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quinta-feira, 24 de junho de 2010

Flávio de Carvalho – O Corpo em Experiência


Paula Darriba
Do circuito oficial ao underground temos acompanhado nos últimos anos as infinitas matrizes das
manifestações em performance que definitivamente ganha legitimidade como meio de expressão e
processo gerador de conteúdos teóricos e conceituais. Sua diversidade acrescenta informação às
diversas áreas do conhecimento humano, extrapolando as fronteiras das possibilidades visuais e
cênicas em seus questionamentos e proposições.
Diante de tal entendimento, resgatamos aqui, as raízes do movimento da performance no Brasil,
enfocando aspectos específicos da produção de Flávio de Carvalho (1899 - 1973). Sua obra
caracteriza-se principalmente pela pluralidade, e sedimentou sua importância no cenário geral da
história da arte brasileira e internacional.
Tendo em vista a importância específica dada ao corpo, incluindo-se aí suas relações com o espaço,
tempo e sociedade, presentes em toda a produção de Flávio de Carvalho (OSORIO, 2000), nota-se a
antecipação de propostas e mecanismos de questionamento em relação a esse corpo que só viriam a
se consolidar nos anos subseqüentes aos de sua produção e que se mantêm presentes na arena de
discussão da arte da performance.
Nas performances, Experiência nº 2 e Experiência nº 3, Carvalho optou pela utilização e tratamento
particulares de seu próprio corpo bem como o de suas extensões, ou melhor, os “trajes”. Munido
apenas de um chapéu em ocasião inadequada em 1931, de um modelo nada ortodoxo em 1956, e
sobretudo da postura crítica diante da sociedade onde vivia, deixou que o público se encarregasse
(ou não) das interpretações. A síntese da sua produção teórica referente aos dois trabalhos
abordados aliada ao processo performático em si, ou seja, o confronto de seu próprio corpo com
uma audiência aleatória, sugere a ampla percepção desse corpo e das relações que este estabelece
com o espaço físico e temporal assim como das possibilidades do mesmo como mais um caminho
de expressão para o artista já a partir da década de 30.
O corpo enquanto ação artística e/ou objeto de arte só será interpretado a partir dos anos 60 frente às
novas concepções da cultura performativa que delega ao corpo desfetichizado o poder de existir
como matéria-prima dos happenings , da body-art e das performances em sua maioria. Toda a gama
de restrições culturais, políticas e sociais determinadas ao corpo de forma geral foi questionada em
propostas artísticas (vídeo, teatro, cinema, etc.) que exaltaram o seu papel e todas as suas
possibilidades. Banes (1999, p.253) relata esse período como o do “corpo no poder”, e descreve o
corpo efervescente como aquele repleto de características a serem exploradas a partir de seus
significados e possibilidades sociais. O destaque fica subordinado às suas inúmeras formas de
apreciação e questionamentos: o corpo gustativo e suas possibilidades grotescas, o corpo racial e
suas dificuldades de inserção cultural, o corpo sexual em busca da liberação da repressão. Tais
questões acabaram por se diluir ao longo dos últimos anos, mas a problemática levantada em torno
do processo das obras deixou um legado.
A preocupação com o processo do trabalho, característica essencialmente contemporânea
(HARVEY, 2004) pode ser apreciada nas Experiências de Flávio de Carvalho, a partir da concepção
de ambas as ações, da sua execução propriamente dita e dos resultados teóricos oriundos das duas
experimentações. Particularizado no contexto desse processo, o corpo, adquire interesse como
agente de discurso, elemento fundamental carregado de significação no amplo cenário proposto pela
cultura performativa.
O corpo em experiência
Flávio de Carvalho, depois de onze anos de estudos na França e na Inglaterra, retorna ao Brasil em
1922, reinstalando-se na híbrida cidade de São Paulo que dava passos largos em função da crescente
industrialização, mas ao mesmo tempo, mantinha-se culturalmente presa ao tradicionalismo e ao
preconceito.
As polêmicas performances do artista aconteceram nesse cenário, uma cidade ainda provinciana,
entre as décadas de 30 e 50. Claro que agitaram a imprensa e abalaram profundamente o público
conservador da cidade. Consideradas na época como atitudes escandalosas e por muitos anos
abordadas de forma especulativa, até mesmo romântica, são hoje consideradas como pioneiras dessa
linguagem no Brasil tendo inclusive, influenciado as futuras gerações de performers (COHEN,
2002, p. 44). São, entre outras: a Experiência nº 2 - caminhada na contra-mão de uma procissão
religiosa; a “soneca” com amigos em uma cama de casal na exposição de móveis organizada no
Saguão do Cine Odeon; as apresentações performáticas da banda “Lira Musical Flor dos
Jabaquaras” que se sucederam na então Rádio Cultura (executadas sem a utilização de instrumentos
musicais); o banho na Fonte das Lagostas situada na Praça Júlio de Mesquita; a Experiência nº 3 -
lançamento de seu traje de verão masculino – o New Look - em desfile solo pelas ruas da capital
paulista e a Experiência nº 4 – uma expedição à Amazônia com o propósito de investigar a evolução
social e humana no continente americano.
