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PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO FEMINISTA:

memória e ação política dos estudos na contemporaneidade

PROMOÇÃO:

Rede Feminista Norte e Nordeste de estudos e pesquisas sobre mulher e


gênero - Redor
Núcleo de Interdisciplinar de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher,
Cidadania e Relações de Gênero - NIEPEM
Período: 22 a 25 de setembro de 2009.

São Luís
2010
Rede Feminista Norte e Nordeste de Estudos e Pesquisas sobre
Mulher e Gênero – Redor

UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO


Núcleo de Interdisciplinar de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher,
Cidadania e Relações de Gênero – NIEPEM

Prof. Dr. Natalino Salgado Filho


Reitor
Prof. Dr. Antonio José Silva Oliveira
Vice-Reitor
Organização
Mary Ferreira
Capa Arte
Roberto Sousa Carvalho
Capa: Cabeça de Mulher de Pablo Picasso
Normalização
Carlos Wellington Soares Martins
Michelle Silva Pinto
Digitação
Michelle Silva Pinto
Editoração Eletrônica
Roberto Sousa Carvalho

Encontro da Rede Feminista Norte e Nordeste de Estudos e Pesquisas


sobre Mulher e Gênero - Redor, (15, 2009 : São Luís, MA).
Caderno de Resumos do XV Encontro da Rede Feminista Norte e
Nordeste de Estudos e Pesquisas sobre Mulher e Gênero - Redor ; IV
Encontro de Pesquisadoras/es Maranhenses sobre Gênero, Mulheres e
Cidadania/Organização de Mary Ferreira. - São Luís: EDUFMA, 2010.

....3 p.;

ISSN – 2175-9855

1. Estudos Feministas. 2. Estudos Gêneros. 3. Gênero no Norte e


Nordeste. 4.UFMA.
CDD 396
COORDENAÇÃO GERAL DA REDOR

Profa. Dra. Maria Mary Ferreira – Presidente


Profa.Dra. Maria Luzia Miranda Álvares – Vice Presidente
Profa. Dra. Diomar das Graças Motta – Coordenadora de Finanças
Profa. Dra. Gema Galgani Silveira Leite Esmeraldo – Coordenadora de
Pesquisa
Profa. Dra. Sandra Maria Sousa Nascimento – Coordenadora de
Comunicação
Profa. Dra. Helena Santana Cruz - Coordenação de Formação- UFSE

COMITÊCIENTÍFICO COORDENAÇÃO Nº TRABALHOS


COMPLETOS
Gênero e Educação Lígia Pereira dos Santos
– UEPB 12
Gênero e Geração Marion Teodosio de Quadros – UFPE 03
Gênero e Saúde Jorge Luiz Cardoso Lyra– PAPAI/ UFPE 06
Gênero e Violência Fernanda Marques de Queiroz – UERN 09
Gênero, Identidade e Cultura Iraildes Caldas Torres
– GCCTS/UFAM 17
Gênero, Literatura e Comunicação Profª. Dra. Margarete Edul Prado
e Souza
d Lopes
– 10
UFPA
Gênero, Relações de Trabalho e Meio Isaura R. Fischer
– FUNDAJ 22
Ambiente
Feminismo e Política Mary Ferreira– NIEPEM/UFMA 16

Rede Feminista Norte e Nordeste de Estudos e Pesquisas sobre a


Mulher e Relações de Gênero – Redor
Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisa sobre Mulher, Cidadania e
Relações de Gênero – NIEPEM
Av. dos Portugueses, s/n, Centro de Ciências Sociais, Sala 1 –
Campus Universitário do Bacanga
CEP 65.080-040 – São Luís/MA
Tel: (98) 2109-8425
AGRADECIMENTOS

Agradecemos a colaboração inestimável das instituições que nos


apoiaram na realização deste evento: Universidade Federal do Maranhão,
Centro de Ciências Sociais-Departamento de Biblioteconomia, Fundação de
Amparo a Pesquisa – FAPEMA, Secretaria Estadual da Mulher, Secretaria de
Direitos Humanos, Faculdade São Luís, Coordenadoria Municipal da
Mulher/Prefeitura de São Luís e Secretaria Nacional de Políticas para as
Mulheres.
Sem esses apoios teria sido impossível realizar o referido evento.
Agradecemos a todas as integrantes desta Rede que não
pouparam esforços para viabilizar este Encontro, vindo de Regiões
longínquas sem vocês não existiríamos como Rede e sem vocês esse
Encontro não teria sentido.

COORDENAÇÃO REGIONAL DA REDOR


12
SUMÁRIO

1 A REDOR E OS ESTUDOS DE GÊNERO NO NORTE E NORDESTE:


uma introdução
Mary Ferreira

2 GÊNERO E EDUCAÇÃO

2.1 Apresentação

ETIQUETA, POSTURA E “BOM TRATO”: a educação da mulher


ludovicense na segunda metade do século
XIX
Camila Ferreira Santos Silva
Fernanda Lopes Rodrigues
Diomar das Graças Motta

O RECOLHIMENTO DO SANTO NOME DE JESUS: casando ou


educando mulheres para o
trabalho
Ivani Almeida Teles da Silva

MARY WOLLSTONECRAFT CONTRA JEAN-JACQUES ROUSSEAU: em


defesa de um feminismo iluminista
Alexnaldo Teixeira Rodrigues

O CORPO FEMININO NA OBRA DE PEDRO AMÉRICO: tessituras de


gênero e vivências artísticas
Ligia Pereira dos Santos

EM CENA: empoderamento de mulheres diretoras


Maria das Dores Cardoso Frazão
Diomar das Graças Motta

A UNIVERSIDADE VISTA PELAS MULHERES: interpretações sobre o


processo de construção da identidade universitária
Anna Barbara Cardoso da Silva
Luiz Eduardo Santos do Nascimento
Kirla Korina dos Santos Anderson
Ricardo da Silva Rodrigues

CONSTRUINDO CIÊNCIA NA AMAZÔNIA: pós-graduação e produção do


conhecimento – um debate de gênero
Luciane Gomes Lopes
Sheila Ximenes de Souza
Maria das Graças Silva Nascimento Silva

TODAS EM NOME DA PAZ: minha experiência no combate a homofobia


na escola
Amanaiara Conceição de Santana Miranda

AS RELAÇÕES DE GÊNERO E A EDUCAÇÃO: um mecanismo de


violência simbólica
Greissy Leoncio Reis Lemos

ESTRATÉGIAS DE INSERÇÃO/CONSOLIDAÇÃO PROFISSIONAL DE


MÉDICAS, FARMACÊUTICAS E ODÓNTOLOGAS NA BAHIA
Iole Macedo Vanin

FUTEBOL FEMININO: o hábito não altera o gênero


Daniella Silva do Nascimento
Maria do Rosário de Fátima Andrade Leitão

RELAÇÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADE NO CURRÍCULO


ESCOLAR: desafios e possibilidades nas práticas pedagógicas no estado
do Maranhão
Sirlene Mota Pinheiro da Silva

3 GÊNERO E GERAÇÃO

3.1 Apresentação

O SALÁRIO-MATERNIDADE E O CRITÉRIO IDADE: refletindo sobre a


exclusão de jovens agricultoras
Marion Teodósio Quadros
Rosineide Meira Cordeiro

JOVENS FEMINISTAS, QUESTÕES DE GÊNERO E GERAÇÃO:


entrelaçamentos de agendas?
Karla galvão Adrião

ITINERÁRIOS DE VIDA AO ENVELHECER: experiências de travestis em


Sergipe
Jesana Batista Pereira
Márcia Santana Tavares
Maura Lúcia de Olim
4 GÊNERO E SAÚDE

4.1 Apresentação

REFLETINDO A SAÚDE DA MULHER NO PSF DO BAIRRO DAS


INDÚSTRIAS – JOÃO
PESSOA/PB

Michele Ribeiro de Oliveira


Renata Lígia Rufino Neves de Souza

PROGRAMA DE ATENÇÃO INTEGRAL À SAÚDE DA MULHER – PAISM


entre as diretrizes nacionais e a realidade em Imperatriz
Conceição de Maria Amorim

RAZÕES E/OU MOTIVOS DE ABORTAMENTO EM UMA MATERNIDADE


PÚBLICA DE TERESINA-PI
Ariane Gomes dos Santos
Inez Sampaio Nery
Fernanda Maria de Jesus S. P. Moura
Érida Zoé Lustosa Furtado

VIOLÊNCIA E SAÚDE MENTAL: uma análise do discurso das mulheres


Milena Fernandes Barroso
Luciana Oliveira Lopes

GÊNERO, CIÊNCIA E PATERNIDADES: análise da produção cientifica


brasileira em bando de teses e dissertações da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior
Márcio Bruno Barra Valente
Benedito Medrado
Jorge Lyra

COOPERATIVISMO E CATAÇÃO DE MATERIAIS RECICLÁVEIS: os


impactos na saúde sexual e reprodutiva das mulheres
Idalina Maria Freitas Lima Santiago
Natália Alves de Queiroz
Christiano das Neves Viana Amorim

5 GÊNERO E VIOLÊNCIA

5.1 Apresentação
DO SONHO AO PESADELO: o tráfico de mulheres para fim de
comercialização sexual no Brasil
Adriana Lima Bispo
Daywyanny da Silva Ataíde
Rosiane de Jesus Santos Felix

MATEI POR AMOR, E AGORA? o debate jurídico sobre o crime passional na


primeira república
Antonio Carlos Lima da Conceição

DO PAPEL PARA A VIDA: a percepção das mulheres em situação de


violência acerca da Lei Maria da Penha
Fernanda Marques de Queiroz
Ana Paula Lopes
Rita de Cássia da Silva
Rita Wigna de Souza Silva
Rusthânia Nogueira dos Santos

A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER, A LEI MARIA DA PENHA


E A IMPRENSA PARAENSE (2006-2007)
Glaucy Learte da Silva
Deuzélia Patricia Valente Machado
Márcio Pereira de Sousa
Luiz Eduardo Nascimento dos Santos

VIOLÊNCIA PSICOLOGICA CONTRA A MULHER NA RELAÇÃO


CONJUGAL
Gleidismara dos Santos Cardozo de Castro Franzoni

CAUSAS DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO ESPAÇO DOMÉSTICO NA


PERCEPÇÃO DAS GESTORAS DOS SERVIÇOS DE APOIO
Maria Tamires Alves Ferreira
Mary Ângela de Oliveira Canuto
Inez Sampaio Nery

FENÔMENO DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO: a construção e efetividade de


um modelo de intervenção institucional
Lucélia Braghini

VIOLÊNCIA DE GÊNERO E POLÍTICAS PÚBLICAS


Michele Ribeiro de Oliveira
Renata Lígia Rufino Neves de Souza
OS GÊNEROS E O SISTEMA NACIONAL DE ATENDIMENTO
SOCIOEDUCATIVO (SINASE)
Jalusa Silva de Arruda

6 GÊNERO, IDENTIDADE E CULTURA


6.1 Apresentação

DIREITOS DE FAMÍLIA: mulher e regime total na legislação republicana


Elizabeth Sousa
Abrantes

BELEZA E PODER: o embelezamento como consumo e disciplinamento


da mulher
Maria Dolores de Brito Mota
Flávia Guilherme
Melo

LEITURAS DE JORNAIS E ROMANCES: relação de gênero em tempo de


exceção
Andréa Bandeira

O RITUAL DA MOÇA NOVA NA CULTURA SATERÉ – MAWÉ


Solange Pereira do Nascimento
Iraildes Caldas Torres

CAIANA DOS CRIOULOS: memória oral através das cantadeiras e


dançadeiras de coco de roda
Gabriela Buonfiglio Dowling.

AS MULHERES SATERÉ-MAWÉ E A FORMAÇÃO DE COMUNIDADES


ÉTNICAS EM MANAUS / AM
Wagner dos Reis Marques Araújo
Iraildes Caldas Torres

MULHERES NEGRAS FEMINISTAS: conquistando visibilidade


Silvana Santos Bispo

VOZES XERENTE: gênero e construção da identidade a partir da


percepção da mulher akwé
Maria Santana Pereira dos Santos Milhomem
Maria Helena Cruz

A VISÃO DE SIMONE DE BEAUVOIR SOBRE LESBIANIDADE


Gilberta Santos Soares

GÊNERO, CIÊNCIA E PRÁTICAS ESCOLARES


Nádia Regina Loureiro de Barros
Lima

LUGARES PARA O FEMINISMO: transgressão e regra no universo do


bumba-meu-boi
Isanda Maria Falcão Canjão

MULHERES CHEFES DE FAMÍLIA EM SALVADOR: articulações


interseccionais e experiências de empoderamento
Márcia dos Santos Macedo

A CRISE CONTEMPORÂNEA ATUAL E OS DESAFIOS POSTOS ÀS


MULHERES NO ÂMBITO DO TRABALHO
Milena Fernandes Barroso
Iraildes Caldas Torres

MIRADAS FEMININAS: avanços e recuos no exercício do jornalismo pelas


mulheres
Ana Fernanda Campos de Souza

MULHERES PESCADORAS: a construção da resistência no mundo da


pesca.
Maria do Rosario de Fátima Andrade Leitão
Alexsandra Silva de Lima
Gilmar Soares
Furtado

A UNIVERSIDADE VISTA PELAS MULHERES: interpretações sobre o


processo de construção da identidade universitária
Anna Barbara Cardoso da Silva
Kirla Korina dos Santos Anderson
Luiz Eduardo Santos do Nascimento
Ricardo da Silva Rodrigues

7 GÊNERO, LITERATURA E COMUNICAÇÃO

7.1 Apresentação

ANA E BETTY: mulheres que “tecem” uma vida em busca de si


Ana Paula Moreira do Nascimento
MULHER INVISÍVEL: A Imagem da Mulher Negra no Jornalismo de
Revista Feminino Brasileiro
Erly Guedes Barbosa

A MORAL FEMININA EM FOLHETINS NA SEGUNDA METADE DO


SÉCULO XIX: entre o lazer e o discurso
Maria José Lobato Rodrigues
Iran de Maria Leitão Nunes

NARRATIVAS SOBRE MULHERES NA AMÉRICA COLONIAL


Lina Maria Brandão de Aras

SENSIBILIDADE FEMININA: o amor, a melancolia e a arte recompondo


uma vida.

ENTRE A MEMÓRIA E A LIBERDADE: Conceição Evaristo E Ezilda


Barreto No Combate Ao Racismo
Ana Maria Coutinho Salles

A ESCRITURA FEMININA BAIANA EM JORNAIS DO SÉCULO XIX E XX:


Ignez Sabino e Edith Gama.
Maria da Conceição Pinheiro Araújo -conciaraujo@uol.com.br

NAS ENTRELINHAS DE MULHER E BRUXA: Identidade e Sexualidade


em um Conto de Sônia Coutinho
Lilian Santana Da Silva

A MULHER E SUAS CONDIÇÕES DE EXISTÊNCIA NA AMAZÔNIA NA


FICÇÃO DE AUTORIA FEMININA NO
ACRE.
Margarete Edul Prado de Souza Lopes

SENSIBILIDADE FEMININA: o amor, a melancolia e a arte recompondo


uma vida.
Rosângela Lopes da Silva

8 GÊNERO, RELAÇÕES DE TRABALHO E MEIO AMBIENTE

8.1 Apresentação

GÊNERO E CIÊNCIA: trabalho na academia, a construção de um objeto


de pesquisa
Silmere Alves Santos de Souza,
QUESTÕES DE INVISIBILIDADE DO TRABALHO DAS MULHERES
PARA A SOCIEDADE
Neuza de Farias Araújo

MULHERES AGRICULTORAS E PRODUÇÃO DE ENERGIA


HIDRÁULICA: a realidade da Região Do Xingó
Izaura Rufino Fischer

INVISIBILIDADE E GÊNERO: condicionantes no trabalho de catação de


resíduos sólidos
Idalina Maria Freitas Lima Santiago
Jussara Carneiro Costa
Natália Gomes Sobral

O PAPEL DAS MULHERES NA ELABORAÇÃO DE ESTRATÉGIAS DE


SOBREVIVÊNCIA
Neuzeli Maria de Almeida Bezerra

O ACESSO AO CRÉDITO: uma peleja para as mulheres agricultoras


familiares
Lígia Albuquerque de Melo

TRABALHO E CONDIÇÃO FEMININA EM SÃO LUÍS NA VIRADA DO


SÉCULO (1880-1910) – a situação do operariado feminino.
Rosário de Maria Carvalho Silveira

NA BUSCA DOS MARES DOS DIREITOS E DA SUSTENTABILIDADE:


mulheres pescadeiras e participação política em Pernambuco
Cristiano Wellington Noberto Ramalho

NOVA DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO: uma leitura de gênero e


novas tecnologias
Maria Helena Santana Cruz
José Walter Santos Filho
Susana Rezende Lima

GÊNERO E PROGRAMA DE GERAÇÂO DE RENDA


Michele Ribeiro de Oliveira
Renata Lígia Rufino Neves de Souza

MULHER E POLÍTICAS PÚBLICAS DE DESENVOLVIMENTO: a divisão


sexual do trabalho no arranjo produtivo local de confecção em Toritama
Rosiane Pereira Alves
Laura Susana Duque-Arrazola

A MULHER RURAL NOS ESPAÇOS PÚBLICO E PRIVADO: interfaces


com as políticas de
águas
Roberta Alves dos Santos
Lígia Albuquerque de Melo

AS INTERFACES ENTRE O GÊNERO E A ECONOMIA SOLIDÁRIA NO


ÂMBITO DO ESTADO DA PARAÍBA
Jussara Carneiro Costa
Jaira Alana Claro Pereira
Albertina Felix Cruz

AS MULHERES MARISQUEIRAS: vida e trabalho nas comunidades


ribeirinhas
Vanda Maria Campos Salmeron Dantas

CONHECIMENTO E CULTURA: um olhar de gênero sobre os


conhecimentos tradicionais
Priscila Freire Rodrigues

A GESTÃO SOCIAL TEM DOIS SEXOS


Luciene Assunção da Silva

A DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO E SEUS REBATIMENTOS PARA O


ACESSO DAS MULHERES AOS DIREITOS PREVIDENCIÁRIOS
Amanda Kelly Belo da Silva
Lenilze Cristina da Silva Dias

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADE DE GÊNERO: impactos das


políticas municipais de geração de trabalho e renda para mulheres em
Campina Grande-PB sobre o fenômeno da divisão sexual do trabalho
Ediene Maria Pereira da Silva
Jussara Carneiro costa
Albertina Felix da Cruz

A PARTICIPAÇÃO DA MULHER RURAL NA POLÍTICA DE RECURSOS


HÍDRICOS: a perspectiva ambiental.
Michelli Barbosa do Nascimento
Izaura Rufino Fischer

MULHERES AGENTES PENITENCIÁRIAS: breve estudo sobre a


presença feminina na área de segurança das Unidades Prisionais de São
Luís.
Sheila Cristina Rocha Coelho

O TRABALHO DOMÉSTICO DAS MULHERES CAMPONESAS EM


ATIVIDADES DE PREPARO DE ALIMENTOS: a contribuição para a
melhoria da qualidade de vida de suas famílias
Ivana Leila Carvalho Fernandes

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADE DE GÊNERO: Impactos das


políticas municipais de geração de trabalho e renda para mulheres em
Campina Grande-PB sobre o fenômeno da divisão sexual do trabalho
Jussara Carneiro Costa
Albertina Félix da Cruz
Ediene Maria Pereira da Silva

9 FEMINISMO E POLÍTICA
9.1 Apresentação
REFLEXÕES ACERCA DO PODER, DO PATRIARCADO E DA
CIDADANIA DAS MULHERES
Ana Alice Costa

MULHERES NA POLÍTICA: As filhas herdeiras e a força do nome da


família
Gloria Rabay

ATIVISMO POLÍTICO E VOTO ENTRE OS CONDICIONANTES DA


CARREIRA POLÍTICA DE MULHERES: estudo de caso no Pará
Maria Luzia Miranda Álvares

TRAJETÓRIAS POLÍTICAS DE CANDIDATAS AO CARGO DE


VEREADORAS DA CÂMARA MUNICIPAL DE BELÉM
Luiz Eduardo Santos do Nascimento
Sandra Pereira Palheta

MULHER E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA NAS ELEIÇÕES MUNICIPAIS DE


2008: micro-região de Parupebas
Deyse Soares da Silva Teixeira
Keila Rejane Avelar Araújo
Ticiana Amaral Silva

AÇÃO POLÍTICA DAS VEREADORAS DE IMPERATRIZ-MA


Maria Mary Ferreira
DEMONSTRATIVO QUANTITATIVO DA SITUAÇÃO DAS COTAS
PARTIDÁRIAS NAS ELEIÇÕES MUNICIPAIS DE 2008/ PARÁ
Thiago Paiva Sales

ANÁLISE DO FINANCIAMENTO DE CAMPANHA DAS CANDIDATAS


AOS CARGOS DE VEREADORES (AS) NO MUNICÍPIO DE BELÉMNAS
ELEIÇÕES DE 2008
Murilo Cristo Figueira

MOVIMENTOS FEMINISTAS E PARTIDO POLÍTICOS: Uma Análise


Transversal e Histórica do Sistema Eleitoral e as Candidaturas Femininas
Ana Luiza Coêlho Araújo da Silva Ferreira

JUVENTUDE, POLÍTICA E EXCLUSÃO SOCIAL: uma análise a partir de


jovens feministas no Rio de Janeiro
Simone da Silva Ribeiro Gomes

JOVENS MULHERES FEMINISTAS: Novas articulações?


Celecina de Maria Veras Sales

PARTICIPAÇÃO E TRAJETÓRIA DAS LIDERANÇAS POLÍTICAS


FEMININAS EM CURUÇÁ/PA.
Denise Machado Cardoso
Jamilye Braga Salles

AS MULHERES SEM TETO E AS POLÍTICAS PÚBLICAS NA BAHIA


Luciana da Luz Silva

A CONDIÇÃO FEMININA NA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL: uma


analise a partir dos beneficios eventuais no municipio de Barbalha/CE
Jucinéia Tavares da Silva
Michele Ribeiro de Oliveira

A INVISIBILIDADE DA (DES) IGUALDADE NA LEI


Maria Terezinha Nunes

DEFINIÇÃO DO ESPAÇO DA MULHER: público ou privado


Yasmim Aparecida Rodrigues

MULHER E POLÍTICA: um breve balanço historiográfico na produção do


século XX.
Silvana Oliveira Souza
INTRODUÇÃO

A REDOR E OS ESTUDOS DE GÊNERO NO NORTE E NORDESTE: uma


introdução
Mary Ferreira
Coordenadora da REDOR

A criação da Rede Feminista Norte e Nordeste de Estudos e


Pesquisas sobre Mulheres e Gênero – REDOR em 1992 se deu graças ao
esforço de várias pesquisadoras tendo à frente o Núcleo de Estudos
Interdisciplinares sobre a Mulher – NEIM-UFBA. Ao longo dos últimos 17
anos, esta rede vem empreendendo esforços para dar visibilidade aos
estudos e pesquisas sobre as mulheres por compreender que as mudanças
sociais têm na Ciência um dos caminhos mais férteis. A função da Ciência é
construir saber e para as pesquisadoras feministas a construção deste saber
é comprometido com as mudanças sociais, tendo as mulheres, em diferentes
dimensões e contextos, como sujeito.
É nesta direção que se move a Redor, seu principal foco são os
estudos e pesquisas que buscam responder aos dilemas sofridos pelas
mulheres brasileiras e em especial do Norte e Nordeste. Os esforços
empreendidos por esta Rede no estímulo a formação de novos grupos de
pesquisas tem a perspectiva de ampliar os espaços de discussão e debate,
acerca das questões das mulheres e das relações de gênero.
É uma preocupação presente nos estudos ora apresentado neste
livro resultado dos trabalhos apresentado no XV Encontro de Rede e no IV
Encontro de Pesquisadoras/es Maranhenses sobre Gênero Mulheres e
Cidadania. A importância destes estudos se insere na necessidade e
emergência de transformar a visão ainda patriarcal, que se reproduz em
muitos setores da sociedade que contribui para a permanência de situações
que consideramos inaceitáveis em dias atuais. O exemplo dessa situação
são os indicadores de violência que se repetem no País e em particular no
Norte e Nordeste, cujos dados estão apresentados no Grupo de
Trabalho Gênero e Violência. Esses dados demonstram que, se por um lado,
a sociedade é mais consciente do problema, com a criação da Lei Maria da
Penha, por outro lado, demonstram a necessidade de criar políticas mais
coercitivas e medidas educativas mais intervencionistas para que a
sociedade possa compreender melhor a dimensão do problema.
O problema da violência de gênero se articula com as
preocupações abordadas nos textos sobre gênero e educação ao refletir
sobre como a educação das mulheres no século XIX traduz os modelos de
mulheres educadas para servir e obedecer que irá por sua vez refletir nas
escolhas profissionais e nas dificuldades de se tornarem protagonistas. Os
estudos sobre gênero e educação abrem possibilidade de compreender a
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dimensão do problema e de entender a urgência de investir em programas de
educação de gênero que possam trazer mudanças sociais nas relações de
gênero.
A necessidade de pensar programas educativos para transformar
as relações de gênero perpassa a discussão dos outros grupos de trabalho na
medida em que a educação se constitui uma forma de construir modelos e
padrões que podem tornar a vida das mulheres um espaço de sociabilidade e
de valorização de suas identidades e individualidades. Nesta perspectiva o
Grupo Gênero e Geração apresenta trabalhos instigantes que discute o
sentido de envelhecer onde a juventude é parte das discussões das
pesquisadoras.
A questão de gênero e saúde tem sido uma preocupação das
pesquisadoras/es da Redor que retomam o debate sobre o PAISM que na
década de oitenta e noventa representava um modelo de assistência.
Atualmente o Programa foi transformado em uma política social com
dimensões bem mais ampla, porém, seu funcionamento ainda não apresenta
resultados satisfatórios quando se analisa a precariedade de grande parte do
setor público. O reflexo deste problema pode ser vista pelo
tratamento dado as mulheres em situação de aborto ou ainda pelo número
ainda muito acentuado de gravidez na adolescência.
Nos trabalhos sobre Gênero, Identidade e Cultura observa-se a
diversidade do Norte e Nordeste em retratar uma variedade de estudos que
discute com profundidade o pensamento de negras feministas e a formação
de comunidades étnicas em Manaus, traça o ritual das moças na cultura
Sateré-Mawé e a identidade das mulheres Akwê para se imbricar com
estudos das mulheres pescadoras e sua resistência neste mundo
profundamente masculino, no qual as mulheres, tal qual na política, têm
dificuldade de se fazerem reconhecidas. São dificuldades que estão
presentes no estudo de Elizabeth Abrantes que nos relembra a dimensão do
patriarcado que teve nos códigos civis um instrumento poderoso dessa
relação desigual.
As dificuldades das mulheres no mundo do trabalho são refletidas
por Iraildes Caldas e Milena Barroso no contexto da crise do capitalismo que
se imbrica com as reflexões de Nicole Campos na sua discussão sobre
gênero e dominação masculina. São discussões presentes nos estudos e
pesquisas que enriquece nossas reflexões e contribuem para pensar o
gênero no contexto da cultura.
Ainda na discussão sobre relações de trabalho os trabalhos
apresentados refletem três grandes preocupações: os impactos da crise
contemporânea na vida das mulheres, a invisibilidade do trabalho feminino
que reflete o pouco reconhecimento profissional de algumas categorias e a
necessidade de pensar políticas públicas de sobrevivência das mulheres.
As dificuldades das mulheres de se firmarem em profissões
26
consideradas masculinas, ou a desvalorização das profissões femininas é um
dos eixos que tem em geral, norteado os debates neste campo de saber. Os
estudos apontam uma desigualdade numérica em cargos de direção e uma
persistência na divisão sexual do trabalho.
As narrativas das mulheres, cerceadas no seu direito de
expressar até início do Século XX, são retratadas na literatura através de
vários trabalhos que discute desde a figura de Mônica nos quadrinhos às
memórias de Emily Dickinson, perpassando pela discussão sobre a imagem
da mulher negra ou das mulheres lésbicas em Josué Montelo, para
finalmente discutir as mulheres e sua condição de existência na Amazônia.
Finalmente a ultima parte deste livro trazemos a contribuição do
Grupo Feminismos e Política, cuja preocupação de tornar as questões de
gênero como questões políticas e feministas tem sido um dos horizontes no
qual as pesquisadoras feministas integradas a Redor se preocupam. Essa
preocupação é parte de um pensar inquieto, inconformado com uma
realizada que se quer transformada.
Os trabalhos apresentados retratam formas de desvendar uma
realidade que se mantêm em algumas situações, quase inalterada, como
bem enfatiza Ana Alice nas suas reflexões sobre poder e patriarcado. Ao
trazer a discussão sobre como compreender essas duas categorias Ana Alice
nos ilumina com suas explicações para que se compreenda as inquietações
dos autores como Luiz Eduardo e Sandra, Deyse, Keila e Ticiana, Mary
Ferreira, Tiago, Murilo, Denise e Jamilye que descrevem as dificuldades
políticas das mulheres no Pará e no Maranhão. Esses autores apresentam
dados eleitores que demonstram o quão tem sido difícil a trajetória das
mulheres para ser reconhecidas como sujeito político. Nesta mesma
perspectiva se situa o trabalho de Luzia Álvares que faz uma discussão
profunda sobre os ativismos político de deputadas paraenses e os
condicionantes do voto dessas parlamentares. O trabalho de Luzia Álvares
explica a partir do Pará como se dá a inserção das mulheres na política e as
imbricações que refletem nas escolhas partidárias, considerado em muitas
situações determinantes para garantir a eleição dos deputados e das
deputadas e nos permite compreender a permanência dos indicadores de
representação feminina em instâncias de poder no Brasil em torno de 8,7%,
considerado um dos menores índices em todo o mundo ocidental
Os trabalhos apresentados, refletem os avanços neste campo de
conhecimento cujos resultados pode ser avaliado pela riqueza dos debates e
construções teóricas que analisam em diferentes contextos as lutas das
mulheres para terem reconhecidas seus direitos, para serem valorizadas nas
relações de trabalho, reflete os dramas sofridos nos cotidianos de violência,
as questões de gênero na educação, os protagonismos das mulheres na
política ainda marcado por relações patriarcais, as questões de saúde que se
imbricam com as de identidade e cultura e as muitas formas de expressão que
as mulheres apresentam nas artes, na comunicação e na literatura, onde não
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precisam mais esconder-se em pseudônimos masculinos para garantir a
circulação de sua produção literária. Os tempos mudaram??! Sim, muitas
mudanças se efetivaram, porém, muita estrada ainda há de se percorrer para
que nós mulheres possamos ser reconhecidas nas nossas individualidades.
Um dos exemplos da necessidade de luta constante são os
debates que ora se realizam em torno da Lei Maria da Penha, e sobre a
questão das Cotas para as mulheres na política. Os estudos apontam que é
preciso tornar as cotas nos partidos um instrumento de mudança neste País.
O Brasil é um dos países com os menores índices de representação feminina,
as cotas representam uma saída para inverter essa situação. Alguns pontos
importantes para pensar o problema estão apontados nos estudos
apresentados neste livro.
Ao escolher o tema “A Produção do conhecimento feminista:
memória e ação política na contemporaneidade” buscou-se fazer um
balanço crítico destes estudos no Norte e Nordeste e assim poder avaliar
quais as lacunas que devem ser preenchidas, quais os campos que precisam
ser reforçados, a fim de que as/os pesquisadoras/es que atuam nestes
estudos possam abrir novas frentes de estudos que venham responder as
necessidades da sociedade e em especial das mulheres.
O esforço de fazer este livro será sempre recompensado pelo
número de trabalhos produzidos e pelo nível de debate que estes
textos podem favorecer e estimular nos leitores e leitoras.
Os objetivos que pretendemos alcançar a partir da produção
acadêmica da Redor, entre os quais ressaltamos:
• Estimular o desenvolvimento de pesquisas e estudos
sobre a mulher e gênero, no âmbito regional procurando recuperar as
experiências vividas pelas mulheres das Regiões do Norte e
Nordeste, suas lutas e conquistas por igualdades de direitos e
melhoria da qualidade de vida e cidadania nos vários campos de
atividades em que transita;
• Ampliar os intercâmbios entre o Grupo e as instituições
regionais, nacionais e estrangeiras de Ensino Superior, com o objetivo
de integrar conhecimentos e participação, nessa área de estudos;
• Avaliar a presença da REDOR nos 17 anos de
atividades de aglutinação de pesquisadoras/es do Norte e do
Nordeste.
• Estimular a linha de publicações da REDOR a fim de
proporcionar a produção e socialização de conhecimentos, prevendo
o maior alcance e circulação dos estudos realizados na Região Norte
e Nordeste sobre essas questões.
Este livro é uma forma de tornar este último objetivo uma
realidade haja vista a necessidade de produzir e socializar a produção de
conhecimentos dentro de um campo que a cada dia se renova. Produzir,
publicar e socializar conhecimentos é parte do projeto político da Redor tem
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nos Encontros anuais um momento de avaliação e troca de saberes,
ampliando as fronteiras do Norte e Nordeste, e buscando novos horizontes
capaz de fazer esse conhecimento cada vez mais incorporado às práticas
cotidianas, a fim de contribuir para a transformação das relações de gênero.

Profª. Dra. Mary Ferreira


Coordenadora da REDOR

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GT 1 – GÊNERO E EDUCAÇÃO
COORDENAÇÃO: Profª. Dra. Lígia Pereira Santos – GEPEM/UFPA
APRESENTAÇÃO

As pesquisas do GT Gênero e Educação apresentam


abordagens históricas, sociológicas e educacionais. Os trabalhos esboçam a
trajetória da força do feminismo, tendo como base experiências
educacionais, artísticas e laborativas como elo para compreendermos as
interferências ocasionadas por fatores filosófico-sociais e econômicos nas
construções culturais das relações de gênero. As pesquisas oferecem uma
rica contribuição aos estudos feministas por discutir esteriótipos de “ser
homem” e “ser mulher”, definidos historicamente e culturalmente que se
reproduzem no processo educacional e profissional, expressando a
feminização/masculinização das tarefas e ocupações, determinando a
existência da desigualdade social. As pesquisas impulsionam a posição
feminista na tarefa inadiável de lutar pela construção de uma sociedade
equânime.
Os trabalhos elencados para publicação seguem a ordem de
apresentação, considerando que os quatro primeiros oferecem uma
abordagem histórica, seguidos de trabalhos de abordagens sociológicas.

Profª. Dra. Lígia Pereira dos Santos


Coordenadora do GT

33
ETIQUETA, POSTURA E “BOM-TRATO”: a educação da mulher
ludovicense na segunda metade do século XIX
*
Camila Ferreira Santos Silva
**
Fernanda Lopes Rodrigues
***
Diomar das Graças Motta
INTRODUÇÃO

As questões de gênero, a história e a educação vêm


consolidando como tema a educação feminina. Gênero tem sido utilizado,
desde a década de 1970, para “teorizar a questão da diferença sexual”
(NEUMA, 1997, p. 101). Portanto, utilizaremos o gênero como base para a
análise da relação entre as mulheres e os homens, pois acreditamos que
“nenhuma compreensão de qualquer um dos dois pode existir através de um
estudo que os considere totalmente em separado” (NEUMA, 1997, p. 101).
Pautados nas reflexões teóricas de gênero, analisaremos a
educação feminina, entre os anos de 1850 e 1900, na tentativa de “desvendar
as intricadas relações entre a mulher, a sociedade e o fato, mostrando como o
ser social que ela é articula-se com o fato social que ela mesma fabrica e do
qual faz parte integrante” (PRIORE, 2001, p. 257). Esse estudo baseado na
categoria de gênero serve ainda como uma forma de indicar as “construções
sociais”, isto é, a criação das idéias sobre os papéis próprios aos homens e às
mulheres.
A vida urbana e o aburguesamento da sociedade européia
fizeram com que os homens e mulheres da elite tivessem maior necessidade
de mostrar maneiras polidas, especialmente no século XIX, pelo fato de os
burgueses da época serem tão ricos quanto os nobres ou até mais ricos que
eles, embora nem sempre tendo suas maneiras tão polidas quanto as da
nobreza.
Com isso o século XIX, considerado o século burguês, vai
procurar impor o estilo da burguesia de viver e comportar-se, baseado nos
padrões de etiqueta que vinham sendo desenvolvidos no limiar
da modernidade, acentuando características típicas da vida urbana e com a
separação dos espaços público e privado. Dentro desse contexto, certos
comportamentos europeus “invadiram” São Luís, atuando fortemente em sua
elite.
Nesse contexto, a educação formal era uma maneira de distinção social, ao
possibilitar a aquisição de conhecimentos e modos de conduta que
diferenciavam os sujeitos sociais. Na sociedade ludovicense de elevado grau
de analfabetismo e marcada pelo peso do escravismo, esse privilégio da
educação garantia a manutenção do status quo e reforçava o desprezo das
elites pela população pobre e mestiça que, a seu ver, representava o oposto
do ideal de civilidade.
35
Quanto à educação da mulher, vislumbra-se a tendência à
reprodução de propostas de ordenação e disciplinamento social da época,
"[...] em que a mulher, projetada como responsável pelos destinos da nação,
era incumbida da dupla missão: mãe e mestra" (REIS, 1999, p. 15). O que
leva a educação da época a contribuir para a manutenção de uma forma de
pensar a mulher e sua educação caracterizada pelas relações patriarcais.
Com isso, podemos ratificar o exposto por Louro (2003, p. 77) para quem
[...] a escola como espaço social que foi se tornando, historicamente, nas
sociedades urbanas ocidentais, um lócus privilegiado para a formação de
meninos e meninas, homens e mulheres é, ela própria, um espaço
generificado, isto é, um espaço atravessado pelas relações de gênero.
Na tentativa de apreender o contexto em que se desvelava a
educação feminina em meados do século XIX, utilizamos como fonte os
jornais e revistas da época, que denotavam a tendência a se minimizar a
educação feminina somente à formação da mulher que será mãe e esposa
um dia. Destarte, encaminhamos esse artigo na abordagem do fenômeno
educativo em São Luis, não apenas em seu aspecto formal, sistematizado,
mas especialmente naquilo que caracteriza a educação como um processo
que se desenvolve em vários espaços e não apenas a sala de aula.

EDUCAÇÃO FEMININA: situando a temática


Educar para ir além daquilo que é possível, minimizar as
barreiras das desigualdades e garantir o respeito ao “Outro” se constitui
em um grande desafio. Quanto à educação da mulher, os obstáculos se
referem tanto à democratização da educação, como à mudança cultural no
modo de ver, pensar e conviver com a mulher, refletindo-se nas
concepções e finalidades da educação.
Um percurso ao longo da história da educação comprova o lugar
à parte destinado à mulher, seja na condição de aluna, seja como profissional,
já que “no Brasil, por tradição, homens e mulheres recebem educação
diferenciada, não em respeito às diferenças individuais, mas como uma
espécie de marca ou rótulo que os torna desiguais e lhes destina lugares e
papéis distintos na sociedade” (FAGUNDES, 2005, p. 13).
Tendo em vista que as relações de gênero são relações de poder
e de hierarquia, a educação e o sistema educacional ao ratificarem a negação
da humanidade da mulher diante da suposta superioridade masculina,
trabalham na manutenção/reprodução de uma forma de pensar a mulher
enquanto ser inferior, submisso. Nesse sentido, concordamos com Ferreira
(2007, p. 25) ao conceber que
_____________________________________________________________

*
Licenciada em Historia e aluna do Mestrado em Educação/UFMA
**
Licenciada em Pedagogia e aluna do Mestrado em Educação/UFMA
***
Professora do Departamento de Educação II e do Mestrado em Educação da UFMA.

36
A partir das relações de gênero é possível compreender que a exclusão
das mulheres é uma construção social, ou seja, foram elaboradas e
colocadas em prática na sociedade através de vários mecanismos entre
os quais podemos citar: a educação, a política, a religião, a família, de
forma a hierarquizar, inferiorizar e excluir as mulheres a partir de sua
condição biológica.
Transformar a escola em um espaço de luta por direitos para a
mulher tem estado na agenda do movimento feminista há anos.
Contudo, mesmo com as conquistas alcançadas, esse movimento defronta-
se com uma luta diária para que esses direitos sejam reconhecidos e
respeitados.
Retomamos nesse texto um período histórico marcado pela
demanda social por educação feminina, que levou à entrada de mulheres na
escola, tanto como alunas como professoras.
Ao longo do século XIX, a conjuntura social trouxe diversas
modificações no modo de viver da sociedade brasileira. A consolidação do
capitalismo, o processo de urbanização da sociedade, a ascensão da
burguesia e o surgimento de uma nova mentalidade decorrente dessa
conjuntura, se refletiram na concepção de educação e, em especial, a
feminina. Situação que figurava diferenciações na vivência da vida pública e
privada, colocando os papéis sociais dos membros da família como um
problema para a educação. Contexto no qual a família passa a ser vista de
forma idealizada, onde “um sólido ambiente familiar, o lar acolhedor, filhos
educados e a esposa dedicada ao marido, às crianças e desobrigada de
qualquer trabalho produtivo representavam o ideal de retidão e probidade, um
tesouro social indispensável.” (D'INCAO, 2007, p. 223).
Quando na segunda metade do século XIX inicia-se a entrada maciça de
mulheres na escola para exercer a função do magistério soam críticas quanto
à suposta entrega insana da educação das crianças às pessoas com
“cérebros menos desenvolvidos por falta de uso.” (LOURO, 2007).
Entretanto, havia argumentos que apontavam que a mulher era ideal para o
trabalho com as crianças, pois essa atividade se assemelhava à exercida nos
lares, tornando a escola uma extensão da casa.
A educação da mulher seria feita, portanto, para além dela, já que sua
justificativa não se encontrava em seus próprios anseios ou
necessidades, mas em sua função social de educadora dos filhos ou, na
linguagem republicana, na função de formadora dos futuros cidadão
_____________________________________________________________

1
Compreendemos relações de gênero, na perspectiva de Ferreira (2007, p. 25), como “mecanismos que
explicam a opressão das mulheres e de como esta opressão reflete na vida, nos corpos, na mente
interferindo diretamente no cotidiano de mulheres e homens, reproduzindo-se em muitas situações que
passam a ser consideradas como verdade, como correto, como determinantes nos comportamentos
sociais e a partir deles passam a considerar a mulher como inferior”. Com isso, apreende-se que gênero é
uma categoria histórica que trata da construção social do masculino e do feminino. Nesse estudo,
abordamos apenas a questão do feminino.

37
(LOURO, 2007, p. 447).
Se por um lado, a educação feminina não poderia ser concebida
sem uma sólida formação cristã, por outro, alguns seguidores das idéias
cientificistas e positivistas alegavam uma educação que, ligada à função
materna, também afastasse crenças tradicionais, incorporando as novidades
das ciências. Contudo, o fio condutor dessa educação continuava
sendo as antigas concepções que definiam o que era “ser mulher”. Com isso,
acatava-se que a mulher deveria ser mais instruída do que educada,
prevalecendo questões morais.
Mesmo que essas sejam as principais concepções, não podemos
generalizar as questões referentes à educação da mulher, já que foram
múltiplas as determinações nas formas de conceber essa educação.
No século XIX, ressalta Muller (1999), que movimentos como as
campanhas abolicionista e republicana, ao atualizarem os ideais de liberdade
e igualdade, abriram um campo fértil para a defesa da educação da mulher e
de sua participação mais ativa na sociedade. Contudo, os liberais clássicos
não advogavam em defesa de uma educação voltada para a emancipação da
mulher, mas para um melhor preparo para o desempenho de suas funções
enquanto “mãe e esposa”.
Como se vê, o acesso à educação, mesmo que em mínimas
condições, não foi uma conquista fácil para as mulheres. A primeira lei de
instrução pública do Brasil, de 1827, estabelecia a criação de escolas de
primeiras letras - único nível em que as mulheres poderiam chegar - em todas
as cidades, vilarejos e lugares mais populosos do Império, mas como é de
praxe, o fato da educação não ser colocada como um problema nacional de
primeiro grau dificultava a concretização dessa prescrição legal. Ressalta-se
que o texto da Lei justificava a educação da mulher a partir da maternidade, já
que
As mulheres carecem tanto mais de instrução, porquanto são elas que
dão a primeira educação aos seus filhos. São elas que fazem os homens
bons e maus; são as origens das grandes desordens, como dos grandes
bens; os homens moldam suas condutas aos sentimentos delas (BRASIL,
1927 apud LOURO, 2007, p. 447).
Situação que não era favorável nem mesmo para as mulheres da
elite, cuja instrução se dava com vistas à qualificação para um bom
casamento, sendo esse, por vezes, apenas um acordo político. Condição em
que
[...] a mulher de elite, mesmo com certo grau de instrução, estava restrita à
esfera do privado, pois a ela não se destinava a esfera pública do mundo
econômico, político, social e cultural. A mulher não era considerada
cidadã política” (FALCI, 2007, p. 251).
As mulheres que “fizeram história” foram silenciadas ou
apagadas da história da educação, a exemplo da professora Maria Firmina
38
dos Reis. No texto exposto por Mário Meireles (2008), onde cita os grandes
nomes que lançaram o Maranhão à Atenas Brasileira, a única mulher que
merece registro é Paula Duarte, mesmo estando o nome dessa mulher “entre
os menores”, como adverte o autor.
As primeiras Escolas Normais, abertas para ambos os sexos,
faziam a distinção entre meninos e meninas nos espaços físicos, já que os
alunos ficavam em classes separadas por sexo. Esses estabelecimentos
surgiram como alternativa para a instrução feminina diante da necessidade
de mão-de-obra para a expansão da escola elementar. Voltada,
principalmente, para as jovens de parcos recursos, a Escola Normal era o
espaço que lhes destinava a uma profissão.
A inserção feminina no magistério se deu como resposta às demandas do
projeto liberal republicano de universalizar a escolaridade, a força da
religião na modelagem de corpos e almas e o indiscutível e controverso
poder atribuído às mulheres no ambiente escolar, que teve sua gênese
logo após a República, em finais do século XIX e se solidificou nas
décadas seguintes (ALMEIDA, 2004, p. 63).
A pretensão de formar homens e mulheres para o magistério
entrava em conflito com os relatórios que indicavam haver um maior número
de mulheres ingressantes e se formando nesses cursos, o que caracteriza o
processo de feminização do magistério.
A partir de então passam a ser associadas ao magistério características
tidas como 'tipicamente femininas': paciência, minuciosidade,
afetividade, doação. Características que, por sua vez, vão se articular à
tradição religiosa da atividade docente, reforçando ainda a idéia de que a
docência deve ser percebida mais como um “sacerdócio” do que como
uma profissão. Tudo foi muito conveniente para que se constituísse a
imagem das professoras como 'trabalhadoras dóceis, dedicadas e
pouco reivindicadoras' o que serviria para lhes dificultar a discussão de
questões ligadas a salário, carreira, condições de trabalho etc. (LOURO,
2007, p. 450).
Diante dessa situação, citemos que o magistério foi para as
mulheres do século XIX, uma oportunidade de trabalho, mesmo quando era
visto como “um valioso estágio para o casamento e a maternidade”.
A entrada das mulheres na escola e no mercado de trabalho se
intensifica a partir do século XX, mas suas características iniciais tornam essa
entrada eivada de desigualdade quanto às possibilidades escolares e pela
não miscibilidade das profissões.
Interessa-nos nesse texto, ponderar sobre a educação da mulher
da elite ludovicense entre os limites e as possibilidades da conjuntura
ideológica, social e política marcada pela misoginia, cuja educação se
limitava a ser uma extensão da formação para a maternidade e o papel de
esposa, traduzindo-se em uma educação voltada para refinamento dos
39
modos de comportamento.
SOBRE A “ARTE DE BEM CIVILIZAR-SE”: a educação feminina
ludovicense na segunda metade do século XIX.
O Estado do Maranhão, segundo Meireles (2008), teve um amplo
enriquecimento material e aprimoramento intelectual com a instituição da
Companhia Geral do Comércio do Grão-Pará e Maranhão (1755-1778) e viu
surgir no século XIX uma elite latifundiária e uma nobreza rural que
concederia à província uma posição de primeiro plano no cenário nacional.
Riqueza construída sobre os ombros do negro escravo, que seria abalada
quando da abolição da escravidão que “[...] fez desmoronar, de um golpe, o
edifício de nossa economia, e tão ruinosamente, que não podemos restaurá-
lo até hoje.” (MEIRELES, 2008, p. 248).
São Luís cresceu consideravelmente no século XIX em
decorrência da entrada de africanos escravizados, transferência de famílias
do interior para a capital, especialmente na época da Balaiada, devido à
insegurança que se alastrou ainda mais nas áreas rurais, mais carentes dos
aparatos de policiamento e justiça que a capital, além do natural crescimento
vegetativo. Com esse crescimento urbano, homens e mulheres tiveram que
se adaptar à vida na cidade, que em vários aspectos diferenciava-se da vida
rural, principalmente no que diz respeito à sociabilidade destes.
Com o crescimento das cidades e a alta influência dos modelos
europeus tornou-se cada vez mais necessário a mudança na
aparência, principalmente da elite, através da moda, acarretada pela
concorrência entre as famílias, que de todas as maneiras objetivava mostrar o
seu alto poder aquisitivo, por meio do consumo de bens e o requinte das
maneiras, instrumentos que davam respeitabilidade à elite (MELLO; SOUZA,
1987).
A corte do Rio de Janeiro era a irradiadora dos modelos
socioculturais vindos da Europa, arrogando-se o papel de informar os
“melhores hábitos” de civilidade, aliado à importação dos bens culturais
reificados nos produtos europeus, principalmente franceses e ingleses. Era
também onde se concentravam um maior número de nobres, haja vista a
proximidade e a convivência com a Corte Imperial, levando à disseminação
dos manuais de etiqueta e bom tom para serem consumidos pela elite
(SCHWARCZ, 1998). Esses modelos chegavam a diversas províncias e o
Maranhão era uma dessas que os incorporavam.
A transferência desses modelos para São Luís pode ser
visualizada a partir da literatura da época, dos artigos dos jornais locais, das
revistas e dos anúncios veiculados na imprensa. Estes eram alguns
mecanismos por onde perpassavam os efeitos e imagens da civilização e dos
símbolos a serem consumidos pelos ludovicenses, especialmente a elite.
Como explica Schwarcz (2002, p. 201), “[...] a civilização leva sempre à
restrição dos costumes, e não ao objeto oposto, e a dificuldade está em evitar
40
o gesto natural, conter as manifestações imediatas”. Isso significa impor
modelos de conduta e etiqueta à sociedade, disciplinando e regulando as
manifestações dos sentimentos e desejos. Os manuais de etiqueta do século
XIX ensinavam desde os hábitos à mesa, passando pela arte de
cumprimentar, cortejar, comer, beber, vestir-se, dançar e falar em público.
O vocabulário da elite ludovicense também sofreu alterações
após a explosão da cultura francesa pelo mundo. Em jornais e revistas
apareciam comumente palavras, poesias e frases em francês. A Biblioteca
Pública possuía um grande acervo de livros em francês e inglês vindos
diretamente da Europa, o que indica que nesse período havia
leitores que possuíam conhecimento suficiente de tais línguas.
Nos jornais e revistas haviam também artigos completos em
francês e artigos que tratavam da importância de Paris para a intelectualidade
e para a civilização, como é o caso da Revista Elegante, onde Paris aparece
como “capital sagrada, superior, soberba e coração do mundo”. Assim como a
Revista Elegante a maioria dos jornais tratava do exemplo de Paris como
modelo de civilização de onde partiam todas as noções de elegância e bom-
tom. Essa civilização pregada pela França “[...] constitui um contraconceito
geral a outro estágio da sociedade, a barbárie” (ELIAS, 1994, p. 62).
D'Incao (2007) pontua que, qualquer tipo de expressões de
relações sociais que não fossem consideradas civilizadas, na perspectiva
européia, era combatida pela imprensa e proibida por leis. As políticas de
saneamento e de higienização das cidades e das pessoas que faziam à
cidade concretizaram a busca por esse ideal. Na tentativa de europeizar São
Luis, o genocídio cultural e físico dos negros escravizado ou não, como
também dos indígenas, era uma estratégia de manutenção de uma nação
européia no continente americano. Sonho que não se realizou, mas que
deixou suas marcas no imaginário coletivo brasileiro.
Nas escolas de São Luís, especialmente as particulares, aos
rapazes e moças eram ensinados os modos de comportar-se em todas as
ocasiões de suas vidas sociais. Dunshee de Abranches (1992) aponta que
essas escolas prepararam gerações de moças bem educadas e contrárias
aos costumes “grosseiros” do período colonial. Essa fineza das mulheres era
notada em certos salões, onde luxo e a elegância consorciavam-se com as
mais requintadas exibições artísticas vindas da Europa ou mesmo locais.
Com isso, podemos referendar o exposto por Fagundes (2007),
para quem a educação, como um ato político, assume um compromisso com
a formação da identidade feminina, com a modelagem das personalidades,
onde se é determinado o que é certo e o que é errado, o que é permitido e o
que é proibido, em suma, o que é ser mulher em determinado
período histórico. Se considerarmos que a identidade feminina seja o
resultado da interação entre a consciência de pertencer ao sexo feminino e as
conseqüências sociais concretizadas nas relações sociais de gênero,
41
podemos inferir que a educação, nesse contexto, estar a reproduzir um
conceito de ser mulher, pois “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”, na
perspectiva de Simone de Beauvoir.
Assim,
Para as filhas dos grupos privilegiados, o ensino da leitura, da escrita e
das noções básicas de matemática era geralmente complementado pelo
aprendizado do piano e do francês que, na maior parte dos casos, era
ministrado e suas próprias casas por professoras particulares, ou em
escolas religiosas. As habilidades com a agulha, os bordados, as rendas,
as habilidades culinárias, bem como as habilidades de mando das criadas
e serviçais, também faziam parte da educação das moças; acrescida de
elementos que pudessem torná-las não apenas uma companhia mais
agradável ao marido, mas também uma mulher capaz de bem representá-
lo socialmente (LOURO, 2007, p. 446).
Para D'Incao (2007), a instrução da mulher burguesa servia,
ainda, para a nova função das mulheres casadas, ao contribuir para o projeto
familiar de mobilidade social através de suas posturas nos salões como
anfitriãs e na vida cotidiana. Assim, pode-se dizer, conforme essa autora, que
os homens eram dependentes das imagens que suas mulheres podiam
traduzir para as demais pessoas, constituindo-se, logo, em um capital
simbólico.
As mulheres da elite foram elogiadas por estrangeiros que
visitaram a cidade de São Luís, destacando seu comportamento refinado.
Alcide d'Orbigny, que esteve na cidade em 1832, destacou a existência de
inúmeras casas francesas e inglesas e fez elogios à classe social dominante:
A população branca do Maranhão é, verdadeiramente, notável, pela
elegância, de seus modos e sua educação esmerada. Não só a riqueza da
região, o desejo de imitar os costumes europeus [...] mas também, e
principalmente, a liberdade, a boa educação, a polidez e a douçura das
maranhenses, contribuíram para tornar aquela cidade um dos lugares do
Brasil onde é mais agradável a permanência. Quase todas educadas, as
jovens maranhenses levam consigo, o gosto pelo trabalho e pela ordem e
hábitos de reserva e discrição [...] Quanto aos jovens, quase todos
mandados a bons colégios da França e da Inglaterra (D'ORBIGNY,1832,
apud CALDEIRA, 1991, p. 27).
As representações do feminino na sociedade brasileira,
conservadora e patriarcalista do século XIX, estavam relacionadas ao espaço
privado, ou seja, ao ambiente doméstico. Já o homem pertencia ao espaço
público, ao ambiente de trabalho e de intelecto. Essa sociedade de
características patriarcais, onde o homem era o mandatário, o centro da
família, também era o principal irradiador da imagem feminina, tornando a
“mulher uma criatura tão diferente dele quanto possível. Ele, o sexo forte, ela
o fraco; ele o nobre, ela o belo” (FREYRE, 2002, p. 805).
42
Na segunda metade do século XIX em São Luís as idéias
estereotipadas sobre as mulheres, presentes em jornais da época,
especialmente nos de caráter religioso, recreativo e literário, e os dedicados
ao público feminino, apresentavam as mulheres como seres amáveis,
frágeis, inferiores, submissas, sendo essas características “naturais” ao sexo
feminino. Essa deveria confinar-se no espaço privado, no lar, pois era
entendida como símbolo da fragilidade que deveria ser protegida do mundo
exterior, da vida pública. O público era o espaço da política e da economia e
as mulheres eram totalmente retiradas desses espaços considerados
inadequados a elas, tais como: bancos, eleições, muitas vezes bibliotecas,
grandes mercados, etc., ficando confinadas somente à casa.
Essas características eram balizadas pelas análises filosóficas,
tais como o positivismo, e científicas da época. Muitos estudos científicos do
século XIX afirmavam a inferioridade da mulher, comparando-a com uma
criança que deveria estar sempre aos cuidados de um pai, marido ou irmão.
Tudo isso levava mais ainda à submissão da mulher perante o homem,
disfarçada pela veneração à mulher sexo frágil, doce, enfim, ao “belo sexo”.
O lar, as atividades domésticas, enfim, o cuidar da casa, do marido e dos
filhos era o espaço freqüentado pelas mulheres, principalmente as ricas.
Vivendo sempre à sombra do marido, as mulheres tinham uma vida pública
restrita às missas e festas da Igreja e seus contatos eram somente com filhos,
empregados, escravos e, ainda, com o confessor. O seu papel era o de parir e
criar os filhos, sem liberdade alguma de exercer sua sexualidade, pois era
considerada assexuada. Essa “possibilidade do ócio entre as mulheres de
elite incentivou a absorção das novelas românticas e sentimentais
consumidas entre um bordado e outro, receitas de doces e confidências entre
amigas” (D'INCAO, 2000, p. 229). Enquanto isso, o homem tinha total
liberdade, ação política e social, representando a ciência, a força, o gosto pela
leitura e com isso garantindo a continuidade do poder patriarcal da sociedade.
Se por um lado, o século XIX reforçou e aperfeiçoou a idealização
da mulher-mãe, da mulher submissa, também foi o período marcado pela
saída de muitas mulheres das camadas médias do espaço restrito do lar,
alcançando o mercado de trabalho em profissões liberais, níveis de estudo
mais avançados, inclusive no ensino superior, além da luta pelos direitos civis
e políticos, especialmente o direito de voto (HALMER, 1993).
As transformações que aconteceram no cenário urbano
ludovicense e o aparecimento de teatros, clubes para festas, confeitarias,
praças, além do melhoramento das festas religiosas que já aconteciam na
cidade, propiciaram o aparecimento da mulher na vida pública.
Para freqüentar esses saraus, jantares, bailes e, até mesmo as missas,
as moças tinham que saber de que forma iriam portar-se à mesa, sentar-se, vestir-se
e dançar adequadamente nestas ocasiões. Para isso, a educação dessas mulheres
era essencial, pois para freqüentarem esses novos espaços de sociabilidade teriam
43
que ter um mínimo de instrução escolar, além das chamadas prendas sociais que
poderiam ser obtidas tanto no espaço doméstico como no escolar. A educação era
“um complemento da formação feminina, isto é, uma espécie de acréscimo aos dotes
e prendas já adquiridos pela mulher” (BERNARDES, 1988, p. 27), pois além de
bordar, cozinhar e comandar a casa a mulher teria também que entender, ainda que
de forma superficial, de história, aritmética, geografia e francês, língua que estava em
voga no século XIX.
Nas escolas femininas, “As meninas internas participavam de
refeições, como se fossem banquetes de cerimônia, para que se
habituassem 'a estar bem à mesa e saber como se deveriam servir as
pessoas de distinção'” (ABRANCHES, 1992, p. 97). O autor dá como exemplo
dessa prática a escola Nossa Senhora da Glória, criada em 1844 por dona
Martinha Abranches, que servirá de modelo para tantas outras escolas
particulares dedicadas às moças, o que mostra a grande preocupação da
elite ludovicense em adequar-se as formas de etiqueta utilizadas nos países
europeus.
Essas exigências de comportamento e educação eram feitas nos
próprios convites de bailes, de teatro e de outros espaços onde a elite
ludovicense mostrava todo o seu requinte. Como por exemplo, no baile
oferecido pela Sociedade Empreendedora
BAILE CAMPESTRE
Que principiará depois das 7 horas. Advertindo que os bilhetes para a
dança, só serão conferido às pessoas, que a par de uma boa educação,
tenham na sociedade uma posição que estejam em harmonia com o
melindre indispensável a uma associação de baile (PUBLICADOR
MARANHENSE, 25/09/1871).
Exigência que servia tanto para homens quanto para as
mulheres, porém a exigência de uma boa educação, delicadeza nos gesto e
elegância eram características preciosas para a reputação de uma mulher da
elite, que supunha estar a par das novidades de etiqueta chegadas da
Europa.
Todas as fases da mulher eram marcadas por controle e
disciplina. Na infância a mulher era moldada tanto pela família quanto pela
escola, esta última em menor proporção devido ao pequeno número de
mulheres nas escolas, onde trataria de assimilar os tais comportamentos
femininos e suas atribuições enquanto filha, esposa e finalmente mãe.
Quando casada deveria ser prendada e dotada de um comportamento fino e
doce, tornando-se um bibelô a quem o marido poderia exibir a sociedade. Na
maternidade, fase sagrada da mulher em que era comparada a Maria, mãe de
Jesus, tinha a obrigação de passar a melhor educação aos filhos, tanto a
educação moral quanto a espiritual.
O desenvolvimento do estado foi fundamental para a conquista
do título de Atenas Brasileira, já no segundo Reinado. Título dado aos
44
homens brancos da elite que puderam ter uma formação qualificada na
Europa, enquanto suas conterrâneas estudavam sozinhas, recebiam as
instruções básicas em casa por uma mestra particular ou adentravam escolas
cuja qualidade era questionada.
Assim, na segunda metade do século XIX, cresceram as oportunidades
educacionais para as mulheres, com o aumento das escolas para
meninas e a criação das Escolas Normais, embora muitas jovens ainda
continuassem a receber, por muitos anos, uma instrução sumária em
casa ou em escolas particulares, algumas orientadas por religiosos e
outras dirigidas por estrangeiras (FAGUNDES, 2005, p. 52).
Atendimento que, no entanto, não era suficiente para a demanda
colocada. Telles (2007) resgata que, em meados do século XIX, São Luis era
culturalmente dominada por latinistas e helenistas de valor, mas a situação do
ensino era precária. Segundo essa autora, ao considerarmos o número de
alunos de aulas públicas e particulares na Província em 1857, havia 1849
meninos e 347 meninas cursando o primário e uns 200 alunos no secundário.
Como se observa, as oportunidades de estudo para as moças eram mínimas.
O conteúdo ensinado nas escolas maranhenses era baseado nas
necessidades da elite dominante, que por sua vez inspirava-se na cultura
européia. A Europa nesse momento vivenciava a industrialização, o trabalho
assalariado, em que o trabalhador necessitava de conhecimento para inserir-
se no mercado de trabalho, e suas características eram totalmente citadinas.
O ensino primário, portanto, também visava atender esse público trabalhador.
Enquanto isso, o Maranhão vivenciava o “colonialismo”, o trabalho escravo,
que, no entender das elites, não necessitava de técnicas de aprimoramento
dos serviços, e suas características eram totalmente rurais. Sendo assim, o
modelo do ensino europeu, muito mais avançado, não correspondia à
realidade do Maranhão e matérias como latim, francês, inglês, que eram
aplicadas nas escolas objetivavam principalmente atingir o público da elite,
para a exibição de erudição ou mesmo servindo para os filhos de famílias
abastadas que iriam terminar os estudos no exterior.
No final do século XIX a instrução era obrigatória e o ensino livre.
Foram tentadas algumas saídas para que o número de alunos matriculados
aumentasse, a exemplo da criação de aulas noturnas e de uma escola
normal, por iniciativa da Sociedade 11 de Agosto, criada em 1870. Porém, o
curso normal não prosperou restando somente as aulas noturnas.
Ainda segundo Elizabeth Abrantes, o quadro da organização
escolar do Maranhão no final do século XIX encerrava-se com uma grande
defasagem no número de meninos e meninas entre 6 e 14 anos existentes na
Província e aqueles matriculados nas escolas elementares. No ensino
secundário, o abismo social era muito maior. Diversas medidas foram
tomadas para a inserção das crianças nas escolas, cujas matrículas eram
reduzidas. Porém, o incentivo para a educação masculina era muito maior do
45
que a educação feminina. À mulher restava uma educação doméstica, sendo
que uma instrução mais elevada, incluindo conhecimentos da literatura,
história e ciência, poderia ser obtida nas escolas particulares, portanto, para
as mulheres da elite.
A escola secundária também foi alvo do governo provincial. O
Liceu Maranhense foi fundado em 14 de fevereiro de 1839, com o objetivo de
reunir as aulas régias avulsas que existiam em outras cadeiras, possuindo um
currículo de caráter literário. Este foi o primeiro colégio público para o ensino
secundário, embora somente masculino. Os alunos do Liceu eram
preparados para seguir carreiras de nível superior.
Na segunda metade do século XIX aumentaram na capital o
número de escolas secundárias particulares, incluindo as escolas para
mulheres, aumentando também a proporção de alunas matriculadas nestas
escolas. As filhas de famílias abastadas poderiam escolher entre diversos
colégios com educação voltada para o sexo feminino, tais como: N. S. da
Glória, N. S. de Nazaré, N. S. da Soledade, Santa Isabel, Sagrada Família,
Santa Ana (ABRANTES, 2002).
As jovens que possuíam recursos para pagar essas escolas
obteriam uma educação um pouco mais elevada do que a oferecida pelo
poder público, embora a preocupação desse ensino fosse com a aquisição
das chamadas 'prendas de salão' e estivesse aquém da educação oferecida
aos homens.
O ensino oferecido a essas mulheres bem como a mentalidade
vigente que não aceitava uma educação para seguir uma carreira
profissional, com exceção do magistério, fazia com que não pudessem
sequer aspirar ingressar no ensino superior, tal como os homens após o
ensino secundário. Quanto às meninas pobres, restava basicamente o
ensino de primeiras letras em instituições como recolhimentos e asilos
(ABRANTES, 2002).
Neste sentido, a partir dos últimos anos do século XIX houve o
aumento relativo no número de vagas para mulheres, a ampliação das
disciplinas e, ainda, o direito delas estudarem em salas juntamente com
homens, embora os conteúdos ainda objetivassem limitar as possibilidades
de crescimento intelectual que levassem uma possível independência
profissional.
Conteúdos estes que eram mantidos pelo discurso que ganhava
terreno na época, de que a mulher não necessitava de instrução escolar, pois
“As mulheres deveriam ser mais educadas do que instruídas” (LOURO, 2007,
p. 446), dando-se ênfase somente a formação moral, ao caráter e ao
comportamento da mulher, ou seja, aos homens se instruía para desenvolver
a inteligência e às mulheres se educava para desenvolver o caráter.
_____________________________________________________________

2
“A chamada família patriarcal brasileira, comandada pelo pai detentor de enorme poder sobre seus
dependentes, agregados e escravos, habitava a casa-grande e dominava a senzala”. (PRIORE, 2007, p.
223)

46
A razão para o incentivo a um baixo nível de escolarização para
as mulheres se dava, algumas vezes, pelo fato de que a mesma adquiriria um
aspecto “masculinizante” por meio do estudo excessivo e perderia a sua
“essência”.
Como se vê, a trajetória da educação feminina é um símbolo de
resistência e de luta, onde as mulheres saíram de uma educação superficial,
no lar e para o lar, passando por uma tímida inserção nas escolas
públicas mistas do século XIX e um acesso cheio de obstáculos docência do
ensino superior, para, atualmente, representarem a maioria dos discentes em
todos os níveis.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na segunda metade do século XIX, a população ludovicense
deparou-se com um cenário de modificações na infra-estrutura, tais como os
investimentos públicos e privados nos setores de transporte, limpeza,
iluminação, abastecimento de água, instalação de bancos, bibliotecas,
gabinete de leitura, buscando com isso tornar-se uma cidade mais higiênica,
confortável e salubre aos olhos da elite. Além disso, teve-se a ampliação dos
espaços de sociabilidade, saraus, bailes, festas entre outros espaços,
mudando a vivência dos homens e mulheres nesse novo cenário.
A educação na escola e no lar foram os maiores responsáveis
pela adequação dos comportamentos da elite ludovicense com os do
estrangeiro. As escolas, principalmente as particulares, focavam o ensino
feminino no comportamento refinado, na etiqueta. E a família, reafirmava
esse tipo de educação dentro do lar, pois os afazeres domésticos tais como,
cozinhar, costurar, bordar, etc., estavam sempre direcionados às mulheres,
tratando da adequação aos modelos importados da Europa definindo formas
de se portar diante do mundo e das pessoas enquanto mulher. Nesse sentido,
essa adequação definia não apenas a identidade da mulher da elite diante do
homem, mas também dessa mulher diante da pobre, da negra, da indígena e
daquelas que professavam outro tipo de religião.
Pudemos observar neste trabalho, que o discurso civilizatório
estava presente em todas estas mudanças que estavam ocorrendo no
comportamento dos ludovicenses. A elite, principal alvo e também promotora
dessas mudanças, tinha a preocupação em tornar a cidade e os seus modos
“civilizados” e “modernos” dentro dos padrões da época, mesmo que
mantendo entraves a esse ideal civilizatório, como a escravidão.
Com isso, a educação cumpre a função de
manutenção/reprodução de posturas ideológicas que negavam os direitos da
mulher. Essa realidade ainda continuaria por muito tempo, sendo contestado
com vigor na década de 1960 pelos movimentos femininos. Contudo muito
ainda há por fazer e espaços por se conquistar.
A educação pode e deve ser um espaço de contra-ideologia,
empreendendo esforços para que a mulher seja respeitada em seus direitos e
tratada com dignidade.
47
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Paulo: Contexto, 2007. p. 401-442

50
O RECOLHIMENTO DO SANTO NOME DE JESUS: casando ou
educando mulheres para o trabalho
Ivani Almeida Teles da Silva

INTRODUÇÃO
Apropriando-me da idéia de Escavon (1999, p.131) de que a
historiografia é um conjunto de escritos sobre determinado tema, a partir de
um ponto de vista histórico, portanto uma posição historiográfica implica em
uma concepção filosófica da história por onde se constitui e como se constitui
o conhecimento histórico, podemos afirmar que a produção historiográfica
vem passando por um revisionismo das perspectivas anteriores por se
reconhecer que longe de incluir determinadas temáticas e atores sociais, a
produção historiográfica em busca de interpretações totalizadoras e
generalizantes não conseguiu dar conta dos muitos questionamentos e
transformações que atores e atrizes sociais imprimiram no real, nas relações
sociais no decorrer do tempo.
Partindo desse principio de que os fatos históricos podem ser
revisitados a partir de novas metodologias, concepções teóricas e novos
questionamentos e que nenhuma forma de olhar, como afirma Almeida
(2005), pode ser considerada definitiva e nenhuma explicação, por mais
abrangente e genial que possa parecer, dará conta da integralidade daquilo
que se deseja explicar, revisitamos os documentos da Santa Casa de
Misericórdia da Bahia para pensar como o recolhimento de mulheres do
Santo Nome de Jesus, como espaço educacional contribui para formação de
um ideal de mulher desejado pela sociedade da época.
Ao mesmo tempo em que revela que os estudos sobre recolhimentos
de mulheres, principalmente na Bahia, ainda são incipientes e pouco
estudados como um caminho para entendermos como esses espaços foram
utilizados para pensar as mulheres.
O SANTO NOME DE JESUS
Em 1618 incorporando o compromisso que estava em vigor na
Misericórdia de Lisboa, era previsto a possibilidade de um recolhimento de
donzelas, o Provedor João de Mattos Aguiar, ao falecer, em 26 de maio de
1700, determinou através do seu testamento a fundação de um Recolhimento
de Mulheres donzelas na cidade de Salvador, deixando para tanto, como
testamentária e principal herdeira de seus bens a Irmandade da Santa Casa
de Misericórdia da Bahia.
A esta construção foi destinado, além de outros bens, a quantia
de 40:615$300. Cabendo a Santa Casa a escolha do local e a “eleição da
qualidade das mulheres, e a forma e a ordem do recolhimento; 135:470$280
para dotes das internas por ocasião do casamento; 6;400$00 para
esmolas”(Costa,2001,p.180). A Irmandade da Santa Casa, como tal,
endereçou uma suplica ao Rei D.João VI, para consentir na fundação do
51
recolhimento, e conceder-lhes igualmente não só a mesma proteção, como
gozo dos privilégios outorgados ao da Santa Casa de Lisboa.
Em 2 de abril de 1704, obteve a mesma deferimento do Rei
D.João VI para que se fundasse o recolhimento, contanto que nunca
mudasse de natureza e fosse instituído em um lugar que não prejudicasse o
bem público, assim como deveria apresentar proporções para receber um
número de recolhidas, cuja doação de João de Matos de Aguiar comportasse.
Acrescentando, ainda, que o dito recolhimento deveria servir não apenas as
mulheres honradas, mas também as casadas, cujos maridos, tendo de
ausentar-se da cidade, precisassem deixar as suas mulheres.
Em 1 de junho de 1716, decidiu a Mesa dar a Instituição o nome
de Recolhimento do Santo Nome de Jesus, inaugurando-o em 29 de junho do
mesmo ano, o prédio, era “insigne pelo instituto e pela grandeza/.../é de três
sobrados, e em todos tem muitas instancias, celas, dormitórios, e janelas com
dilatadas vistas para o mar. Por baixo lhe ficam as oficinas grandiosas”,
Damázio,. Para dirigi-lo foi determinado que a regente fosse
mulher branca, cristão-velha, de idade, de boa reputação e posição social
adequada e poderia ser recrutada entre as recolhidas. Além delas, as mestras
e porteiras poderiam ser as moradoras do recolhimento ou contratadas pela
casa para preencher os cargos caso não houvesse recolhidas que
satisfizesse os critérios impostos pela Instituição.
É interessante notar que ao aceitar o pedido de D. João VI de dar abrigo às
mulheres cujos maridos tivessem que se ausentar a Santa Casa destoou do
compromisso de Lisboa que previa uma clientela “órphã, que não tenha maior
idade que 20 annos, nem menos que 12, por ser este de maior perigo” .
A entrada de mulheres tão jovens em recolhimentos ou conventos
revela a preocupação da sociedade colonial na guarda da mulher como
garantia da manutenção da sua honra e fidelidade, atributos que deveriam ser
caros ao gênero feminino. Segundo Russel – Wood (1981) as mulheres
portuguesas eram as mais guardadas da Europa. Sendo as mulheres
virtuosas liberadas para sair de casa apenas três vezes durante toda a vida:
para o batismo, o casamento e o enterro. Tal mentalidade também se
estabeleceria em seu império ultramar. Na Bahia colonial, segundo o mesmo
autor, as mulheres brancas só saiam de casa para ir à missa aos domingos .
Para tanto zelo, não era a toa que os conventos e mais tarde
recolhimentos fossem um lugar tradicional de reclusão das mulheres da
colônia, inicialmente das filhas das famílias brancas, de melhores condições.
Para além do zelo, estes espaços também devem ser vistos como espaços de
_____________________________________________________________

3
Esse artigo faz parte dos meus estudos de mestrado e continuação da minha monografia de
especialização: Representação da Civilidade Feminina Bahia no século XIX: A Revolta das Recolhidas do
Santo Nome de Jesus em 1858, apresentada no NEIM - Núcleo de Estudos Interdisciplinares Sobre as
Mulheres, em 2006.

52
formação da mulher.
Se inicialmente, a formação da mulher ficou a cargo da família,
especificamente da mãe que deveria ensinar a essa menina os
requisitos necessários para o desempenho da função de mãe e esposa. Mas
tarde, a partir do século XVIII, e na Bahia no XVII, com o Convento do
Desterro, os conventos e recolhimentos tornaram-se as instituições
apropriadas para a “educação feminina”. Segundo Algranti (1993, p.25), com
o objetivo de prover uma vida virtuosa a algumas mulheres, os colonos
solicitavam constantemente a Coroa autorização para erguerem capelas,
ermidas, ou recolhimentos com fins assistenciais ou religiosos, pois viam
nesses espaços, local para educação moral e religiosa de suas filhas até
tomarem algum estado, de acordo com o desejo dos pais de terem uma boa
religiosa formada e dedicada a Deus ou uma mulher virtuosa para casar.
E nesse sentido o Recolhimento do Santo Nome cumpre uma dupla função:
dar possibilidades de um grupo de mulheres brancas socialmente
remediadas ou pobres de casar, dando para tanto as condições necessária
para que pudessem ser vistas como mulheres recolhidas serem brancas, em
respeito ao pedido do seu idealizador, em idade de casar. As beneficiadas, em
primeiro lugar, deveriam ser as mulheres provenientes da roda, por serem
verdadeiras filhas da Casa e para darem lugar a outras órfãs. Em segundo
lugar, todas as filhas dos irmãos da Irmandade, menos abastados, mediante
apresentação de petição. E em terceiro lugar, as enjeitadas que foram
alimentadas pelas rendas da Casa, procedendo, também, de petições. Vale
ressaltar que para inclusão de porcionistas no recolhimento, que além das
mulheres casadas, poderiam ser viúvas ou jovens solteiras, era cobrado pela
Irmandade um fiador que assegurasse as despesas das mesmas e das suas
virtudes.
Todavia se o critério de honradas pobres foi estabelecido como
condição indispensável para a entrada dessas recolhidas nesse espaço de
reclusão das mulheres. A cor, durante a existência do recolhimento, não
permaneceu como critério irrevogável.
Nascimento (1992, p.123) destaca, ainda, que ao longo do tempo
a cor não se constituiu impedimento para que mulheres miscigenadas e até
filhas de libertos fossem recolhidas no estabelecimento. Mas os critérios de
_____________________________________________________________

4
Segundo deixa subentendido Russel-Wood (1981), Maria José (1992) e Kátia Matoso (1992) era uma
prática utilizada como forma de garantir a fidelidade das suas mulheres.
5
DAMAZIO, Antonio Joaquim. Tombamento dos bens imóvies da Santa Casa da Misericórdia da Bahia.
Typographia de Camile de Lelis Masson.1862.p.172
6
Segundo Montaner (2000) Cristã – velha ou cristã pura, é uma denominação dada aos cristãos nascidos,
ou seja, em oposição ao cristão – novo (judeus convertidos ao cristianismo). Muito usado em Portugal,
Espanha e Brasil. É, para ele, um conceito ideológico que pretendia designar uma maioria. Embora não
conferisse nenhum tipo de privilégio estamental,era condição social prestigiosa.
7
Segundo os Acordos as mestras eram professoras de primeiras letras ou que ensinava alguma atividade
às recolhidas, com fazer flores. E a porteira era responsável pela guarda das saídas da Casa.

53
pobres e honradas eram condições essenciais para que uma jovem fosse
recebida no Recolhimento do Santo Nome de Jesus.
Ressaltamos que neste caso o recolhimento não deixa tão claro
nos seus regimentos às condições de entrada dessas mulheres mestiças.
Entretanto nos poucos registros sobre a cor das meninas, encontramos
referência como a da recolhida exposta Laurina Joaquina de Santa Isabel,
parda e duas expostas cabras de nomes Florentina e Aurelia.
Em relação às africanas livres, a casa teve a preocupação de
estabelecer nos estatutos de 1776 “que nenhuma mulher forra, que esteja por
serva no recolhimento poderá ter dentro dela escrava alguma sua própria
para os seus particulares serviços, e menos outra alguma forra com atestado
de encostada, e quando as tinham, as deitarão fora dentro de tempo de um
mês” .
Nesse aspecto o Recolhimento do Santo Nome diferenciou-se,
ao que parece do Recolhimento de Misericórdia do Rio de Janeiro que
o
estabelecia no parágrafo 2 . “Em nenhum caso, com nenhum pretexto, serão
admitidas neste recolhimento pardas, ou mulatas, por se temer a desunião e
discórdias que podem resultar de não haver igualdade nas pessoas [...]”
(AlGRANTI, 1993, p.125).
Comparando o Estatuto do Recolhimento do Santo Nome com o
Estatuto do Recolhimento do Rio de Janeiro, supomos que o Santo Nome
apesar de aceitar essas mulheres infligiram a elas condições de
permanências diferenciadas. Até porque os seus objetivos eram muitos
claros: atender a mulheres brancas, como havia determinado o seu fundador
João de Matos Aguiar.
DAS DIFICULDADES DE CASAR A FORMAÇÃO PARA O TRABALHO:
algumas reflexões
Do final do século XVIII até a segunda metade do século XIX a
Instituição assistiu uma série de situações que levaram ao questionamento a
sua condição de formador do caráter feminino. A primeira tentativa de conter
os “abusos” estabelecidos no recolhimento foi tratada no estatuto de 1776
_____________________________________________________________

8
ASCMB, Relatório 1858, pág. 6
9
Sobre essa posição, cabe ressaltar, que trabalharei com as idéias de autores como Algrant (1993) Araújo
(2000) e Dias (1996) que abordam seus temas a partir da perspectiva de empoderamento das mulheres.
Ou seja, que nesses espaços normatizadores, as mulheres reinventaram,construíram estratégias de vida
onde demonstravam domínio ou subversão da ordem. Dias (1996), por exemplo, em seu artigo sobre as
mulheres do bandeirismo paulista mostra que, embora com uma imagem ortodoxa, em especial pela
indumentária que sugeria submissão e timidez, elas foram ativas e tiveram um papel econômico
fundamental, até mesmo como comerciantes. Já Algranti (1993), em seu estudo sobre recolhidas, afirmou
que guiadas por homens, sujeitas a um bispo, a um provincial, nos conventos mistos, as mulheres tiveram
que buscar muitas vezes na indisciplina, um caminho próprio para a vida contemplativa feminina. Portanto
é essa idéia de uma mulher que muitas vezes usa os elementos do opressor para impor ou construir seus
espaços que iremos trabalhar nesse texto.
10
Estado, significa que essa mulher ocuparia alguma condição nessa sociedade: casada ou religiosa.

54
que agrupou uma série de regras para a condução das recolhidas que iam
das proibições à fala nas grades, comer nos refeitórios, as funções na
cozinha. Observa-se que esse primeiro registro era mais geral. Sendo
publicado outro em 1806 que dava conta de situações mais especificas como
o ensino das meninas, que deveria ser contemplado com ensino de costura,
renda, leitura, escrita. O cuidado com as recolhidas menores “tendo todo
desvelo, não consentindo, que andem por sua, outra parte, perturbando a
comunidade nos dias de serviço, não devem estar ociosas”. A observância
das orações mentais, lições espirituais, ação de graças. Do consentimento
das visitas, apenas permitido pela Mesa. Das punições que passavam pela
perda do desjejum e prisões, em caso de, por exemplo, fazer aceno a alguém.
Das vestimentas, que não deveriam ostentar luxo, uma vez que deveriam
respeitar uma as outras. Essa última determinação da Mesa revela uma
preocupação com as diferenças sociais que se estabeleciam entre as
recolhidas. Uma vez que os órfãos poderiam ser sumamente pobres, mas as
porcionistas poderiam pertencer a extratos sociais mais abastados.
Contudo esse cuidado da Mesa em minimizar os possíveis escândalos e
diferenças entre as recolhidas com regras mais rígidas e mais claras, não
impediu que em 1828 a Mesa suspendesse do exercício de regente D.
Emerciana Joaquina de St André e sua Irmã mestra Inácia Joaquina de
Santa'Anna por ter permitido erros e excessos das recolhidas[18], dando
proteção a algumas delas. Ou em 1831, quando fora despedida por
insubordinação e falta de cumprimento de suas obrigações D. Maria de
Jesus. Ou em 1832, quando chega ao conhecimento da Mesa o
racionamento das rações que algumas recolhidas impunham as menores,
deixando-as ainda mal vestidas e quase nuas. No mesmo ano a regente
encontrou Joanna Maria a conversar com Justiniano Francisco Boticudo no
ralo da Portaria. Em 1833 até mesmo fugas foram registradas pela Mesa, que
segundo a qual fora facilitada pela:
Participação da regente, da qual se reconhecerem culpadas Joana
Batista Tavares, Isabel Francisco Villas Boas e Maria Isabel Tavares, que
fossem despedidas na forma da lei e que a Claudina do Sacramento fosse
18
asperamente reprimida pela regente .
Em 1840 a atual regente pede para sair por não “ter força moral
necessária para continuar a reger visto que a desobediência, intrigas de
algumas recolhidas, apesar de muito castigadas, continua, sendo levado ao

_____________________________________________________________

11
Segundo Russel-Wood (1981) “a roda dos expostos era um aparelho instalado em determinada
instituição assistencial, a fim de receber, anonimamente, as crianças enjeitadas pelos pais e cria-las, tendo
por fundamento a caridade cristã. No Brasil, coube a Santa Casa a Instituição da roda.”.
ASCMB Livro de Registro 93, p.36.
12
Segundo Fonseca (2000) cabra poderia ser um indivíduo liberto, com uma ascendência escrava
relativamente próxima. Para Ele, essa classificação pode representar que a condição de liberto dos pais
determinou o padrão de classificação dos filhos.
14
Idem, p. 217
15 A
ASCMB, Livro de Registro 86 , cap 3

55
conhecimento público” .
Diante de um contexto de tamanho afrontamento as ordens
estabelecidas, a Mesa promoveu várias intervenções nos estatutos a fim de
dar ao mesmo, mais rigor no controle das recolhidas, como o “envio de três
em três meses a relação nominal da conduta das recolhidas, informações
mensais sobre a conduta e adiantamento das discípulas, notando as faltas
que fazem” . Assim como procurou a Mesa ocupar o tempo e preparar melhor
as recolhidas, recomendando as lições da moral cristã e toda assiduidade no
trabalho diário. Se já em 1817, a Mesa já sinalizava a
necessidade da aplicação das meninas em coisas úteis, gomar e fazer
cintura, a exemplo de outros conventos, a partir dos anos subseqüentes
haveria um real esforço da Mesa na promoção dessas atividades e de outras
como em 1846, onde a Mesa estuda a viabilidade de atender ao pedido de
João Batista Obese, “da mesma cidade acerca da concessão pretendida por
este, de dez meninas recolhidas desta Santa Casa para aprenderem a arte de
florista no estabelecimento do dito Obese” . Em 1848 o uso das mulheres do
recolhimento para enfermeiras do Hospital da Caridade, como em outros que
deva ser exercido por mulheres, e existam vagas, ou se hajam de criarem-se
diferentes repartições da Santa Casa “. Em 1854, envio de recolhidas para
trabalharem na fábrica de Valença e em1855 a possibilidade de regerem a
Casa dos expostos.
É importante notar que esse emprego de mulheres em atividades
pela Santa Casa de Misericórdia, também procurava dar uma solução não só
a quantidade de pessoas ociosas da Casa, as constantes desobediências,
uma vez que estariam ocupadas, mas também as suas dificuldades
financeiras de manutenção dessas mulheres . 23

A partir dessa busca do Recolhimento de dar ocupações para as


recolhidas, nos propomos a fazer algumas indagações: Se o recolhimento, ao
longo da sua existência, acolheu mulheres de brancas e mulheres de cor,
apesar de ter sido criado para beneficiar um tipo de mulher: pobre e branca,
como serão destinadas essas mulheres para essas funções “de trabalho”?
Era o objetivo da Instituição promover uma certa independência financeira
dessas mulheres, frente a dificuldade de casá-las,e portanto colocá-las sobre
a tutela de um homem ou buscava a Instituição resolver de
imediato um problema financeiro, que gerava uma dificuldade de
manutenção desse recolhimento? Haveria novos discursos na sociedade do
século XIX que justificariam uma mudança na percepção do que deveria ser o
papel da mulher e da sua formação? Se sim, as mudanças no recolhimento
refletiriam a esses novos discursos?
Em 1844, quando a Mesa Administrativa ponderou que “em vista
_____________________________________________________________

16
ASCMB, 86 A, Estatuto de 1806.

56
de grande número de donzelas existentes no Recolhimento segundo o
compromisso não se podia conservar sendo maior de vinte anos. Convinha
se procurassem arranjos para algumas de maior idade, que ali se achavam, e
podiam ser aplicadas para servirem como criadas em casa de famílias ou nos
conventos, como servas”.
No Recolhimento do Santo Nome de Jesus, a condição de serva
era destinada às mulheres de cor, como deixa claro o Estatuto de 1806: “As
servas da comunidade, assim chamadas, ou seja, forras ou capturas, são
obrigadas ao serviço de toda a comunidade. Visto que com esse destino são
aceitas, e a casa lhes presta todo o subsídio” .
O que nos leva a supor, a decisão da Mesa se destinar algumas
das recolhidas para desempenhar determinadas funções ou cogitada para
determinadas ocupações foi influenciada pela sua condição de cor,
demonstrando a mentalidade da época que não dissociava a cor do indivíduo
da ocupação que ele poderia exercer. Impondo, portanto a essas mulheres
marcadas pelo “incidente da cor”, a adequação não só a sua condição social,
mas, sobretudo a sua condição étnica. Essa idéia pode ser fundamentada
quando consideramos, segundo Matta (1999, p. 38) que mesmo a classe
dirigente, havendo necessidade de trabalho braçal, não diferenciar
trabalhadores livres pobres e escravos, existia uma tendência dos
trabalhadores livres pobres, brancos, a valorizar os ofícios mecânicos ligados
ao avanço tecnológico, serviços comerciais e escritório que exigiam mais
preparo em oposição às atividades mecânicas tradicionais ou as ocupações
que solicitavam maior esforço físico e por isso estarem
associados à condição de cativo.
Russel Wood (1981, p.243) por sua vez, especifica que apesar de
grande parte da população da Bahia viver em nível de subsistência, no século
XVIII, muitos brancos preferiam viver na pobreza a dedicar-se aos trabalhos
manuais, que consideravam dignos apenas dos escravos. Mattoso (1992,
p.535) salienta que não era comum a todas as mulheres trabalharem,
podendo haver gradação na ocupação do mercado de trabalho entre elas, de
acordo com a cor. Mulheres brancas poderiam trabalhar como professoras
primárias a partir de 1830, como diretoras de asilos ou abrigos e como
enfermeiras de hospitais ou casas de caridade. Nas classes médias não eram
raras as que se dedicavam a trabalhos de bordado ou costura, ou preparo do
_____________________________________________________________

17
Segundo o Livro de Acordos de 1832 as indisciplinas iam desde as conversas nas janelas, o
afrontamento das regentes, venda de rações e até mesmo um caso entre as recolhidas como consta na Ata
de 1798.
18
ASCMB Livro de Registro 88 A, p.272.
19
Id.,, sessão de 11 de fevereiro de 1840.
20
ASCMB, 86 A
21
ASCMB Livro de registro, 89 A, pág.182.
22
ASCMB Livro de registro, 90 A.

57
petisco, sobretudo doces, vendidos pelas ganhadeiras. Negras e mulatas
livres, além desses trabalhos artesanais, poderiam ser lavadeiras,
passadeiras e engomadeiras.
Reis (2000, p.173) afirma que, não obstante, Lino Coutinho,
homem nobilitado, ter em suas Cartas para a educação de Cora, em 1858,
sugerindo a mesma aprender as prendas domésticas, o fazia por
compreender que a mesma deveria ter algum meio de se sustentar caso
caísse em miséria e pobreza, mas salienta a autora que os afazeres
domésticos eram mal vistos e tidos como trabalho degradante.
Em 1858 havia no recolhimento 104 recolhidas, sendo 50
brancas, 33 pardas, 16 cabras e 5 pretas e levando em consideração as
discussões de Russel Wood (1981), Matta (1999), Mattoso (1992) e Adriana
Reis (2000), supõe-se a Casa ter levado em consideração a cor dessas
mulheres para colocá-las em determinadas funções ou até mesmo pela
dificuldade de casá-las. Segundo Russel Wood (1981, p. 244):
Frequentemente, as esposas ou amantes eram de cor. Certamente estas
tinham mais probabilidades de serem abandonadas do que as brancas.
Havia várias razões para isso. A escassez de mulheres brancas, as
tornavam muito solicitadas, e elas tinham possibilidade de casar com
pessoas que oferecessem maior segurança e estabilidade, por exemplo,
um negociante ou funcionário público. Quanto mais escura, mais provável
era que a mulher fosse abandonada pelo marido ou amante. Sugeriu-se
que uma negra pudesse casar-se com um homem brando de classe
baixa, totalmente inadequada, por motivos sócio-raciais 'para clarear a
raça'. Não se pode haver dúvida de que na Bahia colonial a aceitação
social dependia do grau de alvura da pele. Uma mulata clara podia fazer
um bom casamento com um ferreiro, sapateiro ou pedreiro. A leve
mancha racial da moça harmonizaria com a baixa condição social do
marido branco. Quanto maior o grau de diferenciação racial, maior a
tensão no casamento misto. A relação normal seria substituída por uma
relação senhor – escrava. A negra seria amante, cozinheira e empregada
do homem branco, mas nunca a outra parte da sociedade conjugal.
E a dificuldade de casar as mulheres do recolhimento pode
também não está apenas associado à cor de algumas delas, mas as idades,
como podemos supor ao analisar alguns documentos. Em 1848 escreveu a
Mesa da Misericórdia:
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23
Em vários momentos das atas e dos livros de registros, em diferentes períodos, houve discussões sobre
a dificuldade de manutenção do recolhimento, bem como a dotação dessas recolhidas. Primeiro pela
dificuldade de dispor dos bens deixados por João de Mattos e segundo por, em muitos momentos, esse
espólio não ser suficiente para a manutenção de assistência a essas mulheres. Russel-Wood (1981)
salienta ainda, que não fora apenas o recolhimento uma das atividades da Santa Casa de difícil
manutenção, mas também assistências aos doentes e presos.
24
ASCMB Livro de Registro, 86 A.

58
Que segundo o compromisso da Irmandade as recolhidas deveriam
despedir-se ao chegarem aos 20 anos [...] Todavia sucessivamente
povoado [...] chegando a ter 178 recolhidas [...] Sendo que das recolhidas
que saem para casar-se ou faleceu, atualmente encontram-se 123, 8 de
10 anos, 77 de 20 anos, 33 de 30 anos e 2 até 40 anos [...] promover a
saída daquelas,que já por sua idade,estivessem livres do perigo do
mundo,oferecendo a quantia de um dote para sua manutenção[...].
Em 1853 de 104 recolhidas a mesa registrou apenas 7
casamentos. O registro de tão poucas cerimônias maritais pode ser
entendido pela ideologia da época que, “naturalizava” o casamento aos 12
anos, como deixa subentendido Matoso (1995) e Reis (2000) quando
afirmam que uma mulher acima de 20 anos, nessa sociedade, não reunia os
atributos físicos necessários para a construção do seu papel de mãe, já que o
vigor físico era um atributo associado ao bom desempenho da reprodução.
Ou seja, quanto mais jovem fosse à mulher, melhor seria como reprodutora.
Essa mentalidade da época nos leva a supor, que este fator, tornou-se uma
das dificuldades da Mesa para casar mulheres mais velhas, obrigando a
direção da Santa Casa a encontrar uma outra condição de sobrevivência para
essas recolhidas, uma vez que o tão almejado “estado de casada” para elas
tornava-se mais difícil devido o fator idade.
Em 1858 diante do excessivo número de recolhidas, da
desobediência que se estabelecia no recolhimento, das críticas externas a
esse espaço enquanto formador, e das próprias mudanças que ocorreram no
século XIX a respeito de como as mulheres deveriam ser educadas para
serem úteis a sociedade.
Ou seja, o século XIX foi um momento em que as mulheres
estavam sujeitas aos outros discursos que reivindicavam uma maior
“libertação da mulher”, uma maior sociabilidade, influenciados pelas idéias de
civilidade, que estavam presentes nos teatros, bailes, romances e jornais,
dificultando a realização dos ideais católicos sobre a mulher e a família.
E nesse momento é relevante pensarmos que o durante os
séculos XVII ao XIX o discurso do controle social, que havia sido enfatizado
no século XVI, principalmente sob a influência de Erasmo de Roterdã, com a
noção de civilidade como controle e codificação dos comportamentos do
outro toma corpo em uma concepção onde se estabelecia que:
Todos os movimentos, todas as posturas corporais, a
própria roupa podem ser objeto de uma leitura semelhante.
Os gestos são signos e podem organizar-se numa
linguagem, expõe a interpretação e permitem um
reconhecimento moral e psicológico e social da pessoa.
Não há intimidade que não revelem. (DUBY, 1991, p.172).
E se para Duby (1991, p.172) o corpo diz tudo sobre o homem
profundo, devendo ser possível formar ou reformar suas suposições íntimas
59
regulamentando corretamente as manifestações do corpo. Revel (apud
DUBY, 1991, p.171) afirma que a idéia de um comportamento que poderia ser
construído, levou os educadores europeus e com eles a opinião pública, a
começar a acreditar que era possível reunir certo número de conselhos e
observações para serem seguidos em cada ocasião específica da vida social,
o que resultaria em um comportamento civilizado. A civilidade pretendia
transmitir um código válido para tudo e que todos pudessem adquirir
qualidades e maneiras.
E se inicialmente esse discurso do controle social, através de
normas que pudessem ser apreendidas em espaços específicos de
educação, escolas e instituições, era para a criança, considerado o vir a ser
da sociedade, isso não impediu que a mulher fosse introduzida como objeto
desse discurso. A mulher jovem, a adulta, a casada, todas deveriam ter
consciência do seu papel na sociedade. O comportamento feminino tinha
representar aquilo que a sociedade esperava. O sentar, o falar, o vestir, o
andar, o que fazer o que ler como olhar, que postura apresentar tudo isso era
indicado como reveladores do seu ser, portanto deveria ser adequadamente
usado e educado.
Rousseau (apud BUCHENAU 2007, p.1) em Educação para
Emílio apresenta Sofia, a menina que se tornaria a mulher perfeita como
esposa de Emílio se não esquecesse que as meninas deveriam ser
acostumadas cedo à restrição. Uma lição mais importante para as mulheres é
aprender sobre seus deveres, e, além disso, amar esses deveres, os deveres
incluem tarefas domésticas, mas não necessariamente ler ou escrever numa
idade muito prematura. A natureza doméstica da educação de mulheres
enfatiza o papel de mãe e dona de casa. Além disso, o único dever que uma
mulher tem é ser esposa.
Apesar de ser um homem das luzes, Rousseau, segundo
Buchenau (2007), apresenta idéias conservadoras para a educação das
meninas e mulheres. A mulher era o indivíduo que deveria ser conduzido,
limitado, educado, explicado: “os professores ensinam-na, limitam-na,
educam-na, explicam para ela”.
É interessante observar que após a Revolução Francesa houve
uma caminhada para a laicização do ensino. Se antes, as mulheres tinham os
conventos e recolhimentos como formadores do sexo feminino. A partir do
século XIX existiriam as primeiras escolas para raparigas, “com a finalidade
de ir mais longe que o ensino doméstico no quais as religiosas eram acusadas
de circunscrever as raparigas, para lhes ensinar igualmente ensinamentos
teóricos”. Mas o modelo feminino matinha-se: contribuir para a felicidade de
uma casa, independente da classe social. Ou seja, o ideal de mulher no lar
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25
No livro de registro,em 1840,a Mesa Administrativa da Santa Casa de Misericórdia se referia as enjeitas
pardas ou negras, como mulheres marcadas pelo incidente da cor.
60
não fora abandonado.
Nesse sentido a manutenção dessa idealização de mulher
passava pela limitação do acesso da mesma a determinadas leituras, do
reforço da educação moral “O ensino comporta três ordens: cursos gerais,
cursos específicos de comércio, trabalho prático em oficinas: além de
receberem uma educação moral”. Elisa Lemonnier (apud PERROT 1992,
p.20) pretende fazer delas boas mães de família, com hábitos de dignidade
pessoal, de estima e de respeito por se próprias.
Entretanto se algumas leituras não eram recomendadas às
mulheres. Durante os séculos XIX e XX, segundo Roquette (1997) um novo
gênero literário dedicado às boas maneiras e comportamentos toma força na
Europa, beneficiado de uma maior alfabetização e o desenvolvimento da
imprensa: os manuais de boa conduta e etiqueta. Esses manuais tinham
como objetivo estabelecer regras e modelos de sociabilidade. Ao mesmo
tempo em que demonstrava as quais elites pertenciam o indivíduo e que tipo
de comportamento não se poderia ter. “Comportamento nobre e cortês passa
a ser comparado aos modos camponês, rudes, e a postura oposta à deste é
recomendada e ensinada a adultos e crianças” (ROQUETE
,1997, p.16).
As regras iam das mais gerais da vida social cotidiana: o
guardanapo substitui o lenço durante as refeições; o garfo deixava, aos
poucos, de ser utilizado exclusivamente para se tomar sopa [...] e fazia às
vezes das mãos no manuseio dos alimentos. E eram direcionadas a grupos
específicos:
Paras as mulheres os conselhos são diretos (...) não fica bem esticar a
conversação. É melhor ser simples, breve, evitar frases longas e palavras
difícies. Contar piada, prática tão comum já nas reuniões da época, e
também objeto de reflexão: não deve contar a mesma piada mais do que
três vezes, em uma mesma reunião, e muito menos rir antes dos demais
(ROQUETE, 1997, p.15).
Ao mesmo tempo em que estabelece as diferenças que deveriam
separar o mundo dos homens do mundo das mulheres. Exemplo disso
encontra-se o cônego Roquette que cria Reofilo e Eugenia estabelecendo
que para o primeiro ficasse a polidez e urbanidade, a distinção da fala
inteligente e correta, para as mulheres um falar suave, um ar reservado; a
atitude deveria ser modesta e silenciosa; Se o homem deveria ter a atitude
cerceada, o controle sobre as mulheres deveria ser mais rigoroso: “Se
calarem, cala-te também [...] Se te divertires, não mostre senão uma alegria
moderada; se estiveres aborrecida, dissimula e não dês a conhecer”
(ROQUETTE, 1997, p.26).

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26
ASCMB Livro de Registro, 90 A, p.179.

61
Observa-se, portanto que a civilidade que desponta, inicialmente
na Europa, propõe “o mais absoluto controle das emoções e sentimentos,
além de estabelecer, regular a propriedade de cada sexo.” (ROQUETTE,
1997, p.27). A civilidade pressupõe conter as manifestações espontâneas,
não contemplando a existência social do indivíduo que dá expressão a
impulsos e emoções livremente.
Nesse sentido o controle sobre a mulher tem uma atenção
especial no discurso da civilidade. Se pensarmos que esta sociedade
civilizada estabelece uma função para a mulher: ser esposa, ser
mãe. Por isso era mister um controle sobre feminino, que como foi
demonstrado poderia ser estabelecido desde do controle do corpo, das suas
expressões, a sua forma de pensar.
E a Bahia, no século XIX, foi palco dos debates sobre os padrões
de civilidades que se pretendia a uma sociedade que vivenciava as
transformações trazidas, primeiramente pela vinda da Família Real para o
Brasil, com seus novos gostos e comportamentos, onde a mulher brasileira
era vista como descuidada. A coroa portuguesa provocou uma série de
mudanças nos hábitos sociais das principais cidades do Brasil Colonial:
Recife, Rio de Janeiro e Salvador assistiram os requintes dos eventos
propiciados por e em nome de uma corte acostumadas com bailes, festas e
eventos de toda ordem e que contribuirá para construir a dama da corte
brasileira atualizada nas modas francesas e nas etiquetas para posar com
polidez nos bailes. Mas tarde, a partir de 1822, a busca de uma identidade
para o novo império que se formava, reforçou a representação das noções de
civilização ligadas à França. Saber ler, francês, tocar piano, dançar eram
qualidades para um bom casamento, pelo menos para as mulheres da elite.
Ao mesmo tempo em que incorporava as novas idéias da medicina ligadas a
noções de higienização. Reis (2000, p.116) afirma que se antes as mulheres
tinham o direito ao desalinho, a liberdade no espaço doméstico, agora
deveriam seguir regras de asseio apropriadas para o lar, comer moderação,
amamentar, manter a simplicidade no vestir, e ser ilustradas para educar os
seus filhos.
Observar – se, que o discurso por uma mulher mais ilustrada, a
partir de 1822, aconteceu em um período onde as idéias dos pensadores das
luzes que haviam se estabelecido na Europa desde 1762,
principalmente com Rousseau, começaram a chegar ao Brasil, somente no
início do século XIX, coincidindo e mesmo influenciando o momento político
de liberdade da colônia, aumentando as aspirações educativas dos filhos da
elite, onde a mulher teria um papel preponderante na educação desses novos
homens. Aliado ao discurso médico da higienização, não poderia ser
esquecido os preceitos religiosos que estabelecia a “delimitação do espaço
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27
Escreveu no século XVI a Civilidade Pueril.

