
duo em particular, o sofrimento e o prazer per- muito com o modelo causalista. E quando um
tencem ao domínio do privado) e o trabalho, de trabalhador expõe ao investigador as relações
natureza fundamentalmente social, recrutando conflituosas que ele tem com seu chefe, o psica-
indivíduos, é claro, situados num meio social nalista não pode compreender na realidade
abrindo-se sobre o funcionamento coletivo. Se as evocada mais que um eco de um impasse afetivo
pressões do trabalho, reputadas como perigosas do qual o sujeito não consegue libertar-se. Nada
para a saúde mental, são as mesmas para todos incita o analista a buscar o que nesse conflito
os membros de um grupo de trabalhadores (por não será redutível a um conflito psico-afetivo
exemplo as cadências e a repetitividade numa opondo dois sujeitos que se defrontam: ou seja, o
linha de montagem) será satisfatório poder iden- que no comportamento do chefe, por exemplo,
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não será somente do domínio de sua personali- que nem sempre correspondia àquela feita pela
dade ou de suas reações singulares, mas levanta- direção. Mais tarde (...) fomos conduzidos a rever
rá um método de dominação que se inscreve a problemática e a radicalizar o ponto de vista,
numa lógica organizacional. (Dejours, Doppler, segundo o qual as pressões reais do trabalho es-
1985). Dejours e Abdoucheli (1994, grifos nossos). capavam, em grande parte, do conhecimento da
direção da empresa e do serviço de métodos.
Dejours e Abdoucheli (1994, p. 124-125).
Dejours constrói, então, um delicado cami-
nho metodológico6 em que, mediante entrevistas Com a base teórica psicanalítica o autor
coletivas, incursiona pela sociologia do trabalho estabelecen-
(...) os trabalhadores em grupo são capazes de do alguns pontos-chave do seu pensamento. As-
reconstruir a lógica das pressões de trabalho que sim, o campo da psicodinâmica do trabalho volta-
os fazem sofrer e também fazer aparecer as es-
tratégias defensivas coletivamente construídas se para o estudo da relação psíquica dos trabalha-
para lutar contra os efeitos desestabilizadores e dores com o trabalho, tendo como ponto de parti-
patogênicos do trabalho. As características do
sofrimento individualmente experimentados, da as conseqüências do trabalho sobre a saúde
pelo contrário, suavizam-se ao mesmo tempo.
Assim evidenciou-se uma ligação, que se tornou mental dos trabalhadores. Tais conseqüências po-
depois central em psicopatologia do trabalho, dem ser de natureza nefasta situação em que o
entre as pressões do trabalho e as defesas (princi-
palmente coletivas) contra os efeitos psicológi- trabalho é patogênico ou de natureza favorável,
cos dessas pressões, ao invés da ligação entre pres- situação em que o trabalho é estruturador.
são e doença (no plano individual). O modelo
causalista é substituído (...) por um modelo di- Construídas as noções de trabalho
nâmico específico, no qual se dá um lugar privi- estruturante e de trabalho patogênico, Dejours es-
legiado às estratégias coletivas e a seus ajusta-
mentos. Dejours e Abdoucheli (1994, grifos nos- tabelece possíveis nexos entre a dimensão da orga-
sos). nização do trabalho e a prática política de luta pela
transformação das condições de trabalho (trabalho
Nesse ponto gostaríamos de salientar que
enquanto origem do sofrimento) e pela conquista
Dejours, no nosso entender, levanta o véu que
e defesa da saúde.
encobre a construção de habitus (Bourdieu) no
O processo de trabalho é visto em sua du-
espaço social do mundo do trabalho, demonstran-
pla dimensão de processo técnico (condições de
do a irredutibilidade e singularidade do indiví-
trabalho)7 e de organização do trabalho. Sem des-
duo no plano coletivo, social e público,
prezar a primeira dimensão, ele concentra o foco
descortinando tanto a reciprocidade dinâmica,
de análise na organização do trabalho, isto é, na
interpenetração e simbiose entre tais planos, quan-
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deiras coletivas com situações de risco ou mas ao funcionarem em excesso provocam uma
concernentes aos acidentes, doenças e morte no espécie de anestesia, ou seja, uma insensibilidade
trabalho. ao sofrimento que não é conscientemente percebi-
Outra característica dos sistemas defensivos da pelo trabalhador (ver também Seligmann-Silva,
é que pressupõem a participação de todos, assu- 1994/ 1995). Neste ponto, no nosso entender, há
mindo, portanto, o selo de um mecanismo com um importante canal de diálogo com a sociologia
poder de exclusão e de seleção em relação àqueles do trabalho, particularmente com as práticas de
que resistem às regras de conduta implicadas pela gestão voltadas para a flexibilização do trabalho
defesa coletiva. (Dejours, 1989). e particularmente com a gestão pelo medo, como
As situações paradoxais encontradas nes- forma de neutralizar e anular ações de insubordi-
ses espaços coletivos de trabalho são numerosas. nação coletiva e resistência política .