Diante desses fatos, levantamos a posição de Sahlins (1994) no que se refere às questões históricas,
não sendo estas, “nem longinquamente, tão exóticas quanto tais ocorrências possam sugerir”. Com
certeza, o caráter transgressor e ousado, por vezes incoerente das primeiras ações propostas por
Flávio de Carvalho, gerou conflitos de interpretação diante não só do público em geral como
também diante dos mecanismos culturais de elite dominantes na época, avesso a tais concepções.
Suas “atitudes escandalosas” da primeira metade do século passado serão interpretadas como
“experimentações artísticas” nas décadas posteriores quando se inicia a consolidação do cenário
pós-moderno brasileiro. Dessa forma, tais eventos vão adquirir “significância” histórica (no que se
refere à história e crítica da arte) quando devidamente apropriados e interpretados pelos novos
esquemas culturais posteriores a eles (SAHLINS, 1994, pg. 15).
A Experiência nº 2 ocorreu durante uma procissão de Corpus Christi no centro da cidade de São
Paulo no ano de 1931 , quando o artista (que na época já havia se colocado publicamente contra o
clero e a religião) caminha com postura provocativa e arrogante em meio à multidão religiosa,
trazendo ainda um boné a cabeça, ato de desrespeito e pouco recomendável dentro do contexto
religioso. Na concepção de tal proposta Flávio de Carvalho baseou-se num episódio que envolveu
Oswald de Andrade e Patrícia Galvão logo após a publicação de algumas observações sobre a
Faculdade de Direito no jornal “O Homem do Povo”. Os estudantes da instituição, furiosos com os
comentários, perseguiram e quase lincharam os dois responsáveis. Indignado diante do inusitado
acontecimento, Flávio de Carvalho articula conexões com suas recentes leituras sobre o
“comportamento imbecil” das multidões e vai experimentar empiricamente as teorias recém
adquiridas no dia 7 de junho do referido ano. Ao interferir na procissão de Corpus Christi de forma
desrespeitosa, provocando acintosamente os fiéis, sobretudo as mulheres, o artista já esperava a
reação de hostilidade que sofreu em represália: um quase linchamento, evitado apenas por ter se
retirado em fuga atravessando a procissão em seu sentido contrário. O resultado imediato de sua
ação foi um depoimento na delegacia e a publicação, alguns meses depois, do livro “Experiência nº
2 – Realizada sobre uma Procissão de Corpus Christi - Uma Possível Teoria e Uma Experiência”,
onde descreve a intenção e o procedimento de suas atitudes e uma avaliação sobre o comportamento
agressivo da multidão religiosa que enfrentou.
No livro, o artista descreve minuciosamente, em 35 páginas, o procedimento da ação e procura
manter-se o mais fiel possível aos acontecimentos. Nesta parte do livro – “A Experiência” - levanta
aspectos interessantes sobre o desenvolvimento (processo) de sua “atitude” bem como sobre o
conceito de “tempo”. Na Segunda parte – “Análise” procura justificar o comportamento da multidão
através da teoria dos pares antitéticos, onde relaciona os diversos elementos da procissão (deus, ou
o chefe invisível, os padres, os homens, as mulheres, os velhos, as velhas, os acessórios ritualísticos,
o espaço onde se desenvolve a ação - a rua, as aparentes “encenações” dos personagens envolvidos
e o caráter “espetacular” do processo). Apresenta ainda equações interessantes cujas “variáveis a
serem determinadas” sugerem o terreno, ainda movediço, onde pautou suas reflexões.
Alguns pontos interessantes observados pelo artista foram a forma como a mulher atua na sociedade
da época, seu caráter de submissão bem como o poder da igreja e dos costumes sobre a população.
Uma análise comportamental e social fundamentada em bibliografia de destaque científico na
época. Além de Freud, entre os autores preferidos e referenciados por Flávio estavam Gustave Le
Bon (The Conflict of Peoples and Classes e A Study of The Popular Mind) e Wilfred Trotter
(Instintos de Rebanho na Paz e na Guerra).