62
socialmente aceitável para a mulher, como pessoa honrada e mãe de família
e mãe de família dedicada, a busca da garantia de seu futuro como cidadãs
úteis e mesmo o exercício da caridade cristã” (REIS, 2000, p.96).
Todavia, Reis (2000) deixa subentendido que mesmo havendo
um discurso uniforme do que deveria ser a educação e papel da mulher na
sociedade: esposa, cuidadora do lar e mãe. Havia uma diferenciação entre os
espaços e condutas que deveriam ser destinados à mulher da elite e as
menos abastadas ou pobres, cujo maior medo era a possibilidade dessas
últimas tornarem-se mulheres perdidas ou desonradas. Daí o controle maior
sobre esse tipo de mulher. Essa idéia justificaria a preocupação da Irmandade
da Santa Casa de Misericórdia com os acontecimentos que se estabelecia no
Recolhimento do Santo Nome de Jesus e que precipitou o apoio da Mesa
Administrativa da Santa Casa a vinda das Irmãs de Caridade para o
recolhimento, concretizando o desejando do seu defensor D.Romualdo
Seixas.
Segundo Reis (2000, p.105) as Irmãs de Caridade vieram
exercer:
Funções em hospitais, casas de caridade e colégios de educação. Nos
hospitais, elas tratavam dos enfermos, dos velhos, dos alienados e das
crianças expostas. As de caridade prestavam socorros gratuitos,
inicialmente em seu domicilio. Recebiam meninas para o trabalho em
comum; as de mais tenra idade iam para as escolas, asilos ou creches,
onde também eram acolhidas as órfãs de pai e mãe. Nas casa de
educação ensinavam religião, literatura, pronúncia, escrita, as línguas
portuguesa e francesa, composição literária, contabilidade, geografia
geral e especial, regras de civilidade, música e o trabalho doméstico:
costuram bordadas, marcas etc.
É interessante notar que, para além da riqueza do currículo
proposto pelas Irmãs, como argumenta Reis (2000), as Irmãs de caridade, ao
contrário, dos conventos e recolhimentos, muito criticados na época, trazia
uma nova proposta que incluiu a relevância do aprendizado da doutrina
católica, associado às regras de civilidade, estabelecendo um meio termo
entre educação laica e religiosa.
As Irmãs de Caridade, segundo Reis (2000, p.108) ao adicionar
regras de civilidade ao aprendizado sobre os sacramentos, trouxe a
educação humanista cristã, que patrocinou uma educação leiga juntamente
com a religiosa e estavam empenhadas em estabelecer uma educação
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28
J. I. Roquette, cônego português, foi autor do código de bom-tom identificado publicado em 1845 que, (já
em sexta edição em 1900) procurava normatizar os rituais do Brasil Imperial e se tornou leitura obrigatória
para aqueles que almejavam ser bem sucedidos na sociedade. Relançado em 1984, este manual
introduziu regras de como comportar-se em festas, eventos da sociedade, artes de bem viver, inspirado em
manuais franceses.
63
feminina que entremeasse a educação moral cristã e a profana. E ao divulgar
noções de civilidade e regras de higiene, reafirmaram o objetivo da Igreja e da
sociedade de formar os “movimentos, ações decentemente reguladas na
praxe do mundo”. Nesse sentido as Irmãs de Caridade buscavam ressaltar,
com insistência, a “natureza” caridosa da mulher, delegando a ela a função da
assistência social, atendendo aos pobres, doentes e crianças órfãs.
No Recolhimento do Santo Nome de Jesus, as Irmãs de Caridade
objetivaram empreender essa proposta educacional cuja qual já havia posto
em prática em alguns espaços na cidade de Salvador como o Colégio
Coração de Jesus. Procurando as mesmas associar as demandas da Mesa
Administrativa de uma formação moral, religiosa a uma educação que
tornasse essas mulheres úteis a sociedade. Todavia essa concepção
educacional também passava por uma idéia do que deveria ser mérito ou não
de algumas mulheres.
Em 1854, com a formação da Associação das Senhoras de
Caridade na Bahia, deixou bastante claro o que caberia a um grupo
privilegiado de mulheres:
Em 1855, a confraria das Senhoras de Caridade abriu a Casa da
Providencia, na Baixa dos Sapateiros, dirigida por quatro Irmãs de
Caridade que vieram da França especialmente para ali servi. Em uma
sala de trabalho, recebiam, gratuitamente, meninas pobres livres e
escravas pertencentes as senhoras da Confraria,para ensinar-lhes a ler e
a escrever,de 8 as 11 da manhã,e de 1 as 5 da tarde.As Irmãs
visitavam,seus domicílios,os pobres e doentes e recebiam os enfermos...
É importante ressaltar que as senhoras de caridade não exerciam essa
pratica... Elas apenas administravam. (REIS, 2000, p.110).
Assim como no início da fundação das Filhas de Caridade na
França. Não eram as damas da Caridade quem servia aos pobres, eram as
suas criadas. Assim podemos entender porque as mulheres do Recolhimento
do Santo Nome de Jesus estavam aptas para determinadas funções,
segundo a visão das Irmãs de Caridade, ao contrário, de outras mulheres em
condições sociais privilegiadas.
Podemos notar que esse Recolhimento de mulheres foi durante o
século XIX um importante espaço de formação para determinados grupos de
mulheres, atendia a uma lógica da sociedade local que via nesse espaço um
local de formal moral para as mulheres tidas como ideais para casar, assim
como estabeleceu uma relação de formação “para o trabalho” para aquelas
mulheres cujo ideal de casamento não fosse alcançado. Tais formações
passam por uma concepção do que deveria ser o feminino no século XIX,
assim como das atividades que poderiam exercer a partir da sua condição
econômica e de cor.
Visualizar essas formações e como essas mulheres se
adaptaram ou não a essas formações nos leva a compreensão de como os
64
gêneros são construídos no percurso histórico. E como os diferentes
discursos não construídos em torno dos indivíduos procurando moldar, a
partir das relações estabelecidas, um ideal de masculinos ou femininos que
atendam ou se adequem a determinado contexto social. O que
nos levar a refletir como os papeis de gêneros que se estabelecem hoje, não
são construídos em um momento histórico apenas presente, mas atravessam
o tempo, muita vezes sedimentando os esteriótipos e reforçando os lugares
que mulheres e homens podem ou devem ocupar.
Por outro lado, os estudos sobre os recolhimentos, como espaço
de formação, como foi o caso do Santo Nome, demonstra como o resgate do
estudo desses locais nos possibilita entender a trajetória das mulheres
durante o período colonial e imperial, uma vez que a invisibilidade dos
estudos sobre as mulheres nesses períodos ainda se esbarram na idéia de
ausência de fontes que possibilitem a visibilidade dessas atrizes sociais.

65
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Livros de Registros de Correspondência 86 A
Livros de Registros de Correspondência 89 A
Livros de Registros de Correspondência 90 A
Livros de Registros de Correspondência 93 A ( 1856 a 1861)
Carta da Superiora francesa (27/ 04 /1858)
Relatório de João Mauricio Wanderley 31 de março de 1858

68
MARY WOLLSTONECRAFT CONTRA JEAN-JACQUES ROUSSEAU: em
Defesa de um Feminismo Iluminista

Alexnaldo Teixeira Rodrigues

INTRODUÇÃO
Ao falarmos do Iluminismo tanto podemos nos referir a um movimento
histórico dos meados do século XVIII quanto a uma crítica racional atemporal,
em contraposição à primeira acepção, que perdura até os nossos dias como
exame das interações sociais e como denúncia de todos os processos que
mascaram as desigualdades com vista a materializar o ideal de emancipação
humana que se apresenta como uma teleologia “que progride
cumulativamente em direção a um objetivo ainda não atingido” (SCOTT,
2002, p.23). O horizonte utópico, da última perspectiva, por certo, abre-se
como uma possibilidade realizável na qual o empenho político se mostra
“interessado na deliberação moral e na relação entre normas morais e
normas legais, e desse modo, sua teoria política é principalmente uma teoria
constitucional do projeto, na qual os participantes são pensados como
cidadãos iguais” (CHAMBERS, 2008, p.291).
Ao falarmos, inicialmente, sobre o duplo significado do
Iluminismo é bom que nos remetamos a uma distinção conceitual feita, com
muita precisão, por Sérgio Rouanet (1988), a saber: o que é Ilustração e o que
é Iluminismo. Assim, se o segundo termo, como pensamento, ultrapassa as
barreiras do tempo e do espaço, o primeiro está circunscrito no âmbito
histórico-cultural. Para sermos mais didáticos podemos utilizar a linguagem
matemática da teoria dos conjuntos, para afirmar que o Iluminismo contém a
Ilustração e não o contrário; a Ilustração é um subconjunto do Iluminismo.
Dessa sorte, como bem nos esclarece Ernst Cassirer (1992), a força pulsante
desse movimento histórico-cultural chamado Ilustração só poderia ser
captada no interior daquele momento.
Entretanto, nada nos impede de caracterizá-lo historicamente,
guardadas os contornos específicos das principais culturas nacionais da
época (França, Inglaterra, Alemanha, Itália), como uma aglutinação
heterogênea de intelectuais inquietos e engajados politicamente, que
exerceram uma grande influência na constituição de uma nova moral e na
construção do ideal de cidadania moderna, através dos seus escritos
literários disseminados cada vez mais a um público letrado. Vale ressaltar que
o complexo arcabouço de idéias plurais decorre de um contexto histórico-
cultural diverso e incerto. Por conseguinte, tal atmosfera, como descrevem
Giulio de Martino e Marina Bruzzese (1996, p.185), emana do fato que
[...] os países europeus estavam lacerados pelas diferenças religiosas, a
influência das igrejas sobre a monarquia e sobre suas políticas era forte,

69
ou igual aos encargos dos privilégios feudais e eclesiásticos sobre as
economias dos Estados; um sentimento difuso de inquietude social e falta
de referentes flutuava em um mundo em transformação e em busca de
novos ideais. Ademais, a Europa era sacudida por continuas guerras de
sucessão que enfrentavam as principais dinastias.
Decerto, a complexidade de idéias transformadoras, a que nos
referimos, pode ser sintetizada em três eixos (MARTINO; BRUZZESSE,
1996, p.186), a saber:
1. Desenvolvimento de uma vida religiosa, além da polarização
entre Reforma Protestante e Reforma Católica, que ocasionou a
evolução do sentimento e pensamento místico em três correntes
filosófico-religiosas, a saber: teísmo, deísmo e ateímos radical.

2. Configuração de uma nova linguagem científica que substituía os


paradigmas do racionalismo metafísico e dedutivo do século
XVII, predominantes no pensamento filosófico de Descartes e
Spinoza, por um racionalismo analítico, fundamentado no
método matemático e indutivo de Galileu e de Newton, com vista
a apontar as possibilidades de existência de determinado
fenômeno e de formulação de uma lei geral da natureza. Vale
destacar, ainda, sobre tal ponto, o intercâmbio entre diversas
disciplinas (geografia, fisiologia, medicina, direito, moral,
economia e política).

3. Superação gradual do sistema político do absolutismo


monárquico através do redescobrimento do paradigma do
Jusnaturalismo ou Teoria do Direito Natural configurada nos
século XVII e XVIII, a partir de Hugo Grócio (1583-1645) e
também defendida por Hobbes (1588-1679). O Jusnaturalismo,
no campo moral e político, como reivindicação da autonomia da
razão para legislar as relações humanas, independente da
vontade de Deus, serviu para a conquista de dois princípios
fundamentais no mundo moderno: a tolerância religiosa e a
limitação dos poderes do Estado.
Decerto, no século XVIII, o movimento de tirar a utopia do “não-
lugar” com vista ao estabelecimento de um Novo Mundo, como foi
preconizado pelo Renascimento, materializa-se como a realização de uma
“colossal transformação estrutural e superestrutural do mundo ocidental.
Uma empresa a que o século dedicou suas melhores forças e que marcou a

_____________________________________________________________

29
Doutorando em Estudos Interdisciplinares Sobre a Mulher, Gênero e Feminismo, com enfoque nas
questões filosóficas e éticas; Mestre em Educação e Graduado em Filosofia pela Universidade Federal da
Bahia; Pesquisador Associado do Núcleo de Estudos Interdisciplinares Sobre a Mulher (NEIM/UFBA)

70
história dos séculos posteriores” (MARTINO; BRUZZESSE, 1996, p.187) e,
também, momento em que as mulheres letradas de classes abastadas
reivindicaram uma identidade, uma diferença e uma especificidade enquanto
parte do gênero humano, bem como uma igualdade de direitos universais
para as mulheres cidadãs entre cidadãos (MARTINO; BRUZZESSE, 1996,
p.187). Decorre daí o surgimento do feminismo, filha ignorada e
marginalizada da ilustração; isso porque muitos não reconhecem as suas
origens ou se o fazem a tratam como decorrente de um matrimonio mal
sucedido entre racionalismo e denúncia dos mecanismos de opressão.
O feminismo pode, então, ser concebido como uma doutrina
social favorável à mulher e que foi tratada como algo secundário “no cenário
político 'maior', mas também algo maior do que uma explicação que dependa
de fatores – quer sociais, quer econômicos – precedentes e externos à
política, ou então de razões com as quais os próprios políticos justificam suas
ações” (SCOTT, 2002, p.25). Na verdade, o feminismo surge como “sintoma
das contradições dos discursos políticos [liberais] [...], contradições para as
quais o feminismo apelava, ao mesmo tempo em que a desafiava” (SCOTT,
2002, p.25).
É sob esse aspecto que Joan Scott (2002; 2005) reflete sobre o
movimento feminista, nascente no século XVIII, como aquele que oferece
paradoxos, diferentemente de dilemas que não podem ser resolvidos. Como
paradoxo, pensa-se em algo que importuna a tendência de polarização entre
isso ou aquilo e que, por conseguinte, absorve as tensões “que desafia a
ortodoxia prevalente, que é contrária a opiniões preconcebidas.”
(SCOTT, 2005, p. 14). De acordo com Joan Scott (2002, p.38)
As feministas [ilustradas] não apenas apontavam as incoerências;
tentavam também corrigi-las, demonstrando que elas também eram
indivíduos, de conformidade com os parâmetros de individualidade de
sua época, fato reconhecido por vários textos da própria legislação civil.
Não podiam, porém, evitar (ou resolver) o problema de sua presumida
diferença sexual. As feministas discutiam ao mesmo tempo a relevância e
a irrelevância de seu sexo, a identidade de todos os indivíduos e a
diferença das mulheres. Recusavam reconhecerem-se mulheres nos
termos ditados pela sociedade e, ao mesmo tempo, elaboravam seu
discurso em nome das mulheres que inegavelmente eram. As
ambigüidades da noção republicana de individuo (sua definição universal
e corporificação masculina) eram assim discutidas e postas a nu nos
debates feministas.
O que posteriormente se configurou, na história do feminismo
ulterior, como um dilema ou como uma necessidade em optar entre a
igualdade e a diferença, só pode ser diluído como um falso dilema,
historicamente para nós, se considerarmos os termos de tal binômio como
algo inter-relacionado no período. Ademais, longe de levarmos a cabo tais
71
discussões, é bom esclarecermos que objetivamos com esse ensaio
centrarmos no debate travado entre Mary Wollstonecraft e Jean-Jacques
Rousseau.
Focalizaremos, inicialmente, as nossas discussões sobre o conceito
de estado de natureza formulado por Rousseau, uma vez que nele
encontramos o fundamento antropológico e político que projeta socialmente
homens e mulheres de forma diferenciada através de um plano educativo.
Vale aqui alguns questionamentos: Se existe um estado de natureza, ao
menos como uma formulação abstrata, ele é unívoco? Se assim o for, em que
medida podemos falar de destinos teleológicos diferenciados? Há possíveis
quebras lógicas no pensamento rousseaniano? Como elas são resolvidas?
Quais as contribuições críticas de Mary Wollstonecraft? Comecemos, então,
pela compreensão do conceito que anunciamos.

ESTADO DE NATUREZA: um conceito formulado no discurso sobre a


desigualdade
Falar do conceito estado de natureza não denota algo unívoco no
século XVIII, pois vários filósofos (Maquiavel, Jean Bodin, Thomas Hobbes,
Jean-Jacques Rousseau, John Locke, Spinoza, Puffendorf), dentro do
paradigma do Direito Natural, manejaram e atribuíram a tal noção um
significado diferenciado. Essa formulação teórica foi fundante para o
Jusnaturalismo Moderno que advogou a autonomia e a universalização da
razão para desvendar as regras de conduta através do estudo da natureza
humana.
Com certeza, o que unia esses filósofos não era tanto o principio
ontológico, mas o método dedutivo, pelo qual se empenhavam em
demonstrar os aspectos que levaram a humanidade a se organizar em
sociedade. Por exemplo, contrário à idéia hobbesiana de que a natureza
humana é egoísta e que o estado de natureza corresponde a um estado de
guerra de todos contra todos, Locke considerou o estado de natureza como
[...] um estado de perfeita liberdade, em que cada um regulamenta suas
próprias ações e dispõe de suas posses e de si mesmo como bem lhe
aprouver, dentro dos limites da lei da Natureza, sem pedir permissão a
ninguém, nem depender da vontade de ninguém; (Second Treatise on
Governemente, II, 4 apud ABBAGNANO, 1970, p.702).
Rousseau, porém, é quem eleva a perfeição proclamada por
Locke ao sumo bom, ao declarar que “Tudo está bem quando sai das mãos do
autor das coisas, tudo degenera entre as mãos do homem [...]” (Emílio, Livro I,
p. 7). Essa concepção de estado de natureza rousseauninano contrasta,
porém, com o estado de civilização. Nisso reside a inquietação de Rousseau
a respeito da desigualdade entre os homens e o questionamento se ela era
algo natural ou construído socialmente ao longo do processo histórico. Foi por
meio do conceito de estado de natureza que o filósofo procurou,
72
de forma conjectural e hipotética, estabelecer primeiramente as mudanças
sucessivas da constituição humana que deram origem às diferenças que
distinguem os homens entre si (Discurso Sobre a Desigualdade, Prefácio, p.
44).
O estado de natureza — estado que nunca existiu e nunca existirá
e que é, de certo ponto, também anterior à própria história da humanidade —
foi esta hipótese conjectural pelo qual o filósofo tentou descrever as
características originais do homem universal e as mudanças que o levaram a
adquirir qualidades e vícios que não eram inerentes à sua natureza.
Desta sorte, Rosa Cobo (1995, p.90) analisa que o estado de
natureza é o parâmetro que legitima ou deslegitima os hábitos, os valores
morais e as instituições, considerado o critério de serem ou não serem
naturais. Ainda de acordo com esta autora:
O Estado de natureza rousseauniano opera como um paradigma de
impugnação e de legitimação ao mesmo tempo: tem função impugnadora
quando se investiga a ordem social e política de seu tempo e legitimadora
quando postula uma nova ordem social e política. Nesta direção, a
desigualdade social só é legitima se se funda na desigualdade natural.
Reconstruir o elo da igualdade/desigualdade desde do estado natural até
o estado social é uma tarefa necessária para a construção de uma nova
sociedade desde a legitimidade. (COBO, 1995, p. 97, tradução nossa).
No Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade
Entre os Homens o elo igualdade/desigualdade é examinado com maior peso
para o último termo do binômio. Assim, Rousseau estabelece uma distinção
de duas formas pelas quais a desigualdade se apresenta, a saber: a
desigualdade natural e a desigualdade convencional, esta última entendida
como desigualdade política ou moral, e é a partir dessas distinções que
podemos perceber suas implicações ao logo da exposição do filósofo.
A primeira desigualdade consiste na “diferença das idades, da
saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito e da alma”;
inexoravelmente, perguntar sobre a origem da desigualdade natural,
segundo o autor, não é profícuo, pois nos levaria a uma tautologia: a
desigualdade é natural, pois sua fonte é a própria natureza. A
primeira desigualdade e suas facetas, portanto, são inevitáveis e “quase nula
sua influência” (Discurso Sobre a Desigualdade, Primeira Parte, p. 83).
A segunda desigualdade se configura pelas diferenças de
riqueza, de virtude, de poder e de autoridade. Esta, portanto, é ilegítima,
perniciosa e sem justificação; ela é historicamente contingente e socialmente
produzida. Podemos assim, conforme Rousseau, ao retroceder no tempo e
fazer uso da categoria estado de natureza, visualizar o seu surgimento e as
causas que determinaram o aparecimento da desigualdade tanto no nível da
espécie quanto no nível das instituições.
Vale ressaltar que a essas desigualdades naturais estavam
73
sujeitos tanto os homens quanto as mulheres, indistintamente, e não há
qualquer vínculo entre a desigualdade natural e a convencional à sombra do
que poderíamos pensar em uma pretensa subordinação das mulheres. Isto
se concebermos homens e mulheres em um primeiro estágio do estado de
natureza (estado de natureza puro em seu aspecto descritivo) como
indivíduos isolados que se uniam momentaneamente, sem relações afetivas,
com o fim de manter a espécie. Neste primeiro momento, o sexo não se
configura como fator para a desigualdade.
A capacidade de procriar não é tomada como uma desvantagem
para a fêmea da espécie humana. Aliás, como nos aponta o próprio
genebrino, a fêmea da espécie humana tem uma facilidade maior do que a de
outras espécies para alimentar seus filhotes, muito embora não
se atribua a ela o instinto maternal. Por último, a mulher não aparece como
objeto, pelo qual os machos venham a empreender uma luta; qualquer uma
serve.
Insistindo mais sobre este aspecto, dado o caráter de
independência da espécie, mesmo que houvesse “desigualdades naturais”
ou “desigualdades físicas”, e certamente haveria de ter, devido às diferentes
habilidades engendradas pelo comportamento adaptativo aos diferentes
ambientes, por meio de uma inteligência prática e através do corpo, estas se
tornariam nulas.
De forma geral, a exposição do pensamento rousseauniano no
Discurso Sobre a Desigualdade nos leva à compreensão de que a
humanidade primitiva poderia estar alheia à sociedade. Com efeito, há muitas
passagens nessa obra que demonstram a distância entre o estado de
natureza e o estado de sociedade, ou melhor, a irredutibilidade desses dois
momentos da história da humanidade (MARUYAMA, 2005; FORTES, 1989).
Mas Rousseau ainda terá que nos explicar sobre que fatores nos levaram à
sociabilidade. Como resolver esse problema teórico no texto em questão?
Ora, Natália Maruyama (2005, p.406-407) nos explica que a expressão
estado de natureza apresenta dois sentidos:
De um lado, ela designa um estágio da humanidade considerado em uma
linha temporal, portanto em certa continuidade com o estado civil [estado
de natureza histórico] e, de outro, ela tem apenas um sentido lógico e
intemporal. Neste último sentido, o estado de natureza pode ser
compreendido como uma estrutura fechada cujas características não
podem explicar o estabelecimento da sociedade. O estado de natureza
[puro] , tomado sob esse aspecto intemporal, é irredutível ao estado civil e
em descontinuidade com este; entre esses dois estados há uma ruptura
de ordem lógica.
Evidentemente, ao falarmos do sentido lógico e intemporal,
estamos a nos referir ao estado puro de natureza, cujas características dizem
respeito a uma vida fixa e inalterável, e cujos adjetivos fundamentais podem
74
ser sintetizados nos termos: simplicidade, uniformidade e solidariedade.
Adjetivos esses que sugerem uma dimensão ética. Além disso, o
estado puro de natureza, como sentido lógico, foi utilizado para desfazer os
equívocos e preconceitos que muitos filósofos atribuíam ao homem natural
(entenda-se aqui homens e mulheres) tendo diante de si o homem civil (Cf.
Discurso sobre a Desigualdade, “Exórdio”). De modo evidente, o que
Rousseau quer demonstrar é que o
[...] estado de natureza, no qual os homens estão dispersos entre os
outros animais, não se opõe ao estado civil pela presença ou ausência da
sociabilidade, das leis positivas ou da liberdade, mas pela presença ou
ausência da desigualdade entre os homens. (MARUYAMA, 2005, p. 407).
O ponto fundamental colocado por Rousseau, portanto, é a
desigualdade moral ou política. Ele estava preocupado com a desigualdade
que advém das instituições sociais e que acabam por potencializar as
desigualdades naturais, que no estado de natureza puro são insignificantes,
ou melhor, são nulas. Mas, quanto ao estado de natureza histórico? O que
poderíamos dele falar?
Dada a fixidez e imutabilidade do estado de natureza puro, este
sentido primeiro tornou-se insuficiente para explicar o afastamento humano
do seu “equilíbrio estático primitivo” (FORTES, 1989, p.60) rumo aos
sucessivos progressos do espírito, que, gradativamente, foram deteriorando
as qualidades originárias da humanidade. Deste modo, Rousseau, de forma
abrupta, sem anunciar a passagem do primeiro sentido para um outro, na
Segunda Parte do Discurso Sobre a Desigualdade, situa o estado de
natureza na ordem do tempo.
Uma vez que o prefácio do Discurso Sobre a Origem dos
Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens estabelece o marco zero da
espécie humana (o estado de natureza puro), a descrição da evolução da
condição de independência da espécie à condição de
dependência dos outros e das coisas, junto às modificações físicas,
metafísicas e morais, vão se aglutinando até se ajustar às configurações do
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30
“Por importante que seja, para bem julgar o estado natural do homem, considerá-lo desde sua origem e
examiná-lo, por assim dizer, no primeiro embrião da espécie, não seguirei sua organização através de seus
desenvolvimentos sucessivos [...] Não poderei formular sobre esse assunto senão conjecturas vagas e
quase imaginarias [...] assim, sem ter recorrido aos conhecimentos naturais que temos sobre esse ponto e
sem levar em consideração as mudanças que se deram na conformação tanto interior quanto exterior do
homem, à medida que aplicava seus membros a novos usos e se nutria com novos alimentos, eu o suporei
conformado em todos os tempos como o vejo hoje: andando sobre dois pés, utilizando suas mãos como o
fazemos com as nossas, levando seu olhar a toda natureza e medindo com os olhos a vasta extensão do
céu.” (Discurso Sobre a Desigualdade, p.57).
31
Não só estudiosas feministas como também alguns comentadores, cujos estudos são referência para a
análise do pensamento rousseauniano, a exemplo de Starobinski em um prólogo da obra de Rousseau em
língua francesa, estabelecem dois sentidos para o de estado de natureza: o estado de natureza qualificado
como de estado de natureza puro e o estado de natureza histórico, também chamado de pré-social. Ao
longo de nossa explanação clarificaremos tais distinções.
75
homem civil (FORTES, 1989).
Por certo, logo que as dificuldades se impuseram à humanidade,
limitada inicialmente às dádivas da natureza, os indivíduos isolados reagiram
com criatividade para transpor vários obstáculos — acesso à alimentação,
concorrência dos animais e ferocidade dos que ameaçavam a sua vida —
com o fim de garantirem sua sobrevivência (Discurso Sobre a Desigualdade,
Segunda Parte, p.88).
As mudanças climáticas também contribuíram para uma
modificação na maneira de viver dos povos distribuídos ao longo do globo
terrestre: os povos mais próximos à costa marítima inventaram os anzóis e
aprenderam a pescar; aqueles mais voltados ao continente construíram
arcos e flechas e se tornaram guerreiros; por fim, os habitantes das regiões
frias aprenderam a se defender das baixas temperaturas e a conservar os
alimentos (Discurso Sobre a Desigualdade, Segunda Parte).
Por conseguinte, as interações do gênero humano com o meio e
com os outros seres conduziram a espécie a perceber relações que
acabaram por produzir “[...] uma certa espécie de reflexão, ou melhor, uma
prudência maquinal, que lhe indicava as preocupações mais necessárias à
sua segurança”. (Discurso Sobre a Desigualdade, Segunda Parte, p. 90).
Concomitantemente, fundou-se um conhecimento de si e dos outros seres,
daí emergindo a consciência do ser indivíduo e o orgulho no coração humano.
Por fim, nessa etapa, a alteridade ou reconhecimento do outro
como semelhante, decorre do olhar que o indivíduo lança sobre os demais
seres. Rousseau, de maneira “singela e tímida”, nos diz que o macho da
espécie humana, em suas observações, concluiu que a fêmea da
mesma espécie tinha em conformidade as mesmas maneiras de pensar e de
sentir.
Embora seus semelhantes não fossem para ele o que são para nós e não
tivesse mais comércio com eles do que com os outros animais, não foram
esquecidos nas suas observações. As conformidades, que o tempo pôde
fazê-lo perceber entre eles, sua fêmea e sua própria pessoa, levaram-no
a ajuizar aquelas que não percebia e, vendo que todos se comportavam
como teria feito em circunstâncias idênticas, concluiu que suas maneiras
de pensar e de sentir eram inteiramente conformes à sua [...]. (Discurso
Sobre a Igualdade, Segunda Parte, p.89).
Vemos, assim, que o reconhecimento da alteridade modifica a
situação anterior da ausência de vínculos e cria as condições para a sua
instauração:
Ensinando-lhe a experiência ser o amor ao bem-estar o único móvel das
ações humanas, encontrou-se em situação de distinguir as situações
raras em que o interesse comum poderia fazê-lo contar com a assistência
de seus semelhantes e aquelas, mais raras ainda, em que a concorrência
devia fazer com que desconfiasse deles. No primeiro caso, unia-se a eles

76
em bandos ou, quando muito, em qualquer tipo de associação livre, que
não obrigava ninguém, e só durava quanto a necessidade passageira que
a reunia. No segundo caso, cada um procurava obter vantagens do
melhor modo, seja abertamente, se acreditava poder agir assim, seja por
habilidade e sutileza, caso se sentisse mais fraco. (Discurso Sobre a
Desigualdade, Segunda Parte, p. 89).
Destes vínculos grosseiros e fugazes, e também do esclarecimento
do espírito, surge um aprimoramento técnico que acabou por resultar na
criação da habitação, expressão de uma primeira revolução, graças a qual os
indivíduos começaram a compartilha um espaço e vivenciar vínculos
duradouros, bem como a formar sentimentos de estima e de preferência. Este
estágio, restrito ao estado de natureza histórico, é um estágio transitório e
intermediário da humanidade, onde ele não é plenamente mais um ser
selvagem, nem um ser social.
[...] esse estado é a verdadeira juventude do mundo e que todos os
progressos ulteriores foram, aparentemente, outros tantos passos para a
perfeição do indivíduo e, efetivamente, para a decrepitude da espécie.
(Discurso Sobre a Desigualdade, Segunda Parte, p.93).
Como vimos até agora, o significado de Homem natural (inclua-se
aqui homens e mulheres) no estado de natureza, em seu estágio pré-
social, ao longo do Discurso Sobre a Desigualdade, não apresenta
ontologicamente desigualdades entre os dois sexos. Como já pontuamos, a
existência de desigualdades naturais são nulas, pois na verdade as
desigualdades se estabelecem em relações assimétricas.
Sobressai-se, também, que é neste período feliz da humanidade,
precisamente na constituição da família como primeira forma de organização
social, que Rousseau reconhece que a subordinação das mulheres pelos
homens, ou melhor, que a “desigualdade” entre homens e mulheres começa
por meio de uma divisão sexual do trabalho. Diz-nos este filósofo:
Os primeiros progressos do coração resultaram de uma situação nova
que reunia numa habitação comum os maridos e as mulheres, os pais e os
filhos. O hábito de viver junto fez com que nascessem os mais doces
sentimentos que são conhecidos do homem, como o amor conjugal, o
amor paterno. Cada família tornou-se uma pequena sociedade, ainda
mais unida por serem a afeição recíproca e a liberdade os únicos liames e,
então, se estabeleceu a primeira diferença no modo de viver dos dois
sexos, que até ai nenhuma apresentava. As mulheres tornaram-se
sedentárias e acostumaram-se a tomar conta da cabana e dos filhos,
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“Estendi-me desse modo sobre a suposição dessa condição primitiva porque, devendo destruir antigos
erros e preconceitos inveterados, achei que devia pulverizá-los até a raiz e mostrar, no quadro do
verdadeiro estado de natureza, como a desigualdade, mesmo natural, está longe de ter nesse estado tanta
realidade e influencia quanto pretendem nossos escritores.” (Discurso Sobre a Igualdade, Primeira Parte,
p.82).

77
enquanto os homens iam procurar a subsistência comum. Os dois sexos
começaram, assim, por uma via um pouco mais suave, a perder alguma
coisa de sua ferocidade e de seu vigor. (Discurso Sobre a Desigualdade,
Segunda Parte, p. 90-91, grifo nosso).
Não fiquemos, pois, a pensar que a divisão sexual do trabalho foi
criticada por Rousseau ao longo da sua obra. Com o fim de não sermos
imprecisos em nossa análise, enfatizamos que Rousseau, no
desenvolvimento de seu discurso, nos fala que muitas diferenças que
distinguem os seres humanos e são tomadas como naturais, são unicamente
obra do hábito e dos modos de vida que se adotam em sociedade. No
estabelecimento destas diferenças a educação tem também um papel
determinante. Apesar do trecho em questão ser longo, vale a pena registrá-lo.
É fácil de ver, com efeito, que entre as diferenças que distinguem os
homens, inúmeras, consideradas naturais, são unicamente obra do
hábito e dos vários gêneros de vida que os homens adotam em
sociedade. Assim, um temperamento robusto ou delicado, a força ou a
fraqueza, que dele derivam, resultam mais freqüentemente da maneira
dura ou afeminada pela qual foi educado do que a constituição primitiva
dos corpos. A mesma coisa acontece com as forças do espírito; a
educação não só estabelece diferença entre os espíritos cultos e os que
não o são, como também aumenta a que existe entre os primeiros na
proporção da cultura, pois, quando um gigante e um anão andam pelo
mesmo caminho, cada passo, que um e outro dêem, trará uma vantagem
a mais para o gigante. Ora, se se fizer uma comparação entre a
diversidade prodigiosa de educação e de gêneros de vida que reina nas
várias ordens do estado civil, e a simplicidade e uniformidade da vida
animal e selvagem, na qual todos se alimentam com os mesmos
alimentos, vivem da mesma maneira e fazem exatamente as mesmas
coisas, compreender-se-á quanto deve a diferença de homem para
homem sem ser menor no estado de natureza do que no estado de
sociedade e quanto aumenta a desigualdade natural na espécie humana
por causa da desigualdade de instituição. (Discurso Sobre a
Desigualdade, Primeira Parte, p. 82, grifos nossos).
Por certo, a denúncia rousseauniana — que reivindicava uma
razão que não operasse só na mente dos indivíduos, mas também que
operasse no seio da sociedade como práxis libertadora — não teve como
preocupação problematizar a sujeição das mulheres pelos homens; nem
mesmo constatar que as diferenças de papéis e de posições sociais entre os
sexos se deviam a forma como homens e mulheres foram educados e não à
natureza específica do seu ser. Nas palavras do próprio filósofo, como vimos
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33
Para uma melhor compreensão deste período intermediário, ver as seguintes obras de Rousseau:
Discurso Sobre a Desigualdade Entre os Homens, p.91-93 e o Discurso Sobre a Origem das Línguas.

78
no trecho citado, ele não quis levar em consideração que as diferenças de
papéis e de posições sociais que distingue os sexos “são unicamente obra do
hábito e dos vários gêneros de vida que os homens adotam em sociedade”. E
mais, que o “temperamento robusto ou delicado, a força ou a fraqueza, que
dele derivam, resultam mais freqüentemente da maneira dura ou afeminada
pela qual foi educado do que a constituição primitiva dos corpos”.
As inquietações rousseaunianas, notoriamente, se dirigiam ao
plano político. Assim, o interesse de fundamentar as bases legítimas para a
passagem da liberdade natural à liberdade civil, expresso nas palavras
iniciais do Contrato Social, foi o seu quinhão. Dado que no estado
de natureza, antes do surgimento da sociedade civil, todos os homens eram
iguais entre si, parecia mais importante para Rousseau buscar os motivos
que levaram o ser humano a se assenhorear do seu semelhante e encerrá-los
em grilhões, do que discutir sobre as garantias dos direitos políticos das
mulheres e da sua pretensa liberdade.
Na verdade a razão rousseauniana não combateu a razão
patriarcal, pelo contrário a reforçou ideologicamente ao ocultá-la; ao
transparecer que a divisão dos papéis entre os sexos foi resultado de um
consenso, conseqüência de um acordo harmonioso que se deu por um
contrato conjugal tendo em vista o estabelecimento da família (RODRIGUES,
2005). Aliás, é no seio da família que a complementaridade dos sexos, por
meio do matrimônio, que a sociedade adquiriria perfeição moral e o equilíbrio
da organização social alicerçada na divisão entre o público e o privado. Por
isso, Rosa Cobo (1995), Marie Blanche Tahon (1999) e Carole Pateman
(1993) ressaltam que a naturalização da divisão sexual do trabalho tinha
motivos intencionais e de necessidade política.
As quebras lógicas do pensamento rousseauniano, no Discurso
Sobre a Desigualdade Entre os Homens, apresentadas por Rosa Cobo
(1995, p.91), dão margem a pensarmos que as atribuições naturais
destinadas a homens e mulheres assinalam que estas naturezas se originam
em estágios diferenciados do estado de natureza, que fundam o suporte para
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34
O Emílio como um exemplo do homem natural deve conservar as suas qualidades originárias estando em
sociedade, o que justifica uma educação que proporcione a autonomia e a liberdade.
35
Seyla Benhabib (1987), em consonância com Carol Gilligan (1982), entende que justiça e direito, cuidado
e responsabilidade não são orientações bipolares ou dicotômicas, mas aspectos compatíveis no âmbito da
moralidade; o “[...] problema é que o núcleo sustentável das idéias de reciprocidade e equidade é com isso
identificado com as perspectivas do outro generalizado desimpedido e desencarnado.” (BENHABIB, 1987,
p. 99). É interessante notar que Seyla Benhabib (1987) demonstra no seu artigo a possibilidade do
feminismo incorporar os aspectos normativos da teoria da ética comunicativa de Habermas. Esta autora
nos chama a atenção para o fato que ao estabelecer uma distinção entre o outro concreto e o outro
generalizado ela não a faz em termos prescritivos, mas em termos críticos, expressando os seus objetivos
do seguinte modo: “Não é meu objetivo prescrever uma teoria moral e política consoante com o conceito de
'outro concreto'. Porque, de fato, o reconhecimento da dignidade e valor do outro generalizado é uma
condição necessária, embora não suficiente para definir a opinião moral nas sociedades modernas.”
(BENHABIB, 1987, p.103).
79
o espaço público e para o espaço privado.
Acertadamente, Rosa Cobo (1995) nos diz que no estado de
natureza puro estará o homem e no começo posterior a mulher. Um lapso na
análise de Cobo (1995), entretanto, é não deixar explícito, imediatamente,
que o homem embora esteja situado no estado puro de natureza, tomado aqui
no aspecto descritivo que representa o espaço de autonomia, de liberdade e
também de irracionalidade — transpõe esse estágio para ascender ao
espaço social. Nesta passagem para o estado civil se dão modificações na
conduta do homem, na qual a substituição das ações motivadas
pelo instinto dará lugar aos princípios racionais. Sendo assim, parece que a
mulher, ao longo do processo histórico da humanidade, ficou petrificada,
caudatária da espontaneidade dos instintos e da sensibilidade em detrimento
da racionalidade, à esfera da reprodução ao invés da esfera da produção.
Como nos mostra Íris Young (1987, p. 68), “o público cívico da cidadania” se
opõe às “dimensões públicas e privadas da vida humana, que corresponde a
uma oposição entre razão, de um lado, e o corpo, afetividade e desejo, do
outro. Ainda conforme, Íris Young (1987, p. 68):
Os [sic] feministas mostraram que a exclusão teórica das mulheres do
público universalista não é mero acaso ou aberração. O ideal do público
cívico exibe uma vontade de unificar, e exige a exclusão de aspectos da
existência humana que ameaçam dispersar a unidade fraternal de formas
retas e verticais, especialmente exclusão das mulheres [sic]. Dado que o
homem como cidadão exprime o ponto de vista universal e imparcial da
razão, alguém tem que cuidar de seus desejos e sentimentos particulares.
Seyla Benhabib (1987) também se ocupou em criticar o ponto de
vista moral do “outro generalizado” existente na ficção do “estado natural” das
teorias do contrato, e aqui reside também as nossas análises quanto ao
aspecto normativo e ético do estado puro de natureza. Para a cientista
política, a perspectiva moral do “eu generalizado” demonstra uma concepção
errada de autonomia e de universalidade moral, sem reciprocidade. Segundo
a autora, o ponto de vista do “outro generalizado” leva tanto a uma
privatização da experiência das mulheres quanto a uma exclusão
destas mesmas experiências nas considerações morais.
Quanto à educação rousseauniana, é no Emílio (2004) que
Rousseau discute, primeiramente, o desenvolvimento e a educação
necessários para a formação moral de um cidadão ideal, diga-se, do Emílio.
Para que este possa distinguir entre o bem e o mal, já que essa é uma das
prerrogativas para se viver em uma sociedade justa, é preciso que ele
aprimore a razão, a fim de que ela lhe proporcione os critérios apropriados de
avaliação e julgamento. O aprimoramento dos sentidos e da razão seria,
portanto, arma indispensável contra a corrupção da consciência moral inata.
Por certo, haveremos de perceber que ele não propõe uma educação moral a
rigor para o Emílio, mas sim uma educação para a liberdade ou, dito de outra
80
forma, uma educação para a autonomia moral.
Em contraposição à educação do Emílio, notamos que à sua
futura esposa, Sofia, destina-se não uma educação para a autonomia e para
a liberdade, mas uma educação débil, de caráter instrumental, favorável a
“natureza feminina”, porém, que aprisiona Sofia ao seu corpo e define o seu
ser, suas ações e seus sentimentos à esfera privada e à procriação. Diz-nos
Rousseau (2004, p. 516):
Em tudo que depende do sexo, a mulher e o homem têm diferenças; a
dificuldade de compará-los provém da dificuldade de determinar na
constituição de um e de outro o que é do sexo e o que não é. Pela
anatomia comparada, e até pela simples observação, vemos entre eles
diferenças gerais que parecem não estar ligadas ao sexo; no entanto
estão ligadas a ele, mas através de laços que não temos condições de
perceber. Não sabemos até onde esses laços podem estender-se. A única
coisa que sabemos com certeza é que tudo o que têm de diferente
pertencem ao sexo.
E ainda acrescenta:
Naquilo que têm em comum [espécie] eles [Emílio e Sofia] são iguais; no
que têm de diferente não são comparáveis. Uma mulher perfeita e um
homem perfeito não devem parecer-se pelo espírito mais do que pelo
rosto, e perfeição é suscetível de mais ou de menos. (ROUSSEAU, 2004,
p. 516).
Por meio das citações acima e de considerações explícitas de
Rousseau ao sexo masculino, no Livro V do Emílio, podemos afirmar que a
sexualidade feminina é o destino e a via de sua inferioridade. De modo veraz,
o que prevalece na mulher é o sexo, “[...] o macho é macho em certos
instantes [ato sexual], a fêmea é fêmea por toda a vida”. (ROUSSEAU, 2004,
p.521). A mulher é sempre imanência e o homem sempre é transcendência.
Vale ressaltar que esta idéia de natureza (imanência, coisa em si) e cultura
(transcendência), nascente da ideologia naturalista burguesa do século XVIII,
vai tomando contornos até culminar com a diferença estabelecida por Kant
_____________________________________________________________

36
“Para la mayoria de los filósofos ilustrados, el que la mujer carezca de razón y sólo tenga uma razón
inferior depende de uma tranqüilizadora evidencia, pero que, no obstante, aspira a apoyarse em los
hechos. Entre estos hechos, el que más a menudo se repite es el de que no haya mujeres capaces de
invención, que están excluídas de la genialidade, aun cuando puedan acceder a la literatura y a
determinadas ciencias.” (CRAMPE-CASNABET, 1991, p. 89).
37
Esta condição de objeto é perfeitamente perceptível nas obras filosóficas, uma vez que é o homem-
filósofo que estabelece o duplo discurso do homem sobre o homem e do homem sobre a mulher. A partir
destes discursos unilaterais, vinculados pela escrita e mascarados pela perspectiva da neutralidade, que
se enxertam processos ideológicos cuja finalidade nada mais é do que justificar a posição do outro que lhe
é exterior. Aliás, é considerando o outro como exterior que o coisificamos para apreendê-lo e interpretá-lo
(cf. BEAUVOIR [2000]; CRAMPE-CASNABET, 1991).

81
entre o reino da Natureza — onde opera as leis puramente mecânicas — e o
reino da Humanidade — onde opera a liberdade ou causa final e interna.
Aliás, no que se refere à mulher, o corpo feminino é invocado
como elemento natural que não se pode decompor e atestando uma
diferença primária — a biológica — que, ideologicamente, legitima a
impossibilidade de uma igualdade entre os sexos. Também, posto que as
diferenças físicas entre um sexo e outro nas relações sexuais — um deve ser
ativo e o outro passivo, como nos diz Rousseau no Emílio — são transpostas
para o plano da moralidade, não seria incorreto estendermos tal
compreensão no nível epistemológico, já que todas as diferenças estão
ligadas ao sexo.
No campo epistemológico, o entendimento ativo masculino
informa e organiza a passividade da sensibilidade feminina
(CRAMPE-CASNABET, 1991). Em tudo vemos, portanto, que a mulher não
passa de um objeto, uma vez que ser sujeito, como nos diz Marilena Chauí
(1985, p. 36), “[...] é construir-se como capaz de autonomia numa relação tal
que as coisas e os demais não se ofereçam como determinadores do que
somos ou fazemos, mas como o campo no qual o que somos e fazemos”. Os
resultados de tal assimetria, numa relação hierárquica de desigualdade, são
nefastos:
Em sociedades como as nossas, marcadas pelo selo da racionalidade
instrumental a sensibilidade é considerada como uma preparação, uma
antecipação ou forma menor do pensamento racional (quando não uma
ausência do pensamento). Numa perspectiva empirista, a sensibilidade
prepara o terreno para as elaborações teóricas abstratas; numa
perspectiva intelectualista, costuma ser o lugar privilegiado do erro (pois
os sentidos sempre nos enganam); numa perspectiva criticista (de tipo
kantiano), é apenas a primeira organização sintética dos dados da
experiência e, do ponto de vista moral, um embaraço para a ética da
liberdade, pois a marca da sensibilidade é o sentimento com conteúdos
particulares que não conseguem atingir a universalidade formal das
máximas livres; numa perspectiva dialética, é o momento do para-si
alienado, contato imediato e abstrato com o real como pura exterioridade
carente de espírito, pois este se efetua apenas por mediações reflexivas e
interiores. (CHAUÍ, 1985, p.44).

82
MARY WOLLSTONECRAFT : a irreconciliável tensão entre o feminismo e a
ilustração
Em se tratando dos ideais Iluministas de igualdade e liberdade ,
esses foram retomados na Inglaterra, em favor da emancipação feminina,
por Mary Wollstonecraft através da obra Vindication of the rights of women
publicada um ano depois de Olympe de Gouges ter escrito, na França, a
Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadania em 1791.
Essa eminente personalidade feminina foi educadora e escritora
britânica, considerada como a “pioneira”, ou melhor, uma das pioneiras do
feminismo moderno e que fez de sua trajetória de vida uma ponte para as
suas reflexões. Focaliza, sobretudo, sobre os aspectos educativos para os
quais encontrou fundamento no pensamento pedagógico de Locke e de
Rousseau, pensadores com os quais que irá discordar após certo
amadurecimento intelectual. Ao analisar os seus escritos percebemos que o
seu interesse pela educação, assim como todo o pensamento feminista
liberal, tenta romper com a opressão/subordinação das mulheres, a partir da
compreensão que essa opressão/subordinação perpassa
[...] desde o ponto de vista de sua socialização em uma variedade limitada
de funções e suposições, e como forma em que a tradição cultural, que
persistia em estabelecer uma grande diferença entre a mulher e o
homem, impunha o exercício das ditas funções. (BARRETT; PHILLIPS,
2002, p.14)

Como dissemos, anteriormente, boa parte das reflexões de Mary


Wollstonecraft parte de sua experiência de vida. Mary nasceu no subúrbio
industrial de Londres, em 1759, no seio de uma família de classe burguesa
empresarial britânica, provavelmente do ramo de seda. Aprendeu o que era
fatiga e miséria na busca de independência econômica, a partir da quebra da
empresa paterna decorrente de uma desastrosa gestão patrimonial, que
levou o seu pai e toda a sua família aos estratos mais humildes e precários da
pequena burguesia. A sua formação educacional esteve conformada aos
valores e comportamentos assinalados para a mulher dentro da classe média
ascendente. Entretanto, a ruína familiar ocasionou um duplo efeito na vida de
Mary, a saber: um efeito moral e econômico, dada a inexistência de um dote
que lhe possibilitasse um casamento idealizado por uma moça educada em e
para a classe média.
Com 19 anos fugiu da casa do pai, devido ao caráter violento do
mesmo. Depois de dois anos, voltou para casa com o fim de cuidar da sua
mãe doente, que veio a falecer depois de um longo sofrimento que a tornou
completamente dependente dos cuidados de Mary (WIKIPÉDIA, 2009b, p. 1):
“As últimas palavras da sua mãe seriam muitas vezes recordadas e citadas
pela escritora quando, mais tarde, atravessou períodos difíceis na sua vida:
'Um pouco de paciência, e tudo estará acabado'" (WIKIPÉDIA, 2009b, p. 1).
83
Em 1784 abriu uma escola em Newington Green, uma pequena
aldeia perto de Fiacre, com sua irmã Eliza e uma amiga. Assim que chegaram,
Mary fez amizade com Richard Price, um ministro anglicano de idéias
avançadas, da capela local. Price e seu amigo, Joseph Priestly, eram os
líderes de um grupo conhecido como Dissidentes Racionais, que rejeitava os
dogmas cristãos - como o pecado original, o juízo final e a condenação às
penas eternas. Foi por meio de Richard Prince, teólogo e filósofo, que Mary se
aproxima das obras de Locke e de Rousseau (BURDIEL 1996; MARTINO;
BRUZZESSE, 1996, p.219).
Segundo Martino e Bruzzesse (1996, p.219), em 1785 Mary fez
um viagem para Lisboa, onde assistiu a morte por parto de sua amiga Fanny.
Decorre daí, segundo esses autores, a percepção “da difícil condição
feminina de sua época”. Dois anos depois ela publica o seu primeiro escrito
Reflexões sobre Educação das filhas. Nele e no artigo escrito no Analitical
Rewiew intitulado Cartas sobre a Educação, Mary Wollstonrcraft centra a sua
crítica em dois aspectos: 1) orientação moral que consiste em dirigir as
futuras mulheres para o matrimônio 2) constituição de uma educação que
resulta em prejuízos intelectuais para as meninas.
Percebendo as dificuldades pessoais e as que Eliza (sua irmã) e
Fanny (sua amiga) enfrentaram para se sustentarem sem que rompessem
com os padrões morais da época, em sua primeira obra, Mary Wollstonrcraft
destaca as dificuldades que as jovens, mesmo instruídas, enfrentam para se
inserir socialmente (MARTINO; BRUZZESSE, 1996; TOMMASI,
2002). Assim, essa pensadora iluminista já se mostrava corajosa na crítica
que encorajava às mulheres a serem “dóceis e atentas à aparência”, como
bem ensinava Rousseau no Emílio ou da Educação em seu Livro V.
A inserção de Mary no círculo intelectual, em que estava inserido
o teólogo Richard Price, fez com que ela também se empolgasse com os
acontecimentos revolucionários de Paris e tomasse posição em favor dos
membros do seu círculo que relacionava a revolução de 1668 a de 1789,
posição contrária ao intelectual conservador Edmund Burke que se opôs à
Revolução Francesa:
[...] para ele um edifício erguido em bases frágeis, a
Constituição Inglesa, cuja sabedoria profunda não reside num certo
universo de regras e princípios gerais, mas em uma vasta e subtil
harmonia de costumes, de preconceitos, de instituições concretas
estruturadas no decurso dos séculos. Essa antítese das duas
constituições é o pano de fundo no qual Burke projeta, a propósito dos
inícios da Revolução Francesa, os principais temas de uma filosofia do
conservadorismo. (WIKIPÉDIA, 2009a, p. 1)

È justamente inspirada nos ideais emancipatórios da Revolução


84
Francesa que, em 1792, Mary escreve, em seis semanas, Vindication of the
rights of woman (Reivindicação dos Direitos da Mulher); razão pela qual essa
obra apresenta um estilo literário pouco cuidadoso com um tom apologético e
panfletário. De forma sintética, podemos dizer que os principais argumentos
dessa obra giram em torno da: 1) Defesa da unidade da espécie e
reivindicação das mulheres como seres racionais tais como os homens; 2)
Igualdade entre os gêneros ; 3) Luta radical contra os prejuízos do modelo de
educação feminina vigente; 4) Educação igual para meninos e meninas; 5)
Exigência de direitos de cidadania para a mulher.
O mais interessante é que ela evidencia o quanto discorda de
Rousseau recusando a idéia “de que a mulher tenha unicamente de agradar
ao homem e estar subordinada a ele. Como se vê no Emílio, a educação de
Sofia está concebida somente em função do predomínio do marido.”
(TOMMASI, 2002, p. 133). Vale ressaltar que é no capítulo V de Vindication of
the rights of woman - coincidentemente o mesmo capítulo em que o filósofo
trata da educação de Sofia, ou da mulher natural em seu livro -
que Mary Wollstonecraft tece os paradoxos de tal pensamento.
Primeiramente Mary Wollstonecraft nos dirá que Sofia é um
modelo de mulher que habita no imaginário de Rousseau e carece de
realidade histórica: ela é um ser artificial. Decerto, ela não esta errada, pois é
no inicio do capítulo V do Emílio que o referido filósofo faz uma alusão ao
aparecimento de Sofia como o advento de Eva no paraíso; só que ao invés de
tirar Sofia da costela do Emílio ele o retira da cabeça.
Outro aspecto da critica de Mary é evidenciado por Wanda
Tommasi (2002). Para essa filósofa a pensadora inglesa mesmo percebendo
que Rousseau dá vazão aos sentimentos sendo, portanto, um crítico da razão
iluminista, entendeu que ele também exclui “a mulher ao direito a razão, a
exclui do saber e a distancia da verdade”. Ainda segundo Tommasi (2002,
p.132)
A autora condena resolutamente o vicio das mulheres daquela época [que
se adequaram ao modelo de feminilidade rousseauninao]. Dirigindo um
olhar sem compaixão sobre elas, criaturas ociosas e inúteis, que se
comprazem em si mesmas, ignorantes, indolentes e passivas, não lhes
imputa, sem dúvida, essas características negativas, senão que as atribui
a uma educação equivocada, que favorece nelas as piores inclinações.
Ao reivindicar os direitos das mulheres, desde o direito a participar na vida
política ao de ter uma instrução semelhante aos dos homens e gozar de
uma independência pessoal, inclusive no aspecto econômico, Mary
Wollstonecraft recorda que, junto a esses direitos, existe os
correspondentes deveres: as mulheres estão chamadas a serem
responsáveis, a cultivar a sua própria dignidade e moralidade.
85
Salientamos que Mary Wollstonecraft se utiliza das próprias
noções de Rousseau, a exemplo de razão, natureza e virtude, resignificando-
as de forma absolutamente ilustrada. Assim, a noção de razão utilizada pela
autora tem como gênese o bom senso (algo distribuído igualmente a toda a
humanidade) de Descartes e que é igualmente utilizado por Poullain de la
Barre como mecanismo de desmascaramento dos prejuízos provenientes da
tradição, dos costumes e valores sociais. Mary aproveita esse conceito de
razão para demonstrar como os prejuízos, tidos como inatos, impedem a
emancipação feminina. O gosto e educação destinadas a formar mulheres
subservientes decorrem da socialização. E não no que atesta, por exemplo,
Rousseau ao nos falar que, no que se refere às meninas, há uma
inclinação natural pelo qual o “físico da arte de agradar” já está nos adereços
e as meninas acabam por transferir, posteriormente, este comportamento
para o seu corpo, priorizando a beleza e a sedução. Diz-nos explicitamente o
filósofo:
Observai uma menina que passa o dia com a boneca, que a arruma sem
parar, veste-a, desveste-a mil vezes, procura continuamente novos
arranjos de enfeites bem ou mal combinados, não importa; os dedos não
são ágeis, o gosto não está formado, mas a inclinação já desponta; nessa
eterna ocupação o tempo passa sem que ela perceba; as horas passam e
ela não se dá conta; esquece as próprias refeições, tem mais fome de
enfeites do que de comida. Mas, direis, ela enfeita a boneca e não a si
mesma. Sem dúvida; ela vê a boneca e não se vê, nada pode fazer para si
mesma, não acabou de crescer, não tem nem talento nem força, ela nada
é ainda e está toda em sua boneca, coloca nela toda a sua faceirice. Mas
não a deixará ali para sempre, pois espera o momento de ser ela mesma a
sua boneca. (Emílio, Livro V, p. 532).

Decorre daí outra crítica, a saber: ao estado de natureza


rousseuaniano. Para Mary Wollstonecraft, Rousseau confunde o
submetimento das mulheres aos costumes e à moral como estado de
natureza. Ainda conforme a autora, Rousseau apresentou a diferença como
desigualdade usando a seguinte operação: 1) o filósofo estabelece os
deveres de cada sexo 2) sobre os ditos deveres estabelece as inclinações
sociais. Disso decorre dois estados de natureza diferentes, segundo os quais
se fundamentam os direitos diferenciados para os sexos. Wollstonecraft
retoma o significado normativo de tal conceito com vista a exigir a igualdade
também para as mulheres. Esse conceito provém do Jusnaturalismo que
afirmava direitos naturais que têm sua gênese na razão: se todos têm os
mesmos direitos naturais, homens e mulheres devem ter os mesmos direitos
sociais.
A noção de virtude rousseauniana, também, é criticada por ser a
expressão de um sujeito responsável, imparcial e racional que dirige as
86
coisas públicas. As mulheres diferentemente são tomadas como seres
passionais, parciais em seu julgamento e voltadas para os
interesses privados; elas não são virtuosas, apenas possuem qualidades que
lhes são atribuídas por aqueles que podem delegar valor. Os homens na
distribuição dos valores ficaram com o que lhes confere excelência e
atribuíram às mulheres o menos valioso, ou melhor, qualidade de serem
subservientes.Essa perspectiva que distingue valores de qualidades é a
mesma que podemos perceber em Simone de Beauvoir que nos diz o
seguinte quanto a essas qualidades ou “virtudes femininas”
É porque elas são mistificadas, que vemos florescerem nas mulheres
virtudes inúteis e encantadoras tais como pudor, o orgulho, a delicadeza
exagerada; em certo sentido são defeitos; engendram mentiras,
suscetibilidades, cóleras, mas explicam-se facilmente pela situação em
que são colocadas as mulheres; estas são levadas a pôr seu orgulho nas
pequenas coisas, ou, pelo menos, “nas coisas que só têm importância
pelo sentimento”, porque todos os objetos “ditos importantes” acham-se
fora de seu alcance; seu pudor resulta da dependência em que se acham:
porque lhes é proibido dar o que podem em seus atos, é seu próprio ser
que elas põem em jogo; parece-Ihes que a consciência de outrem e em
particular a de seus amantes as revelam em sua verdade; têm medo disso
e tentam escapar-lhes, e, em sua fuga, suas hesitações, suas revoltas, e
até em suas mentiras, exprime-se uma autêntica preocupação do valor; e
é o que as torna respeitáveis (BEAUVOIR, 1970, p. 270).

Mary Wollstonecraft tenta resignificar o conceito de virtude e


romper com a dupla moral ao recorrer conceito de virtude em termos
kantianos, ou seja, ao afirmar que se a virtude, como expressão moral,
provém da razão ela deve ser também universal.
Decerto, as bases de um feminismo iluminista, como foi o de Mary
Wollstonecraft, trouxe “uma noção de sujeito político forte e consciente, a
crença na razão e na racionalidade, no progresso político e social, na
possibilidade de grandes programas de reforma social” (BARRETT;
PHILLIPS, 2002, p.15) ao tempo que possibilitou a abertura para uma critica
que o “'homem' é o que vagueia na humanidade, e repassa os falsos
universais que se puseram em circulação no pensamento liberal clássico”
(BARRETT; PHILLIPS, 2002, p.15). Essa perspectiva do
pensamento feminista liberal levou muitas mulheres a pagarem um preço
muito alto pela igualdade a que almejavam. Elas se esqueceram de seus
corpos, considerando- os como uma prisão, em termos platônicos. Conforme
as pertinentes considerações de Wanda Tomasi (2002, p.136), falando de
forma particular de Mary Wollstonecraft:
Essa diferença, identificada como uma condição feminina histórica e

87
simbolicamente subordinada, lhe parece a Mary Wollstonecraft uma
prisão de que a liberasse e não uma possível fonte de significados e
modos de ser no mundo. Esta é a causa de sua dureza com as 'mulheres
em geral', que 'hão adquirido todas as loucuras e os vícios da civilização e
hão desejado de colher seus úteis frutos. Descreve inclusive o corpo
feminino, em sua correspondência privada e em sua novela Mary, como
um peso que se deseja sentir de maneira especialmente pesada,
compreensivelmente, duramente na gravidez, com sua conseguinte
limitação de energia. Delineia-se nela a 'dura oposição ilustrada entre
razão e corpo', e não mais a temperada e serena, entre razão e
sentimento. Completamente situada dentro do paradigma moderno da
igualdade e de unidade dos sexos, Mary Wollstonecraft recolhe até o
fundo seu significado liberador para as mulheres porém, para fazê-lo, se
vê obrigada a desfazer-se simbolicamente de uma diferença feminina que
não pode propor como valor, porque tem sido sistematicamente
desvalorizada por uma tradição andocêntrica e misógina.

Isto não inviabiliza, porém, que o feminismo mantenha os


contornos de Iluminismo contemporâneo que se fixa, na linguagem
habermaniana, no mundo vivido (lugar onde se dá os processos de interação
social) querendo ver tudo, sem se esquivar, “[...] porque o que se esquiva está
sob suspeita de servir a propósitos anti-humanos” (ROUANET, 1988, p.147).
Para o filósofo Sérgio Rouanet, o iluminismo
[...] é emancipatório quando significa que não há interdições a priori nem
santuários de invisibilidade que criem privilégios contra o olhar, mas tem
algo de inquietante quando pressupõe o desaparecimento de todos os
nichos de intimidade pessoal e a extinção das fronteiras entre esfera
privada e pública. É emancipatório quando significa observar o poder,
para desmascará-lo, não quando significa observar os homens, para
submetê-los ao poder. É emancipatório quando significa olhar a natureza
para estabelecer com ela uma relação fraterna, não quando significa olhá-
la como objeto de exploração e domínio. É emancipatório quando
significa que o mundo das coisas está sob a jurisdição da ciência e da
técnica, não quando estende a ciência a técnica ao mundo das relações
humanas, expondo-o a um olhar objetivante que o equipara ao mundo das
coisas. (ROUANET, 1988, p.138).

É desta forma e somente desta forma, sem o afastar dissimulado,


sem o trato com desdém, que o feminismo com uma perspectiva Iluminista
cumpre o seu papel emancipatório.

88
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91
O CORPO FEMININO NA OBRA DE PEDRO AMÉRICO: tessituras de
gênero e vivência artístisca
Márcia Silva Costa
Profª Drª Ligia Pereira dos Santos

INTRODUÇÃO

O presente artigo discute como os condicionantes sócio-


antropológicos influenciam a caracterização da corporeidade masculina e
feminina na obra do artista plástico paraibano Pedro Américo, considerando
as questões de gênero e articulação com o feminismo.
Nosso estudo toma, portanto, como ponto central a visão de que o
conceito de gênero se constitui pela linguagem seja ela oral ou visual, ou seja,
pelo discurso material e artístico que representa um instrumento de
orientação dos padrões culturais e históricos. Tudo que vivemos é permeado
pela linguagem, por discursos nos quais não são apenas palavras, mas
linguagem oral e corporal, que produzem atos que têm significado cultural.
Logo, a atenção especial desta pesquisa foi conferida à corporeidade e a arte
na sua importância quando da construção social dos gêneros masculino e
feminino.
O gênero como formador da auto-identidade pode ser definido
como um conjunto de idéias que informam cada sexo, num determinado
contexto, a respeito de seus corpos. As categorias homem e mulher não são
universais, os seus conteúdos variam de cultura para cultura, estando a elas
associado um vasto leque de atividades, atitudes, valores, objetos, símbolos
artísticos e expectativas de acordo com o período histórico.
Os corpos humanos são marcados pelo divisor gênero e sexo.

_____________________________________________________________

38
Bolsista da Extensão da Universidade Estadual da Paraíba
39
O artista plástico Pedro Américo de Figueiredo e Melo nascido a 29 de abril de 1843 no município
paraibano de Areia. Aos 9 anos de idade, foi conhecido e admirado como artista. Partiu com a expedição
científica do Museu Nacional em março de 1853, com o naturalista francês Brunet, pelo o interior do
Nordeste brasileiro por vinte meses, como desenhista da equipe. Brunet encaminhou ao Presidente da
Província uma carta e dois desenhos do artista e, em dezembro de 1854, com onze anos de idade, estava
matriculado no Colégio Pedro II custeado pelo Imperador no Rio de Janeiro. No ano de 1856, aos 13 anos
de idade, iniciou o curso de Arte na Academia Imperial de Belas Artes dominando o curso em apenas dois
anos. Em 1858, aos 15 anos de idade, Pedro Américo requereu ao Imperador a concessão de uma bolsa
para estudos de aperfeiçoamento na Europa. Em abril de 1859, o Imperador, concedeu-lhe e estudou até
1864, na Academia de Belas Artes de Paris, no Instituto de Física de Ganot e na Universidade de Sorbonne.
Em 1868 recebe o grau de Doutor em Ciências Naturais, aprovado com distinção, recebendo o “grau de
adjunto na Universidade de Bruxelas”. Foi eleito em 1889, Deputado Federal pela Paraíba e durante sua
atuação na Câmera Federal, desenvolveu projetos de criação de galerias de artes, universidades e
teatros. Fez telas de grande destaque como: o Cristo Morto, o Cristo Ressuscitado e o Cristo Vivo. Faleceu
em Florença a 7 de outubro de 1905, aos 62 anos de idade. Seu corpo foi embalsamado e remetido ao Rio
de Janeiro. Só em 28 de abril 1906 foi concedida, pelo governo brasileiro, a autorização para que seus
despojos mortais fossem levados para a Areia/PB, onde está sepultado.

93
Sexo é associado à genitália masculina ou feminina, e, o critério base para
marcar os indivíduos numa categoria de nascimento, enquanto que gênero a
construção social do que ser masculino e feminino, para marcar os indivíduos
numa categoria histórico-cultural.
Ao longo da história, os corpos têm sido alvo de injustiças sociais
de ordens variadas. As mulheres são marcadas pelo culto ao belo e ao santo
enquanto que os homens igualmente oprimidos, devido o sentimento de
culpa masculina em relação aos malefícios do patriarcado na sociedade,
necessitam provar ser valente, forte, insensível, entre outros perfis.
A corporeidade masculina, tal como vivenciada no Ocidente,
fundamenta valores e, em si própria, constitui um valor social, mantendo-se e
reproduzindo-se, dada sua importância inegável nos processos sociais
diversos. Conforme a tradição, a masculinidade hegemônica ocidental
provocou o surgimento de cultos do que comumente é definido como a
verdadeira masculinidade. Marcada pela excessiva valorização da virilidade,
do sentido do dever, do sacrificar-se pelo bem da sociedade, do ideal de
guerreiro, este culto da masculinidade fez nascer modelos masculinos como
Silvester Stalone e Jean Claude Van Dame.
Postulamos quão importante estudarmos como a corporeidade
nas relações de gênero é tecida cotidianamente, discutindo sobre o
significado da produção artística, aprofundando discussões sobre o conceito
de masculinidade e feminilidade com alunos e as alunas de uma escola
pública, considerando as construções de gênero e sua articulação com o
feminismo.
Destruir os estereótipos e reparar os danos causados a
corporeidade configura-se como um desdobramento dos estudos de gênero
decorrentes dos avanços históricos do movimento feminista. A proposta
feminista tem aí suas origens, a busca contínua na promoção da eqüidade de
gênero.
Importa desvendar os mecanismos que mascaram, através da
história, tratamentos iniquânimes entre os gêneros nas produções artísticas
que, por terem sido naturalizadas, tornam-se difíceis e, às vezes, quase
impossíveis de serem identificadas como preconceitos e estereótipos.
Vislumbrando a possibilidade de construir novas versões e sentido sobre a
corporeidade na educação se constitui tarefa inadiável refletir sobre a arte e
suas ligações com os padrões sexistas no espaço escolar num processo de
promoção de diálogo com discentes e docentes.
Tendo como suporte teórico a perspectiva pós-crítica,
dialogamos com diversos teóricos tais como: Pierre Bourdieu (2003), Michel
Foucault (1988), Anthony Giddens( 2001), Joan Scott (1995), Franco
Cambi(1999), Elizabeth Banditer(1993), Aminatta Forna(1999), Christian
Laville (1999) e Paulo Freire (1996).
94
História e arte: Comprendendo Os Elos Da Corporeidade
Fazer um recuo na história nos permite enredar no “universo
forjado pelos homens”, uma história de caçadores, guerreiros, vencedores,
aristocratas cujas interpretações privilegiam um passado feito de um sistema
de masculinidades e feminilidades, um lugar onde as mulheres vivem à
sombra de um mundo dominado pelo gênero masculino.
A força particular da sociodicéia masculina lhe vem do fato de ela
acumular e condensar duas operações:ela legitima uma relação de
dominação inscrevendo-a em uma natureza biológica que é, por sua vez,
ela própria uma construção social naturalizada (BOURDIEU, 2003, p. 33).
O surgimento da divisão do trabalho e educativa entre homens e
mulheres configura-se como marco inicial da segregação sexual
que fixou como “estilo de vida” à supremacia masculina instituindo o domínio
do homem sobre a mulher, delimitando papéis sexuais, sociais,
competências, instituindo produção artística, voltada para o domínio da
natureza.
Ao longo da história, a consolidação do sexo masculino como
uma espécie de chefatura do gênero humano progrediu. Assim, as mulheres
ficaram incumbidas de tarefas domésticas como: tecer, cuidar das plantações
e fazer cestos enquanto os homens ficaram responsáveis por caçar,
domesticar animais, construir habitações, proteger e defender a tribo, num
processo de inculcação cultural.
A cultura de uma sociedade engloba tanto os aspectos intangíveis – as
crenças, as idéias e os valores que constituem o teor da cultura – como
aspectos tangíveis – os objetos, os símbolos ou a tecnologia que
representam esse conteúdo ( GIDDENS, 2001, p.22).
A Antigüidade clássica como objeto de reflexão leva ao
aprofundamento do fosso entre a formação cultural das elites e das massas e,
da conseqüente construção simbólica da masculinização da história da
humanidade. O mundo clássico pode aparecer tanto como inspirador da luta
pela liberdade, pela igualdade, pela instituição do direito romano, base de
nosso sistema jurídico, como pode, mais comumente, servir para justificar o
status quo patriarcal e opressivo das sociedades. À elite assimilada ao
Ocidente, a Grécia antiga pode significar pureza étnica, justificativa para a
escravidão e superioridade artística estética e cultural ariana.
Enquanto seres humanos, somos corpóreos – isto é todos, possuímos um
corpo. Mas o corpo não é algo que nos limitemos a ter, nem algo
puramente físico que existe separado da sociedade. Os nossos corpos
são profundamente afetados pelas nossas experiências sociais, bem
como pelas normas e valores dos grupos a que pertencemos. (GIDDENS,
2001, p.146).
A supremacia do gênero masculino foi ratificada na cultura e vida
social através da construção e/ou reprodução de uma mentalidade coletiva. A
95
história da Antigüidade (período que se estendeu desde a invenção da escrita
até à queda do Império Romano do Ocidente) surge, então,
como elo constante da realidade atual com suas origens ideológicas
confirmando que as identidades masculina e feminina são construções sócio
historicamente construídas. E consequentemente a construção arbitrária de
papéis sociais tendo por pressuposto as diferenças biológicas.
[...] toda a ordem natural e social, é uma construção arbitrária do biológico,
e particularmente do corpo, masculino e feminino, de seus usos e de suas
funções, sobretudo na reprodução biológica, que dá um fundamento
aparentemente natural à visão androcêntrica da divisão de trabalho
sexual e da divisão sexual do trabalho e, a partir daí, de todo o cosmos
(BOURDIEU, 2003, p. 33).
Os resquícios históricos e culturais das civilizações Greco-
romanos nos permitem compreender o modelo de masculinidade arraigada
na sociedade contemporânea. Os modelos interpretativos correntes são
normativos, como se houvesse uma única cultura (aquela da elite masculina),
cujos preceitos seriam forjados pela aristocracia e aceitos por
camponeses/as, escravos/as, comprovando a superioridade de poucos/as e
a inferioridade de muitos/as.
A força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela dispensa
justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem
necessidade de se enunciar em discursos que visem a legitimá-la. A
ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a
ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça: é a divisão do
trabalho, distribuição bastante estrita das atividades atribuídas a cada um
dos dois sexos, de seu local, seu momento, seus instrumentos; é a
estrutura do espaço, opondo o lugar de assembléia ou de mercado,
reservados aos homens, e a casa, reservada às mulheres; ( BOURDIEU,
2003, p. 18).
Esta postura justifica o modelo da superioridade racial pela
repulsa aos bárbaros, desponta como forma de cultura européia, da elite
exploradora, dissociada da africana e oriental, implantando superioridade e
suposta primazia do modelo de masculinidade hegemônica - branca,
heterossexual, dominante - justificando a dominação de gênero masculino
sobre o gênero feminino.
O gênero se torna, aliás, uma maneira de indicar as construções sociais: a
criação inteiramente social das idéias sobre os papéis próprios aos
homens e às mulheres. É uma maneira de se referir às origens
exclusivamente sociais das identidades subjetivas dos homens e das
mulheres. O gênero é, segundo essa definição, uma categoria imposta
sobre o corpo sexuado (SCOTT, 1995, p. 73).
Na Grécia, o objetivo da vida feminina consistia na mulher ser boa
mãe e esposa, ou seja, a mulher servia de suporte à vida do homem. A
96
educação masculina era regida pela Paidéia, que significava simplesmente
"criação de meninos".
A Paidéia era o legado deixado de uma geração para outra na
sociedade, pois seu objetivo não era ensinar ofícios, mas a formação
aristocrática do homem individual, instruídos para cuidarem não só da mente
como também do corpo, ou seja, educar o menino para ser homem e
cidadão e a menina para o espaço doméstico e privado. Os homens da
nobreza ocupavam a função de mestres, que era considerada atividade
superior as atividades manuais executadas por mulheres.
A transmissão cultural representa a base da ação educativa que
tinha por escopo a formação social, política, cultural e educativa do cidadão
regido pelos princípios do bom e do belo. È neste momento histórico que
surge a pedagogia “saber autônomo, sistemático, rigoroso” (CAMBI, 1999, p.
87). Logo, a educação passa a ser “oferecida” nas escolas que, inicialmente
eram intinerantes (sofistas) e depois tornou-se estatal, onde o mestre era o
pedagogo que semelhantemente a um pai, só ensinava o que era bom e justo,
repreendendo e castigando quando necessário. A noção da Paidéia assinala
uma forma primitiva da passagem explícita da dimensão do ser masculino,
apenas homem, para uma compreensão universalmente generalizável; ser
macho configura-se como um aspecto da humanidade e o ser masculino um
conceito relacional com relação ao ser feminino, ou seja, o homem passa a se
considerar como sendo o exemplar mais bem acabado do humanidade “o
homem (vir) se vê como universal (homo). Ele se considera o
representante mais perfeito da humanidade, o critério de referência”.
(BADINTER, 1993,p.7). Assim, surge a
[...] 'formação de uma humanidade superior' nutrida de cultura e de
civilização, que atribui ao homem sobretudo uma identidade cultural e
histórica.Ela não parte do indivíduo, mas da idéia. Acima do homem-
rebanho, e do homem pretensamente autônomo, está o homem como
idéia, ou seja, como imagem universal e exemplar da espécie nutrida de
história e capaz de realizar os princípios da vida contemplativa (CAMBI,
1999, p. 86-87).
A segregação entre os sexos permeava toda a sociedade deste
período, inclusive, as artes que destacavam as atividades sociais de
entretenimento como os Jogos Olímpicos aos quais o povo grego atribuíam
máxima importância, entretanto, a participação das mulheres era proibida,
seja como esportistas, seja como espectadoras.
A divisão entre os sexos parece estar “na ordem das coisas”, como se diz
por vezes para falar do que é normal, natural, a ponto de ser inevitável: ela
está presente, ao mesmo tempo, em estado objetivando as coisas ( na
casa, por exemplo, cujas partes são todas “sexuadas”), em todo o mundo
social e, em estado incorporado, nos corpos e nos habitus dos agentes
funcionando como sistemas de percpção, de pensamento e de ação (

97
BOURDIEU, 2003, p. 17).
Contudo, esse panorama de iniqüidade total entre os sexos não
predominava em todas as cidades gregas. Na cidade de Esparta era
oferecida educação quase igualitária para homens e mulheres.
Em Esparta, a educação fisica era a base educacional, assim as
mulheres em cumprimento a esses ditames, ao completarem sete anos de
idade, eram enviadas aos quartéis para serem educadas, objetivando dotá-
las de um corpo forte e saudável para gerar filhos sadios e vigorosos e serem
treinados para a guerra.
A diferença consistia que elas não dormiam nos quartéis, à noite
elas regressavam para dormir em casa. Isto, porque era no lar onde
recebiam da mãe aulas de educação sexual e quando ocorria a primeira
menstruação, começavam a receber aulas práticas de sexo, com
a finalidade de gerarem bons cidadãos para o Estado.
Recebiam também uma educação mais avançada que a dos
homens já que seriam elas que trabalhariam e cuidariam da casa, seriam os
“chefes de família” enquanto seus maridos estivessem servindo ao exército.
Ao atingir a maturidade entre 19 e 20 anos, elas podiam pedir a autorização
do Estado para contrair o matrimônio, que só era concediada após passarem
por um teste que comprovasse sua fertilidade.
O teste consistia em engravidar de um escravo (cuja finalidade
era só reprodutiva), ou seja, tanto o escravo quanto a criança advinda do
teste não seriam reconhecidos como membros da família. Durante esta fase o
escravo era muito bem tratado e alimentado para ser executado aos 30 anos.
Ao adquirir a autorização para casar, a mulher espartana podia ter qualquer
homem que desejasse, (mesmo sendo casada), já que seus maridos ficavam
até os 60 anos de idade servindo ao exército nos quartéis.
Muitos filhos era sinal de vitalidade e força em Esparta, assim,
quanto mais filhos a mulher tivesse, mais atraente ela seria, podendo
engravidar de qualquer esparciata, mas o filho desta seria considerado filho
do seu marido. As mulheres que não conseguissem engravidar, não recebiam
a autorização e eram mandadas de volta aos quartéis para, assim como os
homens, servirem ao exército espartano.
Os homens esparciatas recebiam uma educação militar,
aprendiam as artes da guerra e desporto, sendo mandados para o exército
aos sete anos de idade; aos doze deveriam ser abandonados em penhascos
sozinhos, nus (para criarem resistência ao frio), e sem comida (para
aprenderem a caçar e pescar).
a virilidade é lida no corpo aberto. As cicatrizes do guerreiro testemunham
os ferimentos e o sangue vertido, que provam o valor do homem e do
cidadão. A dor é antes de tudo assunto de mulheres [...] o homem deve
desprezá-la, sob pena de se ver desvirilizado e de ser rebaixado ao nível
da condição feminina (BADINTER, 1993, p. 70)

98
Em Roma a prescrição social estabelecida baseava-se na
hierarquia e diferenciação entre os sexos movida pelo consenso e submissão
dos inferiores aos superiores, argumento básico da família Romana
caracterizada como uma pequena tirania onde o paterfamilias exercia sobre
os filhos e filhas poder de vida e de morte, e a mulher (matrona) tinha por
dever servir ao marido, administrar o lar, os escravos, fiar, tecer e cuidar da
prole, contudo as mulheres romanas gozavam de maior autonomia que as
mulheres gregas, as que pertenciam as classes mais altas eram “rainhas” no
seu reino doméstico.
Os conhecimentos/saberes culturais da Antiguidade foram
alicerçados numa filosofia antropocêntrica de sentido racionalista que
inspirou as duas características fundamentais deste período: por um lado a
dimensão humana e o interesse pela representação do homem e, por outro, a
tendência para o idealismo traduzido na adoção de cânones ou regras fixas
(análogas às leis da natureza) que definiam sistemas de proporções e de
relações formais desde a arquitetura à escultura, ou seja em todas as
produções artísticas e culturais.
A cultura refere-se aos modos de vida dos membros de uma sociedade,
ou de grupos pertencentes a essa sociedade; inclui o modo como se
vestem, as suas formas de casamento e de família, os seus padrões de
trabalho, cerimônias religiosas e atividades de lazer. [...] o que une as
sociedades é o fato de os seus membros se organizarem em relações
sociais estruturadas segundo uma única cultura. As culturas não podem
existir sem sociedades. Mas, do mesmo modo, nenhuma sociedade pode
existir sem cultura (GIDDENS, 2001, p. 22).
Adentrando à história posamos no período denominado Idade
Média onde a cultura era marcada pela consolidação e expansão da fé cristã
pelo Império Romano, com a Igreja Católica tendo um poder extremamente
grande que controlava a vida e a mentalidade das pessoas. Na época
medieval a maioria das idéias e dos conceitos era elaborada pelos
eclesiásticos. Os homens possuíam uma visão dicotômica acerca da mulher,
ou seja, ao mesmo tempo em que ela era tida como a culpada pelo “Pecado
Original”, associada a imagem de Eva, a Virgem Maria, era
associada à mulher exemplo de virtude e maternidade perfeita.
Esta concepção da mulher, construída através dos séculos,
assegurou e permitiu a manutenção dos homens no poder, fornecendo uma
segurança baseada na distância do clero celibatário, legitimando uma
suposta santidade feminina, sufocando qualquer tentativa de subversão da
ordem estabelecida pelos homens. Outro aspecto relevante na instauração
de valores da Idade Média foi a de pudor e pureza em contraposição ao sexo
sempre associado ao pecado, como extensão desta visão ocorre um
enclausuramento de discursos da sexualidade e da arte. Tudo que fosse
ligado ao sexo deveria ser banido, interdito, proibido.
99
Denominar o sexo será, a partir desse momento, mais difícil e custoso.
Como se, para dominá-lo no plano real, tivesse sido necessário, primeiro,
reduzi-lo ao nível da linguagem, controlar sua livre circulação no discurso,
bani-lo das coisas ditas e extinguir as palavras que o tornam presente de
maneira demasiado sensível. Dir-se-ia mesmo que essas interdições
temiam chamá-lo pelo nome. ( FOUCAULT,1988, p. 21).
Durante a Idade Média a mulher, apesar de trabalhar tanto quanto
o homem estava sempre em grau de inferioridade. A própria etimologia da
palavra feminina confirmava essa fraqueza original: segundo eles, femina,
em latim, reunia em sua formação as palavras fide e minus, o que quer dizer
menos fé. O modelo de conduta instaurou a pudicícia como princípio moral e
religioso aos quais seres humanos deveriam seguir, dessa maneira, a arte
deveria ter apenas cunho religioso.
A vida das mulheres medievais não era fácil. De acordo com a
classe social a que pertenciam suas funções variavam. Nas classes mais
altas, as mulheres tomavam conhecimento em política, economia e até em
disputas territoriais. As mulheres dos senhores feudais eram responsáveis
pela organização do castelo; supervisionavam tudo, desde a cozinha até a
confecção de vestimentas. Elas tinham que saber como preservar alimentos
e coordenavam os/as empregados/as. Além disso, tinham que defender o
castelo na ausência de seu marido.
As camponesas trabalhavam junto com seus maridos nas terras
dos senhores feudais e, ainda tinham que cuidar dos afazeres domésticos. As
mulheres não tinham muitas opções: ou se casavam, ou iam para os
conventos. Entretanto, o convento era para uma minoria da alta classe que
tinha condições financeiras de pagar uma taxa bastante alta objetivando ser
freira. A maioria porém, estava destinada ao casamento e a uma vida
submissa ao marido. As meninas eram educadas somente para este fim:
serem boas esposas. O casamento era arranjado pelo pai quando sua filha
ainda era criança. A mulher era como uma propriedade, usada para obter
vantagens, os casamentos geralmente visavam o aumento de terras.
O mundo social constrói o corpo como realidade sexuada e como
depositário de princípios de visão e divisão sexualizantes. Esse programa
social de percepção incorporada aplica-se a todas as coisas do mundo e,
antes de tudo, ao próprio corpo, em sua realidade biológica: é ele que
constrói a diferença entre os sexos biológicos, conformando-a aos
princípios de uma visão mítica do mundo, enraizada na relação arbitrária
de dominação dos homens sobre as mulheres...( BOURDIEU, 2003, p.
18-20).
A estabilidade no casamento foi uma conquista que remonta às
idéias cristãs da Idade Média, permitindo que a mulher fosse vista legalmente
não mais como inferior ao marido, mas como um membro essencial para a
família. A instauração do casamento monogâmico trouxe benefício não só
100
para a mulher, mas para filhos/as que ganharam à proteção de um lar estável.
A mensagem cristã permeia todo o campo social, vê-se neste momento uma
produção artistica marcada profundamente pelo culto a santidade de anjos e
santos/as, que infuenciará profundamente a arte ocidental.
A principal inovação medieval realizada no campo do ensino e do
conhecimento foi a criação das universidades e a Escolástica, movimento
que reunia as idéias de Tomás de Aquino. Representou uma tentativa de
conciliar fé e razão com base no pensamento de Aristóteles, ou seja, a paidéia
cristã fundindo assim elementos da filosofia pagã de uma educação rigorista
e antiintelectual com a doutrina religiosa católica.
As relações econômicas na Europa sofreram profundas
alterações no momento em que nos aventuramos pelo oceano Atlântico,
procurando atingir as fabulosas fontes do comércio oriental. Para conseguir
tal desafio surge aperfeiçoamento da bússola e do astrolábio, instrumentos
trazidos do Oriente pelo europeu. A caravela, permitiu percorrer grandes
distâncias marítimas. As ciências exatas e naturais desenvolveram-se
possibilitando descobertas e a comprovação de teorias fundamentais à
evolução científica. A Igreja Católica passou neste período por um processo
de transformação, que originou a Reforma Protestante.
No século XVI toda transformação política, econômica e social
influiu no comportamento humano da época. O modo de pensar e as formas
estéticas dos gregos e dos romanos como modelos a serem seguidos são
retomadas pelos artistas e cientistas. As necessidades do ser humano do
início da Idade Moderna em interesses terrenos, por meio da glorificação do
homem e do natural em oposição ao divino e ao extraterreno, impulsionam à
supervalorização do homem – antropocentrismo- em contraste com a
supervalorização de Deus, característica do teocentrismo medieval.
Neste período o importante era a capacidade de usar a razão
para descobrir e conhecer o humano no mundo cheio de desafios e
interrogações. Na arte e literatura tal atitude é manifestada à medida que se
prende à rigidez formal dos modelos clássicos abordando sentimentos na sua
forma mais universal possível.
A iniciante Modernidade, nada mais é do que a ruptura histórica
que justifica a separação de duas épocas. A ruptura que traz consigo a Idade
Moderna é marcada pelo divórcio entre razão e fé.
A Idade Moderna se destaca por ter sido um período de transição
por excelência e, como uma época de revolução social cuja base consiste na
substituição do modo de produção feudal pelo modo de produção capitalista.
O modelo ideológico e cultural introuduzirá a laicização e emancipação de
mentalidades, buscando formar “um indivíduo mundanizado,
nutrido de fé laica e aberto para o cálculo racional da ação e suas
conseqüências” (CAMBI, 1999, p. 198).
O Renascimento se associa ao Humanismo constituindo-se um
101
movimento cultural considerado como marco inicial da Idade Moderna.
Podem ser apontados como valores e ideais defendidos pelo Renascimento o
Antropocentrismo, o Hedonismo, o Racionalismo, o Otimismo e o
Individualismo, bem como um tratamento leigo dado a obras religiosas, surge
a valorização do abstrato, expresso pelo matemático, além também de
algumas noções artísticas como proporção e profundidade, e, finalmente, a
introdução de novas técnicas artísticas.
Apesar das inovações de pensamento advindas com a
Modernidade, a dualidade entre os sexos permanece na mentalidade social,
a coerção em torno da sexualidade e do sexo continuam, só que de forma
sutil, instaura-se novas regras de decência, ou seja, maneiras/modos de ser
social, pode e deve-se falar em sexo, entretanto o discurso deve ser
meticulosamente prudente.
A interdição de certas palavras, a decência das expressões, todas as
censuras do vocabulário poderiam muito bem ser apenas dispositivos
secundários com relação a essa grande sujeição: maneiras de torná-las
moralmente aceitável e tecnicamente útil (FOUCAULT, 1988, p. 24).
Note-se que o discurso passou a ser a chave mestra do controle
social determinando a supremacia do homem através da illusio viril
(BOURDIEU, 2003), conferindo uma idéia de masculinidade fabricada que
precisa constantemente ser posta a prova por meio de testes de
masculinidade.
Não podemos esquecer que no final do século XVIII a sociedade
contemporânea assistiu ao desenvolvimento da ciência e das novas
descobertas biológicas que asseguram que a diferença entre homens e
mulheres não é de grau/hierarquia social, mas sim de natureza biológica. O
imaginário social será dominado pela idéia dicotômica “não só os sexos são
diferentes, como o são em cada aspecto do corpo e da alma,
portanto física e moralmente. É o triunfo do dimorfismo radical”
(BADINTER,1993, p.9)
As diferenças sexuais e biológicas preconizou o lar como espaço
privilegiado da mulher. A educação dos filhos/filhas também passa a ser de
responsabilidade da mulher, surge à maternidade com um status especial.
A divisão entre o mundo privado e o público pôs fim às aspirações políticas
das mulheres da classe alta. Em vez de aspirar ao engajamento ativo nas
tomadas de decisões, a mulher se tornou “a mão que balança o berço” e
“o poder por trás do trono”. E os homens estimulavam as mulheres a
encontrar satisfação nessa nova esfera de influência, confirmando o
poder desse papel exclusivamente feminino. Convencidas do inimitável
papel de mães, as mulheres foram, e ainda são, desencorajadas de aderir
aos domínios externos masculinos, onde se encontram os verdadeiros
ganhos políticos, sociais e econômicos ( FORNA, 1999, p. 49).
È neste período da modernidade que surge o termo Nova Ordem
102
Mundial representando um conceito sócio-econômico-político que tem sido
aplicado de forma abrangente, dependendo do contexto histórico do mundo
pós Guerra Fria. De um modo geral, pode ser definido como a designação que
pretende compreender uma radical alteração, e o surgimento de um novo
equilíbrio, nas relações de gênero.
Assim, na contemporaneidade tornou-se lugar comum falar sobre
as mudanças nas relações entre homens e mulheres, devido ao acelerado
processo de transformações socioculturais, como atestam estudos
realizados em 1960 e 1970.
A partir da década de 1980, o movimento feminista integra na sua
luta o reconhecimento e a defesa da diferença. Ao lado da igualdade de
acesso ao poder, propõe o valor da diferença pela busca de uma "ética", de
uma busca ou reconhecimento de outro "modo" ou "estilo" de exercer o poder
e de estabelecer relações solidárias, de construir um perfil político específico.
A presença feminina torna-se maciça em todos os movimentos de luta, quer
sejam eles sociais e/ou políticos, garantindo assim a continuidade dos
movimentos por elas liberados.
As identidades femininas e masculinas se constroem, articulando
criativamente e/ou contraditoriamente a relação entre igualdade e diferença.
A novidade presente nos movimentos feministas dos anos setenta e oitenta
com a postulação do direito a diferença promove a inserção do "diálogo pro
gênero" no contexto internacional e na linguagem política da chamada "pós-
modernidade".
O feminismo do século XX, na predominância deste novo
horizonte cultural postula diferenças, na perspectiva de pensar/interpretar as
diferentes formas de articulação entre, masculinidades e feminilidades.
Ensinar inexiste sem aprender e vice-versa e foi aprendendo socialmente
que, historicamente, mulheres e homens descobriram que era possível
ensinar. Foi assim, socialmente aprendendo, que ao longo dos tempos
mulheres e homens perceberam que era possível – depois, preciso –
trabalhar maneiras, caminhos, métodos de ensinar (FREIRE, 1996, p.
24).
Desenvolver trabalhos voltados à corporeidade passa a ser
uma questão fundamental. Em nossa perspectiva, a escolha da arte de Pedro
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Tela que pintara em comemoração à Proclamação da Independência encomendada ao pintor em 1886,
pelo Governo do Estado de São Paulo, sendo entregue somente em 1888 após exposição em Florença.
41
A residência de Pedro Américo representa um precioso patrimônio cultural, onde abriga um acervo do
artista, pois contêm várias réplicas de suas telas, a tela original do “Cristo Morto”, o retrato de Pedro
Américo pintado por seu irmão, a sua mala de viagem. E expostos numa vitrine podemos encontrar
também: pincéis, um velho esquadro, um álbum de caricaturas, fotos da família, uma palmatória que
pertenceu a sua mãe, os livros escrito por ele – Holocausto, O Foragido e Na Cidade Eterna - além de um
crucifixo e de um vidro contendo um pedaço de jornal que foram retirados da sua urna mortuária.
103
Américo como alvo de nossas ações não é nem o ponto de partida, nem o de
chegada. Trata-se de um desdobramento e um avanço a partir do movimento
feminista e das inúmeras lições aprendidas e problematizadas no espaço
escolar.

VIVENCIANDO AS OFICINAS NA APLICAÇÃO DO PROJETO


Realizamos a primeira visita à escola no dia primeiro de setembro
de 2008. A escolha do mês o início da aplicação do projeto foi proposital em
virtude da comemoração no dia 07 de setembro da Independência do Brasil,
justo por essa temática está sendo trabalhada nas turmas facilitando chegar à
história do areiense Pedro Américo de Figueiredo e Mello, autor do quadro “O
Grito do Ipiranga”.
Como primeira etapa, realizamos visitas semanais a escola nas
salas da 2ª, 3ª e 4ª séries para contar a história de vida e apresentar a obra de
Pedro Américo, utilizando-se da cartilha ilustrada para criança de autoria de
Renato Sêneca Fleury. Incitava o desejo de conhecer a vida do ilustre pintor e
a cidade de Areia, provocando assim, um despertar para o amor
ao patrimônio sociocultural. Ao contar a história, procurava mostrar as
crianças que Pedro Américo era filho de classe popular e, que através do seu
talento e determinação triunfou e fez história.
Numa segunda etapa, contamos a história de Areia, município de
origem do pintor paraibano para que os discentes se familiarizassem ainda
mais sobre a importância da vida e das obras desse pintor para o nosso
Estado, bem como para o Brasil. Percebemos como as crianças ficaram
satisfeitos ao comentarem pelas ilustrações a cidade de Areia era bem
diferente da cidade de Campina Grande, comparando-a com as cidades
históricas das novelas.
Na terceira etapa, apresentamos para as turmas o documentário
com a abordagem histórica do município de Areia, o qual foi produzido pelo o
IPHAN. Este despertou o entusiasmo na comunidade escolar em conhecer
Areia.
Como quarta etapa, organizamos uma excursão a cidade de
Areia, tendo como objetivo primordial conhecer a Casa Pedro Américo, local
onde nasceu morou o pintor imperial. Para isso tivemos que pedir a
autorização dos familiares dos alunos, e escrevemos ofícios para o governo
do Estado, solicitando dois ônibus, um para o período matutino e outro para o
período vespertino. Contratamos um guia turístico para contar a história de
cada ponto que iríamos visitar no município.
Conseguimos a autorização dos familiares e o Governo do
Estado nos concedeu os ônibus. Sendo assim, realizamos duas
excursões a cidade de Areia: uma no dia 02 de outubro de 2008 com as
turmas da do turno da tarde e outra no dia 17 de outubro de 2008 com as
turmas do turno da manhã.
104
Na primeira excursão, visitamos o Engenho Tapuio de
propriedade de Saulo de Sousa Gondim, que fica a 10 minutos da cidade. Lá
os alunos e alunas puderam ver e aprender como ocorre todo processo para a
fabricação da rapadura, desde o seu plantio até chegar ao mercado.
Na sequência, visitamos o Centro de Ciências Agrárias, Campus
II da UFPB. Primeira instituição de ensino superior da Paraíba, que foi
construído por iniciativa de José Américo de Almeida, sendo inaugurado no
ano de 1936 sob a denominação de Escola de Agronomia da Paraíba, sendo
mais tarde chamada de Escola de Agronomia do Nordeste.
Visitamos a Casa Pedro Américo, local onde nasceu e morou o
pintor paraibano, Pedro Américo de Figueiredo e Mello. A qual em 1943, nas
comemorações do centenário de nascimento do pintor foi desapropriada e
transformada em Pinacoteca do município. Hoje é um dos mais preciosos
Museus do Estado. Lá vimos algumas réplicas das obras de Pedro Américo, o
quadro original do Cristo Morto e alguns dos seus pertences originais. Tudo ia
sendo mostrado pelo nosso guia que contou-nos também um pouco da
história de cada obra do autor. E o que mais chamou a atenção foi a mala de
viajem do pintor e a réplica do quadro a Batalha do Avaí no qual o pintor fez o
seu auto-retrato como se estivesse participando da batalha. Aproveitamos
para mostrar aos/as alunos/as os painéis que contem as obras que retratam o
corpo feminino, dentre elas podemos destacar as obras que trabalharíamos:
A Carioca, David e Abisag, Judite e a cabeça de Holofernes, Joana d'Arc,
Jocabed levando ao Nilo seu filho Moisés, Os votos de Heloísa. Telas que
serviram de inspiração para a reprodução das crianças finalizando o projeto.
Os alunos e alunas fizeram questão de conhecer todo o interior e o exterior da
residência do pintor.
Logo após fomos ao Teatro Minerva, primeiro Teatro da Paraíba,
inaugurado em 1859 em estilo barroco, cujo nome era Teatro Recreio
Dramático, obra de iniciativa particular, construído sem a ajuda do governo,
graças ao idealismo de Joaquim da Silva e José Evaristo. O Teatro Minerva foi
construído trinta anos antes do teatro da capital, o Santa Rosa. As crianças
ficaram tão impressionadas com a acústica do local que algumas delas
mesmo sem os trajes devidos pediram para apresentar o xaxado do Projeto
Lampião e Maria Bonita, que fora aplicado na escola. E assim o fizeram e
ficaram satisfeitas com os aplausos da platéia presente.
Passamos na Igreja Nossa Senhora da Conceição e a Igreja do
Rosário dos Pretos que também são pontos turísticos da cidade. A primeira
tem como seu maior atrativo o teto revestido por pinturas que retratam
passagens bíblicas. A segunda foi construída pelos escravos/as no século
XVII, sendo uma das mais antigas da Paraíba.
No dia 17 de outubro de 2008, realizamos a segunda excursão a
cidade, porém com as turmas do turno matutino. Visitamos os mesmos locais
outrora visitados na primeira excursão além do Casarão José Rufino, antiga
105
senzala, construído em 1818, localizado na Praça Pedro Américo. As
crianças puderam conhecer todo o seu interior, adquiriram mais
conhecimento sobre o tempo do Brasil Colônia, viram como eram pequenos,
escuros e sem ventilação os quartos onde ficavam os escravos e escravas.
As excursões proporcionaram um riquíssimo aprendizado sobre vários
períodos da nossa história, além disso, serviu de incentivo para a confecção
dos desenhos e das pinturas.
Após as incursões solicitamos aos/as alunos e alunas que
fizessem o relatório escrito da viajem. Na sequência, iniciamos à confecção
de desenhos e pinturas em cartolinas e telas, destacando o corpo feminino na
obra de Pedro Américo, problematizando as marcas de gênero nas telas do
artista, respeitando os valores do seu tempo histórico. Por fim, no dia 12 de
dezembro de 2008, nas comemorações de encerramento do ano letivo,
realizamos a exposição dos trabalhos na escola dos trabalhos
das crianças.
No que tange à percepção dos/as alunos/as da Escola Félix
Araújo em relação à corporeidade na obra de Pedro Américo, deduzimos que,
há muito a inferir nas discussões e debates sobre masculinidades e
feminilidades. Percebemos que existem “entraves” demonstrando resquícios
da educação sexista herdada do modelo patriarcal, justo pelas inferências
dos discentes em considerar dever existir um padrão artístico para a
corporeidade tendo por base a diferença de gênero.
A descrição histórica deste estudo ganha por vezes traços de
natureza conspirativa, mas através do estudo da corporeidade destacamos
nosso interesse por entender como a mesma se posiciona no contexto das
relações de gênero e que alternativas discursivas a arte de Pedro Américo
pode nos oferece para entender a constituição de valores históricos de
gênero na arte, junto aos discentes pesquisados, considerando a importância
da abordagem feminista.

106
REFERÊNCIAS

BADINTER, Elizabeth. XY Sobre a identidade masculina. 2 ed. Rio de


Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
BOURDIEU, Pierre. A dominação Masculina. Tradução de Maria Helena
Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB. nº 9.394,
de 20 de dezembro de 1996. Brasília: Senado Federal, 1997.
CAMBI, Franco. História da Pedagogia. Tradução de Álvaro Lorencini. São
Paulo: Unesp, 1999.
FORNA, Aminatta. Mãe de todos os mitos: como a sociedade modela e
reprime as mães. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber.
Tradução de Maria Theresa da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro:
Graal,1988.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática
educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
GIDDENS, Anthony. Sociologia. Tradução de Alexandra Figueiredo. Lisboa:
Polity Press, 2001.
LAVILLE, Christian; DIONNE, Jean. A construção do saber: manual de
metodologia da pesquisa em ciências humanas. Porto Alegre: Artmed, 1999.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. In:
Educação & realidade. Porto Alegre, v.20, n.2. jul/dez, 1995. p. 71-99.

107
EM CENA: empoderamento de mulheres diretoras
Maria das Dores Cardoso Frazão
Diomar das Graças Motta
INTRODUÇÃO
A fim de se atingir o processo de empoderamento de mulheres
diretoras, partiu-se do seguinte questionamento: como se constitui a mulher
diretora que se empodera? Na ocasião, tivemos como objetivos: conhecer o
cotidiano das diretoras, no contexto da escola; identificar a relação entre os
saberes das mulheres diretoras e o processo de empoderamento;
compreender sua territorialidade.
Inicialmente, realizou-se uma busca do significado do conceito de
empoderamento em quatro dicionários da Língua Portuguesa: SANTOS
(2001), AULETE (2004), HOUAISS (2004), AURÉLIO (2004); nenhum deles
contém este termo. Também, o computador, no sistema XP desconhece esta
palavra.
Assim, o conceito de empoderamento trabalhado foi o proposto
por León (2000), no sentido de autoconhecimento; quando as pessoas
controlam sua própria vida; adquirem habilidade de fazer coisas e definir sua
própria agenda. Em síntese, o termo implica mudança radical.
A construção do empoderamento das mulheres diretoras foi
analisada a partir de três eixos: o empoderamento social, o político e o
psicológico. Esta perspectiva está presente em Friedmann (1996) quando
explica que o eixo social refere-se ao acesso a certas bases de produção
doméstica, como informação, conhecimento e técnicas, participação em
organizações sociais e recursos financeiros.
Já o eixo político relaciona-se ao poder da voz e da ação coletiva.
Enquanto que o psicológico decorre da consciência individual de força e
manifesta-se na autoconfiança. (FRIEDMANN, 1996).
Paralelamente, León (2000) nos alerta para a necessidade de
pensarmos o empoderamento como processo não linear, ou seja, sem início,
meio e fim indefinido de maneira igual para todas as mulheres. Porque o
empoderamento é diferente para cada sujeito, segundo seu contexto e
história.
Por esta razão busca-se identificar o empoderamento de nossos
_____________________________________________________________

42
Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação, Mulheres e Relações de Gênero – GEMGe,
Mestra em Educação pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Maranhão – UFMA e
Supervisora Escolar, da Secretaria de Estado da Educação do Maranhão.
43
, Professora Doutora do Departamento de Educação II, do Curso de Pedagogia, da UFMA e dos
Programas de Mestrado em Educação e do Mestrado em Saúde Materno Infantil, ambos da Universidade
Federal do Maranhão - UFMA Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação, Mulheres
e Relações de Gênero – GEMGe, ligado a Linha de Pesquisa Instituições Escolares, Saberes e Práticas
Educativas, do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Maranhão.