Por um lado, os sistemas defensivos favorecem a As defesas ao estabilizarem a situação, im-
união do grupo de trabalho, objetivando pedem, na verdade, as reflexões e ações no senti-
minimizar o sofrimento. Por outro lado, podem do de transformar a relação com o trabalho ao
ser explorados pela gestão organizacional no sen- que acrescento até a perspectiva de esforços e ações
tido de elevar a produtividade. Assim, pode ha- no sentido de transformar as próprias condições e
ver um casamento paradoxal entre produtividade organização do trabalho. Conseqüentemente, as
e eficácia da defesa coletiva, inicialmente construída defesas excessivas atuam reforçando a resistência à
com o objetivo de superar o sofrimento. mudança, abrindo-se, para o autor, o domínio da
A defesa pode, em certos casos, propiciar alienação no trabalho.
os truques profissionais e atalhos, sem os quais
a produção não flui tão facilmente (trata-se da céle-
QUANDO OS SISTEMAS DEFENSIVOS SE
bre defasagem entre a organização do trabalho pres-
TRANSFORMAM EM IDEOLOGIA DEFENSIVA
crito e organização do trabalho real, tão cara aos
ergonomistas, sociólogos do trabalho e das organi- Esta transformação ocorre quando os siste-
zações). Dejours chama a atenção, portanto, para o mas de defesa servem de base para a construção
que denomina de exploração do sofrimento. de um sistema de valores, tendo a defesa como
A propósito da diferença entre trabalho pres- um fim em si mesmo, objetivo em si, uma de-
crito e real vale ressaltar que esta permite entrever fesa que se metamorfoseia em desejo. Trata-se,
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os espaços de imaginação, inventividade e capaci- nesse caso, de uma ideologia defensiva de profis-
dades criadoras dos trabalhadores. Ao mesmo tem- são cujas conseqüências em termos de relações
po, via estudos comparativos, apresenta variabili- sociais são vistas pelo autor como extremamente
dade e diferenças importantes em distintos con- problemáticas. (Dejours, 1989, p. 99).
textos (países, organizações, etc). Este fato permite a Neste ponto estabelece-se um outro canal
Dejours (1989) afirmar que a organização do trabalho: importante de diálogo com a sociologia do traba-
lho. Tais processos ocorrem tanto entre os traba-
(...) pode ser transformada apoiando-se sobre as
capacidades criadoras (...) ou aptidões para a lhadores de execução quanto entre os gerentes e
pesquisa dos trabalhadores sobre o seu trabalho, hierarquias de comando e controle. Tais defesas
embora em nossas sociedades geralmente (estas
sejam) freadas e ridicularizadas. Ora, é essa ati- são freqüentemente construídas contra o medo (es-
vidade que exprime socialmente a mobilização pecialmente nos ramos de alto risco). No caso das
dos processos sublimatórios, centrais na questão
do prazer e da saúde mental no trabalho. gerências e chefias acrescentam-se, além das defe-
sas contra os riscos, aquelas contra o medo dos
Outro paradoxo importante diz respeito ao subordinados que devem dirigir. São sistemas de-
grau de eficácia das defesas. Quando funcionam fensivos específicos construídos que concorrem
eficazmente implicam no domínio do sofrimento, para radicalizar os antagonismos e, naturalmen-
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pos, os autores afirmam também, na organização Dejours incursiona no campo da sociologia do tra-
do trabalho, a existência de uma multiplicidade balho reforçando o enorme significado da divisão
de modos operatórios a despeito de todas as nor- entre trabalho de concepção e execução e não da
malizações e regras ainda tipicamente tayloristas. dicotomia entre trabalho manual e intelectual. Na
Recusando-se à redução do Sujeito em suas análi- verdade, saliento que sobre a dicotomia trabalho
ses, propõem instigantes questões que merecem manual e trabalho intelectual se superpõe a divi-
ser colocadas: são do trabalho de concepção e execução (perceptível
particularmente a partir da difusão e generalização do
E se a multiplicidade dos modos operatórios es-
condesse precisamente a multiplicidade dos taylorismo no setor terciário nos anos 60).