Hobsbawm (1984, pg. 276) cita o trabalho desses dois psicólogos sociais como parte dos estudos
promovidos pelos governos europeus da época para a manutenção da estrutura e da ordem social a
partir do final do século XIX. A política das massas percebia e tirava partido exatamente da
irracionalidade inerente às multidões e é a partir das teorias de manutenção da ordem social então
vigentes que Flávio de Carvalho vai questionar essas mesmas estruturas e gerar o desconforto nas
elites poderosas de São Paulo.
As idéias vão prevalecendo, tomando corpo plástico e literário, são incessantemente divulgadas.
Flávio vai contemplando várias áreas de pesquisa e depara-se com aquela que por um longo tempo
será fonte de estudos, inspiração para seus artigos e base para uma de suas performances: a moda e
sua relação com o homem. Já nos anos 30 projeta a “vestimenta adequada aos trabalhos de
expedição”, traje que seria utilizado na pesquisa de campo que estudaria o berço dos gafanhotos,
nunca realizada.
A Experiência nº 3, de 18 de outubro de 1956, também teve como local de realização as ruas do
centro da cidade de São Paulo. Desta vez Flávio de Carvalho desfilou um traje masculino por ele
idealizado, o New Look – ou segundo a perspectiva de Moraes (1986, p. 66), “a roupa nova do
homem nu”. Consistia de sandálias, meias femininas, saia, blusa bufante e chapéu. O projeto desse
traje foi apresentado pela primeira vez em 1952 durante uma entrevista com o jornalista e crítico de
arte Luis Martins e na ocasião, foram exaltadas suas qualidades no que diz respeito a adequação ao
clima dos trópicos e o abandono aos padrões internacionais. Na verdade, esta performance ilustrou
os artigos da série “A Moda e o Novo Homem” que o artista publicara durante oito meses em sua
coluna no Diário de São Paulo durante o ano de 1956 e que foram resultantes de pesquisas iniciadas
no início dos anos 30 sobre a história do vestuário. Entre esses artigos: “O Defeito – o Aspecto”, “O
Valor do Corpo”, “O Homem Nu e o Homem Vestido”, “A Magia da História – o Pudor” e “A
Grande Imaginação do Limite Vagando pela Rua”.
Neles, o autor aborda questões pertinentes à relação corpo-traje-homem e suas modificações e
adaptações sofridas ao longo da história frente aos aspectos sócio-culturais. Durante a performance,
Flávio de Carvalho caminhou despretenciosamente pelas ruas da cidade, concedeu entrevista
coletiva na sede dos Diários Associados e tentou ingressar em um cinema (na época era exigido o
uso de terno e gravata). A imprensa divulgou a ação de Flávio em diversos jornais e revistas e a
repercussão garantiu inclusive entrevistas na televisão onde o artista continuava promovendo seu
modelo de roupa masculina na primeira “performance televisiva” do Brasil (LEITE, 2004). Em
1958 desenhou e produziu cartões publicitários onde, através de esboços e diagramas exaltava as
qualidades do traje. Em 1967, permanecia o debate sobre a idealização do New Look e Flávio de
Carvalho foi convidado por Gilberto Freyre para participar do Seminário Trópico & Sociologia em
Recife onde proferiu a palestra “Mutação da Moda Através da História” e durante os debates
levantou novamente, assim como nos antigos artigos, aspectos pertinentes ao caráter estético-social
oriundo das massas.
Nestas duas “performances caminhantes” apresentadas (LIGIÉRO, 1999), assim como nas demais,
Flávio de Carvalho centrou as ações no seu próprio corpo e nas relações que o mesmo estabelece
com o público, com o espaço e com a cultura. Tais relações refletem as intenções paradigmáticas
propostas anteriormente em sua conferência “antropofágica”, “A Cidade do Homem Nu”,
apresentada durante o IV Congresso Pan-americano de Arquitetura, realizado em 1930 no Rio de
Janeiro, exaltando “o homem do futuro, sem deus” (CARVALHO apud MORAES, 1986, p.25),
avesso às concepções cristãs, apto a criar e a habitar uma cidade estética e cientificamente
idealizada. Osorio (2000 p. 18) refere-se a essa conferência como se fosse um manifesto particular
do artista onde este confirmaria o “lugar específico de sua atuação criativa: o corpo”. Corpo esse
que fala, sente, pensa e que traz o estético e o ético irmanados.
Essa preocupação com o homem, seu corpo físico e espiritual, questionado em suas relações com o
espaço e com a sociedade, se faz transparecer em toda a sua produção artística, desde seus projetos
arquitetônicos até suas performances: “seja na casa ou na roupa é o corpo que orienta a
experimentação e determina o processo de formalização. É a especificidade de uma linguagem
plástica, que se desenvolve atrelada ao corpo, que está em questão” (idem, p.43). A importância
específica dada ao corpo, sugere, como já colocado anteriormente, a forma como Flávio de
Carvalho antecipa questões pertinentes a arte da performance que se cristaliza e define um
vocabulário autônomo nos anos posteriores, mais precisamente nas décadas de 60 e 70.