109
sujeitos com a reconstrução das suas trajetórias profissionais conforme a
orientação de Bourdieu (2005, p.189), ao explicar a trajetória “como série de
posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo
grupo) num espaço que é ele próprio um devir, estando sujeito a incessantes
transformações”. Nessa reconstrução, foram utilizados instrumentos como
entrevistas, observações e depoimentos, procurando conhecer essas
transformações.
Procederam-se entrevistas com as diretoras; foram colhidos dois
depoimentos, de diferentes sujeitos, das escolas de nosso estudo, tendo
como foco a percepção de seu trabalho e o seu poder. Ao lado da revisão da
literatura, procurou-se situar o empoderamento nos estudos feministas e no
território educacional. Sendo assim, este texto traz apenas reflexões sobre a
questão do empoderamento.
De acordo com Blackburn (1997, p. 338), “uma relação é reflexiva
num domínio se todos os objetos do domínio têm essa relação com eles
mesmos”. Nessa dimensão de reflexividade, procurou-se estabelecer
afinidade entre o conceito de empoderamento e o conceito de feminismo que
ajudou bastante a pensar as questões das mulheres.
É importante ressaltar que algumas dessas questões, a partir de
1993, em Viena, na Conferência dos Direitos Humanos, mulheres de
diferentes continentes fizeram reivindicações, devido ao que se
considerava, até então, como “direitos específicos de mulheres” foram
reconhecidos como direitos humanos. E um direito humano é a reivindicação
de se ser capaz e dispor da permissão de praticar uma ação humana,
(TABAK, 2002), o que constitui elemento imprescindível no processo de
empoderamento.
Pensando semelhantemente, para Deleuze e Guatarri (1992)
todos os conceitos têm necessidade de personagens que contribuam para
sua definição. Nesse sentido, eles exemplificam, questionando o que
significaria “amigo” entre os gregos. Portanto, estas considerações permitem
estabelecer, neste texto, a relação entre o conceito de empoderamento, no
âmbito das objetividades e subjetividades, que marcam a história das
mulheres, e têm contribuído para a sua construção.
Nessa perspectiva, será encaminhada a presente reflexão.
Inicialmente, com breve percurso histórico do movimento feminista e, em
seguida, sua contribuição servirá para ampliar as noções sobre o conceito de
empoderamento, inclusive no território educacional.
EMPODERAMENTO NOS ESTUDOS FEMINISTAS
A compreensão do movimento feminista requer situá-lo no
contexto onde se configurou, pois o feminismo congrega uma pluralidade de
manifestações concretizadas dentro de limites e possibilidades, dados pela
referência a mulheres em contextos políticos, sociais, culturais e históricos
específicos.
110
Afinal, o que é o feminismo? Ele pode ser definido, segundo
Barrett (1996, p. 304), “como a defesa de direitos iguais para mulheres e
homens, acompanhada do compromisso de melhorar a posição das
mulheres na sociedade”.
Embora se reconheça que o movimento feminista no Brasil seja
específico, é preciso notar algumas características desse movimento na
Europa e nos Estados Unidos que influenciaram nosso feminismo.
Na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, a tradição feminista mais
antiga é a do feminismo democrático, liberal, dirigido à obtenção
de direitos e oportunidades iguais para as mulheres. Para tanto, no século
XIX, parte desse trabalho se concentrou na remoção de barreiras
educacionais e profissionais. Este período foi marcado pela militância por
direitos iguais, tendo como exemplo, a luta pelo direito de voto, no início do
século XX. (BARRETT, 1996).
A partir da década de 60, do século passado, as sociedades
ocidentais têm observado a ascensão e queda de movimentos feministas de
cunho mais radical; movimentos que afirmam estar a opressão das mulheres
enraizada em processos psíquicos e culturais profundos. Estes movimentos
exigem mudanças nos objetivos feministas, focalizando a luta pelo controle
das mulheres sobre seus próprios corpos, especialmente, na questão do
direito da mulher de escolher a respeito do aborto. Este momento está
fundamentado nas idéias do socialismo utópico, anarquismo e marxismo.
(BARRETT, 1996).
Na tentativa de exercício mais historiográfico e exploratório,
Bandeira (2000) propõe uma tripla periodização do movimento feminista.
Inicialmente, o período de 1850 a 1950, isto é, os cem anos que
compreenderam as primeiras organizações das mulheres pioneiras,
conhecidas como igualitaristas e sufragistas, que lutaram pelo acesso à
instrução e pelo direito ao voto. Nas fábricas, reivindicações atravessaram o
século XIX, chegaram ao século XX e serviram de base à instalação e
expansão do movimento feminista no Brasil, a partir dos anos sessenta e
setenta.
O segundo momento, que compreende os anos de 1960 a 1980, é
o período contemporâneo do movimento feminista. É um período de
mudanças sociais e culturais, com a conquista de novos territórios de luta, de
visibilidade das mulheres, do reconhecimento e legitimidade social em
relação às lutas feministas e emergência do feminismo heterogêneo e plural.
Tomam relevo as configurações dos espaços institucionais e acadêmicos
conquistados e ganham fôlego as diversidades e tensões dentro
do próprio movimento feminista. Além disso, surgem os primeiros estudos
que utilizam a categoria gênero.
O terceiro período centraliza-se nos anos noventa, com o resgate
da importância da reflexão que o pensamento feminista provocou, sobretudo,
111
as mudanças nas formas de produção do conhecimento e de representação
da realidade que interferem na construção da teoria social, nas relações inter
e intrasubjetivas e nas relações entre indivíduo e sociedade.
De acordo com Bandeira (2000, p. 17):
[...] o movimento feminista, sobretudo a partir de meados do século XIX,
foi o portador das vozes dissonantes da matriz hegemônica que recobriu
e predominou desde o mundo grego até a modernidade, ao resgatar a
condição de exclusão e de inferioridade da mulher, não apenas como
categoria estatística e sócio-econômica, mas da condição de sujeito
sócio-histórico e cidadão. Assumiu várias etiquetas e rótulos; apesar de
reprimido e condenado, adquiriu múltiplos significados no decorrer do
tempo, atravessando e atravessado por diferentes ideologias, por
variados segmentos sociais de mulheres, revestiu-se de diversas formas
e, ainda, atua com especificidades.
Diante das especificidades do movimento feminista brasileiro,
recortamos a história desse movimento, a partir dos estudos de Pinto (2003).
De acordo com a autora, no Brasil, a primeira fase do feminismo teve como
foco a luta das mulheres pelos direitos políticos, mediante a participação
eleitoral, como candidatas e eleitoras. Esta luta esteve associada ao nome de
Bertha Lutz.
Pinto (2003) identifica algumas vertentes do movimento
feminista, nas primeiras décadas do século XX. A primeira delas é liderada
por Bertha Maria Júlia Lutz (1894-1976), que tem como questão central a
incorporação da mulher como sujeito portador de direitos
políticos. Os limites dessa vertente não definen a posição de exclusão da
mulher como decorrência da posição de poder do homem. Além disso, a luta
por inclusão não se apresenta como alteração das relações de gênero, mas
complementar para o bom andamento da sociedade, isto é, sem alterar a
posição do homem, as mulheres deveriam lutar para serem incluídas como
cidadãs.
A segunda vertente chamada de feminismo difuso expressa-se
nas múltiplas manifestações da imprensa feminista alternativa. É formada em
sua grande maioria por mulheres profissionais, escritoras e jornalistas. Em
sua luta, defende a educação da mulher e aborda sobre a dominação dos
homens e o interesse deles em deixar a mulher fora do mundo público.
A terceira manifesta-se, inicialmente, no movimento anarquista e
em seguida, no Partido Comunista. Esta vertente é formada por mulheres
trabalhadoras e intelectuais militantes dos movimentos de esquerda, que
defendem a liberação da mulher de forma radical; contém, na maioria das
vezes, a questão da exploração do trabalho como central, articulando as
teses feministas aos ideários anarquistas e comunistas, tendo como principal
representante Maria Lacerda de Moura.
De acordo com Pinto (2003), o feminismo brasileiro nasceu e se
112
desenvolveu em um difícil paradoxo: ao mesmo tempo que precisou
administrar as tensões entre uma perspectiva autonomista e sua profunda
ligação com a luta contra a ditadura militar no Brasil, foi visto pelos
movimentos integrantes desta mesma luta, como um sério desvio pequeno-
burguês.
Pinto (2003), também, acredita que a relação do feminismo com o
campo político, a partir de 1979, deve ser analisada sob três perspectivas
complementares: a conquista de espaços no plano institucional, por meio de
conselhos da condição da mulher e delegacias da mulher, nos cargos eletivos
e as formas alternativas de participação política.
A partir de então, o movimento feminista com sua inserção na
academia elege como temáticas a questão da violência de gênero; o tema da
saúde da mulher; o aborto e o da sexualidade.
Discute-se que o movimento feminista não é um movimento
popular, nem no sentido de classe, nem no sentido de seu raio de ação. Por
outro lado, a dificuldade de entrar na estrutura das universidades levou ao
aparecimento, em muitas delas, de núcleos de estudo sobre mulher.
No início do século XXI, o movimento feminista reconfigura-se a
partir da dissociação do pensamento feminista. Além disso, o feminismo
diversifica-se por meio do aparecimento de um grande número de
Organizações Não Governamentais – ONGs -voltadas para a questão das
mulheres, algumas delas trabalhando na perspectiva de promover o
empoderamento junto às mulheres. (PINTO, 2003).
Quem, também, reconhece as contribuições do movimento
feminista é Touraine (2007, p.19):
O movimento feminista transformou profundamente a condição das
mulheres em diversos países e permanece mobilizado lá onde a
dominação masculina ainda conserva sua força. É cada vez mais raro
que o reconhecimento de suas conquistas de suas lutas a favor da
liberdade e da igualdade não seja reconhecido. Entre os cidadãos dos
países ocidentais, somente um pequeno número rejeita as conquistas e
as idéias do feminismo. O sucesso deste é tão complexo que muitas
jovens mulheres consideram evidentes as liberdades que o movimento
lhes permitiu conquistar.
Desta forma, situamos o empoderamento nos estudos
feministas, questionando o seu significado, visto que não está presente na
língua portuguesa. Constatamos que sua etimologia é inglesa, conforme
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44
Scott (1991) explica que a categoria gênero foi utilizada na década de 1970, para analisar as diferenças
entre os sexos e, em seguida, estendida à questão das diferenças dentro da diferença, argumentando que
as diferenças fundamentais da experiência tornaram impossível reivindicar uma identidade isolada. A
diferença dentro das diferenças fez surgir um debate sobre o modo e a conveniência de se articular o
gênero como uma categoria de análise.

113
aludimos a seguir em três obras:
a) Dicionário Oxford (1996):
1 authorize, licence (autorizar, permitir)
2 giver power to; make able, empowerment a (dar poder a, tornar
possível).
b) Merriam-Webster: (2004)
1 to give offcial authority or legal Power to (dar autoridade oficial a
ou poder legar)
2 enable (habilitar, permitir, autorizar)
3 to promote the self – actualization or influence of (promover a
auto-atualização ou influência de).
c) Dicionário Americano Heritage (2004) exemplifica “we want to
empower ordinarycitizens” (nós queremos empoderar cidadãos comuns).
Diante disso, o uso do termo inglês desvia do seu sentido original,
pois empoderamento implica conquista, avanço e superação por parte
daquela ou daquele que se empodera e não uma simples doação ou
transferência por benevolência, como denota o significado de empowerment,
que transforma o sujeito em objeto passivo.
León (2000) afirma que o conceito empowerment e
empoderamento não são criações recentes. Conforme o Oxford English
Dictionary, a palavra aparece em textos da segunda metade do século XVII.
Para esta estudiosa, empoderar-se significa que as pessoas adquirem
controle sobre suas vidas e definem suas agendas.
Ela, também, aponta que o empoderamento é utilizado para
transformação social, segundo a concepção feminista de mundo. Logo, este
conceito indica uma alteração radical dos processos e estruturas que
reproduzem a posição subordinada das mulheres na sociedade.
Assim, ela esclarece que o uso do termo empoderamento pelo
movimento feminista, tem suas raízes na importância adquirida pela idéia de
poder, tanto pelos movimentos sociais, como pela teoria das ciências sociais
nas últimas décadas do século XX. Na década de 60, deste século, o discurso
radical do movimento por direitos civis para população afro-americana nos
Estados Unidos identificou a busca do poder negro como estratégia de
reivindicação. Na década seguinte, a ciência social crítica e o movimento de
mulheres, particularmente, o movimento feminista retomam e desenvolvem
esse conceito.
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Em 1980, uma ampla corrente analítica começou a reunir evidências sobre a qual se baseia muito da
força contemporânea do conceito de “empoderamento”. Costuma-se denominar essa corrente de escola
do “desenvolvimento alternativo”. Ao mesmo tempo, o conceito de participação iniciou um longo período de
influência sobre o pensamento e a prática do desenvolvimento. Eles acrescentam que o empoderamento é
mais facilmente exposto que posto em prática, e grande parte da literatura que acompanha a prática carece
do rigor necessário para um conceito tão complexo que será utilizado operacionalmente. Oakley e Clayton
(2003)
114
Ainda de acordo com León (2000), a ciência social crítica baseou
suas análises nos trabalhos de António Gramsci, Michel Foucault e Paulo
Freire. Para os dois primeiros, o poder é uma relação social; em Paulo Freire,
a discussão central de seu trabalho é a transformação da consciência.
O feminismo, na década de 1960 apropria-se do conceito de
empoderamento relacionado ao movimento Mulher e Desenvolvimento tendo
como representantes Carolyn Moser e Kate Young. Elas tinham como
preocupação a incorporação da perspectiva de gênero no planejamento para
desenvolvimento. Nesse debate, há como reivindicações a transformação
das relações de gênero e das estruturas de subordinação.
A utilização do termo pelo movimento de mulheres iniciou em
1985, com a terceira Conferência Mundial da Mulher, em Nairóbi, por Gita Sen
e Karen Gow. O texto produzido por elas pedia transformações das estruturas
de subordinação da mulher e mudanças radicais na sociedade. Assim, o
conceito de empoderamento aparece como uma estratégia impulsionada
pelo Movimento de Mulheres do Sul, com a finalidade de avançar nas
mudanças de suas vidas e gerar um processo de transformação das
estruturas sociais (LEÓN, 2000).
Mas é na década de 1970 que a discussão sobre o uso do termo
empoderamento repercutiu na América Latina acompanhado da visibilidade
do Movimento Feminista. Para este movimento, a obtenção da transformação
da consciência das mulheres ocorre por meio do empoderamento.
No cerne das discussões sobre empoderamento está o conceito
de poder, o que, segundo Foucault (1979, p. 183), devemos atentar:
[...] O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como
algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca
está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou bem.
O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos
não só circulam, mas estão sempre na posição de exercer este poder e de
sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são
sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder não se aplica
aos indivíduos, passa por eles.
A relação das mulheres com o poder pode ser fonte de opressão
em seu abuso e fonte de emancipação em seu uso. Nesse sentido, as
relações de poder podem significar dominação, desafio e resistência às
fontes existentes ou servir para obter controle sobre elas. (LEÓN, 2000).
Sob o olhar de Rabay e Carvalho (2001), o conceito de
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46
De acordo com Haesbaert (2005) território tem a ver com poder, porém, não apenas ao tradicional poder
político, mas contempla, também, o poder no sentido mais concreto, de dominação, quanto ao poder no
sentido mais simbólico, de apropriação. Em Santos (2008), por território entende-se a extensão apropriada
e usada. Mas o sentido da palavra territorialidade como sinônimo de pertencimento tem caráter
sentimental de exclusividade e limite que ultrapassa a raça humana e prescinde da existência de Estado.

115
empoderamento é essencialmente educativo por se manifestar na
capacidade de agir de forma individual e na organização coletiva. Diante
disso, o aprendizado sobre a cultura do poder, ou seja, suas relações,
processos, formas e estruturas, por meio da capacidade de objetivar e
reconhecer a realidade de modo crítico é condição para transformação da
realidade e para a liberação de indivíduos e grupos daquilo que diminui sua
participação social, intelectual e política.
EMPODERAMENTO NO TERRITÓRIO EDUCACIONAL
No território educacional, Paulo Freire (1987), embora não tenha
utilizado o termo empoderamento, seu trabalho como educador foi pautado
nessa perspectiva. Portanto, os fundamentos de sua práxis são importantes
para entender a dinâmica da aprendizagem transformadora e libertadora.
Além disso, Freire chama atenção para os processos mediante os quais os
excluídos se liberam das estruturas que limitam sua participação social,
intelectual e política.
Empoderamento, em Paulo Freire, segue a lógica de que uma
pessoa empoderada é aquela que realiza por si mesma, as ações
transformadoras que a levam a evoluir e se fortalecer. Além disso, verifica-se
que o conceito deriva da idéia de libertação do oprimido; conquista da
liberdade pelas pessoas que têm estado subordinadas a uma
posição de dependência econômica ou física e de qualquer outra natureza.
Destarte, o empoderamento difere da simples construção de habilidades e
competências. Pelo contrário, a educação pelo empoderamento difere do
conhecimento formal tanto pela sua ênfase nos grupos, quanto pelo foco na
transformação cultural.
Assim, podemos destacar pessoas que lutaram em prol da
educação como forma de libertação e transformação. A exemplo, Nísia
Floresta Brasileira Augusta, nascida no Rio Grande do Norte, em 1810. Esta
mulher militou com audácia pela política emancipatória para todas as
pessoas e, em especial para as mulheres. Ainda, na primeira metade do
século XX, ela denunciou a opressão vivida pelas mulheres.
Nísia defendia a educação como caminho para emancipação
feminina. Além do que, foi contrária a idéia de que os homens são superiores
por serem racionais e as mulheres afetivas e denunciou que as chamadas
fraquezas do sexo feminino são resultantes da injustiça masculina. A audácia
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47
Condição é o estado material no qual se encontram as mulheres: sua pobreza, salário baixo, desnutrição,
falta de acesso a saúde pública e a tecnologia moderna; educação e capacitação; e sua excessiva carga de
trabalho. (Costa, s/d)
48
De acordo com Certeau (1994) muitas práticas cotidianas são do tipo de tática e uma grande parte das
maneiras de fazer são vitórias do fraco sobre o mais forte. Essas perfomances operacionais dependem de
saberes muito antigos. Portanto, as táticas são manifestações da indissociabilidade entre inteligência e
combate.
116
de Nísia se revelava também nos profundos questionamentos acerca de que
modo as mulheres poderiam desenvolver sua condição se a sociedade só
exigia que ela se enfeitasse para agradar aos outros. (PASSOS, 2000).
A educação das mulheres no Brasil, desde primórdios do século
XIX, estava organizada ao redor da dicotomia européia entre a instrução e a
educação. Aos homens instruía-se para desenvolver o intelecto, às mulheres
educava-se para formar o caráter. Desconsiderava-se o desenvolvimento
intelectual das meninas como benefício de si mesmo, tampouco como meio
de realização da personalidade individual.
A educação da mulher, à época de Nísia Floresta (1810-1885),
apresentava como propósito primordial, conservar a pureza em
sua conotação sexual e assegurar um comportamento correto perante a
sociedade.
A esta realidade Floresta (1989, p. 111) se opôs dizendo: [..] “no
Brasil, não se poderá educar bem a mocidade enquanto o sistema de nossa
educação quer doméstica, quer pública, não for radicalmente reformado”. A
posição emancipatória de Nísia resultou de sua experiência e, como diz
Young-Eisendrath (1993), a experiência pessoal é originalmente e sempre
uma experiência compartilhada.
Daí, os estudos feministas diferirem dos demais, sobretudo,
porque se opõem à autoridade das formas masculinas nas culturas que
tentaram convencer de que os homens, individualmente, foram visionários e
não receberam contribuições de suas amantes, esposas, filhos (as),
empregados (as) e outras pessoas para seus sistemas de conhecimento.
Nísia Floresta acreditava e defendia que a mulher se tornaria
emancipada através da educação, pois só desta forma teríamos condições
para enfrentar as adversidades e como assegura Passos (2000, p. 63-64):
[...] Nísia viveu as conseqüências de um país patriarcal e analfabeto,
criticava a política educacional elitista e discriminadora que facultava a
abertura de escolas para o sexo masculino e limitava para o feminino,
também o currículo diferenciado e a restrição da mulher ao ensino
secundário. Fundou um colégio para as moças no Rio de Janeiro,
escandalizando os brasileiros no período imperial. Ela, assim como a
maioria das feministas do período, acreditava que só pela instrução, as
mulheres poderiam aspirar à independência e dignidade pessoal.
As mulheres, desde que temos notícias pela historiografia,
sempre sofreram uma variedade de limitações impostas, sobretudo, por sua
condição que intensificaram seu processo de exclusão. Desse modo, é
inegável que cada uma de nós recorre a uma espécie de poder. Algumas de
forma intencional, outras não. Nesse sentido, o empoderamento deve ser
pensado, também, como resultado de táticas dos excluídos.

117
PALAVRAS FINAIS
Por que as mulheres buscam a ampliação do seu poder só pode
ser respondida quando analisarmos as experiências desenvolvidas por
mulheres nos diferentes espaços sociais e tempos. Além disso, a resposta a
esta questão tem vários caminhos explicativos; um deles é busca pela
igualdade, mas igualdade que reconheça suas diferenças, na perspectiva de
Badinter (2005), pois a igualdade alimenta-se do mesmo e não do diferente.
Assim, precisamos ter cuidado para não supervalorizarmos a diferença e
relativizarmos a igualdade porque a diferença entre os sexos é uma
realidade, no entanto, ela não predestina os papéis e às funções.
Esta mesma autora ao analisar o feminismo na França, a partir da
década de 1980, observou que com todas as conquistas deste movimento, as
mulheres continuaram com uma dupla jornada de trabalho e a inexplicável
inércia dos homens.
Falar sobre empoderamento das mulheres, também, implica,
abandonarmos as imagens de mulheres como eternas vítimas que
impregnam nossa memória. Badinter (2005) também alerta sobre isso.
Segundo ela, falar da supermulher não dá boas manchetes;
quando se fala das proezas das desportistas, das jornalistas de alto nível e de
todas as outras mulheres que fazem seu caminho em territórios doados aos
homens, como dizem alguns/algumas, territórios masculinos, perturba-se a
ideologia dominante. Sendo assim, prefere-se ignorá-las e reservar a
atenção para o tema da eterna opressão masculina.
Portanto, baseando-se na visão da referida autora, construiu-se
aqui uma relação com baixo número de pesquisas sobre empoderamento a
nível de programas de pós-graduação, no Brasil, disponíveis no
Portal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior –
CAPES; O portal dispõe de apenas cinco dissertações e quatro teses que
datam do ano 2000 a 2006, nenhuma ligada a programas de pós-graduação
em educação.
A busca foi realizada entre os dias 1º a 8 de fevereiro de 2008.
Destarte, reconhece-se que estudar e discutir sobre o poder das mulheres
incomoda a ideologia dominante. E, embora hoje seja menos comum negar o
acesso de mulheres a territórios dantes eminentemente masculinos,
renovam-se as estratégias colocando as mulheres como eternas vítimas. Isto
porque quiçá seja mais difícil reconhecer que as mulheres têm poder e
querem ampliá-lo para fazer jus aos seus direitos.

118
REFERÊNCIAS

AMERICAN HERITAGE DICTIONARY OF THE ENGLISH LANGUAGE.


New York: Houghton Mifflin Company, 2004.
AULETE, Caldas. Minidicionário contemporâneo da língua portuguesa.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.
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Janeiro: Nova Fronteira, 2004.
BADINTER, Elisabeth. Rumo equivocado. Rio de janeiro: Civilização
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Celecina de Maria Veras et al (Orgs.). Feminismo: memória e história.
Fortaleza: Imprensa Universitária, 2000.
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Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.
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Disponível em: <http:// www.agende.org.br/docs>. Acesso em: 20 jun. 2008.
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119
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dela. In: GEREGN, Marcy Mccanny. O pensamento feminista e a estrutura
do conhecimento. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos: Edunb, 1993. p. 177-
198.

120
A UNIVERSIDADE VISTA PELAS MULHERES: interpretações sobre o
processo de construção da identidade universitária

Anna Barbara Cardoso da Silva


Kirla Korina dos Santos Anderson
Luiz Eduardo Santos do Nascimento
Ricardo da Silva Rodrigues

O trabalho tem como objetivo compreender a construção da


identidade universitária, considerando experiências e significados das
práticas acadêmicas dentro e fora da sala de aula, com atenção para os
motivos que influenciam (ou não) a permanência no ensino superior. O estudo
envolveu pesquisa de campo com 14 alunas que ingressaram no curso de
Ciências Sociais da Universidade Federal do Pará (UFPA) entre 2003 e 2008,
enfatizando questões qualitativas sobre o que significa ser universitário(a) e
quais os principais desafios e/ou motivações para continuar no curso.
Os dados que serão aqui analisados fazem parte do projeto de
pesquisa intitulado Nativos Temporários: um estudo sobre a transição entre o
ensino médio e a trajetória após a aprovação no vestibular, desenvolvido
desde 2008 por professores e discentes do grupo Pet/GT/Ciências Sociais da
Universidade Federal do Pará (UFPA). O estudo examina significados
presentes na graduação, tendo como objetivo principal compreender como
discentes interpretam suas experiências na graduação, comparando idéias e
práticas dentro e fora da sala. Como organizam seu tempo, quais suas
expectativas com relação às disciplinas, professores(as), colegas e
desempenho pessoal, como se preparam para as aulas e se participam de
eventos, formando um processo que chamamos de identidade universitária.
Compreendemos que a construção da identidade universitária é
um processo que avança ou regride diariamente, conforme nos mostram
Berger e Luckmann (1998). Neste sentido, tomamos como ponto de partida
para análise a missão institucional da universidade em possibilitar ao aluno
arcabouço que possibilite associar teoria e prática, em vista do que pode (ou
poderia ter sido) o caminho mais ou menos legitimado para se
chegar ao mercado de trabalho.
As compreensões ou interpretações sobre a construção da
identidade universitária dão conta de que o caminho universidade-trabalho
não se dá de forma única, mas apresenta diversidades quanto às
experiências e maneiras de vivenciá-la. O recorte que damos neste trabalho é
o de compreender possibilidades deste processo a partir do ponto de vista de
estudantes do curso de ciências sociais da UFPA, tendo, portanto, o caráter
exploratório de mapear casos e significados, combinado pesquisa
bibliográfica sobre gênero, cultura, identidade, antropologia e educação,
práticas acadêmicas e pesquisa de campo, o que privilegiou dados
121
qualitativos.
Assim, o artigo está estruturado em dois itens. No primeiro,
tratamos da apresentação do perfil das entrevistadas e considerações sobre
suas trajetórias na universidade, relacionando tempo de permanência no
curso e quais atividades desenvolvem fora da universidade, com atenção
para justificativas sobre a interrupção dos estudos. Para interpretar tais
questões, partimos da perspectiva antropológica de considerar o ponto de
vista do nativo durante seu processo de construção da identidade
universitária (GEERTZ, 1989 e 2006; BERGER ; LUCKMANN, 1998; LÉVI-
STRAUSS, 2006).
A partir do relato das interlocutoras, observamos, no segundo
item, que a construção da identidade universitária deve ser entendida de
acordo com as trajetórias individuais de cada discente dentro e fora da
universidade. Neste sentido, a evasão pode significar a não identificação com
o curso, mas envolve também um processo ampliado de escolhas e a
conquista da mulher no espaço público (VIEZZER, 1989; HEILBORN, 1992;
SAFFIOTI, 1994; SORJ, 2004).
DE CALOURA A DESISTENTE: passos da identidade universitária
Passar no vestibular é uma conquista. Ao estudar os significados
presentes na festa de aprovação no vestibular, Silva (2008a) afirma que
passar no vestibular pode ser entendido como um ritual que envolve muitas
trocas. Os(as) alunos(as) chegam a abrir mão de viagens, festas, passeios,
brincadeiras, para dedicar atenção à prova de seleção das universidades, o
que é (ou se espera que seja) compensado com a aprovação. Além disso,
quando o nome do(a) candidato(a) é divulgado na lista de aprovação, a
pesquisadora mostra que em Belém é comum as pessoas preparem uma
festa com amigos(as), parentes, vizinhos(as). Também se joga no(a)
aprovado(a) farinha de trigo, ovo, cerveja, tinta de tecido, como sinais de um
ritual de passagem.
Do ponto de vista da instituição, uma programação nos cursos é
preparada para receber os novos discentes. No período de orientação
acadêmica em Ciências Sociais, por exemplo, os discentes são chamados
para entender as formas de matrícula e freqüência nas disciplinas,
trancamento e código dos conceitos, data e horário de início das aulas,
possibilidades e importância de participar de atividades extracurriculares e de
projetos de ensino, pesquisa e extensão. Neste momento, observamos que a
universidade passará a ser mais que um espaço de estudo em sala de aula.
Assim, a identidade universitária consiste num processo de
inserção na universidade, que envolve a questão do ensino, pesquisa e
extensão, para além das atividades desenvolvidas no âmbito da sala de aula.
Compreender este processo parte da análise das práticas e idéias que
servem de suportes culturais para a vida acadêmica, dando destaque para o

122
que chamamos de evasão.
Partimos da idéia que a universidade tem de ser capaz de
possibilitar ao discente horizonte teórico e profissional aplicável no dia a dia, o
que envolve a tomada de decisões, como salientam Minogue (1981) e
Antunes (2001). Por este motivo, a aprendizagem universitária está
alicerçada em três eixos de integração (ensino, pesquisa e extensão),
contribuindo para múltiplas possibilidades de aprendizagem. É
neste sentido que este trabalho se preocupa com o processo de construção
da identidade universitária, analisando a compreensão ampliada sobre o
ensino-aprendizagem no ensino superior.
Neste sentido, tomamos como sujeitos de interpretação sobre as
formas de identidade universitária, discentes do curso de ciências sociais,
que por algum motivo interromperam seus estudos na universidade. As
informantes têm diferentes trajetórias acadêmicas. Na maioria dos casos,
trancaram ou simplesmente deixaram de freqüentar o curso, seja por não
conseguir conciliar estudo e trabalho, outra graduação, por não se identificar
com as disciplinas, professores e/ou colegas de sala, como podemos ver a
seguir:

Quadro 1: Perfil das entrevistadas


Fonte: Pesquisa de campo, 2009.

_____________________________________________________________

49
Para preservar a identidade das interlocutoras, seus nomes foram trocados para exposição dos dados da
pesquisa.
50
Refere-se ao ano de ingresso no Curso de Ciências Sociais.
123
Das 14 entrevistadas, 12 afirmaram cursar ou ter cursado outra
graduação. Conciliar duas graduações significa ter ingressado nas
instituições no mesmo ano ou em momento diferentes na mesma instituição,
como o caso de Tatiana e Luana que cursaram respectivamente graduação
em Engenharia de Alimentos e Ciência da Computação na UFPA, desistiram
do primeiro curso para poder se matricular em Ciências Sociais. Elas
disseram que saíram de seus antigos cursos por falta de afinidade com as
disciplinas e perspectivas profissionais.
Entendemos que a identidade universitária apóia-se nas
atividades que a universidade oferece e principalmente no uso que os
discentes fazem, por isso ela envolve ser conhecedor e participante daquilo
que a instituição pode oferecer. Neste sentido, quando os alunos apontam o
desejo de continuar na universidade, eles lamentam o fato de não poderem se
dedicar às outras atividades, desistindo do curso até o quatro semestre.
Fazer parte da universidade é uma questão de identidade para
poder participar, como mostraram Nogueira e Barbosa (2009) ao estudar as
discentes de pedagogia na UFPA. A identidade universitária não ocorre
apenas através da freqüência nas disciplinas ou na participação em projetos
de ensino, pesquisa e extensão, mas se relaciona também à maneira como
as relações sociais são tecidas diariamente com os colegas de turma, com as
formas de estudar, com os professores, como podemos ver no relato de
Vanessa ao dizer porque deixou o curso: “Não foi como eu imaginava, eu
queria uma vida acadêmica mais ativa, queria participar de tudo, mas
infelizmente por me sentir pior que todos, tentei me fechar em dúvidas, em
vontade de fazer outras coisas que me deixaram fora dessa vida que eu
sonhava. Espero que eu consiga futuramente ter uma vida melhor e mais
ativa na universidade, neste ou em outro curso.”
A UNIVERSIDADE VIVIDA POR ELAS E OS SIGNIFICADOS DA
EVASÃO
Considerando que interpretar quais significados estão envolvidos
quando tratamos de identidade universitária e evasão, atentamos para a
questão a partir da fala das alunas (GEERTZ, 2006). Entre os motivos para
afastar-se do curso, podemos agrupá-los por temas que dizem respeito a
questões institucionais e pessoais, como poderemos ver:
Quadro 2: Motivos para afastamento do curso

124
Fonte: Pesquisa de campo, 2009.

125
Observando os motivos para afastamento, chama atenção a
questão da identificação (ou não) com o curso, a necessidade de conciliar
atividades (em geral, duas graduações ou estudo com trabalho). Neste
sentido, o afastamento do curso não significa desligamento total; ao contrário,
quando perguntadas sobre sua experiência de evadidas, as discentes
demonstram a vontade de voltar ao curso. A questão institucional é apontada
por uma delas, quando precisou sair de Marabá, estado do Pará, onde
passou no vestibular, e vir para Belém.
Quando associamos gênero e trajetória universitária,
percebemos que passar em mais de uma universidade, ter ou não filhos na
maioria dos casos, ter que trabalhar para se sustentar ajudam a compreender
diferentes modos que a mulher vem conquistando meios para se posicionar
na universidade, em comparação aos primeiros trabalhos de gênero.
Ao tomar como análise os estudos sobre mulheres, Heilborn
(1992) argumenta que a categoria de gênero indica a distinção entre as
características culturais usadas para identificar homens e mulheres e que por
este motivo diferenciam-se entre os grupos sociais. A categoria de gênero
configura-se como campo de investigação antropológico, utilizado,
particularmente, por autoras ligadas ao feminismo. A autora destaca que o
ponto de partida para análises de gênero consiste no estudo do outro, no que
diz respeito ao exame das representações e práticas sociais de determinado
grupo social em seus termos culturais. Desse modo, a avaliação do lugar que
a mulher ocupa na sociedade opera-se principalmente mediante seu
movimento de construção da identidade social.
Ao estudar as proposições que demarcam o conceito de gênero,
Saffioti (1994) constata que esta categoria é uma construção social. As
diferenças existentes entre homens e mulheres devem ser entendidas como
“fruto de uma convivência social mediada pela cultura” (SAFFIOTI, 1994;
271-272). O gênero é concebido como relação entre os sujeitos construídos
pela sociedade e que diferem de acordo com o período histórico em que se
encontram.
Viezzer (1989) alega que a categoria analítica de gênero
representa um instrumento da teoria feminista e compreende a relação de
pessoas de gênero. As teorias feministas formulam o conceito de gênero
como categoria de análise.
Este conceito reafirma a historicidade das relações de gênero, a
sua importância enquanto pressuposto estruturante da experiência dos
sujeitos e das relações que estabelecem. A perspectiva de gênero, em geral,
_____________________________________________________________

51
Segundo HEILBORN (19992), a categoria de gênero nos estudos antropológicos veio da gramática, e
tem por objetivo designar indivíduos de sexos diferentes, ou coisas relacionadas a homens e mulheres.

126
investiga o modo como se dá o processo de percepção social dos
posicionamentos de gênero e suas imbricações com a dominação e o poder.
Com base nessa reflexão, o entendimento da trajetória
acadêmica das mulheres em questão também não pode deixar de considerar
as dimensões de gênero. Sobre isso, vale dizer que das 14 entrevistadas,
apenas uma disse ter deixado o curso por dificuldade de conciliar estudos,
trabalho e família. As outras treze não são casadas e não têm filhos, mas
falam igualmente da dificuldade de conciliar estudos com trabalho, por terem
que conciliar com outra graduação.
Neste caso, é importante destacar que a universidade
proporciona inserção de mulheres no espaço público, o que não se restringe
ao campo das ciências humanas. As opções por prestar mais de um
vestibular aparecem no desejo de ter um curso superior, ingressar no
mercado de trabalho e trilhar uma carreira. Além disso, estar na universidade
pode significar um processo de empoderamento, na medida em que elas
lançam mão de um processo de escolhas.
À GUISA DE CONCLUSÃO
Assim, a construção da identidade universitária relaciona-se não
apenas com as experiências que vivenciam na universidade, mas também
com a vida fora dela, pois manter-se na universidade movimenta um leque de
possibilidades e escolhas que fazem ao privilegiar, num
determinado momento, um curso e não outro. No caso das mulheres deste
estudo, o favorecimento do processo de empoderamento é imperativo para
possibilitar a inclusão social nas universidades e, também, na sociedade
como um todo, pois interromper os estudos num curso de graduação significa
valorizar outros fatores em um processo de escolhas, decisões e dedicação a
outra graduação, assim como conciliar estudos, com trabalho e família.
Outros fatores podem emergir com os modelos familiares, a crítica da
inserção no ensino fundamental e médio, a ausência de uma monitoria para
calouros.
Como nota prévia para novos desdobramentos, esta síntese
considera dados que esperamos multiplicar para que a análise ganhe
consistência. A esta altura (nosso estudo começou em 2008), podemos
esboçar a hipótese que a transição para a universidade não é monolítica ou
monocrômica, isto é, parece haver tipos de inserção que envolvem
mediações, velocidades, resultados, interpretações diferentes. Neste
contexto, o conceito de identidade universitária ajuda como um conjunto que
abre a vista para olhares de gênero no contexto que também é marcado pela
transição de cada jovem para a vida adulta.

127
REFERÊNCIAS

ANTUNES, Celso. Como transformar informações em conhecimento.


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BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade.
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gênero. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; São Paulo: Fundação Carlos
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SAFFIOTI, Heleieth. Posfácio: conceituando gênero. In: SAFFIOTI, Heleieth
(Org). Mulher brasileira é assim. Rio de Janeiro: Rosa dos tempos: NIPAS,
Brasília: UNICEF, 1994. p. 271-283.
SILVA, Andrezza Cunha da. A festa do vestibular. Belém: UFPA, 2008a.
(Trabalho de Conclusão de Curso em Ciências Sociais).
SORJ, Bila. Trabalho remunerado e trabalho não-remunerado. In: VENTURI,
Gustavo, RECAMÁN, Marisol, OLIVEIRA, Suely de (Org.). A Mulher
Brasileira nos Espaços Público e Privado. São Paulo: Editora Fundação
Perseu Abramo, 2004. PP. 107-119.
VIEZZER, Moema. O problema não está na mulher. São Paulo: Cortez,
1989.

129
TODAS EM NOME DA PAZ: Minha Experiência no Combate à Homofobia na
Escola

Amanaiara Conceição de Santana Miranda

“Ninguém vive bem sua sexualidade numa sociedade tão restritiva, tão
hipócrita e falseadora de valores; uma sociedade que viveu a experiência
trágica da interdição do corpo com repercussões políticas e ideológicas
indiscutíveis; uma sociedade que nasceu negando o corpo...É preciso
viver relativamente bem a sexualidade. Não podemos assumir com
êxito pelo menos relativo, a paternidade, a maternidade, o professorado,
a política,sem que estejamos mais ou menos em paz com a sexualidade.”
(Paulo Freire).
Os PCN´s sugerem que seja feito um trabalho ordenado e
sistematizado de Orientação Sexual dentro do espaço escolar: promoção da
saúde das crianças e adolescentes; ações preventivas às doenças
sexualmente transmissíveis, a infecção pelo vírus da AIDS e uma reflexão
acerca da temática da sexualidade. Nas práticas escolares, contudo, o tema
sobre sexualidade vem sendo debatido, porém em situações pontuais, onde
já estão cristalizados os preconceitos contra as diversidades, principalmente
a diversidade sexual. Foi pensando nesta diversidade que, de forma
individual, começamos efetivamente em 1999 a levar esta discussão para as
escolas por onde passávamos.
Porém, pensando no grande mestre o sociólogo baiano Gey
Espinheira, falecido em março de 2009, que sempre nos dizia: “a história de
que temos que fazer nossa parte igualmente à parábola do beija-flor é uma
farsa. Pois se o beija-flor tentasse apagar o fogo levando água no bico,
obviamente ele teria que chegar muito perto do fogo, onde certamente
morreria queimado em virtude das faíscas. O que apaga incêndio é pó
químico, é tecnologia de ponta”.
Partindo deste princípio, ficamos a pensar: qual seria a tecnologia
de ponta necessária para instaurarmos uma educação que promova o
respeito ao ser humano? Pensamos na efetivação das políticas
educacionais. Fazendo uma retrospectiva da política do governo atual que
vem investindo através de suas secretarias em políticas a equidade de
gênero e de respeito à diversidade sexual, concluímos que ainda falta muito
para alcançarmos uma sociedade mais fraterna.
Na busca de caminhos mais consistentes e que garantam a
participação ativa de mais autores é que utilizamos de uma estratégia, talvez
que não se encaixa nos “padrões” requisitados pelas universidades, com
suas metodologias de pesquisa. A pesquisa é ótima para coletar dados onde
ao serem interpretados proporcionarão respostas para problemas propostos.
131
Mas é urgente que pensemos numa outra possibilidade que os/as
pesquisadores/as estejam dentro do ambiente escolar, não como
observadores/as, ou ainda de vez em quando fazendo algumas intervenções
que, nem sempre é de comum acordo com os/as professores/as que atuam
cotidianamente na unidade escolar. Ambiente escolar que possui todas as
suas impossibilidades e carências, que só são percebidas por quem convive
nele durante um período mínimo de quatro horas diariamente.
Obviamente sabemos que há inúmeras razões que determinam a
realização de uma pesquisa, podendo ser classificadas em dois grandes
grupos: razões de ordem intelectual e razões de ordem prática. As primeiras
decorrem do desejo de conhecer pela própria satisfação de conhecer. As
últimas decorrem do desejo de conhecer com vistas a fazer algo de maneira
mais eficiente ou eficaz. Mas será que com tantos casos de violência
ocorridos numa determinada realidade poderão esperar no mínimo dois anos
de estudos para que sejam combatidos? E quando efetivamente forem
combatidos, será que não aparecerão novos fatos, novas razões para os
mesmos problemas? Então será que as ações elaboradas para combater as
causas, farão o efeito esperado?
Todas em Nome da Paz é o nome “fantasia” de um projeto que
criamos em 2007 com o objetivo de minimizar a violência física e simbólica
vivenciada por indivíduos que são discriminados pelo fato de terem
relacionamentos homo-afetivos ou identidade de gênero não correspondente
ao sexo biológico. Outro foco do trabalho é o empoderamento das mulheres
através da informação, para que construam instrumentos de defesa na
garantia do direito de liberdade e acesso a espaços públicos. A necessidade
do projeto surgiu na semana pedagógica de 2007 da Escola
Municipal Comunitária de Canabrava, onde nós atuávamos na coordenação
pedagógica oficialmente no turno matutino e contribuíamos para o turno
noturno. Decidimos diagnosticar perante o corpo docente, direção e
representante de pais, quais as reais necessidades da comunidade escolar.
Professoras e responsáveis de alunos/as sinalizaram para a
violência simbólica e física que ocorriam dentro e fora do ambiente escolar.
Partindo para o estudo destas violências, observamos que as causas de
algumas das violências estavam associadas a fatores históricos que
perpassam na nossa sociedade em relação às representações sociais
vinculadas a pessoas de grupos específicos como: mulheres e
homossexuais. O conceito de representações sociais do qual me refiro está
relacionado aos significados que são produzidos e colocados em circulação
através das relações de poder. “Dessa forma, representar implica em
designar aquilo que conta como realidade numa determinada cultura e num
determinado tempo histórico, produzindo assim conhecimentos e verdades
em torno daquilo que se quer representar.”
Analisando o currículo oficial e cotidiano da escola, percebíamos
132
a ausência de indicadores que propusessem as discussões sobre gênero e
diversidade sexual. Aí surgiu a idéia de se fazer algo que não tivesse o caráter
de imposição para trabalhar as questões aqui apresentadas. A discussão
inicial do que poderia ser feito foi discutida com o corpo docente,
representantes de responsáveis, direção e vice-direção. Após uma longa
discussão, recolhemos as idéias de todas e fomos para casa onde pensamos
em um plano de ação que não afugentasse ninguém que participou daquele
momento.
No segundo encontro dissemos que faríamos um projeto que
trabalhasse o tema da paz uma vez por mês com os/as
responsáveis dos/as alunos/as, professores/as, funcionários/as, direção e
outros integrantes da comunidade. Iniciamos precisamente no mês de maio
com a oficina: A Figura da Mulher na Mídia. A cada encontro mensal,
avaliávamos a discussão e quais demandas teríamos para
implementar no próximo, objetivando proporcionar conhecimentos básicos
sobre os
temas sugeridos por todas participantes.
Assim, durante todo o ano de 2007 sistematicamente ocorreram
as oficinas sobre: Violência contra Mulheres, a Lei Maria da Penha, Violência
sexual contra Crianças e Adolescentes, A Figura da Mulher na Mídia, O papel
do/a Negro/a no Passado e no Presente, Auto-estima e Atuação Pró-ativa e
Intolerância Religiosa. A diversidade sexual, não foi contemplada com
atividades sistematizadas, em virtude do posicionamento de algumas
professoras que achavam que a escola tinha outras coisas mais urgentes
para resolver.
Os temas que não foram contemplados nos encontros,
trabalharam de forma particular em situações que cotidianamente surgiam e
que era requisitada a nossa interferência. Dois fatos ocorridos na escola
valem ser relatados para percebermos como as técnicas pedagógicas2 no
que se refere à educação e instrução dos prazeres estão presentes em
nossas práticas educacionais. Uma professora nos momentos do recreio
autorizava que alunos brincassem do lado de fora da sala e as alunas
brincassem dentro da sala de aula. Quando questionamos sobre tal
procedimento, a sua justificativa era de que estaria preservando a integridade
física das meninas em relação aos comportamentos dos meninos, cujas às
brincadeiras estariam abaixo da capacidade física de se relacionarem com os
meninos, pois estes estariam com bolas ou até mesmo com brincadeiras de
correr.
O fato citado demonstra como no dia-a-dia escolar podemos
_____________________________________________________________

57
Na perspectiva pós-estruturalista, conhecer e representar são processos inseparáveis. A representação
compreendida aqui como inserção, marca, traço, significante e não como processo mental – é a face
material, visível, palpável do conhecimento (SILVA, 1999, p.32)
133
educar desde muito cedo a criança considerar que certos
comportamentos são próprios do homem ou da mulher. Afirmando, através da
linguagem, que há uma regulação da sexualidade, impedindo a criança a
fazer, a experienciar, a viver. O corpo é convocado a abrigar uma técnica que
a principio não era sua, mas por agir de maneira repetitiva tornar-se-á uma
prática de si.
Segundo Michel Foucault, na obra História da Sexualidade I – A
vontade de saber (2006) justifica que prática de si é uma expressão que
designa que as ações do sujeito são percebidas por ele mesmo como criação
sua, quando na “verdade” essas condutas são conforme os valores e as
regras estabelecidas numa determinada pela sociedade. Em toda prática ou
atitude há um saber e o corpo é que servirá como base para os saberes
sobreviverem. É um saber que ao ser tomado como verdade torna-se parte do
corpo, mas que só ganha vida no campo da experiência, quando é tomado
como “verdade” e ao ser efetuado como prática própria, como uma prática de
si.
A conduta da professora diante a criança está constituída de
valores e crenças a respeito da perpetuação da ordem de gênero, e essas
práticas não são apenas reforçadas pela escola, como também, e,
principalmente, pela família. A família, enquanto ambiente primário de
socialização da criança, possui também valores e crenças que se cruzam
com o que escola dissemina, a contestação ao que a escola discursa e faz, só
aconteceria caso a escola se posicionasse contrária à aquilo que a família
acredita.
E o que poderá acarretar para as alunas? Possivelmente as
alunas incorporariam uma inferiorização do papel da mulher, como também
absorção de rótulos sociais nas quais se distingue as atribuições
dos homens e das mulheres. Assim, ficará para a mulher desenvolver todas
as atividades realizadas no âmbito privado. Cabe à escola problematizar a
reprodução das diferenças, pois segundo Bourdieu (1999), a escola é uma
instituição importante para gerar transformação, inclusive no que se refere às
diferenças de gênero, isto é, criar espaços de discussão que diretamente
trate desses preconceitos, rótulos e atitudes discriminatórias.
Ao analisar a produção e reprodução do discurso, Foucault
identifica que há duas grandes forças imbricadas em seu processo de
institucionalização: “a vontade de verdade” e a “vontade de saber”. E que
estas duas forças arbitrárias necessitam existir para, sobretudo, exercer o
poder. O autor explica que com a divisão platônica de verdadeiro e falso, que
se arrastou ao longo dos séculos, onde o discurso verdadeiro era o do rei, da
igreja e de quem pronunciava a justiça, a verdade passou a habitar não no
que se faz, mas, no que se diz. Consequentemente, o discurso verdadeiro
passa a garantir um maior domínio, um maior poder.
De tal modo, a própria escola, enquanto espaço de circulação dos
134
mais diversos discursos, se constitui na produção e reprodução de falas e
informações que tentam controlar e conter os episódios que possivelmente
exprimam a diversidade. Tal postura tende a tornar o espaço escolar como
propriedade de quem fala, dando a este a possibilidade e capacidade de
manter a hegemonia, a heteronormatividade, ao sexismo, ao racismo e etc.,
disseminando valores cruciais para a crítica e recusa da igualdade, não só na
escola como também na sociedade.
Com a manutenção dos padrões apresentados no parágrafo
anterior, os indivíduos são “convidados” a estarem vigilantes de si mesmos; a
isolar-se daqueles que se comportam de maneira “irregular”; a serem
obedientes às determinações do discurso; a dizer e a fazer o que é “normal”.
O outro caso demonstra como os indivíduos vigiam uns aos
outros que não correspondem aos padrões heteronormativos. No ano 2007,
numa sala que estavam alunos e alunas de 6 anos e mais 2 professoras para
auxiliarem na organização dos adereços para desfilar, um aluno escolheu um
enfeite feito de papel na cor rosa com desenhos de flores e que
imediatamente, um dos seus colegas com extrema surpresa chamou a
professora e falou: - Pró... Fulano pegou o enfeite de menina. Isso pode? A
professora respondeu para o aluno que fez a escolha e disse: Menino você
não ta vendo que isto é coisa de mulher? Tem coisa para homem, porque você
não escolhe o que é para você? O aluno em questão perguntou a professora:
E qual é o meu? E ela respondeu: Você não sabe?! É o que tem carrinhos,
animais e o papel é azul.
Com este exemplo é possível verificar que o aluno quando
pergunta E qual é o meu? Ele não dispõe de um ideário que o classifica ou o
coloca especificamente em um lugar de menino ou menina, mas ele apenas
faz a sua escolha dentro daquilo que melhor lhe dá prazer ou lhe interessa,
demonstrando que ainda não possui a identidade sexual e de gênero
definida. Considerando o discurso do outro aluno (Pró... Fulano pegou o
enfeite de meninas. Isso pode?) é nítido que já está internalizando
identidades de gênero, onde inclusive questiona o comportamento ou
escolhas diferentes. Assim, se entendemos que gênero e sexualidade são
construções sociais, elas são, portanto, passíveis de mudanças.
Nesta situação dialogamos com as crianças, questionando os
padrões pré-estabelecidos de feminilidade e de masculinidade, para que a
reprodução das diferenças preconceituosas não seja incorporada desde as
primeiras etapas da construção das identidades. No final de 2007, em reunião
para avaliarmos como foram os projetos e decidirmos sobre quais projetos
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58
Foucault, Michel. História da sexualidade – A vontade de saber. Vol. 1. Na escola, as técnicas
pedagógicas definiam tanto o ambiente escolar como as condutas dos alunos: “o espaço da sala, a forma
das mesas, o arranjo dos pátios de recreio, a distribuição dos dormitórios, (com ou sem separação, com ou
sem cortina) e os regulamentos elaborados para a vigilância do sono”, todas foram técnicas pedagógicas
com idéias de ensino para atuar eficientemente no que se refere à educação e instrução dos prazeres.
135
iríamos implementar na escola no ano de 2008, o projeto Todas em Nome da
Paz foi avaliado como positivo e que deveríamos continuá-lo. Uma mãe,
contudo, requisitou que tivesse mais atividades sobre a questão da
homossexualidade, justificando: “um aluno aqui, só porque tem
um jeitinho de mulher, os colegas e o pessoal da rua, discrimina. “E eu vi na
televisão que isto agora vai ser crime”. Uma professora diz que o mais
importante é trabalhar sobre a gravidez na adolescência. Outra professora diz
é muito complicado trabalhar sobre a diversidade sexual, porque todo mundo
sabe que isto não é normal.
Diante disso percebemos como é difícil a introdução de um
discurso diferente sobre a sexualidade, abrangendo inclusive a diversidade
sexual. Ao analisar este caso podemos observar que a escola é um lugar que
favorece a reprodução de estereótipos comportamentais, considerando que
muitos dos discursos dos/as professores/as e diretores/as, alinham-se a uma
cultura que tende se não necessariamente a apoiar, muitas vezes silenciar
discriminações. Abstendo-se, assim, a escola, a assumir um papel mais
agressivo em termos de formação de uma cidadania, pautada no
reconhecimento da diversidade, da denúncia, do combate e da
desconstrução de discriminações e relações de gêneros que sustentam
assimetrias e preconceitos.
Ao analisar os princípios de exclusão do discurso, Foucault
(2006c) esclarece que há procedimentos de interdição, rejeição e separação
no discurso e que se efetuam de maneira diferenciada. O autor explica que o
procedimento de interdição do discurso se traduz como um sistema de
dominação, de modo que “não se tem o direito de dizer tudo, não se pode falar
de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de
qualquer coisa”. Já o procedimento de separação do discurso está impresso
num sentido, sempre, de oposição, de criação do oposto, como a separação
daquilo que é objeto de desejo daquilo que não é, “é aquele cujo discurso não
pode circular como o dos outros: pode ocorrer que sua palavra seja
considerada nula e não seja acolhida”. E o procedimento de rejeição,
conseqüente ao da separação, logo trata de recusar o que não é razoável, o
que é visto como o que não tem sentido, o que é estranho, é aquela palavra
que é rejeitada tão logo proferida [...], de qualquer modo,
excluída”, e sendo rejeitado é levado a deixar de existir.
A fala da mãe foi o que nos fortaleceu para que de forma mais
incisiva implementássemos ações voltadas à promoção do reconhecimento
da diversidade sexual e ao enfrentamento do preconceito, da discriminação e
da violência em virtude de orientação sexual e identidade de gênero, não
deixando espaço para os discursos resistentes de algumas professoras
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59
Foucault, Michel. História da Sexualidade – A vontade de saber. Vol. 1. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 2006a

136
anteriormente. Quando a representante dos responsáveis pressiona a escola
e seus colaboradores a reconhecerem a diversidade sexual existente no
tecido social, deixou muito claro qual deveria ser o papel desta instituição no
combate as desigualdades. No ambiente escolar, o discurso da sexualidade
ainda se encontra interditado, rejeitado e excluído da proposta de
reformulação das praticas pedagógicas, resultando na permanência de um
discurso científico baseado nos saberes médicos e psiquiátricos de
identificação das enfermidades e alterações; psicológicos de correção dos
desvios, como também, pelo discurso da pastoral cristã, que também
elaborou técnicas através do relato dos indivíduos para se obter os aspectos
singulares do sexo a partir das coisas que se falavam que se fazia ou não, que
se sentia ou não, produzindo, então discursos que se encarregam de ajustar
ou mudar os comportamentos do sujeito.
Quando se transmite uma educação para insensatez, reduz-se o
indivíduo à arte de agradar, infunde-lhe a hipocrisia criando uma espécie de
conformismo-“[...] uma uniformidade desprezível e enganosa”- que abafa a
sinceridade dos indivíduos. “[...] incessantemente seguem-se os usos e não o
próprio gênio. Não se ousa a aparecer o que se é [...]. É preciso ser
plenamente inteiro dono de si.
No ano 2008, foi possível desenvolver algumas atividades
significativas sobre diversidade sexual, onde observamos a multiplicidade no
tratamento da informação das diferentes gerações. No público adulto era
muito mais complexo discutir as questões relacionadas à homossexualidade
e a adoção do que com o público infanto-juvenil. O grupo de professores/as
avaliou que o fato de ter estudado sobre que a sexualidade engloba um
conjunto que vai além do corpo, abarcando a história, os costumes, as
relações afetivas e a cultura, ficou mais fácil discutir sobre a
homossexualidade na sala de aula e consequentemente com menos “pavor”
em elaborar atividades que discutam o preconceito a diversidade sexual.
A visibilidade sobre a existência da homofobia não mais
assustava as professoras na hora de “apagar incêndio”. Também começaram
a introduzir atividades anteriormente impensadas, como trabalhar com Medo
de quê? (Brasil, 2005) – Desenho animado, sem palavras, que focaliza o
processo de descoberta por um garoto de sua atração afetivasexual por
rapazes, e o impacto que isso traz às relações a sua volta. O vídeo é uma
produção em parceria de Ecos/Promundo/Papai/Salud y Gênero. O tema que
também demandou muita discussão foi o aborto em virtude da concepção
religiosa dos/as alunos/as do SEJA e dos responsáveis, que em sua maioria
era protestante.
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60
FAGUNDES, Tereza C. P. Carvalho (org). Ensaios sobre educação, sexualidade e gênero – Salvador:
Helvécia, 2005. p.128

137
Nos grupos de trabalho de acordo com cada segmento foi
observada uma multiplicidade de experiências em relação aos conceitos
abordados durante as oficinas, variando de acordo a classe
social, formação institucional, geração e concepção religiosa. Uma atividade
que vale relatar é o jogo dos sete erros (numa folha de papel ofício contendo
três casais: um casal hetero, um casal homossexual masculino e um casal
homossexual feminino). Os/as alunos/as tinham que completar os desenhos.
Depois abríamos para a discussão sobre o desenho. Nos grupos de
educação infantil, a maioria dos/as alunos/as não externavam preconceitos
só percebiam os erros gráficos da proposta do jogo. Já no ensino fundamental
I, principalmente com os/as alunos/as do 4o e 5o ano de escolarização, na
hora de discutir sobre o desenho era externado todo o preconceito construído
numa sociedade sexista e heteronormativa.
O resultado mais significativo foi à comunidade compreender a necessidade
de reformular o projeto político pedagógico da escola, incluindo as questões
relacionadas a gênero, raça/etnia e sexualidade, pois assim
independentemente deste projeto estaria comprometida com a diversidade.
Ainda falando das oficinas, não só nós mediávamos, como também
convidávamos pessoas dos movimentos sociais e estudiosos para atuarem
como mediadores. Numa dessas mediações, uma pessoa do movimento
negro e também diretora da Escola Municipal Parque São Cristovão
Professor João Fernandes nos convidou para esta mesma tarefa na unidade
escolar.
Assim o primeiro encontro aconteceu logo na semana seguinte
com todos/as que atuam na escola. A nossa proposta inicialmente foi de
sensibilizar a comunidade para a temática visto que não pertencíamos à
aquele ambiente. Surpreendentemente extrapolamos o horário e todos/as
permaneceram concentrados/as ao que estava sendo proposto. Vários
docentes com vontade de saber mais, outros em silêncio, talvez se
questionando sobre “sei lá o quê” e alguns questionaram verbalmente sobre
se a questão da homossexualidade era genético ou questão de escolha do
indíviduo. Então respondemos que o X da questão não estaria em ser
genético ou não, mas sim o problema residia quando ignoramos a
diversidade sexual e culpabilizamos o sujeito, não permitindo a ele viver sua
sexualidade seja ela qual for e de maneira livre. E fizemos uma pergunta de
volta: e se fosse uma escolha? Será que ele não tem o direito à sua
subjetividade?
Assim durante o ano de 2008, na escola Parque São Cristovão...
poucas atividades foram implementadas, visto que os projetos já tinham sido
estabelecidos no início do ano. Porém o avanço mais significativo para nós,
aconteceu durante o mês de fevereiro na Jornada Pedagógica de 2009,
quando organizamos uma oficina para todos/as que trabalhavam na escola,
onde levamos um pessoa que é transexual para mediar todo o trabalho
138
proposto naquele encontro.
Surpreendentemente, uma pessoa que atua na escola como
servente foi quem mais demonstrou interesse sobre a temática em virtude de
possuir um filho homossexual. A recepção da direção, professores/as,
porteiros e outros tantos ali presentes, foi de respeito e percepção da figura de
uma pessoa que estava naquele momento desempenhando um papel de
formador sobre uma questão em que eles/as não tinham conhecimento. Na
festa de São João deste ano, na quadrilha junina foram formados pares para a
dança e um aluno do SEJA, assumidamente homossexual, dançou no lado
das alunas. Ao analisar o fato, pode-se pensar em avanços já que antes isto
talvez não fosse possível neste espaço escolar. Mas outra reflexão a se fazer
é que para festas, onde a figura do homossexual fica caricaturada isto foi
possível, porém será que em outros momentos não festivos isto será
possível? Será que ele (o aluno) poderá usar o banheiro de alunas sem os
questionamentos de alguns, será que ele poderá querer ser chamado pelo
seu nome social sem o desconforto das piadinhas.
Durante este ano em Salvador, houve o 1º Seminário
Internacional Enlaçando Sexualidades, promovido pelo Núcleo de Gênero e
Sexualidade da UNEB (Nugsex Diadorim). Assim sugerimos que quatro
docentes fizessem os relatos de casos vivenciados no ambiente escolar. Para
minha surpresa todas aceitaram. No sábado da semana que
terminou o evento aqui citado, fomos à escola para entregar os certificados
dos relatos de experiência e o grupo nos cobrou uma atuação mais
sistematizada na formação continuada da equipe. Isto demonstra que nós
professores/as estamos sim em busca da transformação da educação, mas,
precisamos de parcerias que nos proporcionem novos saberes que nos
conduzam a um novo olhar sobre velhas questões da sexualidade.
As falas de algumas professoras nos mostram isto: “... eu acho
que minha dificuldade em falar sobre sexualidade é porque não temos
informação, sobre o monte de coisa deste assunto....” e “se for preciso vou ter
que estudar bastante, me sinto mal falando dessas coisas, sabendo que não
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61
“apagar incêndio” é uma expressão utilizada comumente pelas docentes na Escola Municipal
Comunitária de Canabrava como um problema difícil de se resolver.
62
Neste texto a palavra heteronormativa é proveniente do termo heteronormatividade (do grego hetero,
"diferente", e norma, "esquadro" em latim) é um termo usado para descrever situações nas quais variações
da orientação heterossexual são marginalizadas, ignoradas ou perseguidas por práticas sociais, crenças
ou políticas. Isto inclui a idéia de que os seres humanos recaem em duas categorias distintas e
complementares: macho e fêmea; que relações sexuais e maritais são normais somente entre pessoas de
sexos diferentes; e que cada sexo têm certos papéis naturais na vida. Assim, sexo físico, identidade de
gênero e papel social de gênero deveriam enquadrar qualquer pessoa dentro de normas integralmente
masculinas ou femininas, e a heteronormatividade é considerada como sendo a única orientação sexual
normal. As normas que este termo descreve ou critica podem ser abertas, encobertas ou implícitas.
Aqueles que identificam e criticam a heteronormatividade dizem que ela distorce o discurso ao estigmatizar
conceitos desviantes tanto de sexualidade quanto de gênero e tornam certos tipos de autoexpressão mais
difíceis.
139
tenho certeza...” Aos poucos a escola modifica seu discurso heteronormativo,
porém a equipe de professores/as está mais ávida a estudar as questões aqui
apresentadas e como também se instrumentalizarem para mudar suas
práticas pedagógicas, vislumbrando a mudança
efetiva do currículo cotidiano e oficial. Voltando à Escola Municipal
Comunitária de Canabrava, estamos atuando oficialmente no turno noturno,
continuamos fomentando o trabalho, porém por impossibilidades pessoais,
pouco estamos contribuindo com o diurno. Contudo, estamos sempre sendo
requisitadas para fornecer materiais, para conseguir mediadores e
principalmente à continuidade do trabalho com os/as alunos/as por parte de
algumas professoras. As oficinas com o público de pais, mães e responsáveis
continuam acontecendo sempre à noite ou aos sábados.
De tal modo, percebemos o protagonismo de algumas colegas em manter
viva a discussão da diversidade sexual, não sendo mais um projeto sobre a
responsabilidade de uma só pessoa. A necessidade de desconstruir
estereótipos está presente nas duas escolas, pois docentes, responsáveis
dos/as alunos/as, comunidade circunvizinha, direção, vicedireção requisitam
mais atividades para aprofundarmos as discussões e como também estão
todos/as comprometidos/as em reformular o projeto político pedagógico,
pois, justificam que só assim será possível a continuidade do trabalho
independente de gestão e dos profissionais que estejam atuando.

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63
UNEB refere-se a sigla da Universidade Estadual da Bahia

140
REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand


Brasil, 2002.
FAGUNDES, Tereza C. P. Carvalho (Org.). Ensaios sobre educação,
sexualidade e gênero – Salvador: Helvécia, 2005. p.128
FELIPE, Jane. Do amor (ou de como glamourizar a vida): apontamentos
em torno de uma educação para a sexualidade. In: RIBEIRO, Paula
Regina C.; SILVA, Méri
Rosane S.; SOUZA, Nadia Geisa S.; GOELLNER, Silvana; FELIPE, Jane..
(Org.).
Corpo, gênero e sexualidade: discutindo práticas educativas. 01 ed. Rio
Grande/RS: Editora da FURG, 2007, v. 01, p. 31-45.
FOUCAULT, Michel. A “Governamentalidade” In: Microfísica do poder. 25.
ed. Rio de Janeiro: Graal, 2008.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade – A vontade de saber. Vol.
1. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2006a.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade – O uso dos prazeres. Vol.
2. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2006b.
GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São
Paulo: Atlas, 2007.

LOURO, Guacira. L. Gênero, sexualidade e educação. Petrópolis, Rio de


Janeiro:Vozes, 1997.

SILVA, Tomaz Tadeu. A produção social da identidade e da diferença In:


SILVA, T.T. et al (Org.). Identidade e diferença. Petrópolis: Vozes, 2000.
Cap. 2, p. 73-102.

141
AS RELAÇÕES DE GÊNERO E A EDUCAÇÃO: um Mecanismo de Violência
Simbólica
Greissy Leoncio Reis Lemos
Universidade Federal da Bahia - UFBA
Greissy Leoncio Reis Lemos
Universidade Federal da Bahia - UFBA
1 INTRODUÇÃO
Toda organização social é constituída por homens e mulheres,
logo, é atravessada por relações de gênero que por sua vez, pressupõe
maneiras diferentes de socialização. Sem dúvida toda sociedade possui seus
ideais e modelos de masculinidade e feminilidade, convenções do que é ser
homem e do que é ser mulher em cada organização. Como dizia a célebre
Simone de Beaviour: “não se nasce mulher, torna – se mulher”. Ao afirma que
não nascemos, mas nos tornamos mulher, Simone rompe com todo o
discurso de naturalização do ser feminino. Dessa forma, este tornar-se
mulher, passa por vários e complexos processos, um exemplo muito claro de
um desses processos pode ser percebido desde a gravidez, por exemplo,
onde há toda uma curiosidade em saber o sexo da criança, pois o fato de ser
menina ou menino desencadeará toda uma gama de atitudes e expectativas
diferenciadas, tanto no plano material quanto no plano simbólico afetivo.
Dessa maneira o fato de pertencer a uma organização social
específica, pressupõe uma determinada socialização, pautada em normas e
valores, padrões comportamentais diferenciados para cada sexo, já que o
fato ser mulher ou homem implicará em maneiras diferenciadas e desiguais
de se comportar no mundo, logo de se socializar. Nessa perspectiva, a
situação da mulher é de desvantagem em relação ao sujeito masculino, já que
em nossa sociedade a socialização feminina é desenvolvida a partir de uma
ótica patriarcal que vê a mulher como um ser inferior ao homem e, por isso
deve permanecer numa posição de submissão. Nessa perspectiva, a
educação torna-se uma ferramenta primordial e estratégica na tentativa de
manter a mulher em uma situação de subjugação e subserviência, ao sujeito
dominante, “homem”.
Dessa forma, ao analisarmos a história, percebemos que a
mulher foi (continua sendo) aprisionada a um modelo de feminilidade que
pressupunha a sua permanência no espaço privado, o que a impedia de
participar na vida pública, tornando-a apenas expectadora dos grandes
acontecimentos históricos. Entretanto, algumas mulheres inconformadas
com tal violência, não se submetiam, e burlavam esse sistema arbitrário de
poder masculino de diversas maneiras, como participando de guerras
disfarçadas de homens, fazendo motins, etc.
_____________________________________________________________

1
UNEB refere-se a sigla da Universidade Estadual da Bahia

143
Alguns teóricos discutiram sobre a origem dessa sujeição da
mulher ao homem, um dos que mais se destacaram foi Frederic Engels, com
seu livro “A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Para
Engels (1985), o surgimento da propriedade privada foi a derrocada final para
o sexo feminino, significou a sua escravidão ao sexo masculino. A partir desse
momento a mulher passou, junto com os bens materiais, os filhos e os
escravos, a ser mais uma propriedade do patriarca, sua função agora seria a
de serví-lo e ser submissa, dedicando-se somente ao lar e ao seu senhor.
Esse quadro de exploração e submissão da mulher, irá se repetir
ao longo da história e das sociedades, no mundo antigo, em sociedades como
a ateniense, por exemplo, a mulher assim como os escravos e as crianças,
era desprezada de qualquer direito e não era considerada cidadã. Além disso,
os sábios da época como Platão e Aristóteles afirmavam e legitimaram a
suposta inferioridade feminina, mesmo que houvesse exceções de mulheres
sábias, estudiosas, que entendiam de política, em nada adiantava para que
esta identidade inferior de gênero fosse atribuída de maneira geral às
mulheres daqueles períodos. (MELO, 2001).
Na Idade Média não foi diferente, apesar da difusão do
Cristianismo e de seus princípios de igualdade e justiça, amor e misericórdia,
negando as diferenças entre pobres e ricos, senhores e servos
homens e mulheres, na prática esses valores foram distorcidos e
manipulados em função da conveniência de uma sociedade masculina. De
acordo o historiador Movin Perry (1999, apud MELO,2001,p.24):
A 'sociedade feudal era um mundo predominantemente masculino' no
qual o ideal cristão estereotipado, matricêntrico nos seus primórdios, vai
gradativamente assumindo caráter patriarcal, a estrutura do poder
abafando o discurso do amor e misericórdia, os oprimidos merecendo
somente promessas para a outra vida. A Igreja termina por aderir ao
patriarcalismo, tomando-se repressora no que tange à sexualidade, à
emoção, à mulher.
Posteriormente, entre os séculos XIV e XVIII na Europa, houve a
chamada “caça às bruxas”, centrada na sexualidade feminina ao lado do
fortalecimento do culto à Virgem Maria como modelo de mulher e mãe,
exaltado pela Igreja. Nesse período de “caça às bruxas”, as mulheres foram
vítimas das mais insanas atrocidades, muitas foram condenadas à fogueira,
ao enforcamento, etc., tudo isso, fruto da ignorância e do poder arbitrário de
uma sociedade maniqueísta e patriarcal. Um exemplo chocante de tamanha
violência nesse período, foi a perseguição empreendida às chamadas
cirurgiãs, que eram consideradas insubordinadas, vistas como ameaça ao
incipiente poder médico masculino, da época. Assim, o saber feminino fica
sufocado pelo “poder do saber” masculino. (MELO, 2001, p. 25).
Ao avançar um pouco mais na história, conquistas serão
presenciadas, a partir do final do século XVIII, com a invenção da máquina a
144
vapor, a fabricação em série de bens de consumo. O desabrochar da
economia capitalista e a transformação das relações de produção, gera a
Revolução Industrial e o capitalismo Industrial, influenciando nas formas de
relações entre os gêneros.
No que se refere à religião, o protestantismo se expande com
força negando os valores católicos, libertando os indivíduos do complexo de
culpa por angariarem riquezas aqui na terra. No entanto quanto à situação da
mulher, não apresentava diferença alguma, pois a nova religião
mantinha o mesmo puritanismo e a repressão sexual da fé medieval. Em
relação à participação da mulher na esfera do trabalho, ocorrem algumas
mudanças, esta agora é inserida nesse novo contexto social como
trabalhadora, mas deve se manter dócil , assim como na idade medieval,
aceitando as investidas do novo sistema de produção e estrutura social,
perpetuando ainda, valores dessa sociedade através da educação dos filhos.
“Nessas circunstancias um novo modelo de feminilidade se impunha: o culto
da domesticidade, o pedestal feminino a criação do instinto maternal.”
(MELO, 2001 p. 27).
Ainda no século XVIII as mulheres também participam da
Revolução Francesa que ia de encontro aos princípios do catolicismo,
pautando-se agora em novas verdades: a razão a liberdade e a igualdade.
Quanto à igualdade de direitos esta era proclamada para todos os homens,
somente para estes, pois a declaração dos direitos do homem, excluía as
mulheres, assumindo, dessa forma uma posição semelhante à Igreja Católica
– intolerante, conservadora e dogmática – que, aliás, eles tanto criticavam.
Assim, os intelectuais do iluminismo permanecem embasando a suposta
inferioridade das mulheres, baseando-se agora em razões naturais para
justificar a desigualdade entre homens e mulheres, nesta nova sociedade que
naquele momento se instaurara.
A partir do século XIX surge com força o movimento feminista, e
com ele seus discursos democráticos de contestação da posição da mulher
na sociedade e busca de cidadania. Neste século, há um avanço da
democracia, e muitos protestos, principalmente no setor econômico. As
sociedades passam por processos de modernização e junto a isso muitos
protestos também são instaurados.
Trata-se de uma época muito conturbada, de avanços econômicos e
progressos que se juntam a muitos protesto e tumultos. Confronto entre
capital e trabalho. Explosão de greves. É em 1884, o memento no qual
Marx e Engels lançam uma obra de abrangente repercussão: O Manifesto
Comunista. A capital francesa é surpreendida em 1871 com a Comuna de
Paris e a organização das Internacionais Operarias. Ainda nesse século,
em 1868, o livro O Capital, de Karl Marx, é lançado. Nesse contexto, as
mulheres trabalhadoras envolvem-se. (MELO, 2001, p.27)
Nesse momento, as mulheres enquanto trabalhadoras operárias,
145
lutam junto com os homens por melhores condições de vida. Assim, a mulher
passa agora a atuar de maneira ativa no espaço público, da espera política,
reivindicando o direito ao exercício da cidadania. Com isso começa a romper
com a barreira ideológica da divisão sexual do trabalho, desconstrução da
ideologia do espaço doméstico como único passível de atuação feminina. A
atuação da mulher agora não se restringe apenas no espaço privado, trata-se
agora de uma militância que se inicia e invade o espaço público e político.
A mulher a partir do final do século XIX começa a ser a
protagonista de sua própria história e de suas lutas. Ainda que persista no
imaginário masculino, fruto de um modelo de sociedade patriarcal, a imagem
da mulher enquanto indivíduo inferior e que deve permanecer, por suas
predisposições naturais, no espaço doméstico. Em contrapartida, as
mulheres têm demonstrado o contrário, ocupando cada vez mais e muitas
vezes melhor, o espaço público, antes ocupado, impreterivelmente, por
homens.
Entretanto, não nos enganemos, apesar de no passado as
mulheres terem sofrido as mais variadas formas de opressão e violência,
atualmente elas ainda são vítimas das mais diversas formas de violência. E
não se trata apenas da violência física, uma das mais eficiente e sutil, a
violência simbólica, dissimulada, por isso difícil de detectar e combater, mas
que tem um efeito devastador sobre a identidade da mulher, dificultando a sua
luta por emancipação. Esse tipo de violência, a simbólica, perpassa todas as
instituições sociais: a família, igreja, trabalho, política, no entanto, é na
educação onde ela encontra seu lócus principal de produção e reprodução.
Assim, a educação torna-se um dos principais mecanismos de violência
simbólica, um dos mais eficazes, para a manutenção do status quo da ordem
patriarcal, muito presente em nossa sociedade, legitimando
desigualdades de gênero nos diversos espaços, principalmente no escolar.
Segundo Bourdieu (1992, p. 20): “Toda ação pedagógica é objetivamente
uma violência simbólica enquanto imposição por um poder arbitrário de um
arbitrário cultural”.
O espaço escolar possui uma primazia no que se refere à
reprodução das ideologias dominantes, pois a escola enquanto espaço de
formação de sujeitos cumpre o papel de socialização dos mesmos. Assim,
toda sociedade possui seus modelos de identidade masculina e feminina e,
para que tais modelos sejam incorporados e perpetuados, as instituições
escolares deverão transmití-los para as gerações que lhes são confiadas,
conforme os anseios sociais. É obvio que se trata de relações que são
estabelecidas não mais pelo uso da força bruta, mas sim, da força simbólica.
São relações complexas de assimilação e rupturas permeadas por conflitos,
onde as relações de gênero se fazem presente. Nesse contexto as
desigualdades de gênero podem ser tanto perpetuadas como
desconstruídas, isso porque não podemos, pensar a escola sob uma ótica
reducionista, enquanto um espaço apenas de reprodução. Ao contrário, a
146
escola pode (deve) assumir uma postura crítica diante das demanda sociais e
tornar-se um espaço de resistência e de desconstrução dessas
desigualdades.
2 A MULHER E A DOMINAÇÃO PELO SABER
À mulher sempre foi negado o acesso ao saber este seria inútil a
estes seres de “intelectualidade inferior” foi o discurso em voga durante muito
tempo na sociedade machista. O saber, então, era privilégio apenas dos
homens, seres mais capazes. Para fazer alusão a este pensamento arbitrário
em relação às mulheres, Michelle Perrot nos traz a seguinte afirmativa:
O saber é contrário a feminilidade como é regrado, o saber é o apanágio
de Deus e do Homem seu representante sobre a terra. É por isso que Eva
cometeu o pecado supremo. Ela mulher queria saber sucumbiu à
tentação do diabo e foi punida por isso [...] (PERROT, 2007, p. 91).
Assim, segundo Perrot (2007) as religiões de livros (judaísmo,
cristianismo, islamismo), confiavam as escrituras sagradas às interpretações
masculinas, logo as mulheres eram excluídas do acesso, primeiro por
punição, herança da “astuciosa' Eva, depois por incapacidade, já que
perpetuou durante séculos o discurso da inferioridade feminina e
incapacidade para atividades que necessitassem do uso do raciocínio, uma
vez incapazes de fazer abstrações, sua percepção do mundo se dava por
meio do concreto.
Muitos foram os discursos construídos sobre as diferenças entre
mulheres e homens, no entanto, as mulheres sempre foram representadas
nestes discursos de maneira inferiorizada e desvalorizada, justificativas para
a ocupação de lugares desprestigiados na sociedade. Esses discursos dos
homens sobre as mulheres, séculos XVIII e XIX, foram oriundos, não só da
cultura ou da Religião e etc, mas, até do próprio discurso científico, sinônimo
de verdade no período, que durante muito tempo contribuiu para a
legitimação das diferenças físicas e intelectuais entre mulheres e homens e,
da suposta inferioridade feminina. Essa postura da ciência justificava a
desvalorização dos papéis sociais ocupados pelas mulheres na sociedade,
além disso, o discurso biológico naturaliza as diferenças entre mulheres e
homens, legitimando assim, as desigualdades entre estes. Vale ressaltar que
esses discursos, mesmo arbitrários, eram assimilados pelas próprias
mulheres, poucas eram aquelas que os contestavam, e as que assim
procediam era severamente coagidas. Conforme Soieht (1997, p.10):
Nesse período, a construção da identidade de gênero feminina se
pautaria na interiorização pelas mulheres das normas enunciadas pelos
discursos masculinos, fato correspondente a uma violência simbólica que
supõe dos dominados às categorias que embasam sua dominação.
Para Chartier (1995) a partir do período moderno entre os séculos
XVI e XVIII os avanços do processo de civilização propiciaram a diminuição
da violência bruta e os enfrentamentos entre os indivíduos passam a ser no
147
plano simbólico. Assim, a partir desse período, os enfrentamentos entre
mulheres e homens passam a figurar mais nas lutas simbólicas. Agora mais
do que no período anterior, a construção da identidade feminina
se enraíza na interiorização pelas mulheres, de normas enunciadas pelos
discursos masculinos, ou seja, esse tipo de violência é incorporada e
consentida pelas próprias mulheres, contudo, não significa que não haja
resistências e manipulações desses discursos, pelas mulheres.
Este autor, afirma ainda que um objeto importante da história das
mulheres é então o estudo dos discursos e das práticas, manifestas em
registros múltiplos que asseguram o consentimento das mulheres quanto às
representações dominantes da diferença entre os sexos: desta forma a
divisão das atribuições e dos espaços, a enfermidade jurídica, a inculcação
escolar dos papéis sociais, a exclusão da esfera pública, etc., longe de afastar
do “real” e de só indicar figuras do imaginário masculino, as representações
da inferioridade feminina, incansavelmente repetidas e mostradas, se
inscrevem nos pensamentos e nos corpos de umas e de outros. (CHARTIER,
1995, p. 40).
Sendo assim, a violência simbólica apresentava-se (apresenta)
como uma forma estruturada de moldar mentes e corpos a partir de um
discurso dominante masculino, legitimando na cultura e na sociedade
modelos de comportamentos, formas de exclusão, discursos e
representações que são tomadas pelos sujeitos em suas dinâmicas sociais
como naturais. É o que afirma Chartier:
Definir a submissão impostas `as mulheres como uma violência simbólica
ajuda a compreender como a relação de dominação, que é uma relação
histórica, cultural e linguisticamente construída, é sempre afirmada como
uma diferença de natureza radical, irredutível, universal. (ibid, p. 42)
Segundo Soihet, com a Revolução Francesa e seus ideais de
Igualdade entre os seres humanos, foram grandes as perspectivas das
mulheres quanto ao acesso as esses direitos entretanto, foram grandes as
decepções das mulheres que, mesmo participando ativamente desse
movimento se viram excluídas do acesso a qualquer benefício advindo da
Revolução. Um discurso muito em vaga na época, justificava o impedimento
do acesso das mulheres à cidadania, afirmando que
indiretamente estas seriam beneficiadas com os frutos da Revolução, através
dos seus maridos, pais e irmãos. Essa nova ordem com idéias tão
revolucionárias, no que se refere à mulher, continua tão retrógrada quanto a
anterior, se pautando nos discursos da natureza feminina para lhes negar
direitos, afinal mulheres e homens possuíam uma fisiologia diferente, isso
justificava papéis diferentes na sociedade.
Esta autora afirma ainda que a cidadania reservada as mulheres
pelos intelectuais iluministas, era específica, a ser exercida no recesso do lar,
como mães dos futuros republicanos, cabendo-lhes a defesa dos interesses
148
familiares. Contudo, muitos foram as mulheres que não se contentaram com
esse tipo de cidadania, reivindicando o direito à participação, política, à
instrução, ao trabalho isto é, à cidadania plena. Por defender esta causa
muitas foram mortas , como é o caso de Olympe de Gouges, que propôs a
Declaração dos direito da Mulher, já que a Declaração dos direitos do
Homem, apesar de teoricamente, pressupor homens e mulheres, até o
momento em nada tinha alterado a condição feminina na sociedade.
De fato, quando a violência simbólica não dá conta de calar e
conformar um determinado grupo, lança-se mão da violência bruta, para
eliminar qualquer forma de subversão. Ao longo da história temos
presenciado mártires que são expostas, em praça pública, servindo de
exemplo àquelas que tentarem subverter a ordem estabelecida. No entanto,
as manifestações femininas por uma participação, mais justa e igualitária na
sociedade, continuaram latentes e culminam no século XIX, na Europa e
EUA, com o surgimento do movimento feminista, onde as mulheres,
organizadas, passam a contestar e lutar por direitos iguais na sociedade.
Nesse período a principal bandeira do movimento era o acesso à educação e
o direito do voto.
Sobre o modelo de cidadania liberal masculino, extremamente
excludente no que se refere às mulheres Costa (1998, p.64) afirma que:
A cidadania liberal universal é uma categoria masculina, construída com
base na exclusão feminina a partir da definição do privado como lugar da
mulher, o lugar das diferenças, da paixão, da natureza. A polis sobreviveu
através das esferas de representação publica da sociedade iluminada,
como lugar dos homens livres, livres por serem proprietários. Para as
mulheres, no pensamento liberal não existe igualdade, fraternidade e
muito menos liberdade, permanecem fechadas no campo das
necessidades, onde prevalecem a paixão, o instinto, a irracionalidade e,
principalmente, a reprodução da espécie.
Assim, nessa sociedade sob o modelo liberal a mulher ficou
totalmente insatisfeita com o lugar que continuou ocupando, sob uma
hegemonia burguesa, patriarcal, a mulher representa mera propriedade do
homem, estando a serviço de suas necessidades, confinada no espaço
privado, dando o suporte necessário para a atuação do sujeito masculino na
esfera pública. Contudo, essa restrição ao espaço privado era comum nas
camadas mais altas da sociedade, porque com as mulheres mais pobres, a
própria condição social as conduzia a transitarem no espaço publico, pois
muitas tinham que trabalhar fora do espaço doméstico para sustentar a
família, ou realizar elas mesmas as atividades domésticas que favorecia o
transito nos espaços extra- doméstico. Assim, elas desfrutavam de mais
independência, ainda que continuassem convivendo com as contradições
entre os gêneros e incorporando os saberes masculinos sobre a identidade
feminina (SOIEHT, 1997).
149
Contudo, não podemos pensar que as mulheres incorporavam os
discursos dominantes de maneira absolutamente passiva e alienante, muitas
usavam mecanismos e estratégias para dissimular e manipular suas práticas
contra a dominação masculina.
A incorporação da dominação não exclui a presença de variações e
manipulações, por parte dos dominados, isso significa que a aceitação,
pela maioria das mulheres, de determinados cânones não significa,
apenas, vergarem-se a uma submissão alienante, mas, igualmente,
construir um recurso que lhes permitam deslocar ou subverter a relação
de dominação. Assim, definir os poderes femininos permitidos por uma
situação de sujeição e de inferioridade significa entendê-los como uma
reapropriação e um desvio dos instrumentos simbólicos que instituem a
dominação masculina, contra seu próprio dominador. (SOIHET 1997 p.
12)
Portanto, ao longo da história as mulheres têm resistido a essa
dominação do macho, de diversas formas, às vezes exercendo no interior do
espaço doméstico pequenos poderes, outras vezes partindo para o embate
público, por meio de manifestações. Fica claro o temor da ordem estabelecida
quanto às tentativas de emancipação feminina, e para frear as investidas das
mulheres ao longo dos séculos lança- se mão de vários mecanismos de
controle simbólicos, políticos, psicológicos e etc. o fato é que as mulheres tem
revestido, subvertido, lutado e vem a cada dia conquistando mais espaço
numa sociedade que ainda vigora um regime patriarcal.

3 AS CONSTRUÇÕES DE GÊNERO E A AÇÃO PEDAGÓGICA


ENQUANTO VIOLÊNCIA SIMBÓLICA
A violência simbólica se manifesta de várias formas e por meio de
várias instituições sociais que são perpassadas por relações de gênero, onde
os discursos sobre as identidades de gêneros são produzidos e reproduzidos
de maneira hierarquizada. Das várias instituições sociais onde as relações de
gênero se fazem presente, tratarei de discutir a instituição escolar enquanto
campo de disputas de poder e enquanto mecanismo de violência simbólica.
Assim, a escola contribui para a construção e legitimação de discursos sobre
uma suposta identidade feminina, inferior à masculina, justificando e
naturalizando papéis sociais diferenciados e desiguais para homens e
mulheres na sociedade.
Faço uso neste texto do conceito de gênero utilizado por Scott no
Prefácio a Gender and Politics of Historic, onde ela afirma que “gênero
significa o saber a respeito das diferenças sexuais” (SCOTT, 1994, p. 12).
Alem disso, gênero consiste na organização social da diferença sexual. O que
não significa que gênero reflita ou implemente diferenças fixas e naturais
entre homens e mulheres, mas sim, que gênero é o saber que
estabelece significado, para as diferenças corporais. (ibib, p. 13).
150
Sendo assim, a partir da diferença sexual foram construídos
significados, em torno do que são tipicamente, características do sexo
masculino e do sexo feminino, logo esses significados por serem construídos
socialmente podem também ser desconstruídos e reconstruídos na
sociedade, conforme mudanças históricas e sociais. (SCOTT, 1995).
Gênero é uma categoria que extrapola os limites da diferenciação
sexual, que apenas aponta para a diferença biológica. E junto com gênero, as
diferenças que são sociais e culturalmente construídas, como as de: etnia,
opção sexual, idade etc., não são imutáveis, portanto devem ser
contextualizadas. Por serem construtos sociais, essas mesmas diferenças e
desigualdades podem ser desconstruídas, resignificadas, para assim, se
adaptarem melhor as conjunturas e demandas sociais, onde se tem discutido
e reivindicado o respeito à diversidade e a pluralidade sociocultural.
Nessa perspectiva, a educação enquanto mediadora do saber, é
um importante instrumento de inculcação da inferioridade feminina e de
promoção da violência simbólica, apesar disso, esta pode configurar-se em
um meio de tomada de consciência das mulheres de sua condição de
subalternidade, ao mesmo tempo que a instrumentaliza para sair dessa
situação. (SOIHET 1997).
De acordo com Bourdieu (1992, p. 20), “toda ação pedagógica é
objetivamente uma violência simbólica enquanto imposição, por um poder
arbitrário, de um arbitrário cultural”. Assim, ao falarmos em educação
feminina podemos nos remeter a uma espécie de “domesticação” feminina, já
que, durante séculos a educação da mulher restringia-se ao bom
desenvolvimento das atividades domésticas. Até o século XIX a educação
feminina ocorria no próprio âmbito familiar, ou era responsabilidade da Igreja.
Tratava-se de uma educação (domesticação) para garantir o
desenvolvimento eficaz de suas predisposições naturais, isto é, ser boa
esposa e boa mãe. Entretanto, se a mulher já trazia em sua
essência aptidões naturais para desempenhar determinados papéis sociais,
qual a necessidade então de educá-las, uma vez que naturalmente elas
desempenhariam tais papéis? Fica evidente então que a premissa de uma
essência feminina é uma construção discursiva, arbitrária, do sujeito
masculino, dominante sobre o sujeito feminino dominado.
Sobre essa construção do discurso do homem sobre a mulher
Crampe-Casnabet faz a seguinte afirmação:
Los hombres hablan de los mujeres sugún uma relación asimétrica
desvalorizadora, incluso, y quizás sobre todo cuando El discurso
masculino valora las virtudes femininas. Estas virtudes permitem marcar
uma insuperable diferença. El discurso masculino que parece cumprir La
función del discurso divino es este decir creador, teológico, que habla,
com uma suerte de asombro, de su propia producción: La criatura
feminina. (CRAMPE-CASNABET, 1993, p. 84).
151
Sendo assim, até os discursos das virtudes femininas, como
docilidade, ou então as expressões “deusas do lar”, ”alma doce e sensível”
etc, são construções estereotipadas que demarcam lugares, inferiorizando a
mulher, delimitando papéis e espaços de atuação pré-determinadas pela
ética masculina, enfim, são discursos arbitrários que oprimem a mulher, logo
configuram-se enquanto violência simbólica.
Um dos filósofos das Luzes considerado o mais democrático,
Rousseau, defenderá uma educação diferenciada para homens e mulheres
pautando-se no direito natural. Para o Emílio uma educação para a
autonomia, para a Sofia uma educação para a submissão. Ele argumenta que
a mulher foi feita para agradar ao homem, portanto sua educação devia
favorecer o desenvolvimento de virtudes como obediência, dedicação ao lar,
à maternidade, fineza, pois tudo isso fazia parte da natureza feminina.
Para Rousseau a inferioridade das mulheres tinha suas raízes na
diferença sexual e isso se estendia naturalmente e, em particular, às suas
dificuldades intelectuais, o que justifica uma educação diferenciada para os
sexos. No livro V do Emílio ele afirma que o espírito feminino não
tem atividade conceitual, a razão nas mulheres não é uma razão teórica e que
os estudos das mulheres devem restringir-se integralmente à prática, pois
elas não conseguem fazer abstrações. (CRAMPE-COSNALBET, 1993).
Esses discursos durante muito tempo legitimaram uma educação
diferenciada para homens e mulheres. Durante o século XIX nem a co-
educação dos sexos era permitida, primeiro pela rígida moral católica,
segundo pelos discursos científico da época sobre as diferentes aptidões
entre os sexos, além do mais, as moças não tinham o direito de cursar o
ensino superior, logo, não fazia sentido ter a mesma instrução que os
rapazes, sem contar que a hegemonia masculina do conhecimento tinha que
ser mantida. (SOIEHT, 1997).
Assim, enquanto os homens cursavam o ensino secundário já se
preparando para o ingresso nas universidades no intuito de seguir carreiras
intelectuais, as mulheres eram destinadas a profissionalização e/ou ao
preparo para o lar, comportando um currículo todo diferenciado, voltado para
as aptidões naturais da mulher. Portanto, a única profissão que poderiam
ocupar era a de professora, por ser considerada próxima à maternidade.
Dessa forma, por meio da educação se legitimava papéis sociais,
diferenças e desigualdades entre os sexos, a escola, aqui representa um
mecanismo perfeito para a reprodução de modelos de feminilidade e
masculinidades veiculados no contexto social. A escola aqui é entendida
como uma instituição que normatiza, disciplina e transmite formas e jeitos de
ser, sendo um dos espaços de formação, produção e, reprodução de saberes
e poderes.
Dessa forma, a escola tornou-se historicamente um espaço
privilegiado de formação de meninos e meninas, atravessada por
152
representações simbólicas e relações de poder, pois, segundo Louro (1997,
p. 61) “gestos, movimentos e sentidos são produzidos no espaço escolar e
incorporados por meninos e meninas, tornando-se parte de seus corpos. Ali
se aprende a olhar, se aprende a ouvir, a falar, a calar, se aprende
a preferir”. Dessa forma, a dinâmica de socialização da escola ocorre de
forma arbitrária, logo, trata-se de um mecanismo de violência simbólica, que
sutilmente incute nos sujeitos formas de ser e estar no mundo, segundo uma
ideologia dominante. Ainda segundo esta autora:
A escola delimita espaços. Servindo-se de símbolos e códigos, ela afirma
o que cada um pode (ou não pode) fazer, ela separa e institui. Informa o
“lugar” dos pequenos e dos grandes, dos meninos e das meninas. Através
de seus quadros, crucifixos, santas ou esculturas, aponta aqueles/as que
deverão ser modelos e permite, também, que os sujeitos se reconheçam
(ou não) nesse modelos. O prédio escolar informa a todos/as sua razão de
existir. Suas marcas, seus símbolos e arranjos arquitetônicos “fazem
sentido”, instituem múltiplos sentidos, constituem distintos sujeitos.
(LOURO, 2008, p. 58)
Bourdieu traz alguns esclarecimentos sobre a função social da
educação enquanto mecanismo de reprodução da ideologia dominante:
É a ação pedagógica escolar que reproduz a estrutura das relações de
força, numa formação social onde o sistema de ensino dominante tende a
assegurar-se do monopólio da violência simbólica legítima. (BOURDIEU,
1992, p. 21)

O 'sistema de educação' é o conjunto de mecanismos institucionais ou


habituais pelos quais se encontra assegurada a transmissão entre as
gerações da cultura herdada do passado (isto é, a informação
acumulada). (Ibidem, p. 25)
Sendo assim, a educação escolar é uma das instâncias sociais
que influenciam, confirmam, produz e reproduz os processos de formação de
identidades masculinas e femininas. A escola tornou-se uma peça
fundamental na dinâmica de legitimação dos discursos dominantes
masculinos, sobre a formação de homens e mulheres segundo modelos e
ideais de feminilidade, masculinidades, sexualidade etc, enfim, modelos de
comportamentos que se espera de mulheres e homens no convívio social.
No entanto, estes modelos podem ser, tanto incorporados, como
negados pelos sujeitos em suas dinâmicas cotidianas, pois trata-se de
construções simbólicas que, nem de longe, são assimiladas de forma
passiva e alienante. Apesar dos mecanismos de violência simbólica serem
sutis, os sujeitos acabam criando estratégias para subverter ou
resignificar os discursos que são criados sobre as supostas identidades
universais de gênero.
Como afirma Soieht (1997) a incorporação da dominação não
153
exclui a presença de variações e manipulações desses discursos pelo
dominados. A aceitação de determinados modelos pode ser uma estratégia
de subversão da relação de dominação. Uma representação imposta, que é
aceita, mas, desviada pelos dominados pode ser um meio de se voltar contra
a ordem que a produziu. Por isso, em se tratando de violência simbólica não
se pode falar em exercício do poder de forma unilateral, pois, os sujeitos criam
suas estratégias de subversão, é nessa dinâmica que a educação pode ser
um mecanismo tanto de inculcação e violência quanto de resistência e
insubordinação a essas construções discursivas dominantes.
Durante a construção desse texto, foi possível perceber o quanto
o saber pode se configurar, a partir do uso que se faz dele, em mecanismo de
submissão ou de emancipação. Às mulheres, o saber, durante séculos foi
vetado e, quando conquistaram o direito ao seu acesso, mecanismos sutis de
exclusão foram utilizados para lhes transmitirem um conhecimento de
segunda categoria, diferente daqueles destinado aos homens. À mulher uma
educação limitada, restrita apenas ao desenvolvimento de suas atribuições
“inatas”, os cuidados com o lar e com a maternidade, aos homens, uma
educação voltada para o exercício de suas mais sublimes capacidades
intelectuais, ao exercício das ciências, da filosofia, da política.
Os discursos masculinos dominantes construídos sobre o que é
ser homem e o que é ser mulher nesta sociedade pautaram-se nas diferenças
sexuais entre homens e mulheres. Esses discursos foram naturalizados e a
educação contribuiu para a incorporação dessas arbitrárias construções
discursivas, logo, com a legitimação de papéis sociais diferentes e desiguais
para ambos os sexos.
Assim, a educação em sua função de produtora e reprodutora dos
discursos dominantes sobre as identidades de gênero, configura-
se como um importante e estratégico mecanismo de violência simbólica e
manutenção do status quo. Mas, vale ressalvar que esta pode ainda se
converter em estratégia de resistência e transformação da ordem
estabelecida. Basta, para isso, que nós educadoras e educadores estejamos
em alerta para esse tipo de violência, promovendo assim, por meio de nossa
ação educativa questionamentos acerca do discurso hegemônico masculino,
veiculado pelos diversos meios de comunicação, nas diversas esferas
sociais, inclusive na escola, no intuito de desconstruir tais discursos e dar
inicio à implementação de um ambiente escolar que promova práticas de
igualdade entre os gêneros.

154
REFERÊNCIAS
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155
ESTRATÉGIAS DE INSERÇÃO/CONSOLIDAÇÃO PROFISSIONAL DE
MÉDICAS, FARMACEUTICAS E ODONTOLOGAS NA BAHIA
Iole Macedo Vanin

1 INTRODUÇÃO
Em 1879, com a Reforma Leôncio de Carvalho, as brasileiras
passaram a ter acesso aos cursos superiores de medicina, farmacia e
odontologia. O direito feminino a este nivel de educação, bem como o
exercicio das profissões liberais ligadas a esta formação, foi tema de debate
na sociedade de então, a partir dos jornais, desde as primeiras décadas do
século XIX. A Faculdade de Medicina da Bahia não ficou alheia a estas
discussões como se pode perceber em uma análise mais detalhada nas suas
memorias, nos periodicos como a Gazeta Médica da Bahia, na
documentação institucional, e evidencia de tal fato concretiza-se na obtenção
da do titulo de prática em cirurgia dentária por Balbina Rosa de Souza poucos
meses após a Reforma Leoncio de Carvalho ou ainda a atuação da dentista
Leonor dos Santos, na Bahia, desde 1878.
Apesar destes fatos, que merecem ser melhor analisados, a
elevação do número de mulheres nos cursos superiores da Faculdade de
Medicina da Bahia aconteceu a partir de 1920 e encontra-se relacionada com
a divulgação das ideias feministas, em um primeiro momento, e depois,
precisamente a partir da década de 1930, com a atuação das filias da
Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, através das ações realizadas
pela União Universitária e a Ala Moça, uma vez que em todos os estados de
origem das alunas havia uma filial e muitas delas faziam parte dessas
instituições. Não podemos ignorar, no entanto, a influencia das novas
relações de trabalho que foram sendo instituídas onde a presença de
mulheres brancas não pobres tornou-se mais evidente.
A inserção das mulheres no denominado "mundo biomédico"
baiano no periodo em questão foi demarcado pela ideologia patriarcal. Assim,
como a formação e a produção intelectual, o exercicio profissional
reflete uma hierarquia de gênero. A finalidade do presente artigo é apresentar
as estratégias, empreendidas por estas mulheres, para terem a inserção e
consolidação profissional em um mercado de trabalho notoriamente
masculino. E o corpus documental, além de outras fontes, foi composto sobre
tudo por anúncios de serviços médicos e odontologicos publicados em
periódicos.
Ao todo foi contabilizado para as décadas finais do século XIX e a
primeira do XX, um total de 40.917 (quarenta mil novecentos e dezessete)
anúncios. Onde aproximadamente 0,5% (meio por cento) são femininos.
Desse dado pode-se inferir que a divulgação do exercício profissional pelas
mulheres foi ínfimo. No exercício de vislumbrar os autores e atrizes do
referidos anúncios, encontrei 86 médicos e 11 dentistas que publicaram
157
constantemente a oferta de seus serviços.
Desse universo, temos apenas 01 médica e 01 odontologa. Se
pensarmos as proporções profissionais pelo viés de gênero tendo como base
os sujeitos que fazem os anúncios e não a quantidade desses anúncios,
veremos que o pequeno número de anúncios foi conseqüência da pequena
presença de mulheres que divulgaram, via imprensa, os seus serviços.
Assim, a porcentagem para os anúncios se mantém para os seus autores: as
mulheres representavam menos de 0,5% (meio por cento) dos profissionais
presentes no mercado de prestação de serviços médicos de Salvador, que
divulgavam os seus serviços nos periódicos diários. Fato que sinaliza a
caracterização de que o exercício profissional nessa área, apesar da
formação de mulheres, ainda era masculina.
A mesma conclusão é válida para o intervalo entre as décadas de
1920 e 1940, uma vez que dos 118.511 (cento e dezoito mil e quinhentos e
onze) anúncios analisados 112.158 (cento e doze mil e cento e cinqüenta e
oito) são masculinos e 6.353 (seis mil trezentos e cinqüenta e
três) femininos. E esses anúncios correspondem a 242 médicos, 22 dentistas
homens, 19 médicas e 07 parteiras. No universo de 290 (duzentos e noventa)
profissionais, apesar de existir um aumento considerável em relação ao
período anterior, a presença feminina continua mínima diante do universo
apresentado: quase 7% (sete por cento). O controle do exercício profissional
dos homens nesse setor continuou constante. Ou seja, percebe-se que
apesar de um maior número, de baianas, formadas na Faculdade de
Medicina da Bahia em relação às décadas anteriores, o exercício profissional
na área médica era eminentemente masculino.
Por meio da leitura dessas fontes foi possível verificar que a
segregação territorial e hierárquica presente na formação, se fez presente no
mercado de trabalho desses profissionais e, mais sinalizou a existência da
segregação institucional no interior da instituição baiana e de outras ligadas a
ela. Tal constatação só foi possível porque se somou a análise quantitativa o
trabalho qualitativo dos textos desses anúncios; procedimento
importantíssimo para os Estudos de Gênero, pois os dados quantitativos
apontam à existência do fenômeno e o demarcam no espaço e tempo,
permitindo uma leitura horizontal, mas apenas “arranham” os aspectos
culturais, sociais que o explicam e que só é possível por meio de uma leitura
vertical, qualitativa (DEMO, 2001). É a partir da característica desses dois
tipos de pesquisa, horizontalidade e verticalidade, que Poncela (1998, p. 168)
alerta para a importância de “complementar informação e dados que venham
de abordagens quantitativas com os qualitativos” uma vez que esses últimos
“dão voz, sentido e conteúdo as opiniões e as cifras”.
As observações que Poncela (1998) faz especificamente às
_____________________________________________________________

64
Sobre os conceitos de segregação territorial, hierarquica e institucional recomenda-se a leitura de
Schiebinger(2001) e Sedeño (2001).