Sujeitos? E se cada modo operatório não fosse um Convém salientar que embora Dejours rea-
comportamento mudo, mas o compromisso per-
sonalizado entre Desejo e Realidade, elaborado firme a sublimação como um processo subjetivo
individualmente por cada trabalhador ? (...) o
que um modo operatório padronizado e genera- singular, reconhece que, simultaneamente, impli-
lizado por Taylor e seus sucessores ocasionaria a ca os coletivos. Na concepção dejouriana, natural-
cada Sujeito na economia de seu Desejo? Dejours
e Abdoucheli (1994, p.41). mente, o trabalho qualificado com atividades de
concepção constitui um palco ou terreno propí-
As pesquisas em psicodinâmica do traba- cio à sublimação, um palco que por sua vez invo-
lho têm respondido a tais questões com os seguin- ca o coletivo no sentido do pertencimento, da cons-
tes elementos, resumidamente: sofrimento, aliena- trução de identidade e reconhecimento do outro.
ção, risco de descompensação psiquiátrica (neuro- Ou seja,
se, depressão, psicose) ou processo de somatização
(agudo/reversível; crônico/irreversível). A (...) solicita a constituição, a regulação e o funci-
onamento deste coletivo de uma maneira dife-
somatização é entendida a partir da noção de que rente da dos coletivos de defesa. O trabalho qua-
lificado desemboca sobretudo na constituição de
o Corpo somático (e não o aparelho psíquico so- coletivos de tipo comunidade de filiação
zinho) parece incapaz de funcionar duravelmente (appartenance), estruturados por regras que não
controlam somente comportamentos relaciona-
e de resistir por muito tempo à repressão do Desejo. dos ao sofrimento, mas que, derivando da
Assim, na perspectiva da psicodinâmica do tecnicidade e do savoir-faire, controlam sobre-
tudo sua conservação, transmissão e sua evolu-
trabalho o sofrimento, as defesas, as descompensações ção. Decorre daí uma forma particularmente
e as patologias são a própria expressão característi- desenvolvida de cooperação operária, que se
manifesta também entre os trabalhadores que
ca da violência na organização do trabalho onde realizam tarefas de execução, mas neste último
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os indivíduos não podem mais ser sujeitos do caso apenas em estágio embrionário, se compa-
rarmos a maneira pela qual é realizada nos cole-
seu comportamento. tivos de métier ou coletivos de regra. Dejours,
(1989, p.100)
Em suma, as tarefas de execução, sobretu-
do as mais fragmentadas não permitem a possibi- A sublimação, enquanto mediação entre in-
lidade de sublimação. Nesse tipo de trabalho consciente individual e campo social, é um pro-
taylorizado tanto no que tange ao trabalho pre- cesso que absorve e transforma principalmente
dominantemente manual ou predominantemente pulsões ditas parciais. A ausência de possibilidade
intelectual não há lugar para negociar a mise- deste processo (falta de soluções sublimatórias) pode
en-scène necessária ao jogo da sublimação. São gerar perversões, violência compulsiva e patologia
antes formas de organização do trabalho anti- psiquiátrica grave (psicoses, somatização, toxico-
sublimatórias, com consequências desestruturadoras manias).
ou potencialmente patogênicas. Daí a necessidade histórica de se conside-
As formas de organização do trabalho rar e incorporar a dimensão da subjetividade, do
estruturadoras, diferentemente, são aquelas em que sofrimento e da saúde mental dentro (e fora) do
parte da concepção é atribuída ao trabalhador (ne- mundo do trabalho, no sentido de abrir espaços
cessária ao teatro da sublimação). Por esta via para a reflexão e busca de alternativas sociais
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