Fica claro na elaboração da Experiência nº 3 toda a consciência e intencionalidade na abordagem de
tais questões. O trabalho levou anos para ser elaborado, primeiramente através de suas ponderações
sobre a relação do homem com o vestuário ao longo de sua evolução e num segundo momento
através do questionamento dos padrões e hábitos culturais paulistanos (brasileiros de uma forma
geral) que ainda se rendiam aos modelos importados mesmo diante de um quadro visível de
desenvolvimento da indústria têxtil e de vestuário. O corpo, portanto problematizado diante da
cultura e da sociedade da época.
Flávio de Carvalho vai colocar mais tarde, em 1967, no Seminário de Tropicologia a projeção da
moda unissex, nivelando homens e mulheres no contexto sócio-cultural, fato este deliberada e
explicitamente mostrado na elaboração do traje utilizado. Nesse sentido, Leite (2004) enfatiza os
processos de criação, execução e recepção das Experiências desenvolvidas por Flávio de Carvalho
e, sobretudo, chama a atenção para a repercussão que tais atitudes tiveram em seu ambiente cultural.
Um dos pontos que mais nos interessa destacado pelo autor é o fato de a Experiência nº 3 e a
Experiência nº 4 terem sido anunciadas com meses de antecedência bem como a Experiência nº 3
ter sido uma das primeiras ações artísticas a fazer uso e se difundir através da televisão, veículo de
comunicação de massa em consolidação durante a década de 50. Leite destaca ainda a incorporação
dos conceitos da psicologia, antropologia e sociologia no trabalho artístico de Flávio de Carvalho, a
forma como antecipou questões relativas ao vestuário de forma geral e a utilização dos meios de
comunicação (jornal, rádio, televisão, cinema) de forma a dar o máximo possível de visibilidade aos
seus projetos, trabalhos e idéias de uma forma geral, contribuindo para a difusão e popularização
destes.
Segundo Glusberg (1988) o corpo, a importância da presença física do artista enquanto sujeito e
objeto, as pesquisas de novos modos de comunicação e significação associados às questões sociais
(tendo como tônica a alienação, a solidão, a massificação) são elementos presentes na consolidação
da arte da performance que vai amadurecer ao longo dos anos 70 e poderão ser percebidas em
experiências com trajes feitas por alguns artistas contemporâneos que muito se aproximam das
propostas anteriormente executadas por Flavio de Carvalho no que se refere tanto à concepção
teórica quanto à execução. Esses artistas produziram, décadas depois, críticas irônicas em relação
aos costumes e a sociedade, e tiveram também, na sua maioria, as ruas como espaço de
apresentação.
Bibliografia:
BANES, Sally. Greenwich Village 1963: avant-garde, performance e o corpo efervescente, Rio de
Janeiro: Rocco, 1999.
CARVALHO, Flávio de. Experiência n.º 2 – Realizada sobre uma procissão de Corpus Christi: uma
possível teoria e uma experiência. Rio de Janeiro: Nau, 2001.
__________ A Mutação da Moda Através da História. In: FREYRE, Gilberto. Trópico &
Sociologia. Recife: Editora da UFPE, 1971.COHEN, Renato. Performance como Linguagem, São
Paulo: Perspectiva, 2002.
GLUSBERG, Jorge. A Arte da Performance, São Paulo: Perspectiva, 1987.
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna, São Paulo: Edições Loyola, 2004.
HOBSBAWM, Eric e Ranger, Terence. A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1984.
MORAES, Antonio Carlos Robert. Flávio de Carvalho – o performático precoce, São Paulo:
Brasiliense, 1986. Col. Encanto Radical.
OSORIO, Luiz Camilo. Flávio de Carvalho, São Paulo: Cosac & Naify, 2000. Col. Espaços da Arte
Brasileira.
SAHLINS, Marshal. Ilhas de História, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.
ARTIGOS EM REVISTAS ELETRÔNICAS
LEITE, Rui Moreira. Flávio de Carvalho: Media Artist Avant la Lettre, In: Leonardo, 2004.
Disponível em:
<http://www.mitpress2.mit.edu/e-journals/Leonardo/isast/spec.projects/brazil.html >
LIGIÉRO, Zeca. “Flávio de Carvalho e a Rua: Experiência e Performance”, O Percevejo. Rio de
Janeiro, 1999. Disponível em: <http://www.unirio.br/opercevejoonline/7/artigos/6/artigo6.htm>.

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