158
pesquisas acerca da participação política das mulheres, concretizaram-se na
minha pesquisa na medida em que a leitura dos textos dos anúncios
possibilitou a percepção de certos padrões no atendimento
médico-odontologico que permanecem ou desaparecem ao longo do período
em questão, que somente a abordagem quantitativa (número de anúncios
feminino e masculino) não permitiria verificar. Ou seja, na serie de anúncios
algumas limitações na atuação profissional das mulheres, possivelmente
perpassadas pelas representações e práticas de gênero vigentes no contexto
em foco, quando não intuídas, podem ser visualizadas de forma nítida e isso
só foi possível por meio da leitura qualitativa dos mesmos.
A primeira limitação ocorre quanto a provável clientela e a
maneira como o atendimento de determinadas moléstias era divulgado. Os
textos da propaganda das médicas e odontológas, nos dois períodos que
compõem a serie, indicam uma clientela bem especifica - mulheres e
crianças. Houve apenas duas exceções, na década de 1930 e 1940: Cleonice
Alakija e Carmem Mesquita, ambas formadas pela instituição baiana. A
primeira especialista na área de otorriologia, como se verifica no seu anúncio:
Médica. Assistente da FAMED. Esp.: doença do nariz, gargata e ouvidos,
diatermacoagulação nos tumores da face e cavidades anexas.
Consultório: Rua Chile, Prédio Catharino, 1º. Andar; salas 24 e 26;
segundas, quartas e sextas, das 9:00 às 12:00; terças, quintas e sábados,
das 14:00 às 16:00. Residência: Siqueira Campos, 16; tel. 1693. (A
TARDE, 17/08/1933)
A segunda afirma ser especialista em doenças internas:
“Assistente da Clinica Médica da FAMED. Esp.: doenças internas. Consultas:
Prédio Catharino, sala 22, 1º. Andar; tel. 6424; das 16:00 às 18:00.
Residência: Lacerda do Tororó, 63.” (A TARDE, 02/06/1942). As outras
profissionais que atendem nesse período, inclusive na década de 1920,
dedicam-se a doenças de senhoras e crianças, a exemplo de Nair do Passo
Cunha, que durante os meses de abril, maio e junho publicou o seguinte
anuncio: “Médica. Esp.: moléstias das senhoras. Consultas diariamente das
15:00 às 17:00. Consultório: Ed. A Tarde, 3º. Andar, sala 318. Residência:
Campo Grande, 17” (A TARDE, 1939).
Deve-se destacar que a concentração em uma única área da
medicina não ocorre nas propagandas masculinas: os médicos atendem a
todas as especialidades, desde clinica geral até oftalmologia, passando por
doenças venéreas. Aqui é patente que o gênero demarcou a atuação
profissional, as mulheres, em sua maioria, foram direcionada para
especialidades definidas como adequadas a elas ou não contraditórias às
suas funções de mães e esposas. A isso podemos classificar como
_____________________________________________________________

65
Membro da Federação Baina pelo Progresso Feminino.

159
segregação territorial.
As odontológas realizavam qualquer serviço da sua
especialidade como anuncia durante o primeiro semestre de 1879 a dentista
Leonor H. A. dos Santos no Jornal O Monitor, não havendo, portanto uma
diferenciação do tipo de serviços atendidos pelos dentistas, apesar da
clientela a quem se dirigia ser feminina. Em relação a esse aspecto do
atendimento odontológico, cabe destacar que no segundo momento da série,
de 1920 e 1940, só encontrei o anuncio de uma única dentista: Adelaide C.
Amorim, que também era médica de crianças: “Cirurgiã dentista e clinica de
crianças. Consultório: avenida sete, 34; 1º. Andar, sala 1 (Ed. Almeida);
Consultas: diárias das 09:00 às 12:00 e das 14:00 às 18:00.” (A TARDE,
25/10/1948).
Além da clientela especifica, Adelaide C. Amorim teve em comum
com a médica Anna Marques de Freitas, a dupla formação: essa última além
de medica era farmacêutica. Encontrei anúncios de Anna Marques de Freitas
no Jornal A Tarde referentes aos anos de 1924, 1925 e 1928 com o mesmo
texto e em uma sessão de anúncios especifica: parteiras, a exemplo do
ocorreu com Noelia Burgos e Zaphira Ferreira, no mesmo período. Também
na década de 1920, os atendimentos eram dirigidos para as mulheres.
Uma outra característica dos anúncios das médicas foi o fato de
não mencionarem as moléstias, principalmente as venéreas. Enquanto os
homens colocavam que tratavam sífilis, gonorréias, e outras doenças do
gênero, elas não o fazem apesar do termo “moléstia de senhoras” congregar
um amplo leque. Isso não significa que não o fizessem, mas o não
declarar talvez tenha sido uma tática tanto para atrair clientes, pois
possivelmente uma “mulher de família” não iria a um consultório que
publicamente afirmava tratar dessas doenças, pois isso poderia suscitar
questionamentos acerca dos seus comportamentos; uma outra possibilidade
era o cuidado com a própria imagem, em não fornecer elementos para a
associação entre a profissão e a falta de conduta moral adequada.
O zelo com a imagem bem como as conseqüências desta para a
sua vida profissional e pessoal estavam presentes e eram cobradas como se
verifica nos discursos, tanto contrários como favoráveis, acerca da inserção
de mulheres nas profissões médicas ao longo do século XIX e primeiras
décadas do XX. Deve-se, no entanto, destacar que esse zelo ou mesmo
punição, a exemplo do ostracismo para aquelas que ousaram discutir
abertamente assuntos “impróprios para os ouvidos femininos” ou que podiam
romper a lógica imposta para as relações, fossem estes médicos ou não, no
entanto, não é sinônimo de não atuação feminina na cura de doenças ligadas
geralmente a uma “sexualidade desvirtuada”, mas das diversas formas e
estratégias que deviam ser empreendidas para lidar com as imposições,
regras, morais e sociais, feitas às denominadas “moças de família”, cuja
categoria as médicas baianas, bem como as odontológas e farmacêuticas,
160
estavam incluídas.
Assim, não só os médicos se debruçavam nos estudos e
discussões sobre as formas de combate e prevenção a estas moléstias, as
médicas também. É o que se verifica ao analisar casos que pontuaram a
atuação profissional de Francisca Praguer Fróes. Tanto no seu consultório
como na Maternidade do Santa Isabel, essa médica baiana não atendia
somente parturientes em gestação normal ou com complicações, a exemplo
de Maria da Conceição ou da senhora “S”, mas também mulheres com outras
doenças como sífilis. Este é o caso, por exemplo, da senhora “x” que ela
atendeu em seu consultório e no relato em que fez do caso tem o cuidado em
não revelar o nome da paciente.
Pode-se concluir, portanto, que a atuação profissional em uma
área especifica estava correlacionada com as representações e práticas de
gênero da sociedade baiana do período. Enquanto os médicos não
precisavam restringir a sua clientela, podendo atender homens e mulheres,
as medicas se restringiam ao atendimento de mulheres e crianças, tendo o
cuidado de, nas entrelinhas dos seus anúncios, evidenciar que terminados
enfermos e enfermidades não seriam atendidos, uma vez que nos parece
existir o veto ao atendimento, por exemplo, a homens, principalmente os
doentes venéreos, e a mulheres cuja conduta duvidosa fosse conhecida
publicamente. E quando o faziam, a exemplo de Francisca Praguer Froes, era
de forma discreta, sem fazer criticas ao que estava posto, e explicitando que
tinham em mente a preservação da família ameaçada por doenças como a
sífilis, o que não entrava em choque com a moral existente – aliás, esta foi
utilizada para reforçar a discussão de determinados assuntos como se
verifica nas produções cientificas de algumas médicas. Se assim não fosse,
fica a indagação porque delimitar o seu atendimento a mulheres e crianças ou
ressaltar a importância de sua ação profissional para a manutenção da ordem
familiar?
Uma outra limitação que se relaciona com o zelo da imagem se
faz presente ao se verificar os locais e o período de atendimento. Nos
anúncios masculinos a rotina profissional dos médicos se desenha: o
atendimento na própria residência mesmo quando se tem um consultório em
outro local é comum. Alias alguns deixam evidentemente que podem ser
procurados a qualquer momento nas suas casas, inclusive à noite mesmo
para os casos em que deveriam se deslocar até a residência do (a) paciente.
No anúncio de Glafira Araújo Ramos, o único feminino
encontrado nos periódicos diários pesquisados para o século XIX, percebe-
se que o consultório dessa médica funcionava no mesmo prédio que a sua
residência; e ainda assim ela limitava-se os seus atendimentos das 8:00 às
10:00, possivelmente o exercício profissional era estabelecido de
acordo com os seus afazeres domésticos : “Médica. Dra. Glafira de Araújo dá
consulta em todos os dias úteis das 8 às 10 horas da manhã. Especialidades –
161
partos e moléstias de senhoras. Residência – praça de 15 de novembro
(antigo Terreiro). Consultório – no pavimento térreo. Grátis aos pobres”
(DIARIO DE..., 21/6/1893).
Os indícios de que as primeiras médicas baianas ao
estabelecerem consultórios o faziam no mesmo espaço da residência ou em
local relativamente próximo a esta, se fortalece quando verificamos em um
periódico anual o anúncio que Francisca Praguer faz do seu consultório. Ele
localizava-se no Campo Grande e a residência de seus pais, com quem
morava antes do casamento, situava-se a poucos quarteirões do mesmo –
corredor da Vitória. Após o casamento ela passa a clinicar no consultório do
esposo, que se localizava no Sodré. Um outro caso de médica que não tem
consultório no mesmo local da residência foi da doutora Amélia Perouse que
clinica junto com o seu esposo – o dr. Perouse. (REIS, 1899, 1900).
O mesmo parece se aplicar as odontológas, uma vez que o
anuncio de Balbina indica que o seu gabinete seria no mesmo local da
residência enquanto o de Leonor dos Santos deixa nas entrelinhas ao afirmar
que está localizado na antiga casa do Dr. Renault. Ela, ao contrário de
Balbina, não contava com a proteção do lar ao exercer a sua atividade em um
gabinete e não na casa-gabinete. A proteção do lar não se fazia presente na
atuação de Leonor por esta acontecer em um espaço desvinculado da casa,
mas ela contava com a presença do irmão ou pai, médico que atendia no
mesmo consultório.
Essa foi uma característica que foi deixando de existir ao longo
das décadas de 1920 e 1940. Nos anos vinte, encontrei anúncios de médicas,
especialistas em partos, que atendem na própria casa: Ana Marques de
Freitas (A TARDE..., 1924-1928), Zaphira Ferreira (A TARDE..., 1924/25) e
Queiroz Amado (1925/1928). Nas décadas posteriores a 1920, os
atendimentos não são mais feitos em casa. A partir desse
momento aparecem duas situações nos anúncios: consultórios perto da
residência, a exemplo da médica Alzira, ou em prédios comerciais.
MEDICA.
Esp.: tratamento clinico de doenças da mulher, perturbações da
publicidade (sic.) e do climatório (menopausa); exames pré-nupcial.
Consultório: Ed. Sulacap, 4º. Andar, salas 413-414; tel. 1411; diariamente
das 14:00 às 18:00. (A TARDE, 1946).
No entanto, as que clinicavam com outros médicos o faziam em
companhia dos esposos, esse foi o caso da médica Ophelia Gaudenzi que
atendem em parceria com o marido: o doutor Trípoli Gaudenzi
Raphael de Menezes Silva. Trípoli G. Gaudenzi. Ophelia B. Gaudenzi.
Catedrático da FAMED; Assistente da FAMED;
Gabinete Eletroterapia – Cirurgia Geral.
Esp.: vias urinarias e doenças das senhoras.

162
Consultório: Ed. Bahia, rua Padre Vieira, 11 (Ajuda), salas 75 a 79; das
14:00 às 18:00, tel. 3256 (A TARDE, 07/06/1939).
Uma outra característica dos anúncios femininos do século XIX
que não se mantém, com a exceção de um único caso, para o lapso de tempo
de 1920 a 1940 foi o atendimento gratuito aos pobres. A localização dos
gabinetes ou casas-gabinetes das médicas dos oitocentos nos revela a
possível situação econômica e financeira delas ou de suas famílias. A rua do
Palácio, local onde encontramos a maioria dos estabelecimentos de saúde do
centro da cidade, no período em questão, era classificada de classe média
alta, portanto, manter um consultório ali significava ter condições para tanto
ou possuir uma família que pudesse fazer isso.
E poucos não foram os profissionais de saúde (médicos e
odontologos) que ao não terem inicialmente condições de montarem
consultório na rua do palácio, o fazem em ruas menos valorizadas e quando já
estão estabelecidos no mercado e, consequentemente, com condições de
possuírem gabinete na rua do Palácio o fazem. Assim, as pessoas, com
posses, que precisassem de serviços odontológicos e médicos teriam na rua
do Palácio e adjacências uma variedade de profissionais prontos
para atende-las. Não indicativo, porém, de que alguns dos que não
possuíssem posses ficassem sem atendimento. Não são raros os anúncios
de profissionais que expressam que os valores cobrados por seus serviços
são "módicos", quando não afirmam que para os considerados "pobres" os
serviços são grátis.
A prática de anunciar o atendimento gratuito os pobres era uma
forma de tornar conhecido, conseqüentemente, sedimentando uma futura
carreira para os homens, mas para as profissionais poderia trazer uma outra
questão além da formação da clientela: driblar as resistências ao exercício
profissional por mulheres. Tanto para a medicina como para a odontologia, tal
raciocínio não parece de todo ilógico uma vez que nem todos os médicos ou
odontológos anunciavam a gratuidade apesar de pratica-la e os que
anunciavam o faziam somente no inicio da carreira.
Anunciar a pratica de gratuidade além de ter sido feito por aqueles
(as) que precisavam se tornar conhecidos ou romper barreiras de preconceito
para formar uma clientela, era feita, possivelmente, também por aqueles (as)
que não possuíam um diferencial em relação a outros profissionais do
mercado. Há anúncios que mencionam a instituição de formação, a
modernidade das técnicas e aparelhos usados nos tratamentos, a tradição
familiar no ramo (status familiar), os clientes etc.
E dentre estas varias maneiras de se estabelecer
profissionalmente, pode-se fazer uma leitura de gênero intercruzada com o
status familiar como um dos caminhos para se explicar as varias formas com
que as profissionais de saúde (médicas, odontológas e farmacêuticas)
forçaram a sua inserção no mercado de trabalho ou espaços de discussão
163
profissional. Uma vez que fazer uma analise de gênero do processo de
feminização dos cursos e profissões como medicina, farmácia e odontologia
na Bahia, entre o final dos oitocentos e décadas iniciais dos novecentos, não
é apenas sinalizar as suas presenças, mas procurar explicitar as diversas
experiências.
A análise de gênero não pode, portanto, se furtar a verificar
espaços, lugares e as relações culturais, econômicas, sociais, familiares em
que estas mulheres estavam inseridas e que permearam e podem ter
determinado as suas trajetórias, táticas e estratégias profissionais
(CARSON, 1995, p.198-9). O status familiar, por meio do apadrinhamento ou
parentesco, parece que foi um fator utilizado na conquista de clientes e
inserção no mercado de trabalho, é o que o se evidencia quando o doutor F.
Deserbelles, no inicio da sua carreira, anuncia que é genro e sucessor de um
conceituado dentista, o doutor Renaldy que dentre os seus clientes tinha a
Casa Imperial. .Ao que tudo indica não tendo uma tradição familiar na arte F.
Deserbelles recorreu ao parentesco afim para se diferenciar e se estabelecer
profissionalmente, quando obteve êxito não precisou mais faze-lo e nem
atender durante os domingos e dias santificados como fazia no ano de 1877.
Continuei a encontrar os anúncios do genro do dentista da Casa
Imperial durante todo o ano de 1879, no jornal O Monitor, juntamente com os
anúncios de Leonor H. dos Santos que além de salientar que já possuía uma
clientela formada também menciona o dr. Renauldy pois passa a atender na
casa gabinete desse. Ao informar que a sua casa-gabinete era localizada na
antiga residência do dr. Renauldy, estaria, talvez, Leonor querendo reforçar a
qualidade de seus serviços pois mencionar o ilustre dentista sugere a
constituição de laços, mesmo comerciais ou sociais, indicando que fazia
parte dos dentistas do circulo do afamado odontológo, pois atendia na sua
antiga casa e mencionava o seu nome em seus anúncios; caracterizando
uma espécie de apadrinhamento profissional.
Esta não foi à única tática de Leonor ao anunciar os seus
serviços, apesar de ser a que se mantém na sua propaganda tanto no
Monitor como na Chrysalida. Ao divulgar os seus serviços no Jornal O
Monitor, a dentista salienta que possui uma clientela selecionada, atendendo
em colégios e conventos femininos; a gratuidade aparece quando passa a
dividir o espaço do seu consultório com H. Álvares dos Santos,
médico e que ao parece necessitava torna-se conhecido e formar uma
clientela. O dr. H. era provavelmente irmão de Leonor se levarmos em
consideração o sobrenome e que não seria bem visto atuar
profissionalmente, longe dos “olhos” da comunidade, em um espaço onde
teria contato com um homem que não fosse seu parente: marido, irmão ou
pai.
No entanto, posso afirmar que múltiplas foram as estratégias de
Leonor; porém, ao valer-se do mesmo recurso que o genro do doutor
164
Renauldy nos indica que o parentesco e apadrinhamento tão conhecido na
sociedade baiana, em relação à ocupação de cargos e posições, também se
fizeram presente na disputa de mercado e no acesso a terminados espaços
profissionais e que algumas mulheres não ignoraram tal característica e a
souberam utilizar a seu favor. É o que sugere a leitura das paginas iniciais da
tese de doutoramento de Glafira Araújo, que faz uma verdadeira genealogia
familiar citado os pais, os (as) irmãos (irmãs), cunhados (as), a madrinha.
Ela explicita a sua rede familiar e social, componentes intrínsecos
ao capital social (BOURDIEU,1998, p. 68-9) de que dispõem os indivíduos
para construir redes de ligações que possibilite o trânsito e atuação em
espaços “proibidos”, neste caso especifico a profissão médica. Assim,
Glafira, a exemplo de Leonor dos Santos, provavelmente percebia o capital
social de que dispunham como uma tática para romper ou contornar
possíveis entraves ao livre exercício de sua profissão. Dessa inferência, outra
se coloca: a consciência de que para ter sucesso com a tática era necessário
evidenciar as possíveis posições estratégicas vivenciadas, expressas pelo
emprego dos títulos, por alguns desses parentes ou conhecidos
mencionados. Ou seja, quanto maior e poderosa fosse a sua rede de
sociabilidade, mais fácil, talvez, fosse a sua inserção no mercado de trabalho
médico.
Ainda sobre a sua trajetória profissional de Glafira indícios são
fornecidos por Pelayo Serrano (1898) em Ainda um assunto feminino
quando ao continuar a discorrer sobre o acesso feminino ao ensino superior e
as profissões liberais no Brasil menciona que a médica baiana tinha prestado
exame em concurso para professor substituto: “Se não me falha a rebelde
memória, li, há tempos, 1894 (?), que se doutorára, na Bahia, dona Graphisa
de .... (*) a qual depois concorreu a uma vaga de lente substituto da mesma
Escola da Medicina.” (SERRANO, 1898, p. 131).
Não encontrei informações sobre os resultados desse concurso.
Faze-lo teria sido mais uma tática de Glafira para se tornar uma médica
conceituada, uma vez que o fato de ser docente da instituição baiana dava
prestigio? Fica a pergunta a ser respondida. Fato é que essa médica não se
utilizou de uma única tática para se estabilizar no mercado de serviços
médicos, além do seu capital social ela utilizou as possibilidades de uma
propaganda “boca a boca”. Ou seja, Glafira Corina de Araújo anunciou a
gratuidade para os pobres, como uma maneira de tornar-se conhecida e
superar as barreiras para a sua atuação profissional.
Esta parece ter sido uma estratégia empreendida por algumas
médicas até mesmo na primeira metade do século XX. No entanto, estas
táticas não se mantêm para o período de 1920-1949. Quando não possuem
distintivos em relação aos outros profissionais que atuam na mesma
especialidade, apresentam o texto padrão - especialidade, locais onde
podem ser encontradas, horários de atendimento.
165
Deve-se destacar que outras ações substituem o atendimento
aos pobres como estratégia. Algumas médicas tinham “um diferencial” e o
utilizaram à mesma maneira que os seus colegas, que tinham o mesmo
status, faziam: o fato de ensinar na Faculdade de Medicina da Bahia. Esse foi
o caso das médicas Cleonice Alakija e Carmem Mesquita, que eram
assistentes. A primeira noticia da atuação de uma mulher como professora na
instituição baiana data de 10 de junho de 1931 quando o Jornal Diário de
Noticias publicou, sob a chamada “É mais uma victoria da intelligencia
feminina, no Brazil – o concurso de jovem professora em nossa Faculdade de
Medicina”, a noticia de que Lily Lages tinha passando no
concurso para docente da cadeira de “Oto-thino-largologia” com brilhantismo.
(DIARIO DE..., 10/6/1936).
A partir de Maria José Salgado Lages (Lily Lages), as mulheres
passaram também a ensinar na instituição baiana. No entanto, as
encontramos como assistentes e não como catedráticas, o que reforça mais
ainda a interpretação de que o mundo da biomedicina na Bahia também se
estruturou a partir da segregação hierárquica, além da segregação territorial.
Porém, ser professora assistente agregou valor ao exercício profissional das
médicas mencionadas, pois indicava para os (as) leitoras, possíveis clientes,
que elas eram qualificadas.
Houve, portanto, no decorrer do período pesquisado
transformações nas formas como esses (as) profissionais procuravam
conquistar clientes, driblar a concorrência e se sedimentar no mercado de
trabalho. Devo ressaltar que, no entanto, apesar do “atendimento gratuito aos
pobres” não ser uma tática empregada nas décadas de 1920 a 1940 pelos
médicos, encontramos três situações pontuais, mas significativas, de
atendimento gratuito praticado por mulheres. A primeira situação é o da
médica Alzira de Oliveira Chaves, que além de atender a qualquer hora o
chamado das pacientes, atende gratuitamente, as terças e quintas:
Médica, parteira. Clinica Geral.
Consultório: Barão de Cotegipe, 139;
Consultas: das 14:00 às 17:00.
Grátis aos pobres às terças e quintas, das 8:00 às 10:00.
Atende a chamados a qualquer hora do dia ou da noite.
Residência: Barão de Cotegipe, 161. (A TARDE, 1940).
Alzira publicou o mesmo texto de propaganda até março de 1941,
quando não aparece mais nos anúncios desses tipos de serviço. A sua
propaganda foi a única que encontrei nesse período com promessa de
atendimento gratuito aos pobres. Teria sido essa uma “blindagem” contra as
resistências ao seu exercício profissional? Ela poderia estar dizendo, a
comunidade da qual era parte, que apesar de está em uma
profissão masculina e tendo, muitas vezes, que sair a noite para atender as
suas pacientes, ela não havia se “desviado do esperado” para as mulheres
166
daquele período e o exemplo disso era que praticava a caridade; ou seja,
mostrava que por meio da sua profissão “não só cuidaria de seus filhos em
casa, mas de toda a humanidade, de todos aqueles precisados.” (LEITE,
1997, p. 118). Divulgar a prática da caridade, nesse sentido, tornava-se,
portanto, mais uma “blindagem”.
E é comparando, guardadas as devidas proporções, os anúncios
que um indicio surge e acrescenta mais uma especificidade ao atendimento
médico realizado por mulheres: a pratica da solidariedade e caridade, que
sinaliza para a interferência da moral de gênero nas atividades profissionais
dessas mulheres. A benemerência era uma característica vinculada ao
estereotipo feminino vigente no período, pois significava que a sua praticante
era detentora de altruísmo, piedade, amor ao próximo, abnegação (LEITE,
1997, p. 110- 137); e, o seu exercício não se fazia somente por meio das
doações de bens materiais, mas também pelo empréstimo dos seus saberes
especializados aos necessitados.
E nas entrelinhas das fontes pesquisadas se percebe a
presença de valores tradicionalmente atribuídos ao feminino, a exemplos dos
ligados a benemerência, ou ainda à utilização da “proteção masculina” sendo
acionados de maneira a resguardá-las de possíveis represálias. Enfim,
considerando fatores como conquista de clientela e/ou caridade por parte dos
profissionais de saúde que ofereciam serviços gratuitos para os pobres
mencionei apenas duas alternativas, para aqueles que aparentemente não
poderiam pagar pelos serviços oferecidos pelos (as) dentistas ou médicos
(as), estampados nos anúncios que analisei. No entanto, há uma terceira
possibilidade: o combate à busca dos serviços daqueles que exerciam os
ofícios de odontológos, médicos e farmacêuticos de forma leiga.
Talvez alem da possibilidade de ganhar nome por meio da
propaganda boca a boca que, os denominados pobres, poderiam
fazer dos seus serviços ou mesmo da prática da caridade, odontológos (as) e
médicos (as) ao oferecem serviços gratuitos estariam também procurando
ganhar a confiança de uma parcela da população baiana que os viam ainda
com um certo receio e que, muitas vezes, preferiam às práticas leigas e
processos de cura informais. A busca dos serviços de leigos comum no século
XIX, permanece na primeira metade do século XX, tanto na capital como em
cidades do interior.
Isto se torna perceptível ao se analisar os ofícios expedidos e
recebidos pelo diretor de saúde pública para o licenciamento de farmácias,
clínicas odontológicas e médicas, entre os anos de 1916 e 1924, onde
aparecem correspondências de denúncias da pratica leiga de medicina feita
por farmacêuticos e cirurgiões dentistas; assim como, denuncias de
comerciantes e médicos que vendiam ou produziam remédios sem serem
farmacêuticos.
A consulta a esses ofícios, que perfazem um total de 49 (quarenta
167
e nove), foi valiosa para o meu estudo não devido à disposta entre médicos,
farmacêuticos, dentistas e, também, “curiosos” pelo mercado, mas devido ao
fato que dentre eles existem pedidos de licença de funcionamento de
farmácias no interior da Bahia cujos responsáveis são mulheres, algumas
formadas pela Faculdade de Medicina da Bahia; e, que associadas a outras
fontes de informação nos revelam o transito realizado por algumas dessas
mulheres (médicas, farmacêuticas e odontológas) entre espaços territoriais
distintos e distantes para a formação e o exercício profissional.
A titulo de ilustração cito o oficio que o Diretor de Saúde Pública
enviou, em 17 de setembro de 1917, a Carlos Macedo Guimarães, delegado
de higiene de Itaberaba, solicitando que esse realizasse a vistoria em uma
farmácia no Orobó (Mundo Novo), de propriedade de dona Elvira
Albuquerque Mello, com o fim de autorizar o funcionamento sob a
direção da farmacêutica Georgina Della Cella Camara.
Ilmo. Sñr. Dr. Delegado de Hygiene de Itaberaba, Carlos Macedo
Guimarães.
Tendo a pharmaceutica D. Georgina Della Cella Câmara [grifo meu]
requerido a esta Directoria para gerir profissionalmente uma pharmacia
no Orobó da propriedade de D. Elvira de Albuquerque Mello... (OFICIOS
EXPEDIDOS..., 1916/1924).
Georgina formou-se no ano de 1908 na Faculdade de Medicina
da Bahia. Se compararmos o sobrenome que consta no Livro de Registro de
Diplomas e no de Índice de Graduados, com o registrado no oficio do Diretor
de Saúde Pública, notaremos o acréscimo do sobrenome “Câmara”. O que
sinaliza que essa farmacêutica contraiu núpcias após a formatura, indo viver
no interior da Bahia.
Ampliando as reflexões sobre a presença de Georgina na cidade
de Mundo Novo, acredito que ela tenha, a partir da sua atuação profissional,
estimulado algumas moças do Orobó a ingressarem na Faculdade de
Medicina da Bahia e especificamente no curso de Farmácia. É o que suscita a
formatura das farmacêuticas Maria Thereza Figueiras Victoria e Maria Cide
Gomes Bastos, respectivamente em 1948 e 1949 – ambas da cidade de
Mundo Novo.
Se Maria Thereza e Maria Cide retornaram ao Piemonte da
Chapada Diamantina não foi possível verificar. Mas, os ofícios expedidos pela
Diretoria de Saúde Pública trazem mais dois exemplos o de Emilia dos Reis
Meirelles e o de Maria Etelvina de Araújo Figueiredo Pinheiro de Almeida. A
primeira formou-se em 1907 e em 12 de abril de 1917 solicitou ao órgão
competente autorização para o funcionamento de uma farmácia na cidade de
Aratuípe:
_____________________________________________________________

66
Pessoas que não tinham a habilitação técnica, mas realizavam práticas de curas

168
Ilmo. Sñr. Dr. Delegado de Hygiene da Cidade de Nazareth.
Tendo a pharmaceutica Emilia dos Reis Meirelles [grifo meu] solicitado
desta Directoria licença para uma pharmacia na cidade de Aratuhype, e
não havendo actualmente preposto sanitário nessa cidade, peço
procederes o exame da referida pharmacia... (OFICIOS EXPEDIDOS,
1916/1924).
Parece que Emilia teve a sua experiência como exemplo para as
mulheres da família Meirelles, pois em 1946, 1947 e 1948 encontrei a
formatura, em farmácia, respectivamente de Zildete de Magalhães Meirelles
(filha de Victor Meirelles), Ady Meirelles (filha de Arnobio Meirelles) e Zélia
Dulce Meirelles Vieira (filha de Edith Meirelles Vieira). Provavelmente essas
moças, que durante o período de curso fizeram companhia uma as outras,
eram primas e sobrinhas de Emilia. Antes de trazer a cena o caso de Maria
Etelvina, saliento que aparentemente Emília e Georgina não foram às únicas
que, ao exercerem as suas profissões, estimularam gerações posteriores, de
parentes e conhecidas, a buscarem um curso superior.
Um outro exemplo da constituição dessas “redes de influência”
apareceu quando cruzei o nome de Edméia Novaes Nonato que, segundo
anotações feitas nas margens da folha do livro que contém o registro do seu
diploma, após a formatura foi para a cidade de São Felix, com o de Celeste
Aida de Almeida Alves e Helena Lordelo Ferreira oriundas da referida cidade
do Recôncavo Baiano e que se formaram respectivamente em 1949 no curso
de farmácia. O fio que liga essas mulheres a de Maria Etelvina foi constituído
não só da área de formação, mas da movimentação que essas faziam para se
formarem e atuarem profissionalmente. Voltemos ao caso dessa
farmacêutica. Em 12 de abril de 1917, o Diretor de Saúde Publica solicita ao
delegado de Higiene de Itaparica que faça a vistoria da farmácia “Ivantéle”:
Ilmo. Sñr. Dr. Delegado de Hygiene da Cidade de Itaparica.
Tendo o sñr. Guimarães Cova & Baraúna solicitado licença para a sua
pharmacia “Ivantéle” nessa cidade sob a responsabilidade da
pharmaceutica D. Maria Etelvina de Araújo Figueiredo Pinheiro de
Almeida [grifo meu], peço a execução das disposições do art. 23...
(OFICIOS EXPEDIDOS..., 1916/1924).
Não encontrei o registro de Maria Etelvina nos documentos
consultados no acervo da Faculdade de Medicina da Bahia, portanto essa
farmacêutica formou-se em outra instituição que não a baiana. O
que reforça a indicação de que o transito de mulheres não ocorreu somente
no sentido de buscar uma formação, mas também em relação aos espaços
para o exercício profissional. Um outro caso que aventa essa possibilidade foi
o de Alzira Normélia Fernandes da Costa, egressa do curso de odontologia da
Faculdade de Medicina da Bahia, no ano de 1910, e que após a formatura
mudou-se para o Amazonas conforme consta na observação feita no livro de
registro do seu diploma. Os destinos das damas formadas pela Faculdade de
169
Medicina da Bahia, nos seus cursos superiores, foram múltiplos, bem como
os motivos que os geraram e foi impossível registra-los não só por que
envolvem as subjetividades dessas mulheres, mas também porque
encontramos pouquíssimos vestígios dessas experiências.
No entanto, a partir do cruzamento das informações referentes à
localidade de origem constante nos registros de diplomas com anúncios de
serviços oferecidos para a interlândia soteropolitana e os ofícios de pedidos
de licença para funcionamento de estabelecimentos ligados à área de saúde,
foi possível verificar que aproximadamente 38% (trinta e oito por cento) das
baianas formadas Medicina na cidade do Salvador ingressaram formalmente
no mercado de trabalho local divulgando a sua atividade profissional, pois das
49 somente foi possível encontrar vestígios de apenas 19 que divulgam a sua
atividade profissional em consultório ou estabelecimento próprio ou
aparecem como responsável pelo funcionamento desses ou atuando em
parceria com outros profissionais.
Merece destaque o fato de que o maior número de baianas
formadas pela Faculdade de Medicina da Bahia encontra-se no curso de
farmácia (127) e odontologia (103). A inexistência de anúncios de
farmacêuticas explica-se pelo fato dessas atuarem em
estabelecimentos que nem sempre mencionavam o nome dos profissionais
responsáveis pela sua direção. Essa explicação, no entanto, não é suficiente
para explicar a ausência de anúncios das odontológas; fica a interrogação:
elas atuavam, mas não divulgavam os seus serviços ou, simplesmente, não
exerceram a profissão?
Prováveis respostas para tal questionamento foram sinalizadas
por Besse (1999) quando essa afirma que ao se casarem as mulheres
deixavam de trabalhar, voltando a este somente em caso de ser necessário
complementar a renda familiar. Assim, é possível que algumas dentistas,
médicas e farmacêuticas ao se casarem tenham se voltado à dedicação
integral da família. Artigos publicados em periódicos baianos, nos anos finais
da década de 1930, defendem que a mulher casada deve-se se dedicar a
família (marido e filhos) permanecendo no lar e deixando espaços no
mercado de trabalho para homens, a quem cabia em primeira instância ser o
responsável prover o lar. Um exemplo do conteúdo desses artigos, foi o
publicado no Diário de Noticias, em 25 de novembro de 1938.
Na seção dedicada a expressar a opinião dos leitores, um senhor
por nome Euvaldo Caldas, apresentou a sua opinião, contraria a de outros
_____________________________________________________________

67
Quando digo formalmente, estou querendo dizer que elas respondiam publicamente por consultórios ou
estabelecimentos. Dessa maneira, não foi possível contabilizar aquelas que atuavam em parceria com
outros profissionais e não assumia publicamente a responsabilidade pelos espaços onde exerciam a
profissão.
68
Nesse calculo não foi considerado as profissionais que atuavam em Salvador, mas que não foram
alunas da instituição baiana.

170
colaboradores do periódico, acerca do trabalho da mulher casada em um
texto que intitulou de “collaboradora”. Ele faz uma rápida discussão sobre a
necessidade que motivou as mulheres a assumirem atividades no mundo do
trabalho por causa da guerra, mas com a volta dos homens isso não era mais
necessário. Ressalta que reconhece a existência de atividades que podem
ser desempenhadas por mãos femininas a exemplo da datilografia, o
magistério (infantil e normal), a enfermagem, pois essas “não deturpam” e
são condizentes “com a sua própria formação moral e espiritual, como filha,
irmã, noiva, esposa e mãe” (CALDAS, 1938). E ele continua afirmando que
sabe da existência de mulheres que “pela sua absoluta necessidade
econômica, precisam de trabalho honesto”, no entanto depois de casadas
não devia mais trabalhar.
Essa idéia fazia parte do imaginário acerca de que as funções de
mães e esposas eram a primordiais na vida das mulheres, e que todas as
suas outras atividades deviam articular-se com essas. Isaura Leitão, na
entrevista que deu ao Jornal A Tarde, afirma que a sua profissão não será
empecilho para os cuidados e deveres que ela, enquanto mulher – mãe e
esposa – deve ter com a família. Assim,
Entretanto, a minha these versa sobre a transfusão sanguínea e se
continuar a residir na capital, me dedicarei à clinica médica. Exercendo a
minha profissão, como pretende-lo fazel-o (sic), com amor e dedicação,
não me deixarei absorver completamente por ella; isto é, os desvelos pela
família, o lar, continuarão a ter guarida no meu coração. Não há
incompatibilidade entre uma e outra cousa, é aminha convencida opinião.
(A MULHER NA..., 06/01/1917)
Um outro exemplo de que os deveres familiares vinham em primeiro
lugar é o da odontologa Carmem Germano da Costa, que ao contrair
matrimonio foi deixando aos poucos de exercer atividade para poder cuidar
da família. Maria Amélia Almeida (1986) ao apresentar o perfil de algumas
mulheres que constituíram a Federação Baiana pelo Progresso Feminino,
cita a atuação profissional de Carmem.
Não encontrou problemas por ser mulher, a despeito de não serem bem
vistas as mulheres que trabalhavam, principalmente solteiras, como no
seu caso. O casamento não significou um corte em sua vida profissional,
fato excepcional para a época. [...]. Com o nascimento de seus dois filhos,
resolveu transferir seu consultório do centro da cidade para o lado de sua
residência na Barra, o que resultou, devido à distancia, em grande perda
de clientela. Aos poucos, foi deixando de trabalhar. (ALMEIDA, 1986, p.
66).
Os dados, no entanto, de que disponho no momento não me
permitem analisar em profundidade os prováveis fatores que interferiram na
não publicização do exercício profissional dessas mulheres ou o não
exercício profissional por parte delas. Ouso, no entanto, afirmar – a partir das
171
reflexões feitas por Besse (1999) e Almeida (1986), além da fala de Euvaldo
Caldas – que qualquer que tenham sido esses fatores houve uma interseção
com as questões de gênero vigentes no período. Uma vez que não só os
espaços físicos da Faculdade de Medicina da Bahia e a sua
ocupação eram demarcados pelas representações de gênero, mas as
próprias áreas de atuação e exercício profissional iam sendo moldadas de
acordo com estas representações.

172
REFERENCIAS

BESSE, S. K. Modernizando a desigualdade: reestruturação da ideologia


de gênero no Brasil (1914-1940). São Paulo: Edusp, 1999.
BOURDIEU, P. O capital social – notas provisórias. In.: NOGUEIRA, M. A.;
CATANI, A. (org.) Pierre Bourdieu: escritos de educação. 8ª. Ed.
Petrópolis: Vozes, 1998. (Ciências sociais da educação).
LEITE, M. M.da S. B. Educação, cultura e lazer das mulheres de elite
em Salvador, 1890-1930. Salvador: Programa de Pós-graduação em
História/Universidade Federal da Bahia, 1997. (dissertação de mestrado).
PONCELA, A. M. F. Hilvanando palabras e cifras. Un ejemplo sobre
política, mujeres e hombres. In.: BARTRA, E. (org.) Debates en torno a
una metodología feminista. México (D.F.): UAM, 1998.
SCHIEBINGER, L. O feminismo mudou a ciência? Bauru: EDUSC, 2001.
SEDEÑO, E.P. La deseabilidad epistémica de la equidad en ciencia. In.:
RUIZ, V.F. (org.) Las mujeres ante la ciencia del siglo XXI. Madrid:
Complutense, 2001.
CORPUS DOCUMENTAL - Periodicos:
Diário de Noticias, 1876-1909.
O Artista, 1877-1878.
O Renerador, 1877-1905.
Tribuna, 1877-1879.
A Ordem, 1877-1895
O Motor, 1877-1881.
Echo Popular, 1877.
O Liberal, 1877.
A Verdade, 1876-1882.
A Chrysalida, 1879.
O Americano, 1882.
O Monitor, 1876-1881.
Gazeta da Bahia, 1879-1886.
A Tarde, 1920-1949.

173
FUTEBOL FEMININO: o hábito não altera o gênero
Daniella Silva do Nascimento
Maria do Rosário de Fátima Andrade Leitão

1 INTRODUÇÃO
Entendendo a identidade como “o processo de construção de
significados com base em um atributo cultural, ou ainda um conjunto de
atributos culturais inter-relacionados, os quais prevalecem sobre outras
fontes de significado” (CASTELLS, 2000, p. 22), é que se pretende abordar o
papel identitário estabelecido pelas atletas do Sport Club do Recife. Durante a
observação pôde ser notada que a identidade das atletas foi construída sobre
os parâmetros observados por CASTELL (2000, p.26).
[...] onde essa construção consistiu num projeto de vida diferente, talvez
com base em uma identidade oprimida, porém expandindo-se no sentido
da transformação da sociedade como prolongamento desse projeto de
identidade [...] resultando na liberação das mulheres, dos homens e das
crianças por meio da realização da identidade das mulheres.
Foi através do processo de opressão que se assemelha ao
cárcere que foi cotidianamente imposto às mulheres que se fortaleceu a luta
pela criação de sua identidade, é nesse jogo de poder, nesse campo que a
identidade é construída e fortalecida, sendo a identidade social um ato de
poder.
[...], pois se uma identidade consegue se afirmar é apenas por meio da
repressão daquilo que a ameaça. Derrida mostrou como a constituição de
uma identidade está sempre baseada no ato de excluir algo e de
estabelecer uma violenta hierarquia entre os dois pólos resultantes -
homem/mulher etc. aquilo que é peculiar ao segundo termo é assim
reduzido – em oposição à essencialidade do primeiro à função de um
acidente. (HALL apud DERRIDA, 1993, p.33).
O futebol tem na sua gênese o sentido de virilidade, idealizado
por uma sociedade conversadora e machista, que encontrou respaldo na
máxima de que “futebol é coisa pra macho”. Tratando o futebol não apenas
como um espaço esportivo e sim sociocultural, a ele é atribuído
valores e limites a quem o pratica. A partir do momento que se pensa que a
mulher é um sexo frágil, incapaz de superar os limites físicos impostos pelo
futebol, sua participação no campo futebolístico faz com que se quebrem
valores e subverta a ordem já estabelecida pela sociedade que a instituiu,
quanto mais machista e sexista for à sociedade, mais exacerbado torna-se o
preconceito.
Pode-se, portanto, afirmar que o futebol é um campo de batalha
ideológico e simbólico onde o homem sempre prevaleceu e onde se trava
uma luta para reconhecer a mulher como parte integrante dele, ou como uma
parte diferenciada, que está nele, mas que não é dele. E hoje pelo que mostra
a pesquisa muito já foi feito, mas não há nada que se pode comemorar.
175
É de fundamental importância ressaltar que as atletas buscam
um reconhecimento de sua inserção no futebol não apenas pela sociedade de
um modo geral, mas especialmente por elas mesmo, um reconhecimento
interno, que faça com que sejam reconhecias não apenas como jogadores de
futebol, como “transgressoras” dos valores que lhes foram impostos, mas
como mulher, batalhadora que busca diariamente uma oportunidade de
legitimar sua identidade.
Não é, portanto, o futebol que lhes conferem legitimidade, mas é a
luta constante, podemos ver as mulheres hoje lutando em outros campos que
antes eram de predominância masculina. A dominação masculina vem
imbuída em outros meios, como por exemplo, num ambiente onde um homem
atua a mulher realizada o mesmo trabalho muitas vezes com uma carga
horária maior, e seu salário é menor, há neste caso uma limitação de direitos
onde ainda predomina a dominação masculina sobre a feminina.
Convém destacar que a diferença existente no futebol é
evidenciada pelo meio no qual a identidade é construída, é apenas através
dela que a construção das identidades dessas atletas são consolidadas. No
caso do futebol feminino está diferença já é imposta, já foi elaborada pela
sociedade, portanto, a construção já é tida como certa. Como romper este
modelo pré-estabelecido? Como pode haver legitimidade dessa
construção, se não há aceitação e valorização de quem dela faz parte? A
pergunta é pertinente, se formos analisar que nas respostas das meninas
entrevistadas observa-se que elas não se aceitam como são, mulheres, e
sempre buscam em suas respostas de afirmação parâmetros de identidade
masculina para se afirmarem. É lógico que não podemos esquecer que suas
lutas sempre foram travadas dentro da arena do “macho”, mas não se pode
esquecer que existe uma construção social de gênero que estabelece
algumas características denominadas de feminina mesmo dentro de um
ambiente denominado de masculino.
A questão aqui não se resume a travar uma luta entre macho e
fêmea, mas debater sobre as oportunidades diferenciadas, onde as duas
partes possam competir, ganhar aquilo que lhes é de direito, e não onde
apenas uma parte o “masculino”, obtenha mais expressão e visibilidade, não
oportunizando as mulheres de obterem seu lugar submetendo-as a uma
violência simbólica, a exclusão ou marginalização.
Importante ressaltar que a participação e permanência feminina
num determinado esporte seja ele o futebol ou qualquer outro está
geralmente atrelado a uma rede de significações, pois
[...] a habilidade esportiva dificilmente se compatibilizava com a
subordinação feminina tradicional as sociedade patriarcal; de fato, o
esporte oferecia a possibilidade de tornar igualitárias as relações entre os
sexos. O esporte, ao minimizar as diferenças socialmente construídas
entre os sexos, revelava o caráter tênue das bases biológicas de tais
diferenças, portanto, constituía uma ameaça séria ao mito da fragilidade
176
feminina. (ADELMAN, 2003, p.448).
O esporte pode ser uma atividade que desmistifique este mito da
fragilidade feminina. Uma elaboração social sobre as relações de gênero
consiste na afirmativa de que a mulher é frágil, mas este argumento é apenas
um meio pelo qual pôde-se exercer um controle social sobre a mulher e
subjugá-la.
Perguntamos por que o futebol é considerado um esporte
masculino já que é um esporte de todos, onde todos podem participar e
mostrar suas habilidades.
Será que desde sua criação ele foi assim estigmatizado? Será que em algum
momento foi explicitado que era de uso exclusivo dos homens? Pese a que
historicamente sua prática fosse apenas dos homens. Mesmo assim, o
futebol engloba outras dimensões,
[...] pois diferentemente de outras instituições, o futebol tem a capacidade
de unir muitas dimensões simbólicas na sua invejável multivocalidade,
sendo a um só tempo, jogo e esporte, ritual e espetáculo, instrumento de
disciplina de massa e evento prazeroso. (DA MATTA, 2006, p.139).
O processo de construção da identidade destas atletas é
influenciada por toda a sociedade, mas afeta diretamente a elas em sua auto-
estima, ou seja aceitação e rejeição instituídas por elas ou imposta pela
sociedade.
Dentre os vários estigmas estão os relacionados à sexualidade.
Se o futebol é coisa de homem, o discurso construído socialmente sobre as
mulheres que o praticam, é que segundo o senso comum, não são mulheres e
sim homossexuais. Discurso que as afeta diretamente em sua aceitação
como sujeitos sociais, o que ficou notório é que o tema sobre a
homossexualidade gera um bloqueio na comunicação, umas apresentam
dificuldade de se aceitarem como homossexuais, umas negam, outras
simplesmente falam.
Já que durante as entrevistas percebi certo bloqueio no tocante a
sexualidade, optei em aplicar dois questionários no qual um deles não era
necessário a identificação. Argumentou-se se elas percebiam algum tipo de
preconceito, a maioria respondeu que as pessoas falavam muito sobre suas
atuações no meio masculino e que elas se masculinizavam bastante.
Assim constatamos que a orientação sexual dessas atletas é
muito questionada no meio esportivo, e é motivo de muitos comentários.
Sabe-se que o senso comum anula a existência dessas atletas como
mulheres e as enxergam como homens, menosprezando a mulher
desportista. Isto é um tipo de violência, que podemos denominar de violência
de gênero. Essa violência de gênero segundo (STREY, 2006).
[...] é o resultado da conformação de consciências estereotipadas que
_____________________________________________________________

69
Aquilo que é comum a todos. Realidade concebida a partir de uma visão geral.

177
ocorrem no processo de socialização dos seres humanos, reflexo da
nossa sociedade patriarcal, onde as relações sociais, entre homens e
mulheres, são permeadas pelas diferenças de poderes entre os sexos.
A dominação masculina faz com que a mulher se torne apenas
em objetos simbólicos, onde são colocadas em permanente estado de
insegurança corporal, ou seja, de dependência simbólica, das mulheres se
espera que sejam atenciosas, submissas ao marido e à família, frágeis e
dependentes. Quando há a prática de um determinado esporte pelas
mulheres há segundo BOURDIEU (2007, p.84).
[...] uma profunda transformação da experiência subjetiva e objetiva do
corpo: deixando de existir apenas para o outro ou, o que dá no mesmo,
para o espelho (instrumento que permite não só se ver, mas também
experimentar ver como é vista e se fazer ver como deseja ser vista), isto é,
deixando de ser apenas uma coisa feita para ser olhada, ou que é preciso
olhar visando à prepará-la para ser vista, ela se converte de corpo-para-o-
outro em corpo-para-si-mesma, de corpo passivo e agido em corpo ativo e
agente; no entanto, aos olhos dos homens, aquelas que rompendo a
relação tácita de disponibilidade, reapropriam-se de certa forma de sua
imagem corporal e, no mesmo ato, de seus corpos, são vistas como “não-
femininas” ou até como lésbicas – a afirmação de independência
intelectual, que se traduz também em manifestações corporais,
produzindo efeito em tudo semelhante.

Ao analisarmos o gênero como uma categoria social e não


sexual, levamos em consideração vários fatores que são condicionantes para
entendermos a inserção feminina no futebol. Na realidade o sexo feminino
tido como frágil, adotado nos discursos sociais como plenos de docilidade e
dependência é tido como a subversão para as que atuam dentro do campo
(futebol). Mesmo num mundo intitulado como “moderno”, o conservadorismo
ainda prevalece revestido de outras formas. Ao entrevistar as atletas do
Sport, as mesmas afirmam a existência de grande preconceito pela sua
participação no futebol.
Segundo (SAFIOTTI, 1997a), a igualdade faz par com a
desigualdade, e nesta busca pela igualdade de oportunidades e de
visibilidade da identidade feminina ela jamais se desvincula da desigualdade
imposta por nossa sociedade, na qual dita as regras de quem vale mais ou

178
Gráfico 1 – Orientação sexual

179
daí é que os sujeitos vão se construindo e se transformando como
masculino e como feminino.
Com base nesses dados e com base na observação participante
fica evidente que a sexualidade ainda é um tabu, tanto para elas que não se
afirmam concretamente quanto para os que convivem com elas, que vez por
outra nega ou tenta evitar o assunto.
Por ser algo há tanto tempo discriminado o futebol exercido pelas
mulheres passam ao longo do tempo por processos de amadurecimento,
talvez elas nem percebam isso, mas ultrapassaram os limites da
discriminação, pois quando entram em campo seus corpos e almas estão
voltados para a bola, objeto de desejo e satisfação para quem pratica o
futebol. Todas as atletas foram enfáticas ao afirmarem que praticam o futebol
por que gostam e por se sentirem realizadas, além do mais todas afirmar que
sua prática é baseada em rendimentos futuros, ou seja, almejam um
reconhecimento profissional.
As jogadoras de futebol são sempre questionadas a respeito de
sua sexualidade. A esse discurso são agregados valores a elas, como por
exemplo, que seus corpos tornam-se viris, e que elas não estão dentro de um
padrão estético e comportamental estabelecido para as mulheres pela
sociedade, padrão que aparentemente define o que é heterossexualidade. As
mulheres hoje questionam a hegemonia esportiva masculina que foi
construída historicamente e assimilada culturalmente, e enfrentam o
preconceito a elas imposto, é claro que existem outras que vão por outro
caminho, e se caracterizam pelos trejeitos masculinos, assumindo a forma
masculina de ser.
No tocante a família, ela exerce um papel fundamental para essas
atletas, particularmente suas respostas me surpreenderam, pois imaginei
que as famílias fossem as primeiras a obstruírem a participação dessas
meninas no futebol. De acordo com o gráfico 80% receberam incentivos da
família quando resolveram jogar futebol e 20% não receberam nenhum
incentivo de seus familiares, sendo um dos maiores repressores, seus pais.
180
GRÁFICO 2 – INCENTIVO DA FAMÍLIA

A família ainda continua a incentivá-las de uma forma ou de outra,


de acordo com relatos delas, a participação da família em dias de jogo chega
a ser ínfima em comparação a participação dos amigos, que segundo elas
esta em segundo lugar no quesito incentivo, a família só tem participação
ativa no campo de acordo com o jogo em que elas participam. É bastante
intrigante, quando elas afirmam que há participação dos familiares,
considerando que em suas entrevistas estão presente respostas que eles
não participam ativamente de sua carreira como atleta.
É importante comentar, que a identidade é uma construção, que
vem desde nosso nascimento e nos acompanha durante toda nossa vida, por
isso nosso ambiente familiar é de fundamental importância para sua
construção. É através da família que começamos a ter a noção de
pertencimento. Depois, com as relações sociais que vamos empreendendo
cotidianamente, é natural e até salutar um conflito de identidades, daí é que
começa o processo de construção e afirmação.
A busca não pela identidade, pois ela já está em processo
constante de construção, mas sim pela aceitação desta identidade é a mola
propulsora que move as atletas de futebol do Sport Club do Recife, a
galgarem um espaço que seja capaz de as legitimarem.

2 A BUSCA INCESSANTE PELA VALORIZAÇÃO E


PROFISSIONALIZAÇÃO
181
Reivindicar aceitação e condições de oportunidades iguais para
homens e mulheres é uma das tarefas mais difíceis de serem realizadas pelas
atletas, não porque não querem, mas porque o próprio meio em que elas
estão situadas não deixam que isso aconteça. Tido como um esporte
predominantemente masculino, o futebol não dá brechas para as mulheres, é
interessante enfatizar que já se conquistou um espaço enorme, porém pouco
expressivo. A prática do futebol é tida como uma transgressão de valores,
valores esses impostos pela própria sociedade, que vê a participação
feminina nesta atividade obrigatoriamente como uma masculinização.
A presença da mulher no futebol traz consigo também uma
preocupação machista, que é a invasão de um espaço masculino, as
mulheres estariam subvertendo os papéis que ora lhe foram outorgados,
como o de boa mãe e esposa e rainha do lar. Durante o período do Estado
Novo, muito se falou a respeito da participação feminina no futebol, chegando
a afirmar que a sua prática era nociva a saúde, desaconselhando este tipo de
atividade física que era incompatível para o organismo feminino, podendo
comprometer seriamente os órgãos reprodutores. Esses argumentos não
tinham fundamentação alguma, pois se não era compatível para a mulher,
também não o era para o homem, pois o mesmo também é possuidor de
órgãos reprodutores.
O que se vê é uma desigualdade de gênero fundamentada pelo
patriarcado, onde
[...] o poder patriarcal se expressa diretamente na ordenação legislativa
que justifica a desigualdade. Este poder que resiste durante séculos
produz saber e transforma-se numa ação normalizadora sutil do poder.
Os papéis sexuais, tanto masculino como femininos, são produtos da
configuração do poder, são lugares ocupados em uma situação
estratégica complexa, que dotam o masculino de um maior exercício de
poder que a mulher [...]. (STREY, 2004, p.31).

O futebol nega o acesso e torna-se um repressor da participação


feminina, considerando que as mulheres quando o pratica quebram as regras
182
do status e poder conferidos ao homem. À mulher ficou conferido
o acesso à maternidade e o zelo do lar e dos filhos. O Conselho Nacional de
Desportos determinava na deliberação nº 7/65 que às mulheres “Não é
permitida a prática de lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão,
futebol de praia (...)”. Vê-se, portanto que houve um avanço significado da
participação feminina no futebol, pois a sua prática já não é mais proibida,
mas é condicionada ao preconceito e a falta de oportunidades e
reconhecimento. No futebol há uma diferença entre homem e mulher,
diferença construída na direção da desigualdade e não da diversidade, essa
diferença serve para justificar a desigualdade social existente entre ambos
(LOURO, 1997). No meio do futebol é visto nitidamente a segregação social e
política, que segundo Louro, são conseqüências da invisibilidade feminina.
Convém ressaltar que tanto homens como mulheres fazem parte do mesmo
universo, porém apresentam diferenças que só serão determinantes a partir
do momento que cada um assume seu papel na sociedade, que estão
alicerçadas segundo GOELNNER (2000, p. 82-83) na idéia de diferença de
sexo e gênero
[...] diferenças de sexo são aquelas diferenças biológicas que se

apresentam desde o nosso nascimento e que determinam o ser “macho”

ou o ser 'fêmea'. Diferenças de gênero são aquelas diferenças que se

constroem na sociedade e na cultura, indicando os papéis adequados aos

homens e às mulheres, delineando, portanto, representações de

masculinidade e feminilidade [...].

As atletas do Sport Club do Recife buscam seu reconhecimento,


mas estão muito longe de alcançá-los, além de enfrentarem um preconceito
de gênero dentro do ambiente em que vivem, também lutam para serem
reconhecidas em outras esferas. As oportunidades oferecidas a elas são
mínimas, porém significativas, levando em consideração sua condição
socioeconômica. Vale ressaltar que o futebol gera renda e prestígio, em sua

183
condição esporte profissional, mas é um status apenas do masculino, o
feminino vivencia a situação de esporte amador. Motivo da
diferença dos salários entre jogadores e jogadoras no Futebol brasileiro. Por
ser amador o futebol feminino é pouco valorizado.
O Sport Club do Recife investe pouco ou quase nada, segundo
uma das dirigentes do futebol feminino do Sport, as meninas são invisíveis ao
clube, quase imperceptíveis. Há uma ajuda de custo dadas às atletas que não
chega há um salário mínimo, a menor ajuda está em torno de R$ 150,00 e a
maior em R$ 400,00, pagas segundo uma das dirigentes com uma ajuda dada
pela Faculdade que as patrocina e com o que o clube pode oferecê-las.
Por outro lado, os privilégios oferecidos para o futebol masculino
estão longe dos olhos do futebol feminino, são realidades completamente
diferentes, os salários milionários dos homens não são parâmetros para os
das mulheres. Se o futebol feminino tivesse 1/3 do oferecido ao masculino à
realidade seria completamente diferente. Outro tipo de beneficio oferecido às
atletas é que elas podem ganhar bolsas de estudo para faculdade, existe um
patrocínio com uma faculdade particular o Recife, que se elas jogarem
defendendo a entidade lhes são oferecidas bolsas de estudo integral, na
verdade são oferecidas apenas doze bolsas de estudo, para quem não tinha
nenhuma perspectiva essa é uma grande oportunidade, pois depois do
futebol pode-se almejar um futuro promissor.
No universo das dez atletas entrevistadas durante a pesquisa
uma possuía o ensino fundamental, três estavam no ensino médio, quatro
estavam cursando a faculdade e duas haviam concluído o ensino superior. As
idades delas variam bastantes, mas estão na faixa dos dezoito aos vinte e
seis anos, tendo apenas uma com trinta e cinco anos de idade. É possível
verificar mais detalhadamente o nível de escolaridade e as idades conforme o
gráfico abaixo.
_____________________________________________________________

70
O salário mínimo estipulado no Brasil está no valor de R$ 465,00.

184
GRÁFICO 3 – NÍVEL DE ESCOLARIDADE DAS ATLETAS

GRÁFICO 4 – IDADE DAS ATLETAS

As dificuldades são imensas, a maioria não tem trabalho fixo, e


fazem uma coisa ou outra para se manterem. Nenhuma trabalha e se mantêm
através da família ou de trabalhos extras que conseguem. No que tange a
renda familiar, e a quantidade de pessoas morando com as atletas, é de
fundamental importância analisar os gráficos abaixo.

185
GRÁFICO 5 – RENDIMENTO SALARIAL MÉDIO MENSAL

Gráfico 6 – Pessoas que Trabalham para o Sustento da Casa

GRÁFICO 7 – PESSOAS RESIDENTES NA MESMA CASA

186
Convém mencionar que em um desses casos há uma residência
que moram oito pessoas, contando com duas crianças, cuja família é
sustentada apenas com um salário mínimo que provém de uma
aposentadoria. Há outros casos interessantes como de três atletas que fazem
parte de um mesmo espaço, mas que possuem realidades completamente
diferentes. Uma trabalha como camelô em Jaboatão dos Guararapes, região
metropolitana do Recife, outra faz e conserta barcos de pesca no Pina –
Recife e outra é boleira no clube onde joga. Vê-se, portanto que as
dificuldades são imensas e as histórias de vida, parecidas pela realidade
enfrentadas por elas, mas juntas buscam um único objetivo, que é de serem
reconhecidas não pelo que são ou pelo que possuem, mas pelo que
representam quando estão dentro de um campo de futebol.
A presença da mulher na prática do futebol feminino foi e continua
sendo uma conquista louvável, para uma sociedade machista e
preconceituosa como a nossa. No entanto diante das dificuldades o que lhes
é ofertado se restringe a agarrar as oportunidades que lhe são dadas para
obter uma vida melhor num futuro próximo, o futebol é uma atividade de curta
duração considerando que a prática do esporte lhes proporciona uma
educação de qualidade, a meta pode ser aliar o lazer com o compromisso de
garantir um futuro diferente da atual realidade.
Mas existem outras barreiras a serem vencidas, a falta de
estrutura para treinamento é outra dificuldade. O Sport oferece a elas o CT
(Centro de treinamento do clube), que fica em Paulista, na região
metropolitana do Recife, mas fica longe e pra treinar lá teriam custo com
transporte, e o clube não oferece transporte. Vale salientar que o CT só está
disponível quando o profissional (futebol masculino), não o está utilizando.
Convém destacar que são oferecidos ao departamento de futebol feminino os
materiais para jogo, como camisas, meiões, bermudas e bolas, e além do
_____________________________________________________________

71
Designação dada a quem, trabalha nas quadras de tênis, buscando as bolas que são jogadas para fora da
quadra pelos jogadores que praticam esse esporte.

187
Estádio da Ilha do Retiro, existe um ao lado que é o Auxiliar da
Ilha, onde lhe são ofertados para treinamento e jogos nos quais elas
participam. Jogar no Auxiliar da Ilha é mais vantajoso porque não há custos
com transportes já que as atletas residem próximo ao clube e a maioria vai
aos treinos e a jogos de bicicleta.
Há uma conquista significativa e muito lembrada pelas atletas
durante as entrevistas, no ano de 2008, elas sagraram-se campeãs do
Campeonato Pernambucano de Futebol Feminino organizado e dirigido pela
Federação Pernambucana de Futebol (FPF), e com isso obtiveram o direito
de participar da Copa do Brasil, evento bastante divulgado pela imprensa
local. Chegaram à final, e o clube honradamente lhes ofereceu o alojamento
de uso exclusivo dos atletas do futebol masculino. Este alojamento é tido
como um dos melhores seria um hotel de luxo dentro do clube, que serve para
concentrar os atletas durante os jogos em que eles participam. Houve um
deslumbramento por parte das atletas, pois em nenhum momento foram
oferecidos a elas tamanho reconhecimento, infelizmente ficou só nisso
mesmo, pois durante a final um dos dirigentes do clube lhe ofereceu um
“bicho”, e até hoje elas esperam por esse pro labore e se sentem lesadas pela
promessa não cumprida. Elas não obtiveram o êxito desejado e sagraram
vice-campeãs.
Para se ter idéia da grande dicotomia existente entre o futebol
feminino e o masculino no quesito investimento, destaco a Copa do Brasil que
ocorreu no ano de 2008 e contou com a participação das duas equipes do
Spot Club do Recife, tanto a masculina como a feminina, como se vê logo
abaixo na tabela a relação de público e renda da final de cada uma das
modalidades é gritante, isso sem contarmos com a publicação que é
investida.
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72
Evento organizado pela Confederação Brasileira de futebol (CBF), que contou com a participação de 32
equipes de diferentes estados brasileiro.
73
Bicho, é como chamam o prêmio que os jogadores recebem por vitórias e até por empates.
188
GRÁFICO 8 – RELAÇÃO PÚBLICO/ RENDA NA COPA DO BRASIL DE FUTEBOL FEMININO 2008

É de grande relevância ressaltar que não apenas o futebol, mas


as outras modalidades esportivas de um modo geral obtêm incentivos por
parte do governo com a criação da Lei de Incentivo Fiscal ao Esporte, os
recursos oriundos do incentivo fiscal não poderão remunerar atletas
profissionais, o objetivo da nova regulamentação é promover a inclusão
social através do esporte, mas até o presente momento não há nenhum tipo
de incentivo deste porte para o futebol feminino.
A valorização é um caminho longo a se percorrer, muitas atletas
jogam aqui e são valorizadas do outro lado do continente, como no caso de
Marta, que já ganhou pela terceira vez consecutiva o prêmio de melhor
jogadora de futebol do mundo, e que mesmo assim ainda se considera
discriminada, pelo fato de ser mulher e estar num campo predominantemente
masculino.
Com a prática do futebol pelas mulheres, surgiu então um novo
padrão, o rompimento de valores que antes eram impostos a elas, deixando,
portanto, de serem mulheres objetos. A alienação pela qual eram impostas às
mulheres pela condição histórica, foi rompida pela busca da liberdade.

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74
Com a publicação do Decreto 6.180 de 03 de agosto de 2007 que regulamenta a Nova Lei de Incentivo ao
Esporte (Lei nº 11438/06), finalmente pessoas físicas e jurídicas poderão usufruir dos incentivos fiscais ao
apoiar diretamente projetos desportivos e paradesportivos previamente aprovados pelo Ministério dos
Esportes.
75
Jogadora que faz parte da seleção brasileira de futebol, que entrou na calçada da fama do Maracanã,
sendo até o primeiro momento, a primeira mulher a deixar a marca de seus pés neste local.
76
Espaços estruturados de posições ou de postos cujas propriedades dependem das posições nestes
espaços, podendo ser analisadas independentemente das características de seus ocupantes (em partes
determinadas por elas)... (BOURDIEU, 1983, P.89)

189
Há outra conquista dada às mulheres fora do gramado, cada vez
mais vemos as mulheres indo aos estádios, acompanhando seu time do
coração, discutindo e entendendo cada vez mais de futebol, sendo cronistas
esportivas dentro de uma redação de jornal, e o que é sabido é que na maioria
das vezes elas acabam entendendo mais de futebol do que o próprio homem.
As barreiras impostas estão sendo transpostas, e os limites estão
diariamente sendo superados. É lógico que a dominação masculina que se
fundamenta segundo Bourdieu (2007), “como a relação de causalidade
circular que se estabelece entre as estruturas objetivas do espaço social e as
disposições que elas produzem, tanto nos homens como nas mulheres” está
longe de ser extinta, pois o poder do patriarcado está intrinsecamente ligado à
formação da sociedade, e se faz presente nas normatizações e valores
regidos por ela. O que se pretende mostrar é que é possível a homens e
mulheres viverem em condições de igualdade, ocupando cada um o seu
lugar, porém sendo reconhecido por aquilo que fazem e não por aquilo que
lhes é imposto.
3 A INVISIBILIDADE FEMININA NO FUTEBOL
Ao analisar o campo esportivo verificamos também como sendo
um campo de lutas, onde a busca pelo poder, pelo capital econômico e
simbólico são constantes, e é justamente neste contexto que se encaixa a
máxima da invisibilidade feminina no futebol. Sendo um campo hoje bastante
difundido pela mídia, o futebol tornou-se um dos grandes meios pelo qual o
capital econômico se faz presente, o respaldo dado pela mídia ao futebol é
algo impressionante.
Importante destacar que não é apenas a mídia a possuidora de
interesse pelo futebol. Sendo uma das modalidades esportivas mais
praticadas em todo mundo e difundida em diferentes culturas, o futebol
tornou-se alvo de interesse comercial, o produto bastante valorizado pelo
marketing. O interesse que permeia o futebol é algo indiscutível, o que se vê
hoje é um leque variado de patrocinadores, que vêem no futebol uma
mercadoria valorativa. Mas isso é comum no futebol masculino. Em
contrapartida o futebol feminino está à margem desta realidade, sendo
praticamente invisível a sua presença dentro de campo. Seria pueril afirmar
que o tratamento dado aos homens pela mídia é o mesmo dado às mulheres.
Com a capacidade de formar e construir opiniões através dos fatos
apresentados, a mídia exerce grande influência como formadora de opinião
na sociedade.
Neste contexto pode-se afirmar que o futebol é uma mercadoria
que é vendida pela mídia, porém o possuidor de maior valor é o futebol
masculino, que é tratado como herói, o possuidor de encarar desafios e
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77
STREY, Marlene Matos, 2004, P.31.

190
superar os limites impostos, já o feminino é vendido pela mídia como o belo e
o sensual.
Evidenciamos em todas as esferas do futebol o preconceito, o
descaso e a indiferença dado ao feminino. Se formos analisar os
campeonatos, a forma como são organizados, os recursos captados, se é
que se pode chamar de recursos, verificamos a grande dicotomia existente
entre esses extremos. Não dá pra se calcular tamanha divergência. Para se
ter uma idéia no ano de 2008 durante a Olimpíada de Pequim, a Seleção
Brasileira de Futebol obteve uma classificação medíocre, não conseguindo
chegar à final, já a Seleção Feminina chegou à final e obteve o segundo lugar,
num jogo onde a garra e a determinação fizeram das atletas “gladiadoras”
dentro de campo. O feito das atletas durante a Olimpíada de Pequim foi
inédito, se levarmos em consideração que não há investimento para esta
modalidade, e onde os recursos são investidos no futebol masculino. um
jornal de grande circulação em nosso Estado diante da má fase do futebol
masculino publicou uma matéria relacionado a sua péssima
colocação com o titulo “Futebol de meninas” e estampada uma fotografia do
jogador Ronaldinho Gaúcho. Na realidade não há uma luta de gênero, mas
sim de igualdade, onde as diferenças possam ser respeitadas e as
oportunidades possam direcionadas a todos, independente do sexo de cada
um. O que se viu diante deste relato foi uma repetição de um estereótipo
apesar do desempenho das atletas durante as olimpíadas.
Essa invisibilidade midiática também é freqüente com as meninas
do Sport, que sofrem pela falta de oportunidades e de divulgação do futebol.
Existe um outro fator importantíssimo para a ascensão do futebol feminino,
que são os patrocinadores. Se houvesse uma mobilização por parte da
Federação e dos clubes o futebol feminino seria mais valorizado, pois fica a
máxima de que, se as atletas não são valorizadas pelo próprio clube a que
defendem imagina pelos que não conhecem seu trabalho. Se os
campeonatos fossem organizados, se houvesse divulgação, com certeza os
patrocínios surgiriam.
No ano de 2008 as atletas do Sport Club do Recife, como já foi
citado participaram da Copa do Brasil e foi impressionante a sua atuação
nessa competição. A mídia cumpriu seu papel de divulgar e informar sobre a
atuação das meninas. Durante toda a competição foram exibidas matérias
tanto na mídia escrita quanto na televisiva. As atletas se expuseram de uma
forma como nunca havia acontecido. Mas depois da competição, voltaram ao
ostracismo. A participação das atletas do Sport na Copa do Brasil pode ser
traduzida por uma única palavra “SUPERAÇÃO”. Superação dos
preconceitos impostos, da falta de estrutura, da falta de oportunidades e da
falta de igualdade. Podemos atribuir a conquista feminina ao que Bourdieu
(1990, p.170) denominou de
191
[..] capital simbólico como capital de reconhecimento ou consagração,
institucionalizada ou não, que os diferentes agentes e instituições
conseguiram acumular no decorrer das lutas anteriores, ao preço de um
trabalho e de estratégicas específicas.

É de fundamental importância informar que essas atletas não


praticam apenas futebol de campo, mas também futebol de salão, elas fazem
verdadeiras maratonas para conciliarem as duas modalidades. Durante as
entrevistas elas estavam disputando os Campeonatos Pernambucano de
Futebol e de Futebol de Salão, e na maioria das vezes jogava campo pela
manhã e futsal à tarde, e vice-versa. O cansaço, os exaustivos treinamentos,
apesar da pouca estrutura disponibilizada para essas atletas são constantes.
O preconceito existente no futebol feminino é fruto de um
preconceito social que induziu a um preconceito esportivo e, portanto ainda
hoje a mulher é refém do regime patriarcal instituído pela sociedade. Pode-se
reiterar a idéia de GOELLNER, (2005, p.97) ao afirmar que
[...]assim, se o esporte se traduz como um importante elemento para a
promoção de uma maior visibilidade das mulheres no espaço público e se,
ao longo da história do esporte nacional, houve a projeção de vários
talentos esportivos femininos, vale registrar que essas conquistas
resultam muito mais do esforço individual e de pequenos grupos de
mulheres ( e também de homens) do que de uma efetiva política nacional
de inclusão das mulheres no âmbito do esporte e das atividades de lazer.

No dia 10 de junho de 2009 houve um jogo da seleção brasileira


de futebol aqui em Pernambuco e utilizaram as praticantes atletas de futebol
tanto do Sport como de outros clubes como gandulas. Seria uma forma de
ajudá-las financeiramente e além do mais iriam colocá-las em evidência,
considerando que toda a mídia nacional e internacional se fazia presente.
Muito se falou a respeito, houve elogios pelo seu trabalho, e notas nos jornais
foram publicadas pelo modo como trabalharam. Mas se olharmos por outro
lado, vemos uma desvalorização dessas meninas como atletas, colocando-
as como sub-produtos do esporte masculino. Como exemplo, pode-se citar
uma nota divulgada pela Folha de Pernambuco a respeito da atuação das
atletas, colocando como uma “inovação” o fato de terem atuado como
gandulas, e que foi uma “forma criativa para viabilizar o acesso das atletas no
jogo mais concorrido do ano”. O que fica notório são que os elogios não eram
pela sua atuação como jogadoras de futebol, nem tão pouco
pelas conquistas obtidas por elas, não estavam elogiando a mulher jogadora,
mas a mulher apanhadora de bolas, que serviu maravilhosamente bem num
espetáculo onde os olhos e atenção estavam voltados para os homens.
Não se pretende travar uma dualidade, mas em atribuir dignidade
merecedora ao futebol feminino, deixando os estereótipos que lhe são
192
atribuídos de lado e buscando o real papel social do futebol feminino na nossa
sociedade. A pergunta que se faz é que como num país onde se valoriza tanto
o futebol, não se encontra um lugar para o futebol feminino? Porque há tantos
preconceitos com o futebol praticado pelas mulheres, já que na sua gênese o
futebol do Brasil é marcado por racismo, e onde na sua evolução isso já
deveria ser um assunto não mais a se analisar?
Há muito o que realizar em respeito ao futebol feminino, mas
antes de tudo é necessário que haja respaldo de sua prática e de quem nele
esta inserido. As atletas têm o direito de cidadãs de serem reconhecidas pelo
que fazem e pelo que são, abandonando os preconceitos machistas e
sexistas, deixados como herança do patriarcado, pode-se chegar longe e
alcançar o objetivo da profissionalização, só depende de investimentos e
incentivadores.
É necessário, portanto lembrar que a base material do
patriarcado não foi destruída, mesmo com os avanços femininos na área
profissional, mas é também de fundamental importância ressaltar que houve
e ainda continua tendo transformações radicais no sentido da preservação da
diferença e da eliminação das desigualdades (SAFFIOTI, 2004 p. 10).
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A participação feminina no futebol é vista, portanto como a
transgressão dos valores impostos pela sociedade. As atletas do Sport Cub
do Recife estão sob os olhares de uma sociedade machista e sexista, que
instituiu o futebol como uma prática masculina. É importante destacar que
esta pesquisa mostra a grande disparidade existente entre o futebol praticado
por homens e o praticado pelas mulheres. A naturalização deste
esporte como sendo espaço exclusivo de homens, num país onde o futebol
consiste numa paixão nacional, pode ser questionada. Histórica e
culturalmente como foi elaborada esta concepção de exclusão das
mulheres? O que faz com que num país como o Brasil que tem na sua
identidade a marca pelo gosto e pelo melhor futebol do mundo, seja
socialmente aceita esta segregação? Esta exclusão está alicerçada nos
moldes estabelecidos por uma sociedade cuja construção impõe as marcas
do poderio masculino, produto da manipulação do homem sobre a mulher.
A segregação de gênero só encontra respaldo porque a sociedade
ainda hoje legitima os padrões estabelecidos de que culturalmente a mulher é
submissa ao homem e aos valores impostos por eles.
Faz-se necessário salientar que a busca pela afirmação da identidade dessas
atletas é uma constante, já que ainda vivemos numa sociedade onde o
_____________________________________________________________

78
Ver anexos de algumas matérias publicadas
193
patriarcalismo se faz presente e o senso comum as denigre, afetando-as
diretamente como sujeitos sociais.
O investimento e a valorização dado ao futebol feminino são
ínfimos se comparado ao futebol masculino, mas a resistência, a auto-estima,
empoderamento redundam na superação das dificuldades para existência e
sobrevivência desse esporte que é tão estigmatizado para as mulheres.
O recurso propício para que essas atletas possuam algum
beneficio futuro está na educação, pois a elas são oferecidas como forma de
incentivo bolsas de estudo, desde que não parem de jogar, aliando assim o
“dom” de jogar futebol com as benesses que lhe são dadas por essa prática.
É fundamental afirmar que a melhoria de vida dessas atletas
encontra respaldo no futebol, a elas não são ofertados grandes salários, nem
tão pouco visibilidade midiática até porque como foi visto a mídia de uma
forma geral não dá espaço para o futebol feminino, porém lhes é ofertado a
condição de cursar uma faculdade, pois já que não há um retorno financeiro a
curto prazo, há uma chance de buscar esse retorno através da educação.
Foi observado também que a maior das discriminações não está
na condição social de cada uma delas, nem na escolaridade que possuem e
sim no tocante a sua sexualidade. A discriminação sexual denigre e segrega
essas meninas, tornando-as reféns do estereótipo social.
A homossexualidade ou heterossexualidade dessas atletas não
as distinguem dentro de campo, na realidade o que se vê são sujeitos sociais
que buscam firmar sua identidade através de suas escolhas, e isso é inerente
a qualquer ser humano, seja ele homem, mulher ou criança. A identidade é
uma constante diária, cada dia buscamos afirmá-la de uma forma ou de outra
e não seria diferente com essas atletas. Ficou notório a afirmação da
identidade destas atletas do futebol, já que estão em constante construção.
Conclui-se, pois que a pratica do futebol feminino não altera o
gênero, muito pelo contrario ajuda-o a se firmar, pois como se sabe a
elaboração do modelo feminino sempre ficou à margem do modelo
masculino, a mulher sempre foi considerada como o oposto “fragilizado”
incapaz de superar os limites impostos pela sociedade. O futebol feminino
mesmo estigmatizado e segregado legitima a superação feminina e derruba o
tabu da mulher fragilizada que tantas vezes foi sub-produto do homem e hoje
é responsável pela criação de sua própria visão de mundo.

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79
Jornal de grande circulação no Estado de Pernambuco; A nota foi divulgada no dia 11 de junho de 2009.
194
REFERÊNCIAS
BRUNORO, J.C & AFIF, A. Futebol 100% profissional. São Paulo, Ed.
Gente, 1997.
BOURDIEU, P. Coisas Ditas. São Paulo, Brasiliense, 1990.
BOURDIEU, P. A dominação masculina. 5 ed. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2007.
CASTELLS, Manuel. O poder da Identidade. São Paulo: Paz e Terra,
2000.
DA MATTA, Roberto. A bola corre mais que os homens. Rio de Janeiro:
Rocco, 2006.
FERREIRA, Dina Maria Martins. Discurso feminino e identidade social.
São Paulo. Annablume: Fapesp, 2002.
GOELLNER, Silvana Vilodre. História das mulheres no esporte: o
gênero como categoria analítica.CNPQ. Porto Alegre, 2007.
GOMES, Claudemir.Coluna de Esportes. Folha de Pernambuco. Recife,
11 de junho de 2009.
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação. Rio de
Janeiro. Vozes, 1997.
NEUMA AGUIAR. Gênero e ciências humanas: desafio às ciências desde
a perspectiva das mulheres. Rio de Janeiro. Record: Rosa dos Ventos,
1997.
ORLANDI, Eni Puccionelli. Análise do discurso. Campinas. Pontes, 2000.
STREY, Marlene Neves (Coord.). Gênero e cultura; Questões
contemporâneas. Porto Alegre. EDIPUCRS, 2004.
SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado e violência.
São Paulo. Ed. Fundação Perseu Abramo, 2004.
TABAK, Fanny. Mulher e política. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1982.

195
RELAÇÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADE NO CURRÍCULO
ESCOLAR: desafios e possibilidades nas práticas pedagógicas no
estado do Maranhão

Sirlene Mota Pinheiro da Silva

INTRODUÇÃO
A sociedade contemporânea é intensamente marcada pelos
conhecimentos e habilidades elaborados através dos processos formais de
escolarização. A escola, enquanto instituição social é co-responsável pela
formação dos sujeitos, atuando conjuntamente com outras instituições como
a família e a religião (igreja), por exemplo. Neste bojo, vale ressaltar a
importância das práticas educativas na formação do indivíduo, devendo-se
levar em consideração sua “formação integral”, bem como as transformações
no mundo do trabalho e na sociedade como um todo, uma vez que a escola é
condicionada pelos contextos social, econômico, político e cultural.
Consideramos nesse ínterim que a educação integral supõe o
desenvolvimento de todas as potencialidades humanas com equilíbrio entre
os aspectos cognitivos, afetivos, psicomotores e sociais. Isto requer uma
prática educativa crítica, que compreenda o ser humano em sua
integralidade, em suas múltiplas relações, dimensões e saberes,
reconhecendo-o em sua singularidade e universalidade. E, o currículo
escolar faz parte desse processo. É importante observar que o currículo
reflete todas as experiências em termos de conhecimento que
serão proporcionados aos alunos e alunas. Dessa forma, ele deve ser
encarado como elemento central do processo da educação
institucionalizada.
Ao trabalharmos com o conhecimento, e sua distribuição na
sociedade contemporânea, trazemos para a discussão do campo do currículo
algumas indagações: é possível analisarmos a produção social do
conhecimento de acordo com as perspectivas das teorias críticas do
_____________________________________________________________

*
Mestra em Educação pelo Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal do
Maranhão – UFMA. Professora do Departamento de Educação I da UFMA. Membro do Grupo de Estudos e
Pesquisas sobre Mulheres e Educação de Gênero – GEMGe / UFMA.

80
A questão da formação integral do indivíduo como desenvolvimento pleno de competências que o
capacitem para a vida, para o trabalho e para a prática da cidadania está destacada na Lei n° 9394/96 de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN (BRASIL, 1996), ao ratificá-la como o objetivo da
educação. Consideramos, portanto que a educação integral supõe o desenvolvimento de todas as
potencialidades humanas, com equilíbrio entre os aspectos cognitivos, afetivos, psicomotores e sociais.
Isto requer uma prática educativa globalmente compreensiva do ser humano em sua integralidade, em
suas múltiplas relações, dimensões e saberes, reconhecendo-o em sua singularidade e universalidade.

197
currículo? Como desenvolver uma prática educativa crítica, diante dos
dilemas e desafios da sociedade contemporânea?
GÊNERO E SEXUALIDADE NO CURRÍCULO ESCOLAR: de que forma se
processa a educação do homem e mulher contemporâneos?
Educação, Pedagogia e Currículo devem ser apreendidos a partir
da relação com as questões históricas, políticas e culturais, sendo envolvidas
nas tramas do poder e saber, no sentido que lhe confere Foucault (1999, p.
27), quando diz que “não há relação de poder sem constituição correlata de
um campo de saber, nem saber que não suponha ou não constitua ao mesmo
tempo relações de poder”.
Para Giroux e McLaren (1995, p. 144) a pedagogia está presente
em qualquer lugar em que o conhecimento seja produzido, “em qualquer
lugar em que existe a possibilidade de traduzir a experiência e construir
verdades, mesmo que essas verdades pareçam irremediavelmente
redundantes, superficiais e próximas ao lugar-comum”. Verdade, de acordo
com Foucault (1993) nada mais é do que uma mentira que não pode
contestada em um determinado momento.
O currículo, segundo Silva (2005) pode ser visto como um
discurso que, ao incorporar narrativas particulares sobre o indivíduo e a
sociedade, nos constitui como sujeitos particulares. Em sua argumentação,
Silva afirma que as narrativas contidas no currículo corporificam noções
particulares sobre as formas de organização da sociedade e diferentes
grupos sociais e o conhecimento, estabelecendo, por exemplo, qual o
conhecimento que pode ser considerado verdadeiro.
Sob essa égide, encontram-se as relações de gênero e a
sexualidade. Questões nem sempre contempladas nos currículos escolares
como objeto de discussão e análise. Contudo, o que importa, na perspectiva
das relações de gênero, é discutir os processos de construção ou formação
histórica, linguística e social, instituídas na formação de mulheres e homens,
meninas e meninos.
Silva (2005) ressalta as perspectivas críticas sobre relações de
gênero e pedagogia feminista dizendo que estas passaram a questionar o
fato de não levarem em consideração a questão de gênero e da raça no
processo de produção e reprodução das desigualdades. Nesse contexto, o
currículo refletia e reproduzia uma sociedade masculina. A pedagogia
feminista passa a desenvolver formas de educação que levam em
consideração os valores feministas, para contrapor-se à pedagogia
tradicional de valorização do masculino. O currículo é visto como um artefato
de gênero, pois corporifica e ao mesmo tempo produz relações de gênero.
Os Estudos Feministas sempre estiveram preocupados com as
relações de poder entre mulheres e homens. Inicialmente, esses estudos
buscavam atentar para as condições de exploração e dominação a que as
mulheres estavam submetidas. Vale ressaltar que os estudos de gênero não
se limitam, aos estudos de/sobre mulheres, envolvem também a discussão
198
em torno da constituição das masculinidades, problematizando de que forma
elas têm sido postas em discurso.
A categoria gênero vai ser desenvolvida pelas teóricas do
feminismo contemporâneo sob a perspectiva de compreender e responder,
dentro de parâmetros científicos, a situação de desigualdade entre os sexos e
como esta situação opera na realidade e interfere no conjunto das relações
sociais. A construção dos gêneros se dá através da dinâmica das relações
sociais. Os seres humanos só se constroem como tal em relação com os
outros.
E qual seria a diferença entre sexo e gênero? Pode-se dizer que
sexo é algo biológico, ou seja, quando um ser nasce diz-se que é macho ou
fêmea, e no caso dos seres humanos, dizem que se fazem homens e
mulheres. Enquanto que na questão gênero, este é construído
historicamente, socialmente e culturalmente, sendo o sexo social definido, ou
seja, não é sinônimo de sexo biológico. O gênero refere-se à construção
social de relações de homens e mulheres, que não recebem o mesmo tipo de
educação.
Não se leva em conta que as diferenças biológicas entre homens
e mulheres não determinam e não explicam as diferentes atribuições a estes
na sociedade. Sendo assim, as diferenças não são de ordem natural, mas sim
cultural, construídas e elaboradas socialmente a partir das diferenças
biológicas.
Assim surgiu o que se denomina hoje de sexismo, ou o chamado
preconceito de sexo, consistindo em identificar características que
determinem as diferenças entre as identidades de gênero, reconhecendo o
homem como essencialmente forte, objetivo, racional e determinado em
oposição à concepção feminina de ser emocional, sensível, intuitiva e pré-
racional.
O sexismo encontra forte legitimação nos discursos religiosos,
nas formas de produção e no reforço e reprodução dos papeis sexuais. Com
isso, a educação tradicional, aquela que possui como base à sociedade
patriarcal, é voltada para a transmissão eficiente dos papéis sexuais
tradicionais, tendo o sexismo “como seu ethos inspirador. A tradição
ocidental, terreno histórico e cultural da tradição patriarcal, encontra-se
hegemonicamente legitimada na concepção de identidades diferenciadas
entre o masculino e o ser-homem e o feminino e o ser-mulher” (NUNES, 2000,
p.70).
Dessa forma, essas identidades são postas como prontas e
acabadas, geralmente centradas em ideais religiosos e, tomando-se
legítimas a partir dos aspectos biológicos. Com isso, inúmeros
conceitos ligados à sexualidade encontram seus fundamentos apenas no
senso comum, ou, disfarçados numa suposta igualdade que ao primeiro
conflito revelam-se seu preconceito, pois, sabe-se que mesmo com toda a
transformação dos costumes ainda persistem as discriminações
199
relacionadas ao gênero.
Por outro lado, quando se trata de discriminações e preconceitos,
pode-se dizer que a escola contribui fortemente para a formação destes,
principalmente através do currículo oculto. Este, embora não faça parte do
currículo escolar segundo Silva (2005), encontra-se presente nas escolas
através de aspectos pertencentes ao ambiente escolar e que influenciam na
aprendizagem dos alunos.
A escola, desde sua criação, exerce uma ação distintiva,
separando os sujeitos que tinham acesso a ela, daqueles que não tinham.
Além disso, os gestos, movimentos e sentidos são produzidos no espaço
escolar e, são incorporados pelos alunos e alunas, tornando-se parte de seus
corpos, de suas vidas. Todas as lições, de uma forma ou de outra confirmam e
produzem as discriminações e preconceitos e, os sujeitos desse processo se
envolvem e são envolvidos nessas aprendizagens, reagindo, respondendo,
recusando ou assumindo aquilo que lhe é posto.
Na visão crítica, o currículo oculto forma atitudes,
comportamentos, valores, orientações, dentre outros aspectos que permitem
a adaptação dos sujeitos às estruturas da sociedade capitalista e excludente.
Nessa perspectiva, as relações de gênero e sexualidade passaram a ser
questionadas, pois o currículo pensava e reproduzia uma sociedade
masculina. Na prática pedagógica crítica, o currículo deve lidar com a questão
da diferença como uma questão histórica e política, pois não importa apenas
celebrar a diferença e a diversidade, mas questioná-la.
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS CRÍTICAS: desafios e possibilidades
Prática pedagógica de acordo com Veiga (1994, p.16), é “uma
prática social orientada por objetivos, finalidades e
conhecimentos, e inserida no contexto da prática social [...], é uma dimensão
da prática social que pressupõe a relação teoria-prática, e é essencialmente
nosso dever, como educadores/as, a busca de condições necessárias à sua
realização”. Libâneo (2005) ressalta que em várias esferas da sociedade há
a necessidade de disseminação e internalização de saberes e modos de
atuação, dentre eles, a aquisição de novos conhecimentos, conceitos,
habilidades, hábitos, procedimentos, crenças, atitudes.
As práticas pedagógicas se estabelecem por ações,
conhecimentos e valores que fazem parte de um processo intencional e
sistematizado, com finalidades educativas e formativas, que possibilitam a
singularização, socialização e humanização dos sujeitos, envolvendo o
complexo de interações entre indivíduos e contextos.
A Contemporaneidade configura-se pela complexidade social e
na diversificação das atividades educativas e formativas. Conforme destaca
Paredes (1997, p. 178), “cada professor tem sua própria contextualização
sobre educação e, nesse sentido, é ele, e só ele, quem vai dar determinada
orientação à sua prática”.
No entanto, uma prática pedagógica crítica, que pretende ser
200
transformadora deve lutar pela construção de uma sociedade com igualdade
de oportunidades, sejam econômicas, sociais, políticas, com respeito às
diferenças e à diversidade, pois “respeitar as diferenças exige o direito se
sermos considerados, pelos outros, como iguais em capacidades e direitos”
(PAREDES, 2006, p.137).
Dessa forma, podemos dizer que uma prática pedagógica crítica
funda-se no modo de produção social da existência, utilizando-se uma
metodologia que permita a apreensão da realidade, através da unidade entre
teoria e prática (práxis) na busca da conscientização e transformação da
realidade histórica. Ao professor e professora nesse processo, não cabe a
postura de neutralidade, pois assim a reprodução tende a se manter. Estes
precisam reconhecer seu papel político e a dimensão política da
educação, refletindo-a através de sua práxis. Da mesma forma o currículo
não é neutro, desinteressado, conforme aponta Michel Aplle. Para o autor, a
reprodução social não se dá de forma tranqüila, há sempre um processo de
contestação, conflito, resistência. E o professor e professora devem ser
agentes transformadores (SILVA, 2005).
Giroux também defende o papel o professor como intelectual
transformador. Advoga a pedagogia da responsabilidade, na qual os
professores e professoras devem ser críticos, criativos e esperançosos em
relação ao potencial que, tanto eles, como seus estudantes podem oferecer,
contrariando as forças políticas conservadoras que significa muito mais uma
submissão às pressões do mercado do que uma produção intelectual
inovadora. Assim, o autor vê o currículo por meio dos conceitos de
emancipação e libertação.
Paulo Freire (1996, p. 42-43) diz que “ensinar exige reflexão
crítica sobre a prática”, acrescentando que “a prática docente crítica,
implicante do pensar certo, envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o
fazer e o pensar sobre o fazer”. Além disso, o professor e professora devem
respeitar os saberes dos alunos e alunas, sobretudo os das classes
populares. Assim, o currículo deve conceber a experiência dos educandos
como a fonte primária para temas significativos ou geradores. Por outro lado,
sua teoria é contestada por Dermeval Saviani na pedagogia histórico-crítica
ou pedagogia crítico-social dos conteúdos. Segundo este autor, a educação
só será política quando esta permitir às classes dominadas se apropriarem
dos conhecimentos transmitidos como instrumento cultural que permitirá uma
luta política mais ampla (SILVA, 2005).
Nesse sentido, combater os diversos preconceitos na sociedade
é uma forma de emancipação social, e, neste estudo, tratamos
especialmente os relacionados aos estereótipos construídos e vivenciados
na escola, bem como a contribuição desta, nas construções das identidades
de gênero e sexual do homem e da mulher contemporâneos.
CONSTRUINDO IDENTIDADES DE GÊNERO E IDENTIDADES SEXUAIS
NA ESCOLA
201
O conceito de identidade tem sido muito discutido ao longo do
tempo e, portanto, abriga diversas abordagens teóricas, de cunho
psicológico, filosófico, antropológico ou sociológico. Anteriormente, a noção
de identidade estava ligada à concepção de um sujeito uniformizado. Na
sociedade contemporânea e as profundas transformações no modo de
pensar as questões sociais, os discursos passam a indicar uma sociedade
multicultural, assim, é possível o sujeito identificar-se com referências
culturais distintas e a afirmação ou repressão de determinadas
características identitárias das culturas diversas passa por uma escolha
política. A identidade é construída socialmente e desenha escolhas políticas
de grupos humanos.
Além disso, o conceito de identidade trata-se de uma constituição
simbólica. A construção da identidade também se relaciona à apreensão e
explicação da realidade, visto que é um processo de representação
simbólica, uma tentativa de compreensão de sua própria posição no mundo.
Essa construção se dá por meio de esquemas classificatórios, que nos
permite separarmos dos "outros" a partir de critérios estabelecidos. Por outro
lado, a idéia de identidade vem seguida de uma noção de normalidade, noção
esta que lhe dá uma certa confirmação, tanto teórica (no caso psicológica)
como social.
A identidade reúne características pessoais e sociais que fazem
com que pessoas e grupos se diferenciem entre si. É constituída pelo
conjunto de papéis que desempenhamos, sendo que tais papéis atendem à
manutenção das relações sociais.
Na escola, ainda que seu ambiente seja flexível em relação aos
papéis sociais, os estereótipos podem aparecer entre as próprias crianças,
produto do meio em que convivem, ou reflexo da faixa etária em que a divisão
entre meninos e meninas torna-se uma forma de se apropriar da
identidade sexual (Brasil, 1999: 42).
Em relação ao conceito e à abordagem relacionada a papéis, há
uma certa limitação para o seu entendimento, pois estes não possibilitam
uma discussão mais ampla em relação ao poder, violência e desigualdade.
Um dos problemas relacionados a papéis é que estes se restringem a formas
muito específicas, como por exemplo, o papel de esposa, de mãe, sendo
usados para se mencionar um tipo normativo de comportamento ou ainda
indicar estereótipos de papéis em relação ao homem e à mulher.
Algumas das explicações buscam evidenciar como se produzem
às identidades de gênero ou mesmo as identidades sexuais. Estas se
fundamentam em estruturas de interação bastante restritas, por exemplo, o
campo familiar, ignorando o fato de que as relações de gênero estão
conectadas a outros sistemas sociais, econômicos, políticos ou de poder,
como destaca Joan Scott (1995).
A identidade é uma interação social. Ela promove, ao mesmo
tempo, uma coerência e uma multiplicidade, uma estabilidade e uma
202
mudança, ou seja, a identidade é construída via interação com o outro. A
identidade psicossocial se coloca como uma formação discursiva que tem
referência tanto no sujeito quanto no contexto. Ela é uma relação dialética, um
sujeito descentrado – uma vez que, em sua narrativa, não tem consciência ou
tem consciência apenas parcial dos fatores sociais e psíquicos que
influenciam a própria narrativa – vivido como sujeito da comunicação e sujeito
da experiência.
Hall (2004, p. 105) concorda com Foucault quando diz que o que
nos falta é uma teoria da prática discursiva, pois...
Parece que é nas tentativas de rearticular a relação entre sujeitos e
práticas discursivas que a questão da identidade – ou melhor, a questão
da identificação, caso se prefira enfatizar o processo de subjetivação (em
vez de práticas discursivas) e a política de exclusão que essa
subjetivação parece implicar – volta a aparecer.
Assim, a abordagem discursiva vê a identificação como uma
construção, como um processo nunca completado – como algo
sempre em processo. A identificação é, pois, um processo de articulação e
não uma subsunção. Hall (2004) acrescenta que as identidades são
construídas dentro e não fora do discurso, por isso precisamos compreendê-
las como produzidas em locais históricos e institucionais específicos, no
interior de formações e práticas discursivas específicas, por estratégias e
iniciativas específicas.
Alguns autores e autoras que se aproximam dos Estudos
Feministas e dos Estudos Culturais, concebem a identidade de forma mais
aberta, como um processo dinâmico, plural. Dentro de nós há identidades
contraditórias, levando-nos a direções diversas, de tal maneira que nossas
identificações estão sendo sempre modificadas.
Em relação à identidade de gênero e à identidade sexual também
é possível apreender que estas são plurais e estão em constante
transformação. Para Guacira Louro (1997), enquanto a identidade de gênero
relaciona-se à identificação histórica e social das pessoas, que se distinguem
como femininos ou masculinos, a identidade sexual está ligadas diretamente
ao modo com que os indivíduos vivenciam seus desejos corporais, das mais
variadas maneiras: sozinhos/as, com parceiros do mesmo sexo ou não,
dentre outras. A identidade sexual encontra-se constantemente reformulada,
reorganizada, principalmente pelas complexidades da experiência vivida,
pelo conhecimento escolar, pela cultura popular, e pelas inúmeras e mutáveis
histórias de marcadores sociais como gênero, raça, geração, nacionalidade,
aparência física e estilo popular.
Dessa forma, tanto as identidades de gênero quanto às
identidades sexuais podem ser caracterizadas pela inconstância, estando,
portanto, em constantes transformações. Desde que nascemos, estamos nos
estabelecendo como indivíduos, com múltiplas identidades (de gênero, de
etnia, religiosas, sexuais, etc).
203
Contudo, o discurso naturalizante e universal em torno da
sexualidade tem produzido poderosos efeitos de verdade. A
sexualidade tem sido alvo de constante controle por parte da família, da
escola e dos diversos aparatos culturais, incluindo-se aqui os livros didáticos
e paradidáticos.
É possível observar que mesmo tendo sido colocada em discurso
de forma tão intensa nas últimas décadas, ela mais do que nunca tem sido
vigiada e controlada (Felipe, 1998). Em relação à escola, por exemplo,
muitas/os educadoras/es têm tomado para si a responsabilidade de atuarem
como “vigilantes” da sexualidade infantil, na tentativa de moldarem os
comportamentos que consideram mais apropriados para meninos e meninas.
Examinar os materiais didáticos e paradidáticos voltados para as
crianças, bem como os diversos objetos culturais - brinquedos, filmes, dentre
outros, são fundamentais para entender de que forma eles trazem percepção
de gênero, sexualidade, raça/etnia, geração, nacionalidade, pautadas muitas
vezes pela desigualdade. Em um mundo caracterizado pela diversidade, é
essencial que os educadores e educadoras, a partir de uma prática educativa
crítica, não compactuem com a idéia de que as diferenças individuais sejam
transformadas em desigualdades.
PCN'S E PROPOSTA CURRICULAR DO ESTADO DO MARANHÃO: onde
estão as questões de gênero e sexualidade?
A educação sexual na escola sempre foi um objeto de polêmicas,
isso devido à tradição educacional brasileira. Assim, a escola, sempre
procurou se manter distante desses assuntos. No entanto, com a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei n° 9394/96, a iniciativa dos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) que incluiu a “Orientação
Sexual” como um dos Temas Transversais a ser trabalhados de forma a
perpassar todas as disciplinas do currículo escolar e as manifestações de
sexualidade em todas as faixas etárias, a escola e os professores e
professoras, deparam-se com situações a qual precisa abordar, pois é
preciso propiciar a discussão de questões relacionadas à gênero e em
relação ao sexo e ao sexismo, além do questionamento das atitudes pessoais
das crianças e jovens, frente a própria sexualidade.
Com a inserção do tema sexualidade nos PCN's denota-se a
importância que tal assunto assumiu em nossa sociedade e, o volume que
trata esta questão apresenta a sexualidade como “a energia que motiva
encontrar o amor, contato e intimidade, e se expressa na forma de sentir, na
forma das pessoas tocarem e serem tocadas” (BRASIL, 2000, p.118).
O documento ressalta a postura do educador e educadora na
condução do processo educativo e na parceria com a família, apresenta os
objetivos do trabalho com educação sexual e sugestões dos blocos de
conteúdos a serem trabalhados nas diversas áreas do conhecimento (Corpo:
matriz da sexualidade; relações de gênero e prevenção das doenças
sexualmente transmissíveis). Além disso, destaca algumas orientações
204
didáticas e critérios de avaliação.
A inclusão de temas relacionados à sexualidade em documentos
que norteiam à prática educativa deu-se especialmente pela urgência social e
os problemas que a vivência da sexualidade trazem para a sociedade. Por se
tratar de um conteúdo atitudinal – atuando na mudança de valores e atitudes –
assim como os demais Temas Transversais deveria transformar-se em
elemento essencial na proposta pedagógica dos estados, municípios e das
escolas de modo geral. Contudo não é isso que se observa, pois até mesmo
na Proposta Curricular para o Ensino Fundamental do Estado do Maranhão
este e os demais Temas Transversais são praticamente inexistentes, estando
presentes no volume da 1ª a 4ª série, apenas no capítulo que trata da área de
Matemática.
Vale ressaltar que nos volumes dos PCN's que tratam das
diversas disciplinas do currículo escolar, apenas o da área da Matemática
apresenta sugestões para o trabalho com os Temas Transversais,
conseqüentemente, a educação sexual. Dessa forma, acreditamos que ao
elaborarem a Proposta do estado, basearam-se nesses volumes, excluindo-
se os que tratam dos Temas Transversais.
O capítulo da Proposta curricular do Maranhão que trata da
matemática e os temas transversais aponta que deve haver um compromisso
partilhado pelos professores e professoras das diversas áreas do
conhecimento, “o que inclui a aprendizagem de conceitos, procedimentos e o
desenvolvimento de atitudes” (MARANHÃO, 2002, p. 71), e, acrescenta que
através dos conteúdos da Matemática, a criança pode compreender e
analisar questões relacionadas à sexualidade. Através de dados estatísticos,
por exemplo, poderão compreender a diferença na remuneração de homens
e mulheres no mercado de trabalho; o aumento da gravidez prematura entre
adolescentes; a evolução das Doenças Sexualmente Transmissíveis, dentre
elas a AIDS que muito assusta nossa população; as políticas públicas
voltadas a tais questões.
Trabalhar esses conteúdos são de extrema relevância social e
deveriam ser apresentadas nos documentos e propostas curriculares nas
diversas áreas do conhecimento e não apenas em Matemática. Embora a
Proposta do estado, assim como os PCN's não se constituam num modelo
rígido e obrigatório a ser seguido, e sim um referencial e instrumento de apoio
à prática pedagógica, tal prática, numa perspectiva crítica e transformadora,
deve atentar para os problemas e desafios que assolam a sociedade, um dos
motivos para se adotar as sugestões dos referidos documentos na escola,
incluindo-se os Temas Transversais e a educação sexual.
CONCLUSÃO
Na prática educativa crítica, o (a) professor (a) deve estar atento,
intervindo de modo a combater as discriminações e os estereótipos
associados, dentre outros aspectos, ao gênero e à sexualidade, trabalhando
o respeito ao outro e às diferenças individuais, demonstrando, por exemplo,
205
os “comportamentos diferenciados de homens e mulheres em diferentes
culturas e momentos históricos, o que auxilia os alunos a entenderem as
determinações da cultura em comportamentos individuais” (BRASIL, 2000,
p.146).
Os resultados da aplicação de conteúdos relacionados a gênero
e sexualidade podem ser bastante promissores, tanto para as professoras e
professores, como para os alunos e alunas, pois, são temas que podem levá-
los a aprimorarem-se como cidadãos e cidadãs críticos, participativos,
ajudando-os a entender o processo de construção histórico-social dos
valores da sociedade, sejam eles, culturais, morais e religiosos, além de
poderem participar do processo de transformação social.
Logo, não se pode construir uma educação emancipadora e
transformadora baseada nos princípios discriminatórios. Portanto, nosso
compromisso como educadoras e educadores comprometidos com a
sociedade trata-se de dimensionar a dialética do indivíduo no contexto da
transformação revolucionária, no caminho da liberdade e da diversidade
como princípio educativo.

206
REFERÊNCIAS
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Nacionais: pluralidade cultural e orientação sexual. 2 ed. Rio de Janeiro:
DP&A, 2000.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A Vontade de Saber.11
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SILVA, T. T.; MOREIRA, A F. (org.). Territórios contestados: o currículo e os
novos mapas políticos e culturais. Petrópolis: Vozes, 1995.
HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: SILVA, Tomas Tadeu.
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In: Educação & Realidade. n. 20, 1995, p. 101-132.
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teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
VEIGA, Ilma Passos Alencastro. A prática pedagógica do professor de
Didática. 3.ed.Campinas, SP: Papirus, 1994.
207
GT 2 – GÊNERO E GERAÇÃO
COORDENAÇÃO: Profª. Dra. Marion Teodósio de Quadros - UFPE

209
APRESENTAÇÃO
Este Grupo de Trabalho se propõe a refletir acerca das
articulações entre gênero e geração. A perspectiva adotada é que estas duas
dimensões de análise são construções sócio-culturais. As diferentes
abordagens do conceito de gênero contido nos trabalhos deste GT
possibilitam um amplo olhar para a relação entre as dimensões biológica e
cultural. As análises empreendidas destacam aspectos biologizados e
naturalizados que atuam como marcadores sociais e impulsionam relações
de poder difusas entre as próprias mulheres, bem como entre travestis e a
sociedade mais ampla. Estas análises tornam evidente como o
entrecruzamento com as questões de geração podem aprofundar nossa
reflexão sobre a exclusão e a desigualdade. Alguns dos trabalhos apontam a
possibilidade de interferência ou atuação para a superação das
desigualdades e exclusões realçadas, mostrando como as potencialidades
de mudança/resistência enlaçadas às abordagens de gênero aqui utilizadas
se beneficiam da utilização deste entrecruzamento.
A maioria dos trabalhos privilegiou a reflexão sobre a
juventude. O texto de Anny Oliveira, Claudiana Sousa e Danila Cordeiro é
fruto de uma pesquisa que combina as abordagens quantitativa e qualitativa,
ressaltando as desigualdades no uso das novas tecnologias. Mostra como
questões de gênero, classe social, geração e geografia influenciam a
acessibilidade de jovens e as formas de utilização no meio urbano e rural.
Indagando sobre a interação a televisão e o espaço virtual, refletem sobre
mudanças nos modos de vida e nos valores das jovens da periferia de áreas
urbanas e rurais.
O trabalho de Rosineide Cordeiro e Marion Teodósio de Quadros
chama a atenção para um outro aspecto de desigualdades que atinge as
jovens rurais: a legislação sobre o salário-maternidade. O texto é fruto de uma
pesquisa qualitativa, baseada em documentos, depoimentos e entrevistas, e
reflete sobre as incongruências envolvidas em um debate sobre a idade
considerada adequada pela legislação para a aquisição do direito ao salário-
maternidade, evidenciando as dificuldades enfrentadas e conquistas
alcançadas pelas trabalhadoras rurais para a aquisição deste direto e, por
outro lado, como o direito adquirido exclui as jovens que engravidam com
menos de 16 anos, embora elas atendam aos demais requisitos legais
exigidos pela Previdência.
Karla Adrião reflete, a partir de uma abordagem qualitativa, sobre
o entrecruzamento das questões de gênero e idade na própria militância
feminista, destacando como as jovens feministas têm interagido com as
chamadas feministas históricas, suas dificuldades e sucessos no
fortalecimento das agendas do movimento e a na formação de uma agenda
específica, iluminando a complexidade da formação do campo feminista
211
como um locus de formação de uma diversidade de sujeitos políticos
específicos que contribui para colocar novas questões para o próprio
movimento e os estudos de gênero.
O último trabalho a ser apresentado neste GT traz para a
discussão uma outra questão igualmente importante para os estudos de
gênero e geração: o envelhecimento e suas marcações sociais que
acentuam desigualdades para as pessoas, especialmente quando estamos
no campo de entrecruzamentos entre gênero e sexualidades. Nele, Jesana
Batista Pereira, Márcia Santana Tavares e Maura Lúcia de Olim analisam
significações e resignificações de travestis frente a uma marca identitária
fundamental, o poder de sedução, utilizando experiências e trajetórias de
vida.
Um outro mérito destes textos é o de possibilitar a reflexão
sobre a relação entre militância e a realização de reflexões que esmeram pelo
cuidado com o material de pesquisa e seu diálogo com questões teóricas. Se
a militância política é um ingrediente fundamental para a realização das
pesquisas, parece haver um entrelaçamento bastante dosado entre a ação e
a reflexão, sendo notório que estas duas dimensões, embora interligadas em
todos os momentos da produção do conhecimento, tem peculiaridades que
as distinguem. Esta distinção enriquece o debate, proporcionando novas
perspectivas na análise das questões ensejadas e maiores aportes para as
decisões sobre o rumo das ações. As ações, por sua vez, quando refletidas a
partir da produção de conhecimento, parecem evidenciar suas
(in)consistências, (in)coerências, suas (im)possibilidades de mudança ou
resistência.
Ao ressaltar esta questão, estamos dando passos para enfrentar
um desafio importante que pode ser considerado um desdobramento do tema
central da XV REDOR: investir na produção de conhecimentos e no
movimento. Como a produção de conhecimentos feministas tem se
relacionado com ação política feminista? Para fazer frente ao patriarcado/
racismo/capitalismo (SAFFIOTI) nós só temos nossa capacidade de nos
organizar, de reivindicar e de ter frentes de luta e, ao mesmo tempo, nós
temos o empobrecimento crescente tanto das mulheres quanto dos próprios
movimentos sociais. Dentro dessa composição de forças, que estratégias
nós podemos tomar? Isso é um ponto para refletir e tentar elaborar
estratégias de enfrentamento.
Marion Teodósio de Quadros
Coordenadora do GT Gênero e GeraçãoO SALÁRIO-MATERNIDADE E
O CRITÉRIO IDADE: refletindo sobre a exclusão de jovens agricultoras
Rosineide Meira Cordeiro – UFPE
Marion Teodósio Quadros – UFPE
212
O SALÁRIO-MATERNIDADE E O CRITÉRIO IDADE: refletindo sobre a
exclusão de jovens agricultoras

Rosineide Meira Cordeiro – UFPE


Marion Teodósio Quadros – UFPE
1 INTRODUÇÃO
A exigência de idade por parte da Previdência Social para a
concessão do salário-maternidade deixa de fora as jovens agricultoras que
engravidaram antes dos 16 anos. O objetivo deste artigo é discutir e analisar o
critério de idade mínima para obtenção deste beneficio. Para abordar este
tema, vamos dialogar com as idéias feministas sobre maternidade, a
legislação sobre a proteção á maternidade e o debate sobre gravidez na
adolescência veiculado pelas ciências sociais, a saúde coletiva e o próprio
feminismo.
Durante a realização da pesquisa “As Agricultoras e a
Previdência Social no Sertão de Pernambuco” nos deparamos com jovens
agricultoras que solicitaram o salário-maternidade, entretanto, tiveram os
pedidos indeferidos por conta do critério faixa-etária. Essas jovens atendiam
aos demais requisitos legais exigidos pela Previdência, porém, ficavam fora
do sistema previdenciário porque tinham engravidado antes dos 16 anos.
Ao analisarmos casos de agricultoras que não obtiveram o
salário-maternidade, observamos que comumente era por conta de dois
motivos: a ausência de documentos comprobatórios sobre o trabalho na
agricultura ou a idade. Para este trabalho, selecionamos e analisamos
trechos das entrevistas com as lideranças e também utilizamos informações
de cinco entrevistas com jovens mães agricultoras que não tiveram acesso ao
salário-maternidade.
Este artigo está organizado em três partes. Na primeira,
abordamos a maternidade no campo feminista enfatizando a defesa da
maternidade como um direito de livre escolha da mulher. Logo após,
apresentamos a maternidade sob o prisma da proteção trabalhista e
previdenciária e as lutas das agricultoras pelo salário-maternidade. Por
último, discutimos a ausência da discussão sobre a mudança da idade
mínima para a obtenção do salário-maternidade no movimento sindical rural e
nos movimentos de mulheres trabalhadoras rurais.
Na segunda parte, nos debruçamos sobre as questões
_____________________________________________________________

81
Coordenada por Rosineide Cordeiro, financiada pelo CNPQ - Edital Relações de Gênero, Mulheres e
Feminismo e com a participação de três bolsistas do Programa de Iniciação Cientifica (PIBIC) Mônica
Regina Gomes da Silva, Adiliane Valéria B. F. da Silva e Paula Rafaela Gonçalves Lima . A pesquisa foi
realizada no município de Santa Cruz da Baixa Verde no período de 2006-2008. Agradecemos a
colaboração e apoio de Vanete Almeida, do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Santa Cruz da Baixa
Verde e do Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Sertão Central de Pernambuco.
82
Estas entrevistas foram realizadas por Adiliane Valéria B. F. da Silva (PIBIC).

213
relacionadas a idade, considerando as definições de adolescência e
juventude, que são marcadas por recortes etários e significados igualmente
distintos. Enfocamos os estudos sobre os diferentes significados da gravidez
para os jovens em contextos diferenciados. Ao final dessa parte,
apresentamos analisamos a situação das jovens agricultoras que não
obtiveram o salário-maternidade por conta da idade.
Na terceira parte, direcionamos nossa análise mais
especificamente para as posições das ativistas do movimento de mulheres
trabalhadoras rurais do Sertão Central e do movimento sindical a respeito do
critério idade para o acesso ao salário-maternidade.
2 AS LUTAS DAS AGRICULTORAS PELO SALÁRIO-MATERNIDADE: a
maternidade como um problema?
A maternidade é tema fundamental no debate feminista
(BEAUVOIR, 1980; DAUSTER, 1988; CHODOROW, 1978; SCAVONE,
2001), colocando em questão a biologização do destino social das mulheres
que serve para apoiar justificativas conservadoras para a sua posição
desvantajosa na sociedade. Para muitas feministas é um dos eixos centrais
de explicação das desigualdades entre os sexos.
Por conta de sua influência central na determinação da ausência
das mulheres no mundo público e do enfrentamento do debate acerca da
relação entre natureza e cultura, foi um dos temas que mais
inspirou a politização das questões do âmbito privado que eclodiram no
feminismo ocidental contemporâneo (SCAVONE, 2001). Do ponto de vista
feminista, a maternidade tem significado uma modalidade de controle do
corpo feminino uma vez que as mulheres são sobrecarregadas com os
cuidados e as responsabilidades da vida reprodutiva. Por isso, o feminismo
defende a maternidade como um direito de livre escolha da mulher, sinônimo
da autodeterminação e autocontrole sobre seu corpo e não um destino
obrigatório.
Os debates em torno do tema levantam posicionamentos
diferenciados. Sendo entendida como livre escolha e por conta do caráter
limitante, de controle e sobrecarga com a qual a maternidade é vivida, as lutas
das feministas focaram mais as conquistas para o direito e o acesso á
contracepção e ao aborto, que reforçam o direito a não ter filhos como
expressão da livre escolha e libertação do poder masculino. Estas lutas
reforçam o direito a não ter filhos ou a escolher o momento em que se quer ter
filhos, valorizando a possibilidade de ser mulher sem ser mãe. Uma outra
discussão que se tornou forte a partir dos anos de 1980 focaliza a
_____________________________________________________________

83
Ver Convenio sobre La Protección de la Maternidad, 1919
http://www.ilo.org/ilolex/spanish/convdisp1.htm
84
Ver Convenio sobre La Protección de la Maternidade, nº 103, 1952.
http://www.ilo.org/ilolex/spanish/convdisp1.htm
85
Ver Convenio sobre La Protección de la Maternidad, 183, 2000
http://www.ilo.org/ilolex/spanish/convdisp1.htm

214
maternidade como fonte de poder, um poder que marca diferenças e valoriza
o saber feminino que lhe está associado (SCAVONE, 2001, p. 141). Nessa
discussão, a livre escolha continua sendo o norte, mas a relação entre ser
mulher e ser mãe aparece positivada, fortalecendo a mobilização para a
garantia dos direitos relacionados ao exercício da maternidade.
Com a introdução do conceito de gênero a partir da discussão
feminista, a partir de meados da década de 1980, a maternidade passou a ser
compreendida como um “símbolo construído histórico, cultural e
politicamente, resultado das relações de poder e dominação de um sexo
sobre o outro” (SCAVONE, 2001, p. 143). O debate em torno dos
posicionamentos feministas foi importante para as discussões dentro das
ciências sociais, pois a maternidade passou a ser analisada como
construção sócio-cultural e portadora de várias facetas em
contextos distintos, e não pela afirmação ou negação de um handicap natural
da mulher. Atualmente, tanto nas leituras feministas e quanto nas ciências
sociais, a maternidade vem sendo abordada a partir das várias simbologias
que comporta: a do ideal feminino, da opressão, do poder etc, de acordo com
o contexto em que se apresenta.
Esta discussão das abordagens da maternidade está
vinculada aos debates a ações dos movimentos sociais, especialmente o de
mulheres, em torno da promoção de direitos, entre eles os trabalhistas e a
seguridade social. A proteção á maternidade para as mulheres trabalhadoras
ainda não completou cem anos. Em 1919, no ano da sua fundação, a OIT
adotou a Convenção sobre a proteção á maternidade que previa, entre outros
aspectos, o afastamento do trabalho após o parto, sem prejuízo da
remuneração, por um período de seis semanas. Em 1952, há uma revisão e
é adotada uma nova Convenção sobre a Proteção da Maternidade
(Convenção nº 103). Dentre as mudanças, destacamos dois itens: a definição
do trabalho agrícola, ausente na Convenção de 1919, e a licença por um
período de doze semanas, dentre estas, seis obrigatoriamente após o parto.
Em 2000, a OIT ratificou uma nova Convenção (nº 183) que ampliou os
dispositivos da convenção passada: licença pelo menos de catorze semanas
e a garantia do retorno ao mesmo posto de trabalho ou equivalente com a
mesma remuneração ao final da licença maternidade.
No que se refere ás agricultoras que trabalham individualmente
ou em regime familiar na agricultura o tema é bastante recente. Nas
Convenções da OIT acima referidas não há menção explicita a qualquer tipo
de trabalho na agricultura que esteja fora das relações de assalariamento. No
Brasil, no inicio da década de 1960, no governo de João Goulart, a
proteção á maternidade para as produtoras rurais e assalariadas rurais
aparece no Estatuto do Trabalhador Rural. Para as assalariadas, há um
capitulo sobre o trabalho da mulher que prevê a proteção á maternidade antes
e depois do parto. As agricultoras familiares ou que produzem
215
individualmente são invisibilizadas como trabalhadoras e estão presentes no
Estatuto como dependentes do marido (artigo 162) para fins de benefícios
previdenciários. No artigo sobre os benefícios, há um item sobre a assistência
á maternidade, entretanto, não é possível identificar que tipo de assistência
era prestada. Além disso, as agricultoras eram excluídas da aposentadoria e
do auxilio doença.
Em 1971, foi criado o Programa de Assistência ao Trabalhador
Rural –PRORURAL que era executado pelo Fundo de Assistência ao
Trabalhador Rural – FUNRURAL. O PRORURAL abrangia benefícios
previdenciários, assistência á saúde e serviços sociais, entretanto, não havia
nenhuma referencia á maternidade.
Há registros que nos anos de 1970 as trabalhadoras rurais já
reivindicavam do FUNRURAL o auxilio gestante correspondente a seis
semanas antes e seis semanas após o parto. Entretanto, a discussão sobre a
proteção á maternidade para as agricultoras só alcançou visibilidade política
no Brasil no inicio da década de 1980 com o surgimento de grupos de
mulheres trabalhadoras rurais em várias regiões do país. Esse
tema apareceu no debate sobre o direito à Previdência que se tornou um dos
principais eixos de lutas das trabalhadoras rurais.
Em meados dos anos de 1980 foi notória a articulação política dos
diferentes segmentos do movimento de mulheres. Nos encontros nacionais e
regionais que reuniam feministas, sindicalistas, mulheres rurais e urbanas os
temas do direito á terra, proteção á maternidade e a extensão dos direitos
trabalhistas e previdenciários para as trabalhadoras do campo passaram a
ser discutidos pelo conjunto do movimento de mulheres. Durante o processo
constituinte estas reivindicações estiveram presentes nas diferentes
proposições aos constituintes, elaboradas pelas trabalhadoras rurais e pelos
diferentes segmentos do movimento de mulheres, dos movimentos
populares e do movimento sindical rural.
Entre as conquistas mais importantes alcançadas na
_____________________________________________________________

86
O artigo 2 da Convenção da OIT nº 183 assegura que a referida Convenção deverá ser aplicada a todas
as mulheres empregadas incluído as que desempenham formas atípicas de trabalho dependente.
Provavelmente há aqui a intenção de abranger as diferentes modalidades do trabalho das mulheres em
regime de produção familiar, comunitária, produção individual para o autoconsumo ou trabalho domestico
Na nossa opinião, a classificação de trabalho atípico e dependente é problemática e não contempla o
debate feminista sobre o trabalho das mulheres nas esferas produtivas e reprodutivas.
87
Para Kaizô Iwakami Beltrão et. al. (2000) a primeira medida de inclusão do trabalhador rural na
Previdência Social ocorreu em 1945, quando Getúlio Vargas assinou a Lei Orgânica dos Serviços Sociais
(Decreto-Lei 7.526, de 7 de maio de 1945) criando o Instituto de Serviços Sociais do Brasil (ISSB).
Segundo Beltrão et. al. (2000), em 1955, foi criado, Serviço Social Rural, destinado a prestação de
assistência aos segmentos rurais e que foi custeado e pelas empresas industriais urbanas. Suas
atividades tiveram início oficialmente em 1957, entretanto partir de 1961 é que passaram a ser melhor
desenvolvidas. Em 1962, o Serviço Social Rural passou a integrar a Superintendência de Política Agrária
(Supra).
88
Ver CONTAG, 2003
89
Ver CONTAG, 2003

216
Constituição de 1988 para as trabalhadoras rurais estão o direito ao título da
terra independente do estado civil, extensão dos mesmos direitos trabalhistas
dos segmentos urbanos (as) para (s)as trabalhadores (s) do campo e o direito
á Previdência. Dentre os benefícios previdenciários, é importante destacar o
acesso à aposentadoria por idade (os homens a partir dos 60 anos e as
mulheres com 55 anos) independentemente de serem chefes de família ou
não, e em igualdade de condições com o cônjuge; e o salário-maternidade. A
Constituição estabeleceu o piso de um salário mínimo para todos os
benefícios previdenciários e proporcionou a inclusão de agricultores (as),
garimpeiros e pescadores artesanais no sistema previdenciário.
Após a Constituinte, a luta das trabalhadoras rurais foi pela
regulamentação dos direitos conquistados. Em 1992 foram regulamentados
os dispositivos constitucionais relativos à aposentadoria e outros benefícios
sociais. Os (as) agricultores que trabalham de forma autônoma
individualmente ou em regime de economia familiar foram enquadrados (as)
como segurados (as) especiais para a Previdência Social. São também
considerados (as) segurados (as) especiais o cônjuge ou
companheiro, bem como filho maior de 16 (dezesseis) anos de idade, e que,
comprovadamente, trabalhem com o grupo familiar respectivo.
No que se refere ao salário-maternidade, a luta foi bastante árdua
e durou cinco anos até a aprovação do Projeto. Em 1989 foi apresentado o
primeiro Projeto de Lei para regulamentar o salário maternidade, elaborado
pelo então Deputado Federal Antônio Marangon (PT/RS). Entretanto, em
1991, o presidente Fernando Collor vetou o salário- maternidade na Lei 8.213
(que dispõe sobre a Previdência Social). A partir daí a Articulação de
Instancias de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Cinco Estados do Sul
(AIMTR-Sul) passou a mobilizar mulheres de vários regiões do pais para
derrubar o veto do Presidente Collor no Congresso Nacional. Em 1993, uma
comissão de trabalhadoras rurais foi a Brasília e descobriu que havia vários
projetos tratando do mesmo assunto na Câmara Federal. As propostas foram
transformadas num único projeto, sob a liderança da Deputada Luci Choinaki
(PT/SC), e tramitou nas comissões da Câmara Federal. Entretanto, ficou
parado na Comissão de Seguridade Social e Família, por conta
do Ministro da Previdência, Antônio Britto, que não concordava com a
proposta. O Ministro alegava que a Previdência não tinha recursos para o
pagamento do beneficio.
Começa um então novo ciclo nacional de mobilização das
trabalhadoras rurais: viagens das lideranças para diferentes estados do
Brasil para mobilizar as trabalhadoras; cartas, telegramas e fax para o
Ministro Antonio Brito, o relator do Projeto e demais parlamentares;
caravanas ao distrito federal com o objetivo de pressionar os parlamentares;
e a organização de uma equipe de mulheres em Brasília para fazer as
negociações políticas com os deputados e acompanhar a votação no
Congresso.
217
Em agosto de 1993, apesar da posição contrária do Ministro, a
Câmara de Deputados aprovou um requerimento para votação do Projeto do
Salário Maternidade para agricultoras em regime de urgência urgentíssima.
O Projeto foi aprovado, nas palavras do Movimento de Mulheres
Camponesas-MMC, “graças a mobilização das mulheres junto ao Presidente
da Câmara e aos líderes partidários, além da ocupação das galerias e da
panfletagem feita no Congresso, garantiu a aprovação do Projeto que foi
enviado ao Senado” (MMM, 2004, p. 14).
No final de 1993, as mulheres conseguiram uma grande vitória: o
Presidente Itamar Franco editou uma medida provisória alterando alguns
artigos da Lei 8.213 que contrariavam o Projeto do Salário Maternidade. No
inicio de 1994, o Projeto retornou à Câmara dos Deputados com algumas
emendas feitas pelo Senado. No dia 25 de março de 1994, finalmente, o
Presidente da República sancionou a lei que criou o Salário Maternidade para
a trabalhadoras rurais (LEI No 8.861, DE 25 DE MARÇO DE 1994). A
regulamentação junto a Previdência ocorreu no mesmo ano,
porém a autorização do pagamento do benefício só ocorreu em 1997.
Para terem acesso ao beneficio as mulheres têm de apresentar
documentos que comprovem o trabalho na agricultura. São documentos
pessoais e documentos que atestem o exercício de atividades agropecuárias
de forma individual ou em regime de produção familiar. Além disso, a
agricultora para usufruir do beneficio tem que comprovar que trabalhou na
agricultura por no mínimo 10 (dez) meses antes do parto.
_____________________________________________________________

90
Ver BRASIL, 1987
91
A “Campanha constituinte sem mulher fica pela metade” promovida pelo Conselho Nacional dos Direitos
da Mulher – CNDM conseguiu mobilizar vários grupos e movimentos para inscrever na nova Constituição
as reivindicações das mulheres. Entre outros documentos, ver a Carta das Mulheres aos Constituintes
de 1987 que contém as principais demandas do movimento de mulheres para a assembléia constituinte.
Ver também as conclusões do I Encontro Nacional A Mulher e as Leis Trabalhistas, promovido em 1987,
pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher – CNDM, com o apoio dos sindicatos, das federações e
confederações de trabalhadores. O documento foi elaborado em forma de proposição aos constituintes e
contém uma sessão referente às trabalhadoras rurais. Um outro documento importante é a 'Uma carta aos
constituintes', elaborada pelas trabalhadoras rurais no 1º Seminário Nacional da Trabalhadora Rural, em
julho de 1988.
92
Na Lei 8.213 de 24 de julho que “ dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras
providências” os (as) agricultores que produzem individualmente ou em regime de produção familiar foram
enquadrados como segurados especiais da Previdência Social . Com a Lei nº 11.718, de 2008, novas
categorias rurais foram incorporadas e algumas reivindicações dos trabalhadores rurais foram incluídas na
legislação. Anita Brumer (2000) apresenta três diferenças do sistema previdenciário urbano para o rural:a
primeira é que, diferentes dos setores assalariados a contribuição do segurado especial não é sobre os
salários ou ganhos recebidos. A forma de contribuição consiste numa percentagem sobre o valor da
produção comercializada e o recolhimento fica a cargo do comprador dos produtos agropecuários ou
extrativistas. A segunda diferença é a idade-limite, que é de 55 anos para as mulheres e 60 nos para os
homens. Para os trabalhadores urbanos é de 60 e 65 respectivamente. Por último, diferentemente dos
urbanos que tem que garantir um tempo mínimo de contribuição, os segurados especiais têm que
comprovar o tempo de atividade de trabalho por meio de inúmeros documentos sobre a propriedade ou
uso da terra, documentos pessoais e outros que explicitem a atividade rural pelo tempo requerido pela
legislação.

218
O beneficio do salário-maternidade é a concessão de 1 (um)
salário mínimo, durante 120 (cento e vinte) dias. A segurada poderá requerer
o salário-maternidade 28 (vinte e oito) dias antes do parto e até 90 (noventa)
dias após o nascimento da criança. Como a condição de segurado especial é
a partir dos 16 anos e o tempo mínimo de carência é de 10 (dez meses), a
agricultora para requerer o beneficio tem que ter mais de 16 anos e dez
meses, sendo o parto o evento que define a contagem do tempo requerido
pela legislação.
Assim, o gozo do beneficio pelas trabalhadoras rurais tem apenas
11 anos de existência. Entretanto, após a conquista desse direito
praticamente o tema desapareceu da agenda política do movimento de
mulheres trabalhadoras rurais. Por exemplo, se analisarmos as
reivindicações das três edições (2000; 2003 e 2007) da Marcha das
Margaridas perceberemos que em todas elas há reivindicações
previdenciárias. Entretanto, o tema do salário-maternidade
apareceu na primeira marcha em 2000 e na terceira em 2007. Nesta ultima,
há apenas uma reivindicação sobre o tema, que exige o pagamento do
beneficio corrigido independente da data do requerimento.
Um outro exemplo, é o Movimento de Mulheres Camponesas –
MMC. Sabemos que muitas mulheres do MMC participaram ativamente das
lutas e mobilizações pelo salário-maternidade nos anos de 1990 e há no site
do Movimento um link especifico sobre a previdência social com vários
documentos que mostram a sua posição política e as lutas por direitos
previdenciários. Entretanto, nos documentos disponíveis sobre a Previdência
Social não há nenhuma menção ao salário-maternidade.
O último exemplo que poderemos apontar é a pesquisa que
Rosineide Cordeiro (2006) coordenou sobre as reivindicações do movimento
sindical rural por salário-maternidade. Foram analisadas as pautas dos
congressos da Confederação dos Trabalhadores da Agricultura - CONTAG e
do Grito da Terra Brasil no período de 1991 a 2005. Há seis reivindicações
que tratam do salário-maternidade, dentre elas, uma sobre a ratificação da
Convenção 103 da OIT. Somente uma das reivindicações exige a garantia do
salário-maternidade ás mulheres que se tornam mães aos 16 anos,
questionando os 10 meses de carência que são requeridos de acordo com as
normas vigentes.
Contudo, o que é mais surpreendente nos três exemplos
apresentados acima é a não existência de reivindicações pela mudança da
idade mínima para a concessão do beneficio. Sabemos que a Constituição
_____________________________________________________________

93
As informações apresentadas a seguir estão baseadas na cartilha Nenhuma Trabalhadora Rural Sem
Documentos (2004) do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC). Também foram utilizadas
correspondências da Articulação de Instancias de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Cinco Estados do
Sul (AIMTR-Sul) enviada para as mulheres.

219
Federal (art. 7º. XVIII) proíbe o trabalho para menores de 16 anos, salvo na
condição de aprendiz, a partir do 14 anos. Entretanto, o próprio Estatuto da
Criança e do Adolescente –ECA (Art. 65) estabelece que ao aprendiz, maior
de quatorze anos, são assegurados os direitos trabalhistas e
previdenciários.
Temos conhecimento que as integrantes das diferentes
expressões do movimento de mulheres rurais e do movimento sindical rural
desenvolvem várias ações nos sítios, comunidades e vilas rurais para
garantir o acesso das mulheres ao salário-maternidade: acompanham as
mulheres por ocasião da solicitação do beneficio; fazem reuniões e
socializam informações; pressionam para que as mulheres tenham
documentos civis e de propriedade da terra; e participam de lutas mais gerais
por mudanças na Previdência Social, entretanto a quase completa ausência
de reivindicações de mudança pela idade mínima não favorece a ampliação
do acesso ao benefício.
As jovens mães agricultoras são penalizadas de duas formas: as
que têm 14 anos não são consideradas aprendizes, mesmo quando
trabalham nessa condição; segundo, ter 16 anos completos não é condição
suficiente para ter acesso ao beneficio. É preciso adicionar o tempo de
carência de 10 meses, ou seja, a concessão do salário-maternidade de fato é
para quem tem mais de 16 anos e 10 meses.
As lutas das trabalhadoras rurais, nas décadas de 80 e 90 do
século passado, expressam a ênfase na proteção à maternidade como um
direito, denunciando a falta de assistência dada a estas mulheres à gravidez,
parto e primeiros meses de cuidados com o bebê, fortalecendo a luta por
direitos reprodutivos para mulheres de diferentes posições sociais no Brasil. A
discussão se dá em torno da garantia do exercício da maternidade,
evidenciando a carência de recursos a que as mulheres mais pobres estão
submetidas e visibiliza a maternidade como um direito reprodutivo pelo qual
ainda é necessário muita luta, especialmente no que tange às mulheres
jovens e, mais ainda, aquelas que são agricultoras familiares. O debate
sobre a livre escolha não parece reforçar o discurso e as pautas nacionais das
agricultoras.
A aquisição deste direito foi um avanço, entretanto não modificou
substancialmente a divisão sexual do trabalho e a desigualdade de gênero na
área rural. Some-se a isto ao pouco questionamento do estereótipo da
mulher-mãe nas bandeiras dos movimentos rurais. É preciso,
portanto, aliar a luta pelo salário maternidade a uma discussão sobre o
significado da maternidade para a jovem agricultora familiar e a análise das
possibilidades de empoderamento que esta discussão pode suscitar. Dada a
amplitude desta discussão, que não pretendemos esgotar, e a necessidade
de que ela ocorra em fóruns ampliados de debate, iremos refletir sobre uma
das questões que consideramos importante: a idade em que a gravidez
ocorre.
220
1 QUAL A IDADE PARA ENGRAVIDAR?
Como vimos, é surpreendente a ausência de debate
político nos movimentos de mulheres trabalhadoras rurais acerca da idade
mínima em que se pode obter este benefício, considerando a grande
mobilização sobre o direito ao salário maternidade, realizada por estes
mesmos movimentos em décadas passadas.
A discussão política sobre o direto ao salário-maternidade e a
idade em que se adquire este direito, incorpora padrões da legislação
trabalhista e da previdência que parecem não considerar a vida das mulheres
de carne e osso, que engravidam em diferentes idades e em contextos
específicos.
A literatura sobre saúde sexual e saúde reprodutiva vem
abordando as questões relacionadas a esta faixa de idade a partir de duas
definições: adolescência e juventude que são marcadas por recortes etários
distintos e possuem significados igualmente distintos. A adolescência
abrange pessoas entre 10 e 20 anos e a juventude, pessoas entre 15 e 24
anos. O sentido etário, mais ligado ao termo adolescência, remete ao plano
individual e possui significados negativos, como dependência,
irresponsabilidade, dificuldades emocionais e impulsividade. O
sentido geracional, mais ligado ao termo juventude, remete a um significado
mais coletivo, relacionado ao segmento populacional de uma sociedade, com
significados positivados, como independência, criatividade e
responsabilidade (VILLELA; DORETO, 2006).
Assim, a própria literatura parece espelhar os desencontros da
sociedade, em que estamos sempre preocupados em defender os direitos
das jovens, pela ausência de serviços e instrumentos públicos que
possibilitem o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos de modo
autônomo, ou em justificar porque os direitos sexuais e reprodutivos das
adolescentes devem ser observados de acordo com determinadas condições
que impõem critérios limitantes ao exercício de quaisquer destes direitos.
De fato, os dados do DATASUS/MS de 1999, evidenciam que o
índice de natalidade e de fecundidade geral no país está em declínio,
_____________________________________________________________

94
Os documentos pessoais são: número de Identificação do Trabalhador – NIT (PIS/PASEP) ou número de
inscrição do Contribuinte Individual/Trabalhador Rural; atestado Médico original ou original e cópia da
Certidão de Nascimento da criança; documento de Identificação (Carteira de Identidade, Carteira de
Trabalho e Previdência Social - CTPS ou outro qualquer) da segurada; cópia e original da Certidão de
Casamento, se for o caso, quando houver divergência no nome da requerente; Cadastro de Pessoa Física
- CPF da segurada. Para outras informações ver
www.previdenciasocial.gov.br/pg_secundarias/beneficios_10.asp.
95
Os documentos sobre o exercício da atividade rural exigidos pela Previdência podem ser caracterizados
em três tipos: 1.Propriedade ou posse da terra: Comprovante de Cadastro do Instituto Territorial (ITR), ou
Certificado de Cadastro do Imóvel Rural (CCIR), ou Autorização de Ocupação Temporária fornecida pelo
do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), ou Comprovante de Cadastro do INCRA;
2. Uso da terra: contrato de arrendamento, parceria ou comodato rural registrado ou com reconhecida firma
em cartório à época do exercício da atividade; 3. Comercialização de produtos: Blocos de Notas do
produtor rural e/ou Notas Fiscais de venda realizada por produtor rural.

221
enquanto na população jovem está aumentando. Há uma tendência
crescente dessas taxas nos três grupos etários considerados (10–14, 15–19
e 20–24). Essa tendência é bem mais marcante justamente nos grupos de
menor idade, de 10 a 14 e de 15 a 19 anos, enquanto nas jovens de 20 a 24
anos o aumento verificado foi menor, por isso tem chamado a atenção dos
pesquisadores e profissionais de saúde, ampliando o interesse por estudos
sobre a gravidez na adolescência.
A literatura de inspiração biomédica e demográfica (BEMFAM,
1999a e b) preocupa-se muito com a 'precocidade' da primeira relação sexual
ou o menor grau de escolaridade, pois eles diminuem a chance de uso dos
contraceptivos e levam a existência da gravidez na adolescência, também
chamada de gravidez precoce. É curioso como a luta por um direito, como a
luta feminista por direito reprodutivo à contracepção, que abre o debate sobre
a vida privada na sociedade e consegue inspirar políticas de saúde, pode
sofrer uma leitura tão peculiar por parte do saber biomédico de modo a
reforçar o vínculo entre contracepção e controle e, também, entre
maternidade e biologia (a velha afirmação de um handicap natural!).
Na última década, entretanto, vários pesquisadores têm se
dedicado a compreender a gravidez na adolescência a partir do
reconhecimento da pluralidade de adolescências e de percursos para a
gravidez, da particularidade das concepções culturalmente oferecidas sobre
o fenômeno, dos determinantes sociais e econômicos, dentre eles o sistema
de gênero (CABRAL, 2002 e 2003; LONGO, 2002; CASTRO, ABRAMOWAY
e SILVA, 2004; ALMEIDA, et al, 2003; ALMEIDA, 2002; AQUINO et al, 2003;
HEILBORN; GRAVAD, 2005; HEILBORN et al, 2006; ROHDEN; GRAVAD,
2005; PIROTTA, 2003; SCOTT, QUADROS; LONGHI, 2002).
O trabalho de Almeida (2002) evidencia que as repercussões da
gravidez na adolescência na vida escolar e profissional dos (as) jovens não
são tão devastadoras quanto parecem. Moças que haviam realizado o pré-
natal em unidades básicas de saúde de Botucatu (SP), não se sentiram
prejudicadas em sua vida escolar, uma vez que a gravidez só aparece como
um motivo de abandono definitivo da escola quando esta não faz mais parte
do projeto de vida das adolescentes, não sendo considerada um empecilho à
continuidade dos estudos. Também não houve modificação do vínculo
empregatício por conta da gestação, para a maioria delas (ALMEIDA, 2002,
p. 202).
A comparação entre jovens urbanos e rurais (QUADROS, 2007)
reforçou a idéia de que, embora a necessidade de perceber a pluralidade de
adolescências ou juventudes seja consenso, no contexto de diferenças que é
o Brasil contemporâneo, há poucas pesquisas entre populações específicas
considerando-se os recortes de raças/etnias, orientações sexuais, classes,
religiões, regiões, dentre outros demarcadores. Vale ressaltar que a maioria
dos estudos foi realizada entre populações urbanas, poucos focaram a
constituição da sexualidade entre grupos rurais ou do interior do país
222
(ALVES, 2003; SILVA, 2002; RIBEIRO, 2003; QUADROS, 2007).
Marion Quadros (2007), em um estudo comparativo entre jovens
urbanos e rurais evidencia que desigualdades de gênero e entre
gerações são fundamentais para entender o comportamento dos/das jovens
perante a gravidez e a contracepção. Por exemplo, o vínculo entre ser moça
e virgem está presente nas duas localidades de modo diferenciado. Na área
rural, a virgindade da moça é mais valorizada e sua sexualidade é mais
vigiada. No bairro da periferia urbana investigado, essas identificações
resvalam para outras, como ter mais cuidado com a saúde e ceder mais nas
relações de namoro. Tanto na área urbana quanto na rural há uma
vinculação entre ser uma moça inexperiente nos prazeres do sexo e ser uma
moça 'boa para casar'.
A gravidez na adolescência é uma das temáticas que possuem
um recorte de gênero e que merece distinções quando tratamos de juventude
rural. Segundo Eliza Guaraná Castro (2006), apesar de na área rural o
controle ser maior sobre as mulheres, a gravidez antes do casamento é
comum nesse ambiente. Ao estudar a construção das identidades dos(as)
jovens de origem rural, Vanda Aparecida Silva (2006) destacou que a
sexualidade é marcada e demarcada pelo contexto cultural. A gravidez da
jovem solteira e o casamento podem ser formas de libertação da autoridade
paterna. Para as moças da área rural, uma gravidez representa uma
estratégia pré-matrimonial, seja a realização do desejo da maternidade, seja
outra forma de inserção social.
Nos estudos sobre a juventude rural, a idade está socialmente
circunscrita, tanto quanto a valorização da maternidade. A gravidez aparece
como um marcador de passagem para a vida adulta, no qual a jovem se
reconhece e é reconhecida como adulta a partir da realização da
maternidade, o que torna a situação paradoxal, uma vez que a gravidez e a
maternidade servem como formas de controle do corpo e da sexualidade das
mulheres. Controle e vigilância, reconhecimento e libertação do julgo da
família, podem ser identificados como dois lados de uma mesma moeda.
A revisão da literatura sobre jovens, saúde sexual e reprodutiva
sugere, portanto, a consideração dos contextos da atividade
sexual (práticas) em interface com as identidades socioculturais variadas e
dos significados que remetam à saúde sexual e reprodutiva de jovens, uma
vez que a gravidez de uma jovem de 15, 16 ou 17 anos, pode estar
totalmente condizente com as expectativas que ela própria e a comunidade
em que vive esperam como realização para estas idades (BUTTO E SILVA,
1999; SILVA, 2006; SCOTT, 2001 ; ALMEIDA, 2002). Isso reforça o nosso
questionamento sobre o critério idade mínima para se adquirir o benefício,
uma vez que a gravidez pode ocorrer antes dos 16 anos e estar exatamente
simbolizando a passagem para a vida adulta.
Por outro lado, quando causa expectativas negativas na própria
223
jovem, na família ou na comunidade, a gravidez pode ocorrer numa situação
em que ela fica mais vulnerável pela falta de aceitação familiar ou do próprio
parceiro, o que leva a maior necessidade de assistência e benefícios públicos
que possibilitem a garantia dos diretos sexuais e reprodutivos.
3 AS JOVENS MÃES AGRICULTORAS DO SERTÃO DE PERNAMBUCO
Afinal, o que dizem as próprias jovens? Para conhecer um pouco
mais da situação das jovens mães agricultoras familiares, foram realizadas
cinco entrevistas no município de Santa Cruz da Baixa Verde . As
entrevistadas, à época que tiveram o primeiro filho, encontravam-se na faixa
etária de 13 a 15 anos de idade, motivo pelo qual foram informadas da
impossibilidade de solicitarem o benefício.
Das cinco jovens, apenas uma está separada do pai da criança, e
mesmo assim não retornou à casa dos pais, (seus vizinhos de sítio),
residindo só com o filho. As outras quatro residem com os filhos e o
companheiro, e apenas uma afirmou que saiu da casa dos pais antes da
primeira gravidez.
No que se refere aos estudos, todas abandonaram as aulas
durante o início da primeira gestação e apenas uma retomou. Quanto ao
trabalho, apontamos que a invisibilização do trabalho feminino na área rural
muitas vezes impede que as próprias mulheres se reconheçam
como agricultoras, mesmo que tenham trabalhado na roça desde criança. Ao
perguntarmos se trabalhavam, algumas jovens responderam que não: “só
de roça”. Uma chegou a dizer que ia à roça de vez em quando e que criava
galinhas em casa. Provavelmente por não considerarem como trabalho as
inúmeras atividades produtivas realizadas, as jovens rurais têm dificuldades
de se reconhecerem como portadoras de direitos, conseqüentemente, não
demandam coletivamente mudanças na legislação ou na agenda do
movimento sindical rural e do movimento de mulheres.
A respeito da gravidez, as jovens afirmaram que não planejaram
o primeiro filho. Todas relataram que, ao descobrir a gravidez, ficaram felizes,
mesmo que esse sentimento viesse acompanhado de um pouco de susto.
Sobre a reação do companheiro, a resposta ocorreu sempre no sentido de
aceitação da criança. A reação dos pais das adolescentes foi relatada como
tranqüila, e a tentativa da família é que o casal fique junto e não se cogite a
idéia de aborto. Esses dados apontam para a idéia da gravidez como
passagem para a vida adulta, que não parece se constituir num problema
nem para as jovens nem para as suas famílias. O problema não está na idade
_____________________________________________________________

96
Sabemos que algumas jovens com apoio do sindicato de trabalhadores rurais ou do movimento de
mulheres têm entrado com processo judicial para garantir o acesso ao beneficio aos 14 anos.
Infelizmente, são experiências isoladas que não têm repercutido na ação política mais ampla
97
Vale salientar, que não estamos considerando nesta discussão a gravidez que é resultante de violência
sexual. Este tipo de violência atinge mulheres com diferentes idades, é cometida por estranhos,
conhecidos e parentes e ocorre nas áreas rurais e urbanas

224
em que a gravidez acontece, mas sim quando as jovens que engravidam não
têm um companheiro que assuma a união conjugal e a paternidade.
Nenhuma entrevistada referiu o uso de contraceptivos antes da
primeira gestação, e apenas uma afirmou que atualmente não utiliza nenhum
método para não engravidar. Algumas disseram que, após engravidar,
receberam de médicos e enfermeiros orientação sobre como evitar filhos e
doenças sexualmente transmissíveis. Só uma alegou que recebeu
informação na escola, mas mesmo assim disse que não entendeu muito bem
na época do que se tratava. Estes dados realçam a falta de assistência à
saude sexual das jovens, uma dificuldade comum para esta faixa etária, seja
no sistema de saúde, na escola ou na família (QUADROS, 2007).
As jovens relataram que durante todas as gestações foram
acompanhadas no atendimento pré-natal, algumas no PSF da Vila Jatiúca,
outras em Serra Talhada, evidenciando o viés materno-infantil da assistência
básica em saúde (SCOTT; QUADROS, 2008). Além dos enjôos nos primeiros
meses em algumas gestações, a dificuldade apresentada durante a gravidez
foi a paralisação dos estudos, que pode ser mais um indicador da passagem
para a vida adulta do que um sinal de prejuízo para as jovens grávidas.
Também há que se considerar o ensino oferecido nas escolas, muitas vezes
desestimulante, que pode não oferecer atrativos suficientes para que as
jovens decidam continuar estudando.
Todas as entrevistadas chegaram a ir ao sindicato na tentativa de
requerer o salário-maternidade. Apenas uma delas teve gastos com xerox de
toda a documentação, mas durante a abertura do processo foi informada de
que não podia solicitar o benefício por conta da idade. Uma das jovens alegou
que um funcionário do INSS (mencionado por mais de uma entrevistada) não
deferiu o salário-maternidade na sua segunda gravidez, mesmo ela tendo
mais de dezesseis anos. O indeferimento teria sido motivado por ela não ter
“respondido direito” às perguntas feitas por ele.
È um momento de muita tensão para as agricultoras quando elas
vão ao INSS formalizar a solicitação do beneficio. É quando o(a)
funcionário(a) do órgão preenche os dados da agricultora, recebe os
documentos e averigua se eles estão de acordo com as exigências legais. Há
uma série de perguntas sobre o trabalho, o que plantam, como e quanto
plantam e quem são os(as) vizinhos(as). As agricultoras têm medo de não
saber responder aos questionamentos e se sentem intimadas e
constrangidas com as perguntas. Parece que há um ambiente pouco
acolhedor, hostil e que causa medo às mulheres. Elas sentem que alguns
funcionários fazem perguntas à procura de alguma incoerência ou
contradição entre o que foi apresentado nos documentos e a entrevista. Além
disso, geralmente, os (as) agricultores(as) não conseguem ter o
domínio das exigências legais para ter acesso à Previdência. As lideranças
sindicais possuem maior número de informações e procuram socializá-las
225
nas reuniões, nas assembléias e nos atendimentos. Porém, sempre há
incertezas e dúvidas acerca dos procedimentos legais.
As jovens confirmaram que possuíam alguns documentos
comprovando a atividade rural durante a primeira gravidez, a saber:
comprovantes de cursos destinados a trabalhadores(as) rurais, título,
documento do sindicato etc. Disseram ter ficado abatidas ao receberem a
notícia de que não teriam acesso ao salário-maternidade . Alegaram que o
benefício serviria para a compra de terra, construção da casa, além de
complementar os custos com comida e produtos para o bebê.
Os depoimentos das jovens mães mostram que o direito á
proteção a maternidade não abrange todas as mulheres que trabalham e
tampouco incorpora as necessidades especificas das jovens agricultoras. O
critério idade alija essas jovens de um direito que é usufruído pelas demais
agricultoras e deixa exclusivamente nas mãos das jovens e de suas famílias a
assistência á maternidade.
4 A POSIÇÃO DAS ATIVISTAS DO MOVIMENTO DE MULHERES E DO
MOVIMENTO SINDICAL
Como não encontramos forte presença das reivindicações do
salário- maternidade nas lutas e pautas atuais dos movimentos das mulheres
trabalhadoras rurais, resolvemos ressaltar as opiniões de ativistas a esse
respeito.
As ativistas apresentam diversos posicionamentos sobre o não-
acesso ao salário-maternidade por parte das jovens que engravidam antes
do tempo previsto legalmente. Ao contrário de um pensamento único ou
homogêneo sobre o assunto, as posições ora divergem, ora encontram um
eixo comum; algumas têm um cunho progressista, outras possuem base
bastante legalista. Nesta sessão direcionamos a análise para as três
posições que foram mais recorrentes nas entrevistas com as
ativistas do movimento sindical rural e do Movimento de Mulheres
Trabalhadoras Rurais do Sertão de Pernambuco.
As ativistas admitem que o critério idade impede o acesso dessas
jovens ao salário-maternidade, mesmo que sejam agricultoras e tenham a
posse de todos os documentos exigidos:
A menina tinha prova de 9 meses e 28 dias antes do nascimento da
criança. Por causa de dois dias o servidor negou o benefício, e ela tinha
antes sim uma prova de indício que era a matrícula na escola. Então
comprovava que ela estava na roça e ele não aceitou e indeferiu o
benefício (...) se ela não levar uma prova de 10 meses e 1 dia é indeferido,
isso é um absurdo pra gente (Cândida ).
E sobre a idade a gente sabe que pra ter direito, até hoje, a mãe tem que
ter completo 16 anos, 10 meses e 1 dia para ter direito ao benefício do
salário-maternidade. Quem não tem essa idade não tem acesso. Tem
caso que a gente tem que contar data de nascimento da mãe, data de

226
nascimento da criança para verificar se realmente a mãe tinha 16 anos e
10 meses e um dia pra ter acesso. Às vezes por causa de uma hora pode
até ter ou não ter direito (Verônica).
Diferentemente das outras mães agricultoras, as jovens têm
de lidar com a contagem do tempo de forma mais minuciosa: a própria idade,
dia e hora do nascimento do bebê se tornam fundamentais nesse cálculo.
Como já falamos anteriormente, identificamos nas entrevistas
três posições a respeito do acesso das jovens ao salário- maternidade: a
primeira faz uma relação entre o índice de mulheres grávidas e o salário-
maternidade. Aparece o argumento de que, se as menores de 16 tiverem
acesso ao benefício, vai aumentar o número de meninas grávidas porque
elas vão engravidar para ter o salário-maternidade. Aqui a gravidez é algo
indesejável:
se abrir espaço para adolescentes menores de 16 anos, de 18 anos (..) 16
né?... terem o acesso ao salário-maternidade, aí vai aumentar cada vez
mais, sei lá, vai aumentar aquela gravidez indesejada porque muitas
adolescentes elas pensam no dinheiro. Elas não pensam como ali vão
criar aquela criança. Eu não sou a favor em de ter (assim) essa idade para
poder ter o acesso ao salário-maternidade (Mônica).
Elas parecem esquecer que as próprias avós e bisavós
engravidaram muito antes dessa faixa etária. Ser mãe antes dos 16 anos
aparece como sinal de falta de responsabilidade presente tanto no ato de
engravidar quanto nos cuidados com os bebês.Esta posição está próxima a
daqueles que classificam esta idade como adolescência e potencializam a
noção de irresponsabilidade com a de oportunismo. O atendimento básico
do Sistema Único de Saúde, por meio do Programa de Saúde da Família, por
exemplo, colabora para a institucionalização desta visão na medida em que
classifica como gravidez de risco aquela de toda e qualquer adolescente,
mesmo que esta apresente perfeita condição de saúde. É certo que esta
visão institucional parte do argumento da “falta de maturação do organismo
da adolescente”, mas o efeito deste argumento invade a vida das
adolescentes como um todo, e não apenas o seu organismo biológico,
acabando por corroborar a visão de que a adolescente não está preparada
para assumir esta responsabilidade. Este argumento se fortalece na medida
em que, de um lado, a gravidez de risco recebe um atendimento especial e a
própria maneira de identificá-las como grávidas de risco invade as
classificações comunitárias a respeito da gravidez e, de outro, porque vem
acompanhada da visão, geralmente mais médica do que comunitária, de que
a adolescente, ao engravidar , estragou sua vida e seu futuro ( Almeida, 2002;
Scott, Quadros e Longhi, 2002; Quadros, 2007).
 a segunda posição lembra que, de acordo com a legislação, crianças e
adolescentes não podem trabalhar. Entretanto, na área rural as jovens
trabalham e casam com pouca idade:
227
Essa é uma questão muito complicada, porque se a gente vai pela lei que
fala que criança e adolescente não podem ter uma profissão. Se a gente
vai observar essa parte, a gente acha que tá certo. Mas, a gente sabe que
a realidade rural não é essa. [...] As jovens casam muito cedo ou não se
casam e têm relação muito cedo e têm filhos muito cedo na área rural e por
isso perdem o direito da segurada especial. Porque já tão complicado
para nós rurais ter nossas documentações em dias e muito menos na
adolescência. Acho que tem que ter uma visão mais aperfeiçoada, mais
qualificada pra as adolescentes rurais. Temos que ter especificidades e aí
começar a conceder também porque elas são trabalhadoras, a gente
sabe que toda trabalhadora rural ela não começa a ser trabalhadora rural
a partir dos 16 anos porque a nossa economia não permite. Elas
começam a ir para a roça desde criança, senão não dá pra sustentar a
casa, temos que ajudar os pais, temos que está na limpa da roça, na
colheita porque todo mundo precisa contribuir para que a gente consiga o
sustento em casa (Rafaela).
Este depoimento expressa o paradoxo entre as lutas contra o
trabalho infantil e os modos de vidas nos quais o próprio trabalho dá
significado a uma parte considerável das relações de gênero e geração. Se a
idade para o trabalho compreende a infância, provavelmente, isso termina
por influenciar na idade em que as jovens são consideradas aptas para a
gravidez e inclui muitas jovens abaixo de 16 anos. As mulheres sabem que
integram um tipo de economia familiar baseada no trabalho de homens e
mulheres em diferentes faixas etárias e ao mesmo tempo são participes das
lutas que condenam o trabalho infantil. Provavelmente, resida aqui o grande
temor das mulheres: a defesa da inclusão das jovens agricultoras ao sistema
previdenciário poderá ser confundida com aceitação do trabalho de crianças
e adolescentes a terceira posição é favorável ao salário-maternidade para as
jovens. Entretanto, o argumento é baseado em dois elementos: as mulheres
jovens são casadas e na agricultura familiar todos começam a trabalhar com
pouca idade. Essa posição é a única que considera que a exclusão das
mulheres jovens ao salário-maternidade é uma injustiça:
Na maioria dos casos que eu tenho conhecimento lá nesse ano, as
mulheres que vão procurar elas são casadas, tem casamento civil que tá
comprovando sua atividade rural, elas têm alguns documentos e elas não
podem por conta da idade, só não têm a idade. Muitas faltam coisa de dois
meses, seis meses e eu acho que isso é uma injustiça, porque elas,
trabalhadoras, nós mulheres agricultoras, a gente não tem uma idade
determinada pra ir pra roça. A gente começa a trabalhar desde os oito
anos, já começa a acompanhar a mãe, seja pra deixar o almoço, seja pra
arrancar um pé de mato, seja cuidar dos bichos, então não tem idade pra
gente começar a trabalhar (Paula).

228
Entretanto, a definição da injustiça passa pela situação conjugal
da mulher, que parece tão importante quanto a pouca idade para o
reconhecimento deste direito. Maternidade e conjugalidade aparecem
intrinsecamente deixando de fora as jovens agricultoras que não são casadas
ou aquelas que não têm um companheiro fixo.
O que foi comum nas três posições analisadas é a ausência de
uma reflexão sobre as significações da gravidez e maternidade para as
jovens agricultoras. Não há referência nos discursos das ativistas ao debate
feminista sobre o direito á livre maternidade, independentemente do estado
civil. Também não há qualquer menção aos desejos de autonomia e de
independência por parte das jovens que aparecem nos discursos das
ativistas como desprovidas de maturidade e responsabilidade. Além disso,
quando as mulheres consideram que é injusto o critério de faixa-etária
terminam por associar maternidade à conjugalidade. Por fim, por conta das
lutas contra o trabalho das crianças e adolescente as mulheres ficam presas
ao critério idade. Provavelmente, elas têm medo que ao reivindicarem a
inclusão das jovens agricultoras ao salário-maternidade sejam mal
compreendidas e acusadas de coniventes com o trabalho infanto-juvenil na
agricultura.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O critério faixa-etária utilizado para a concessão do salário-
maternidade impede que as jovens agricultoras, com menos de 16 anos,
tenham acesso aos direitos previdenciários e cria obstáculos
para que elas possam usufruir da proteção á maternidade de forma ampla.
Não há políticas públicas no âmbito do município para as mães jovens; elas
não têm acesso ao salário-maternidade e nem encontram apoio nos
movimentos sociais rurais.
O salário-maternidade para as seguradas especiais foi fruto das
lutas e conquistas das diferentes expressões do movimento de mulheres
rurais nas décadas de 80 e 90 do século passando. Entretanto, a revisão do
critério de faixa etária para a solicitação do salário-maternidade ainda não
constitui pauta na agenda de lutas e reivindicações das agricultoras e nem do
movimento sindical rural. A discussão e o aprofundamento desta temática
são os primeiros passos para a ampliação do direito ao salário-maternidade
das jovens que são excluídas do acesso ao referido benefício. Além disso, é
importante considerar que esta luta está inserida numa discussão mais
ampla sobre autonomia e direto à livre escolha das mulheres rurais.
Se o critério faixa-etária utilizado pelo INSS para a concessão do
salário-maternidade não condiz com a realidade das jovens agricultoras
familiares, os argumentos das ativistas evidenciam o quanto a discussão
sobre a maternidade parece guiada mais por mecanismos de controle do
_____________________________________________________________

98
Estas informações foram baseadas em SILVA e CORDEIRO (2008).
229
corpo e da sexualidade das jovens do que por uma discussão sobre direitos e
cidadania. Nos discursos das ativistas é salientado a existência de um modo
de vida próprio, em que o trabalho e a maternidade estão associados à pouca
idade, entretanto, estão ausentes as questões da autonomia e
independência e do direito á proteção á maternidade independentemente do
estado civil e de idade.

_____________________________________________________________

99
Numa entrevista para a pesquisa essa posição também é assumida pela chefe do setor de benefícios do
INSS em Serra Talhada: “muitas estão engravidando para ter o salário-maternidade (...). Se fosse
permitido solicitar abaixo de 16 anos, elas teriam filhos com 10 ou 12 anos (Chefe de setor de benefícios do
INSS).
230
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235
JOVENS FEMINISTAS, QUESTÕES DE GÊNERO E GERAÇÃO:
entrelaçamentos de agendas?

Karla Galvão Adrião - Profa. Dept. Psicologia – UFPE

1 INTRODUÇÃO
Este trabalho procura articular como se apresentam as
demandas e agendas da juventude no âmbito do movimento feminista
Brasileiro, a partir da análise de discursos de representantes do movimento
de jovens feministas nacional, entre os anos de 2005 e 2006. Tendo em vista
que o mesmo encontra-se em fase de consolidação nas arenas de
representação e debate das agendas e questões pertinentes ao movimento
feminista e de mulheres no Brasil, estudar seu impacto dentro do movimento
como um todo pode auxiliar a entender algumas das relações entre gênero e
juventude. Além disso,
[...] a articulação entre Estudos sobre Juventude e Estudos Feministas
apresenta uma importante contribuição para a desconstrução de algumas
concepções vigentes sobre juventude, assim como para uma maior
compreensão dos contextos sociais/relacionais a partir dos quais as/os
jovens elaboram suas visões de mundo e constroem suas identidades (
WELLER, 2005, p. 112).
Uma aproximação entre feministas de distintas gerações e maior
simpatia dos estudos feministas para com as culturas juvenis
contemporâneas torna-se importante não somente para uma discussão dos
rumos que o feminismo irá tomar nesse início de século, mas também para
uma mudança da perspectiva de análise e compreensão sobre o que vem a
ser a condição juvenil. A crítica mais contundente (Weller, 2005) é a de que as
pesquisas sobre juventude continuam operando com definições há muito
tempo criticadas nos estudos sobre gênero e relações raciais, ou seja, com
uma concepção de juventude como categoria pré-social, caracterizada pela
crise biológica e emocional vivida no processo de transição para a vida adulta.
Entretanto, torna-se premente trabalhar com a noção teórico-metodológica
de que para compreender as juventudes, é necessário acessar as narrativas
dos próprios grupos sociais, de forma a entender como ela é vivida de fato
pelos/as adolescentes e jovens. Pesquisas que articulam gênero, direitos
sexuais e reprodutivos e juventude, vem sendo realizadas por diversos
núcleos de pesquisa nas regiões sul, sudeste e nordeste do Brasil (TONELI et
al, 2006, QUADROS; LONGUI, 2002). Entretanto, a crítica que Weller (2005)
aponta continua como importante dado, se levarmos em consideração os
estudos sobre juventude em sua interface com políticas e com movimentos
sociais, dentre estes, o feminista. A esse respeito, comenta Mary Castro, que
o pouco investimento de pesquisas feministas, na compreensão das culturas
juvenis estaria relacionado “ao fato de as mulheres jovens ainda não se
237
constituírem em um coletivo feminista, sujeito social de pressão, sujeitos de
uma cidadania ativa juvenil feminista” (CASTRO, 2004, p. 298).
Ao pesquisar nos sites do Scielo e Google academics a respeito
das categorias “gênero e juventude” e “jovens feministas”, encontrei, entre os
anos de 2000 e 2009, 3 artigos sobre a experiência deste “ novo” segmento no
movimento feminista. Além disto, sobre gênero e juventude apareceram 13
artigos que relacionavam gênero, juventude e direitos sexuais e reprodutivos.
Quando se buscava a especificidade das questões da juventude na interface
com gênero, destacaram-se a coletânea sobre gênero e juventude da Revista
de Estudos feministas – REF- no ano de 2005, e um Simpósio temático do
Encontro Internacional Fazendo Gênero 8, que trazia textos a este respeito.
Dentre os textos encontrados, destaco aqui o de Julia Giovanni, a
respeito da experiência do Acampamento da Juventude do Fórum Social
Mundial (FSM), em 2003. Este espaço, de acordo com a autora, e
corroborado por entrevistas realizadas com informantes-chaves para
pesquisa que resultou em dados que serão aqui apresentados, trazem o
espaço do FSM como momento fértil de articulações que, mais tarde
resultariam no grupo intitulado “jovens feministas”. Importante colocar ainda
que, de acordo com a autora, “a experiência de 2003 no Acampamento da
Juventude apontou para as lacunas de uma ausência prolongada
do feminismo em espaços de juventude (GIOVANNI, 2003)”. Retornarei a
estes textos ao final deste artigo, tendo em mente articular a experiência de
campo com a literatura disponível sobre a questão.
Neste momento, proponho a/ou leitor/a uma incursão em torno da
constituição de um segmento que articula gênero e juventude em suas
prerrogativas: as jovens feministas.
A participação política das jovens tem se constituído em um
grande desafio. De acordo com falas das próprias integrantes do movimento
(diário de campo, 2005) elas não encontravam espaço de constituição
autônoma nem no movimento feminista, tampouco nos movimentos juvenis.
No primeiro, aquelas que se aproximaram ficaram por muito tempo sem
ocupar espaços de liderança, pois mesmo que por vezes fossem percebidas
como herdeiras das conquistas do feminismo, em geral eram vistas como
inexperientes, condição que só seria alterada se as “feministas históricas”
não estivessem ocupando a liderança no movimento. Com relação aos
movimentos juvenis a crítica que se faz é a de que as jovens exercem funções
na base ou no trabalho operacional, tendo muito poucas, ou quase nenhuma,
chegado a ocupar lugares de liderança e poder. Esta crítica é reforçada em
outros trabalhos sobre jovens feministas no Brasil, como o de Julia Zanetti
(2008). A autora comenta, baseada em Araújo (2001) que
Esta situação que vem se alterando nos últimos anos. No início dos anos
2000, coletivos de jovens mulheres começam a aparecer no cenário
nacional. Este é o caso do Fórum Cone Sul de Mulheres Jovens Políticas

238
– Espaço Brasil, que começa a ser articulado em 2001 pela Fundação
Friedrich Ebert – FES, possivelmente a primeira articulação nacional
exclusivamente voltado para este público. Também conhecido como
Forito, esta é uma articulação de jovens que atuam em diferentes
organizações, movimentos e espaços políticos (ZANETTI, 2008, p. 08).
A Fundação supracitada já promovia fóruns como esse em outros
países da América Latina, entretanto no Brasil, o crescimento da
participação da juventude se consolidou a partir do encontro no Fórum Social
Mundial em 2003.
Após este momento, grupos nos diversos estados brasileiros
comoeçaram a se organizar e a preparar uma estruturação que permitisse
entrada nos espaços feministas a partir de um lugar de fala que marcasse a
dimensão da geração – a juventude – como aporte. Este encontro se deu
efetivamente no 10º Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe,
ocorrido em outubro de 2005, em São Paulo.
As dimensões do crescimento da participação da juventude no
movimento feminista não podem ser avaliadas sem ter em mente o que
aconteceu durante este encontro, no qual 25% das participantes eram
mulheres com menos de 30 anos (ADRIÃO, 2008; ADRIÃO; TONELI, 2008,
ZANETTI, 2008). Além de participarem como integrantes e na organização
do evento, as jovens feministas trouxeram para o 10º Encontro suas próprias
questões, demarcando um campo de reivindicações coletivas – organizadas
em um segmento - que nenhuma outra geração jovem anterior havia
reivindicado.
2 CAMINHANDO EM TORNO DE UM “NOVO” LUGAR NO FEMINISMO: as
jovens feministas.
O encontro com Ana se deu numa manhã de segunda-feira, em
São Paulo, na sede da União de Mulheres, cinco dias após o 10º Encontro
Feminista. Branca, de estatura média, com 25 anos e formada em Letras, Ana
atua no movimento desde 1996, quando iniciou um curso de jovens
lideranças na ONG União de Mulheres, em São Paulo. Desde lá, vem
militando e se identificando como feminista. Porém, quais especificidades as
jovens feministas trazem em seus discursos? Para além da
discussão sobre hierarquia dentro do movimento, onde feministas mais
experientes teriam mais poder e visibilidade, essas jovens se preocupam em
se colocar em espaços de discussão não apenas como observadoras ou
coadjuvantes dos processos. Antes, elas querem discutir e ter acesso aos
debates, assim como outras parcelas e segmentos dentro dos movimentos.
Mas será que há uma especificidade ou várias especificidades que coloquem
as jovens feministas como mais um segmento dentro do movimento
feminista?
_____________________________________________________________

100
Categoria êmica.

239
Ana diz que não tem clareza quanto a isto. Lembramos juntas da
tomada do centro da plenária, no último dia do 10º Encontro, quando mais de
30 jovens leram sua moção. Existiam especificidades naquela carta? Ana me
diz que este momento retrata algo de novo sim, mas que este novo não é
produto final, constituindo um processo. Coloca então a discussão sobre os
dois nomes/conceitos que identificam este segmento: jovens e feministas.
Por que “jovens” antes de “feministas”? As jovens com quem dialogaram nos
dias do encontro, vindas, principalmente, da Nicarágua, do Chile e do Peru,
autodenominavam-se feministas jovens, posto que eram feministas, em
primeiro lugar. Mas Ana, assim como as demais jovens brasileiras, também
são “feministas em primeiro lugar”. Entretanto, diz mais uma vez Ana que
colocar o nome “jovem” antes do nome feminista revela uma demarcação de
visibilidade. “Ou seja, somos jovens feministas sim e mesmo com toda a
ambigüidade que este discurso traz em si, colocamo-nos enquanto segmento
dentro do movimento feminista mais amplo”.
No 10º Encontro, as Jovens Feministas organizaram uma oficina
de diálogo e compartilhamento de experiências entre “as jovens e as velhas”
feministas. A atividade que não estava inscrita, foi impulsionada “a partir de
um desejo das mulheres jovens que estiveram no Fórum de Mulheres Jovens,
no dia 10 de outubro, durante o 10º Encontro, com o objetivo de troca entre as
gerações e de se reconhecer e construir ações comuns”
(Fernanda Grigolin, jovem feminista, página do 10º Encontro na internet).
Neste momento, duas a duas, as mulheres de gerações distintas se
encontravam para dividir suas experiências de militância, sua entrada no
movimento, suas demandas e especificidades. Esta foi uma tentativa de
lançar ao diálogo e na agenda do movimento o debate geracional.
O Fórum de Mulheres Jovens Feministas, citado no parágrafo
anterior, ocorreu no dia 11 de outubro, durante o 10º Encontro, e contou com
mais de cem jovens de toda a América Latina e do Caribe. O momento,
considerado de articulação, foi importante porque ali se discutiram as
demandas, especificidades e estratégias das jovens feministas. Entre as
demandas, as jovens destacaram:
Ser necessário não construir espaços adultocêntricos e verticais, garantir
que as mais diversas jovens expressem suas necessidades e
apreensões dentro do processo, além de se trabalhar conjuntamente nos
movimentos de juventudes e feministas, sem deixar de pensar,
considerando as inter-relações com as demais identidades, raça/etnia,
classe social, condições sócio-geográficas, culturais e orientações
_____________________________________________________________

101
Alvarez et al (2003) trazem comentários históricos sobre o primeiro aparecimento das jovens feministas,
no final da década de 1990, em Juan Dolio, na República Dominicana (1999), no 8º Encontro Feminista
Latino-Americano e do Caribe. Naquele momento, as questões eram as mesmas que as atuais,
evidenciando que este segmento continua causando “estranhamento” nas demais feministas participantes
destes eventos.

240
sexuais (Fernanda Grigolin, jovem feminista, página do 10º Encontro na
internet).
Outro momento que se destaca é a conversa entre a socióloga
feminista Sonia Alvarez e jovens feministas vindas da cidade de Natal, Rio
Grande do Norte. Em pé, no meio do pátio central do 10º Encontro, antes de
seguirem para mais uma oficina, conversavam sobre a especificidade de ser
jovem e feminista. Um dos argumentos trazidos era o do estranhamento da
acadêmica com relação a esta categoria, não nova, mas que se reconfigurava
de forma tal que pedia por discursos de especificidade enquanto categoria
identitária dentro do movimento feminista como um todo.
Importante situar a inclusão dos lugares de imposição de
agendas e discussões sociais, tomando a conformação de movimentos de
jovens e redes de juventudes neste lócus. Nas duas últimas décadas o que
assistimos é a conformação e segmentação de identidades políticas e,
nestes espaços, os movimentos de jovens têm se tornado cada vez
mais participantes do cenário geral. Veja-se, por exemplo, o contexto dos
Fóruns Sociais Mundiais, onde o acampamento da juventude é um dos
espaços políticos de grande impacto internamente e, também, junto à mídia
e ao que é veiculado e percebido pela população em geral. Assim, o encontro
de mais este movimento, de jovens, vem se agregar de maneira distinta das
vivências das feministas jovens das décadas de 1980 e 1990, no Brasil.
Existiam sim feministas jovens, entretanto, neste momento, o que parece se
conformar é um espaço onde “ser jovem” tem um valor/peso de ordem
semelhante ao “ser feminista”, afirmam as jovens feministas. Entretanto,
questiono esta afirmação, visto que considero que o debate não se concentre
no ato de “medir uma dupla participação” e sim no peso que a imbricação de
dois significantes, orientadores de dois segmentos específicos – movimento
da juventude e movimento feminista – têm quando aparecem juntos.
A importância das jovens é inegável. Traz à tona a existência de
uma hierarquia interna do movimento, na qual quem tem mais tempo ali, ou
seja, as “históricas”, tem mais poder. Esta evidência, aparentemente óbvia,
fundamenta parte das reivindicações das jovens e faz emergir as formas
pelas quais as relações de poder fundamentam-se. Além disso, vem
questionar o nível de participação, a igualdade de participação e de poder
decisório quanto a pautas, já que propõe temas de debate que nem sempre
estão na ordem do dia para o movimento, como a preocupação com a
concepção e contracepção do ponto de vista da idade fértil e do direito de ter
filhos e creches; e a participação “igual” para jovens e “históricas”. Também
levantam a questão da participação masculina no movimento, concordando
em alguns casos com a presença dos homens presentes nas reuniões de
jovens feministas.
_____________________________________________________________

102
Miriam Grossi (1998) destacou a relação entre jovens e velhas feministas em seu texto “Velhas e novas
feministas no Brasil”.
241
Desestruturam a ordem, ao mesmo tempo em que pedem licença
às “mais velhas” para participarem, exaltando o que já foi conquistado e
levando em consideração as lutas travadas anteriormente. Ou seja,
reconhecem o passado histórico, sem abrir mão de alterações no
presente, de forma que sejam não apenas ouvidas, mas tenham acesso aos
espaços decisórios. De certa forma, isto já vem acontecendo, visto que uma
das jovens feministas estava presente na comissão organizadora do 10º
Encontro e que o debate sobre as jovens feministas fez parte da
programação oficial do evento, tendo uma jovem feminista em cada mesa de
debate dos diálogos complexos.
As jovens feministas utilizam estratégias de busca de igualdade
dentro do movimento ressaltando suas “diferenças específicas”. Ou seja,
movimentam internamente o feminismo com a inserção de demandas
situadas e contextualizadas como “de um movimento jovem”. Ao mesmo
tempo, percorrem caminhos que outras mulheres de outros segmentos já
percorreram como foi o caso das negras, indígenas e lésbicas. Trazem a
reflexão de volta para a questão interna do movimento feminista acerca da
sua unidade, traduzida em termos de questões da mulher. Levantam o
paradoxo em dois sentidos: um deles reforçando a existência da diferença
sexual (SCOTT, 2002), a partir da afirmação de que são feministas e
mulheres, unindo-se, dessa forma ao todo do movimento; e o outro
afirmando a diferença no interior do movimento, ao trazer mais uma
desigualdade que se encontrava na margem, a de geração, portanto situada
e específica para o todo do movimento feminista. Os percursos deste “novo”
segmento auxiliam a compreender as dinâmicas discursivas pelas quais se
produzem sujeitos legítimos, com demandas aceitas dentro do contexto
feminista.
As perguntas dos diálogos complexos podem apontar algumas
análises. Com relação a “Feminismo e Juventude” a preocupação central
girava em torno da busca de uma plataforma própria, a qual justificasse a
especificidade deste “novo” segmento. Quanto ao tema “Feminismo e
Racismo”, há o questionamento de se realmente os demais segmentos
acoplam as especificidades raciais e as tornam tão importantes quanto a
própria categoria mulher – “maior” identidade feminista. Ou seja, torna-se
claro que há uma hierarquia interna ao movimento e que a idéia de pluralidade
permanece mais no plano das idéias do que no plano das concretizações. Ao
mesmo tempo em que o feminismo não se faz enquanto plataforma de ação
sem as reivindicações das mulheres negras, há ainda a necessidade de
demarcação deste lugar (assim como há para outros segmentos, mas a força
de mobilização, produção teórica e tempo de organização deste segmento o
coloca em lugar de destaque nos debates).
A hierarquia interna também é movimentada pela assunção das
“jovens feministas” que declaram haver um jogo de poder no movimento, para
o qual “ser histórica” é sinônimo de destaque. Embora não seja esta uma
242
autodenominação, há uma identificação por parte daquelas que “não o são”.
3 DEMANDAS E AGENDAS DA JUVENTUDE NO ÂMBITO DO
MOVIMENTO FEMINISTA BRASILEIRO- ENTRELAÇANDO GÊNERO E
GERAÇÃO?
As Jovens feministas apareceram como grupo que vinha se
consolidando nos espaços feministas. O que elas me mostravam: que era
possível pensar algumas tensões pelas quais os movimentos feministas no
Brasil passavam, tendo em mente a tensão entre teoria e prática, ou seja,
entre como algumas das teorias feministas retornam aos espaços políticos
dos movimentos feministas. Dito de outra forma, como a categoria gênero
vem sendo trabalhada em ambos espaços: a partir das relações de poder ou
apenas como “ uma construção social” ? Se disputas por legitimidade
aparecem como questões de poder e hierarquia, retoma-se a perspectiva
feminista de desconstruir e desnormartizar o estabelecido. Entretanto, as
relações de sexo/gênero trazem a questão do sujeito do feminismo para o
centro do debate. Ou seja, a “mulher” enquanto universal, é o sujeito legítimo
do feminismo? Nestes termos, as questões de gênero vêm despolitizar o
debate em torno das desigualdades sofridas pelas mulheres? Uma das
questões que aparecem nos movimentos sociais, e particularmente no
feminista, é a da pluralidade, qual seja, a de que diferentes mulheres
disputam por legitimidade nos espaços do movimento feminista, ao mesmo
tempo em que questionam o sujeito mulher no singular.
As jovens feministas enquanto “segmento” pediam por uma
especificidade que "incomodava" e que “enaltecia” o espaço do 10º Encontro:
incomodava por não apresentar especificidades concretamente, segundo as
feministas “históricas”, e enaltecia por mostrar que o feminismo ainda é um
movimento atual e importante, que as desigualdades continuam existindo e
que as jovens se interessam por este movimento. Além disso, suas pautas
evidenciavam tensões que falam de uma interseção entre gênero e
juventude, ou seja, de como estudos sobre juventude vem sendo tratados
neste contexto, de que ainda há uma invisibilidade das questões específicas
das jovens, tanto no movimento feminista quanto em espaços de movimentos
da juventude. Segundo Mary Castro, há um investimento pequeno do (s)
Feminismo (s) na compreensão das culturas juvenis, e que este estaria
relacionado “ao fato de as mulheres jovens ainda não se constituírem em um
coletivo feminista, sujeito social de pressão, sujeitos de uma cidadania ativa
juvenil feminista” (CASTRO, 2004, p. 298). Apesar de observar a pertinência
do comentário da autora, levanto em que medida este não estaria pautado por
uma visão “ adultocêntrica”, na medida em que pontua a organização das
jovens a partir de parâmetros que não levam em consideração as
experiências de jovens que já se articulavam, ainda que a partir de formas
próprias a elas mesmas.
As jovens feministas, entretanto, se organizaram “formalmente” e
reivindicaram em espaços consolidados do feminismo seu espaço próprio, tal
243
qual relatado aqui nas páginas anteriores. Dentre as especificidades
demarcadas estão algumas agendas que não vem sendo mais evidenciadas
no seio do movimento como há 20 anos - ter ou não ter filhos - trazendo
questões práticas como a das creches, jornadas de trabalho
(diminuição), contracepção. Questões pelas quais as jovens estão passando
como experiência individual e coletiva, neste momento de suas vidas. Aqui a
tensão se dá porque as " históricas" questionam a especificidade destas
agendas. Há uma disputa por legitimidade e poder nas relações entre
diversos segmentos, e mais ainda, há uma disputa geracional que aparece “
sem querer ser nomeada”. Neste termos, Ana (líder do movimento no Brasil)
diz que colocar o nome “jovem” antes do nome feminista revela uma
demarcação de visibilidade: “Ou seja, somos jovens feministas sim e mesmo
com toda a ambigüidade que este discurso traz em si, colocamo-nos
enquanto segmento dentro do movimento feminista mais amplo (Ana,
entrevista, 2005)”.
As questões em torno do segmento das jovens feministas no
movimento levantam um paradoxo reforçando a existência da diferença
sexual (SCOTT, 2002), a partir da afirmação de que são feministas e
mulheres, unindo-se, dessa forma ao todo do movimento. Além disso, esse
paradoxo também é evidenciado ao afirmarem a diferença no interior do
movimento, ao trazerem mais uma desigualdade que se encontrava na
margem, a de geração, portanto situada e específica para o todo do
movimento feminista.
O impacto das jovens feministas também se faz na tensão entre
elas e outros movimentos juvenis. Ao afirmarem o feminismo como dimensão
fundamental da prática dos movimentos e dos projetos de “um outro mundo
possível”, elas questionam alguns mitos que circulam no senso comum a
respeito do feminismo, tais como “ que o feminismo não é mais necessário
enquanto corrente de pensamento pois as mulheres já conquistaram os
espaços públicos e de poder”, o de que “ as feministas fazem um movimento
contra os homens, e que “ são mal-amadas”. Fazer a crítica a estas visões
deturpadas da realidade social, buscando consolidar o feminismo e suas
ações em espaços não feministas, não é tarefa fácil, e tampouco seria mais
fácil entre jovens do que entre 'adultos', como poderiam fazer pensar as
freqüentes naturalizações da rebeldia da juventude e o mito de que todo
jovem tem 'a cabeça aberta'.
Portanto, os percursos deste “novo” segmento auxiliam a
compreender as dinâmicas discursivas pelas quais se produzem sujeitos
legítimos, com demandas aceitas dentro do contexto feminista, além e tornar
possível a continuidade de um projeto societário feministas para as novas
gerações, dentro e fora do movimento feminista.

_____________________________________________________________

103
Termo êmico.
244
REFERÊNCIAS
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política de acesso aos direitos das mulheres: sujeitos feministas em disputa
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Humanas – DICH. Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, 2008,
301 p.
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construindo espaços transnacionais e alternativas globais a partir dos
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Primeira mão, 28., 1998.
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juventud:investigando El universo de estratos populares em El sur de Brasil.
Revista de estúdios de genero La ventana, n. 23, Universidad de
Guadalajara, Mexico, 2006, pgs. 213-236.
WELLER, Wivian. A presença feminina nas (sub) culturas juvenis: a arte de se
tornar visível. Revista Estudos Feministas. Vol. 13, n. 01, 2005, p. 107-126.
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ZANETTI, Julia Jovens Feministas: um estudo sobre a participação juvenil no
Feminismo. In: Fazendo Gênero 8, Florianópolis, SC, 2008., p.10.

245
ITINERÁRIOS DE VIDA AO ENVELHECER: experiências de travestis em
sergipe

Jesana Batista Pereira - Universidade Tiradentes/Se


Márcia Tavares - Universidade Católica do Salvador/Ba
Maura Lúcia de Olim - Secretaria de Estado da Saúde/Se

1 PRELÚDIO
Neste ensaio, tomamos como objeto de estudo os relatos de três
travestis, na faixa etária entre 58 e 63 anos, com o objetivo de investigar as
mudanças e particularidades das práticas sociais e sexuais das travestis. O
trabalho foi dividido em três etapas: Na primeira, apresentamos alguns
apontamentos que serviram de aporte teórico para a pesquisa. Na segunda
etapa, fazemos observações relativas ao percurso metodológico adotado
para realização da pesquisa empírica. Na terceira, analisamos a trajetória de
vida, experiências e representações elaboradas pelas travestis investigadas
sobre o envelhecimento, de forma a descobrir como o processo de
envelhecimento interfere na elaboração de projetos de vida, em suas
aspirações amorosas e práticas sexuais. Nas considerações finais, refletimos
sobre as representações elaboradas pelas travestis entrevistadas sobre o
envelhecer e como estas diversificam de acordo com a trajetória de vida de
cada uma.
2 APONTAMENTOS PARA A REVISÃO LITERÁRIA
Os estudos feministas contemporâneos atribuem ao gênero
um caráter performativo, o que tem suscitado a interpretação de que o sexo,
assim como o gênero, é também uma construção cultural, o que põe em
xeque o suposto caráter natural do sexo. Conforme salienta Cardozo (2007,
p. 247): “A construção social do sujeito, sua ação a partir de sua subjetividade
e o discurso engendrado ou generificado que tem sobre si é que poderia
construir seu sexo.”
O autor sugere que, no caso das travestis, pode haver uma
inversão no que se refere à precedência do sexo sobre o gênero, ou seja, o
sexo não determina o gênero, mas o gênero confere significação ao sexo.
De fato, Newton (apud Butler, 2003, p. 195), afirma que a travesti
consiste em uma dupla inversão, enunciativa de que “... a aparência é uma
ilusão”: A aparência externa é feminina, mas, internamente, o corpo é
masculino. Ao mesmo tempo, seu corpo e gênero são masculinos, mas sua
essência é feminina. Segundo Butler, essas duas afirmações, apesar de
contraditórias, são verdadeiras, isto é, uma não elimina a outra, o que anula a
validade das significações do gênero do discurso do verdadeiro e do falso.
Butler (2003, p. 194) argumenta que seus atos, gestos e atuações
produzem um “suposto” feminino na superfície do corpo, ou seja, o feminino,
247
ao ser esculpido, revela sua performatividade, “[...] no sentido de que a
essência ou identidade que por outro lado pretendem expressar são
fabricações manufaturadas e sustentadas por signos corpóreos e outros
meios discursivos”. Em suma, o corpo de gênero não possui “status
ontológico separado dos vários atos que constituem sua realidade” (ibid).
Saraiva (2004), reportando-se a Butler, argumenta que para a
autora, o sexo não consiste em um simples fato ou a condição de imobilidade
de um corpo, mas é um processo pelo qual as normas regulatórias dão
materialidade ao sexo e geram essa materialização por meio de uma
repetição. Em outras palavras, a autora destaca o fato de que as normas
regulatórias do “sexo” operam de uma forma performativa para compor a
materialidade dos corpos, para tornar concreto o sexo do corpo e a diferença
sexual a serviço da consolidação do imperativo heterossexual. Todavia,
pondera Saraiva (2004, p. 124), “os corpos não se conformam, nunca,
completamente, às normas pelas quais sua materialização é imposta,
sempre há instabilidades e possibilidades de rematerialização”.
Por sua vez, Benedetti (2005) toma o conceito de embodiment
desenvolvido por Csordas, segundo o qual o corpo não é um sustentáculo de
significados, mas sim um elemento produtor e o cenário inicial desses
significados, para defender que é no corpo e através dele, que os
sentidos conferidos ao masculino e ao feminino pelas travestis se
materializam. Deste modo, enfatiza Benedetti (2005, p. 55):
As travestis, ao investir tempo, dinheiro e emoção nos processos de
alteração corporal, não estão concebendo o corpo como um mero suporte
de significados. O corpo das travestis é, sobretudo, uma linguagem; é no
corpo e por meio dele que os significados do feminino e do masculino se
concretizam e conferem à pessoa suas qualidades sociais. É no corpo
que as travestis se produzem como sujeitos.
A construção da corporalidade e do gênero travesti é feita
através de uma série de processos: trato, alongamento e pintura das unhas;
uso de cosméticos para “montagem” do rosto, cujo principal item é o batom,
geralmente de cor vermelha; depilação ou emprego de pinças para retirada
dos pelos; cabelos bem cuidados, longos e com cortes femininos. Trajar
roupas e lingeries femininas também é um processo importante na fabricação
da travesti, uma vez que realça suas formas curvilíneas, além de outros
assessórios como sapatos, sempre com saltos bastante altos (OLIVEIRA,
1994; BENEDETTI, 2005).
Benedetti (2005, p. 80) acrescenta que uma das mais importantes
decisões na vida da travesti é iniciar a aplicação de hormônios, pois o
tratamento hormonal torna as mudanças corporais mais aparentes e
definitivas, conferindo ao corpo uma nova condição, qual seja, a condição de
travesti. Conforme ressalta o autor:
O hormônio goza de um status privilegiado: seu consumo parece ser o

248
elemento simbólico que determina o ingresso nessa identidade social em
fabricação, nessa moldura social possível. [...] O hormônio (e
conseqüentemente seus efeitos no corpo e nas relações) parece ser um
instrumento ritual de passagem, porque é junto com os seios e as formas
arredondadas do novo corpo que a travesti (re)nasce para o mundo, que
esse processo de transformação se instaura e se evidencia.
O tratamento hormonal é permanente, uma vez que seu efeito
é passageiro, isto é, caso a travesti interrompa a ingestão de hormônios, os
sinais da mulher produzida desaparecem e o corpo masculino readquire suas
linhas. Algumas travestis, com maior poder aquisitivo, recorrem
também à aplicação de silicone líquido, uso de próteses de silicone para
modelar os seios ou cirurgias plásticas corretivas (OLIVEIRA, 1994;
BENEDETTI, 2005).
Em geral, observa Oliveira (1994), o processo de transformação
das travestis não se limita apenas a uma dimensão física de mudança
corporal, mas envolve um significado subjetivo de indícios de certa
homossexualidade descoberta na infância, propulsora de um processo de
troca ritual de identidade sexual. Um processo aperfeiçoado ao longo dos
anos que se mostra infindável, pois a imagem que buscam alcançar habita um
horizonte impossível e as características viris insistem em reaparecer.
De fato, enfatiza Saraiva (2004, p. 129), no processo de produção
da travesti em mulher, corpo e alma se inventam e, da conciliação desses
campos moldam-se pessoas e emergem indivíduos desejantes, o que nada
tem de simples ou mecânico, pois existe uma subjetividade em questão.
Neste sentido, Saraiva cita Silva, segundo o qual, “independentemente dos
motivos que o impulsionam a tal atitude, o ser humano que traz dentro de si é
dotado de vida própria, paixões, conflitos, preconceitos, desejos, valores e
vontades que se manifestam cotidianamente”. Por essa razão, esclarece
Oliveira (1994, p. 115):
Os travestis preferem não se definirem ou se auto-classificarem.
Preferem ser o fator desordem nas trocas simbólicas entre identidades
sexuais. Desejam abarcar as várias imagens que o espelho lhes devolve
e, principalmente, permanecer definitivamente nas zonas de transição,
em estado permanente de liminaridade. [...] Na aventura de não se
colocarem em nenhum lugar visível, os travestis não querem ser mulher,
apesar de muitos se sentirem uma delas, não querem ser homossexuais
e, muito menos, homens. Querem ser a diferença.
Essa diferença é aprimorada e exercitada nos territórios de
prostituição, lugares em que trabalham e garantem uma fonte de renda, mas
que também atuam como ponto de encontro e convívio social. É lá que
aprendem as técnicas e métodos para transformação do corpo, assimilam os
valores e formas do feminino, assim como iniciam o aprendizado relativo aos
jogos de sedução presentes no cotidiano da prostituição. “É nas
249
quadras de batalha que se aprendem, por meio de um fluxo de aprovações e
reprovações das outras travestis, dos clientes e transeuntes, as formas de ser
feminina e de ser desejada pelos homens que ali circulam, sejam eles
(potenciais) clientes ou não” (BENEDETTI, 2005, p. 115).
Contudo, o que acontece quando a “montagem” não consegue
ocultar as marcas do tempo, o poder sedutivo da travesti diminui e é preterida
por outras travestis mais jovens? Os estudos desenvolvidos por Benedetti
(2005) e Oliveira (1994) indicam que as travestis, ao se depararem com o
envelhecimento, abandonam a prostituição, passam a atuar como
bombadeiras, aplicando silicone em travestis mais novas ou então usam sua
experiência para acompanhar o processo de fazer-se travesti entre iniciantes
ou recém-chegadas nos territórios da prostituição. O fato é que há poucas
travestis idosas, muitas morrem ainda jovens, em decorrência da violência a
que se encontram expostas ou devido a complicações relacionadas ao
HIV/Aids. Entre aquelas que alcançam a velhice, como a travesti
portoalegrense Rubina, a realidade cotidiana é marcada pela solidão e
ausência de expectativas:
O que é que eu espero freqüentando um bar, uma boate, com 70 anos?
Que alguém me ame, que alguém me queira? Se eu não tiver um bom
bolsinho não sai nada. [...] Não tenho ilusão de me vestir, pra quê? Ah...
pra dizerem – Olha o puto velho! [...] Então, a gente fica feito um bicho
raro, parece um ser do outro planeta... (BOËR et. al., 2003, p. 38).
O depoimento acima sugere que o envelhecimento contribui
para a perda de atratividade e poder sedutivo das travestis, na medida em que
deixam de corresponder à imagem de glamour, beleza e sedução propalada
pela cultura do consumo. Essa realidade compromete sua auto-estima e
diminui as possibilidades de vislumbrar projetos de vida. Neste sentido, o
presente artigo objetiva refletir acerca das experiências e trajetórias de vida,
bem como representações sociais elaboradas por travestis sergipanas frente
ao envelhecimento e perda de seu poder sedutivo.

3 PERCURSOS E INCIDENTES DO TRABALHO DE CAMPO


Inicialmente, cabe destacar que localizar travestis com mais
idade não se mostrou uma tarefa fácil e, embora tivéssemos indicações sobre
uma ou outra, elas pareciam inacessíveis. Deste modo, optamos por utilizar
um sistema de redes, tecido a partir da Associação de Travestis Unidas na
Luta pela Cidadania – Unidas, onde a assistente social e a presidente da
instituição atuaram como intermediárias junto a possíveis informantes.
A seleção do grupo a ser investigado aconteceu, portanto, de
forma não-probabilística intencional, uma vez que não nos conhecíamos.
Adotamos os seguintes critérios para composição da amostra: a idade, uma
vez que pretendíamos esquadrinhar suas experiências e representações
sobre o envelhecimento no universo travesti e, a sua disponibilidade para
250
compartilhar sua trajetória de vida conosco.
Os dados foram coletados através de histórias de vida, relatadas
em sua residência, em uma cidade interiorana para onde nos deslocamos, na
companhia de duas travestis e uma transexual, cujo estranhamento inicial da
informante dissipou-se diante de provocações das amigas que nos
acompanharam; em um dos mercados da capital onde a entrevistada
comercializa roupas, dentro do nosso automóvel, enquanto a informante se
flagrava a percorrer traços e formas no espelho retrovisor em busca dos
sinais do tempo, mas também em um hotel, durante o intervalo das atividades
desenvolvidas no VI Encontro de Travestis e Transexuais do Nordeste –
Aracaju/SE, voltado para a defesa de seus direitos.
Nesses espaços, entrevistamos três travestis, na faixa etária dos
sessenta anos e contamos com algumas intervenções de mais duas, com
idade de trinta e cinco anos, segundo afirmam. Apesar de termos elaborado
um roteiro previamente, seus depoimentos seguiram uma ordem/cronologia
própria, que procuramos respeitar, interferindo o mínimo possível.
Por fim, cabe esclarecer que, no decorrer da pesquisa, em
nenhum momento nos descuidamos das questões éticas, mas
propositadamente, abolimos o termo de consentimento formal e optamos por
uma autorização verbal, por entendermos que desenvolver uma pesquisa
íntima, com pessoas já marcadas pela estigmatização, sempre postas à
margem, tal procedimento poderia contribuir para que perdessem a confiança
e se recusassem a trocar confidências conosco.
4 VIDAS EM MOVIMENTO: fazendo-se travesti
Nós todas nascemos, temos um começo meio e fim, quando
agente é travesti, afirma Danielle, aos 58 anos. No entanto, fazer-se travesti é
um processo em construção, que aos poucos vai sendo elaborado, mesmo
porque, às vezes, nem se sabe o que é ser travesti: Eu nem sabia o que era
ser na época, [...] eu descobri que eu era diferente só não sabia o que é que
era. Essa diferença é essencializada pelas informantes, como algo que está
além da sua vontade e consciência, comandada pela natureza. Nem mesmo
ser gêmeo dissipa o sentimento de singularidade, conforme pondera Arielle:
Eu sou gêmeo, [...] e vivia sempre com meu irmão, mas os outros amigos
nossos só tinham vontade de ter sexo comigo. E eu tinha aquela vontade
dentro de mim, também. Já vinha com aquela vontade, com aquele
desejo. Ai, eu ficava pensando: porque que eles só querem fazer isso
comigo, meu irmão eles não procuravam, só procuravam a mim. [...]
Sabe como é, a gente fica no azedume tão grande, não vê nada, só quer
isso mesmo, a gente não desiste, porque quem nasceu pra ser, não
desiste nunca, pode passar o que for, não adianta você querer casar pra
enganar o povo, não adianta nada, porque quando nasce pra isso, é de
qualquer jeito. E meu desejo era esse mesmo, pronto.
Foi passando o tempo e, conduzidas pelo desejo, migram para a
251
capital, território onde vislumbram a possibilidade de se fabricarem tal qual
almejam, mas também de tecerem redes de sociabilidade, obterem aceitação
social e viverem sua própria vida livremente, mas nem sempre os sonhos se
realizam conforme idealizado. A baixa escolaridade e a falta de qualificação
profissional, associadas ao preconceito e à luta para assegurar a
sustentabilidade econômica fazem com que os sonhos lhe sejam
roubados frente à inexorabilidade do cotidiano marcado pela extrema
pobreza. Deste modo, exercem serviços subalternizados e informais, sem
direitos trabalhistas, em que se deixam submeter à exploração de familiares,
cuja moeda de troca é uma pretensa aceitação e o convívio familiar.
Aí depois começou umas pessoas que não sei onde andam, uns amigos
meus, saíam de casa com a roupa como homem, chegavam lá e trocavam
de roupa na rua, dentro das praças e ficavam se prostituindo por ali, na
rua. [...] Tinha os motéu, os dormitórios que a gente ia. Depois apareceu
Carlette, Martha Rocha, Rita Pavonni, também Pantera.
Na noite, não há limites ou censura, a fantasia se torna realidade,
elas se travestem e exercitam a sedução, ao mesmo tempo em que
conquistam a possibilidade de adquirirem recursos financeiros para
fabricarem seus corpos e alimentarem o desejo dos parceiros. Só que,
naquele tempo era melhor do que agora. Era muito melhor porque tinha
pouco travesti, não existia tanto travesti como hoje em dia, essa concorrência.
[...] Antigamente tinha mais valor do que agora, sabia? O fato de haver poucas
travestis aumentava o número de clientes e tornava a prostituição mais
lucrativa, o que lhes permitia ter acesso ao prazer de fabricar-se, conforme
lembra Liz: A sobrancelha. Igual a de Elizabeth Taylor. [...] Ai bem, botava
batom, andava bem linda, com mine-blusa, naquele tempo, nera?
Todavia, a arte de fabricação se sobrepõe ao sentido da
previdência quanto ao futuro, pois para elas tudo na vida é efêmero, a gente
tem que aproveitar a vida de hoje, tudo na vida é uma passagem. No meu
tempo a gente via como as travestis ganhavam dinheiro, ganhavam hoje e,
gastavam um dia antes, compravam roupa, perfumes e nunca se
preocupavam em ter uma casa, em ter o cantinho delas. Em outras palavras,
essa postura improvidente denota despreocupação em relação ao futuro, o
que se reflete em uma situação de precariedade e pobreza na velhice.
Entre o idealizado e a realidade cotidiana, há descaminhos e dor,
fiquei na rua um bom tempo, depois aluguei um quarto, [...] passei muita fome
e dormi à toa, mas não desisti da minha vida. Além das
dificuldades enfrentadas para garantir a sobrevivência, as travestis eram
exploradas por seus parceiros, a quem sustentavam financeiramente, bem
como tinham que lidar com a violência policial. Arielle lembra que, lá em
Aracaju, tinha lugar que a polícia aceitava, tinha lugar que não aceitava. Já
até me agarrei com a polícia mesmo. Danielle observa que, em Porto Alegre a
situação não era diferente, mas acrescenta:
252
Os policiais da rua diziam assim: tá vestido de mulher por que, tu não é
homem? Então vai criar vergonha na cara, e vai botar uma calça. [...] A
gente tinha a questão da violência, porque a polícia matava, se matava
uma travesti ninguém ligava, muitas e muitas travestis nossas, no meio
da prostituição, morreram em conseqüência da questão da violência, e
no longo do tempo veio a epidemia da Aids que levou muitas e muitas
companheiras que morreram em conseqüência do HIV.
A violência fazia-se presente no dia-a-dia das travestis, de
forma explícita, por meio da repressão policial ou diferentes formas de
expressão da homofobia, daí porque era preciso ter cuidado, não procurar
briga com ninguém, não usar droga, nem nada, [...] não exagerar. Em suma,
para resguardar-se, adotava como estratégia o andar só, como forma de
evitar conflitos, uma vez que as travestis eram consideradas escória e,
portanto, pouco confiáveis. Sozinha, ganhava invisibilidade e a usava como
arma: puta só, ladrão só. Não tem esse ditado? Não ando acompanhado com
ninguém.
A violência ocorria também de forma subliminar, através do
discurso veiculado pela mídia que as culpabilizava pela disseminação da
Aids, a gente colocou aquilo na cabeça, pensou que realmente a gente era,
que só dava em gays, em travestis. Afinal, segundo Danielle, a epidemia [...]
levou muitas e muitas companheiras que morreram em conseqüência do HIV,
tanto que faz quatro anos, durante um encontro nacional, foi considerada a
travesti mais antiga do Brasil, porque não achavam ninguém que tinha a idade
que eu tinha, militando, trabalhando e lutando pelos direitos humanos.
De fato, com a proximidade do envelhecimento, a travesti
parece ocultar-se, tem vergonha de sair em público e, às vezes, ela diz que
não é travesti, ela foi na época, ela deve ter uns sessenta e
poucos anos, ela não se assume mais travesti. Em outras palavras, ela
começa a se desfazer, deixa de usar próteses, corta o cabelo bem curtinho e,
muitas que se vestiam deixaram de se vestir, ficam com vergonha,
abandonam a prostituição. Quando aposentada, os dias se passam
lentamente, sem surpresas ou aventuras, ela levanta, fica o dia inteiro na
janela, observando o movimento. Por conta disso, sumiram, do meu tempo
elas não querem estar nas ruas não. Têm vergonha. Estão em casa.
E se é veado, velho, preto e feio, é alvo de discriminação,
chacota, mas também abandono, pois ninguém quer mais. Ridicularizada e
desrespeitada por homens e mulheres, mas também pelas travestis mais
novas, uma vez que tem umas novinhas que são tenebrosas. Elas dizem: Ah
lá vem aquela bicha velha, aquela jurássica, [...] nunca disseram
pessoalmente, mas eu sei que falam, às vezes nos encontros, ah, que essa
velha pensa em se maquiar, em se arrumar.
_____________________________________________________________

104
Os nomes das informantes são fictícios, de forma a resguardar seu anonimato.

253
Há de se observar, entretanto, que o desfazer não segue os
mesmos percursos, pois diferentemente de Arielle e Liz, apesar de também
abandonar a prostituição, Danielle adia o envelhecer refabricando sua
corporalidade, porque chega uma idade a pele fica mais flácida, a pele fica
mais sensível, e o peito com o tempo ele cai mais. [...] Mas eu nunca fiz para
mostrar para outra que sou isso, que eu sou aquilo, eu acho que a gente faz as
coisas pra gente. Renovada, investe na militância política e dedica seu tempo
à defesa dos direitos humanos, além de orientar as travestis mais jovens
quanto à importância de preservarem a qualidade de vida, – vivem o glamour,
[...] elas trocam a comida pelo glamour –, isto é, devem ter uma boa
alimentação e horas regulares de sono, além de pensarem no futuro,
adquirirem um imóvel próprio para usufruírem de uma velhice tranqüila. Em
suma, a questão delas sempre pensarem, nunca se preocuparem em que a
beleza e a juventude são eternas. E não é.
Assim como o tempo é relativo, a percepção do que é ser idosa
para a travesti também é relativizada, embora pergunte ao
espelho se há marcas que denunciem o envelhecer: Eu tô velho demais pra
minha idade? Tá bom pra minha idade de 61 anos? Terceira idade é de 60
para lá, né? Isso é ilusão desse povo! Eu ando tanto a pé, não sinto nada! [...]
Para mim a velhice é de 80 anos para lá. No entanto, o tempo de
aposentadoria para a travesti sofre um decréscimo, ou seja, entre a idade
estipulada pelo Estatuto do Idoso para o início da terceira idade e a
perspectiva elaborada pelas travestis, há uma defasagem de vinte anos, pois
para nós travestis, eu acho que aos quarenta já é terceira idade, quando
chegam lá.
Todavia, se precisa continuar trabalhando para assegurar a
sobrevivência e tantas vezes é assaltada pela depressão e fica tristonha,
somente com a ajuda de uma entidade, uma pomba gira de esquerda:
Quando eu estou assim, ela diz: tome uma para se animar! Eu vape,
tomo uma, uma Dreher com limão, tome, ela é quem manda. Eu não
tenho medo dela não! Mas [...] é assim, ela me ajuda para eu vender
minhas roupas, me anima, vai em frente, anda diabo, se alevanta! Ela é
que bota no ouvido, ninguém vê ela, ela é imortal.
Ao que tudo indica, enfrentar o envelhecimento requer a proteção
de uma entidade mística do plano do fantástico e do maravilhoso, uma vez
que o passar dos anos lhes rouba a identidade profissional e, impossibilita a
concretização do glamour que cerca as jovens travestis que vêm da Europa,
retornando do rito de passagem que as reveste de outro status, agora não
mais iniciantes, mas iniciadas e iniciadoras. Além disso, adquirem poder
aquisitivo, com o qual conseguem até comprar a aceitação do grupo
doméstico-familiar. Neste sentido, Arielle se sente ressentida ao ser excluída
da possibilidade de vivenciar tal experiência, porque na minha idade, [...]
primeiro elas não me leva, porque não sou bonita e não sou branca. Outra
254
coisa, dinheiro pra ir eu não tenho. Se eu tivesse dinheiro meu mesmo, pra ir,
eu ia. Pelo menos pra saber como é. [...] Agora eu não posso mais não, né?
Porque numa idade dessa, tem esses problemas de saúde...
A despeito da trajetória de vida marcada pela rejeição, pelo
preconceito, por amores desfeitos e armadilhas amorosas, pelas dores e
sofrimento, marginalização e exclusão social, não abdicam da
essência que conduz a sua existência no mundo. Conforme enfatiza Arielle:
Se eu nascesse de novo, eu não queria ser homem, não queria ser mulher,
queria ser homem sexual novamente, porque eu admiro minha vida, eu gosto
da coisa, não desisto nunca. [...] É uma coisa que eu vim com esse desejo.
[...]. Não tenho arrependimento, não tenho inveja de ninguém, eu queria ser
eu mesmo. Quero ser como eu sou mesmo.

5 DESFECHO
Tomando com parâmetro Butler (2003), podemos inferir que a
travesti não carrega a dualidade de um corpo e gênero masculino que convive
com uma essência feminina. O envelhecimento compromete a imagem
ilusória do feminino para as travestis e para quem as olha, mas não
desautoriza sua essência feminina, embora provoque nas travestis diferentes
reações: não aceitação e ressentimento; tentativa de driblar o tempo por meio
da biotecnologia ou a recorrência a uma entidade que garante a imortalidade
da mulher. Isso evidencia que o processo de envelhecimento, ao invés de
produzir a semelhança, engendra a diferença, pois o envelhecimento, apesar
de ser um evento da natureza humana, suscita percepções da ordem do
simbólico: Se um dia eu morrer, eu vou reformar uma pessoa e vai ser Liz, pior
do que eu. Essa mulher? Ela me acompanha...

255
REFERÊNCIAS

BENEDETTI, Marcos Renato. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis.


Rio de Janeiro: Garamond, 2005.

BOËR, Alexandre et. al. Construindo a igualdade: a história da prostituição


de travestis em Porto Alegre. Porto Alegre: Igualdade, 2003.

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da


identidade. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2003.

CARDOZO, Fernanda. Performatividades de gênero, performatividades de


parentesco: notas de um estudo com travestis e suas famílias na cidade de
Florianópolis/SC. In: GROSSI, Miriam Pillar; UZIEL, Ana Paula; MELLO, Luiz
(orgs.). Conjugalidades, parentalidades e identidades lésbicas, gays e
travestis. Rio de Janeiro: Garamond, 2007, p. 233-251.

OLIVEIRA, Neuza Maria de. Damas de Paus: o jogo aberto dos travestis no
espelho da mulher. Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA, 1994.

SARAIVA, Eduardo. Transcendendo o gênero: travestis e transexuais. In:


LAGO, Mara Coelho de Souza; GROSSI, Miriam Pilar; ROCHA, Cristina
Tavares da Costa; GARCIA, Olga Regina Zigelli; SENA, Tito (Orgs.).
Interdisciplinaridade em diálogos de gênero: teorias, sexualidades,
religiões. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2004, p. 121- 131.

257
GT 3 – GÊNERO E SAÚDE
COORDENAÇÃO: Profº. Dr. Jorge Luiz Cardoso Lyra – PAPAI/ UFPE

259
APRESENTAÇÃO

O GT Gênero e Saúde tem a finalidade de contribuir com o ensino e a


produção do conhecimento sobre os impactos das desigualdades
sociais entre homens e mulheres na saúde. Ele tem buscado fortalecer
a interlocução entre acadêmicos, profissionais de saúde e militantes
dos diversos movimentos sociais, visando tornar o conhecimento
científico cada vez mais útil e acessível. Nesta interlocução também se
procura captar demandas emergentes para o processo de produção de
conhecimento, formação de profissionais e atuação política no campo
de gênero e saúde, atuando para a aprofundar a compreensão de
fenômenos de interesse na área de estudos interdisciplinares sobre as
mulheres, abordando novos temas e revisitando antigos, na
perspectiva das relações de gênero e do feminismo. O GT incorpora,
por meio da produção de integrantes dos Núcleos de pesquisa filiados a
REDOR, um extenso leque de temas, como reprodução, juventude,
violência doméstica e sexual, Aids e outras DST, controle social,
monitoramento e avaliação de políticas e programas para mulheres,
dentre outros.

Jorge Lyra
Coordenador GT – Gênero e Saúde

261
REFLETINDO A SAÚDE DA MULHER NO PSF DO BAIRRO DAS
INDÚSTRIAS- JOÃO PESSOA-PB

Michele Ribeiro de Oliveira


Renata Lígia Rufino Neves de Souza

1 INTRODUÇÃO
O debate contemporâneo do Serviço Social centra-se na
compreensão das configurações das seqüelas das questões sociais
materializadas no cotidiano da vida social. Como forma de contribuir com
esse debate, buscamos aprofundar a discussão sobre a saúde da mulher, a
partir do atendimento do Programa Saúde da Família- PSF, como uma
expressão da precarização do direito à saúde, assim como um reflexo da
desigualdade de gênero, sendo esta uma construção secular e perversa.
Nesse sentido, elaboramos o artigo em tela a partir de uma
pesquisa realizada, no curso de Mestrado do Programa de Pós-graduação
em Serviço Social da Universidade Federal da Paraíba. Procuramos
compreender o atendimento do PSF à luz da percepção das usuárias
atendidas por esse programa.
Este artigo está organizado em quatro partes: O SUS e a
Perspectiva de Gênero, o Programa Saúde da Família (PSF) e a Saúde da
Mulher, A saúde da mulher no PSF do Bairro das Indústrias e uma breve
conclusão.
2 O SUS E A PERSPECTIVA DE GÊNERO
Ao abordar a perspectiva de gênero no interior do SUS partimos
da percepção de que conceber o processo saúde/doença não pode ser feito
dentro de uma dissociação da relação macho X fêmea, na qual é considerado
apenas os aspectos biológicos, mas levando em consideração todos os
aspectos culturais e sociais que envolvem as relações desiguais entre
homens e mulheres. Dentro dessa direção de análise tomamos como
referencial as concepções de Scott (1991), que rejeita todo e qualquer
determinismo biológico atribuído as relações entre o sexo masculino e
feminino, apontando à relevância da superação dos limites das abordagens
descritivas, buscando dar visibilidade às mulheres dentro do processo
histórico, entendendo a construção histórica da organização da sociedade,
as relações de dominação, de exploração, de desigualdade entre mulheres e
homens.
Desse modo, tratar da perspectiva de gênero na atenção à saúde
não se pode deixar de levar em consideração que:
Durante várias décadas, ignorou-se as influências socioeconômicas
como determinantes da situação de saúde das populações.
Atualmente, ainda permanece muitas reticências para reconhecer
263
que a construção social do feminino e do masculino, o que chamamos
de sistemas de gênero, determina a condição social de mulheres e
homens e , também, que dada a desigualdade de poder entre eles, o
gênero é fator explicativo da situação de saúde das mulheres é da
maior importância. (GAMA, 2006, p. 80).
A saúde da mulher, no Brasil, é incorporada às políticas sociais
na década de 30, limitando-se, nesse período, as ações incipientes
relacionadas à gravidez e ao parto. Os programas materno-infantis
desenvolvidos durante as décadas de 1930, 1950 e 1970, incorporavam uma
visão limitada sobre a mulher, fundamentada em seus aspectos biológicos e
no seu papel social de mãe, doméstica e cuidadora dos seus familiares. A
mulher estava reservada a responsabilidade da criação, educação e saúde
dos filhos. Outra característica marcante era a verticalidade e a falta de
integração com as demais políticas e programas desenvolvidos pelo governo
federal.
A mulher passa a ser alvo das preocupações governamentais
com a institucionalização da medicina social, que no Brasil ocorre no final do
século XIX quando a concepção da higiene no interior da família adquire
centralidade. Nessa perspectiva a mulher é transferida da tutela paterna para
a higiênica, processo que não apresenta nenhuma autonomia. Nesse
contexto a “medicina” fala sobre as mulheres e diz como elas querem viver.
Essa concepção de programas de saúde voltados para a
mulher/mãe permanecerá até a década de 1980, pois era maternidade
concebida como a única via de acesso cidadania feminina, assim
como aos benefícios sociais.
Na literatura encontram-se vários conceitos sobre a saúde da
mulher. Há concepções mais restritas que abordam apenas os aspectos da
biologia e a anatomia do corpo feminino e outras mais amplas que interagem
com as dimensões dos direitos humanos e as questões que contemplam a
cidadania.
A evolução da política de saúde voltada para as mulheres está
intimamente ligada com o histórico do movimento feminista, pois é a partir dos
primeiros movimentos reivindicatório, na década de 60, que se pode pontuar
a evolução das ações nesse âmbito, pois no momento tinha como meta a
igualdade na diferenciação sexual. Segundo Giffin (2002, p. 3),
Do ponto de vista da eqüidade de gênero, as especificidades das
mulheres todas relacionadas com as diferenças sexuais que, elaboradas
no social, irradiam desde as vivências sexuais e reprodutivas mais
intimas, até a arquitetura de redutos do poder como os congressos
nacionais onde não há provisão de banheiros femininos, passando por
identidades pessoais, símbolos culturais, normas e instituições sociais,
leis, etc.
Com o desenvolvimento dessa concepção emerge na década
264
de 1980 o conceito de direitos reprodutivos, como estratégia política das
feministas pela reivindicação das garantias de igualdade, liberdade, justiça
social e dignidade no exercício da sexualidade e da função reprodutiva
(VENTURA , 2006).
Sem dúvida a Constituição de 1988 representa o marco político-
institucional e jurídico, que deu um novo direcionamento em todo o sistema
público brasileiro regulamentando e adequando as normas legais dentro dos
parâmetros direitos humanos. No campo dos direitos reprodutivos os
dispositivos constitucionais são expressos na afirmação à vida digna, a
igualdade de direitos entre homens e mulheres, à integridade física e
psicológica, à proteção a maternidade no âmbito da seguridade social, ao
direito a saúde de forma universal e igualitária, ao direito ao planejamento
familiar, entre tantos outros.
Quanto às primeiras ações governamentais no campo da saúde
contemplando noções básicas a respeito dos direitos sexuais e reprodutivos
podem ser identificadas na década de 1980, como resultado das proposições
do movimento feminista, que inspirado pelas discussões internacionais da
década de 1970, nas quais as proposituras visavam uma nova concepção
para o “natalismo” e o “controlismo”, passando a ser concebido dentro do
exercício dos diretos reprodutivos,como uma condição essencial à cidadania
e de responsabilidade social.
Como respostas a essas reivindicações é lançado,em 1985, pelo
governo federal, o Programa de Atenção Integral a Saúde da Mulher- PAISM,
sua configuração preconiza a criação de uma rede de serviços de saúde com
acesso universal, hierarquizada e regionalizada, que prestasse ações de
controle de riscos de adoecimento, em um contexto onde a rede de saúde
incorporava à assistência médica individual, como foco central.
Osis (1998, p. 27) aponta as seguintes diretrizes que
compunham inicialmente o PAISM:
As diretrizes gerais do programa previam a capacitação do sistema de
saúde para atender as necessidades da população feminina, enfatizando
as ações dirigidas ao controle das patologias mais prevalentes nesse
grupo; estabeleciam também a exigência de uma nova postura de
trabalho da equipe de saúde em face do conceito de integralidade do
atendimento; pressupunham uma prática educativa permeando todas as
atividades desenvolvidas de forma que a cliente pudesse apropriar-se dos
conhecimentos necessários a um maior controle sobre a sua saúde.[...]o
documento em questão dedicava dois itens ao planejamento familiar[...].
Com o processo de implantação do SUS o PAISM passa a sofrer
uma série de inflexões, uma vez que a partir da Constituição de 1988 as ações
de saúde passam a preconizar ações de reorganização da atenção básica,
por meio do PSF passando para os municípios a responsabilidade de gerir a
atenção básica mínima não abrangendo o conjunto de ações previstas para
265
o PAISM.
As críticas ao PAISM extrapolavam essas questões e se inseriam
também no questionamento da integralidade, bem como da ausência do
recorte racial/étnico, uma vez que eram desprezadas doenças inerentes as
mulheres negras. Além dos questionamentos em torno das
instituições de formação profissional, sobretudo as escolas de medicina e
enfermagem, por uma ausência das grades curriculares dos temas
relacionados a saúde da mulher, aos direitos sexuais e reprodutivos e a uma
compreensão ampliada do conceito de integralidade. O que contribui para
uma prática profissional distanciada das reais necessidades das mulheres
até mesmo do ponto de vista ético.
Essas questões levaram, no ano de 2003, à Área Técnica de
Saúde da Mulher do Ministério da Saúde, em processo de construção com o
movimento feminista, de mulheres negras, trabalhadoras rurais, lésbicas,
portadoras de necessidades especiais, a elaborar Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde da Mulher- PNAISM, que passa adotar como
princípios a humanização e a qualidade da atenção em saúde como
condições essenciais para que as ações em saúde se traduzam na resolução
dos problemas identificados, na satisfação das usuárias, no fortalecimento da
capacidade das mulheres frente à identificação de suas demandas, no
reconhecimento e respeito aos direitos e na promoção do auto cuidado.
Segundo Araújo (2005), o propósito do Ministério da saúde, com a
elaboração dessa política é apoiar estados e municípios na construção de um
consenso a cerca da necessidade da elaboração e consolidação de políticas
públicas voltadas para as mulheres, que ocorram de forma integral e
sinérgica, garantido assim uma melhor qualidade de vida as mulheres alvo
dessa política.
Para tanto requer a decisão política dos gestores (as) na
efetivação da política, assim como do papel da sociedade civil com regulador
de todo esse processo.
3 O PROGRAMA SAÚDE DA FAMÍLIA (PSF) E A SAÚDE DA MULHER
Buscando refletir sobre as ações do PSF e abordagem de gênero,
ou apenas o enfoque feminino, observamos que ao mesmo tempo em que era
desenvolvida a proposta do PSF, dentro do movimento feminista as
articulações giravam em torno da implantação do PAISM, que
apresentava um caráter puramente vertical e voltado estritamente para a
saúde da mulher, sendo este produto das reflexões e experiências do
movimento de mulheres na área da saúde e que contava com todo o aporte
ideológico da Reforma sanitária. O período dos anos 1990 que marca a
expansão do PSF é também palco para o processo de extinção do PAISM, os
fatores estavam relacionados à fragmentação, baixa qualidade das ações
desenvolvidas e a falta de vontade política, isso não que dizer o movimento de
mulheres esteve apático a abordagem de gênero no PSF, mas as
266
preocupações se voltaram para uma requalificação do PAISM.
Segundo Portella (2205, p.14);
[...] As elaborações conceituais e políticas a respeito do modo como as
mulheres são tratadas e como os homens são excluídos dos serviços,
assim como as preocupações com a humanização do atendimento e
inexistência na importância da formação continuada de todos os
membros das equipes das unidades de saúde, que resultaram na
reformulação de algumas estruturas e fluxo de atendimento, são algumas
das respostas produzidas pelas feministas para lidar com a evidente
reprodução das desigualdades entre homens e mulheres, operada
cotidianamente pelos serviços de saúde [...]
As mulheres são alvo direto dos serviços ofertados pelo PSF, e
são percebidas prioritariamente como mães, esposas, donas-de-casa, e
principalmente, como cuidadoras da família sendo estas as mediadoras entre
os serviços e a família. Esses fatores contraditoriamente não contribuem para
sua valorização, pois são percebidas como usuárias de difícil
relacionamento, assim como suas queixas são desvalorizadas e não se leva
em consideração os seus contextos sócio-historicos e culturais. A sua saúde
é tratada do ponto de vista da reprodução e planejamento familiar, porém a
sexualidade é tratada com preconceito. A contracepção é percebida apenas
como responsabilidade exclusiva do homem, no qual o enfoque é apenas o
controle da natalidade, a violência doméstica e sexual é encarada com
preconceito e imbuída de medo o que dificulta a notificação compulsória.
(PORTELLA, 2005).
A problemática maior apontada pela autora remete a “cegueira de
gênero”, que constitui a proposta do modelo do Programa, pois
esta ausência permite a produção e reprodução generalizada de valores e
atitudes extremamente conservadoras. A forma conservadora de
abordagem, que esta imbuída na proposta do programa, ao mesmo tempo
em que contribui para melhoria dos indicadores de saúde, no caso específico
das mulheres ao contrario representam um agravo em sua saúde, como é o
caso da violência e das DST's. A ausência do enfoque de gênero leva a
violência institucional e a violação dos direitos sociais.
O problema aponta para uma dimensão muito maior do que a
qualidade e o acesso, mas se insere na recusa do enfoque de gênero na
formulação das políticas sociais, com isso a o desprezo da dimensão
fundamental da vida social, as relações histórica, social e cultural entre
homens e mulheres na sociedade. Sem adoção desse olhar não é possível
pensar em políticas eficazes que venham garantir a efetivação dos direitos
das mulheres. Isso requer não apenas uma revisão programática das ações
dos programas, mas perpassa pela distribuição de recursos humanos e
financeiros, técnicos e materiais.
4 A SAÚDE DA MULHER NO PSF DO BAIRRO DAS INDÚSTRIAS
267
A pesquisa, em tela, teve como espaço investigativo o Bairro das
Indústrias, que se encontra localizado nas proximidades do Distrito Industrial
de João Pessoa, sendo este responsável pelo surgimento desse Conjunto
Habitacional. A população estimada é de 7.755 habitantes, sendo 3.996
compostas por mulheres e 3.759 por homens. Quanto à infra-estrutura o
Bairro conta apenas com 50% das ruas pavimentadas e apenas 2% são
cobertos por rede coletora de esgotos.
Compreender o atendimento do PSF a partir da concepção de
suas usuárias constitui-se o foco central desse estudo, no qual buscamos
traçar uma avaliação do referido programa focalizado na qualidade da
atenção.
Utilizou-se como proposta metodologia a sugerida por Gama
(2006), na qual se dá através de uma abordagem qualitativa e
toma-se como referência a perspectiva dialética no campo das análise
organizacionais, sugerida por Deslandes (1997), buscando associação de
indicadores que referencie uma ótica de gênero.
A pesquisa foi realizada com 23 usuária do PSF do Bairro das
Industrias atendidas freqüentemente pelo programa dentro da faixa etária de
18 á 40. De acordo com os percentuais referentes à faixa etária, constata-se
que há uma prevalência, em torno de 84%, que apresentam entre 26 e 40
anos de idade, evidenciando que a procura aos serviços de saúde, em alguns
casos, ocorre em busca de cuidados com á saúde vinculados a maternidade e
a saúde reprodutiva.
Esses dados também fortalecem as afirmações levantadas por
Coelho (2006) quanto a predominância do enfoque materno-infantil e do
planejamento familiar na assistência à saúde da mulher, assim como do seu
enfoque restrito à atenção básica. O que possivelmente justifica a procura por
faixa etária aos serviços de saúde.
A preocupação inicial centrou-se nos motivos que levam as
usuárias a procurarem os serviços oferecidos pelo PSF. De acordo com os
dados levantados 47,8% das mulheres entrevistadas atribui a proximidade da
sua residência, como foco central à procura da USF. A fala a seguir vislumbra
essa colocação: “o atendimento é ruim. Eu venho por que é aqui perto da
minha casa e eu não tenho dinheiro para pagar o transporte. Imagine a
consulta!” (RE 4)
Em contra partida 43,5% das entrevistadas apontam como
principal aspecto que as fazem acessar os serviços da USF estão vinculados
ao caráter público, que em sua grande maioria encontra-se vinculado a falta
de recursos financeiros para busca de outros espaços.
A questão da confiabilidade das mulheres em torno das questões
especificas da sua sexualidade é um dos pontos problemático visto que
muitas mulheres apontam a necessidade de procurar outros
serviços para tratar como é colocado “dos aspectos ginecológicos”. Isso
268
ocorre por conhecimento cotidiano com os (as) profissionais do PSF, o que
faz com que não se citam a vontade, onde na verdade os sentimentos
deveriam ser diferenciados. As causas podem estar associadas a forma de
abordagem, ao caráter impositivo dos saberes e a falta de ética de alguns
profissionais, sobretudo os ACS's.
O recorte de prevenção e promoção à saúde da família, que
constitui o direcionamento do programa foi diluído em ações focais e de
cunho curativo. Quanto à abordagem da saúde da mulher esta ocorre focada
no modelo de assistência como foco a “mulher mãe”, limitando o atendimento
à reprodução e ao planejamento familiar. As questões à cerca da violência
doméstica são encaradas como restrito ao foco familiar não cabendo o
envolvimento do (a) profissional. Por fim, o caráter preventivo e educativo é
desprezado, pois o atendimento continua centrando-se nas consultas
individuais.
O atendimento médico é utilizado pela maioria das mulheres
entrevistadas, cerca de 95,7%. O que é perfeitamente concebível, tendo em
vista a centralidade do saber médico. Porém, é surpreendente que das
mulheres indagadas apenas 17,4% afirmem participar do planejamento
familiar oferecido na USF, uma vez que a maioria encontra-se em idade
reprodutiva, são mães e tem parceiros fixos. Vale destacar, que o dia
reservado ao planejamento familiar é denominado na USF como “o dia da
mulher”, pois é específico para prevenção do câncer do colo do útero,
consultas ginecológicas, distribuição de contraceptivos, entre outros.
Mesmo prevalecendo entre as mulheres um percentual de 52,2%
satisfeitas com o atendimento, por outro lado os fragmentos de algumas falas
levantam aspectos extremamente preocupantes. Como se pode observar as
afirmações da entrevistada 8: “Deixa pouco a desejar, porque ela às vezes
não olha nos seus olhos, não pergunta o que você esta sentindo, se você tem
algo na pele, ela não pede para mostrar. O médico tem que ser
completo, tem que chegar perto, atender, fazer muitas perguntas, o que você
esta sentindo, o que não esta, incentivar outras coisas que você não tem
noção para fazer.” (RE 8)
O relato acima aponta elementos muito problemáticos, que
perpassam desde a forma do atendimento, ao respeito com o paciente, e por
fim a especialização médica, que constitui um dos maiores problemas do
PSF, pois a estrutura desse programa exige um médico generalista, mas a
dificuldade de firmar profissionais faz com que os gestores municipais
desconsiderem essa prerrogativa, colocando em cheque a saúde e vida dos
(as) usuários (as).
Os resultados apresentados demonstra que durante as consultas
médicas, na maioria dos atendimentos, só há a preocupação com as queixas
apresentadas, conforme relata 65% da mulheres entrevistadas,
desconsiderando a abordagem de aspectos inerentes a saúde integral da
269
mulher. Nesse enfoque segue trechos de depoimentos das entrevistadas:
Não eu acho que o médico, se eu falo com você, você tem que entrar na
minha vida”. “Por exemplo: fazer um citológico, procurar porque, se esta
em dia com o exame de sangue, se quer fazer exame de HIV, um exame
de sífilis, fazer perguntas, não tem necessidade a pessoa pedir tanto, as
pessoas já estão saturadas da vida, das doenças que ate esquece de
pedir”. “Como ser humano ela é uma pessoa boa, mas como profissional
tem alguma coisa a desejar. (RE 15)
Em uma avaliação em que 40% das mulheres aprovam o
atendimento e 12% desqualificam, contradiz a atual situação da saúde no
país, passando pela ausência da atenção à saúde nos seguintes parâmetros:
desfinanciamento do setor saúde, descaracterização do princípio
constitucional da integralidade, desintegração das três esferas de governo:
federal, municipal e estadual.
Fica evidente nos relatos das mulheres entrevistadas a
fragilidade do atendimento médico, que deixa a desejar desde o trato com as
usuárias, aos horários, abordagens e tratamento, mas é evidente a falta de
humanização dos profissionais da USF, assim como as dificuldades de
acesso aos serviços de referência e contra referência. Essa
questão suscita a integralidade das ações de saúde voltadas para as
mulheres.
A resolutividade dos problemas de saúde a partir do atendimento
na USF é compreendido pelas usuárias como possível sempre que há a
procura, seguido de 22% da entrevistadas que afirmam que nem sempre a
uma devido tratamento e um número considerável de 30% das entrevistadas
reconhecem que diante das fragilidades apresentadas não o solucionamento
das queixas em relação á sua saúde no PSF.
As mulheres ao refletirem sobre o significado da instalação da
USF na localidade onde moram, avaliam negativamente e cerca de 43% das
entrevistadas afirma não vislumbrar melhorias nas suas condições de saúde,
muito pelo contrario 14% das mulheres asseguram que ocasionou a
complicação na marcação de exames e 33% das mulheres apontam a
proximidade da USF de suas residências um fator relevante.
A justificativa, por parte das entrevistadas, em relação às
possíveis melhorias na sua qualidade de vida está focada no caráter
imediatista da saúde mediante da sua relação com o estado da sua
enfermidade. Desse modo há a valorização das abordagens curativas em
detrimento das preventivas, bem como a justificação de ações focais.
2 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As reflexões levantadas a cerca da saúde da mulher e de como
esta é abordada nos programas de saúde desenvolvidos pelo SUS, em
_____________________________________________________________

105
Dados do censo do IBGE realizado no ano 2000

270
particular o PSF, partem de uma abordagem de gênero por conceber o
processo saúde x doença associado não apenas aos aspectos biológicos,
mas arraigado nas construções históricas e sociais, que marcam as relações
desiguais entre homens e mulheres na sociedade.
No Brasil, a constituição de 1998, apresenta entre outros avanços
sociais o princípio da integralidade como aspecto central no desenvolvimento
das ações no âmbito da saúde. Integralidade esta já fazia parte dos
programas desenvolvidos para a melhoria da qualidade de saúde da mulher,
como é o caso do surgimento do PAISM em 1983 e que é
reafirmado com a PNAISM em 2003. Integralidade nas ações e políticas de
saúde para as mulheres subitem a operacionalidade prevendo integração
das ações de promoção, prevenção ou recuperação, cujo enfoque não se
restrinja a penas a concepção mulher mãe e sobretudo reprodutora, mas
ações que extrapolem essa visão e abranja todos os aspectos
biopsicossocial garantindo assim a minimização das desigualdades de
gênero, raça e etnia.
Na verdade verifica-se o verdadeiro descompasso em o âmbito
das proposições e o da efetividade, como foi o caso do PAISM e na
contemporaneidade do PNAISM.
Com a expansão do PSF na década de 1990, acreditava-se que
este iria produzir a capilaridade entre os serviços de saúde e integrar as ações
assistenciais na comunidade.
Em torno dessas constatações constituiu-se as questões que
nortearam essa pesquisa tendo em vista que a forma como o PSF tem
trabalhado a saúde da mulher não tem contribuído significativamente para a
melhoria da qualidade de vida dessa mulheres, assim como não exerce o seu
papel de prevenção dos agravos a saúde da população. A exemplo a falta de
ações educativas, abordagem da sexualidade feminina, violência,
precarização das redes de referência e contra-referência e tantos outros.
Desse modo, a existência dessa realidade põem em xeque o
princípio da constitucional integralidade da à saúde da mulher.
É verdade que a atual conjuntura, em que se insere, as políticas
sociais em especial o SUS vislumbra-se a ênfase na focalização, na
precarização e no desfinanciamento das ações. A exemplo da focalização o
PSF vem se constituindo em um programa de extensão da atenção as
famílias de baixa renda descaracterizando o princípio constitucional da
universalidade, bem como apresenta a ausência de uma devida
(re)organização do sistema, prevendo as ações de atenção básica aos
demais níveis de assistência.
A pesquisa realizada aponta também para problemas de ordem
técnica, estrutural e de humanização. Nessa verifica-se a confusão de papéis
entre a médica e a enfermeira pela população; por outro lado as queixas das
mulheres são relativizadas e há pouco espaço para escuta; a caráter do
271
atendimento é extremamente curativo não havendo ações educativas; as
mulheres principais usuárias do programa são vistas como esposas-mãe e a
sua saúde é tratada de forma limitada a reprodução e ao planejamento
familiar; a figura do agente de saúde é concebida com desconfiança por
algumas; as dificuldades de acesso aos espaços de referência e contra-
referência marcam a vida das mulheres. Por fim, não se há percepção de
gênero nas ações do programa o que permite a reprodução de valores e
práticas conservadoras.
A partir desse estudo não só pode-se comprovar estas questões
como também constatar o elevado grau de desproteção social a que estão
expostas as mulheres atendidas pelo PSF.

272
REFERÊNCIAS
ARAÙJO, Maria José de O. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde
da Mulher: Antigas necessidades e novas perspectivas. Jornal da Rede
Feminista de Saúde.Belo Horizonte, n. 27. setembro de 2005. p. 6-9.
GAMA, Andréa de Souza. Gênero e avaliação da qualidade da atenção em
serviços de saúde reprodutiva. In: Bravo, Maria Inês de Souza (Org.).
Saúde e Serviço Social.São Paulo: Cortez; Rio de Janeiro: UERJ, 2006.
GIFFIN. Karen. Pobreza, desigualdade e eqüidade em saúde:
considerações a partir de uma perspectiva de gênero transversal. In:
Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro. v. 18. 2002. Disponível em
:http://www.scielo.br. Acesso em: 10 de dez. 2006.
FUNDAÇÃO INSTITUTO BRASILEIRO DE ESTATÍSTICA E GEOGRAFIA.
(IBGE). Censo Demográfico- 2000. Características da População e dos
Domicílios. João Pessoa: Unidade Estadual do IBGE da Paraíba, 2002.
OSIS, Maria José M. D. Paism: um marco na abordagem da saúde
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1998.Disponível em :http://www.scielo.br. Acesso em: 23 de set. 2004.
PITANGUY, Jacqueline. MIRANDA, Dayse. As mulheres e os direitos
humanos. In: O Progresso das Mulheres no Brasil. Brasília. UNIFEM.
FORD FOUNDATION. CEPIA. 2006.
PORTELLA. Ana Paula. O Programa de Saúde da Família e a Saúde da
Mulher. Jornal da Rede Feminista de Saúde. Belo Horizonte, n. 27. setembro
de 2005. p. 14-17.
VENTURA. Mirian. Saúde feminina e o pleno exercício da sexualidade e
dos direitos reprodutivos. In: O Progresso das Mulheres no Brasil.
Brasília. UNIFEM. FORD FOUNDATION. CEPIA. 2006.

273
PROGRAMA DE ATENÇÃO INTEGRAL À SAÚDE DA MULHER –
PAISM: entre as diretrizes nacionais e a realidade em Imperatriz

Conceição de Maria Amorim


1 INTRODUÇÃO
A construção de políticas públicas dirigidas à saúde da mulher no
Brasil é parte das profundas mudanças societárias das últimas décadas,
através das lutas do movimento feminista, aliadas às profissionais da saúde
do movimento sanitarista, comprometidas com a filosofia de saúde enquanto
direito e preocupadas em garantir à mulher assistência integral, enfatizando a
preocupação com seu corpo de forma integral, “e não apenas como órgãos
isolados, a serem tratados por diferentes especialistas" (OSIS, apud
NAGAHAMA, SANTIAGO 2005, p.).
Este debate tem início em 1983, cujo desdobramento resultou na
implantação do Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM). A
partir de então, o Programa passa a ser gradativamente implantado, em
diversos Estados do Brasil.
O PAISM demarca um novo campo de visão e ação da saúde da
mulher, ao romper com o modelo maternoinfantil retrógrado e conservador,
que via a mulher como uma mera reprodutora. Embora não tendo sido
implantado dentro da filosofia original, foi um marco na luta das mulheres por
saúde, direito reprodutivo, cidadania e pelo seu reconhecimento enquanto
sujeito de direito, significando uma conquista importante para a sociedade
brasileira.
Ao eleger esse tema de estudo, tem-se a pretensão de
compreender em que contexto se deram as ações de saúde da mulher, em
Imperatriz. Tal escolha também foi motivada por conversas com as
funcionárias, durante período de estágio no Programa da Saúde da Mulher do
Município de Imperatriz, e percebe-se que a equipe de saúde do PAISM não
conhece as diretrizes nacionais, não foram capacitadas na perspectiva das
relações de gênero ou violência doméstica e familiar contra a
mulher. Essa constatação despertou a curiosidade de avaliar se o Programa
de Atenção Integral à Saúde da Mulher responde aos princípios norteadores
da integralidade na assistência à saúde da mulher, em Imperatriz.
Esse estudo foi construído a partir de pesquisa de campo
orientada por abordagem quantiqualitativa, através de coleta de dados.
Utilizaram-se técnicas de entrevistas, observação direta e pesquisa
documental. Os instrumentos utilizados, questionários abertos, roteiros de
entrevistas estruturadas, pesquisas documentais realizadas em fichas de
atendimento das usuárias, encaminhamentos ao Serviço Social, Relatório de
Atividades de 2005 a 2007 e atas do Conselho da Mulher permitiram
compreender a dimensão desse Programa, neste município.
Os dados foram coletados de forma sistematizada, utilizando-se
275
elementos quantitativos e qualitativos com vistas a responder aos objetivos
específicos propostos. Para a análise dos dados da pesquisa, empregou-se o
método dialético, tendo em vista que este se refere à arte do diálogo e da
discussão. Trata-se de um método de inquirição da realidade pelo estudo e
sua ação recíproca.
Para a dialética, não há nada definitivo, de absoluto, de sagrado.
Apresenta a lógica de todas as coisas e em todas as coisas e, para ela, nada
existe além do processo contínuo do devir transitório.
A dialética é ciência que mostra como as contradições podem ser
concretamente idênticas, como passam uma na outra, mostrando
também porque a razão não deve tomar essas contradições como coisas
mortas, petrificadas, mas como coisas vivas, móveis, lutando uma contra
a outra em e através de sua luta. (LEFEBVRE, 1979, p. 192 ).
Ao construir os dados dessa pesquisa de forma cuidadosa,
buscando não somente a visão das mulheres usuárias, mas também dos
profissionais de saúde, teve-se a consciência de que as respostas têm várias
faces, várias visões, inúmeras verdades, causas e conseqüências. Assim se
move o pensar dialético. As verdades aqui construídas são frutos dessas
reflexões e das experiências que não são movidas pela neutralidade, uma
vez que os pesquisadores que fazem ciência, usando o método
dialético, não se furtam de expressar suas visões e suas paixões, fruto de
análise e estudos em que se constituem em muitas situações protagonistas.
(FERREIRA, 2007).
2 SAÚDE DA MULHER: lutas e conquistas
A política pública de atenção à saúde da mulher está vinculada à
luta dos movimentos feministas, que culminou com a formulação de uma
Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher. Segundo Costa
(1997), a integralidade pensada na formulação do PAISM, no início dos anos
80, tinha por inspiração tanto os valores que norteavam o movimento
sanitário quanto aqueles advindos da reflexão feminista.
Dessa forma, incluía tanto a idéia de integração das distintas
modalidades e níveis de assistência, quanto a perspectiva da integralidade
dos sujeitos sociais. Como resultado, suas diretrizes propunham a
assistência à saúde nas diferentes etapas da vida das mulheres, tendo a
integralidade como principal estratégia de reorganização dos serviços de
saúde. Por outro lado, a compreensão de que a organização das práticas de
saúde apóia-se em valores que produzem e reproduzem as desigualdades de
gênero, as propostas originais do PAISM pretendiam influir na construção de
novos valores com vistas à emancipação das mulheres.
No plano das relações entre usuárias e serviços de saúde, o
PAISM privilegiou a sensibilização de profissionais na busca de melhoria da
qualidade da atenção e humanização das práticas assistenciais.
Esta desconstrução partia da premissa de não permitir o controle
276
da sexualidade e da reprodução como simples instrumento para assegurar o
controle populacional e reproduzir a força de trabalho nos modos subalternos
em que as relações sociais são estabelecidas no sistema capitalista.
Desta forma, o pensamento do Movimento Feminista se reafirma
no Espaço Acadêmico na perspectiva de combater a visão de uma
sexualidade socialmente útil e politicamente conservadora, que questionava
a prática do saber médico acima de todos os saberes, que se
fortalece no método das especializações.
1 A SAÚDE DA MULHER E AS RELAÇÕES DE GENÊRO
Quando se fala de gênero, fala-se de relações sociais e, segundo
dizia o filósofo francês Michel Foucault, falar de relações sociais é falar de
relações de poder, poder que se exerce nos espaços privado e público.
Para Eleonora Menicucci de Oliveira, (2008):
O uso da categoria de gênero como relacional de poder nos estudos na
área da saúde integral da mulher, direitos reprodutivos e direitos sexuais
problematiza as práticas e os exercícios das sexualidades ao
(des)naturalizar e (des)banalizar as relações entre os sexos e intrassexos.
Essa problematização ilumina as expressões das necessidades de saúde,
articulando-as às necessidades que estão ancoradas nas esferas da
subjetividade e mentalidades, como o preconceito e a discriminação.
A experiência com as pesquisas na área da saúde integral da
mulher tem sido valiosa para tornar visível a que nível se dão as relações de
gênero, em nossa sociedade, e o quanto sofrem, em maior intensidade, as
mulheres negras, indígenas, lésbicas, portadoras do vírus HIV, que precisam
do atendimento médico na rede pública ou privada. Estas têm sua saúde
tratada com um maior grau de desrespeito e desumanização, independente
do atendimento ser feito por um profissional homem ou mulher.
Como gênero é relacional, segundo Saffiotti (1992, p.36), quer
enquanto categoria analítica, quer enquanto processo social, “o conceito deve
ser capaz de captar a trama das relações sociais”, os graus de risco a que
está exposto o conjunto da população. É necessário, também, serem
observados os padrões distintos de sofrimento, adoecimento e morte a que
estão expostos, distintamente, homens e mulheres.
4 DIRETRIZES DO PAISM
O Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM)
teve sua formulação no início da década de 80. Tinha como principal
perspectiva a superação da afirmação maternoinfantil nas ações de saúde da
mulher.
É por meio de políticas públicas que o Estado adquire
legitimidade para agir sobre um grupo de indivíduos ou sobre um dado
segmento da sociedade, na tentativa de praticar ações interventivas que
interfiram positivamente nas condições de vida desses indivíduos ou
segmentos sociais.
277
Conforme Mary Ferreira, (1999, p. 35), em sua obra “Mulher
Gênero e Políticas Públicas” preconiza que:
A formulação de políticas públicas pode ser vista como um processo que
se constrói a partir de um diálogo entre o Estado, através de seus diversos
poderes – executivo, legislativo, judiciário – e os grupos de interesse e de
pressão representados por partidos políticos, sindicatos, grupos
autônomos, organizações não governamentais, cidadãos e cidadãs.
O PAISM funcionou como Programa de Atenção à Saúde da
Mulher, desde sua implantação, até 2004, quando, em 28 de maio de 2004, o
ministro da Saúde, Humberto Costa, lançou a - Política Nacional de Atenção
Integral à Saúde da Mulher – PNAISM - Princípios e Diretrizes, construída a
partir da proposição do SUS, respeitando as características da nova política
de saúde. (MS 2008).
Esses parâmetros de saúde integral, dentro de uma concepção
de garantia de direitos, remetem-nos a compreender alguns de seus marcos
na constituição de tais diretrizes para execução de uma Política Nacional,
Estadual e Municipal de Atenção Integral à Saúde da Mulher.
O Sistema Único de Saúde deve estar orientado e capacitado para a
atenção integral à saúde da mulher, numa perspectiva que contemple a
promoção da saúde, as necessidades de saúde da população feminina, o
controle de patologias mais prevalentes nesse grupo e a garantia do
direito à saúde. (BRASIL, 2004).
Executar ações no controle de patologias mais prevalecentes
entre as mulheres, respeitando e reconhecendo suas subjetividades, grupos
étnicos, nível e grau de vulnerabilidade social entre outros elementos e
fenômenos, ainda é um grande desafio.
A Política de Atenção à Saúde da Mulher deverá atingir as mulheres em
todos os ciclos de vida, resguardadas as especificidades das diferentes
faixas etárias e dos distintos grupos populacionais (mulheres negras,
indígenas, residentes em áreas urbanas e rurais, residentes em locais de
difícil acesso, em situação de risco, presidiárias, de orientação
homossexual, com deficiência, dentre outras). (BRASIL, 2004).
O planejamento e a avaliação como prática sistemática nos
diversos níveis dos serviços de saúde propiciam aos gestores a definição de
estratégias de intervenção, mais próxima da realidade epidemiológica da
saúde da mulher.
As políticas de saúde da mulher deverão ser compreendidas em sua
dimensão mais ampla, objetivando a criação e ampliação das condições
necessárias ao exercício dos direitos da mulher, seja no âmbito do SUS,
seja na atuação em parceria do setor Saúde com outros setores
governamentais, com destaque para a segurança, a justiça, trabalho,
previdência social e educação. (BRASIL, 2004).
A integralidade do Programa pressupõe ações construídas a
278
partir da concepção de intersetorialidade, comunhão de saberes e fazeres
coletivos, que perpassem o espaço físico do atendimento, em que se veja a
usuária como um todo e se garanta uma atuação permanente na prevenção e
promoção da saúde, considerando as especificidades e as relações de
gênero na sociedade patriarcal, capitalista comprometida com as políticas do
neoliberalismo.
O SUS deverá garantir o acesso das mulheres a todos os níveis de
atenção à saúde, no contexto da descentralização, hierarquização e
integração das ações e serviços. Sendo responsabilidade dos três níveis
gestores, de acordo com as competências de cada um, garantir as
condições para a execução da Política de Atenção à Saúde da Mulher.
(BRASIL, 2004).
A prática da Atenção Básica permeada pela integralidade traz
para o campo da assistência à saúde da mulher a perspectiva de
transformação das práticas de assistência à saúde até então perpetradas no
Brasil. Significa ter acesso a uma saúde que considera toda a situação vivida
pelo coletivo, onde vive aquela usuária; significa a atuação dentro do
Programa de equipes multiprofissionais que planejam e avaliam,
conjuntamente.
Compreende-se que a participação da sociedade civil na implementação
das ações de saúde da mulher, no âmbito federal, estadual e municipal
requer – cabendo, portanto, às instâncias gestoras – melhorar e qualificar
os mecanismos de repasse de informações sobre as políticas de saúde
da mulher e sobre os instrumentos de gestão e regulação do SUS.
(BRASIL, 2004).
O controle social é um grande desafio dos gestores municipal,
estadual e federal. Uma gestão transparente que inclua a população,
profissionais da saúde, gestores e prestadores, em Conselho de Saúde, em
comissões de planejamento, execução e avaliação, em comitês qualificados,
autônomos e representativos. É uma luta política permanente. Mesmo que
estes instrumentos estejam previstos nas normas técnicas e legislação do
Sistema Único de Saúde, continuam sendo um grande desafio para o
conjunto da sociedade e dos governos.
5 IMPLANTAÇÃO DO PAISM EM IMPERATRIZ
O primeiro contato que os trabalhadores da Saúde de Imperatriz
tiveram com o Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher, segundo o
médico ginecologista Pedro Mário, foi no começo da década de 90. Este
profissional foi convidado para uma capacitação, em São Luís, no entanto, as
ações não se concretizaram. No Maranhão, o Programa foi implantado pela
Secretaria de Desenvolvimento Social que continuava vinculando a saúde
materna à infantil. Segundo Pedro Mário, na capacitação, o Programa foi
apresentado como PAISMC- Programa de Atenção à Saúde da Mulher e da
Criança. Em 2001, o poder público municipal decidiu pela implantação e o
279
convidou para implantar e coordenar o PAISM.
O PAISM foi implantado, em Imperatriz, no dia 08 de março 2001.
Segundo a Secretária Municipal de Saúde, à época, a implantação se deu por
reivindicação do Movimento de Mulheres de Imperatriz.
Maria da Conceição Medeiros Formiga, uma das lideranças do
Movimento de Mulheres, lembra que foi entregue ao Prefeito eleito, para o
mandato de 2000 a 2004, uma pauta ampla de reivindicação,
entre elas a implantação do PAISM. Sobre este asunto ela ressaltou que:
Esta era uma reivindicação antiga do Movimento de Mulheres e
Feministas de Imperatriz, até porque o Programa estava sendo
implantado em outros estados e municípios do país desde 1984. Mesmo
sendo uma das reivindicações prioritárias para o movimento e pautadas
em todas as reuniões entre o Poder Público e a Sociedade Civil só foi
atendida no ano de 2001. (FORMIGA, 2008)
O médico ginecologista Pedro Mario afirmou ter montado toda a
estrutura do Programa à luz de sua experiência pessoal.
Para (M.J), militante feminista do Centro de Direitos Humanos
Padre Josimo, a “implantação do PAISM se deu num embate político pela
participação do Movimento de Mulheres nas deliberações sobre como, onde
e quem deveria estar à frente do Programa”.
6 ESTRUTURA ATUAL DE FUNCIONAMENTO
O Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher funciona no
Centro de Saúde Três Poderes, Rua Itamar Guará, S/N, Jardim Três Poderes.
O atendimento ao público se dá de segunda a sexta-feira, das 7hs às 12hs,
Segundo informação da Coordenação do Programa e os
Relatórios de Atividades de 2005 a 2007, as usuárias são encaminhadas pelo
Programa de Saúde da Família para as consultas ginecológicas. Após tais
consultas, podem ser encaminhadas para procedimentos no próprio
Programa, tais como: Exame Citopatológico (PCCU), Histopatológico,
Colposcopia, Biópsia, Cirurgia de Alta Freqüência - CAF, Consultas
Ginecológicas, Consultas Mastológicas, Atendimento ao Climatério,
Atendimento Equipe Multiprofissional, Inserção do DIU, Cirurgias
Ginecológicas, Conização, e Palestras Educativas. As usuárias que
necessitam de outros tipos de exames são encaminhadas para a rede
credenciada.
Foram realizadas entrevistas com 09 funcionárias. Perguntadas
se a equipe recebeu capacitação sobre questão de relações de gênero, 06
afirmaram, categoricamente, não ter havido capacitação na
perspectiva das relações de gênero para a equipe, e 03 funcionárias
responderam textualmente:
“Sim – recentemente tivemos uma palestra sobre coleta
citopatológica de colo de útero” (Funcionária 1)
280
Freqüentemente estamos nos capacitando desde o ACS, Agente
Comunitário de Saúde, enfermeiras das equipes do PSF, médicos,
auxiliar de enfermagem, sempre se capacitando nas várias situações que
atendemos a saúde da mulher, desde a questão do Planejamento...Pré
Natal...(Coordenadora)
Percebe-se, nas afirmações, o desconhecimento do termo
“relações de gênero” pelas profissionais que afirmaram terem recebido a
capacitação, que se concretiza quando enfocam as temáticas dos cursos.
Sobre a capacitação de atendimento à mulher vítima de violência,
segundo o médico ginecologista Pedro Mário, na época da implantação do
Programa:
Não houve nenhum pensamento nem meu. Não sei se houve por alguém
de assistência, até porque, aí, entra uma culpa minha. Na qualidade de
médico, a gente, vê de imediato, a questão do estupro, aí vê a violência
doméstica como uma questão de agressão que deveria ser assistida pela
Policia...Mas essa tem uma assistência melhor em termos de assistência
médica, porque sendo uma agressão física, ela encontra o hospital
municipal que atende urgência e emergência, numa boa lá [..]. (Pedro
Mário)
As demais profissionais entrevistadas confirmam que a equipe
não recebeu qualquer capacitação sobre o atendimento às mulheres vítimas
de violência. Segundo uma das profissionais, esta é “uma questão de suma
importância a ser debatida e avaliada pela equipe como um todo”.
A relação da violência contra a mulher e a sua saúde tem se
tornado, cada vez, mais evidente, embora a maioria das mulheres não relate
que viveu ou vive em situação de violência doméstica. Por isso, é importante
que os profissionais de saúde sejam treinados para identificar, atender e
tratar as pacientes que se apresentam com sintomas que podem estar
relacionados a abuso e agressão.
As funcionárias foram questionadas se conheciam as Diretrizes e
Princípios do PAISM e a maioria afirmou não conhecê-las.
Também foram questionadas se a equipe se reúne para avaliar, planejar e
trocar informações sobre perfil socioeconômico, psicológico ou sobre as
incidências de doenças das usuárias. Todas responderam que não.
As falas da maioria das profissionais entrevistadas sobre as
dificuldades na implementação das ações no PAISM apontam para as
questões ligadas à infraestrutura do espaço, à qualidade do atendimento,
reconhecendo, principalmente, a falta de informação entre funcionárias e
usuárias. Apenas uma manifestou a preocupação com a falta de avaliação e
planejamento.
Quanto às usuárias, 70% disseram que foram bem atendidas, 24%
disseram que não foram bem atendidas e 6% não responderam. As principais
queixas das usuárias quanto ao atendimento são o longo tempo de espera e o
281
curto tempo dedicado a elas na consulta, filas, falta de condições adequadas
do espaço, falta de informações sobre o funcionamento, erros em dados ou
registros, falta de comunicação sobre assuntos de seu interesse.
Quando as perguntas passaram a questionar acerca do
atendimento, percebemos uma grande resistência a cada resposta. A
preocupação de não se exporem, de não se prejudicarem, além do elemento
“medo” de prejudicar alguém é explicito. Há a compreensão de que, por se
tratar de um atendimento público, é natural que as consultas sejam rápidas,
que os exames não sejam marcados ou que os prazos estabelecidos não
sejam cumpridos.
A relação da usuária com o SUS se dá com base em uma regra
incisiva, em nível de sua consciência prática, embora rejeitada, muitas vezes,
no aspecto discursivo. É a de que os serviços de saúde pública são tidos
como uma espécie de favor à população mais pobre do país, bem longe de
ser um exercício de direito de cidadania.
As usuárias sentem isso, concretamente, na maneira de serem
tratadas, especialmente quando necessitam de informações básicas.
Geralmente, recebem respostas evasivas ou não recebem
respostas, gerando uma percepção de um expressivo descaso para com
elas, nas diversas interfaces com os serviços de saúde.
Desse modo, a maioria das entrevistas expressou um sentimento
em que predomina a imagem na qual não são vistas como cidadãs, no
entanto, depois de todas as queixas relatadas, elas preferem que a
pesquisadora marque sim - que foram bem atendidas - porque “não vai
adiantar nada mesmo dizer que não foi”.
O nível de escolaridade da maioria das entrevistadas, ou seja,
43% entre analfabetas e com, no máximo, o ensino fundamental completo,
contribuí para o baixo senso crítico, até mesmo pela dificuldade que a usuária
tem de se apropriar das políticas públicas como um dever do Estado e direito
do cidadão.
Indagadas às usuárias se conheciam os serviços do PAISM, 68%
disseram não conhecê-los e 32% disseram conhecer os serviços prestados
pelo Programa. Estes dados não só confirmam o desconhecimento das
usuárias sobre o funcionamento, mas como também reafirmam a
constatação feita, acima, por algumas funcionárias, que admitem a falta de
diálogo e conhecimento entre as equipes, desde a atenção básica, nos PSF's,
até os serviços de especialidades e referência.
Algumas usuárias relatam que têm dificuldades para conseguir
informações das atividades desenvolvidas, no Posto de Saúde.
As usuárias vêm para o Programa encaminhadas pelos PSFs,
sem nenhum prontuário, sem nenhuma informação sobre sua vida
epidemiológica, e são tratadas apenas no aspecto ginecológico, sem que se
garanta a contra referência. Ela é cadastrada em uma ficha do atendimento
282
ginecológico, e, na primeira consulta, são pesadas, medem a pressão e
fazem a consulta. Das mulheres entrevistadas, 68% fizeram consulta
ginecológica, 13% fizeram o papanicolau, 7% procuraram o programa para a
colocação do DIU, 3%, em busca de laqueadura e 3%, outros. Questionadas
sobre o tempo da consulta, 50% responderam ter durado 5
minutos, 25% 10 minutos, 22% 15 minutos e 3% não souberam dizer.
Portanto, a média de tempo, segundo as usuárias, fica em torno de 8,54
minutos.
Das mulheres atendidas em consulta ginecológica, 93%
disseram que o médico não fez exames locais, mas todas receberam
solicitação de exames.
Esta é uma situação generalizada no atendimento médico. Além
de pesquisar o tempo gasto na consulta entre as usuárias, observamos,
durante 5 dias, o fluxograma de atendimento. Contabilizamos 54
atendimentos com um tempo de duração de, no máximo, 3 a 4 minutos e 12
atendimentos, no período máximo, de 5 minutos. Considerando as mulheres
que estão vindo para a primeira consulta, percebe-se uma grande frustração
quando as mesmas saem do consultório sem serem “examinadas” e com
vários pedidos de exames para carimbar.
Como se assiste, integralmente, uma mulher com uma consulta
ginecológica que dura, no máximo, 5 minutos? Qual o tempo que é reservado
à escuta dessa paciente sobre suas queixas acerca do sofrimento vivido por
sua pressão arterial, sua dor na coluna? Qual o tempo que se reserva para
que este médico se inteire sobre as condições de saúde, além do seu útero ou
mama? Qual a carga de trabalho doméstico dessa usuária? Como ela vive
sua sexualidade? Ela decide sobre seu corpo? Toma decisão com respeito a
sua vida pessoal e quanto aos aspectos reprodutivos? Ela sofre violência
física, psicológica, moral, material ou sexual? Ela sofre discriminação por
causa de sua cor, idade, orientação sexual? Conhece sobre seus direitos à
saúde e à cidadania?
Quanto ao tempo gasto para marcar os exames no Programa,
77% demoraram até 30 dias, 15% mais de 30 dias e 8% mais de 60 dias.
Outro grande problema é a demora na entrega dos resultados dos exames,
como no caso do Papanicolau, A coleta é feita no Programa e em alguns
Postos de Saúde, e os exames são feitos em laboratórios credenciados, além
da demora na entrega do resultado, que, geralmente, não
acontece na data marcada, criando uma expectativa muito grande e,
dependendo do caso, as usuárias se sujeitam a pagar o exame particular
para não perder prazos.
No que se refere ao atendimento médico, 43% consideram a
consulta boa, 36 % consideram a consulta regular, 8%, ruim e 8% não
quiseram responder.
As usuárias do PAISM expressam, contraditoriamente, sua
283
satisfação com uma consulta que, na maioria das vezes, aconteceu num
tempo insuficiente para elas esclarecerem dúvidas, receberem informações
mais detalhadas sobre sua saúde, o que constitui um elemento a ser refletido,
considerando o nível de escolaridade o que influência sua capacidade crítica.
Perguntadas sobre os principais avanços no PAISM, as
profissionais entrevistadas consideraram a reforma física do espaço e a
ampliação do quadro de funcionários.
Quando perguntadas se avaliam que o Programa, em Imperatriz,
consegue efetivar o que está determinado pelas diretrizes nacionais, todas as
funcionárias responderam que não.
Nas 224 fichas analisadas, constatamos que, no período de 06 anos,
não foi registrado o atendimento de nenhuma criança de 0 a 12 anos. Apesar
de o Programa manter, em seu quadro de funcionários, uma ginecologista só
para esse público, apenas 4% de adolescentes entre 13 e 18 anos, 21% de
19 a 30, 35% de 31 a 40 anos, 25% de 41 a 50 anos e 15% mais de 50 anos
passaram por essa profissional.
Portanto, 56% das usuárias são mulheres em faixa etária de
fertilidade. Um dado muito importante é que destas, 73% são laqueadas,
apenas 17% usam métodos reversíveis de contracepção. Entre as 224
usuárias, 52% são casadas, 23% solteiras, 3% viúvas e 22% não foi
registrado o estado civil da usuária.
As usuárias do PAISM tiveram registradas a seguinte escolaridade:
9% de analfabetas, 15% de alfabetizadas, 19% com ensino fundamental,
20% com ensino médio, 2% com ensino superior e 35% das fichas não
registravam a informação. O nível de escolaridade está relacionado a
importantes fatores sobre a saúde da mulher. Este é um dado de elevada
relevância que se apresenta para o desenvolvimento humano, no sentido de
que o conhecimento despertado pela escolaridade atenua as desigualdades
em diversas esferas da vida.
Estudo recente apresentado pela 3ª Pesquisa Nacional de
Demografia em Saúde (PNDS), apresentada em Brasília, dia 03 de julho de
2008, mostra que 10% das mulheres brasileiras - cerca de 10 milhões de
pessoas - têm dificuldades de cuidar de si e de seus filhos e até mesmo ter
acesso às políticas públicas de saúde porque não têm escolaridade básica.
A pesquisa mostra que, apesar da redução na mortalidade infantil
no país, 20% dos filhos nascidos vivos de mulheres sem estudo morrem antes
de completar um ano. Na faixa superior de escolaridade, com 12 anos ou mais
de estudo, a mortalidade dos bebês é praticamente zero.
Segundo esses estudos , até mesmo o direito de escolher ter
esses filhos é mais difícil para as mulheres com menor escolaridade, basta
ver as diferenças nas taxas de fecundidade. Enquanto aquelas com mais
estudo têm, em média, um filho - inferior até mesmo à taxa de reposição da
população, que é de dois filhos - mulheres que nunca freqüentaram a escola
284
têm, em média, 4,2 filhos. Ainda uma parte não desprezível dos filhos dessas
mulheres (16,6%) sofre de desnutrição crônica, um problema que não mata,
mas afeta o desenvolvimento da criança, sua capacidade de aprender e de
reagir a doenças.
Verifica-se, também, que quanto mais aumentam a escolaridade
e a renda, menor é o grau de utilização intensiva do SUS, confirmando que o
acesso para as camadas mais pobres é essencial e estratégico.
Considerando a importância da identificação da cor da mulher,
que está diretamente ligada à etnia, à raça, ao preconceito, à desigualdade, e
à história epidemiológica, podemos observar que esta é uma discussão que
passa longe do Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher
de Imperatriz, considerando que 35% das fichas de atendimento, mesmo com
o local destinado a identificar a cor da paciente, este não é preenchido.
Uma variante que se encontra em debates técnicos, científicos e
políticos, em nossa sociedade, há poucos anos, tem identificado perfis
epidemiológicos entre mulheres negras e brancas bem diversificados, com
doenças consideradas prevalecentes entre negras e brancas. O quesito que
identifica a cor da usuária encontra-se assim distribuído: 4% de negras, 11%
de brancas 50% pardas, portanto 65 % das usuárias foram classificadas por
cor, sendo que a cor parda aparece como a cor da metade da população
usuária do PAISM, em Imperatriz.
Considerando que os dados referentes à categoria "pardos" têm
sido mais próximos aos evidenciados pela população negra, é importante que
a gestão do PAISM tenha um recorte étnico/racial, com intervenções que
perpassem a universalidade, com políticas equitativas de natureza pluri e
interdisciplinar, pois, segundo Oliveira (2003, p. 25), “Em todos os grupos
populacionais raciais ou étnicos, há doenças que são prevalentes ou que
evolui de forma diferenciada nesses grupos”.
Entre algumas doenças consideradas prevalecentes em negras e
negros, está a anemia falciforme, que também é uma doença genética
comum, no mundo; a hipertensão arterial; a diabetes tipo II. Os miomas
uterinos que, segundo a literatura médica norteamericana, têm sua
prevalência em mulheres negras, sendo cinco vezes maior que nas brancas,
estes dados se confirmaram através de pesquisa também realizada, no
Brasil, em 1995, pelo CEBRAP – Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.
(OLIVEIRA, 2003)
Desenvolver ações de saúde da mulher sem levar em conta estes
dados da realidade, e ter, como público alvo, usuárias incluídas neste perfil
epidemiológico, remete-nos a refletir sobre que universalidades estão
praticando, que equidades estão almejando e, principalmente, que
integralidades de fato estão implementando.
Quanto à ocupação das usuárias, os dados revelam que 2% são
trabalhadoras domésticas, 3% professoras, 4% lavradoras, 40% do lar e 51%
285
outras.
Quando observamos, de maneira conjunta, os dados referentes à
ocupação e à escolaridade da usuária, observamos uma negativa relação
direta entre eles: ocupação subalterna acompanha a baixa escolaridade.
Fora da escola, instituição responsável pela qualificação da força de trabalho,
pela integração do indivíduo ao sistema produtivo, a mulher, com baixa
escolaridade, tem um handcap que a impede de ocupar até mesmo as
posições subalternas e secundárias destinadas às mulheres pela sociedade
patriarcal.
As ocupações exercidas pela maioria das mulheres apresentam
algumas características comuns. De um modo geral, são ocupações com
características ditas "femininas": servir, alimentar, limpar, cuidar em caso de
doença, educar e são trabalhos com baixa remuneração.
Considerando outra variável da pesquisa, o estado civil dessas
usuárias, 52% são casadas. Tradicionalmente, as mulheres que casam e
constituem famílias, ainda jovens, param de estudar, por vários motivos, entre
eles a imposição do marido.
É possível que as mulheres que não trabalham fora disponham
de mais tempo livre para usar os serviços de saúde, já que não estão
submetidas a uma dupla jornada de trabalho.
Considerando a realidade das mulheres que trabalham, estas
estão submissas a um mercado com horários rígidos, que coincidem com o
horário de funcionamento do PAISM, no município. Este público tem
acessado pouco o PAISM.
Sobre questões socioeconômicas: das usuárias, 34% têm renda
de 01 a 02 salários mínimos, 43% de 02 a 03 salários mínimos, 15% mais de 3
salários mínimos e 8% não sabem estimar a renda familiar.
O Programa está localizado em uma área residencial de classe
média alta, nos Três Poderes. O acesso ao Programa se dá pela Av. Bernardo
Sayão, por onde passam alguns dos ônibus urbanos, dificultando o acesso da
maioria da população usuária. Moradores da Região da Grande Santa Rita,
por exemplo, se tiverem que vir de ônibus, precisam andar 08 quadras a pé
para chegar ao Centro de Saúde.
É real a desarticulação administrativa entre os Programas,
PAISM -DST/AIDS - PSF (Programa Saúde da Família), e entre os próprios
profissionais envolvidos nos respectivos Programas, o que tem contribuído
para a dispersão das ações e a não otimização dos recursos destinados à
saúde da mulher, como implantação de serviços, capacitação das equipes e
distribuição dos preservativos e métodos contraceptivos de forma integrada.
Algumas falas dos entrevistados, entre eles gestores e ex-
gestores, revelam a dificuldade de realizar a interdisciplinaridade dentro do
Programa e/ou entre o conjunto dos Programas de Saúde:
“Nós tínhamos uma equipe multiprofissional, mas não tínhamos uma

286
interação, até porque não era uma situação fácil. A gente não tinha os
recursos humanos muito próximos... e principalmente médicos para você
chamar para reunião fica muito difícil...“um dos elementos é a dificuldade
de reunir o pessoal das equipes que é outro grande problema que
depende de decisão política, porque ai nós temos a cobrança da
produtividade...(P.M)
“ainda precisamos ver com outro enfoque, precisamos sensibilizar mais,
mobilizar mais, trazer a sociedade civil pra ajudar, trazer a comunidade
como um todo...eu acredito que vai ser determinante um controle social
para que possa estr junto ao Gestor em nível de município e em nível de
estado para que se possa realmente fazer com que a equipe se reúna,
faça planejamento, pra que haja sugestões da comunidade que estão na
ponta...(Secretária)”.
“Para os indicadores, PCCU, CISCOLO, a gente tem feito reunião. A
gente se reúne para avaliar cumprimento de meta de indicadores que
estão pactuados há mais tempo...há reuniões, sim, sobre os
indicadores...(Secretária)”.
“Nós temos uma equipe multidisciplinar, trabalhamos com atendimento
das mulheres e, mensalmente, são avaliados os dados, quantas mulheres
são atendidas, no que elas são atendidas, trabalhamos com o
planejamento dessas atividades”. (Coordenadora)
Os gestores constatam e pontuam, com clareza, a dificuldade de
realizar as reuniões para avaliar e planejar as ações, reafirmando, em suas
falas, que até acontecem reuniões mensais com alguns membros da equipe
para levantamento e registros de dados de produtividade.
Constata-se que a discussão do atendimento à mulher vítima de
violência foi retomada pela atual Coordenação, que conseguiu realizar uma
reunião com alguns técnicos da Secretaria de Saúde e iniciaram um debate
para definir um fluxograma de atendimento às mulheres vítimas de violência.
Porém, a iniciativa se mantém embrionária, dada as dificuldades de
elaboração, compreensão do que fazer, como fazer, quem fazer. O
desconhecimento por parte dos membros da equipe que se envolveram, na
discussão, sobre a temática, juntamente com a ausência da compreensão
das relações de gênero, dificultam a articulação dessas ações.
Alguns dos dados do Relatório de Atividades de 2005 a 2007 são,
comprovadamente, irreais. Estes, quando divulgados, comprometem a real
cobertura da saúde da mulher, no município e região, pois eles, de fato, não
existiram. Comprometem, também, as informações da cobertura nacional na
medida em que estes são informados ao Departamento de Informática do
SUS - DATASUS, órgão da Secretaria Executiva do Ministério da Saúde, que
tem a responsabilidade de coletar, processar e disseminar informações sobre
saúde.
A inexistência da avaliação e planejamento culmina com as
287
dificuldades do exercício da prática da interdisciplinar que se concretiza
diante de tais fatos que impossibilitam ações combinadas e de superação de
demandas diárias.
Assim sendo, é palpável o confronto entre as duas políticas
presentes no PAISM de Imperatriz. Dentro do espaço da ordem capitalista, a
política de bem-estar social exige garantias de direitos sociais; a
política liberal, perpetrar restrições e, por conseguinte, nega tais direitos,
promovendo ambiguidade e contradições que adquirem dimensões éticas.
2 CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer deste estudo, verificou-se que as políticas públicas
resultam de uma permanente luta de classes e que, apesar de se
conseguirem avanços e conquistas sociais, nem sempre se garante, na
prática, a eficácia do seu conteúdo teórico.
Durante as etapas que o nortearam, é visível que a luta pela
implantação do PAISM faz parte do mesmo esforço da implantação do SUS, e
este se fortaleceu e tomou impulso com as últimas Conferências Nacionais de
Saúde, mas, sensivelmente, recua na prática dos gestores responsáveis
pela sua concretização, através de rupturas com os princípios do SUS,
levando-se a crer que, apesar das declarações oficiais a favor de sua
implantação, há manobras políticas com o propósito de inviabilizá-lo.
A implantação do PAISM aparenta ter sido bastante diferenciada
em todo o país, refletindo os distintos graus de compreensão e compromisso
político dos governantes com a questão da mulher e a disparidade nas
estratégias adotadas na organização do sistema de saúde.
A partir de 2004, o PAISM foi transformado em Política de Atenção
Integral à Saúde das Mulheres, transformação esta que tem o papel
determinante de provocar mudanças não apenas na qualidade de atenção à
saúde da mulher, mas também o de provocar mudanças culturais no eixo de
como se compreende o que é saúde e sexualidade, e de como, no processo
de construção da autonomia, são centrais as determinantes de gênero,
raça/etnia e classes sociais.
Observamos que, a partir de uma proposta norteada por
diretrizes e princípios, não se conseguiu, em oito anos, efetivar a
integralidade e equidade dentro do Programa, nem mesmo fazer estas
diretrizes conhecidas pelos profissionais de saúde que nele
atuam, muito menos, as usuárias.
As investigações constatam, claramente, a falta de
correspondência entre os direitos assegurados nos discursos oficiais e a
realidade concreta a que se referem. Observa-se, na realidade dos serviços
públicos, que a garantia do direito à saúde está muito distante do que se tem
no papel.
Falta trabalhar a interdisciplinaridade, estimulando a discussão
coletiva acerca das ações desenvolvidas e por toda a equipe;
288
Falta capacitação da prática interdisciplinar.
Falta capacitação da equipe na perspectiva de gênero;
Falta conhecimento e preparação da equipe para o atendimento à
mulher vítima de violência doméstica e sexual;
Falta articulação entre os outros Programas da Saúde, inclusive o
PSF;
O atendimento médico está voltado, unicamente, para “doença”
da usuária;
É imprescindível que o Programa implante o acolhimento,
invertendo a lógica de organização e funcionamento do serviço de saúde,
norteado em experiência exitosa, como o caso de Betim – MG, pautado nos
seguintes princípios:
1) Atender a todas as pessoas que procuram os serviços de saúde,
garantindo a acessibilidade universal. Assim, o serviço de saúde
assume sua função precípua, a de acolher, escutar e dar uma
resposta positiva capaz de resolver os problemas de saúde da
população.
2) Reorganizar o processo de trabalho, a fim de que este desloque
seu eixo central do médico para uma equipe multiprofissional que
se encarregue da escuta do usuário, comprometendo-se a resolver
seu problema de saúde.
3) Habilitar a relação trabalhador-usuário, que deve dar-se por
parâmetros humanitários, de solidariedade e cidadania.
4) Habilitar toda a equipe na perspectiva de gênero; garantido a
sensibilização da equipe para determinadas fragilidades e
vulnerabilidades das usuárias do Programa;
5) Habilitar a equipe para o atendimento à mulher vítima de
violência doméstica e sexual;
6) Articular dentro da equipe ações permanentes de educação e
saúde;
7) Que se repense a importância e necessidade da avaliação
sistemática das ações desenvolvidas pelo Programa, respeitando-se as
instâncias de representação das mulheres, na luta por saúde pública de
qualidade.
8) Por fim, que as instâncias de gestão no Município
compreendam a importância política de transformar o PAISM – Programa de
Atenção Integral à Saúde da Mulher na PMAISM - Política Municipal de
Atenção Integral a Saúde da Mulher.
Sugerimos, portanto, melhoria gerencial dos serviços e a
qualificação permanente dos profissionais de saúde, a fim de que possam
prestar uma assistência integral e humana, evitando a excessiva utilização de
tecnologias médicas, utilizando recursos de “escuta” de “acolhimento”,
289
contribuindo, efetivamente, para a transformação do atual modelo de
assistência.
Nesse contexto, espera-se que os resultados deste estudo
possam estimular reflexões que favoreçam mudanças urgentes na
adequação das ações, ao modelo de atenção proposto pelo PAISM, no que se
refere ao acesso e acolhimento das mulheres, enfatizando-se a
proposta de humanização, integralidade e equidade.

290
REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à saúde. Departamento


de Ações Programáticas Estratégicas. Política nacional de Atenção
integral á Saúde da Mulher: Princípios e diretrizes. Brasília, DF: Ministério
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Atualizando a Agenda, Águas de Lindóia, SP, 1997.
FERREIRA, Maria Mery, (Org.) Mulher Gênero e Políticas Públicas. São
Luis: Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher e Gênero; Grupo de
Mulheres da Ilha, 1999.
______. As Caetanas vão a Luta: Feminismo e Políticas Públicas no
Maranhão. São Luis: EDUFMA, 2007
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OLIVEIRA, Eleonora Menicucci de. Gênero, Corpo e Conhecimento. Saúde
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Acesso em : 2. Set. 2008.
OLIVEIRA, Fátima. A Presença da Mulher no Controle Social das
Políticas de Saúde, Anais de capacitação de multiplicadoras em controle
social das políticas de saúde/ Rede Feminista de Saúde – Belo Horizonte;
Mazza , 2003
SAFFIOTI, H.I.B. Rearticulando Gênero e Classe Social. In: Costa A.O.
bruschini, C. (Orgs.). Uma questão de gênero. São Paulo; Rio de Janeiro:
Rosa dos Tempos, 1992.

291
RAZÕES E/OU MOTIVOS DO ABORTAMENTO EM UMA MATERNIDADE
PÚBLICA DE TERESINA-PI
Ariane Gomes dos Santos
2
Inez Sampaio Nery
Fernanda Maria de Jesus S. P. Moura3
Érida Zoé Lustosa Furtado1
1 INTRODUÇÃO
A Organização Mundial de Saúde estima que, no mundo todo, cerca de
500mil mulheres morrem a cada ano de causas relacionadas à gestação,
sendo que 98% dessas ocorrem nos países em desenvolvimento. Nesses
locais complicações de aborto são responsáveis por 15% do total das mortes
maternas a cada ano (OLINTO; MOREIRA-FILHO, 2006).
Desse modo, verifica-se que a prática da interrupção da gravidez espelha as
desigualdades sociais brasileiras. Segundo Olinto e Moreira-Filho (2006),
enquanto mulheres de classes sociais mais privilegiadas recorrem ao aborto
em clínicas privadas com procedimentos seguros, mulheres pertencentes a
classes sociais menos favorecidas são expostas a procedimentos inseguros,
na maioria das vezes, realizados por profissionais não especializados
utilizando-se de técnicas perigosas que podem acarretar risco de vida ou
seqüelas irreversíveis.
O Código Penal Brasileiro, no artigo 124, caracteriza como crime o aborto
provocado pela gestante ou com seu consentimento, contudo, o artigo 128
dispõe que não se pune a realização do aborto nos casos de risco de vida da
gestante e de gravidez resultante de estupro (RODRIGUES, 2001).
No entanto, apesar da existência dessas medidas legais, estatística feita pelo
Ministério da Saúde, no Brasil, mostra que cerca de um milhão de abortos são
feitos clandestinamente por ano; 300 mil mulheres são internadas com
complicações decorrentes de abortos clandestinos; 10 mil morrem por causa
de aborto mal feito; 205 abortos legais foram feitos até hoje por hospitais
públicos no Brasil; 47% das mulheres que fizeram abortos nos hospitais em
São Paulo tinham até 19 anos (OLIVEIRA; BARBOSA; FERNANDES, 2005).
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no
período de 1980 a 1994, a região Nordeste foi considerada a segunda região
brasileira de maior incidência de abortos, perdendo apenas para a região
Sudeste (OLIVEIRA; BARBOSA; FERNANDES, 2005). No Estado do Piauí, o
_____________________________________________________________

106
[1] Graduandas do 8º período do curso de Enfermagem da UFPI.
[2] Doutora em Enfermagem. Profª Associado I, das disciplinas Saúde da Mulher e Saúde Reprodutiva
da UFPI. Email: ineznery.ufpi@gmail.com
[3] Mestre em Enfermagem. Professora Auxiliar das disciplinas Saúde da Mulher e Saúde Reprodutiva
da UFPI.

293
aborto constitui a quarta causa de morte materna (NERY; TYRRELL, 2002).
Pessoas leigas ou até mesmo profissionais de saúde confundem os
vocábulos aborto e abortamento, utilizando-os como sinônimos. Contudo,
tais denominações são distintas, visto que o aborto é “o produto conceptual
eliminado” e o abortamento “é a interrupção da gravidez antes de
completadas 20 semanas de sua evolução, ou quando o produto conceptual
eliminado pesa 500g ou menos” (BASTOS, 1998:325), podendo ocorrer
espontaneamente ou de forma induzida (VIEIRA, et al, 2007). Este último
pode ter a participação voluntária ou involuntária da gestante, e ser
considerado legal ou ilegal (RESENDE FILHO; MONTENEGRO, 2008).
Por sua vez, as razões e/ou motivos que levam a mulher a interromper a
gravidez são resultado da inter-relação de vários fatores e envolvem
aspectos particulares e individuais, de modo geral fundamentadas em
questões sociais, econômicas e emocionais.
Desse modo, a idéia de elaborar um trabalho com essa temática surgiu do
interesse das autoras em conhecer e discutir as razões e/ou motivos que
conduziram as mulheres ao abortamento em uma Maternidade Pública de
Teresina – PI, tratando este processo como uma questão de saúde da mulher
e do bem estar da família, tendo em vista a complexidade do tema exposto.
Considerando-se que o aborto constitui um importante problema de saúde
pública (PERES; HEILBORN, 2006), pretendeu-se com este estudo
conhecer as razões e/ ou motivos que conduziram as mulheres ao
abortamento e sua implicação na qualidade de vida da mulher. Esta pesquisa
poderá ajudar na caracterização da clientela e, ao mesmo tempo, auxiliar os
profissionais de saúde a atuarem de forma adequada, objetivando a
implantação e/ou implementação de estratégias e programas de intervenção
que tenham por base a Saúde Reprodutiva e a prestação de uma assistência
mais humana e segura às mulheres nesta situação de risco.
2 METODOLOGIA
Trata-se de um estudo de natureza quali-quantitativa que foi realizado com
mulheres hospitalizadas em processo de abortamento, em uma maternidade
pública de referência para o atendimento à mulher no ciclo gravídico -
puerperal situada em Teresina-PI.
O instrumento utilizado para a coleta de dados foi um formulário previamente
elaborado contendo questões abertas e fechadas, o qual foi submetido a um
pré-teste e a seguir às correções devidas, de acordo com as variáveis do
estudo. A técnica utilizada para o preenchimento do formulário foi a entrevista,
que consiste numa técnica bastante relevante e que permite desenvolver
relações mais próximas entre as pessoas sendo também considerado o
procedimento mais utilizado no trabalho de campo.
294
A população do estudo foi composta por 70 mulheres hospitalizadas que
tiveram como causa de internação o abortamento, foram abordadas nas
enfermarias e, as que aceitaram participar da pesquisa, levadas a um
ambiente mais reservado (sala de reuniões), para dessa forma evitar
constrangimentos. Ressalta-se que mulheres em pós-operatório imediato por
curetagem, em estado emocional debilitada e portadora de distúrbio mental,
foram excluídas da pesquisa devido à fragilidade em que se encontravam.
Não foi definido antecipadamente o tamanho da amostra em função de se
tratar de um evento em expectativa de ocorrência, entretanto a maternidade
em questão atende uma média de 60 casos mensais.
A coleta de dados foi realizada por duas acadêmicas do curso de
Enfermagem da UFPI, no período de abril a maio de 2009. Inicialmente, as
respondentes foram informadas sobre os objetivos e importância do estudo,
sendo-lhes assegurado o total sigilo e anonimato, respeitando a privacidade,
a intimidade e a liberdade de participação, seguindo os preceitos legais da
Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde que trata da pesquisa
envolvendo seres humanos. Dessa forma, os sujeitos assinaram o termo de
consentimento livre e esclarecido (BRASIL, 2002).
Na coleta de dados utilizou-se o método de janelas de tempo, que permite
economia de tempo e pessoal para a pesquisa e evita o viés de sazonalidade,
sendo muito aplicado a eventos que estão por acontecer (JEANNEL, et
al,1988). Desse modo, mesmo não havendo um cálculo prévio do tamanho da
amostra a população foi representada sem prejuízo, considerando o método
de seleção utilizado. Neste sentido, o período de coleta dos dados totalizou
oito semanas consecutivas, sendo que em cada uma dessas semanas três
dias foram aleatoriamente utilizados para a investigação. Nos dias
aleatoriamente selecionados de cada semana, as pesquisadoras
compareceram à MDER em dois turnos para verificar se houveram
internação por abortamento, para realizar as entrevistas.
Para a análise dos dados utilizou-se o software SPSS versão 17.0 e os dados
foram apresentados em forma de tabelas possibilitando a discussão com
base na revisão da literatura sobre o tema. Através da análise das variáveis
estabelecidas no formulário, foi possível identificar as razões e/ou motivos
que levaram a esta prática na maternidade pública em questão.
3 RESULTADOS
Foram apresentados na forma de tabelas enumeradas de 1 a 6 conforme a
seguir:
Tabela 1 - Distribuição das mulheres com abortamento por número de
abortos e gestações, relacionada à renda familiar, Teresina, abril-maio, 2009.

295
As mulheres que tinha uma menor renda familiar, até um salário mínimo,
apresentaram uma maior taxa de abortamento na primeira gestação com
relação às mulheres que apresentavam um maior poder aquisitivo, sendo que
as primeira representaram 37,14%, ou seja, 26 mulheres de um total de 47
respondentes, o que corresponde a 67,14% das entrevistadas. No que se
refere ao número de gestações relacionado à renda familiar, percebeu-se que
26 mulheres, ou seja, 37,14% de um total de 35 mulheres, 50% da população
estudada, tiveram até duas gestações, sendo que 21,43% delas estavam na
segunda gestação e 15,71% na primeira. Todas, essas com renda familiar
equivalente a um salário mínimo, conforme pôde ser verificado na Tabela 1.
Tabela 2 - Distribuição das mulheres com abortamento por situação conjugal,
relacionada ao número de abortos, Teresina, abril-maio, 2009.

A Tabela 2 indicou que 31 mulheres, ou seja 42,28% de um total de 42


mulheres que corresponde a 60% das respondentes tinham um
296
relacionamento estável (tinham namorado, eram casadas ou “juntas”) e
tiveram o primeiro aborto. Sendo que neste primeiro abortamento 22,86%
eram solteiras. A partir do segundo aborto, não houve diferença significativa
com relação ao estado conjugal e o número de abortamentos.
Tabela 3 - Distribuição das mulheres com abortamento segundo
planejamento da gestação, Teresina, abril-maio, 2009.

A Tabela 3 desvendou que a maioria, mais de 61,43%, do grupo, não planejou


engravidar, enquanto 38,57% tiveram a gestação planejada.
Tabela 4 - Distribuição das mulheres com abortamento segundo influência
das dificuldades pessoais, de pessoas externas ou incentivo por família ou
companheiro, Teresina, abril-maio, 2009.
Na Tabela 4 aparece sempre antes da variável um número e um percentual
isolado. Eles se referem às pessoas que não responderam a essa questão,
devido à negação em perguntas anteriores. Do total de mulheres, 10(14,29%)
responderam que as dificuldades vivenciadas na gestação contribuíram para
o abortamento, contra 05(7,14%) que responderam que não houve
associação entre as dificuldades enfrentadas e o aborto. No que tange à
influência, a favor do abortamento, sofrida pela grávida 07(10%) referiram
não terem recebido influência, enquanto 3(4,29%) disseram ter sido
incentivadas por alguém. Destas, 02(2,86%) mencionaram o companheiro
como incentivador da prática abortiva e 01(1,43%) disseram ter sido
influenciadas pelo pai( avô da criança).
297
Tabela 5 - Distribuição das mulheres com abortamento por número de
gestações relacionada ao planejamento da mesma, Teresina, abril-maio,
2009.

Na Tabela 5 observou-se que nas gestações não planejadas a primeira foi a


que mais culminou com abortamento com 18,57% dos casos de um total de
32,86 % das mulheres. No que se refere à segunda gestação, não houve
298
diferença significativa entre a gestação planejada ou não, já que, destas
17,14% não planejaram a gravidez e 15,71% a planejaram.
Tabela 6 - Distribuição das mulheres com abortamento por número de
abortos relacionado ao planejamento da gestação, Teresina, abril-maio,
2009.

Quanto ao número de abortos relacionado ao planejamento da gestação, a


Tabela 6 revelou que de um total de 67,14% das entrevistadas, 40% das
mulheres que tiveram o primeiro aborto não planejaram a gravidez, contra
27,14% que planejaram. De 27,14% que tiveram dois abortos 17,14 não
planejaram a gravidez, enquanto 10% destas foram planejadas.
4 DISCUSSÃO
A análise dos resultados deste estudo permitiu conhecer e discutir as razões
e/ou motivos que conduziram as mulheres hospitalizadas, em uma
maternidade pública de Teresina-PI, ao abortamento. Mulheres estas, que se
encontravam, na maioria das vezes, sem atividade remunerada, com
companheiro fixo e que tiveram o aborto como resultado da primeira
gestação. Alguns fatores podem ter limitado os resultados encontrados,
como o fato de ser possível que, na população estudada, algumas mulheres
podem ter ocultado informações pertinentes a este estudo, principalmente no
que diz respeito ao real motivo que levou ao abortamento, limitações estas
que têm o poder de subestimar algumas associações encontradas.
299
No que diz respeito à escolaridade das entrevistadas, a maioria destas
totalizando 35,71%, cursaram somente o ensino fundamental incompleto.
Isso reflete o abortamento como resultado da falta de instrução dessas
mulheres, já que apenas 2,86% das pesquisadas tinham um nível de
conhecimento mais avançado, ensino superior completo. Percebeu-se,
ainda, que o grau de escolaridade é um fator contribuinte para que a mulher
tenha um maior número de gestações, pois um maior número de mulheres
que tiveram a terceira gestação tinham o ensino fundamental incompleto.
Essas corresponderam a 5 (7,14%) de um total de 12 (17,14%).
Cabral (2003) estabelece uma correlação entre escolaridade e contracepção:
quanto maior o grau de escolaridade da jovem, maiores são as chances de
utilização de algum método tanto na primeira relação sexual quanto nas
subseqüentes.
Estas informações compartilham com a pesquisa, divulgada pela ECOS
(Comunicação em Sexualidade) (2004), que orientações educativas devam
começar o mais cedo possível, esclarecendo os jovens sobre os riscos a que
se expõe quando da prática de relações desprotegidas, da possibilidade de
uma gravidez indesejada ou não planejada e das complicações a que estão
sujeitas as mulheres ao vivenciarem um abortamento. Moreira (2001) em sua
pesquisa realizada sobre o nível de conhecimento sobre abortamento
espontâneo salienta que temas relacionados à sexualidade sejam abordados
desde o ensino fundamental.
Além de terem um baixo grau de escolaridade, a maioria (61,43%) também
não exercia uma atividade remunerada, essas duas variáveis são de certa
forma dependentes, pois um baixo nível de conhecimento remete ao
desemprego, nesta sociedade capitalista e com um mercado competitivo da
atualidade. Isto é confirmado por Cabral (2003), quando este afirma que a
interrupção prematura da escolaridade, a diminuição da capacidade de
competir no mercado de trabalho e a maior instabilidade nas relações
conjugais formam de certa forma uma constelação de fatores que colaboram
para uma maior desvantagem social da qual pode emergir uma gravidez
indesejada.
Segundo Gesteira (2006), as mulheres têm apresentado uma grande
quantidade de fatores que justificam a sua decisão de não prosseguir com a
gravidez, tais como: condição financeira inadequada, violência doméstica,
projeto de vida e desemprego, dentre outros.
Na presente pesquisa evidenciou-se esta condição financeira inadequada a
partir da renda familiar das mulheres pesquisadas, sendo que a maior parte
delas possuíam uma renda desfavorável a uma boa qualidade de vida, já que
metade das entrevistadas tinha uma renda familiar de até um salário mínimo e
30% de um a dois salários mínimos.
300
O aborto tem sido estudado por diversos autores e sob diferentes abordagens
como fenômeno social e como problema de saúde; é um fator de alta
incidência no que diz respeito à morbidade materna e estão associados à falta
de assistência médica, de acesso a informações e a métodos contraceptivos
(SOUSA; AQUINO;CECATTI; PINTO, 1999).
No que tange à situação conjugal da qual resultou a gestação atual observou-
se que das 70 mulheres entrevistadas 42 (60%) mantinham um
relacionamento estável quando engravidaram. No entanto, Boemer e Mariutti
(2003), evidenciaram em seu estudo que algumas mulheres revelam a
natureza frágil dos relacionamentos afetivo-sexuais que mantém com os
parceiros, as relações conjugais e também o sofrimento com a ausência,
incompreensão e descaso do parceiro o que contribui para o abortamento.
Além disso, o homem tende a relacionar o ato de ter filhos ao estabelecimento
de uma família e afirmação da paternidade, pois o homem sente-se
responsável socialmente pela manutenção e proteção da família, que se
constitui parte da identidade masculina (ARILHA, 1999). Assim, muitas
vezes, se negam a admitir uma gravidez por não possuírem um aporte
financeiro ou mesmo psicológico para assumir a paternidade.
A pesquisa apontou ainda que a maior parte das mulheres (61,43%) não
planejou a gestação. Isto é demonstrado pela pesquisa de Souza et al(1999),
a qual ao entrevistarem mulheres internadas por complicações do
abortamento no Instituto Materno-Infantil de Pernambuco, concluíram que
mais de 60% das mulheres não queriam engravidar. Quanto à maternidade
precoce a qual freqüentemente não é planejada, Soares (2001) afirma que
esta pode interferir de forma negativa no cotidiano da jovem adolescente,
trazendo problemas que nem sempre são mensuráveis nas esferas
biopsicossociais.
Pode-se evidenciar ainda que a falta de apoio do pai do concepto ou da
família, resultado este percebido em outras pesquisas, como foi demonstrado
nos estudos de Abeche (2002), contribuiu sobremaneira para a prática do
abortamento. Muitas das mulheres estudadas na presente pesquisa
referiram que apesar destes não terem participado diretamente para
desencadear o abortamento, desenvolveram nas gestantes pressões
psicológicas que de certa forma contribuíram para que esta prática viesse à
tona. Muitas dessas mulheres expressaram ter passado por muita raiva
devido à ausência de apoio no ambiente doméstico. Mas a maior parte das
entrevistadas relatou que o motivo culminante, ou seja, que gerou
diretamente o abortamento foram acidentes, geralmente referidos como
quedas.
Apesar da grande maioria das participantes deste estudo (95,71%) terem
afirmado que não sofreram influência direta para que desencadeassem o
abortamento, a opinião do pai do concepto no processo de tomada de decisão
301
teve maior participação do que o ponto de vista da família em relação à prática
do abortamento induzido.
É importante ressaltar que os motivos que levam a mulher a praticar o
abortamento na maioria das vezes estão inter-relacionados, tendo quase
sempre o envolvimento de mais de um fator, de tal modo que um influencia o
outro em um processo dinâmico e complexo (LUCENA, 2000).
Além da omissão masculina, alguns autores defendem que a escassez de
informação sobre planejamento familiar e a falta de acesso a métodos
contraceptivos resultam na propagação de gestações não desejadas e,
conseqüentemente, no aumento de abortamentos em condições de risco
(NADER; BLANDINO; MACIEL, 2007).
Na maioria das vezes, a sociedade encara a decisão pela interrupção da
gestação como uma decisão egoísta da mulher, desafiando códigos legais e
morais entretanto, sabe-se que o abortamento leva a grande sofrimento físico
e emocional (COSTA; HARDY; OSIS; FAÚNDES, 1995) .
Vale salientar também a importância da atenção às mulheres que desejam
engravidar e não conseguem levar sua gestação adiante. Elas precisam de
um acompanhamento, uma orientação, uma pessoa disponível para ouvi-las,
com o empenho em compreendê-las em sua situação. Quando a gravidez foi
planejada há um sentimento de frustração com maior intensidade que quando
não planejada. Duas mulheres desse estudo haviam planejado a gravidez
(BOEMER; MARIUTTI, 2003).
As conseqüências psicológicas, as crenças e os valores culturais ou a relação
de gênero associadas ao aborto são pouco pesquisados. O fato é averiguado,
inclusive, nas publicações científicas no âmbito da enfermagem. Avalia-se,
ainda, que os homens, como pessoas direta ou indiretamente envolvidas no
processo do abortamento, também, sofrem em silêncio com a experiência,
tenha sido ele provocado ou espontâneo (RODRIGUES; HOGA, 2005).
O abortamento é um problema obstétrico comum e, muitas vezes, pode ser
encarado pela equipe de enfermagem como rotineiro. Porém, para a mulher e
para a família, independente da gravidez ser planejada ou não; essa perda,
muitas vezes, vem acompanhada do sentimento de culpa. Devido a isso,
muitas mulheres nessa situação passam por um processo de dor equivalente
ao causado por outras perdas pessoais. Na vigência da perda de um filho por
aborto, a assistência deve ser similar àquela prestada às mulheres que se
encontrem no puerpério, e as(os) enfermeiras(os) devem prestar atenção
acurada, tendo em vista a identificação de possíveis problemas quando da
avaliação e estabelecimento do diagnóstico de enfermagem.(BURROUGHS,
1995).
Com isso, o Ministério da Saúde preconiza que a qualidade de atenção à
mulher e seus familiares no decurso do abortamento e no período pós-
302
abortamento deva ser desenvolvida por meio de um conjunto de ações. O
acolhimento realizado de forma humanizada, a informação, o
aconselhamento e a competência profissional com uso de tecnologia
apropriada devem ser garantidos. O cumprimento desses requisitos requer
comprometimento profissional, assim como o respeito à dignidade e aos
direitos individuais dos receptores do cuidado (BERQUÓ, 1998).
Preconiza-se que este atendimento deva incluir os aspectos clínicos,
emocionais, espirituais, socioculturais, assim como, a perspectiva de gênero.
Este conjunto possibilita a prestação de assistência adequada
(RODRIGUES; HOGA, 2005). Desta forma os profissionais de saúde, em
especial o enfermeiro deve atuar respeitando todos esses aspectos para que
a assistência de enfermagem proceda de forma a atender todas as
necessidades físicas e psíquicas do principal sujeito do atendimento em
saúde, a paciente.
5 CONCLUSÃO
Esse estudo poderá esclarecer sobre as razões e/ou motivos que levaram a
mulher a vivenciar um abortamento. Este conhecimento poderá oferecer
subsídios aos profissionais e gestores comprometidos nesta área de
atuação, possibilitando a implantação de estratégias e programas de
intervenções educativas que minimizem a prática do abortamento e caso
estas mulheres já se encontrem em processo de abortamento ou já tiverem
abortado, proporcionar a estas um atendimento de enfermagem qualificado e
humanizado independente desta mulher ter abortado de forma induzida ou
não.
O presente trabalho revelou que os motivos que levaram as mulheres a
abortarem são os reflexos não apenas de seus valores, mas,
fundamentalmente, das normas sociais da cultura em que vivem. Destacam-
se como causas as condições financeiras e a instabilidade marital, que
revelam a ausência de estrutura familiar e o abandono da mulher, que, em
alguns casos, mãe solteira, não se sente preparada psicologicamente, e
muitas vezes financeiramente, para assumir um filho e vê a interrupção da
gravidez como a melhor decisão a ser tomada.
Pelo exposto, acredita-se que o foco principal do problema do abortamento é
a gravidez indesejada, sendo necessário, portanto, aumentar as
possibilidades de se planejar a gestação, valorizando a Saúde Reprodutiva,
bem como o Planejamento Familiar. Isto ocorre a partir da criação espaços de
diálogo, no ambiente conjugal e doméstico para que não apenas as mulheres
sejam protagonistas, mas que, principalmente, os homens possam ser
envolvidos neste processo e se responsabilizem, participando das decisões
pelo método contraceptivo e dividindo com as mulheres o direito a uma vida
reprodutiva que seja guiada pela escolha consciente e pelo desejo de cuidar
de uma nova vida.
303
A relevância dessa pesquisa focaliza-se na possibilidade de desencadear
nos profissionais da saúde e estudantes em formação, reflexões sobre o
cuidado, que vão além do conhecimento científico e de procedimentos
técnicos, envolvendo percepções, sentimentos e ética. No que se refere,
especificamente, à equipe de enfermagem, os resultados dessa investigação
podem ampliar conhecimentos e favorecer o cuidado, por meio de um
planejamento adequado, incluindo a sistematização da assistência de
enfermagem.
Vale ressaltar, que de acordo com os dados obtidos neste estudo, foram
elaboradas sugestões e/ou recomendações no sentido de esclarecer dúvidas
e/ou prevenir futuras complicações em decorrência do abortamento realizado
em condições adversas. Além de destacar, que a sua prática rotineira, é
muitas vezes utilizada como um método contraceptivo, o que acarreta graves
conseqüências à saúde física e ou emocional da mulher.
Dessa forma, o sistema de saúde deve estar preparado tanto a ofertar
métodos contraceptivos que atendam a demanda que procura os serviços de
saúde, como também, o devido apoio e acompanhamento por parte do
profissional de saúde, com informações precisas sobre o método que deve
ser da escolha do casal, enfatizando os riscos desnecessários que a mulher
corre ao usar o aborto como primeira opção para evitar uma gravidez
indesejada e sem apoio da família e ou parceiro.
Cabe destacar, ainda, que é imprescindível que na matriz curricular das
escolas, haja espaço para que questões que envolvam educação sexual e
relação de gênero devam ser tratadas de forma imparcial, a fim de que sejam
formados multiplicadores na comunidade, o que poderia evitar muitas
gravidezes indesejadas em fase precoce, assim como DSTs/HIV, que cada
vez mais atingem adolescentes que iniciam a vida sexual precocemente e
sem o devido preparo e amparo da família, escola e sem o envolvimento mais
eficaz dos profissionais de saúde, que deveriam se aliar aos educadores,
formando grupos de discussão e oficinas no âmbito escolar; com intuito de
privilegiar o que os jovens pensam, e como reagem frente a sua sexualidade,
ouvir sugestões e tirar dúvidas em linguagem acessível e sem manifestar
juízo de valor.
Isso seria uma boa estratégia para uma aproximação com essa população,
que ainda é mal interpretada e relegada a segundo plano. Neste sentido, a
escola é um campo fértil e que merece ser explorada pelos profissionais,
principalmente enfermeiras (os) comprometidas (os) com a promoção da
saúde e a prevenção de doenças.

304
REFERÊNCIAS

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307
VIOLÊNCIA E SAÚDE MENTAL: uma análise do discurso das mulheres
Milena Fernandes Barroso (UFAM)
Luciana Oliveira Lopes (UFAM)

1 PENSANDO SOBRE VIOLÊNCIA E VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER


O que entendemos por violência? A violência é algo natural ou
algo construído nas relações entre as pessoas? Podemos falar de um único
tipo de violência? Esses questionamentos nos possibilitam pensar sobre o
tema da violência, e afirmar que é um tema complexo. Não existe um
consenso sobre a origem da violência, mas, podemos apontar diversos
determinantes e condicionantes que incidem sobre e influenciam direta ou
indiretamente as ocorrências desse fenômeno.
Tentar conceituar violência não é algo fácil, nem tão pouco
simples. Mas, o que podemos dizer que é violência? Qualquer tipo de
agressão; uma violação dos direitos; um dano moral; omissão; guerras;
gritos; ameaça; opressão; poder?
Não podemos, pois, pensar em um único tipo de violência; hoje
nos deparamos com diversos tipos e formas de manifestação do fenômeno.
Sabemos, contudo, que a violência é reconhecida hoje como uma questão
global, que afeta os diversos segmentos das sociedades e traz
consequências graves para as populações. Consequências estas em
diversos aspectos da vida: saúde, nas relações sociais, no sentimento de
insegurança das populações, nas relações de confiança, nas relações
familiares, conjugais, faz parte do viver em sociedade.
A violência contra as mulheres, neste cenário, é agravante,
crescente e a cada dia apresenta um grau de brutalidade maior. Segundo
levantamento da Sociedade Mundial de Vitimologia (IVW), ligada ao governo
da Holanda e à Organização das Nações Unidas (ONU), que pesquisou
casos de violência doméstica entre 138 mil mulheres de 54 países, das
mulheres brasileiras, 23% estão sujeitas à violência doméstica, sendo que
41% dos homens que espancam suas parceiras também são violentos com
suas crianças em casa, as quais tendem a perpetuar a violência quando
crescem. De acordo com pesquisa nacional realizada pela Fundação Perseu
Abramo, em 2001, uma em cada cinco brasileiras declarou espontaneamente
ter sofrido algum tipo de violência por parte de algum homem, sendo que o
principal agressor foi o marido ou parceiro.
_____________________________________________________________

107
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Sustentabilidade da Universidade
Federal do Amazonas (UFAM) e Professora Auxiliar do Instituto de Ciências Sociais, Educação e Zootecnia
de Parintins – ICSEZ, da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). E-mail: .
108
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Amazonas
(UFAM) e Professora Substituta da Faculdade de Psicologia da Universidade Federal do Amazonas
(UFAM). E-mail: lulopespsi@hotmail.com.
309
De acordo com os dados da Secretaria Estadual de Segurança do
Amazonas, em 2006, foram registradas 54.999 ocorrências de violência
contra as mulheres em Manaus, em 2007 esse número cresce para 83.193
ocorrências.
Embora os números assustem, é importante dizer que eles não
representam o retrato real dessa questão, uma vez que muitos casos não
chegam a ser notificados. Apesar da magnitude do problema ainda não ser
dimensionado com precisão, sabe-se que o agravo é de elevada prevalência
e tem assumido caráter endêmico (MENEGHEL, 2007).
Por influência dos movimentos feministas, as questões
envolvendo a temática da violência contra as mulheres passam a compor as
agendas políticas, governamentais e acadêmicas, inserindo-se fortemente
no campo dos Direitos Humanos, a exemplo da Convenção para Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – CEDAW, adotada
pelo Governo brasileiro, em 1984; a Declaração de Direitos Humanos de
Viena, aprovada em 1992; II Conferência Mundial, de 1993, da Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher –
Convenção de Belém do Pará, adotada em 1995; e a IV Conferência Mundial
das Mulheres, realizada em Beijing em 1996.
Nos anos 1990, a violência contra as mulheres foi reconhecida
como um problema de saúde pública, sendo considerada uma das formas
mais generalizadas de abuso dos Direitos Humanos. De acordo com Sagot
(2007), os altos índices de violência intrafamiliar vividos pelas mulheres,
constituem sério problema de saúde pública, um obstáculo oculto para o
desenvolvimento sócio-econômico e uma violência flagrante dos Direitos
Humanos das pessoas afetadas, representando muitas vezes uma violação
direta à integridade da pessoa.
Os custos da violência contra as mulheres também são grandes;
gastos com saúde, processos legais, transporte, incapacidades e
absenteísmo laboral das mulheres podem significar somas multimilionárias
para as instituições públicas e privadas. “A violência intrafamiliar representa
quase 1 ano de vida perdido para cada 5 anos de vida saudável para as
mulheres de 15 a 44 anos” (SAGOT, 2007, p.25).
A violência contra as mulheres configura-se hoje como uma das
mais acentuadas violações dos direitos, representando restrições à
liberdade, a dignidade e à autonomia. Em 1973, a Conferência das Nações
Unidas sobre Direitos Humanos, realizada em Viena, reconheceu a violência
contra as mulheres como uma violação flagrante contra os Direitos Humanos.
Mas, o que consideramos violência contra as mulheres? Afinal,
de que violência estamos falando? De que mulheres estamos falando? Das
Eloás que viram espetáculo para a grande mídia? Também. Mas, sobretudo,
devemos falar das Marias, Joanas, Aparecidas e tantas outras anônimas que
não aparecem nos noticiários, tão pouco nos boletins de ocorrência das
310
delegacias.
A violência contra as mulheres não se caracteriza somente por
aquilo que é visível (a violência física). Por trás de diversas manifestações
aparentes pode existir um risco real e iminente de morte; meses, anos de
agressões físicas, emocionais ou sexuais. De acordo com
Heleieth Saffioti (2004), uma das autoras brasileiras com extenso trabalho
nesta área, a violência contra as mulheres é expressão histórica da
desigualdade de poder nas relações sociais de gênero, determinadas pela
dominação patriarcal, pela desigualdade de classe e pelo racismo.
A violência doméstica contra a mulher é vista pelo feminismo
como expressão radical da relação hierárquica entre os sexos no núcleo
familiar. Segundo Gregori (1993), em seu estudo A violência conjugal na ótica
do feminismo brasileiro, este tipo de violência é entendido como uma relação
assimétrica, em que o homem ocupa a posição de mando, podendo fazer a
sua autoridade para punir, exigir e por vezes agredir os outros componentes
da família; enquanto a mulher, cujo papel é o de lidar com as tarefas
domésticas e cuidar dos filhos, está subordinada aos desígnios do homem.
Destacamos o conceito de violência contra as mulheres
formulado na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher - Convenção de Belém do Pará, que o caracteriza
como qualquer ato que resulte ou possa resultar em danos ou sofrimentos
físico, sexual, psicológico ou patrimonial à mulher, inclusive ameaças de tais
atos, coerção ou privação arbitrária de liberdade em público ou na vida
privada, assim como castigos, maus tratos, pornografia, agressão sexual e
incesto.
As estatísticas apontam para o fato de que a violência contra as
mulheres é um problema de grandes proporções, socialmente estruturado
nas desigualdades de gênero, perpassado pelas desigualdades de raça e
classe e, não raro, pela dimensão geracional. Caminham para uma direção
onde, na maioria dos casos, esta violência é praticada por homens que
possuem uma relação de proximidade, ou seja, que possuem algum tipo de
relação íntima – afetiva ou familiar –, com quem as sofre. Apontam ainda para
a existência de um lugar privilegiado para a ação deste tipo de violência,
tendo em vista que na maioria dos casos, ela ocorre no espaço, do doméstico.
“O abuso das mulheres por parte de seus companheiros é uma
forma endêmica da violência familiar” (SAGOT, 2007, p. 23).
De acordo com a Lei Maria da Penha (2006), violência doméstica
significa:

Qualquer ação ou omissão que cause morte, lesão, sofrimento físico,


_____________________________________________________________

109
Pesquisa: A mulher brasileira nos espaços público e privado – Fundação Perseu Abramo. Disponível em:
http: // www.fpa.org.br/nop/ Acesso em: 05 abril de 2007.

311
sofrimento sexual, sofrimento psicológico, dano moral ou dano
patrimonial, dentro da unidade doméstica (espaço de convívio
permanente de pessoas com ou sem vínculo familiar), do âmbito familiar
(pessoas que são ou se consideram aparentadas, por laços naturais, por
afinidade e por vontade expressa) e de qualquer relação íntima de afeto
independente de coabitação (namoro ou qualquer outro tipo de
envolvimento íntimo em que exista uma convivência).
No contexto em que a violência contra as mulheres viola os
princípios da igualdade de direito e o respeito à dignidade humana, se
configurando como um grave problema social, econômico, interpessoal e de
saúde, é que buscamos conhecer as situações de violências vivenciadas
pelas mulheres atendidas no Centro de Atenção Psicossocial Dr. Silvério
Tundis em Manaus, e qual a relação da violência com o sofrimento mental que
a fizeram procurar/chegar ao serviço. Para tento realizamos uma revisão nos
conceitos de saúde, saúde mental e a relação entre violência e saúde mental
para entendermos melhor se existe relação entre o sofrimento psíquico e os
conceitos de violência doméstica apresentados.
2 O CONCEITO DE SAÚDE, PROMOÇÃO DE SAÚDE E SAÚDE MENTAL
Sendo a violência contra a mulher uma questão de saúde pública, que
caminhos os estudos e pesquisas nesta área têm tomado ao longo dos anos?
O que se entende como saúde? E saúde mental? E o que isso tem haver com
violência contra a mulher?
O conceito mais amplamente conhecido e aceito na atualidade
entende saúde como um bem estar biopsicossocial, sendo esse proposto
pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Verifica-se assim que tal
conceito não é simplesmente a ausência de doença, mas tem como base o
entendimento de que os aspectos psicológicos, sociais, ambientais e
ecológicos são tão relevantes quanto o biológico para determinar que uma
pessoa apresente uma boa saúde.
Anteriormente, a doença era o foco dos profissionais e
pesquisadores da área. Observa-se assim, uma mudança de paradigma
tendo em vista que durante séculos o modelo dualista mente-corpo, bem
como o de clínica a partir do adoecimento foi o vigente.
Mas essa transposição garantiu uma mudança na concepção de
saúde? O modelo proposto fomentou um conhecimento e diálogo
interdisciplinar que pretendesse superar as metodologias psicopatológicas e
dos métodos psicoterapêuticos?
Partindo do conceito de saúde, uma nova perspectiva de cuidado
foi se aprimorando. O enfoque passa ser a saúde e não a doença. Ou seja,
busca-se, acima de tudo, a promoção de saúde. Mas, esse é um conceito que
ainda encontra muita dificuldade de entendimento tornando-se assim
necessário traçar diferenciações sobre esse entendimento, clarificando a
definição do mesmo.
312
Buss (2003) nos diz que as conceituações de promoção de
saúde podem ser agrupadas em dois grandes grupos. Sendo o primeiro
deles, composto por compreensões de que a promoção de saúde consiste
nas atividades dirigidas às transformações dos comportamentos dos
indivíduos. Concentra-se em atividades educativas primárias. Nessa
conceituação, ainda de acordo com o autor, fugiriam do âmbito da promoção
de saúde todos os fatores que estivessem fora do controle dos indivíduos.
Em contraposição, o autor cita que o que caracteriza o conceito
de promoção de saúde, é a constatação de protagonistas gerais para as
condições de saúde, quais sejam: alimentação e nutrição, habitação e
saneamento, boas condições de trabalho, oportunidades de educação ao
longo da vida, ambiente físico limpo, apoio social para famílias e indivíduos,
estilo de vida responsável. Tal conceito diz mais respeito ao que se entende
sobre saúde atualmente, vendo-a de maneira mais globalizante, articulando
saúde e condições de vida.
Entendemos então que o conceito de promoção está intimamente
ligado ao que se entende por integralidade da pessoa, ou seja, um olhar que
abarca todas as experiências vivenciadas sejam elas positivas ou negativas,
inclusive a vivência da violência. Falamos de uma diretriz política que pensa a
pessoa potencializada pela sua subjetividade, auto-estima, autonomia e
cidadania, devendo, pois, ser concebida dentro de uma nova construção
epistemológica.
Basaglia (2005, p.136) se referindo a Goffman, discutindo um
novo modelo de atenção na área da saúde mental, apontava que o autor:
Deixando de lado qualquer definição nosográfica, ele conseguiu
apreender as facetas do aspecto social da doença (o que foi feita dela, o
significado que lhe deram, a face construída para ela), identificando o
doente mental como o objeto de violência original, familiar, social e
institucional – “o vórtice dos enganos” – confirmada pela rotulação
científica que a justifica. De fato, se deixarmos a doença como fato real e
considerarmos apenas seu aspecto social, podemos definir o doente
mental como a presença de um terceiro mundo dentro do mundo
ocidental
A OMS em seu Relatório Mundial de Saúde (2002) direciona pela
necessidade de estudos mais elaborados no desenvolvimento de
intervenções na área da saúde mental, na busca de compreender as
variações que influenciem no resultado e na eficácia do tratamento.
Acrescenta ainda que conceito de saúde mental é definido diversamente em
diferentes culturas, embora aponte que saúde mental é algo muito mais do
que a ausência de perturbações mentais. O relatório afirma ainda que o
conceito de saúde mental abrange, entre outras coisas, o bem-estar
subjetivo, a autonomia, a auto-realização do potencial intelectual e emocional
do sujeito.
313
No Brasil, o espaço preconizado pelo Serviço Único de Saúde
(SUS) para o tratamento àqueles que se encontram em sofrimento psíquico
são os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), lugar privilegiado para a
realização da pesquisa, pois configura-se como ordenador da rede de
atendimento em saúde mental, e um dos serviços substitutivos ao modelo
manicomial.
Rabelo e Queiroz (2008) relatam que ao realizarem um grupo de
atendimento a mulheres em um Caps, no discurso, as usuárias
apresentavam representações sociais sobre a loucura levantadas pelo
discurso médico e psicológico, dizendo que os problemas são nos “nervos da
cabeça”, ou “que já nasceu assim”, buscando nas teorias científicas, e não em
suas vivências, explicações para seu adoecimento. Nestes casos podemos
apontar para a reedição de formas antigas de lidar com a saúde, deslocando a
integralidade da pessoa, das condições de sofrimento que possam
apresentar. Daí nos questionamos: as situações de violência vividas pelas
mulheres são levadas em consideração quando se pensa sua situação de
saúde mental?
Outro questionamento que guiou o presente estudo foi se existe
“espaço”, “lugar” para o discurso das mulheres sobre a violência nos serviços
de saúde mental? As mulheres encontram canais de comunicação sobre a
violência doméstica no Centro de Atenção Psicossocial?
Padovani e Williams (2008) dizem que as mulheres em situação
de violência buscam ajuda sistemática em diferentes setores da área de
saúde, sendo que um olhar sobre o fenômeno é raramente observado ou
consta no diagnóstico e nas condutas realizadas nos serviços de saúde.
Citando Scharaiber, D´Oliveira, França e Pinho (2002) dizem ainda que no
estudo realizado por eles, de cada três usuárias que buscam o serviço de
saúde, uma apresenta histórico de violência intrafamiliar.
Koss et al. (2003), que realizaram estudos específicos nos
serviços de saúde mental, apontaram que mesmo com a alta incidência de
mulheres vítima de violência nesses serviços, a maioria não relata a questão
de violência aos profissionais de saúde, fazendo uso, assim, de recursos
próprios para lidar com as adversidades provenientes da relação abusiva.
Contudo, de acordo com Adeodato at al. (2005) as
consequências da violência doméstica para a saúde das mulheres são
maiores que as consequências de todos os tipos de câncer. Uma revisão de
estudos dos Estados Unidos, citados pela autora, concluiu que o
abuso é fator condicionante de 35% de suicídio das mulheres norte-
americanas. Afirma ainda que este tipo de violência tem sido associado a
sintomas que variam entre depressão, ansiedade e desordem de estresse
pós-traumático, aumento do uso de álcool e drogas.
3 O ESTUDO
A pesquisa foi realizada, conforme referência anterior, no Centro
314
de Atenção Psicossocial Silvério Tundis, gerenciado pela Secretaria de
Estado de Saúde do Amazonas (SUSAM). O início do seu funcionamento
data de maio de 2006, e ainda é a única unidade no município de Manaus,
criado de acordo com as diretrizes da Reforma Psiquiátrica, até agosto/2009.
O período do estudo refere-se aos meses de janeiro a julho de
2009, a partir dos registros dos prontuários, das observações e discurso das
mulheres durante o momento de acolhimento, atendimentos individuais e
grupais. Para tanto, foram obedecidos os seguintes critérios: as mulheres
pesquisadas deveriam estar inseridas em algum dos regimes de atendimento
da instituição no período citado e terem feito alguma referência sobre
situações de violência em algum momento na instituição.
O objetivo principal foi observar se existe relação da violência
com o sofrimento mental que a fizeram procurar/chegar ao CAPS. Qual a
percepção e o discurso das mulheres sobre suas vivências de violência
doméstica?
A amostra do estudo foi de 18 (15%) das 117 mulheres que fazem
parte de algum dos regimes de atendimentos citados. Vale ressaltar que no
período da pesquisa foram realizados 617 atendimentos médicos para
pessoas do sexo feminino e 448 para pessoas do sexo masculino. O que nos
leva a apontar que a maior demanda de consultas médicas no serviço,
provém de mulheres, 58% do total.
O estudo foi quantitativo e qualitativo, a partir da análise do
discurso das usuárias e dos registros contidos nos prontuários. Para as
análises qualitativas nos debruçamos sobre 06 usuárias, no sentido de
entender mais profundamente suas histórias.
Tivemos o cuidado de extrapolar um olhar objetivante dos
registros, no sentindo de evitar o risco de rotular a vivência de situações de
violência contra a mulher. Priorizamos por conhecer essas mulheres, suas
dores, vivências, histórias de vida, violência, e sofrimento mental.
4 DISCUSSÃO
A idade das mulheres vítimas de violência doméstica atendidas
no Caps varia entre mulheres jovens (16,6% até 30 anos) e adultas (33,3% de
31 a 40 anos; 33,3% de 41 a 50 anos e; 16,6% com mais de 51 anos). Não
constou da amostra nenhuma mulher acima de 60 anos.
Das mulheres pesquisadas 50% apresentaram queixas no
momento do acolhimento relacionadas à depressão, ansiedade, insônia e
medo. O que nos leva a corroborar com a bibliografia estudada que relata tais
sintomas como comuns às mulheres que vivenciam violência doméstica.
Observamos nos relatos das experiências vividas das mulheres
pesquisadas, histórias de violência e de desigualdade de gênero, que nunca
haviam sido ouvidas. Casos graves que fazem parte da história de muitas das
entrevistadas, onde seus discursos foram/são negados dentro e fora da
instituição, colocando a situação de violência como fundo de uma
315
problemática, sendo que deveria ser figura. É o que foi percebido na história
de Deméter.
Deméter, 40 anos, tem uma história de mais de 10 anos de
atendimento e sucessivas internações psiquiátricas, quando chegou ao Caps
fazia uso de um grande número de medicações psiquiátricas, ficando muitas
vezes impregnada, e tornando-se dependente dessas medicações. No
acolhimento, as observações estavam restritas às condições biológicas,
ligadas à avaliação das funções psíquicas. Nos grupos, de inicio veio a fala:
“minha irmã me proíbe de entrar na casa dela”, ao final de um dia de
atividades terapêuticas, outra frase que se repetia quase que cotidianamente:
“não quero voltar para casa, tenho medo da minha irmã”. Mesmo assim, as
observações ainda se restringiam aos registros no prontuário do tipo:
dificuldade com o auto-cuidado, baixa auto-estima, higiene pobre,
comportamento infantilizado.
No decorrer dos atendimentos, ao ser garantindo espaço de fala
para Deméter, sua história foi realmente contada:
Morei com um homem que bebia e me batia, isso tem 10 anos, tiraram
minha filha de mim, que hoje mora em Minas Gerais, quero minha filha de
volta, foi assim que adoeci, depois que tiraram a minha filha, fiquei só na
vida, ele me batia muito (Deméter).
Ao ouvir a fala, depois de mais de quatro meses de atendimento,
dando espaço para a expressão da situação de violência, o quadro de
dependência a medicação retrocedeu, sendo necessário ainda resgatar a
auto-estima e o auto-cuidado, que tanto foram negligenciados, passando
esse a ser o maior desafio. A usuária, mesmo depois de três anos em
atendimento, não tem um diagnóstico dentro da classificação de transtorno
mental definido. Mas, será Deméter uma mulher com transtorno mental? Se
Démeter se enquadra ou não na classificação doenças e problemas
relacionados à saúde, tendo como referência a Nomenclatura Internacional
de Doenças, estabelecida pela Organização Mundial de Saúde – CID 10, não
podemos afirmar no presente estudo. Porém, é inegável o sofrimento e a
violência vivência pela usuária ao longo de vários anos.
Com o estudo percebemos o relevante impacto que as situações
de violência doméstica causam na saúde mental das mulheres, confirmando
os dados da bibliografia estudada. As histórias dessas mulheres indicam
ocorrência do adoecimento pela cronificação das situações vividas: como
ameaças, negações, violências físicas, sexuais e exigência de um
comportamento considerado como de “mulher ideal”, baseado nos
estereótipos de gênero. É o que indica a fala de Héstia ao procurar
atendimento individual para a vontade de separar do marido:
Convivo com meu marido há treze anos, tenho três filhos. Nunca gostei
dele como deveria ser. Fui morar com ele porque engravidei. Fui traída
várias vezes e mesmo assim continuo com ele. Meu marido esta
316
frequentando uma igreja evangélica e acredita que estou em crise
influenciada pelo inimigo, me diz que não posso desistir da família, pois
ele deseja ser pastor. Eu não possuo condições financeiras para me
sustentar sozinha e, não tenho casa e tenho três filhos (Héstia).
Podemos sugerir de acordo com a fala e com os relatos do
prontuário, que a vontade de separar-se e a não aceitação por parte do
esposo, estejam contribuído para o adoecimento da usuária. O desfecho do
caso de Héstia se deu, quando se ausentou do serviço, retornando com a
família após alguns meses, em virtude de uma tentativa de suicídio, sendo
encaminhada para internamento no Hospital Psiquiátrico do Estado. O
internamento foi o único encaminhamento registrado em seu prontuário, não
constando de espaço para falar da violência sofrida, inclusive para abordar as
razões que a levaram a tentar suicídio.
Observamos ainda nos discursos das mulheres que como não
existe o espaço para a fala, antes de chegar ao serviço de saúde mental, elas
encontram recursos próprios para lidar com as adversidades provenientes da
relação abusiva, em alguns casos ligadas com auto-agressões, como Gaia
que após ser violentada pelo namorado, aos 16 anos de idade expôs: “Desse
tempo em diante comecei a me machucar no braço e em demais partes do
corpo” (Gaia).
A mesma situação é relatada por Ártemis que, desde que sofreu
violência sexual, aos oito anos de idade até os dias atuais, costuma raspar
todos os pelos do corpo, inclusive os cabelos. Mutilou-se, faz uso de drogas e
realiza trocas sexuais. Entre cinco e oito anos fui abusada pelo meu pai, só
parei de sofrer violência quando ele faleceu, nos meus oito anos (Ártemis).
O relato aponta para vivência da violência sexual na infância, bem
como para ausência de espaço para verbalizar as situações de violência na
instituição, só expôs a situação acima, após três anos de atendimento no
serviço. Os registros no seu prontuário indicam que em nenhum momento o
sofrimento da usuária foi percebido para além do discurso da patologia. O
_____________________________________________________________

110
Nesse acompanhamento, o objetivo é proporcionar ao sujeito uma liberdade para que o mesmo
apreenda suas próprias contradições, seus interstícios, suas causalidades. Dessa forma, é fundamental
valorizar canais de formação de sentidos. E esses podem ser também formados pela “intuição” (Czerina,
2003). Ou seja, o conhecimento científico e a possibilidade de operar nas práticas de saúde deveriam ser
viabilizados sem provocar a desconexão da sensibilidade em relação aos nossos próprios corpos.
111
Os regimes de atendimento nos Caps são divididos em intensivo (todos os dias úteis da semana), semi-
intensivo (de duas a três vezes por semana) ou não-intensivo (três vezes ao mês), de acordo com as
atividades específicas em contratualidade com o terapeuta de referência da usuária.
112
Aqui nos referimos ao conceito de violência doméstica contra a mulher contido na Lei No. 11.340, Lei
Maria da Penha: Qualquer ação ou omissão que cause morte, lesão, sofrimento físico, sofrimento sexual,
sofrimento psicológico, dano moral ou dano patrimonial, dentro da unidade doméstica (espaço de convívio
permanente de pessoas com ou sem vínculo familiar), do âmbito familiar (pessoas que são ou se
consideram aparentadas, por laços naturais, por afinidade e por vontade expressa) e de qualquer relação
íntima de afeto independente de coabitação (namoro ou qualquer outro tipo de envolvimento íntimo em que
exista uma convivência).

317
comportamento “discordante”, transgressor da usuária, foi resolvido através
da medicalização.
A pesquisa apontou também para uma limitação institucional, os
profissionais não analisam a questão da violência no processo de
acolhimento das usuárias. Dos 18 prontuários analisados no estudo, apenas
02 (11%) continham informações a respeito da violência doméstica
vivenciada. Só percebeu-se a história de violência como intimamente ligada
ao processo de adoecimento psíquico, após a inserção da mesma nos
regimes de atendimento, sendo que a resposta inicial à demanda
apresentada foi sempre a prescrição medicamentosa.
Entretanto, torna-se importante destacar que desses prontuários
que não apresentavam inicialmente história de violência doméstica, em 03
casos havia registro por parte do profissional de problemas na relação
familiar. Mas, a situação não foi investigada.
Frente à amostra, destacam-se como prováveis hipóteses para a
dificuldade do registro por parte do profissional do serviço, a falta de
conhecimento sobre o fenômeno, a representação e o medo de ofender a
usuária e, as crenças equivocadas sobre a violência doméstica.
Assinalamos para a importância dos profissionais de saúde em
realizar a escuta das mulheres em sua complexidade e integralidade. Não
tivemos dúvidas nesse estudo, sobre o quanto à violência pode estar
relacionada a diversos problemas de saúde, entres estes, os
sofrimentos mentais.
Sabemos que o relato das experiências de sofrimento e violência
também está relacionado ao tempo de mulher, a confiança, e vínculos
construídos. Nesse sentindo cabe destacar que os Centros de Atenção
Psicossocial tem papel importante na construção de vínculos com seus/suas
usuários/as. Faz-se mister aguçar a escuta e estar aberto para olhar o outro,
as mulheres, em sua integralidade e principalmente como sujeito de direitos.
Têmis foi uma das duas usuárias que relatou no primeiro
acolhimento que sofreu violência, disse que sofreu abuso sexual e que por
isso carregava traumas. Fazia questão de dizer que não era maluca; dizia não
estar bem porque não estava em casa, veio de outro Estado e estava
morando com os irmãos. Falava do sentimento de medo e de abusarem suas
filhas. “Sofri abuso sexual na adolescência, quando residia na casa de uma
tia. Acordei com esperma na barriga. Neste dia meus tios brigaram. Mas, meu
tio é uma pessoa boa, quase um segundo Pai.” (Têmis).
O relato indica um quadro de dualidade presente nas situações
de violência sexual: culpa, vergonha, raiva. Têmis, em alguns atendimentos
individuais, referindo-se sobre sua vida sexual com namorados e maridos,
descrevia aspectos de submissão, o que nos leva a sugerir que sua vida
_____________________________________________________________

113
Os nomes das usuárias são fictícios, visando a preservação de suas identidades.

318
sexual, estabeleceu-se a partir dos desejos de outros e nunca a partir da
realização de seus próprios desejos e/ou de cumplicidade.
Os resultados do estudo também mostram o risco de tratarmos a
violência como uma doença e daí, como já apontava Schraiber (1999), em
seus estudos sobre violência e saúde, deduzirmos um conjunto de
procedimentos e ações que a mulher deve seguir para poder “curar-se” do
problema. O que ocorreu com algumas das usuárias, foi o encaminhamento
para atendimentos psicológicos (61%) bem como o uso da medicação (em
100% dos casos), no sentido de “curar-se” da violência, quando na verdade, a
violência doméstica apesar de trazer muitas consequências para a saúde das
mulheres, se sobrepõe a essa esfera, fazendo parte de uma
situação de vida, situação complexa, que não será “resolvido” apenas nos
meandros do serviço de saúde.
O estudo apontou ainda que o recurso à medicação, muitas
vezes, é uma forma de calar manifestações de resistência e autonomia das
mulheres. Porém, a fala das mulheres como argumento e ação (Arendt, 2001)
têm se mostrado presente e fundamental para construção de outros lugares,
para além da violência. É o que nos demonstra o depoimento de Métis ao
falar de sua discordância de seu marido ao exigir sua ida para o Hospital
Psiquiátrico do Estado:
Não tinha necessidade ir pra lá, fico irritada, chateada, porque realizo as
atividades de casa sozinha, gostaria que meu marido também fizesse,
mas, eu arrumo tudo e ele deixa tudo bagunçado, bem que ele podia
ajudar mais na educação de nosso filho também, tudo de casa é minha
responsabilidade. Ele pensava que eu estava em crise, mas, eu não
estava, sabia tudo que estava acontecendo (Métis).

1 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Concluímos, com o desejo de continuar conhecendo tantas
outras Démeter, Héstia, Gaia, Ártemis, Têmis, Métis e Marias. Esperamos
com esse artigo contribuir para a visibilização das situações de violência
sofridas por tantas mulheres e, principalmente para reflexão do não espaço e
da medicalização que as instituições de saúde, mesmo com propostas
diferenciadas, continuam a reproduzir.
Cabe considerar também que, para além da significativa relação
da violência doméstica contra a mulher com a saúde mental/sofrimento
mental, o estudo mostrou-nos a importância da construção da autonomia
efetiva e cotidiana das mulheres, na trajetória de enfrentamentos e superação
da violência à qual foram submetidas.
Aqui se trava o desafio, pois percebemos que o discurso e as
falas das mulheres são permeados por poderes que vem garantindo
resistências diárias para a superação das situações de violência, já
apontadas por Focault (2001, p.89) ao afirmar que “o poder está em toda
319
parte; não porque englobe tudo e sim porque provém de todos os
lugares”.
O discurso dessas mulheres contribuiu para a reflexão do risco de
se objetivar a fala, e com isso a efetivação para a situação de cronificação do
sofrimento psíquico. Tal percepção aponta para a necessidade de maiores
estudos que relacionam saúde mental e gênero, para que a atuação prática
também consiga abarcar essa demanda, sem preconceitos, medos e mitos.

320
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survivors of male violence: Research and training initiatives to facilitate
recovery. In: Pychology af Women Quarterly, 27, 130-142.

322
GÊNERO, CIÊNCIA E PATERNIDADES: ANÁLISE DA PRODUÇÃO
CIENTÍFICA BRASILEIRA EM BANCO DE TESES E DISSERTAÇÕES
DA COORDENAÇÃO DE APERFEIÇOAMENTO DE PESSOAL DE NÍVEL
SUPERIOR (CAPES)

Márcio Bruno Barra Valente


Benedito Medrado
Jorge Lyra

1 INTRODUÇÃO
Compreendendo a ciência como dispositivo de produção de
modos de ser e regimes de verdade (FOUCAULT, 2007), este levantamento
bibliográfico nasceu da necessidade de construção de um projeto de
pesquisa para o Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UPPE.
Para tanto, analisamos, entre maio a junho de 2009, os resumos
de pesquisas indexadas, de 1987 a 2008, no Banco de teses e dissertações
da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES),
a partir do descritor: paternidade. Os critérios adotados para escolha dos
trabalhos foram:
a) que no título da publicação tivesse referência direta à palavra
“paternidade” ou termos correlatos (pai, função-paterna etc.);
b) publicações voltadas exclusivamente à paternidade entre
humanos;
c) resumos com informações mínimas para compreensão da
publicação.
O objetivo geral deste levantamento era conhecer o campo de
estudos científicos sobre paternidade no Brasil. Como específicos,
desejávamos: fazer um panorama que permitisse visualizar como o tema
paternidade vem sendo problematizado nos diversos campos de
saber nestes 21 anos de pesquisas e analisar a relação entre saberes
científicos e a construção do sujeito homem-pai a partir dos estudos
feministas de gênero que buscam superar a di-visão natureza/corpo versus
cultura/gênero, focalizando dispositivos de saber-poder que produzem
_____________________________________________________________

114
Site: www.servicos.capes.gov.br/capesdw.
115
Destaco tal critério porque na pesquisa sobre paternidade são muitas as publicações cujo foco é a
paternidade entre não humanos, por exemplo, “Impressos digitais de DNA genômico amplificado através
de primers randômicos na determinação da paternidade bovina” (LIMA, 1994).

323
reiterações constantes da heteronormatividade e da dicotomia masculino-
feminino (BUTLER, 2008).
2 CIÊNCIA E PATERNIDADES
Em 21 anos de produções científicas identificadas 807
dissertações e 272 teses, cujo total corresponde a 1.079 trabalhos de
diversos campos de saber.
Jorge Lyra (1997) produziu um levantamento bibliográfico que
compreendeu os períodos entre 1985 a 1995. Nesses 10 anos de brasileiras
pesquisas, identificou apenas dois artigos de revista científica e 17 trabalhos,
entre dissertações e teses. Identificou um total de 39 produções brasileiras
entre livros, capítulos de livros, teses, dissertações, artigos de revistas,
comunicações em congressos e relatórios/monografias sobre paternidade.
Obviamente um número bem reduzido do atual.
Medrado, Lyra, Ana Roberta Oliveira, Mariana Azevedo, Giselle
Nanes e Dara Andrade Felipe (2009), em artigo recente, produziram outro
levantamento a partir do descritor paternidade em no banco de
teses/dissertações da CAPES, no SciELO e Google Acadêmico obtendo,
respectivamente, 1.089 trabalhos, 53 artigos científicos e 11.400 referências
entre artigos científicos, livros, resumos, textos produzidos por organizações
profissionais, bibliotecas de pré-publicações, etc.
A diferença entre os dois levantamentos é explicada pelos
autores e autoras a partir de alguns fatores:
a) o advento da internet possibilitou um aumento exponencial no
número de veículos de comunicação científica e de fontes de levantamento
bibliográfico;
b) a facilidade de acesso às publicações indica também maior
potencial de produções e o próprio compartilhamento dos conhecimentos;
c) e a relevância do tema no contexto acadêmico dado a continuidade
e o aumento do número de publicações.
Destacamos esses fatores por acreditar que os argumentos que
os subsidiam também se adéquam a presente pesquisa. Além disso, o
exponencial crescimento de publicações sobre paternidade, a super
exposição do tema em vários veículos de comunicação científica, o aumento
– que como pode ser percebido nos levantamentos – da pluralidade e
diversidade de saberes que se dedicam a investigá-la, analisá-la, classificá-
la, defini-la, conhecê-la, evidenciam tanto seu caráter polissêmico como os
jogos de poder no qual está inserida conforme os contextos e sentidos.
Uma breve análise sobre as publicações que tratam da
paternidade confirma tal percepção ao evidenciar como o tema está sendo
324
conhecido a partir de diferentes campos de saber que vão do Direito a
Enfermagem, da Psiquiatria a Antropologia, da Educação Física a Psicologia,
das Ciências Sociais a Comunicação.
a) De 1987 a 1990...
Os saberes presentes no banco de teses/dissertações da CAPES
na forma de publicações são o Direito e a Psicologia.
Os interesses no campo do Direito recaem sobre o
reconhecimento da paternidade fora do casamento. Dois marcos históricos
foram importante para subsidiar tais análises: a promulgação da Constituição
Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990. Nos
documentos se assegurou que filhos havidos ou não fora do casamento, ou
por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações relativas à filiação e se
reconheceu o estado de filiação como direito personalíssimo, indisponível e
imprescindível, podendo ser exercido pela força da lei contra pais e seus
herdeiros.
Na Psicologia, inserida neste contexto histórico, a investigação é
a paternidade, sendo problematizada a partir das implicações de
sua ausência e como construção na história de vida e no desenvolvimento do
sujeito.
b) De 1991 a 2001...
Uma década depois a paternidade desponta, pouco a pouco,
como temática investigada por uma pluralidade e diversidade de saberes
científicos. Em 1991 no Direito se analisa a tensão entre o código civil vigente
e a jurisprudência acerca da paternidade presumida enquanto na Psicologia
se investigam as representações sociais e o papel da paternidade. Foram
identificadas em 1993 somente publicações no Campo da Psicologia nas
quais se analisou o lugar do pai e a tensão entre função paterna e complexo
edipiano; e a paternidade como experiência negada por meio do abortamento
provocado e do silencio cultural dos homens diante desse processo.
Em 1994 a Psicologia analisou as tensões entre a identidade
masculina e uma paternidade que envolveria atribuições antes ligadas à
condição feminina como afetividade e cuidado, e a busca de uma nova
definição de ser homem, e a paternidade na clínica. Na publicação de Saúde
Pública se questionou os significados de ser pai, a postura paterna frente aos
filhos e seu envolvimento no cuidado dos mesmos.
É importante ressaltar outro marco histórico que ressoa nas
produções acadêmicas internacionais e nacionais. Nesse mesmo ano foi
realizada em Cairo/Egito a Conferência Internacional de População e
Desenvolvimento no Cairo/Egito, na qual se afirmou a importância da
325
responsabilização do homem por seu comportamento sexual e
por sua maior participação na vida familiar e no cuidado com a prole.
Além disso, da necessiadade de garantir atravês de uma
educação formal e familiar que meninos e rapazes aprendassem a respeitar
as mulheres e as meninas. Medidas que visavam contribuir para a Igualdade
e Equidade entre os sexos e promoção da mulher. Tais propostas não
“apareceram” no evento, pois o antecidiam e faziam parte das discussões dos
movimentos sociais, com destaque ao feminista, sendo que foi na
conferência que foram tornados públicos enquanto reivindicação e proposta
coletivas.
No campo do Direito, conseqüência direta do impacto da Carta
Magna e do ECA na vida familiar brasileira, o interesse recaiu sobre a nova
concepção de família, o estabelecimento da paternidade e a filiação afetiva.
Na Psicologia, por sua vez, se buscou problematizar a construção de uma
paternidade (mais consciente e participativa) pela desconstrução da
“masculinidade hegemônica”; e a vivência e experiência do pai enfocando a
contribuição das mudanças culturais (do ser masculino e feminino) para a
configuração de uma nova estrutura psíquica do ser humano, assim como
familiar e organização social, a partir de um enfoque psicanalítico.
Mais saberes passam a produzir verdades sobre a paternidade a
partir de 1996. No campo da Antropologia se questiona a construção da
“nova” paternidade a partir da ruptura do modelo hegemônico de
masculinidade. Na Educação o foco é conhecer e problematizar o discurso
paterno buscando as singularidades e diversidades. Os dois
trabalhos são exemplos do cruzamento entre estudos sobre masculinidades
que marcam a década de 1990 que analisam os homens (e não mais o
homem genérico) em suas singularidades e em suas diversidades e os sobre
a paternidade e “nova” paternidade. No Direito o impacto das novas
tecnologias de reprodução é problematizado enquanto que na Psicologia
analisa-se exercício da paternidade na separação conjugal.
Em 1997 as publicações no Campo da Psicologia recaem sobre a
paternidade na adolescência propondo análises e intervenções. Nesse ano é
_____________________________________________________________

116
“A paternidade fora do casamento – análise crítica do estatuto vigente no Brasil” (RAMOS, 1988).
117
“Ausência paterna e suas associações a psicodinâmica e ao aproveitamento escolar da criança”
(VIZZOTTO, 1988). “Reflexões sobre o pai – um estudo sobre a construção da paternidade na história de
vida e no desenvolvimento do sujeito” (CARVALHO, 1990).
118
“Paternidade presumida: código civil a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal” (FACHIN, 1991).
119
“A construção do papel paterno” (STINGEL, 1991). “As representações sociais da paternidade e da
maternidade: implicações no processo de aconselhamento genético” (TRINTADE, 1991). “Pai divorciado:
auto-percepção de seu papel” (BREDA, 1991).
120
“ser pai: o que é isso? Um estudo do lugar do pai sob enfoque freudiano” (CHAVES, 1993).
“Considerações sobre a função paterna no pensamento de Freud” (SILVA, 1993).
121
“A paternidade negada” (SMIGAY, 1993).

326
identificado o primeiro trabalho científico oriundo do Campo da Enfermagem,
no qual o interesse recai sobre o vivido do pai que aguarda pelo parto, em vias
de se tornar pai. O mesmo inaugura uma dúvida que permeará os anos que
virão: quando/como o homem se torna pai?
O número de obras indexadas aumenta em 1998. Na Psicologia
os focos são as tensões/relações entre paternidade, esquizofrenia e gênero,
o arquétipo do pai na cultura e suas influências na relação pai-filho, as
representações sociais de paternidade em grupos de homens-pais de
gerações distintas, o declínio do pai na modernidade e uma análise das
permanências e transformações da paternidade em mídia impressa. No
Campo da Psicanálise, cujas obras foram indexadas
desatreladas do termo genérico de psicologia clínica, investiga-se a relação
entre paternidade e filiação, assim como o interdito da função paterna na
relação entre homem-pai e filho-menino. Na Educação se volta para a tensão
entre tradição e reinvenção da paternidade e masculinidade. Pela primeira
vez neste levantamento, na Saúde Publica se analisa a paternidade como
atrelada a identidade masculina adulta enquanto no Serviço Social as
representações sociais que inscrevem o homem-pai como provedor material.
A Psicologia se sobressai em número de publicações (seis) em
relação aos demais saberes. A paternidade é analisada como significado
importante para a construção da autonomia do sujeito, a partir da literatura
machadiana, do início do século XIX, investigando o lugar do pai na
constituição da subjetividade dos filhos, especialmente no que se refere ao
reconhecimento da Lei, ainda com base na psicanálise, na tensão entre o
processo estruturação da Lei, a relação mãe-filho e desejo materno, e, por
fim, por meio das expectativas e sentimentos que antecedem o nascimento
do filho e demarcam a transição do homem para o pai.
As obras nos Campos das Ciências Médicas e do Direito se
ocupam do tema, respectivamente, investigando os novos sentidos sobre
paternidade e analisando tensões, especialmente, no Direito de Família,
intensificadas com a popularização do exame de DNA, na segunda metade
de 1990, como instrumento jurídico, médico e biológico para determinação da
_____________________________________________________________

122
“Ser/estar pai: uma figura de identidade” (MACIEL, 1994).
123
“O pai e seus destinos na clínica psicanalítica” (SIMONE, 1994)
124
“Paternidade: estudo dos depoimentos de duas gerações de pais” (BOSCO, 1994). Este trabalho é
uma referência por ser o primeiro a enfatizar no seu resumo a mudança na atribuição do papel paterno
enquanto uma repercussão do movimento feminista e de outros fatores sócio-culturais.
125
“Questão da filiação sócio-afetiva. A nova concepção de família e o estabelecimento da paternidade
com fundamento na 'posse de estado de filho'” (DELINSKI, 1995).
126
“A experiência de ser pai de uma mulher” (MATOS, 1995).
127
“O exercício da paternidade hoje” (RAMIRES, 1995).
128
“Construindo uma nova paternidade? As representações masculinas de pais pertencentes as
camadas médias em uma escola alternativa de Recife/PE” (QUADROS, 1996).
129
“Discurso paterno: similaridade e especificidade” (KONRATH, 1996)

327
verdadeira paternidade biológica.
No último ano do século XX, há um equilíbrio relativo nos
números obras e uma variedade de saberes que as indexaram. No campo da
Psicanálise os interesses recaem sobre o contexto clínico no qual demandas
que envolvem a questão paterna são analisadas (como função simbologia,
real e prescindível), assim como o chamado declínio da função paterna na
modernidade.
Na Educação, Fonoaudióloga, Antropologia e Sociologia a
paternidade foi analisada, respectivamente, a partir das
implicações da ausência/ presença do pai no processo de socialização; de
sua participação no cuidado com a prole e no contexto das Instituições de
Saúde que promovem ou excluem a presença paterna; de sua re/construção
no espaço das relações familiares, especialmente, entre filhos; e como
produto histórico-cultural cujas atribuições ligadas a ordens de sexo/gêneros
tem se modificado a partir negociações estabelecidas entre casais (homem-
mulher).
No Campo da Psicologia a paternidade surge através das falas
dos pais jovens cuidadores que “entram em cena” na ausência da mãe ou na
perspectiva de perda jurídica dos filhos e do paralelo entre paternidade e
pobreza na construção da identidade de homens. Por sua vez, no Campo do
Direito, os impactos do reconhecimento do/as filhos/as em qualquer que seja
a origem da filiação ainda suscitam questionamento, ou melhor, tensões entre
os elos da paternidade para o Direito, com destaque, no de Família
Em 2001, no primeiro ano do século XXI, o “boom” da paternidade
é uma evidência e já demonstra permanências advindas de mudanças. A
paternidade como experiência de cuidado outrora assunto encarado como
_____________________________________________________________

130
“Paternidade por inseminação artificial com sêmen de terceiro” (BARBOSA, 1996)
131
“A paternidade ativa na separação conjugal” (SILVA, 1996).
132
“Eu, pai? A paternidade na adolescência e seu significado” (TRINDADE, 1997). “Paternidade
adolescente: uma proposta de intervenção” (LYRA, 1997).
133
“O significado da espera do parto – o vivido do pai na ótica da enfermagem” (GARRIDO, 1997).
134
“Paternidade, esquizofrenia e gênero: um estudo de base fenomenológica” (HORTA, 1998)
135
“O arquétipo do pai na cultura patriarcal: um estudo sobre a relação entre pai-filho e seus reflexões na
subjetividade do homem atual” (DONHA, 1998).
136
“O cotidiano da paternidade: uma experiência no Rio de Janeiro” (LOPES, 1998).
137
“Modernidade e declínio do pai: a 'resposta' da psicanálise” (CRESPO, 1997).
138
“Permanências e transformações: a paternidade na revista pais e filhos” (ROSENBAUM, 1998).
139
“Estudos sobre paternidade e filiação” (ROLO, 1998)
140
“A paternidade e psicanálise: do menino interditado ao pai interditor” (SOUZA, 1998).
141
“Paternidade e masculinidade: tradição, herança e reinvenção” (SARAIVA, 1998).
142
“Paternidade na adolescência: a antecipação e reafirmação de uma identidade masculina” (MAIA, 1998)
143
“Ele ainda é chefe de família: um estudo sobre as representações da paternidade” (MARTORELLI,
1998).

328
“novo”, reflexo da “crise masculina” ou rompimento no modelo de paternidade
e masculinidade tradicionais, já aparece sendo analisada produtivamente
(FOUCAULT, 2007). Ou seja, a partir das implicações positivas ou negativas
que pode gerar na vida (na saúde) de homens, mulheres,
crianças e na organização social. Contudo, a “nova” atribuição ainda produz
dilemas ao masculino, mas esses precisam ser contornados já que se
distanciam do “esperado/melhor” para todos e todas. Por exemplo, no
Campo da Psiquiatria o interesse recai sobre as repercussões da ausência
paterna na saúde adolescente.
No Campo da Psicologia as pesquisas se voltam para analisar a
função paterna na contemporaneidade e os discursos de pais; os conflitos
que envolvem a paternidade em um grupo de homens na tensão entre “o” pai
e pai possível; a paternidade adolescente na esfera da experiência de jovens-
pais no cuidado do bebê e a participação do pai no parto da criança e os
desafios institucionais que a impedem, Ou seja, a participação masculina no
cuidado não decorre apenas da vontade do sujeito, mas das condições
sociais criadas para propiciá-la.
Nos Campos da Enfermagem a paternidade é analisada a partir
das vivências cotidianas do homem-pai, assim como no da Antropologia, mas
com o foco na construção da relação pai-filho. Nas Ciências Sociais as
reflexões são feitas sobre reprodução e gênero para se chegar às
concepções de pai e filho.
Ao longo deste texto destaquei marcos históricos como a
Constituição Federal de 1998, o ECA e a popularização do teste do DNA, por
exemplo. Retomo-os, pois as obras do Campo do Direito
parecem como o futuro de um passado: o impacto do teste de DNA; as
implicações do reconhecimento de direitos e igualdade entre os filhos em
_____________________________________________________________

144
“O significado do pai para a psique da interdição à construção da autonomia” (FILHO, 1999).
145
“O pai moderno e a urbana família brasileira: reflexões a partir de Esaú e Jacó de Machado de Assis”
(OLIVEIRA, 1999). “Do Direito ao pai: sobre a paternidade no ordenamento jurídico” (BARROS, 1999).
146
“A transição para a paternidade: expectativas, sentimentos e síndrome de Couvade dos futuros pai ao
longo da gestação” (MARTINI, 1999).
147
“Casais grávidos e os novos sentidos de paternidade: um estudo qualitativo com referencial
psicanalítico” (SARMENTO, 1999).
148
“A antecipação da tutela dos alimentos provisórios e provisionais cumulados a ação de investigação de
paternidade” (OLIVEIRA, 1999). “O sistema presumido da paternidade no direito positivo brasileiro e
comparado” (GUIMARÃES, 1999). “Posse de Estado de filho no estabelecimento da filiação” (BOEIRA,
1999).
149
“O pai real e o término da análise” (HELENA, 2000), “A problemática paterna na potencialidade
polimorfa” (GARCIA, 2000) e “Para além do pai está o homem: a função paterna de Freud a Lacan”
(DECOURT, 2000).
151
“Família e socialização: um estudo das implicações da situação de presença/ausência paterna”
(BARUFI, 2000).
151
“O pai na clínica fonoaudiólogica: ausente ou excluído” (COELHO, 2000).

329
qualquer que seja o estado de filiação; e a tensão/crise do “modelo
tradicional” de paternidade e o rompimento da autoridade paterna e os
dilemas causados pela intervenção médico-legal no corpo da mulher
originando uma gestação “sem pai”.
c) De 2002 a 2008.
Já é século XXI e o ano de 2002 é referencial pelo aparecimento do
termo “paternidade participativa”, em especial, naquelas realizadas no
Campo da Psicologia: uma paternidade descrita como relação afetiva e
próxima da prole e não mais restrita ao provimento material nem
necessariamente vivida na companhia de uma mulher, esposa ou alguém. A
exceção é o estudo sobre homens e a importância do filho biológico.
No Campo da Psicanálise as obras analisam demandas clinicas e
seus vínculos com a função paterna, o pai real e as mudanças
contemporâneas. Nas produções da Enfermagem se analisam a
compreensão masculina da gravidez a partir de uma experiência na qual o
homem/pai a simula utilizando o artefato “barriga-grávida”, e os sentimentos e
o vivido do adolescente pai. Por sua vez, no Campo da Saúde Pública o foco
esteve na tensão das normas de sexo/gênero a partir de relatos de homens
em situação de desemprego prolongado que passaram a exercer a
paternidade como cuidado enquanto as mulheres passaram prover
materialmente a residência.
Pela primeira vez aparecem produções dos Campos da
Comunicação, da Saúde da Mulher e da Criança e Neurociências – essa
última é mais um exemplo de como o tema paternidade e, sobretudo, a
questão da presença/ ausência do pai se tornaram relevantes neste
final/início de século.
Na Antropologia os trabalhos não estiveram distantes das
_____________________________________________________________

152
“De pai para filho: tecendo um novo território familiar” (HAYGERT, 2000).
153
“Experiência masculina da Paternidade nos anos 1990: estudo de relações de gênero com homens
das camadas médias” (UNBEHAUM, 2000).
154
“Ouvindo o pai jovem no contexto da psicologia judiciária; algumas reflexões” (MENDES, 2000).
155
“Pobre pai: a construção da identidade em homens pais pobres urbanos” (NASCIMENTO, 2000).
156
“O elo biológico da paternidade: um estudo a luz do direito brasileiro” (ALMEIDA, 2000).
157
“Averiguação oficiosa de paternidade: a caminho da implementação do Direito de Família
Constitucional no Brasil” (SELENE, 2000).
158
“As repercussões da ausência paterna sobre a construção da identidade do adolescente” (YOSHIDA,
2001).
159
“A função paterna: problematização da contemporaneidade” (BERGOTTINI, 2001).
160
“Sobre o discurso de pais na contemporaneidade” (PADILHA, 2001).
161
“O pai possível – um estudo dos conflitos da paternidade em um grupo de homens” (FARIAS, 2001).
162
“Paternidade na adolescência: expectativas, sentimentos e a interação com o bebê”
(LEVABDOWSKI, 2001).

330
questões ligadas a “paternidade participativa” e dos espaços culturais criados
a partir dos marcos históricos, em especial com o ECA e o patamar de
relevância que a criança atingiu no mundo deste o final do século,
materializada na preocupação primeira com seu “bem-estar” e “melhor
interesse”, que tornaram a diversidade mais visível: num se analisa a adoção
e paternidade homossexuais e noutro o vinculo paterno com os filhos após
separação conjugal e novo casamento.
Por fim, no Campo do Direito as publicações os focos se
mantiveram sobre temas como investigação paterna, a tensão entre aspectos
jurídicos e inseminação artificial e, entre o direito personalíssimo do filho ao
estado de filiação e a insubmissão do homem a perícia genética do DNA. É
importante destacar outro marco histórico: a reforma do Código Civil
Brasileiro de 2002 que ao colocou em igualdade todas as formas de filiação,
natural ou sociológica (adoção); conferindo legalidade jurídica ao princípio da
paternidade afetiva (PERUCCHI, 2008).
Ainda no Campo do Direito, no entanto agora em 2003, algumas
obras já analisam: o exame de DNA considerando os efeitos das recentes
mudanças no campo jurídico ao enfocarem a responsabilidade de “ser”
paterna e o direito de “ser” filho; a construção da paternidade enquanto
experiência de homens-pais com a guarda de filho(a)s, as transformações
dos laços paterno-filiais diante do processo biotecnológico de inseminação
que as produziram. Assim como recaem sobre as problemáticas da
presunção e investigação da paternidade, da filiação paternal, e, em especial,
uma publicação sobre o reconhecimento do Direito à paternidade e
_____________________________________________________________

163
“A participação do pai no Nascimento da criança: as famílias e os desafios Institucionais em uma
maternidade pública” (CARVALHO, 2001). Essa última ao enfocar a participação do homem no cuidado
enquanto um desafio na esfera das instituições se aproxima de outras pesquisas como de Elizabeth
Coelho (2000) e Lyra (1997).
164
“Paternidade: conceito e vivencia – um estudo compreensivo na ótica da enfermagem do cotidiano
de pais” (ABREU, 2001)
165
“Ser homem, pobre e pai: a construção cotidiana da relação pai-filho nas camadas de baixa renda”
(LONGUI, 2001).
166
“Concepções de filhos, concepções de pai: algumas reflexões sobre reprodução e gênero” (COSTA,
2001).
167
“A certeza da paternidade através da pericia genética e a efetividade do acesso à justiça: uma
análise constitucional” (JUNIOR, 2001).
168
“A presunção legal de paternidade face ao principio constitucional da igualdade entre os filhos”
(SOARES, 2001).
169
“O rompimento dos laços de autoridade parental: pais e filhos perante o Estado juiz” (CARVALHO, 2001).
170
”A relação jurídica da paternidade com as novas técnicas de inseminação artificial” (QUEIROZ, 2001).
171
“Paternidade participativa: a vivência masculina” (SUTTER, 2002). “A gravidez do primeiro filho à luz da
perspectiva paterna” (BORNHOLDT, 2002). “O papel do pai no contexto familiar e na interação com a
criança em famílias de baixa renda nos períodos 1945/1950 e 1995/2000” (GIANIMI, 2002). “Homens com
a guarda dos filhos: sentimentos e reorganização do cotidiano” (GONÇALVEZ, 2002). “O exercício da
paternidade: a paternidade com filhos adolescentes do sexo masculino nas camadas médias” (CHAVES,
2002). “A construção da paternidade desde a gestação até o primeiro ano do bebê” (CASTOLDI, 2002). “O
envolvimento paterno com o bebê na gestação e aos doze meses de idade” (BOLLI, 2002). ”Estudo
descritivo de sentimentos e reações emocionais de pais de adolescentes” (ÂNGULO, 2002).

331
maternidade homossexuais e de seus exercícios a partir da adoção ou da
utilização de técnicas de inseminação artificial e reprodução assistida.
Nas publicações na Saúde da Mulher e da Criança, na Saúde
Coletiva e Psicanálise os interesses foram, seqüencialmente, a parentalidade
como marca subjetiva e cultural que remete a condição humana de
vulnerabilidade e suas articulações na identidade paterna e materna na
contemporaneidade; e a mudança nas configurações familiares ocidentais
contemporâneas, em especial, no que tange o afastamento, definitivo ou
temporário, do pai que pode provocar desde o surgimento de padrões
disfuncionais na família até a formação de auto-imagem inadequada, tanto
para os meninos e meninas. A disso, suscitar neles/as sentimentos como
abandono, rejeição e culpa, colocando em risco a formação de novos
vínculos, comprometendo futuras relações, contaminadas pela insegurança.
O referido estudo mostra o papel do pai na família contemporânea está
sobtensão. Por fim, a temática da definição do pai, na teoria psicanalítica, em
suas relações com a possibilidade do tratamento da psicose determinando os
limites da atuação na clínica e o lugar do pai na subjetividade.
No Campo da Educação investigou-se a promoção da saúde de
estudantes com dificuldades de aprendizagem pela participação dos pais.
Mais uma vez a questão da ausência/presença do pai e o impacto disso na
prole e na família. Por exemplo, a autora concluiu que quando a
responsabilidade pela educação dos filhos é delegada apenas as mães essas
desenvolvem ações de superproteção gerando dependência, acomodação e
falta de interesse no educando. A ausência paterna pode gerar a escassez de
regras e limites por parte da prole e que somente com um trabalho de
conscientização que envolva pais e mães e educadores tais dificuldades
serão revertidas.
_____________________________________________________________

172
“'Sangue do meu sangue': as tecnologias de reprodução assistida e a importância do filho biológico”
(BORLOT, 2002).
173
“As fobias e o real do pai” (PRESTES, 2002). “O que é um pai? Do papel do pai à função lógica do pai”
(MARTINHO, 2002). “Função paterna: mutabilidade ou invariância? Um estudo sobre os pais e os ideais na
contemporaneidade” (DUBEUX, 2002).
174
“processo criativo do artefato 'Barriga-grávida': compreensão da concretude biológica da gravidez pelo
homem/pai” (VASQUES, 2002).
175
“O vivido pelo adolescente frente à paternidade” (SOANE, 2002).
176
“Efeitos do desemprego prolongado na divisão sexual do trabalho: estudo de uma população masculina
do ABC” (JIMENEZ, 2002).
177
“Imagens do pai no cinema desta passagem de século: encenações da agressividade estruturante em
suas manifestações sociais como violência” (FANTINI, 2002)
178
“Em busca do pai: um estudo sobre paternidade adolescente” (NASCIMENTO, 2002).
179
“Interação pai-mãe-bebê: elementos para analise do papel da paternidade” (GONÇALVES, 2002).
180
“Pais assumidos: adoção e paternidade homossexual no Brasil contemporâneo” (TARNOVSKI, 2002).
181
“Eternos aprendizes: o vínculo paterno em homens separados e recasados de camadas médias”
(MARCONDES, 2002).

332
No campo da Psicologia, novamente o maior número (oito) de
publicações, os focos foram sobre o pai presente em um contexto familiar, a
manutenção do vinculo afetivo entre pais e filhos após separação conjugal, a
paternidade adolescente, homens de meia-idade e a paternidade em seus
projetos de vida, os sentimentos de pais que residem ou com seus filhos, a
percepção da figura masculina como pai de criança portadora de deficiência
mental e a história oral de pais com filhos deficientes mentais. Esses últimos
estudos analisam o pai e o exercício da paternidade em situações de cuidado
com filhos/as com necessidades especiais enfocando as vivências,
depoimentos, sentimentos e atitudes dos mesmos: as experiências de si
como pais.
No Campo da Educação, em 2004, uma publicação, semelhante
às acima destacadas, enfoca as concepções de homens-pais sobre seus
bebês com deficiência e outra se volta para o declínio da função paterna no
contexto escolar. A paternidade a partir de experiência de adolescentes
também foi enfocada, de diversas maneiras, pelos Campos das Ciências
Sociais, Serviço Social e Antropologia enquanto nos da Enfermagem,
Psicanálise e Sociologia, respectivamente, investigaram-se o significado da
paternidade para homens, a partir do enfoque de gênero, a função paterna e
sua terceirização na contemporaneidade e sobre a deserção de pais e não
reconhecimento de crianças analisadas por conta do sexismo.
As publicações no Campo do Direito estão voltadas,
especialmente, para a investigação de paternidade: e o princípio da
dignidade da pessoa humana e os seus aspectos materiais e processuais.
Em outra o foco é o mesmo, porém argumenta a incontestável cientificidade
do exame de DNA e a importância de uma possível revisão de sentenças
anteriores, mesmo que já encerradas, que tratavam da investigação de
paternidade quando tal técnica não estava disponível a fim de assegurar uma
_____________________________________________________________

182
“Investigação paterna na ordem civil constitucional” (POZZI, 2002).
183
“Banco de sêmen e paternidade: aspectos jurídicos e biológicos” (CENEDEZE, 2002).
184
“O direito ao vinculo jurídico da paternidade frente a insubmissão do investigado à pericia genética:
solução para os conflitos de Direito Personalíssimos” (MACHADO, 2002).
185
“O exame de DNA face à investigação oficiosa de paternidade: a responsabilidade de 'ser' pai e o direito
de 'ser' filhos” (CAROSSI, 2003).
186
“Paternidade em construção: demandas de guardas de filho(a)s em processos judiciais” (QUEIRÓZ,
2003).
187
“Filhos da biogenética: uma análise das transformações dos laços paterno-afetivos em face do processo
biotecnológico” (SOUSA, 2003)
188
“Presunção de paternidade: novas coordenadas legais” (MALUF, 2003).
189
“Da coisa julgada na investigação de paternidade” (CASARA, 2003).
190
“Filiação paternal” (MAIA, 2003).
191
“Da possibilidade de reconhecimento do direito à paternidade/maternidade dos homossexuais e a
viabilidade de seu exercício através da adoção e da utilização de técnicas de reprodução medicamente
assistidas” (SAPKO, 2003).
192
“Ser-mãe, ser-pai: parentalidade contemporânea realizações e avatares” (SILVA, 2003).
333
sentença irrefutável sobre o caso. O autor apresenta como sugestão, visando
contribuir com a discussão, a transformação em lei do projeto que estabelece
tal revisão. Em outras publicações são analisadas a reconstrução da
paternidade diante da recusa do filho ao exame do DNA e o dilemas que
envolvem os tipos três de paternidades (presumida por lei, biológica e sócio-
afetiva), a teoria do melhor interesse da criança e a relevância da
paternidade na formação física, moral e psíquica de cada pessoa natural. A
autora argumenta que se apenas um tipo não garantir a fixação do estado de
filiação paternal adequadamente será necessário nascer uma nova filiação
na qual será preciso conjugar dois ou mais tipos de paternidade para que se
garanta ao sujeito criança e adolescente, o direito a uma paternidade
“verdadeira”.
No Campo da Psicologia foram analisadas as concepções de
paternidade de meninos colocados em regime de abrigamento, os exercícios
da paternidade, os dilemas entre função paterna e adolescência na escola, as
preocupações de pais de recém-nascidos prematuros, os significados da
ausência paterna para homens-adultos e a paternidade na mídia
contemporânea problematizando, a partir uma perspectiva teórico-
metodológica que articula os campos dos Estudos Culturais,
Feministas e foucaultianos, o modelo triático de família (pai-mãe-filho), o
relevante lugar que a criança ocupa na sociedade moderna e as implicações
dessa no posicionamento e regulação de ações de mães e pais.
Nesse último trabalho, a autora argumenta que a posição do homem
em relação a si mesmo, nas relações de gênero e nas relações com filhos/as
abre o debate sobre masculinidades, o governo do eu, as disputas de poder
_____________________________________________________________

193
“'Partenogênese' – os efeitos da exclusão do pai no desenvolvimento da personalidade e na dinâmica
familiar” (FEIZENZWALB, 2003).
194
“Um pai para a psicose?” (COELHO, 2003).
195
“O lugar do pai: subjetividade, clínica e contemporaneidade – reflexões a partir de uma leitura”
(MONTSERRAT, 2003).
196
“A promoção da saúde do educando a partir do envolvimento de pai nas dificuldades de aprendizagem”
(QUEIRÓS, 2003).
197
“Paternidade contemporânea: um estudo sobre o pai presente num contexto familiar estável” (GOMES,
2003).
198
“O exercício da paternidade após a separação: um estudo sobre a construção e a manutenção do vinculo
afetivo entre pais e filhos na família contemporânea” (DANTAS, 2003).
199
“As estratégias utilizadas na maternidade e paternidade adolescente” (BELTRAME, 2003) e “Ser
adolescente, pobre e pai: um estudo qualitativo das repercussões na organização das famílias” (PAIVA,
2003).
200
“Hermenêutica do existir do homem de meia-idade – paternidade, sexualidade e projetos de vida: um
olhar à luz de Heidegger” (TRINDADE, 2003).
201
“Sentimentos sobre paternidade e envolvimento de pais que residem e pais que não residem com seus
filhos” (SILVA, 2003).
202
“Estudo psicológico sobre a percepção da figura masculina como pai de criança portadora de deficiência
mental” (SOUZA, 2003).
203
“Viver ao lado da deficiência mental: a história oral de pais com filhos deficientes mentais”
(CARMIGNANI, 2003)

334
entre homens e mulheres, os deslizamentos em torno das concepções de
paternidade, a emergência da noção de pai participativo. Por fim, afirma que
nas mídias prevalecem representações hegemônicas sobre paternidade,
sendo necessário que se trabalhe pensando nas diferenças e se questione o
lugar Psicologia na produção das subjetividades paternas.
Em 2005, algumas publicações “o cuidado parental” já é abordado
como prática masculina, sem necessariamente invocar rupturas que as
explicassem. Os homens são conhecidos a partir de sua diversidade,
singularidade e concretude e não de formas genéricas. Além disso, a
paternidade aparece sendo analisada não mais isoladamente, mas, por
vezes, acompanhada da maternidade ou ainda a relação entre ambas.
Por exemplo, na Psicologia são estudos: as reações e vivências de
pais de crianças com síndrome de down, o comportamento paterno na
Enfermaria de Maternidade nas primeiras horas de vida do bebê, a percepção
de filhos sobre o cuidado parental, o comportamento paterno a partir da
compreensão de homens e mulheres e a construção de sentidos sobre
paternidade e maternidade em uma família. Ainda foram analisados os
impasses da paternidade na contemporaneidade e as relações adolescência,
paternidade e cuidado e a produção de sentido. Por sua vez, no Campo da
Psicanálise os interesses recaíram sobre a função cultural do pai e sobre os
sentidos do declínio paterno na psicanálise.
No Campo da Enfermagem as obras analisaram as relações
entre paternidade e adolescência a partir do olhar de pais adolescentes; os
significados de paternidade para pais-adolescentes cujos filhos estão
hospitalizados e as narrativas de homens que acompanharam o nascimento
e o parto de seus filhos enquanto que no Campo da Educação as relações
entre paternidade e filiação com o foco no impacto do turno de trabalho
_____________________________________________________________

204
“Concepção paternas sobre o bebê com deficiências, inserido em programa de estimulação precoce, na
educação especial” (HANSEL, 2004).
205
“O declínio da função paterna e o mal-estar na escola: uma leitura entre a psicanálise e história”
(CAVALCANTE, 2004).
206
“Tradições, contradições, transformações: a família na ótica de pais de adolescentes” (STENGEL, 2004)
e “Fechando com chave de ouro' – o significado de paternidade e da maternidade na experiência das
classes populares no Rio de Janeiro” (ALMEIDA
207
“Jovens pais e jovens mães: experiências em camadas populares” (REIS, 2004).
208
“'Filho cedo não é a pior coisa que pode acontecer na vida': um estudo sobre representações e práticas
de jovens e respeito de transição de fase de vida a partir da maternidade e paternidade” (CARPES, 2004).
209
“significado da paternidade para homens que vivenciam: um enfoque de gênero” (FREITAS, 2004).
210
“Psicanálise e família: a terceirização da função paterna na contemporaneidade” (DECOURT, 2004).
211
“Paternidade e deserção. Crianças sem reconhecimento, maternidade penalizadas pelo sexismo”
(THURLER, 2004).
212
“A ação de investigação de paternidade e a dignidade da pessoa humana” (GAVALDÃO, 2004).
213
“Investigação de paternidade: aspectos materiais e processuais” (FEUZ, 2004).
214
“Paternidade e coisa julgada: limites e possibilidades à luz dos direitos fundamentais e dos princípios
constitucionais” (JUNIOR, 2004).
335
parental no desempenho acadêmico e autoconceito da criança; e entre a
fratura da função paterna e o processo de simbolização
Por fim, nos Campos do Direito e da Filosofia, pela primeira vez,
as obras tinham como foco, respectivamente, o dilema da obrigatoriedade do
exame do DNA na investigação de paternidade e um estudo sobre o percurso
da simbologia paterna nas culturas grega, hebraica e na contemporaneidade.
As expectativas e vivências do pai adolescente e a formação do
apego em pais de recém-nascidos nascidos prematuramente são os focos
das publicações no Campo da Enfermagem em 2006. Na primeira, conclui-se
que os adolescentes possuem expectativas positivas e desejam ser diferente
de seus genitores quanto à afetividade e participação ativa na vida do filho e
compartilhando o cuidado com a companheira (trocar fraldas, alimentar, dar
banho, entre outros) enquanto na segunda que a inserção dos pais em todo o
contexto que envolve a prematuridade, bem como no cuidado direto ao
recém-nascido, favorecendo o apego seguro, dá-se por uma postura
institucional e, em especial, de profissionais da enfermagem. Destaco os dois
trabalhos porque neles a paternidade aparece como cuidado e atitude que se
promove. Ou seja, não é natural e sim aprendida, sendo esse promovido pela
instituição e seus profissionais a fim de respeitar o direito do cidadão de
exercer a paternidade.
Nos Campos da Psiquiatria, Antropologia, Psicanálise,
Educação, Serviço Social e Letras, pela primeira vez, foram publicados
trabalhos cujos interesses recaíram sobre, respectivamente, a maternidade e
a paternidade na esquizofrenia e seus impactos na vida de pacientes e filhos;
a paternidade e sexualidade nas décadas de 1920 a 1940; a função paterna
na contemporaneidade, as identidades paternidade na literatura infanto-
juvenil, as estratégias utilizadas por pais e mães adolescentes e, por fim, as
paternidades presentes na obra machadiana Dom Casmurro.
Já no Campo do Direito o interesse recai sobre os dilemas da
filiação sócio-afetiva e o direito ao conhecimento da identidade genética; o
_____________________________________________________________

215
“Da relação paterna – filial” (BORBA, 2004).
216
“'Um homem para chamar de pai': as concepções de paternidade de meninos afastados de suas famílias
e colocados em regime de abrigo” (HOEPFNER, 2004).
217
“Exercício da paternidade: estudo de dois casos clínicos” (SILVA, 2004).
218
“Função paterna e adolescência na escola: um estudo correlativo em uma instituição particular”
(FERREIRA, 2004).
219
“Preocupações dos pais de recém-nascidos prematuros coma proximidade de alta da unidade de terapia
intensiva neonatal” (BALBINO, 2004).
220
“O significado da ausência paterna para adultos: um estudo fenomenológico” (SANTOS, 2004).
221
“A paternidade na mídia contemporânea: discursos e modos de subjetivação” (HENNIGEN, 2004).
222
“Reações e sentimentos vivenciados pelos pais de um grupo de crianças com síndrome de down
referentes ao movimento da noticia e do diagnostico” (VOHLK, 2005).

336
paradoxo da atribuição de paternidade pelo exame de DNA e o princípio da
afetividade paterna e sobre a investigação de paternidade e a antecipação da
tutela.
Finalmente, no Campo da Psicologia as publicações se voltaram
para análise da paternidade: o desejo de ser pai, a função do pai e o sujeito no
contexto clínico, os sentidos atribuídos por adolescentes pais à paternidade e
as práticas de cuidado com os filhos, o envolvimento de homens-pais na
gravidez como período de transição para a parentalidade e da relação entre
introjeção da figura paterna e atos infracionais de adolescente em conflito
com a lei cumprindo medida sócio-educativa.
No ano de 2007 os estudos da Psicologia se voltaram para o
exercício da paternidade e as indenizações por abandono afetivo, assim
como para participação paterna no cuidado dos filhos em uma
creche-escola, no envolvimento com crianças com síndrome de down, no
cuidado do bebê no contexto da depressão pós-parto materna, na adoção e
com os filhos após o fim do casamento.
Os pais e a paternidade foram estudados, ainda no Campo da
Psicologia, enquanto cuidadores, a partir de suas concepções acerca da
prematuridade de seus filhos e de suas percepções e sentimentos. Este
último trabalho analisa a paternidade através de uma leitura da instituição que
produz paternidade: promovendo-a e/ou gerando sua invisibilidade, de
maneira semelhante a Lyra (1997), Coelho (2000) e Maria Luiza Carvalho
_____________________________________________________________

223
“O comportamento paterno em enfermaria de maternidade nas primeiras horas de vida do bebê”
(MALLARD, 2005).
224
“Percepção de filhos sobre aspectos reais e idéias do cuidado parental” (FURTADO, 2005).
225
“Semelhanças e diferenças entre homens e mulheres na compreensão do comportamento paterno”
(PRADO, 2005).
226
“A construção de sentidos relacionados à maternidade e à paternidade em uma família” (COSTA, 2005).
227
“A lei em nome do pai: impasses no exercício da paternidade na contemporaneidade” (BRANDÃO,
2005).
228
“Adolescência, paternidade e cuidados: os sentidos que adolescentes pais atribuem à sua participação
nos cuidados dos filhos” (RADTKE, 2005).
229
“Pai: função cultural? A problematização freudiana” (MATOS, 2005).
230
“Declinando o declínio do pai” (VIDAL, 2005).
231
“Paternidade na adolescência: vivências e significados no olha de homens que a experimentam”
(CORREIA, 2005).
232
“Significados de paternidade para adolescentes com recém-nascidos hospitalizados” (CAUDURO,
2005).
233
“O pai acompanhante no processo de nascimento e parto: narrativas sobre experiência” (MAZZIERI,
2005).
234
“O impacto do turno de trabalho do pai no desempenho acadêmico e no autoconceito de crianças
escolares” (CIA, 2005).
235
“A fratura da função paterna e o processo de simbolização: um estudo com crianças de periferia urbana
em fase de escolarização inicial” (MAGGI, 2005).
236
“Investigação da paternidade: obrigatoriedade ou não do exame de DNA” (ARÊAS, 2005).
237
“Percurso de um símbolo: manifestações do símbolo paterno nos primórdios das culturas grega e
hebraica e na contemporaneidade” (CARDOSO, 2005).

337
(2001). A diferença está no fato de Monica Silva (2007) analisar uma
Instituição Prisional, e não contextos que dizem respeito ao campo da saúde,
dos direitos sexuais e reprodutivos, que não está somente não preparada
para o exercício da paternidade dos presidiários, mas também é estranha a
tal questão.
Na Psicologia estudou-se ainda a construção imaginária do lugar
do pai, a paternidade a partir das transformações da masculinidade na
modernidade, a transmissão das identidades entre gerações familiares e, por
fim, a relação entre orfandade, educação e paternidade.
No Campo da Enfermagem o interesse recaiu sobre as
experiências de pais no cuidado ao filho com câncer, como acompanhante no
cuidado pré-natal, no contexto neonatal, da construção da paternidade para
pais adolescentes e a partir da perspectiva de jovens universitários enquanto
no do Direito se investigou a relação paterno-filial, o reconhecimento paterno
por sócio-afetividade, o dano moral por abandono afetivo nas relações
paterno-filial e os exames de DNA.
Por fim, nos Campos das Ciências Sociais, da Educação e
Comunicação as publicações se voltaram, respectivamente, para o ser pai e o
ser mãe adolescentes, a participação masculina na escolarização de seus
filhos, no contexto familiar com criança com síndrome de down e o ser pai
hoje, e, finalmente, para o estudo da carnavalização da paternidade em um
desenho animado.
Em linhas gerais, o ano de 2008 não foi diferente dos anteriores,
pelo menos os sete passados, no sentido da diversidade de campos de saber
que se dedicam a investigar e problematizar, analisar e classificar,
repercutindo em nossas maneiras de “saber” quem é o pai, o que é
paternidade, quais as atitudes e sentimentos do homem-pai, como é vivida
nos contextos da separação conjugal, no adoecimento materno ou filial, e na
adolescência, as Instituições a propiciam e/ou obstruem, qual sua
importância? E também sobre o número de publicações que se manteve
_____________________________________________________________

238
“Vivências e expectativas da paternidade, pelo adolescente, sob a ótica da enfermagem” (MUNHOZ,
2006).
239
“A formação do apego pais/recém-nascidos pré-termo e/ou de baixo peso no método mãe-canguru: uma
contribuição da enfermagem” (GUIMARÃES, 2006).
238
“Maternidade e paternidade na esquizofrenia: o impacto da doença na vida de pacientes e seus filhos”
(TERZIAN, 2006).
241
“O gênero e a espécie: paternidade e sexualidade nas décadas de 1920 a 1940” (FINAMORI, 2006).
242
“A função paterna na contemporaneidade: uma análise psicanalítica” (GOULART, 2006).
243
“'Pai não é de uso diário' (?): paternidade na literatura infanto-juvenil” (SEFTON, 2006).
244
“A paternidade em dom casmurro: ocultamentos e revelações” (CELIDONIO, 2006).
245
“Filiação sócioafetiva e direito à identidade genética” (NUNES, 2006).
246
“A atribuição de paternidade pelo exame de DNA em ação judicial: um paradoxo diante do princípio da
afetividade” (ANDRADE, 2006).
247
“da antecipação dos efeitos da tutela no direito de família sob a perspectiva dos direitos da personalidade
na investigação de paternidade” (MARTINS, 2006).

338
**
elevado, aproximadamente 30 , sendo que seus conteúdos foram da
paternidade e a transformação masculina aos sentimentos do pai que cuida
dos filhos adoecidos, da identidade paterna adolescente ao reconhecimento
de paternidade por meio do exame do DNA.
No Campo da Enfermagem os interesses recaíram acerca da
participação do pai nos processos de humanização do parto e da
amamentação, e sobre o significado de paternidade adolescente para jovens
que a vivenciam. Já nos Campos da Sociologia, políticas Públicas e
Psiquiatria, respectivamente, investigaram-se os discursos sobre
maternidade e paternidade no campo da reprodução assistida; a
ressignificação da identidade paterna após ruptura conjugal e, por fim, a
relação entre o vínculo parental e a transferência no contexto
psicoterapêutico.
Alguns campos de saber foram, neste levantamento,
identificados pela primeira vez, por exemplo, o da Educação Física, do Ensino
de Ciências Matemáticas e Multidisciplinar. Neles a paternidade foi estudada
a partir do discurso de pais acerca do corpo de mulheres gestante e mães de
seus filhos; da relação entre paternidade e saúde feita por jovens de escolas
públicas e acerca das discussões sobre limites e possibilidades da
experiência da paternidade solitária.
No campo do Direito as publicações analisaram a relação entre
pais e filhos com o foco no afeto e as variáveis: filiação biológica, sócioafetiva
_____________________________________________________________

248
“Desejo de ser pai: algumas vicissitudes da função paterna” (BORGES, 2006).
249
“Um real em jogo: a função do pai e o sujeito na clínica” (RIBEIRO, 2006).
250
“Paternidade nas adolescências: investigando os sentidos atribuídos por adolescentes pais à
paternidade e às práticas de cuidado dos filhos” (ORLANDI, 2006).
251
“Satisfação e responsabilidade: o envolvimento do pai na gravidez durante a transição para a
parentalidade” (FACCION, 2006).
252
“Adolescência e transtorno de conduta. Caracterização de uma amostra de adolescentes infratores
em cumprimento de medidas sócio-educativas entre conduta e introjeção da figura paterna” (FREITAS,
2006).
253
“'Ai o pai virá réu...' – estudo sobre o exercício da paternidade e as indenizações por abandono
afetivo” (PADILHA, 2007).
254
“A paternidade em famílias urbanas: análise da participação do pai na creche-escola e nos cuidados
com os filhos” (SEABRA, 2007).
255
“O envolvimento paterno e a experiência da paternidade no contexto da síndrome de down” (HENN,
2007)
256
“Paternidade e depressão pós-parto materna no contexto de uma psicoterapia pai-bebê” (SILVA,
2007).
257
“Bendito o fruto do vosso ventre – estudo psicanalítico da maternidade e paternidade por adoção”
(SILVA, 2007)
258
“Parentalidade em tempo de mudanças: desvelando o envolvimento parental após o fim do
casamento” (GRZYBOWSKY, 2007).
259
“Cuidado, sociedade e gênero: um estudo sobre pais cuidadores” (CARVALHO, 2007).
260
“Concepções do pai acerca da prematuridade do seu filho” (WALDOW, 2007).
261
“Presidiários: percepções e sentimentos acerca de sua condição paterna” (SILVA, 2007).
262
“O lugar do pai: uma construção imaginária” (SILVA, 2007).

339
e homoafetividade e entre paternidade e filiação; o não reconhecimento da
paternidade como dano moral ao princípio da dignidade humana;
os dilemas entre autonomia privada e as relações jurídicas no contexto das
relações paterno-filial; o direito à paternidade genética, as mudanças
comportamentais da figura paterna diante da licença paternidade e a relação
entre pais e filhos no âmbito jurídico da família no Brasil.
Novamente o número de publicações que se voltaram à
paternidade para analisá-la, conhecê-la, classificá-la e problematizá-la
pertence ao campo da Psicologia.
Os interesses recaíram sobre os significados da parentalidade de
adolescentes pais cumprindo medida sócio-educativa; das representações
sociais sobre a figura paterna para crianças e adolescentes; da relação entre
guarda paterna e representações sociais de maternidade e paternidade, das
percepções de pais acerca de filhos com câncer e filhos sadios sobre a
estrutura e dinâmica familiar e de pais e mães sobre os problemas de
comportamento de seus filhos.
Ademais, sobre a relação entre envolvimento paterno na família e
o desemprego do pai; e entre qualidade de vida de crianças e
_____________________________________________________________

263
“Paternidade e subjetividade masculina em transformação: crise, crescimento e individuação”
(ALMEIDA, 2007).
264
“De pai para filho: uma reflexão sobre identidade e transmissão intergeracional em duas diferentes
gerações” (TEYKAL, 2007).
265
“Crianças pré-escolares e prisão paterna: percepção de familiares” (BECKMAN, 2007).
266
“Experiência de pais no cuidado ao filho com câncer; um olhar na perspectiva de gênero” (MOREIRA,
2007).
267
“A experiência do homem como acompanhante no cuidado pré-natal” (CAVALCANTE, 2007).
268
“Encontros afetivos entre pais e bebê no espaço relacional da unidade neonatal: um estudo de caso à luz
do método mãe-canguru” (SILVA, 2007).
269
“A construção da paternidade na família do pai adolescente: contribuição para o cuidado de
enfermagem” (MEINCKE, 2007).
270
“Perspectivas de jovens universitários da região Norte do Rio Grande do Sul em relação à paternidade”
(PEROSA, 2007).
271
“O reconhecimento da paternidade por sócio-afetividade e seus desejos jurídicos” (RODRIGUES, 2007).
272
“a paternidade sócioafetiva como direito fundamental” (ZAGO, 2007).
273
“Limites e possibilidades de dano moral por abandono afetivo nas relações paterno-filial” (RAPOZO,
2007).
274
“Evolução tecnológica dos exames de paternidade e sua validade jurídica” (DUZ, 2007).
275
“Sendo mãe, sendo pai: sexualidade, reprodução e afetividade entre adolescentes de grupos populares
em Belém” (PANTOJA, 2007).
276
“Família-escola: a participação masculina – a compreensão dos homens – a pais ou responsáveis –
sobre sua atuação na escolarização dos filhos e participação na escola” (FERNANDES, 2007).
277
“Contexto familiar com síndrome de down: interação e envolvimento paterno e materno” (SILVA, 2007).
278
“Ser pai hoje: uma conexão entre educação e psicanálise” (OLIVEIRA, 2007).
279
“A carnavalização da paternidade em episódios as série Os Simpsons” (AMERENO, 2007).
**
Número de publicações já obtido a partir dos critérios descritos na página um deste artigo. O número
total identificado a partir do descritor paternidade foi 97 publicações.

340
adolescentes com transtornos no desenvolvimento e envolvimento paterno e
sobre as vicissitudes da família de adolescentes que foram agredidos pelos
pais. Como também a influência do gênero (sexo) e a ordem de nascimento
de filhos acerca das práticas parentais; a escuta de pais na clínica; a função
paterna e as configurações familiares; os padrões de apego das crianças em
relação à figura paterna e, por fim, o discurso jurídico como dispositivo de
produção de paternidade e modos de ser pai.
3 PROBLEMATIZANDO RESULTADOS... AQUÉM DE CONCLUSÕES
Ao fim do levantamento bibliográfico fica evidente que o tema
paternidade se tornou relevante para o contexto científico brasileiro ao
alimentar publicações em diversos campos de saber. Consideramos que o
saber científico desponta como um dos saberes que produz paternidades,
modos de “ser” pai e regimes de verdade sobre a paternidade cujos usos e
efeitos de suas práticas discursivas engendram nossa maneira de “conhecê-
la”, por vezes, delimitando e excluindo possibilidades.
Medrado, Lyra, Oliveira et. al. (2009) argumentam que as
políticas públicas, especialmente no campo dos direitos sexuais e
reprodutivos, produzem regimes de verdades sobre paternidade e modos de
ser pai que delimitam certas maneiras e por isso acabam por excluir
possibilidades a diferenças. Por meio do saber científico constroem-se
medidas e afirmam-se idéias, legitimam-se valores que não apenas
subsidiam as políticas públicas, mas constituem sua formulação e
implementação.
O estudo produzido pelos autores e autoras foi desenvolvido a
partir do exercício analítico proposto por Perucchi (2008) em sua tese de
doutorado, na qual analisa discursos da jurisprudência brasileira sobre
paternidade. A autora, subsidiada pelo referencial foucaultiano e dos estudos
_____________________________________________________________

280
“O parto humanizado e a participação paterna” (LENGO, 2008).
281
“O pai participe no processo de amamentação: intervenção da enfermeira no período gravídico
puerperal” (RÊGO, 2008).
282
“A paternidade na adolescência e seu significado entre os jovens que a vivenciaram” (AZEVEDO, 2008).
283
“As tecnologias da reprodução: discursos sobre a maternidade e paternidade no campo da reprodução
assistida no Brasil” (VIEIRA, 2008).
284
“Ressignificando a paternidade: um estudo acerca da identidade paterna após ruptura conjugal”
(CARVALHO, 2008).
285
“Um estudo sobre relação entre o vinculo parental e a transferência em psicoterapia psicanalítica”
(OLIVEIRA, 2008).
286
“Corporeidade gestante: o discurso de corpo de mulheres em idade adulta e madura e dos pais das
crianças” (LUPERINI, 2008).
287
“Paternidade e saúde discutidos por jovens de escolas públicas em vídeos documentários” (JUNIOR,
2008).
288
“Paternidade solitária: limites e possibilidades” (BITTELBRUNN, 2008).
289
“O afeto nas relações entre pais e filhos: filiação biológica, sócioafetiva e homoafetiva” (FUJITA, 2008).
290
“Paternidade e filiação: de onde vem e para onde vai – uma abordagem a relação paterno-filial no direito
brasileiro” (BORGES, 2008).

341
feministas de gênero, afirma que o discurso jurídico não reproduz ou
representa a paternidade, mas, antes de tudo, produz modos de ser pai.
Como argumentam Medrado, Lyra e Oliveira et. al. (2009), a autora não
constrói sua análise a partir da idéia de que a paternidade adquire novos
sentidos no discurso jurídico, por exemplo, paternidade biológica, sócio-
afetiva ou de registro de nascimento, que estariam somando ao um suposto
sentido original. Nas palavras dos autores e autoras, “de verdade, ela
questiona a existência de um sentido original e crítica a idéia de que a
vivência/experiência/exercício da paternidade antecede a sua significação”
(MEDRADO; LYRA;OLIVEIRA., 2009, p. 5).
Nesse sentido, aquém de conclusões, desejamos problematizar
os resultados deste levantamento bibliográfico considerando o exercício
analítico proposto por Perucchi (2008). Assim, o saber científico não
reproduziria ou representaria a paternidade ou mesmo paternidades
disponíveis na “realidade social”, mas sim produziria a paternidade e diversos
modos de “ser” pai.
Todavia, esses “diversos modos” seguem certos parâmetros,
pois, em linhas gerais, aparece nos trabalhos científicos atrelada à dicotomia
corpo-gênero, sendo sua ruptura associada a crises e mudanças que, por
vezes, ora a naturaliza ora a essencializa, mas, enfim, acabam reiterando as
normas de gênero e fixando (mesmo quando as relativiza) posições de
gênero que produzem o sujeito homem-pai universal. Por exemplo, outrora
_____________________________________________________________

291
“'O princípio da dignidade pessoa humana e o dano moral em face do não reconhecimento da
paternidade'” (FERNANDES, 2008).
292
“A autonomia privada e as relações jurídicas paterno-filiais” (APARÍCIO, 2008).
293
“Direito à paternidade genética e presunção juris tatum: valorização dos direitos fundamentais colidentes
e flexibilização da coisa julgada” (AHMAD, 2008)
294
“A voz do coração: pais e filhos na travessia jurídica da família no Brasil” (MOREIRA, 2008).
295
“As mudanças comportamentais da figura paterna e a licença paternidade prevista na constituição
Federal de 1988” (MORAES, 2008).
296
“'Filhos do desamparo, filhos que amparam: significações da parentalidade de adolescentes-pais em
medida de Liberdade Assistida'” (CESTARI, 2008).
297
“As representações sociais sobre a figura paterna: um estudo com crianças e adolescentes em
situação de risco e vulnerabilidade social” (LEÃO, 2008).
298
“Guarda paterna e representações sociais de paternidade e maternidade” (VIEIRA, 2008).
299
“estrutura e dinâmica da família na perspectiva de pais de filhos com câncer e de filhos sadios”
(COELHO, 2008).
300
“as percepções de pais e mães acerca dos problemas de comportamento dos filhos” (BORSA, 2008).
301
“Paternidade e desemprego: características do envolvimento paterno e aspectos do relacionamento
familiar” (SOUZA, 2008).
302
“'Qualidade de vida e envolvimento paterno em crianças e adolescente com transtorno do
desenvolvimento” (YOSHIHARA, 2008).
303
“Vicissitudes da família de adolescentes agredidos pelo pai” (GIRALDI, 2008).
304
“A influência do gênero e ordem de nascimento sobre as práticas educativas parentais” (SAMPAIO,
2008).
305
“A clínica do bebê pré-termo e a escuta dos pais: questões para a psicanálise” (DIAS, 2008).
306
“A função paterna nas configurações familiares atuais” (AZEVEDO, 2008).

342
restritos ao universo feminino, os sentimentos agora aparecem na
experiência dos homens pais e a paternidade aparece como o lugar que
possibilitaria que eles pudessem desenvolvê-los e expressá-los melhor.
Assim, o saber científico produz modos de “ser” pai e regimes de
verdade sobre a paternidade, ora delimitando e ocultando as estratégias de
saber-poder que produzem o sujeito homem-pai e a concordância entre
pênis-racionalidade-procriação-heterossexualidade, ora possibilitando a
visualização dos limites da eficácia das normas de gênero, abrindo espaço
para produção de fissuras e transformações.
Objetivamos a partir deste levantamento e dos argumentos dos
autores e autoras aqui destacados aprofundar os problemas em pesquisas
que virão.

_____________________________________________________________

307
“As especificidades do padrão de apego da criança em relação à figura materna e paterna”
(SCHEFFEL, 2008).
308
“'Mater semper certa est pater nunquan': o discurso jurídico como dispositivo de produção de
paternidades” (PERUCCHI, 2008).
309
A autora analisou, tomados como materiais empíricos, documentos relativos aos “acórdãos” – termo
usado no âmbito jurídico para se referir à decisão final proferida pelo tribunal superior acerca de um
processo que passa a funcionar como paradigma para solucionar casos semelhantes – referentes aos
Tribunais de Justiça de Santa Catarina e Rio Grande do Sul (PERUCCHI, 2008; MEDRADO, LYRA,
OLIVEIRA ET. AL., 2009).

343
REFERÊNCIAS

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da


identidade. 2 ed. Rio de Janeiro, 2008.
FOUCAULT, Michel. Historia da sexualidade I. 18 ed. São Paulo, 2007.
LYRA, Jorge. Paternidade adolescente: uma proposta de intervenção.
Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) – Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, 1997.
MEDRADO, LYRA, OLIVEIRA ET. AL. Políticas públicas como dispositivo
de produção de paternidade. 2009. (mimeo).

PERUCCHI, Juliana. Mater semper certa est pater nunquan: discurso


jurídico como dispositivo de produção de paternidade. Tese (Doutorado em
Psicologia) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008.

345
GT 4 – GÊNERO E VIOLÊNCIA
COORDENAÇÃO: Profª. Dra Fernanda Marques de Queiroz - UERN
DO SONHO AO PESADELO: o tráfico de mulheres para fins de
comercialização sexual no Brasil
Adriana Lima Bispo
Daywyanny da Silva Ataíde
Rosiane de Jesus Santos Felix
1 INTRODUÇÃO
O tráfico de mulheres para fins de comercialização sexual é um
crime transnacional e movimenta um mercado altamente lucrativo o que
confirma uma crescente incidência em escala mundial de mulheres
vulneráveis às redes de tráfico. Neste sentido, partimos da compreensão de
que, por um lado, o processo capitalista globalizado objetiva, em sua
totalidade, a maximização do lucro, e, assim, é historicamente estruturada
uma sociedade fortemente marcada pela exploração do homem pelo homem
na produção de mercadorias e pelo estímulo incessante à satisfação pessoal
diante do consumo destas; e, por outro lado, essa marca de exploração não
se sustenta apenas na economia, mas também na cultura que reproduz a
desigualdade de gênero que vem historicamente se perpetuando até muito
antes do capitalismo. É nesse contexto que se insere a lógica do tráfico de
mulheres para fins de comercialização sexual.
Dessa forma, propusemos identificar os aspectos que
determinam o tráfico de mulheres e, a partir desse cenário apresentar o perfil
das vítimas, aliciadores/as e rotas que configuram a comercialização sexual.
A temática abordada envolve questões relacionadas ao
Neoliberalismo, classe social, gênero, etnia e geração que coloca o corpo
feminino como mercadoria a ser desejada e consumida. Essas esferas inter-
relacionadas geram, na atual conjuntura, a viabilidade em número crescente
da exploração de mulheres submetidas, muitas vezes, a regimes
escravistas, ao controle do homem, à violação do próprio corpo e à violência
física e psicológica. Configura-se um crime que tem como fundamento a
desigualdade social e de gênero. Parece-nos óbvio trazer esta nuance para a
discussão acerca das relações de gênero de modo a contribuir para o debate
contemporâneo, bem como estimular novas investigações a fim de chamar a
atenção para o referido tema, ainda pouco difundido no âmbito social. Em
suma, entendemos que este artigo, de alguma forma, pode trazer um
aprofundamento acerca da temática, na medida em que seja trabalhado
numa perspectiva crítico-dialética visando à promoção e igualdade das
mulheres.
_____________________________________________________________

310
Este artigo é um desdobramento do Trabalho de conclusão de curso da Faculdade de Serviço Social
da Universidade Federal de Alagoas, sob a orientação da Profa. Dra. Elvira Barretto.
Bacharel em Serviço Social pela Universidade Federal de Alagoas.
Bacharel em Serviço Social pela Universidade Federal de Alagoas.
Bacharel em Serviço Social pela Universidade Federal de Alagoas.
2 CONSTRUÇÃO TEÓRICA DO OBJETO: aspectos socioeconômico e
cultural
Com o intuito de uma melhor compreensão das questões
pertinentes ao tráfico de mulheres para fins de comercialização sexual na
contemporaneidade, nos propomos em fazer um sucinto resgate histórico
acerca do sistema econômico, político e cultural, pois, entendemos que
dessa forma será possível encontrar a base que vem sustentando e
perpetuando a problemática em pauta.
O período de transição neocolonial oferece bases econômicas e
institucionais para a erradicação do capitalismo competitivo nucleado no
setor urbano comercial. Em Karl Marx (1978) vemos que a produção
capitalista começa quando o capital individual ocupa simultaneamente o
aumento do número de operários, tendo como resultante o aumento da
produção de mercadorias. Para Alfredo Lisboa (1968), a produção de
mercadorias e sua circulação, em particular na forma desenvolvida do
comércio, constituem o fundamento do capital que surge inicialmente sob a
forma de moeda, historicamente sob as formas do capital mercantil e
posteriormente na forma industrial.
De acordo com Fernandes (1981) sobre o capitalismo
competitivo, nas relações entre Estado, sociedade e cultura, o
trabalho livre é consolidado e a movimentação demográfica em direção às
cidades é crescente, bem como as inovações postas pelo mercado
competitivo a partir da “cosmopolitização dos hábitos mundanos”,
incentivando o consumo de produtos e o reaparecimento de novas formas
escravistas e exploratórias, entre elas a prostituição, acentuando um novo
estilo de vida, inclusive diante de vias de comunicação em massa.
No âmbito do mercado de trabalho/econômico, diante da redução
do uso da força de trabalho no sistema industrial, o contingente de
trabalhadores é ampliado à medida em que mulheres e crianças incorporam-
se à produção, tornando toda a família trabalhadora dependente do capital.
Amplia-se também o grau de exploração, ao passo que, em razão da
conquista da jornada de trabalho reduzida, o capital cria meios para ampliar a
intensidade do trabalho, exigindo um maior desgaste do trabalhador. Com a
inserção de mulheres e crianças no processo de produção, retirando-as do
ambiente doméstico, são estabelecidas novas bases para a organização da
família e as relações entre os sexos, afetando transformações nas relações
sociais, nos costumes, na moral, na religião, na organização familiar, no lazer,
enfim, em todo modo de vida na sociedade.
No Capitalismo Monopolista houve uma imensa concentração de
riqueza, tendo como resultante deste processo uma intensificação das
contradições já existentes, combinadas com novas configurações e
antagonismos, vislumbrando o aumento do desemprego, ocasionado
também pela substituição do homem por equipamentos auto-reguláveis
350
marcadamente presentes no processo de modernização do sistema
produtivo e, ainda, o aumento da miséria.
Segundo Gentilli e Sader (1995), para o Neoliberalismo, as taxas
de desemprego existentes na sociedade de um determinado país tornaram-
se um “mecanismo natural e necessário de qualquer economia de mercado
eficiente”. Ou seja, tal projeto tem como base de sustentação o desemprego
de uma grande parcela da sociedade, o que fomenta a economia
mercadológica. Além do que, a expansão da mídia reproduz valores que
estimulam nos indivíduos sociais o desejo de ascensão mediatizada pela
posse de bens materiais e, por outro lado, a banalização da sexualidade e a
coisificação do corpo numa dimensão econômica de concorrência entre as
empresas em nível mundial e, em conseqüência a internacionalização do
comércio.
2.1 Globalização X Mundialização da Cultura
Já feito um breve resgate histórico acerca do capitalismo, agora
concentramos a análise da globalização econômica e mundialização da
cultura enquanto causa e consequência. Em face da aceleração do
crescimento econômico, os direitos sociais tornam-se mais seletivos e
excludentes, trazendo, como resultante, o distanciamento entre igualdade e
desigualdade. Para tanto, é necessário compreender a mundialização da
cultura, o processo pelo qual a mercadoria torna-se objeto de desejo, em suas
formas mais sensíveis e “coisificadas”, representadas, especialmente, no
corpo feminino de consumo para fins comerciais.
Veem-se que tendências opostas de desigualdade global entre
os países no mundo têm aumentado assiduamente. Isto ocorre devido a
capacidade estatal para assegurar um padrão de igualdade, segurança e
estabilidade social ser incompatível com a economia mundial de mercado
globalizado. Sobre isto, Therborn (1996, p.83) explica que “as políticas e
instituições estatais são intrinsecamente ambíguas em seus efeitos sobre a
(dês) igualdade, dependente das configurações do poder atrás delas”.
Ortiz (1994) oferece uma contribuição a respeito do conceito de
mundialização da cultura. Ele afirma tratar da correlação entre economia e
cultura do plano global, mas esta não se dá de forma imediata. Na
emergência de uma cultura globalizante, é importante considerar uma
reciprocidade realimentada entre o âmbito econômico e a dimensão cultural
da sociedade.
Em relação ao consumo, sua revolução foi conduzida pela
natureza hierárquica da Inglaterra do século XVIII. Conforme Mc Cracken
(2003), os bens foram subitamente convertidos em provas no jogo de status e
estavam sendo consumidos com entusiasmo. O século XIX viu a introdução
de elementos que ainda hoje caracterizam o consumo. No século XX,
destaca-se o avanço da liberdade de escolha. Neste, o sistema promete
liberdade sendo dada sob a forma de opção de consumo, mas nega formas
351
mais básicas de liberdade, tais como: trabalho não-alienado e uma relação
criativa entre sujeitos e objetos, as pessoas e seu mundo (SLATER, 2002).
Ao examinar a crítica à cultura do consumo, Slater (2002) observa
que ela gira em torno de um paradoxo brutal: a produção histórica mundial de
abundância material da modernidade não promove a felicidade ou satisfação.
Primeiro, ele explica que na produção de riqueza seu preço, na verdade,
constou também a produção de níveis obscenos de pobreza, exploração e
insegurança, absoluta ou relativa, quer na metrópole, quer no interior, enfim,
no mundo em desenvolvimento. A segunda contrapartida da riqueza é
resumida pela alienação - essa fica evidente na oscilação incessante entre
um desejo febril, frustrado, superestimulado e um pouco desesperado
permeado por indiferença e tédio supremos em relação a todas as coisas
novas.
Nesse sentido, a modernidade introduziu uma objetividade
maciça no mundo com dois sentidos, segundo Slater (2002): ao passo que
mais coisas são produzidas, por outro lado, uma maior parte da vida social é
produzida como se fosse uma coisa.
O consumo é uma questão de como os sujeitos humanos e
sociais com necessidades relacionam-se com as coisas do mundo que
podem satisfazê-los (bens, serviços e experiências materiais e simbólicas). O
sujeito, por meio do pensamento utilitarista liberal, define suas necessidades
e, em seguida, busca descobrir na natureza e no mercado, no mundo das
coisas e das necessidades, algo que satisfaça seus desejos já definidos.
Diante disso, identificamos que é esta expressão dos requisitos
que compõem as outras faces do consumo, que, por sua vez, abrange a
exploração sexual de forma específica. Então, partindo deste pressuposto
acerca da cultura do consumo em sua forma mais clarificada no sentido da
coisificação do corpo feminino como objeto para fins de comércio sexual,
intencionamos chamar a atenção para o tema tráfico de mulheres para fins de
comercialização sexual, como o ápice da expressão da "coisificação" do
indivíduo social numa sociedade que se diz "civilizada".
2.2 Contextualização do tráfico
Em termos gerais, a palavra tráfico designa a atividade
comercial que envolve o trânsito de mercadorias proibidas. Neste sentido, o
termo tráfico, além de se referir à comercialização ilícita de animais silvestres,
drogas e armas, inclui no rol dos produtos a comercialização do ser humano.
O escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime (UNODC) estima que
o lucro das redes criminosas com o trabalho de cada ser humano
transportado ilegalmente de um país para outro varie entre US$ 13 mil e US$
30 mil por ano (WIKIPÉDIA, 2009).
De acordo com a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico
de Pessoas instituída em 2007, em linhas gerais, tráfico é o recrutamento de
pessoas mediante uso da força e/ou outras formas de coação, fraude, abuso
352
de autoridade, situação de vulnerabilidade ou ainda através da oferta para
obter o consentimento de uma pessoa ter autoridade sobre a outra para fins
de exploração.
Devemos considerar, por um lado, o tráfico de pessoas enquanto
um aspecto das manifestações da questão social, contexto de contradição
entre capital e trabalho, em diálogo com a lógica global do consumo. Assim
sendo, o tráfico é uma ofensa aos direitos humanos ao passo que explora a
pessoa humana, degrada sua dignidade, limita sua liberdade de ir e vir.
Portanto, é fruto da desigualdade socioeconômica, da falta da educação
enquanto política pública, devido a poucas perspectivas de emprego e de
realização pessoal, como ainda relacionado a uma amplitude de
variadas questões. Dentre elas, destacamos as relações de gênero, já que na
sua maioria são mulheres.
Diante de um contexto marcado pelo patrimonialismo, articulada
à categoria economia política, o tráfico configura-se como um fenômeno
multidimensional, multifacetado e transnacional, determinado nas relações
macro-sociais, isto é, mercado globalizado e sua implicação na precarização
do trabalho e migração, bem como nas relações culturais, ou seja, valores
patriarcais, gênero, etnia e adultocêntricos, que inserem mulheres e crianças
em relações desiguais de poder.
3 TEORIA DE GÊNERO E SEXUALIDADE
O tráfico de mulheres para fins de comercialização sexual
engloba diversas categorias de análise, em especial "gênero" como um
processo construído teórico e historicamente.
Na intenção de realizarmos uma breve construção histórica e
contínua das mulheres, nos reportamos a Scott (2002) que utiliza a
significação da expressão Fantasy echo sinalizada como jogos da mente,
nem sempre racionais, que efetuam a repetição de algo imaginado, como um
eco (retorno imperfeito de som). A fantasia opera como sinônimo de
imaginação, devendo sofrer uma fiscalização racional e intencional. Em
relação ao "eco", transportado para o movimento da História, representa um
processo em que os sujeitos relacionam-se com diferenças entre os
significantes.
Nesse sentido, identidade (tanto no sentido de igualdade como
de individualidade) como um fenômeno histórico e contínuo, opera como
fantasy echo, uma fantasia que apaga as divisões, descontinuidades e
diferenças que separam os sujeitos no tempo.
Tendo realizado essas considerações, apresentamos de acordo
com Scott (2002) duas fantasias produzidas para consolidar a identidade
feminina. A fantasia da oradora feminina que insere as mulheres no cenário
público masculino, utilizando em seus discursos sociais, ideias
ligadas ao erotismo e à sexualidade como uma forma de transgredir os limites
sociais e sexuais. Outra, a fantasia maternal feminina que define a
353
reprodução como função primordial das mulheres. Lembramos, pois, que o
corpo da mulher é o primeiro com o qual se tem alguma relação e, ainda, o
primeiro amor que compartilha é o amor materno. No mundo das mulheres,
aspirados pelas feministas, o prazer encontra-se entre elas, um prazer além
do falo.
Nesse sentido, para nosso estudo, cujo objeto é o tráfico de
mulheres para fins de comercialização sexual, o foco na História das
mulheres e a construção de identidades coletivas femininas, a partir da
compreensão da fantasia e do eco, que almeja o fim da diferença, da
divisibilidade, da alienação e dos conflitos, consiste no ponto de partida para
entender a submissão das mulheres numa sociedade ainda marcada pelos
valores patriarcais, atrelada à lógica de mercado, consumo e da ideologia de
ascensão social (SCOTT, 2002).
Observa-se que é a partir do gênero que se pode perceber a
organização da vida social e suas conexões de poder nas relações entre os
sexos, isto é, ele transforma seres biologicamente machos e fêmeas em
homens e mulheres, entendidos como seres sociais, numa reflexão de cariz
essencialmente social, e, assim, nos proporcionam desvendar e
compreender a complexa e instigante dinâmica das relações sociais,
desigualdades e hierarquias sociais, pois o gênero se preocupa em
desmistificar a consolidação de identidades encarceradas do masculino e do
feminino o qual limitam homens e mulheres em seus "papeis" já consolidados
socialmente.
Tratando da sexualidade e do poder, é possível perceber os
sistemas de conjuntos de práticas, símbolos e representações, normas e
valores sociais elaborados pela sociedade a partir da diferença sexual
anatômico-fisiológica que dão sentido à satisfação dos impulsos sexuais, à
reprodução da espécie humana e ao relacionamento entre as pessoas.
Desde a nossa infância, o poder é inserido em nosso corpo. É
importante estar atento ao fato de que, historicamente falando, o poder
sempre esteve implícito na reprodução de relações de forma desigual e
injusta entre mulheres e homens. A alternância da escola, da educação
familiar, religiosa ou cívica, com o tempo, formou em nós uma trama
indissociável do nosso pensamento mais íntimo, por meio da ideologia ou
interiorização consciente, impossibilitando a separação da nossa falsa
identidade.
Observamos que ainda existe uma realidade muito viva em vários
sentidos quanto ao domínio masculino sobre as mulheres. No entanto, estão
presentes algumas alterações no que concerne a passividade e a submissão
feminina nos sistemas de gênero. Quando assentadas na sexualidade ou em
outras dimensões sociais, a construção social das diferenças e o poder
podem ser revelados nas suas singularidades e dinâmicas que vão além das
contradições da dominação masculina.
354
A descrição do poder está associada a uma face sombria de um
prazer perturbador, tendo em vista que força a vontade de outrem e impõe a
sua própria lei. Na relação entre estrangeiros destaca-se a força e a
submissão do outrem. Nesta, há superioridade, onde o mais viril é o homem e
a mulher é inferior, acaba formando uma relação voluntária, sendo
estabelecida compulsoriamente. Diante desse contexto, trazemos para essa
discussão o tráfico sexual de mulheres, já teorizado historicamente na seção
anterior, em diálogo com a economia política do sexo, haja vista que aqui
encontramos os fundamentos que sustentam e reforçam a questão do tráfico.
3.1 Gênero e Sexualidade no rastro da economia política do sexo
Propomos que nos reportemos ao estudo inédito de Rubin (1986)
que, numa revisão teórica de autores marxistas – Marx e Engels, culturalista –
Lévi-Strauss e Psicanalistas – Freud e Lacan desenvolve uma reflexão sobre
a economia política do sexo. Assim, compreendê-la implica em algumas
reflexões. A primeira é com relação ao modo de produção vigente e suas
consequências; a segunda transita em torno da origem da família
na relação com esse modo de produção, especialmente no que concerne ao
sistema de parentesco. Assim, urge a necessidade de se decifrar a
constituição do matrimônio e as relações de intercâmbio nele implicadas.
Com esta análise, objetivamos desenvolver subsídios que contribuam para
uma reflexão crítica em torno da questão do tráfico de mulheres, haja vista,
como já tratamos anteriormente, que este tema é complexo e demanda certo
aprofundamento.
No que se refere a relação mulher/capitalismo, Rubin (1986)
evidencia alguns entendimentos. Assim sendo, a mulher consiste em reserva
para a força de trabalho. Quando empregadas, seus salários, geralmente
inferiores aos dos homens, geram mais-valia extra para o capitalismo, bem
como servem ao sistema em seus papeis de administradoras do lar.
Se para Marx a classe trabalhadora é a força motriz para o
capitalismo, para Rubin (1986) não existe uma sociedade imutavelmente
opressiva. Para isso, além da superação do capitalismo, haja vista também a
superação do sistema sexo/gênero, onde a opressão é existente.
No sentido de desvendar a submissão das mulheres, a
referida autora utiliza o método estruturado por Lévi-Strauss, que reconhece
o lugar da sexualidade e das profundas diferenças entre homens e mulheres
na sociedade, mediante os sistemas de parentesco que, por sua vez, envolve
organização das atividades econômica, política além da sexual como
também, de deveres e privilégios dos indivíduos. Engloba o tabu do incesto, o
matrimônio entre primos, as relações de intimidade forçada e proibida entre
outros elementos presentes na sociedade, e que variam de uma cultura a
outra. Salientamos, pois, que o nosso estudo teve como cenário a cultura
ocidental.
Rubin (1986) a luz dos estudos de Lévi-Strauss pontua que o tabu
355
do incesto inicia o intercâmbio do falo. Diante desse contexto, é válido
compreender que para decifrar o sistema de sexo, é importante entender a
questão do matrimônio. A autora enfoca Lévi-Strauss, que, por sua vez,
afirma que o matrimonio é uma forma de trocar presentes, no qual
as mulheres apresentam-se como o mais precioso deles. Dessa forma, ele é
representado como um sistema com vistas a conseguir uma mulher, tendo o
homem a concessão de direitos sobre a mesma. O tabu do incesto segrega a
relação sexual em categorias de companheiros permitidos e proibidos.
Assim, a proibição do casamento dentro de um grupo impõe o intercâmbio
marital entre grupos. Logo, o tabu do incesto impõe na sociedade a exogamia
e a aliança aos fatores biológicos do sexo e da procriação.
É interessante destacar os atores sociais que participam do
matrimônio, no qual a mulher ocupa uma posição mercadológica e de
inferioridade. Rubin (1986), explica o intercâmbio constituído no matrimônio,
que não se estabelece mediante uma relação entre um homem e uma mulher,
mas entre dois grupos de homens, onde a mulher é apenas objeto de
intercâmbio, não uma participante desse processo. Ao aceitar a união
matrimonial, a mulher permite que o intercâmbio se reproduza, porém não
pode modificar sua natureza. Dessa forma, parentesco supõe organização,
que, por sua vez, implica poder.
No âmbito da psicanálise Lacaniana, Rubin (1986) destaca o
valor social e simbólico do falo. Ela afirma que o falo conserva um significado
social de dominação dos homens sobre as mulheres, sendo privilegiados de
direitos que elas próprias não têm. Ainda, o falo preserva o significado da
diferença entre o que troca e o que é trocado, entre o presente e o doador.
Com este entendimento, o falo é mais que um traço que distingue os sexos,
ele enaltece o status masculino que eleva os homens e lhes confere o direito a
posse de uma mulher. Podemos identificar como exemplo, o tráfico de
mulheres para fins de comercialização sexual, mediante o aliciamento ser
constituído em grande parte por homens para satisfação de poder, libido e
desejo dos próprios homens.
4 A CONFIGURAÇÃO DO TRÁFICO DE MULHERES PARA FINS DE
COMERCIALIZAÇÃO SEXUAL: a particularidade brasileira
Como vimos, a configuração do tráfico de mulheres só pode ser
compreendida no contexto histórico, político, socioeconômico e nesse
aparato as relações de gênero, classe e etnia.
O tráfico de seres humanos é um crime transnacional e
movimenta um mercado altamente lucrativo, perdendo apenas para o tráfico

_____________________________________________________________

311
Departamento Americano de Investigação Criminal - FBI em 2002.
312
Relatório sobre Tráfico de Pessoas - Revista eletrônica do Departamento dos EUA, volume 8,número
2 (2003: p.2).

356
de drogas e armas. Estima-se que 800.000 a 900.000 pessoas são traficadas
anualmente. Destas, cerca de 20.000 entram nos Estados Unidos, e mais de
meio milhão de mulheres são traficadas para Europa. Segundo dados da
Organização Internacional do Trabalho - OIT (2005), o lucro anual produzido
com o tráfico de pessoas chega a 31,6 bilhões de dólares.
De acordo com Kempadoo (2005), na composição do tráfico de
pessoas estão subentendidos alguns problemas estruturais globais. Dentre
eles, destacam-se: a globalização, o patriarcado, o racismo, os conflitos e as
guerras étnicas, a devastação ecológica e ambiental e a perseguição política
e religiosa. Em se tratando das causas subjacentes ao tráfico de seres
humanos, Kempadoo (2005) dá ênfase à pobreza, ao desemprego, à
ausência de educação e à falta de recursos. A busca pela melhoria das
condições de vida impulsiona algumas pessoas a correrem o risco de cair nas
mãos de traficantes.
Estão mais vulneráveis ao tráfico de seres humanos,
particularmente, mulheres e crianças. Isso se deve à feminização da pobreza,
à discriminação entre homens e mulheres, à falta de possibilidades de
educação e de emprego nos seus países de origem. As últimas pesquisas
divulgadas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) comprovam
que mais de um milhão de mulheres trabalham como escravas sexuais para
redes internacionais de tráfico de pessoas. Dados estes que reforçam o
quanto esta questão é um dos negócios mais rentáveis do mundo.
Seguindo a análise de Kempadoo (2005), o tráfico de mulheres é
um problema internacional especialmente entre o final do século XIX e início
do século XX. Nesse período, surgem no cenário internacional mulheres
trabalhadoras migrantes, cuja função esteve basicamente relacionada às
ideias sobre a sua utilização para comercialização do sexo.
De acordo com Leal (2002), o Brasil é um dos maiores
exportadores de mulheres no ramo da prostituição, obtendo liderança no
tráfico na América do Sul. Segundo estimativas mais recentes da
Organização Internacional de Migrações (IOM), agência ligada à
Organização das Nações Unidas (ONU), confirma-se um percentual
aproximado de 75 mil prostitutas brasileiras atualmente trabalhando na
Europa. Cerca de 95% dessas mulheres estão com os passaportes retidos,
"devem" a aliciadores e vivem em condições humilhantes. Esse número vem
crescendo em países como Espanha, Holanda, Suíça, Alemanha, Itália e
Áustria.
De acordo com o Governo Espanhol, observa-se a existência de
1,8 mil prostitutas brasileiras no país, o que totaliza aproximadamente 32
rotas de tráfico de mulheres. A Espanha é o destino mais frequente das
brasileiras, seguida por Holanda, Alemanha, Itália, Suriname e Venezuela.
Portugal é a principal porta de entrada de brasileiras; praticamente todas
chegam ao continente com documentos falsos. É tão elevado o número de
357
brasileiras que algumas chegam a cargos de chefia no sistema do tráfico.
Os anos 70 são um marco no turismo sexual no Brasil, período em
que começa a saturar esta indústria na Ásia, transferindo essa prática para a
América Latina, principalmente para o Brasil e a República Dominicana.
Também nesse período começam as propagandas e o grande incentivo do
governo brasileiro a essa indústria. Um exemplo muito conhecido de
propaganda veiculada no tempo da ditadura militar brasileira pode ilustrar a
forma direta de anunciar “o produto” de exportação nacional: a mulata
brasileira.
Dentre os diversos fatores determinantes para a proliferação do
turismo sexual destacam-se: a conivência das autoridades nacionais, a
imagem de sensualidade, o erotismo e a liberdade sexual veiculada tanto nas
propagandas turísticas quanto na literatura constitui outro fator. Ainda há
também o processo de erotização do cotidiano e a banalização do sexo por
meio da mídia, tão crescente na sociedade de mercado e na cultura brasileira.
O tráfico para fins de exploração sexual comercial no Brasil é
assim caracterizado: mulheres e adolescentes afrodescendentes (negras e
mulatas), cuja faixa etária de maior incidência varia entre 15 a 25 anos,
respectivamente. De modo geral, elas são oriundas de classes populares,
apresentam baixa escolaridade, habitam em espaços urbanos periféricos
carentes de saneamento, transporte, dentre outros, moram com algum
parente e geralmente têm filhos, na maioria dos casos já sofreram algum tipo
de violência intrafamiliar ou extrafamiliar(abuso sexual, estupro, sedução,
atentado violento ao pudor, abandono, negligência, maus tratos, dentre
outros). Esse público-alvo, na maioria dos casos, está inserido em atividades
laborais desprestigiadas e subalternas relativas ao ramo da prestação de
serviços, que, por sua vez, são mal remuneradas, sem vínculo empregatício,
sem garantia de direitos, bastante rotativas e, principalmente, com uma
desgastante jornada de trabalho, ou seja, sem qualquer possibilidade de
ascensão ou melhoria (LEAL, 2002).
A mulher ou adolescente aliciada é constituída por dois tipos que
se opõem entre si, conforme apontam os estudos de caso. A pessoa ingênua,
humilde e cercada por grandes dificuldades financeiras é o primeiro tipo -
essa acaba sendo iludida e enganada com certa facilidade; no segundo caso,
trata-se da mulher que, mesmo tendo consciência dos riscos, consente em
ser aliciada, na esperança de conquistar sua estabilidade
financeira (LEAL, 2002).
Algumas mulheres vítimas de tráfico, embora saibam que vão
trabalhar no ramo da prostituição não conseguem discernir que muitas vezes
serão mantidas em condições próximas da escravatura. Por vezes, são
obrigadas a reembolsar pesadas dívidas referentes aos custos de
documentação e transporte, após serem interditados seus passaportes e
dinheiro, são introduzidas no mundo dos tóxicos e da dependência.
358
Tratando dos aliciadores brasileiros, vê-se que majoritariamente
são do sexo masculino, a maior parte possui nível médio ou superior, embora
também existam mulheres neste ramo, com faixa etária média de 20 a 50
anos para o primeiro e de 20 a 35 anos para o segundo. Geralmente são
casados/as ou vivem em uniões estáveis; dizem-se empresários, atuando em
negócios como casas de shows, comércios, casas de encontros, bares,
agências de turismo, salões de beleza e casas de jogos.
Existem dois graus de aliciadores: os considerados de primeiro
grau geralmente pertencentes às redes de tráfico e os de segundo grau
normalmente têm maior poder de convencimento, pois, estão inseridos nos
bairros das vítimas. A atraente possibilidade de um rápido enriquecimento,
acaba deixando as adolescentes deslumbradas com a possibilidade de que
no exterior terão êxito e, consequentemente, ganharão muito dinheiro,
constitui a principal arma de sedução dos traficantes.
Assim, a partir do perfil dos aliciadores, torna-se necessário
conhecer e analisar o processo de constituição das rotas, que dão origem às
redes de tráfico de mulheres para fins de comercialização sexual.
O relatório da OIT (2005) aponta o Brasil como campeão mundial
em tráfico de mulheres com 110 rotas internas e 131 internacionais e funciona
como grande fornecedor de capital humano para alimentar uma crescente
demanda, localizada principalmente em países da Europa, como Espanha,
Holanda, Itália, Suíça, Alemanha e França.
As redes internacionais do tráfico criam uma "indústria"
desenvolvida e bem organizada com apoio político, mediante recursos
econômicos nos países de origem, trânsito e destino. Operam através de
agências de emprego conceituadas, agências de viagens, empresas de lazer,
redes de mercado da moda, rede de telessexo, redes de agenciamento para
projetos de desenvolvimento e infra-estrutura e, ainda através de agências
matrimoniais. Constata-se no tráfico internacional a existência de 131 rotas,
das quais 120 envolvem apenas mulheres. Assim, observa-se que as
mulheres são locadas ao tráfico internacional e as adolescentes são partes
integrantes do tráfico interno,
Em seu artigo, Pires e Gonçalves (2007) destacam que o tema do
tráfico e da exploração sexual de mulheres explicita as relações desiguais de
poder entre homens e mulheres, o que contribui para a solidificação de
relações machistas e estereotipadas na sociedade. No mais concreto, o
tráfico de mulheres para fins de comercialização sexual configura-se em uma
_____________________________________________________________

313
LEITE, Maria Jaqueline de Souza. A exploração das mulheres na dinâmica do turismo sexual. Centro
Humanitário de Apoio à Mulher. Disponível
em:<http://www.chame.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=39> Acesso em: 15 ago.
2008
314
Ao aludir os estudos de caso, nos referimos à LEAL (2002) que aponta experiências de mulheres
brasileiras traficadas para o exterior.

359
violação os direitos sexuais das mulheres à medida que compromete a
liberdade de viver sua sexualidade sem violência, discriminação ou coerção,
além de infringir o direito à integridade física do próprio corpo, à integridade
psíquica, o direito a ter sonhos e fantasias, bem como o direito de viver
relações que se alicercem no respeito e na igualdade de gêneros.
Diante do exposto, percebemos que o tráfico de mulheres para
fins de comercialização sexual é mais uma forma de expressão da questão
social, resultado das contradições sociais que se acirram com o processo de
globalização e com a fragilidade dos estados no que tange ao enfrentamento
dessa questão, além da estruturação da identidade de gênero nesse
contexto. Essa prática fere os Direitos Humanos, à medida em que viola a
dignidade humana de sujeitos de direitos. De acordo com o que foi explanado
nesse artigo, nos parece que o tráfico de mulheres para fins de
comercialização sexual constitui-se numa refração social a ser considerada
por diversas áreas de conhecimento no cotidiano de sua prática, na medida
em que o contexto exige um profissional cada vez mais preparado
e compromissado com a ética, a efetivação e ampliação dos direitos, partindo
do pressuposto de que vivemos num sistema que se reproduz produzindo
desumanidades.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Feito este resgate, foi possível entendermos a gênese da
banalização do corpo feminino e o cenário do tráfico de mulheres onde se
harmonizam relações de mercado, consumo e migração em sintonia com as
desigualdades sociais, de gênero e etnia que colocam as mulheres em
situação de vulnerabilidade social, abrindo lacunas para a exploração,
especialmente a sexual.
Na relação harmoniosa para o capital, intensificam-se as
desigualdades, o desemprego, as precárias condições de sobrevivência,
bem como uma sociedade patriarcal que se utiliza da mulher como
mercadoria para fins sexuais, que, por sua vez, prioriza a eficácia econômica
em detrimento da equidade social. Portanto, abre um leque de possibilidades
para expandir em larga escala a comercialização sexual da mulher, que
cresce aceleradamente, atingindo a sociedade como um todo.
Tratando a mundialização da cultura, compreendemos o
processo pelo qual a mercadoria torna-se objeto de desejo, em suas formas
mais sensíveis e "coisificadas", representadas, especialmente, no corpo
feminino de consumo para fins comerciais. Neste processo, a globalização é
sustentada pela mídia, que, por sua vez, propaga a cultura do consumismo, a
busca incessante pela ascensão social, de forma a reproduzir certos valores
nos indivíduos que fomentam a busca pela satisfação pessoal e social, por
intermédio da posse rápida de bens materiais e; a banalização da
sexualidade e a coisificação do corpo.
Em suma, esse estudo trouxe uma reflexão para essa
360
modalidade de tráfico que, apesar de estar crescendo constantemente, ainda
é pouco debatida no âmbito social; contudo, merece uma atenção especial,
tendo em vista que é resultado das desigualdades sociais e da falta de
políticas públicas efetivas que não façam do indivíduo um mero receptor de
ajuda, mas que preconize resgatar sua auto-estima, tendo como horizonte
um cidadão em pleno gozo de direitos.

_____________________________________________________________

315
Entendemos por desumanidade as relações bárbaras e crueis implícitas no sistema capitalista que
prioriza a esfera econômica em detrimento da esfera social.
316
Entendida como usuários em situação de perda ou fragilidade de vínculos de afetividade; diferenciação
social em termos étnico, cultural e sexual; formas variadas de violência advinda do eixo familiar, grupal ou
individual; inserção precária ou não inserção no mercado de trabalho formal e informal; estratégias de
sobrevivência que representem risco pessoal e social e; exclusão pela pobreza. (POLÍTICA NACIONAL
DE ASSISTÊNCIA SOCIAL, 2004).

361
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364
MATEI POR AMOR, E AGORA? O DEBATE JURÍDICO SOBRE O CRIME
PASSIONAL NA PRIMEIRA REPÚBLICA
Antonio Carlos Lima da Conceição
PPG NEIM/UFBA – curalima@ig.com.br
1 INTRODUÇÃO
Este artigo analisa as transformações político-jurídicas
decorrentes da proclamação da república em 1889 e da promulgação da
primeira constituição republicana de 1891, ao mesmo tempo em que são
discutidos os argumentos utilizados pelos agentes jurídicos para justificar
suas posições favoráveis ou contrárias ao uso da paixão, e da honra, como
justificativas para absolvição dos acusados da morte, ou tentativa de morte de
suas companheiras.
O breve apanhado do enquadramento legal em que atuam os
agentes jurídicos visa a entender o lugar ocupado pela “paixão” no
pensamento jurídico penal, assim como, a importância da história da
implantação de um determinado Código Penal. Faz-se necessário
compreender também o papel desempenhado pelo júri nesta história, a sua
crescente desvalorização como instrumento legal, desde que foi criado no
Brasil, e como a discussão sobre a sua manutenção ou extinção está
imbricada não só com a questão dos “crimes passionais” como, também, a da
maior ou menor participação da sociedade nas decisões judiciais.
Nos limites deste trabalho seria impossível fazer um
levantamento da extensão do uso desses argumentos em nossa sociedade,
mas o propósito é evidenciar que a argumentação jurídica utilizada no país,
com variações locais que provavelmente não modificam o núcleo central das
discussões, visto que o aparato legal é utilizado em todo o Brasil.
A paixão, este impulso considerado pelos juristas como
irresistível, devia ser analisada tomando por base a sua qualidade em relação
às leis e às necessidades permanentes da vida social e da vida
humana. A etimologia da palavra paixão procede de outra que significa
sofrimento, dor, doença.
No âmbito do direito, este crime se beneficiou não só da onda de
amor romântico mas, também, da importância que foi atribuída à análise
individualizada do criminoso desde meados do século XIX, por um grupo de
italianos que, sob a orientação de Lombroso, teve grande influência em todas
as alterações do direito penal contemporâneo.
Psicólogos e juristas, de acordo Soihet (1997), empenharam-se
em demonstrar que o crime passional era uma mera expansão brutal do
instinto sexual que cabia à civilização controlar no homem este instinto era
ativo, enquanto na mulher ele se manifestava pela passividade. A assimilação
_____________________________________________________________

317
O termo paixão é utilizado pelos juristas do período com o sentido de impulso irresistível, uma
emoção não controlada que leva ao crime.

365
destas teorias foi excluindo a mulher como agente de crimes passionais,
ficando-lhe reservada, como ser passivo, a possibilidade de ser defendida,
quando acusada por crime de morte, por ter atuado em legítima defesa.
No Brasil, a significação implícita da expressão crime passional,
no campo das discussões jurídicas, era a de punição da esposa adúltera. O
crime passional, como o crime supostamente cometido na legítima defesa da
honra, é um crime basicamente masculino, o que só será explicitado pelos
juristas que o combateram na década de 30.
Os juristas argumentavam que era necessário julgar o prejuízo
que este crime trazia à ordem social. A sua punição devia ser exemplar e o
suficiente para preveni-lo. Assim, apontava-se que as penas obedeceriam a
critérios fixos, mas a justiça devia levar em consideração as qualidades
pessoais do criminoso e o tipo de paixão que o impulsionava.
Neste sentido, a pena aplicada devia ser exemplar, mas no
caso dos passionais isto era desnecessário, pois o seu crime era entendido
como um momento fugaz e corretivo da ordem estabelecida, já que o que o
impulsionava era uma paixão social e, portanto, um “motivo justo” .
Bandeira (1912, p. 26) relata, os caracteres distintivos dos
criminosos passionais, dizendo que eles “são indivíduos de uma
conduta precedentemente honesta, de temperamento sanguíneo ou
nervoso, de uma sensibilidade exagerada”. Quanto aos motivos da
delinquência específica dos apaixonados, segundo Moraes (1933), encontra-
se uma grave ofensa à dignidade, ao amor e à honra, sendo a característica
do estado verdadeiramente passional a ideia fixa . Todo o esforço do campo
jurídico no período estudado dar-se-á no sentido de caracterizar o criminoso
passional.
A pessoa do criminoso exprimia uma entidade abstrata, a mesma
que depois seria expressa no cárcere por um número; por sua vez, a ideia da
pena como retribuição do mal pelo mal se opõe, segundo os pressupostos da
nova escola penal, à ideia de pena como meio para o bem, como instrumento
de elevação individual e de preservação social.
Na primeira república percebe-se o esforço dos promotores para
descaracterização do assassino passional como forma de garantir a
condenação dos criminosos em questão. Uma atuação destacada foi a do
promotor Roberto Lyra, no Rio de Janeiro, membro do Conselho Brasileiro de
Higiene Social, órgão formado por juristas como o próprio Roberto Lyra,
Nelson Hungria e Afrânio Peixoto, que tinham por objetivo terminar com a
tolerância aos crimes de paixão e a interpretação “errônea” da tese do
passional. Seu trabalho culminou com a eliminação do mecanismo que
considerava isento de responsabilidade quem estivesse em “estado de
perturbação dos sentidos”.
A campanha pelo fim da tolerância com os criminosos passionais
apregoava a existência de um verdadeiro massacre e de um aumento
366
descabido do número de assassinatos (BORELI, 1999, p.31). Para estes
reformadores devia ser combatida a idéia de que a honra masculina dependia
do comportamento feminino e de que o amor contrariado devia ser vingado
pelo sangue, pois para eles era esta crença a “real” motivação dos assassinos
passionais e somente quando a mulher fosse encarada como um
ser com “honra própria”, a onda de crimes passionais terminaria.
Lyra (1931), em “O Amor e a Responsabilidade Criminal”,
trabalho de um dos eruditos criminalistas da nova geração, repelia a ideia da
inimputabilidade dos passionais. O mais inflexível seguidor desta tendência
repressiva foi Afrânio Peixoto, cujas manifestações se intensificaram, neste
sentido, desde a publicação da Psicopatologia Forense, em que exigia
repressão severa ao amor que assassina.
De acordo com Peixoto, os crimes passionais eram o delito
bárbaro das sociedades primitivas. Atacando os jurados, os juízes e os
advogados, quando distinguem as diferentes classes de passionais, sustenta
que é a inépcia das leis que faz, nas nossas sociedades, o crime passional.
Assim ele se expressa:
Urge prender e condenar esse amor. O verdadeiro amor, honesto,
doméstico, sem fartura de dinheiro e de tempo, nem pródigo, nem ocioso,
o santo amor de cada dia não pode ser criminoso. Celerado é o amor
vadio, dos parasitas sociais, que não tendo que fazer ou pensar, apenas
cuidam de abastecer de espasmos a sua medula lombar; celerado é o do
dessas máquinas de prazer, manequins de estofos e de joias, que não
trabalham, nem amam, mas vendem o corpo e alma, por tafularias e
vaidades. Aos crimes desse amor dobradas penas, para que se eduque
na regra do bem viver (LYRA, 1931, p. 9-12).
O delito passional devia ser julgado de acordo com dois critérios:
a qualidade dos motivos e a personalidade do autor. Estes dois itens deviam
ser analisados para estabelecer se o criminoso era ou não um passional. O
motivo que o levou a agir deveria ser relevante para a manutenção da ordem
moral da sociedade. Se agia em defesa de princípios como família e honra, a
paixão que o impulsionava classificava-se como social e, portanto, era
possível a atenuação da pena, diminuindo o tempo de reclusão ou levando à
absolvição do criminoso.
Determinar a causa do crime era essencial para a percepção de
que aquele “criminoso” tinha cometido um delito levado por um motivo
relevante. Entre os motivos assim considerados, estava a honra masculina.
Os juristas que utilizavam esta definição na defesa de passionais insistiam
que a honra era uma paixão social e que mantinha a vida social. Tratava-se,
portanto, da manutenção de uma estrutura hierárquica nas relações entre o
_____________________________________________________________

318
O amor romântico fenômeno tardio, teria surgido apenas, durante o processo de industrialização e
de urbanização que teve lugar na Europa do século XVIII.

367
homem e a mulher e que estabelecia uma ligação entre a honra do homem e
os atos femininos.
Reforçar a diferença entre os passionais e outros criminosos era
necessário para colocá-los em outra categoria, o que permitia que
recebessem um tratamento jurídico mais adequado à sua situação de réus
primários e que tinham agido por um “motivo nobre”. Era preciso criar a
noção de que o crime era um intervalo infeliz e irracional na vida de um “bom
cidadão”, cumpridor de seus deveres de cidadão e de marido. Era, portanto,
injusto que fosse julgado pelos mesmos parâmetros dos prisioneiros comuns.
Conforme Moraes (1933), era necessário levar em consideração
quais foram as circunstâncias e os motivos de um crime para julgá-lo, pois era
incorreto aplicar a mesma pena para aquele que defende um valor social
relevante e a um criminoso habitual, que age levado por seus “instintos
perversos”. Trata-se da noção de individualização das penas que dizia que
em determinados casos, como no dos passionais, era necessário julgar os
indivíduos por toda a sua vida e não somente pelo momento do crime.
O que se considerava era que o passional tinha realizado um ato
corretivo da ordem vigente, que tinha sido “perturbada” pelo comportamento
adúltero e que tinha retornado à sua ordem pelo ato do passional. Neste
sentido, o passional não devia ser criminalizado, pois não havia conturbado a
ordem social e, sim, retificado o comportamento inadequado de uma mulher
que manchara a honra de um homem.
Os crimes passionais eram uma expressão exacerbada da
violência de gênero e suas representações na imprensa
demonstravam uma tentativa de reforçar os perfis aceitos socialmente. No
processo de construção desses perfis era necessário zelar para que estes
fossem um parâmetro para o comportamento de todos os indivíduos que
viviam naquela sociedade; desejava-se um padrão de normalidade do
comportamento e as outras maneiras de viver eram classificadas como
desvios socialmente questionáveis.
Corrêa (1981) salienta que tudo caminha com a finalidade de
produção da verdade jurídica, o que significa a atribuição de responsabilidade
penal aos possíveis autores de infrações tanto quanto a construção de
sujeitos como entidades morais .
Dessa forma, é possível afirmar que os autos criminais são um
espelho complexo da realidade social. Verdades são construídas sobre os
envolvidos e é a partir disso que esses são enquadrados ou não em um
“projeto civilizador”, de modo que o direito penal sancionando as condutas
contribua para a manutenção da ordem social.
_____________________________________________________________

319
Roberto Lyra, pernambucano, formou-se na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, foi especialista
em direito penitenciário, considerado o príncipe dos promotores públicos brasileiros, foi membro da
comissão revisora do projeto do Código Penal de 1940.
320
Foi médico e inspetor de saúde pública e diretor do Hospital Nacional de Alienados em 1904.

368
Uma vítima descrita como insinuante, provocante, que não é
virgem, que frequenta bailes, que se prostitui, que consome bebida alcoólica,
que já tenha um histórico de internações psiquiátricas, ou mesmo que
caminhe sozinha durante a noite, será desmerecida em seu depoimento e
orientará a solução rápida, simples e injusta praticada pelos agentes
jurídicos.
O grau de credibilidade dos depoimentos relaciona-se com
elementos de gênero, classe e etnia. Possuir credibilidade é ser “idôneo”, ser
honesto, o que denota uma racionalidade jurídica dual e discriminatória em
relação à população economicamente excluída da sociedade brasileira, em
que a marginalidade aparece como tendência masculina e a prostituição
como tendência feminina.
A discussão de Esteves (1989), em todos os discursos jurídicos
do final do século XIX e início do século XX, aponta para um padrão de
honestidade associado ao comportamento e à conduta social. O
intuito do sistema jurídico não era apenas estabelecer a verdade e determinar
o autor. A conduta total dos indivíduos é que iria ou não redimi-los de um
crime; não estava em questão o que definitivamente havia ocorrido, mas
aquilo que acusado e ofendida eram, poderiam ser ou seriam.
Na formação da inocência de um homem e culpa de uma mulher,
eles eram julgados prioritariamente pelo seu trabalho e elas, por sua conduta
sexual. As mulheres deveriam controlar o seu sexo e os homens suas
indisposições para o trabalho. Para eles não eram necessárias muitas
qualificações, simplesmente era citado o fato de serem trabalhadores. Para o
saber jurídico, os atributos do trabalhador se associavam ao de honestidade.
Conforme Caulfield (2000) um homem honesto era aquele considerado bom
trabalhador, respeitável e leal: ele não desonraria a mulher ou voltaria atrás
em sua palavra. Em contraste, a honestidade feminina referia-se à virtude
moral no sentido sexual, e esse era um grande tópico de grande preocupação
teórica e da jurisprudência.
De acordo com a pesquisa empreendida por Caulfield (2000), que
analisou processos do início a meados do século XX, cabia à justiça o papel
de impor normas sociais através da associação entre verdade e conduta
pessoal.
A narrativa de um crime passional se construía como o enredo de
uma novela: um homem de bem, isto é, um marido, noivo, namorado ou
amante de bom comportamento social, encontra um dia sua companheira
mantendo relações sexuais com outro homem e a mata, ou mata a ambos.
Este paradigma, apresentado pela retórica jurídica, quase nunca se repetia
na vida real de maneira linear, e os ajustes que se fazem nas apresentações
dos personagens durante o debate perante o júri visavam, principalmente, a
aparar as arestas de uma realidade que insistia em se diferenciar do mito.
O assassinato da esposa cometido mediante um flagrante
369
adultério, por exemplo, é um caso raramente mencionado nas narrativas
destes crimes e, na maioria das vezes, era laboriosamente
reconstruído através de testemunhas, vizinhos, amigos ou parentes do
marido ou de ambos. Assim, este tipo de adultério se tornou um elemento
indispensável de argumentação da “legítima defesa da honra”.
Nos casos que citava para apoiar a defesa dos criminosos
passionais, Evaristo de Morais enfatizava ainda um outro elemento da
definição literária destes crimes: a tentativa de suicídio dos autores do crime,
quase imediatamente após o assassinato, tentativa esta quase sempre
frustrada. O jurista Castro (1943), em relação a esta atitude dos criminosos
passionais, assim se expressa:
O homem não quer perder a posse desses encantos que embriagam seus
sentidos, nem ficar humilhado diante de um rival mais feliz. Essa mulher
que aí passa, convergindo sobre si os olhares invejosos de todos os
homens, só a ele pertence, só ele penetra na alcova discreta e sombria, só
para ele se rasgam os véus do pudor na nudez dos corpos que palpitam e
estão em ânsias de volúpia (CASTRO,1943, p.138)).
Esta “paixão”, quando contrariada, acabava gerando violência,
pois o homem era tomado de emoção e suas atitudes tornavam-se irracionais
e inconseqüentes.
O que se observa é que a lógica jurídica , apesar de
aparentemente funcionar segundo os critérios de racionalidade e
neutralidade decorrentes do princípio liberal de justiça, é constituída de
práticas de diferenciação entre os indivíduos justamente por se deslocar do
fato em questão para a avaliação da conduta social de vítima e de acusado.
2 OS AGENTES JURÍDICOS E SUAS FALAS
O sistema jurídico, em sua busca pela verdade dos fatos e
personificado através da forma de operação de seus agentes, sejam eles
advogados, promotores e juízes, orienta-se através de uma lógica que
relaciona o grau de adequação dos comportamentos sociais de vítima e de
acusado com a credibilidade de seus depoimentos. A atuação dos agentes
jurídicos consiste, então, em observar a identidade da vítima e do acusado,
observação esta orientada pelas questões levantadas durante as
declarações policiais e judiciárias, e do relato feito pelas testemunhas.
Percebe-se que a idoneidade moral dos indivíduos é considerada
fundamental para atestar a credibilidade dos seus depoimentos. Esta
relação, efetuada pelos agentes jurídicos, entre comportamento socialmente
adequado e veracidade dos depoimentos, ao invés de ser questionada em
sua dimensão discriminatória, é vista como uma prática jurídica necessária.
Se a discriminação contra a mulher-vítima ocorre, sobretudo, pela utilização
de estereótipos referentes à sua conduta na esfera sexual por parte dos
agentes jurídicos, uma das explicações para este fato seria a de que a
discriminação contra as mulheres ocorre no sistema jurídico porque este
370
reflete a situação de desvalorização feminina existente na sociedade como
um todo, situação decorrente de uma ótica masculina das relações sociais.
Os agentes jurídicos reproduziam a assimetria de gênero no
momento do julgamento dos crimes passionais, com a intenção de perpetuar
papéis sociais diferenciados para homens e mulheres, justificando suas
próprias ações com base em um sistema de ideias que se pretendiam
universais e era defendido como o único possível. As práticas jurídicas
discriminatórias de gêneros seriam o reflexo desse ponto de vista unilateral
que afirma a predominância do masculino sobre o feminino.
O saber jurídico, nos crimes passionais, só acreditava na palavra
da vítima se esta fosse caracterizada como “honesta”. Este conceito está
intimamente relacionado à questão da moralidade feminina. Neste sentido,
este pode ser considerado um discurso de gênero presente no interior do
saber jurídico com a finalidade de afirmar os papéis normativos para as
mulheres, principalmente em relação ao controle de sua sexualidade.
Como já evidenciado, o comportamento feminino costuma ser
avaliado segundo seu comportamento na área da sexualidade enquanto o
comportamento masculino era avaliado de acordo com o âmbito público,
preponderantemente em suas relações profissionais.
Diferentemente do ciúme, o ódio, a vingança e a perversidade
não deixavam dúvidas, pois, considerados nocivos à sociedade, jamais
fundamentaram argumentos dos advogados. Em contrapartida, eram
explorados pelos promotores ao sustentarem que a vingança e o ódio eram
como o amor e a honra, também paixões.
O que levava esses homens a se tornarem criminosos? As
alegações eram as mais diversas, tanto as apresentadas pelos próprios réus
como as invocadas pelos agentes jurídicos. Os argumentos usados pelas
partes, defesa e acusação, não diferiam de caso a caso. Para os defensores,
advogados contratados ou designados pelo estado, a perturbação dos
sentidos, a defesa da honra, a probidade moral e profissional, a ausência de
vícios. Para a promotoria, os maus-tratos, o alcoolismo e a ausência de
trabalho por parte dos homens constituíam argumentos utilizados para pedir
a condenação dos criminosos.
O Tribunal do Júri, foi criado no Brasil em 1822, para julgar os
crimes de opinião, ou de imprensa, e funcionava com 24 jurados, os “juízes de
fato”, dele cabendo recurso só ao príncipe regente. Na Constituição de 1824,
o tribunal do júri ganhou amplas atribuições , devendo julgar quase todos os
fatos considerados crimes. Era composto de dois conselhos: um júri de
acusação, e um júri de sentença.
Numa sociedade escravocrata e elitista, o júri não tinha caráter
de representação popular. Podiam ser jurados os eleitores, isto é, os “homens
bons”, com certa renda e pertencentes a determinadas categorias sociais. Ao
longo dos anos e através de várias reformas, o júri perdeu e recuperou sua
371
amplitude, passou para a direção da polícia e voltou para as mãos do poder
judiciário.
Em 1934 com a promulgação da Constituição, compõe a
organização do judiciário , saindo da esfera de atuação da cidadania para a
do estado. Em 1938, perdeu sua soberania nas decisões, restituída pela
Constituição de 1946, que também recolocava o júri no capítulo “dos direitos e
garantias individuais”, mas lhe atribuía definitivamente apenas a
competência de julgar os “crimes dolosos contra a vida”. Este dispositivo foi
mantido pela constituição de 1967 e pela de 1969, que, no entanto, não fez
menção à soberania do júri, reabrindo a discussão sobre a sua relevância em
nossa sociedade.
Desde sua criação, o júri foi alvo de criticas, pelos que desejavam
a sua extinção ou modificação. Dos júris das cidades do interior, dizia-se que
os jurados eram controlados pelos “coronéis locais”. Os das capitais,
argumentava-se que era composto por pessoas mal preparadas para julgar e
que se deixavam facilmente levar pelo oratória dos advogados e promotores,
ou por relações políticas.
Desde a criação do júri, seus membros ,como diz o código foram
“cidadãos de notória idoneidade”. A composição do júri variou em função do
número de habitantes da cidade onde ele está instalado, mas a definição de
quem sejam estes cidadãos idôneos era responsabilidade do juiz
encarregado de alistar os candidatos a jurados.
A instituição do júri passou por modificações desde sua
instauração no Brasil e foi, perdendo até as características retóricas de
“julgamento popular” que, de fato, nunca teve. O que o júri teve de mais
popular, e que permanece ainda na lembrança de velhos advogados e
promotores e nas memórias de seus mais antigos atores, foi o seu aspecto de
espetáculo durante certa época: os julgamentos de pessoas que por uma
razão ou por outra ganhavam destaque nas notícias dos jornais e levavam
multidões às salas dos tribunais. O início do século XX, foi época de glória do
júri no Brasil, era o momento em que as capitais brasileiras estavam
passando à categoria de “cidades grandes”.
No tocante à Organização do Poder Judiciário baiano, a
constituição do Estado da Bahia de 1891 no Art.63 diz que o poder judiciário é
independente e será exercido por juízes e tribunais do estado, aos quais
pertence unicamente a distribuição da justiça nos processos e que versarem
sobre matéria criminal, civil e administrativa, que não fora da
exclusiva atribuição dos juízes e tribunais federais.
O Art. 80 do mesmo estatuto legal trata do júri: “O júri é o tribunal
competente para o julgamento das causas criminais”. Neste sentido, o
Tribunal do Júri passou a ser o foro competente para julgar os crimes contra a
vida, conforme reza a Constituição do Estado da Bahia:
Título I Dos crimes contra a pessoa diz: A pessoa humana, sob o duplo

372
ponto de vista material e moral, é um dos mais relevantes objetos da tutela
penal. No capítulo I Dos crimes contra a vida, a lei penal, com a sua
provida e reforçada tutela, procura resguardar a incolumidade do
indivíduo humano até mesmo antes do seu nascimento, ou mais
precisamente, desde a sua concepção. Segundo a ordem em que os
alinha o código, são os seguintes os crimes contra a vida: o “homicídio”
(doloso e culposo), o “induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio”, o
“infanticídio” e o “aborto.
O direito e as normas jurídicas, enquanto forma de organização
da vida social, refletem o conjunto de crenças, valores, costumes de uma
sociedade. Por isso mesmo, o direito está sempre num processo de
constante transformação. Entretanto, nenhuma lei, por si só, é suficiente para
alterar costumes e preconceitos. Muitas vezes mudanças ocorridas na
sociedade demoram até de se refletir numa mudança da legislação. Outras
vezes há uma defasagem entre o avanço da legislação e a interpretação que
os juristas e os demais representantes do sistema político-jurídico dela
possam vir a fazer.
Em um processo penal não se julga o crime isoladamente, mas,
os indivíduos envolvidos. No entanto, é próprio da dinâmica dos processos
isolar o crime de seu contexto original e acender as luzes sobre o criminoso e
vítima, suas personalidades e suas vidas: caracterizar os “protagonistas do
delito”, como dizem os juízes em suas sentenças. Na prática, se busca traçar
um perfil dos envolvidos, cujos contornos já estão dados de antemão, pois o
seu comportamento é avaliado em função de uma série de requisitos e da sua
adequação a determinados papéis sociais.
Assim, o sistema normativo propõe a defesa da liberdade de
indivíduos considerados iguais, ao mesmo tempo ele sanciona uma estrutura
de relações na qual uma desigualdade fundamental é tida como natural. Os
momentos em que a defesa e acusação privilegiam argumentos que não
utilizariam se vítima e réu fossem do mesmo sexo. A utilização de argumentos
que discriminam a mulher não deve ser pensada apenas como uma questão
de foro íntimo do advogado. A consideração de que, em se tratando de
defender o acusado, os meios justificam os fins, deve ser revista quando se
discute a discriminação da mulher.
Os processos penais são constituídos de inúmeros documentos,
dependendo das circunstâncias e por quem foi cometido o crime. Os
processos referentes a crimes contra a vida são, evidentemente, os mais
volumosos, já que o julgamento pelo Tribunal do Júri envolve inúmeras
possibilidades de embates entre Defesa e Acusação. Sejam eles processos
de homicídio, de lesões corporais ou de estupro, todos são compostos de
algumas peças essenciais para a análise, pertencentes aos dois momentos
do processo: o policial e o judicial.
Enviado ao fórum, o processo é examinado pelo promotor,
373
representante do estado junto ao poder judiciário, que é o acusador e quem
deve formular a denúncia do fato ao juiz. O ato criminoso é agora retraduzido
num código específico, deixando patentes as contravenções e suas possíveis
legitimações, e sua punição é pedida em termos de tal ou qual artigo do
código penal. O juiz, por sua vez, após aceitar a denúncia do promotor,
interroga novamente as testemunhas e os protagonistas. Antes da sentença
final, e, dependendo do tipo de crime em análise, haveria ainda os ofícios dos
recursos interpostos pela defesa do acusado no empenho de obter a
absolvição de seu cliente. O processo termina, pela última decisão tomada
pelo juiz a respeito do réu.
Os relatos no decorrer dos interrogatórios, na polícia e em juízo,
são um conjunto de respostas a determinadas perguntas formuladas, em
cada uma dessas instâncias jurídicas. Essas respostas são
transcritas nos autos do processo, muitas vezes, de maneira truncada e
resumida. Os casos de crimes que envolviam homens e mulheres que
mantinham relacionamentos amorosos, qualificados como crimes
passionais, são aqueles nos quais quem o praticava era o criminoso por
paixão.
Na sala do tribunal local, diante de um público apaixonado e
envolvido emocionalmente nas tramas passionais, muitas vezes, de pessoas
próximas e conhecidas, o discurso da defesa utilizava argumentos que
buscavam, de certo modo, comover o tribunal e a assistência, visando a
construir a diferenciação entre os criminosos comuns e aqueles que matavam
por amor.
Durante o período estudado, as alegações da defesa, como as da
promotoria, pouco se alteram, distinguindo-se, porém, na exposição dos
motivos que originaram o ato criminoso. Uma das primeiras razões
invocadas, pela defesa, era o amor puro e desinteressado que o acusado
nutria pela vítima. Um amor reputado, naquele momento, como um
sentimento que dava respaldo às atitudes mais diversas; das mais nobres
ações ao maior desatino e até mesmo ao crime, sobretudo, se era cometido
pelos homens. Apresentava as características do amor romântico e, como tal,
justificava qualquer ato.
O que poderia ser um gesto passível de condenação tornava-se
aceito sob o manto do amor; mais do que isso, de uma paixão desatinada.
Vozes dissonantes, inclusive de juristas famosos, refutavam a argumentação
baseada na concepção do crime passional, defendendo o sentimento
tranquilo que deveria unir homens e mulheres no abrigo dos laços conjugais.
Para esses, em caso algum, o amor poderia ser arrazoado de perturbação de
sentidos, motivo utilizado frequentemente pelos agentes da defesa por
ocasião do julgamento.
A alegação do amor vinculado à ideia de paixão ou, melhor, de
paixões que privam o sujeito de sua consciência e de sua racionalidade,
374
carrega consigo a característica de uma assimetria de poder e
seria mais aplicável ao gênero masculino. A afirmativa decorre do
pressuposto, hegemônico no início do século XX, de que nas relações
amorosas os homens ocupariam a face ativa e dominadora, enquanto as
mulheres deveriam desempenhar os papéis de submissão e passividade. A
quebra deste suposto equilíbrio revelava, nos casos masculinos, a rejeição
feminina às funções delegadas socialmente às mulheres. Os homens
poderiam, então, corrigir as transgressões, justificando seus atos através do
amor, perpetuando, assim, a reprodução das desigualdades de gênero.
Uma segunda justificativa utilizada para inocentar o acusado, no
caso sempre um homem, era a defesa da honra. Os defensores dos
criminosos passionais consideravam essa defesa humanitária, uma vez que
supunham serem os atos agressivos uma reação psicológica, fugidia ao
controle racional. Argumentavam que o temperamento idealista de algumas
pessoas as fazia perder a razão quando decepcionadas ou provocadas por
uma forte emoção. E, nos casos específicos dos homens, as emoções
estariam vinculadas a paixões como o amor e a honra, aceitas como úteis á
sociedade.
A concepção de honra masculina ofendida, no âmbito conjugal,
apresentava a particularidade de vincular-se ao comportamento sexual
feminino. Esse aspecto criou a relação entre honra masculina, sinônimo de
virilidade e coragem, e honra feminina, por sua vez, sinônimo de vergonha,
pureza e fidelidade. Neste sentido, a honra feminina estava diretamente
vinculada ao comportamento sexual das próprias mulheres. Para as
mulheres solteiras, a existência do hímen, dádiva pertencente
exclusivamente ao marido. Para as mulheres casadas, a fidelidade conjugal.
A alegação do ciúme como sentimento motivador dos crimes foi
amplamente utilizada pela defesa daqueles que diziam matar por amor. Ao
inverso da acusação, o defensor dizia que o ciúme poderia desencadear o
processo de perda da racionalidade, levando o indivíduo a comportamentos
que ele não teria em situações cotidianas.
O ciúme e a idéia de posse ficaram evidentes nos casos em que o
adultério feminino foi argumento utilizado nas falas da defesa, apesar de o
código penal vigente não consagrar ao marido o direito de matar a mulher, o
júri entretanto, votou pela condenação uma vez que a promotoria utilizou
argumentos de que o acusado agiu movido por sentimentos de cunho
antissocial prejudiciais a ordem vigente.
Na primeira metade do século XX, a perturbação dos sentidos já
encontrava respaldo entre as falas da defesa. Visando convencer o júri de
que o réu se encontrava em tal estado, o defensor apresentou algumas
ponderações médicas a fim de conferir credibilidade ao seu discurso, pois, já
nessa época, as autoridades da medicina eram solicitadas para explicar
pontos obscuros para o corpo de jurados e para o público em geral.
375
O caráter de objetividade e cientificidade conferido pelo discurso
médico auxiliou no convencimento do júri, que acatou a idéia de que
Francisco José estava, no momento em que praticou o crime, perturbado em
seus sentidos. Amor, honra, abandono e traição eram, nas quatro décadas
iniciais do século XX, sentimentos interligados e decorrentes. Quando
cometiam crimes passionais, tanto homens como mulheres se
caracterizavam como vivendo num estado de insanidade temporária,
justificativa aceita por juízes e jurados.
Apoiando-se no Código Penal vigente e nos discursos médico-
psiquiátricos, os defensores afirmavam que o crime passional resultava de
uma loucura temporária desencadeada pela perturbação dos sentidos, que,
por sua vez, era motivada por agressões morais à honra e ao amor. Juristas,
em acordo com afirmações médicas, conclamavam que “a paixão, como
resultado que é de uma emoção intensa e duradoura, é legítima equivalente
de certas psicoses, e que produz efeitos perfeitamente iguais aos efeitos
produzidos por certas formas de loucura” (ENGEL, 1997. p.322). Enquanto a
defesa empenhava-se em encontrar nas premissas dos passionalistas as
bases de seu discurso em favor do réu, a acusação anunciava a
existência de um homicídio, de uma morte e a imprescindível necessidade de
punir seu autor. Como representante das leis, de defensor da ordem social, o
promotor público conclamava a exclusão social do criminoso a fim de
defender a ordem pretendida.
Perversidade, vingança e ódio eram sentimentos que, invocados,
pesavam negativamente na balança da justiça contra o acusado, as
alegações baseadas em sentimentos eram utilizadas para a defesa, assim
como para a acusação. No caso da acusação, buscavam-se argumentos
fundamentados em sentimentos de cunho antissocial que, segundo o
pensamento penal da época, eram maléficos à ordem vigente e, como tal,
deveriam ser punidos com a condenação daqueles que os apresentassem.
O ciúme traz em si uma dupla interpretação, sendo a deformação
mais comum do amor-paixão, causa determinante dos crimes passionais. Tal
posição era defendida pelo jurista Moraes (1933). Outras posições defendiam
que “fora dos casos patológicos, que exigem manicômio, o ciúme é injúria
grave” e que o “excesso de ciúme” era alegação dos “matadores de
mulheres”, para ganhar a tolerância do júri (LYRA, 1931, p. 211).
Dessa forma, tais representações coletivas criam nas pessoas
as divisões do mundo social, estruturando esquemas de percepção a partir
dos quais classificam, agem e julgam. Assim, coniventes com as
representações de um suposto equilíbrio doméstico, a confiabilidade que
deveria haver no interior dos lares transformou-se em argumentos
condenatórios usados pelos promotores nos casos de assassinatos entre
casais.
Os crimes passionais, até aqui analisados foram praticados por
376
homens o que pode ser explicado por imposições culturais. Segundo Eluf
(2007, p.118), “mulheres sentem-se menos poderosas socialmente e menos
proprietárias de seus parceiros. Desde pequenas são educadas para
'compreender' as traições masculinas como sendo uma necessidade natural
do homem”.
Apresentadas todas as falas, esgotados todos os argumentos,
ouvidas as testemunhas, ocorria, então, o ápice do drama, quando o júri
julgava e o juiz pronunciava a sentença que condenaria ou absolveria o réu.
Ao proferirem a pronúncia, os magistrados fundamentavam suas decisões
em pressupostos relevantes para caracterizar a existência jurídica do crime,
como a confissão e os exames de delito ou cadavérico. O primeiro indicaria o
provável autor e os segundos, a concretude do ato homicida.
Na década de 1920, os magistrados persistiram nos argumentos
essencialmente jurídicos. Além da ênfase atribuída à confissão e à gravidade
do ato, apresentavam extensos debates técnicos a fim de justificar suas
decisões e mediar as intervenções dos advogados e promotores. Na década
seguinte, porém, observou-se uma argumentação mais compatível com as
teses elaboradas pelos teóricos do passionalismo, uma vez que houve uma
melhor consolidação das idéias jurídicas em relação aos crimes passionais, o
que possibilitou uma melhor assimilação do discurso legal que instituiu a
figura deste crime.
Outra constatação observada pelos magistrados foi a
superioridade física, de recursos e a consequente gravidade do ato violento. A
avaliação da violência embasava-se nos laudos médicos, discursos
autorizados a medir e descrever a extensão dos ferimentos.
A visibilidade das mortes por paixão, no período, e a campanha
desencadeada por juristas antipassionalistas no Rio de Janeiro, ecoaram nas
posturas de magistrados no tribunal. Contudo, as decisões jurídicas sobre os
crimes praticados em nome do amor não foram, exclusivamente
condenatórias. Em alguns casos os réus foram absolvidos e impronunciados.
No caso de absolvição, o principal argumento dos jurados foi a perturbação
dos sentidos sofrida pelo réu, no momento de cometer o crime.
Segundo o pensamento dominante, depois de praticar o crime, o
passional era tomado de remorso e usualmente tentava/praticava o suicídio.
O ato do suicídio era o mais melindroso na construção do
passional, pois para os teóricos era indispensável como forma de demonstrar
o arrependimento do envolvido. Entretanto, na maioria dos casos não eram
detectadas tentativas de suicídio dos homens que iam a julgamento e este
ponto era explorado pelos promotores para descaracterizar o réu passional.
Eles procuravam indicar que aquele homem não agiu como tal, pois o
assassino por paixão não suportava a idéia de viver sem sua mulher, portanto
já que a tinha matado, seu “desejo” devia ser unir-se a ela na morte.
A partir de 1930, porém, observou-se uma argumentação mais
377
compatível com as teses elaboradas pelos teóricos do passionalismo. Os
juizes apresentam em seus argumentos a discordância em associar os
crimes cometidos em nome da paixão ao parágrafo legal que atribuía aos
loucos a inimputabilidade. Para ele, os crimes passionais inegavelmente
existiam na sociedade,no entanto, um posicionamento negativo em relação à
prática da eliminação física daquele que se ama.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No projeto de remodelação urbana estava implícito o
saneamento moral da população. Nas representações do moderno, do
civilizado, encontravam-se as tensões e os conflitos. Nesse cenário, em nada
harmonioso, as relações amorosas aconteciam. Sob olhares higiênicos e
normatizadores, homens e mulheres legaram, ao presente, formas de viver e
amar que, em muitas vezes, não corresponderam aos ideais imaginados
pelos pregadores burgueses da ordem e da civilização.
Neste sentido, este artigo preocupou-se em expor a atuação dos
agentes do direito, no seu campo jurídico específico, os quais se utilizaram de
todo um instrumental doutrinário, visando a defender suas concepções
naquela esfera de poder. Não ignoramos, no entanto, que as práticas
jurídicas estavam vinculadas a um contexto maior e relacionavam-se com as
representações que motivaram os dramas entre os casais.
Foi também objeto de nossa preocupação a forma como os
agentes do direito analisavam os crimes passionais, os quais
defendiam posições impregnadas por valores e representações de gênero.
Emoções, desvios e punições abriram possibilidades de
reflexões teóricas mais profundas e oportunidades para o levantamento de
problemáticas que, de forma alguma, encerraram as possíveis aproximações
sobre os crimes passionais e as relações de gênero que marcaram o
cotidiano de homens e mulheres envolvidos nos dramas de paixão.
Este artigo pretendeu desvelar, mesmo que com lacunas, alguns
entremeios da construção social do criminoso por paixão, que se encontrava
sedimentada, na manipulação dos signos de adequação social por homens e
mulheres. Assim, a partir das transformações político-jurídicas apresentadas,
o Estado republicano estruturou-se politicamente através da constituição de
1891 e, especificamente, do Código Penal de 1890, para dar conta dos
conflitos de gênero, atuando ora para manter os papéis desejáveis para os
gêneros, ora sancionando condutas que os transgredissem. Esta ação da
ordem político-jurídica contribuiu para a construção das concepções de
gênero que dominaram o imaginário social no período estudado.
Futuros trabalhos poderão explorar outras dimensões que
contemplem a complexa trajetória dos amantes e das múltiplas paixões que
envolvem homens e mulheres.

378
REFERÊNCIAS

BANDEIRA, E. Estudos de política criminal. Rio de Janeiro, 1912


BORELLI, Andréa. Matei por amor! As representações do masculino e do
feminino nos crimes passionais.Rio de Janeiro: Celso Bastos,1999, p. 31.
CASTRO, Francisco José Viveiros de. Atentados ao pudor. Rio de Janeiro:
Freitas Bastos, 1943, p. 138.
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e
nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas: Editora Unicamp, 2000.
CORRÊA, Mariza. Os crimes da paixão. São Paulo: Brasiliense, 1981.
ENGEL, Magali. Psiquiatria e Feminilidade. PRIORY, Mary Del (org). História
das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997.p. 322-359.
ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1989.
LYRA, Robert. O amor e a responsabilidade criminal. Rio de Janeiro:
Saraiva, 1931.
MORAES, Evaristo. Criminalidade passional. O homicídio e o homicídio
suicídio por amor. Saraiva. São Paulo, 1933.
SOIHET, Rachel. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. PRIORE,
Mary Del (org). Historia das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997.
p.381.
ELUF, Luiza Nagib. A paixão nos bancos dos réus. São Paulo: Saraiva, 2007,
p.118.

379
VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA CONTRA A MULHER NA RELAÇÃO
CONJUGAL
Gleidismara dos Santos Cardozo de Castro Franzoni

INTRODUÇÃO
Neste texto pretendo fazer uma análise do fenômeno da violência
psicológica contra mulheres na relação conjugal, no contexto atual brasileiro,
com base nos fundamentos teórico-metodológicos da Teoria Feminista,
utilizando gênero como categoria que possibilita compreender as
características históricas e sociais das vivências humanas.
Cada indivíduo vivencia o amor e a sexualidade conforme os
referenciais de sua época, de sua cultura, de seu grupo social, bem como, o
entendimento do significado de violência também é um fenômeno histórico e
social.
Pensar a violência psicológica no contexto brasileiro impõe
necessariamente uma reflexão sobre a violência contra mulheres, que
“integra de forma íntima a organização social de gênero vigente na sociedade
brasileira”.
Segundo a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará-1994):
“Violência contra a mulher é qualquer ação ou conduta baseada no gênero,
que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher,
no âmbito público ou privado.”
Partindo deste princípio a violência psicológica contra mulheres é
uma violência de gênero, produto das relações patriarcais de gênero que
hierarquizam as pessoas, fundamentada numa mentalidade androcêntrica,
que está intrinsecamente ligada a uma postura social discriminatória,
solidificada pela mercantilização do corpo feminino, pela banalização da
violência e pela dominação masculina, que legitimam a violência dos homens
sobre as mulheres.
Portanto é uma afronta ao princípio da igualdade de direitos
resguardado nas leis nacionais e internacionais para defesa dos direitos
humanos.
É fato que a violência psicológica perpassa os inúmeros
segmentos da sociedade, atinge mulheres de diferentes classes sociais,
raças, etnias, gerações, bem como ocorre tanto na área urbana quanto na
rural, não importa quão “desenvolvido” é o estado ou região.
É uma violência “democrática” porque pode atingir qualquer
mulher, independente de seu nível intelectual, econômico ou social, porém as
vivências não são democráticas, são diferenciadas.
Na relação conjugal, percebo que esta violência é invisibilizada,
ou seja, quase nunca é publicizada, permanece no âmbito privado, por
381
inúmeros fatores, desde os individuais (como por exemplo, a vergonha e o
medo em admitir a violência) aos sociais (parece haver um pacto social de
silêncio que evita intervenções externas protegendo violentadores).
No que se refere ao pacto de silêncio, o agressor nega a violência,
se houver testemunhas elas fingem que nada vêem, já que não se sentem
capazes de comprovar a existência material do sofrimento, e há ainda a
postura silente da mulher, tanto por fatores emocionais, quanto econômicos e
sociais.
Em diversos casos as mulheres bloqueiam o sofrimento,
relegando-o ao esquecimento, numa espécie de “entorpecimento
emocional”, como forma de resistência, e somente enfrentam as situações
violentadoras após acompanhamento terapêutico.
De acordo com Saffioti, “o próprio sentimento de culpa não
permite que o sofrimento se torne visível. A publicação da
violência masculina sobre ela exporia a mulher com suas culpas.”
Daí a grande importância do movimento feminista que, desde o
ínicio da década de 70, lutava pelo desvelamento da violência contra as
mulheres, pois ao adotar o lema “o pessoal é político” trouxe para a cena
pública o debate sobre as questões do âmbito doméstico, dentre elas a
violência doméstica, o livre exercício da sexualidade, e o controle do corpo.
O que está expresso no lema 'o pessoal é político' é a “idéia de se
pensar as relações pessoais também como relações de poder ”.
Nesta perspectiva, as feministas questionaram a separação entre
público e privado, difundindo a idéia de que a violência não poderia ser
visualizada como problema individual mas deveria ser entendida como um
problema social.
Ao dar visibilidade à violência, o feminismo contribuiu
consideravelmente na mudança das mentalidades, das posturas e das ações
da sociedade civil, que passou a exigir do Estado políticas públicas que
garantissem a proteção às mulheres vítimas de violência, principalmente
aquelas voltadas especificamente para a violência doméstica.
Neste ponto quero diferenciar violência doméstica, intra-familiar e
violência conjugal, posto que a violência intra-familiar pode ser cometida por
qualquer membro da família, não necessariamente dentro da residência,
enquanto a violência doméstica afeta pessoas que mesmo não pertecendo à
família, convivem, parcial ou integralmente, no âmbito do lar.
_____________________________________________________________

344
MILLER, M. S. Feridas Invisíveis: violência conjugal e novas políticas de segurança. RJ: Civilização
Brasileira, 1999, p. 139.
345
SAFFIOTI, H. I. B. Relações de gênero: violência masculina contra a mulher. In: Ribeiro, H. et all. Mulher
e Dignidade: dos mitos à libertação, p. 39.
346
SARDENBERG, Cecília Maria Bacellar. “Estudos Feministas: Esboço Crítico”. In: AMARAL, Célia C.
Gurgel do. (Org.). Teoria e Práxis dos Enfoques de Gênero. Salvador: REDOR, 2004,p. 20.

382
Quanto à violência conjugal é aquela que ocorre na intimidade
dos casais, entre os parceiros, porém não está restrita ao lar, pois o agressor
utiliza técnicas aprimoradas de domínio, instrumentos de controle,
monitoramento das ações, cerceando as liberdades, as atitudes, as idéias, os
desejos, o gostar, o vestir, inclusive o convívio com parentes, amigos,
vizinhos.
Certamente não é construtivo um casamento violento em que um
ser perde sua liberdade pela dominação do outro, ou está baseado numa
troca de agressões físicas ou psíquicas, numa relação muitas vezes sado-
masoquista.
Porém é preciso reafirmar que numa sociedade dividida pelo
gênero, mulheres e homens compreenderão e vivenciarão experiências
sociais diferentes. Assim, não abordarei a perspectiva masculina, pois como
Soares, acredito que a violência psicológica contra a mulher é uma “violência
de gênero, isso é, uma violência masculina que se exerce contra as mulheres
pela necessidade dos homens de controlá-las e de exercer sobre elas seu
poder.”
Na relação conjugal ocorre uma tensão entre os poderes de um e
de outro, e neste jogo de forças se estabelecem regras para que haja
condição de convivência, porém um relacionamento pautado em hierarquias
de gênero patriarcais, implica em múltiplas violências.
Assim, utilizarei a expressão “violência marital” para marcar o que
está implícito neste tipo de violência contra as mulheres: uma relação
desigual entre mulheres e homens, em que a mulher é objetalizada,
coisificada como uma propriedade do homem, que se sente no direito de
violentá-la, respaldado por padrões sociais discriminatórios que incentivam a
violência.
Tenho clareza que também existem mulheres agressoras, porém
as estatísticas comprovam que na relação conjugal violenta, o marido é o
violentador, sendo responsável por “70% das quebradeiras, 56% dos
espancamentos e 53% das ameaças com armas à integridade física da
mulher.”
Concordo com Soares ao afirmar que “mesmo quando a violência
é mútua e a mulher também agride seu agressor, ou até mesmo inicia as
agressões, há fortes probabilidades de que ela o faça como recurso de
autodefesa, física ou psicológica.”
Quero frisar que não pretendo visualizar a mulher agredida pelo
marido como uma “coitadinha”, passiva ou cúmplice da violência, pois
acredito que a mulher também é agente de sua história. Por isso ela utiliza
inúmeros mecanismos que são estratégias de sobrevivência diante da
_____________________________________________________________

347
SOARES, B. M. Mulheres invisíveis, violência conjugal e as novas políticas de segurança. RJ:
Civilização Brasileira, 1999.p. 125.

383
violência marital.
Estes mecanismos são elaborados psiquicamente, ou seja,
consciente ou inconscientemente as mulheres violentadas elaboram formas
de lidar com as múltiplas violências a que são submetidas, transformando
emoções, sentimentos em atitudes que possibilitam sua convivência
conjugal.
Certamente, quanto o maior o nível de consciência sobre o
significado real da violência, maior a capacidade de lidar com ela, inclusive
de romper com o ciclo da violência e partir para uma outra relação saudável.
Este nível de consciência está intimamente ligado ao acesso à informação,
bem como, quanto maior o nível instrucional maior a condição de
entendimento da condição de opressão que a violência impõe.
Esta atitude de dar um basta à violência, e até decidir-se pelo
divórcio, implica também numa independência financeira, já que a
capacidade de se auto-sustentar possibilita à mulher condições reais de
sobrevivência.
Há ainda os fatores psíquicos que perpassam a vivência numa
relação conjugal violenta, como por exemplo, a ambigüidade de sentimentos
que as mulheres passam ao lidar com um marido que num momento se
mostra amoroso, cuidadoso, carinhoso e dedicado, e noutro se mostra
arrogante, prepotente, dominador e violento.
Além disso, a forma de enfrentamento da violência, é muito
pessoal, passa por fatores geracionais, étnicos, religiosos,
morais, psíquicos, sociais e culturais.
Daí a importância do estudo da violência psicológica contra
mulheres, que embora esteja intimamente ligada a inúmeras outras
violências, que vão desde a patrimonial, a física, a sexual, até o femicídio, por
si só produz efeitos desastrosos para as mulheres.
Considero violência psicológica aquela que atinge psiquicamente
ou afetivamente a mulher, interferindo na sua auto-estima, na construção de
sua identidade, na realização de seus desejos, na expressão de suas
emoções, na sua vivência como cidadã.
Para Moreira, atos de violência psicológica são “aqueles pelos
quais são atingidos objetos de valor afetivo e/ou material da mulher, visando
intimidação ou representando ameaças, despertando nas vítimas
sentimentos de medo, insegurança ou vergonha.”
Ou seja, há na violência psicológica contra mulheres muito mais
do que os aspectos visíveis, como a violência física ou objetalização do corpo,
ela é muito mais aprimorada, já que não deixa marcas físicas, fáceis de
_____________________________________________________________

348
CUNHA, T.R. A O preço do silêncio: mulheres ricas também sofrem violência. Vitória da Conquista, BA:
UESB, 2007.
349
SOARES, B. M. Mulheres invisíveis: violência conjugal e as novas políticas de segurança. RJ:
Civilização Brasileira, 1999, p.58.

384
provar, deixa “hematomas na alma”, pois a manipulação das emoções e dos
afetos causa um sofrimento que deixa marcas psíquicas.
Quero enfatizar que meu objetivo não é minimizar a importância
dos estudos sobre violência física infringida às mulheres, tão pouco esquecer
as mulheres espancadas, violentadas, exploradas, mas frisar que não basta
fazer apenas um levantamento estatístico dessas mulheres, é preciso ir além,
há necessidade urgente de pesquisar as reações e expectativas das
mulheres violentadas, e principalmente verificar a destruição psíquica que
causam estas múltiplas violências perpetradas às mulheres.
Embora as relações conjugais não sejam padronizadas, é
possível destacar as formas mais frequentes de violência psicológica
infringida pelos maridos: humilhações, atitudes vexatórias,
constrangimentos, tanto na esfera da intimidade quanto em situações
públicas, ameaças, coerção, a omissão na realização das tarefas domésticas
e divisão das responsabilidades conjugais, que violentam cotidianamente,
tentando destruir a auto-estima da mulher, sua capacidade de reação, sua
individualidade, sua liberdade, sua vivência como cidadã.
Há outros fatores como a manipulação psíquica e afetiva, o
abandono afetivo e o material, tortura física, ameaça de requerer a guarda
dos filhos ou de violentá-los, violência sexual, a ameaça de suicídio pelo
marido, vingança, e tentativas de homicídio.
As vivências das mulheres não podem ser universalizadas, posto
que cada mulher é um ser único, porém é recorrente que a violência
psicológica contra mulheres na relação conjugal cause inúmeras
conseqüências, tais como: depressão, distúrbios cognitivos, perdas de
memória, ansiedade, frigidez, baixa auto-estima, sentimento de frustração e
culpa, medo, insegurança, vergonha, confusão mental, tendência ao
isolamento, doenças psico-somáticas, doenças psíquicas(principalmente
neuroses e psicoses maníaco-depressivas), auto punição, como uso de
drogas ilícitas, medicamentos e álcool, a auto-flagelação, e até o femicídio.
No que se refere ao aspecto social, as mulheres enfrentam
problemas inclusive no emprego, por faltas freqüentes em decorrência das
doenças e das estratégias de fuga dos maridos violentos, bem como pela
perda da concentração nas atividades laborais, e ainda pela perseguição dos
maridos no ambiente de trabalho.
Lembro que a violência psicológica contra mulheres também tem
conseqüências diretas para a vivência familiar, posto que o ciclo de violência
cria uma instabilidade emocional que afeta a todos, esposas, maridos e filhos.
Infelizmente, todos estes efeitos da violência psicológica contra
mulheres casadas ainda se mantém obscurecidos no anonimato do lar, pois
muitas não denunciam, e quando o fazem, não obtém do Estado qualquer
proteção efetiva que leve a cabo a violência.
No Brasil, as políticas de enfrentamento à violência ainda são
385
precárias, e mesmo quando tem por finalidade o atendimento de vítimas de
violência doméstica, ainda estão muito centrados na violência física.
Estudos aprofundados neste campo tornam possível
implementar políticas públicas de atendimento psicológico às mulheres
vítimas deste tipo de violência, visando instrumentalizá-las para a prevenção
e o enfrentamento das múltiplas violências perpetradas por seus parceiros
conjugais.
Acredito ainda, que campanhas de esclarecimento da população
contribuirão para a desnaturalização e não aceitação da violência psicológica
e para o incentivo à denúncia, o que será um fator transformador das relações
de gênero.
No que se refere à legislação nacional, movimento feminista
brasileiro pressionou para inserir uma emenda na Constituição de 1988,
garantindo igualdade entre mulheres e homens. E em 1988, atuou no
chamado “Lobby do Batom”, um grupo de 26 deputadas que independente
das legendas partidárias se uniu em prol da isonomia de direitos entre
mulheres e homens.
Mais recentemente, em 2006, a legislação brasileira,
historicamente violentadora ou ainda omissa durante tantos séculos de
violência infringida contra a mulher, novamente por meio das pressões do
movimento feminista, avançou na proteção à mulher agredida, pois em 21 de
setembro entrou em vigor a lei nº. 11.340, conhecida como Lei Maria da
Penha, que permite que os agressores sejam presos em flagrante ou tenham
prisão preventiva decretada.
A lei Maria da Penha define também as formas da violência
doméstica contra a mulher como sendo física, psicológica, sexual,
patrimonial e moral. Entretanto, a lei esbarra em problemas estruturais,
econômicos e sociais, cito abaixo um fato ocorrido em Santa Catarina:
Em Chapecó, o marido bateu na mulher, foi denunciado pela sogra e
detido. Comprovou ser extremamente pobre e pagou fiança de R$ 100,
para não ser preso. Para surpresa do delegado, a agredida esteve na
delegacia no dia seguinte para retirar a queixa, na esperança de resgatar
os R$ 100. Ela estava amamentando e relatou que o dinheiro ia fazer falta
para a família.
O que percebo é que a lei é sem dúvida um instrumento jurídico
necessário, porém é preciso abarcar todos os aspectos da lei, não basta
apenas punir os violentadores, o Estado precisa amparar as mulheres
violentadas, criando estratégias de auxílio que garantam sua saída da vida na
violência para uma vida cidadã.
Quanto à sociedade, necessita refletir continuamente sobre as
_____________________________________________________________

350
MOREIRA, Maria Inez Costa et all. Violência contra a mulher na esfera conjugal: Jogo de espelhos.In: A
violência contra a mulher na esfera conjugal: produção e enfrentamento, 1989, p. 175.

386
formas de violência contra as mulheres, o ciclo da violência, as relações
patriarcais de gênero, os dados estatísticos expressivos sobre a violência
contra as mulheres no Brasil, os aspectos da legislação brasileira, e
estratégias efetivas de enfrentamento à violência.
Existem muitos aspectos intrínsecos a este fenômeno que
precisam ser pensados, inclusive é preciso pensar sobre a violência nas
relações conjugais entre pares do mesmo sexo, não regidos pela lógica
heterossexual.
Enfim, acredito que somos cidadãs e cidadãos responsáveis pela
transformação social e pelo fim do pacto de silêncio coletivo que banaliza
essa temática, e é nossa função social difundir idéias que possibilitem a
mudança das relações sociais de gênero por meio do esclarecimento e do
debate sobre a violência psicológica perpetrada historicamente contra
mulheres casadas de todas as classes sociais.

387
REFERÊNCIAS
CUNHA, T.R. A O preço do silêncio: mulheres ricas também sofrem
violência. Vitória da Conquista, BA: UESB, 2007.
GREGORI, M.F. Cenas e queixas: um estudo sobre mulheres, relações
violentas e a prática feminista. RJ: Paz e Terra; SP: ANPOCS, 1993.
LANGLEY, R. E LEVY, R. Mulheres Espancadas: fenômeno invisível.
SP:Hucitec, 1980.
MILLER, M. S. Feridas Invisíveis: violência conjugal e novas políticas de
segurança. RJ: Civilização Brasileira, 1999.
MOREIRA, M. I. C. et all. Violência contra a mulher na esfera conjugal:
jogo de espelhos. In: A violência contra a mulher na esfera conjugal: produção
e enfrentamento, 1989.
SAFFIOTI, H. I. B. Relações de gênero: violência masculina contra a mulher.
In: RIBEIRO, H. et all. Mulher e Dignidade: dos mitos à libertação. SP:
Paulinas, 1989.
_______________Violência de Gênero no Brasil Contemporâneo. In:
SAFFIOTI, H.I.B., MUÑOZ-VARGAS, Monica (Orgs.) Mulher Brasileira é
Assim. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos: NIPAS; Brasília, 1994.
SARDENBERG, Cecília Maria Bacellar. “Estudos Feministas: Esboço
Crítico”. In: AMARAL, Célia Chaves Gurgel do. (Org.). Teoria e Práxis dos
Enfoques de Gênero. Salvador: REDOR, 2004.
SOARES, B. M. Mulheres invisíveis: violência conjugal e as novas políticas
de segurança. RJ: Civilização Brasileira, 1999.

389
CAUSAS DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO ESPAÇO DOMÉSTICO NA
PERCEPÇÃO DAS GESTORAS DOS SERVIÇOS DE APOIO
Maria Tamires Alves Ferreira
1
Mary Ângela de Oliveira Canuto
Inez Sampaio Nery
1 INTRODUÇÃO
Ao longo da história, as relações afetivas entre homens e
mulheres vêm sendo marcadas por condições de dominação masculina e
submissão feminina. Os papéis destinados tanto para homens como para
mulheres foram cultural e socialmente construídos e naturalizados, cabendo
à mulher a função de cuidadora da casa e dos filhos, devendo obediência na
infância ao pai e, mais tarde, ao companheiro, caracterizando uma ordem
patriarcal de organização familiar (AMARAL, 2005).
Essas relações de poder refletem uma relação de gênero, onde
gênero pode ser compreendido como um modo de se aludir aos papéis e
comportamentos atribuídos aos homens e mulheres pela sociedade. Esse é
um processo em permanente construção, que se inicia na primeira infância e
continua no decorrer do desenvolvimento, sofrendo variações de acordo com
a história, cultura, religião e educação (AMARAL, 2005).
Neste contexto, as atitudes autoritárias e centralizadoras dos
homens são compreendidas como algo inerente à figura masculina e, a
subordinação a essa autoridade, à figura feminina. Da necessidade de
reforçar esse poder masculino, pode advir a violência contra a mulher,
também chamada de violência de gênero (BRASIL, 2003; ROTANIA et al,
2003).
Uma das principais formas de manifestação da violência de
gênero é a violência doméstica, que pode ser definida como qualquer ato
perpetrado por um membro da família, que em geral, é o parceiro íntimo, após
ou durante o relacionamento, que repercute de maneira negativ, sobre a
saúde física, mental e emocional da mulher. É um fenômeno complexo que
não se limita apenas à mulher, posto que muitas vezes atinge outros
membros do núcleo familiar, a exemplo os filhos (REICHENHEIM; DIAS;
MORAES, 2006).
No que diz respeito à violência doméstica, pode-se apresentar de
modos diversos: agressão física, como socos, bofetadas e pontapés, quando
o homem na relação de poder faz uso da força física contra a mulher,
atentando sobre a integridade desta, resultando ou não em lesões internas,
externas ou ambas; violência psicológica quando por meio de ofensas

_____________________________________________________________

352
Graduandas do 9º período do curso de Enfermagem da Universidade Federal do Piauí - UFPI
2
Doutora em Enfermagem. Profª. Associado I das disciplinas Saúde da Mulher e Saúde Reprodutiva da
Universidade Federal do Piauí - UFPI. E-mail: ineznery.ufpi@gmail.com

391
verbais, ameaças, desprezo, intimidação ou proibições, o companheiro
causa ou tenta causar prejuízo à auto-estima e identidade da parceira; e
violência sexual, ação em que o parceiro utiliza da força física, coerção ou
relação de poder obrigando a mulher a manter relações ou interações sexuais
contra a sua vontade (ROTANIA et al, 2003).
Há fatores individuais, relacionados à mulher e ao parceiro, bem
como condições sociais e familiares que podem colocar a mulher em maior
situação de risco de sofrer violência. As condições que expõem a mulher a
tais fatores de risco abrangem: baixo nível educacional, pouca autonomia
financeira, baixo nível de empoderamento, ter presenciado e/ou ter sido
vítima de violência na infância. Os fatores relacionados ao parceiro
compreendem consumo problemático de álcool e drogas, dificuldade de
comunicação com a companheira, desemprego, ter testemunhado ou ter sido
vítima de violência quando criança. Dentre os aspectos na dimensão social e
familiar tem-se a dependência financeira e econômica por parte da mulher,
distribuição desigual de autoridade e poder conforme papéis de gênero,
isolamento e fechamento da relação, dificultando a intervenção de terceiros
nas situações de violência (BRASIL, 2002; OMS, 2005).
Em termos globais, estima-se que um em cada cinco dias de
absenteísmo ao trabalho feminino é em decorrência da violência doméstica, e
que para cada cinco anos vividos, a mulher vitimada no interior de seu lar
perde um ano de vida saudável. Na América Latina, a violência doméstica
atinge 25% a 50 % das mulheres e seus custos chegam a 14,2 % do Produto
Interno Bruto (PIB), o que representa aproximadamente 168 bilhões de
dólares No âmbito nacional, 23% mulheres sofrem violência doméstica e a
cada quatro minutos, uma mulher é vitimada no espaço doméstico, sendo que
em 70 % dos casos os agressores são seus parceiros íntimos. Além do mais,
o Brasil é o país que mais padece por esse tipo de violência, que é
responsável por um terço das internações em unidades de emergências e
pela perda de 10,5 % do PIB nacional, o representa 84 bilhões de dólares
(SANTOS, 2001).
Contextualizando o problema, no Piauí em 2003, segundo dados
dos boletins de ocorrência, 31,15% dos casos de violência contra a mulher,
que foram denunciadas deram prosseguimento à justiça, enquanto o restante
não continuou principalmente por causa da desistência da agredida. Desde a
criação do Núcleo de Defesa da Mulher Vítima de Violência em agosto de
2004 até janeiro de 2005, foram realizadas 836 atendimentos e processadas
55 ações civis (MONTEIRO et al., 2006).
Em Teresina, o problema da violência contra a mulher vem a cada
dia ganhando dimensões significativas, tanto que no mês de julho de 2008
houve um aumento no número de agressões, representando 126
atendimentos do serviço social e 112 flagrantes da delegacia da mulher
(BRITO, 2008).
392
Diante dos dados referidos, percebe-se a magnitude do
problema, caracterizando-o como um fenômeno que repercute
negativamente de maneira significativa na saúde da mulher nos aspectos
físicos, sexuais, reprodutivos, psicológicos e sociais. É o que evidencia
Monteiro e Souza (2007) em estudo feito com mulheres que vivenciam a
violência conjugal, que relatam cotidianos marcados por agressões de ordem
física, sexual e psicológica (medo, vergonha, baixa auto-estima e
aprisionamento) o que resulta em intenso sofrimento e perdas na qualidade
de vida.
A violência doméstica é um grave problema de saúde pública,
devido ao elevado número de ocorrências; a gravidade, com o aumento da
morbidade, número de internações e seqüelas, contribuindo com a redução
na qualidade de vida das mulheres vitimadas; e vulnerabilidade das mulheres
em situação de risco. Além do mais, é um problema que causa impactos
sociais, econômicos e emocionais, com custos a assistência à saúde e falta
no trabalho e o sofrimento a que são submetidos tanto a mulher como os
membros da família. É um problema passível de prevenção, mediante
elaboração de políticas e de ações específicas (SILVA, 2007).
Dessa forma, devido à amplitude e complexidade do tema
violência doméstica, faz-se necessário à implementação de medidas, tais
como: leis, políticas e programas que proporcionem um atendimento integral
e de qualidade às vítimas, com criação e ampliação de redes de apoio nos
municípios brasileiros, bem como, investir em políticas que visem a redução
das desigualdades entre homens e mulheres.
Essas medidas com o intuito de coibir a violência doméstica e
oferecer amparo às mulheres vitimadas vêm sendo tomadas ao longo do
processo histórico do nosso país. A partir de 1940, o Código Penal brasileiro
reconheceu a agressão física do companheiro contra a mulher como crime.
Nos anos 80, a ação do Estado limitou-se à proteção policial e
encaminhamento jurídico dos casos, visando a punição do agressor e
reparação à mulher agredida, foram então criadas as Delegacias de Proteção
à Mulher. Nos anos 90 surgiram as casas-abrigo, bem como novas
abordagens tanto na área da saúde como na área da assistência para o
combate da violência doméstica (BRASIL, 2003). E mais recentemente, no
ano de 2006, entrou em vigor a lei Maria da Penha, que cria mecanismos para
coibir e prevenir a violência doméstica contra a mulher (BRASIL, 2007).
Dentre os serviços de referência em apoio à mulher vítima de
violência, que compõem a rede, pode-se citar as Delegacias Especializadas
de Atendimento à Mulher (DEAMs), Instituto Médico Legal (IML), unidades de
saúde, conselhos e Organizações Não-Governamentais (ONGs), casas-
abrigo e Defensorias Públicas da Mulher (BRASIL, 2003).
No Piauí, têm-se como serviços de apoio as Casas-Abrigo, o
Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (CEDDM), o Núcleo de Defesa da
393
Mulher da Defensoria Pública, o Centro de Referência para Mulheres Vítimas
de Violência Francisca Trindade, a Diretoria de Política para as Mulheres do
Piauí, o Serviço de Atenção às Mulheres Vítimas de Violência Sexual
(SAMVVIS), o Disque Mulher, as quatro Delegacias Especializadas de
Atendimento à Mulher (DEAMs), sendo duas na capital (Centro e zona Norte)
e duas no interior do estado (Parnaíba e São Raimundo Nonato), e outros.
Nesse sentido, com base na problemática abordada, realizou-se
este estudo com o objetivo de conhecer as causas que as gestoras dos
serviços de apoio percebem como geradoras do fenômeno da violência de
gênero no espaço doméstico.
2 METODOLOGIA
O estudo desenvolvido foi do tipo descritivo de abordagem
qualitativa, realizado com 9 gestoras dos principais serviços de apoio às
mulheres vítimas de violência do Estado do Piauí, localizados na cidade de
Teresina, tendo como cenário do estudo o âmbito de atuação dos sujeitos, em
que se têm: as duas defensoras públicas do Núcleo de Defesa da Mulher
Vítima de Violência, a coordenadora do Centro de Referência para Mulheres
Vítimas de Violência Francisca Trindade, a coordenadora do Serviço de
Atenção às Mulheres Vítimas de Violência Sexual (SAMVVIS), a presidente
do Conselho Estadual de Direitos da Mulher, as duas delegadas das
Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher da cidade de Teresina, a
coordenadora da Casa-Abrigo e a diretora da Diretoria de Política para as
Mulheres.
A produção de dados se deu no período de março e abril de 2009,
cuja técnica de abordagem empregada foi a entrevista e o instrumento
utilizado foi um roteiro semi-estruturado contendo dados de identificação do
sujeito e questões abertas para responder aos objetivos do estudo.
Os dados produzidos foram organizados e tratados por meio da
técnica de análise de conteúdo e agrupados em categorias analíticas.
Por se tratar de pesquisas com o envolvimento de pessoas, foram
cumpridas as exigências da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de
Saúde (CNS). O estudo foi aprovado no Comitê de Ética e Pesquisa da
Universidade Federal do Piauí (CEP/UFPI) sob o protocolo nº
0228.0.045.000-08. No caso do SAMVVIS, foi necessária aprovação da
Comissão de Ética da maternidade onde funciona o serviço. No caso dos
demais serviços, foram enviados ofícios solicitando permissão para
realização do estudo.
Os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido. A fim de garantir o anonimato das participantes da pesquisa,
foram a elas atribuídos nomes fictícios de deusas.
3 RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os resultados compreenderam o perfil dos sujeitos e as
categorias que emergiram dos relatos das gestoras. Os sujeitos podem ser
394
definidos como um grupo eminentemente feminino constituído pelas nove
gestoras dos serviços de apoio às mulheres vítimas de violência do Estado do
Piauí. Estavam na faixa etária de 28 a 62 anos, quatro solteiras, três casadas,
uma viúva, uma divorciada e uma não informou. Quanto à
escolaridade sete possuíam curso superior e duas ensino médio e no que se
refere à atuação no serviço estavam entre 2 a 20 anos.
Dos relatos das gestoras e a partir da análise dos mesmos,
emergiram categorias analíticas com base na semelhança de conteúdo dos
discursos. Dentre as categorias destacaram-se: a violência doméstica como
resultado das relações de gênero; a violência doméstica como
disciplinamento; a multicausalidade da violência doméstica; o presenciar de
situações de violência dentro do núcleo familiar na infância; e, o silenciar das
mulheres vitimadas diante das situações de violência.
3.1 A violência doméstica como resultado das relações de gênero
A condição de ser mulher determina aspectos de vulnerabilidade
a um tipo específico de violência, a violência contra a mulher, sendo
determinada pelos modelos culturais do que é “ser homem” e do que é “ser
mulher”. Esse tipo de violência ocorre mais freqüentemente no espaço
socialmente estabelecido para as mulheres: o espaço privado, o lar.
Então, essa violência é resultado das relações de gênero, da
ordem patriarcal, que é o sistema de poder masculino e de opressão às
mulheres, conforme os relatos que se seguem:
Então essa violência surge exatamente dessa posição que foi criada do
homem ser superior [...] Essa questão do gênero, que foi criada ao longo
do tempo pelas diferenças existentes entre o homem e a mulher, acabou
por servir como justificativa para algumas formas de dominação, como na
questão da violência. (Hera)

Como é um fenômeno cultural, a causa dele está na base cultural, na


forma pela qual a sociedade é construída, no modelo patriarcal. (Ártemis)
Patriarcalismo. Nós vivemos em um mundo em que os homens ainda
acham que são donos de tudo. Então, se eu sou homem, sou casado, a
minha mulher é minha propriedade. (Atena)
Os sujeitos do estudo manifestaram que a violência contra a
mulher está intimamente relacionada ao processo histórico e cultural de
construção das relações de gênero que coloca o homem na
posição de superior à mulher, exercendo poder sobre a mesma, se sentido
até mesmo na condição de proprietário, justificando as situações de violência.
Segundo Moreira et al (2008), a violência contra a mulher resulta
da dominação masculina que produz e reproduz, via ideologia, uma relação
que transmuta diferença para desigualdade. Há uma condição geral de
subordinação cuja ordem normativa hierarquiza papéis sociais e padrões de
395
comportamento determinados.
Assim, nas relações sociais, as diferenças entre os corpos
feminino e masculino, são transformadas em desigualdades e utilizadas para
justificar e reproduzir uma relação de poder, onde os homens são os
dominantes e as mulheres as dominadas.
3.2 A violência doméstica como disciplinamento
A partir do momento em que a mulher não mais aceita as
situações impostas pelo homem, ele utiliza a violência para impor a sua
vontade, como uma forma de disciplinamento, conforme manifestado nos
discursos que se seguem:
Então quando ocorre que a mulher começa a querer se libertar dessa
situação imposta, acaba surgindo essa violência dentro de casa, onde o
homem quer impor através da violência, seja ela moral, psicológica, física,
quer impor a vontade dele dentro do ambiente doméstico. (Hera)
Na medida em que as mulheres não se enquadram nesse perfil, há uma
dificuldade nas relações sociais, é como se a mulher tivesse se rebelando
contra esse seu lugar da submissão. E a violência ela é como se fosse um
disciplinamento dessa conduta ou dessa mulher que não se enquadra
nessa conduta e nesse perfil que é esperado para ela [...] Porque a
violência doméstica é sempre nesse sentido de adequar a mulher naquela
percepção do seu papel. (Hebe)
Segundo as depoentes, a violência doméstica surge a partir do
momento em que a mulher quer se desvencilhar do perfil que lhe é
socialmente determinado e o homem não aceita, utilizando a violência como
forma de “adequar a mulher naquela percepção do seu papel”.
A violência contra a mulher é compreendida pela perspectiva de
gênero, como consequência das relações de poder entre homens e
mulheres. Então, pela ordem patriarcal, o homem se vê na condição de
proprietário da mulher e se acha no direito de exercer o poder sobre ela. A
partir do momento que o homem perde o controle e o poder sobre a mulher, a
violência apresenta-se como uma alternativa punitiva e educativa para
colocar a mulher “em seu lugar” (SAFFIOTI, 2001).
Socialmente, as relações entre homens e mulheres são
marcadas por assimetrias, em que o homem é quem detém o poder, se
sentido até mesmo na condição de proprietário da mulher, e as mulheres são
o ser da submissão, cabendo a mesma a condição de dócil, cuidadora da
casa e dos filhos. Então, quando a mulher não se enquadra nesse perfil,
nessa condição de submissa, a violência é como se fosse um disciplinamento
dessa conduta para que se enquadre nesse perfil que lhe é socialmente
atribuído.
3.3 A multicausalidade da violência doméstica
Nesta categoria analítica, as gestoras enfatizaram as diversas
causas da violência no espaço doméstico. Nas falas a seguir, fica evidenciada
396
a multicausalidade da violência na compreensão das gestoras, que assim se
expressaram:
Agora, as causas são inúmeras, num sentido mais amplo, mas existem
coisas, que, no dia-a-dia, acabam desencadeando: a questão dos
problemas financeiros, tudo isso, os problemas conjugais, então o
homem muitas vezes não consegue resolver no diálogo e, por ele se
achar superior, ele acaba querendo se utilizar da violência. (Hera)
São fatores psíquicos, fatores comportamentais, fatores sociais, fatores
financeiros, fatores da própria natureza humana, fatores impostos pela
sociedade, enfim, da própria cultura, cultura do Brasil, em que nós
estamos aqui nos referindo. (Héstia)
Héstia e Hera afirmam que a violência doméstica pode advir de
inúmeros fatores, não somente sócio-culturais, mas também pessoais,
familiares e comportamentais, problemas financeiros e conjugais do
cotidiano do casal.
Segundo Moreira et al (2008), as causas que podem
desencadear a situação de violência doméstica contra a mulher vão desde as
condições econômicas (baixa escolaridade e desemprego), aos
antecedentes familiares de violência, o machismo, que é caracterizado como
um fenômeno no qual os homens acreditam que as mulheres têm a obrigação
de servi-los e estar disponíveis para eles, até o uso de álcool e outras
substâncias ilícitas.
Sobre o uso de álcool, as gestoras assim se expressaram:
Várias... tem o alcoolismo, tem a própria situação financeira, situação
social, tudo isso eu acho que envolve. (Réia)
Eu acho que álcool e drogas não são causas isoladas, eles, associadas a
outros tipos de comportamento, de entendimento, de percepção do papel
do homem e da mulher é que pode ser, associado a essas drogas, sejam
elas lícitas ou ilícitas, agravantes do problema da violência, mas não a
causa principal. (Hera)
Muitas pessoas dizem que o álcool e as drogas são causa de violência.
Muitas pessoas que nós recebemos são casais em que o homem é
usuário de drogas, principalmente de drogas, mais de drogas do que de
álcool, mas esse não é um fator, porque nós sabemos de muitas situações
de homens que agridem, principalmente a violência psicológica, onde
eles maltratam a mulher, onde eles humilham, e eles não tem nenhum tipo
de vício, é a questão mesmo de poder, de determinar, de mostrar para
aquela mulher que quem determina é ele, que ela deve viver subordinada
a ele. Em algumas situações esse é um fator, mas em muitos casos, ele
mesmo sendo usuário de álcool, mesmo sendo usuário de drogas,
quando ele está no seu estado normal, agride da mesma forma. E essa é
uma situação, do caso de uso de álcool e drogas, que eles colocam como
forma de culpar, de pretexto: “Ah, é porque eu estava drogado”. Mas

397
quando ele está no seu estado normal, mesmo sóbrio, age da mesma
forma. (Afrodite)
Réia foi a única das gestoras que apontou o uso de álcool como
causa que motiva a violência. Para Hera o álcool, isoladamente, não deve ser
considerado como causa de violência contra a mulher, mas quando
associado a outros comportamentos e fatores, considerados causas, podem
agravar o problema da violência. Afrodite coloca que, muitas
vezes, os agressores utilizam o álcool como desculpa para justificar seu
comportamento violento, pois estes agridem, estejam sóbrios ou
alcoolizados.
Em pesquisa feita por Acosta (2003), com homens agressores, e
pela Fundação Perceu Abramo (2001), com mulheres vitimadas, o
alcoolismo, foi apontado como um dos principais desencadeadores dos atos
violentos.
Dos episódios notificados de violência doméstica, em até 92%
dos casos o uso de substâncias psicoativas está envolvido, sendo que o
álcool freqüentemente facilita a violência ao atuar como desinibidor
(ZILBERMAN; BLUME, 2005)
Dessa forma, percebe-se que o uso de álcool não pode ser
considerado a causa primária da violência contra a mulher, mas sim um fator
desencadeante da violência podendo precipitá-la ou agravá-la.
3.4 O presenciar de situações de violência dentro do núcleo familiar na
infância
Outro fator que é tido como causa de violência, na opinião das
gestoras, é a criança ter presenciado situações de violência na família,
refletindo-se nas suas relações familiares futuras. É o que as deusas
revelaram:
E ela tem um fator seríssimo, que é o fator multiplicador dessa violência,
porque, se dentro de casa, os filhos vêem essa violência, muito
provavelmente eles vão reproduzi-la fora de casa e dentro das futuras
famílias que eles vão constituir. (Hera)

As crianças que são criadas, que são educadas, nesse ambiente, vão
passar a ver essa violência com naturalidade, vão achar que isso é
normal, e, de repente, elas podem também estar repetindo isso nas vidas
delas, posteriormente. (Deméter)
Estas depoentes salientam que um fator agravante e
multiplicador da violência é a reprodução de comportamentos violentos por
filhos que conviveram em ambientes familiares onde ocorria
violência.
Moreira et al (2008) considera os antecedentes familiares de
violência como fator que influencia as situações de violência, o fato das
398
pessoas terem vivenciado situações de violência doméstica (como
testemunhas ou vítimas) na infância pode ser considerado predisponente a
reproduzir o comportamento vivido, desenvolvendo estratégias agressivas
para a solução dos conflitos existentes em suas famílias atuais.
3.5 O silenciar das mulheres vitimadas diante das situações de violência
As gestoras atentam para o calar das mulheres vitimadas diante
das situações de violência, o que contribui para que esses atos de agressão
se perpetuem, como falam Atena e Afrodite:
Elas ainda se calam uma, infelizmente, porque acham que dependem
financeiramente do companheiro, que não vão conseguir viver sem o
companheiro, outras por questão de cultura, e outras ainda por questão
de religiosidade, que ainda a gente vê muito isso, que determinadas
religiões não permitem que mulheres denunciem os maridos ou que se
separem. E tem uma outra que é a mais grave, os serviços de proteção às
mulheres ainda não atendem a contento: a mulher vitimada por uma
violência qualquer que seja ela, recorre à delegacia, mas o caso dela não
tem solução, fica lá arquivado, porque o Estado ainda não oferece os
mecanismos que viabilizem a implementação das leis que garantam a
proteção das mulheres vítimas de violência e, consequentemente, a
punição. (Atena)

Então é uma mulher que depende financeiramente do homem, ela gosta


desse homem, ama esse homem, e se sujeita a todas as situações, às
agressões que ele provoca [...]. Dois motivos que eu acho assim
principais, a dependência financeira e essa dependência mesmo
emocional, essa questão da mulher gostar daquele homem, mas querer
ele de uma forma diferente, não de uma forma que ele a agrida, mas de
uma forma que ele a trate bem, ela quer permanecer nessa relação,
contanto que ele mude aquela postura dele. (Afrodite)
Uma característica muito marcante da violência de gênero e da violência
doméstica em si, principalmente no caso da violência doméstica, é que,
muitas vezes, a mulher não quer ver o agressor punido, preso, porque é o
pai dos filhos dela, é a pessoa com quem ela convive a vinte, trinta, dez
anos, então, o que é que acontece, muitas vezes, a única coisa que a
mulher quer é que essa violência cesse. (Hera)
Conforme manifestado nos discursos, esse calar ocorre devido
às relações de gênero, questões religiosas, pouca resolutividade dos casos,
e, principalmente, dependência financeira e emocional da mulher em relação
ao homem, a mulher deseja apenas que a violência se encerre.
Garbin et al (2006) aponta algumas das causas para o silenciar e
para a passividade das mulheres frente às situações de violência e para a
permanência destas junto aos agressores.
Dentre as principais tem-se: a dependência financeira, em que a
399
mulher teme não ter condições de sustentar a si e aos filhos sem o suporte do
companheiro; a dependência emocional, por conta do sentimento de
afetividade e por temer prejudicar o agressor, a mulher se sujeita às situações
de violência; muitas vezes, tem esperança que tal violência cessará; e a
impunidade que faz com que as mulheres desistam de denunciar ou de dar
prosseguimento à ação penal.
As mulheres submetidas a atos violentos ainda silenciam diante
do problema. Isso acontece por conta do medo, vergonha, dependência
econômica e afetiva, preocupação com os filhos, falta de apoio familiar e dos
amigos, esperança de que o companheiro mude o comportamento, ausência
de apoio nas instituições de saúde e jurídicas e falta de informação sobre os
serviços de apoio.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo foi importante, pois possibilitou conhecer e refletir
sobre as causas que as gestoras consideram como geradoras da violência de
gênero no espaço doméstico, uma vez que são as atrizes que pensam e
executam as políticas e ações voltadas para as mulheres vítimas de violência.
A violência contra a mulher resulta das relações de gênero, da
ordem patriarcal relacionada ao processo histórico-cultural em que o homem
exerce o seu poder sobre a mulher. Essa violência é também resultante dos
conflitos de gênero e as gestoras destacaram várias causas,
dentre elas: problemas financeiros e conjugais; os fatores psíquicos, sociais,
culturais e comportamentais. Em seus relatos referiram a baixa escolaridade,
desemprego, uso de álcool e drogas; que a presença de atos violentos diante
dos filhos refletindo nas relações familiares futuras e outras.
Para ajudar as mulheres vitimadas a enfrentarem e a saírem
desse contexto de violência devem-se divulgar os serviços de apoio em
linguagem que as atinja, bem como, se sugere oferecer oportunidades de
formação e capacitação profissional para que alcancem sua autonomia e se
constituam sujeitos de suas vidas.
Além do que, os ciclos de violência vivenciados rotineiramente
por milhares de mulheres em todo mundo podem ser encerrados mediante a
implementação de políticas públicas, leis e programas amplos e efetivos em
todos os níveis assistenciais de apoio - saúde, jurídico, social e psicológico - e
que sejam articuladas ações entre esses níveis, assim como, a cooperação
de equipamentos de educação, sociais e de saúde. E nesse processo de
transformação social a enfermeira tem um importante compromisso ao atuar
como agente educadora em saúde devendo, portanto, integrar suas
atividades à realidade sócio-cultural e incorporar aspectos inerentes à
sociedade.
A pesquisa também trouxe contribuições importantes ao dar
maior visibilidade ao problema, colaborar nos processos de capacitação dos
profissionais, ao divulgar os serviços de apoio à mulher vítima de violência de
gênero no espaço doméstico e ao despertar o interesse para o estudo dessa
temática multidisciplinar.
400
REFERÊNCIAS

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402
O FENÔMENO DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO: a construção e efetividade
de um modelo de intervenção institucional
Lucélia Braghini; Mirian Faury
INTRODUÇÃO
O objetivo deste artigo é realizar a apresentação do Índice de
Resignificação dos Modelos Disfuncionais das Relações de Gênero, que foi
criado para verificar a efetividade do modelo de intervenção do SOS Ação
Mulher e Família. Inicialmente será feita a apresentação da pesquisa que deu
origem ao IRMDG, para depois então conhecer o instrumento mais de perto.
No Brasil, a violência nas relações de gênero tem caráter
endêmico, podendo ser tratada como uma patologia social e um problema
de saúde pública.
O SOS Ação Mulher e Família foi criado em 1980 como uma
extensão do movimento feminista, para fazer frente a este problema e tem se
mantido fiel à sua missão até o presente. São 28 anos de trabalhos voltados à
compreensão e erradicação do fenômeno da violência doméstica em
Campinas, São Paulo, tendo sido contabilizados desde o ano de 1983 até
2008 um total de 18.272 casos atendidos. Além do atendimento a mulheres e
suas famílias que se queixam de espancamentos, ameaças de morte, crimes
de natureza sexual, violência psicológica, discriminações, a instituição
desenvolve programas preventivos, estudos e pesquisas sobre a condição
feminina, relações de gênero, papéis sexuais, influindo na criação de políticas
públicas em prol de uma sociedade mais justa e igualitária.
A entidade mantém, desde 1987, Convênio de Cooperação com a
UNICAMP, sendo filiada à Federação das Entidades Assistenciais de
Campinas e contando com o apoio da Prefeitura Municipal, do Centro
Educacional Integrado e da Fundação MVB Akzente. Ao longo de sua
atuação, a ONG sempre se destacou por seu pioneirismo e originalidade
e arregimentou um rico banco de dados, além de métodos e intervenções
nascidos no diálogo direto com seu público alvo. O modelo de intervenção
SOS se funda no “Programa Essencial de Atenção à Mulher Vítima de
Violência de Gênero e seus Desdobramentos Familiares,” sendo
realizado em equipe interdisciplinar composta por integrantes das áreas
jurídica, psicológica e social. Para o desenvolvimento desse importante
serviço a ONG conta com alguns profissionais efetivos, mas a maioria é
constituída por voluntários e estagiários.
_____________________________________________________________

354
Por efetividade entende-se o “grau em que um projeto alcançou seus resultados e contribuiu à sua
finalidade” (Monitoramento e Avaliação de Projetos Sociais. Consultoria Criando, Terceiro Setor, 2008).
355
Esta pesquisa é financiada pelo CNPq.
356
Participantes da equipe de pesquisa: Carla da Silva; Rafael F. P. e Silva; Andréa T. Gomes; Cláudia
F. Oliveira; Fabiana Taioli; Lúcia H. Octaviano.
403
Por suas características e especificidades, o SOS AMF tornou-se
um importante ponto de referência no trato da violência, constando do Manual
de Recursos Sociais do município de Campinas (1989), do Catálogo de
Organizações Não-Governamentais que trabalham com prevenção às
DSTs/AIDS (Ministério da Saúde, 1994) e do Glossário do Terceiro Setor
(Fundação FEAC, 2001). O SOS é reconhecido como entidade de utilidade
pública municipal, estadual e federal, possuindo também registro no
Conselho Municipal de Assistência Social e no Conselho Municipal dos
Direitos da Criança e do Adolescente. A entidade é regida por um estatuto e
uma diretoria eleita que regulamenta o trabalho da coordenação técnica e da
equipe interdisciplinar.
O SOS Ação Mulher e Família foi também pioneiro na luta contra a
violência sexual e desempenhou importante papel na implantação dos
serviços de atendimento às vítimas de crimes desta natureza no CAISM
(Centro de Assistência Integral à Saúde da Mulher), UNICAMP. O SOS ainda
teve participação decisiva na criação e implantação da Delegacia de Defesa
da Mulher em Campinas, nos longos anos de luta para que esta reivindicação
se tornasse uma realidade, e também atuou na criação do próprio abrigo para
a mulher e seus filhos em iminente risco de vida junto à Prefeitura Municipal
de Campinas. A instituição começou a desenvolver programas na área de
saúde e sexualidade no ano de 1990, os quais foram intensificados com o
aumento da disseminação do vírus da AIDS entre mulheres, tendo no marido
ou companheiro o vetor principal da doença. Entre esses programas de ação
preventiva teve especial destaque o curso “Saber & Sabor,” financiado no ano
de 2000 pelo Instituto de Saúde Pública do México (GLAMS) e a Fundação
MacArthur e, no ano de 2001, pela UNESCO em concordância com o
Ministério da Saúde.
No final do ano de 2007 e início de 2008, dentro do programa
específico de “Prevenção à Discriminação, Assédio e Violência Sexual e
Preconceitos” que a UNICAMP está desenvolvendo, o SOS participou na
primeira etapa de capacitação de funcionários, mais especificamente as
equipes de Ouvidoria e Serviço de Vigilância da Prefeitura do Campus,
estando também presentes profissionais do Serviço de Apoio ao Estudante
(SAE).
Dentro da programação científica da ONG voltada para a
comunidade, em especial, estudantes e profissionais da área, vale salientar o
fórum intitulado “Caminhos e Desafios da Interdisciplinaridade e
Intersetorialidade no Cenário da Violência Doméstica,” realizado no ano de
2006. Mais recentemente (ano de 2008) organizou-se o colóquio: “Abrindo
Portas: Clínica Psicanalítica e Equipes Interdisciplinares Conversam sobre
Violência,” uma iniciativa do “Espaço Científico.”
O Espaço Científico foi organizado a partir do ano de 2006 pensando em
404
dar visibilidade e propiciar espaços de discussão interdisciplinar voltados
para estudos e pesquisas realizados internamente na ONG. Pode-se citar
alguns temas, tais como: “Relações conjugais patológicas: o processo de
construção de vínculos destrutivos;” “Lei Maria da Penha: impacto jurídico
e psicossocial no atendimento às mulheres vítimas de violência
doméstica;” “SUAS: um divisor de águas na área do Serviço Social com
novas perspectivas de atuação interdisciplinar.

A instituição também é freqüentemente solicitada para


entrevistas e ações de divulgação junto à mídia. A última matéria a respeito do
trabalho da ONG foi publicada no Jornal Correio Popular – Projeto Cidadão –
e teve como título: “SOS contra a violência doméstica,” no dia 09 de julho de
2008. No presente momento a TV UNICAMP e o SBT estão veiculando
chamadas sobre o SOS.
OBJETIVO GERAL DA PESQUISA
Contribuir para abordagens de enfrentamento ao fenômeno da
violência de gênero através do rastreamento da construção do modelo de
intervenção do SOS Ação Mulher e Família, culminando na verificação de sua
efetividade no momento atual.
Objetivos Específicos
 Fazer uma retrospectiva histórica sobre a fundação e os diferentes
momentos evolutivos do SOS Ação Mulher e Família, observando
sua composição e formas de organização ao longo do tempo;
 Realizar o rastreamento do modelo de intervenção do SOS Ação
Mulher e Família, demarcando cada etapa e relacionando aos
diferentes momentos de sua história até chegar ao modelo atual;
 Verificar a efetividade do atual modelo de intervenção através de
controle rigoroso de sua aplicação;
 Observar em que medida a queixa de violência trazida
inicialmente pela usuária foi resolvida ou minimizada, o que será
medido através do “índice de resignificação dos modelos
disfuncionais das relações de gênero” (IRMDG).
METODOLOGIA
Ao mesmo tempo em que a pesquisa envolve um estudo de
caso, que tem como objeto uma instituição e o modelo que utiliza, também é
realizado um estudo epidemiológico, considerando a violência de gênero
como um problema de saúde pública de caráter endêmico, tratando-se,
portanto, de um estudo quali-quantitativo. A pesquisa culmina na construção
de um índice e na verificação da efetividade de um modelo de intervenção.
A construção do Índice de Resignificação dos Modelos
405
Disfuncionais das Relações de Gênero foi feita com base no Índice de
Desenvolvimento da Família, uma adaptação da Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílio (PNAD). O IDF varia entre 0 a 1 ponto. É composto por 6
dimensões, 26 componentes e 48 indicadores. Cada indicador possui
respostas positivas (sim = 1 ponto) ou negativas (não = 0 ponto). Cada
resposta sim equivale a 1 ponto e cada resposta não equivale a 0 pontos. Para
cada componente é apresentado uma fórmula para se obter um sub-índice
deste mesmo componente. Assim:
 Sub-índice de um componente = (1 dividido pelo número de
indicadores do componente) x (soma dos pontos obtidos nos
indicadores (sim = 1 e não = 0).
 Sub-índice da dimensão = (1 dividido pelo número de componentes
da dimensão) x (soma dos sub-índices dos componentes da
dimensão).
 Índice (IDF) = (1 dividido por 6 (dimensões) x (soma dos 6 sub-índices
das dimensões).
Pensando no IRMDG, seria usada a mesma metodologia, construindo-se
novos conteúdos para as dimensões, componentes e indicadores. Uma
pequena alteração seria quanto à pontuação 1 ou zero. Neste caso,
entendeu-se como mais adequado, dada a formulação e o sentido das
perguntas (indicadores), atribuir a pontuação 1 para respostas que
indicam saúde e 0 para as respostas que indicam doença. Assim, em se
tratando do IRMDG, um sim nem sempre é igual a um, e um não nem
sempre é igual a zero.

Procedimento para coleta de dados


Etapa 1) Para a retrospectiva histórica utilizar:
1.1) Consulta de documentos, artigos de jornais e revistas, relatos
históricos, depoimentos.
Etapa 2) Para o rastreamento do desenvolvimento do modelo de
intervenção utilizar:
2.1) Consulta às fichas de anos anteriores: catalogar todos os casos que
procuraram a instituição desde o ano de 1980 (ano da fundação) até 2008,
correlacionando a queixa, o atendimento oferecido e os resultados obtidos.
Etapa 3) Para a verificação da efetividade do atual modelo utilizar:
3.1) População: todas as mulheres (e homens) acima de 18 anos
(inclusive) que procurarem a instituição apresentando queixa de violência de
gênero no ano de 2009.
3.2) Amostra: 30% da população acima especificada (150 mulheres
406
aproximadamente).
3.3) Aplicação do modelo atual:
Acompanhar a aplicação do atual modelo de intervenção SOS intitulado
“Programa Essencial de Atenção à Mulher Vítima de Violência de Gênero e
seus Desdobramentos Familiares” no ano de 2009 e realizar a seleção da
amostra - os primeiros 150 casos de mulheres / homens que permanecerem
no programa tendo apresentado: queixa de violência física, psicológica ou
sexual nas suas relações com o (a) parceiro (a) - iniciando com a assinatura
do Termo de Consentimento;
Realizar o monitoramento concomitante, utilizando-se da ficha
individual e do formulário geral de acompanhamento da evolução de casos,
efetuando inclusive o follow up dos casos que se evadiram e daqueles que
solucionaram seu problema e não estão mais no programa;
Elaborar e aplicar na conclusão de cada caso, o “Índice de
Resignificação dos Modelos Disfuncionais das Relações de Gênero;”
Na finalização do trabalho, coletar depoimentos de 30 usuárias
focando a questão da resolução da queixa (estes depoimentos serão
gravados).
Procedimento de análise:
Etapa I (Retrospectiva histórica): Análise de documentos através
de uma hermenêutica – arte de interpretar textos.
Etapa II (Rastreamento do desenvolvimento do modelo de
intervenção): Será realizada a análise da ficha de admissão, utilizando-se
da estatística descritiva, relacionando sempre a queixa, o atendimento
oferecido e o resultado obtido.
Etapa III (Verificação da efetividade do atual modelo):
1) Utilizar-se-á a estatística descritiva para tratar os dados obtidos na ficha
de admissão e nos formulários de acompanhamento da evolução dos
casos.
2) Efetuar os devidos cálculos para chegar ao resultado final do IRMDG.
3) Transcrever e registrar os depoimentos com ênfase nos resultados
_____________________________________________________________

357
Consultoria Criando, Terceiro Setor. Monitoramento e Avaliação de Projetos Sociais. São Paulo,
2008.
358
Por dimensão entende-se o número mínimo de elementos variáveis necessários para a descrição
analítica de um conjunto. Um componente é o elemento que entra na composição de uma dimensão.
Indicadores são os dados / sinais que melhor expressam cada componente (Consultoria Criando, 2008).

407
obtidos.
 Para medir o impacto da intervenção, nos primeiros seis meses do
ano de 2010 será feita uma sondagem junto à rede de apoio da
usuária e à Rede de Apoio do município, observando se houve
mudanças adaptativas duradouras na conduta e na vida da usuária.
RESULTADOS ESPERADOS
 Resignificação dos modelos disfuncionais das relações de gênero e
da dinâmica familiar, através de sinais que evidenciem a interrupção
do ciclo da violência (ou um movimento nesse sentido) e a
incorporação do modelo da comunicação não violenta (resultado de
efeito);
 Garantir a cidadania das mulheres e do grupo familiar (resultado de
impacto);
 Fortalecimento e preservação dos vínculos pessoais, familiares e
comunitários (resultado de impacto);
 Proteção e prevenção com relação aos casos de violação de direitos
(resultado de efeito).
ÍNDICE DE RESIGNIFICAÇÃO DOS MODELOS DISFUNCIONAIS DAS
RELAÇÕES DE GÊNERO
A elaboração do IRMDG foi feita com base em alguns
pressupostos:
1- A violência nas relações de gênero reflete não só uma patologia social,
como também pode ser considerada uma manifestação de doença e um
sintoma de uma patologia do vínculo, condicionada por variáveis da
esfera intrapsíquica (uma frágil estrutura egóica), que predispõem uma maior
vulnerabilidade à influência e aos mandatos do contexto sociocultural.
Portanto, uma usuária que procura a instituição com uma queixa de
violência do parceiro, fala de um modelo disfuncional de relacionamento,
que traz desordens e conseqüências desastrosas não só à sua relação
com o parceiro e a si mesma, como também a seus filhos que sofrem o
reflexo direto da desorganização do casal parental.
2- A resignificação dos modelos disfuncionais das relações de gênero ocorre
quando é possível agregar saúde ao vínculo, isto é, ambas as partes se
sentem gratificadas na relação com o parceiro, tendo resolvido
satisfatoriamente seus conflitos e satisfeito suas necessidades básicas.
_____________________________________________________________

359
Por violência de gênero entende-se toda ação ou omissão que prejudique o bem-estar, a integridade
física, psicológica ou a liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento do outro. Entenda-se como “outro,” o
parceiro(a) com quem são exercidas relações afetivo-sexuais, de caráter hetero ou homossexual
(Ministério da Saúde, Cadernos de Atenção Básica, nº 8).

408
O que se pretende com o IRMDG é justamente “medir” o quanto de saúde
foi agregado à relação e à própria usuária em seu funcionamento
intrapsíquico. No caso de apenas uma das partes avançar e apresentar
mudanças, a separação é entendida como um sinal de saúde.
O índice foi construído tomando por base 8 dimensões
intrinsecamente relacionadas à questão da violência de gênero:
1) Nível de informação sobre os direitos;
2) Forma de resolução de conflito;
3) Potencial de defesa;
4) Desenvolvimento de rede de proteção;
5) Reasseguramento do empoderamento pessoal;
6) Alteração na qualidade do vínculo;
7) Nível de fortalecimento interno;
8) Rompimento do pacto com a doença.
Far-se-á abaixo um comentário sobre cada uma delas.
1) Nível de informação sobre os direitos
Considera-se que ter a informação sobre seus direitos é uma
condição básica para que a mulher possa pedir ajuda. E esses direitos partem
da consciência de sua condição como cidadã até chegar à clareza do que
fazer no caso de ter sofrido violência do parceiro. Assim, o nível de informação
sobre os direitos possui os seguintes componentes, que vão se afunilando
para conhecimentos mais específicos:
1.1) Presença de noções mínimas de cidadania.
Antes de se ver como mulher, a usuária precisa saber que é uma
cidadã e que, enquanto tal é possuidora de direitos e deveres, o
que é investigado através dos indicadores abaixo:
- Seu documento de identidade (RG), mesmo que seja cópia
do original, é sempre levado com você?
(S = 1; N = 0)
- Você sabe que em qualquer situação que você viva no dia a dia,
além de obrigações, você possui garantias e direitos?
(S = 1; N = 0)
- Quando você tem algum problema envolvendo seus direitos, você
se informa com qualquer pessoa, mesmo que não seja uma
409
advogada?
- Você acredita que seu voto ajuda a mudar a sociedade?
(S = 1; N = 0)
1.2) Nível de conhecimento sobre o conceito de violência.
É necessário investigar se a usuária reconhece e identifica a
situação que está vivendo como sendo de violência, pois devido à
banalização da mesma no meio em que vive, à distorção de valores e à
ação de alguns mecanismos de defesa do ego (negação, redução da
dissonância cognitiva), isto nem sempre acontece. Assim, foram
elaborados os indicadores abaixo:
- Você entende como situação de violência....
- uma pessoa ser impedida de sair de casa quando quiser?
(S = 1; N = 0)
- uma pessoa ser impedida de se vestir como quiser?
(S = 1; N = 0)
- uma pessoa passar fome por não ter o que comer?
(S = 1; N = 0)
- uma pessoa doente não ser socorrida?
(S = 1; N = 0)
- uma mulher ser atingida pelo marido com empurrões, socos,
pontapés?
(S = 1; N = 0)
1.3) Presença de noções mínimas sobre os direitos da mulher.
Muitas vezes, uma mulher não tem qualquer noção sobre seus
direitos, ignora que violência contra a mulher é crime, assim como
desconhece a importância de se lavrar um Boletim de Ocorrência. Assim,
pergunta-se à usuária:
- Você sabe que violência contra a mulher é crime?
(S = 1; N = 0)
- Você sabe que neste caso deveria procurar a Delegacia de
Defesa da Mulher para fazer uma queixa?
(S = 1; N = 0)
- Você sabe para que serve um Boletim de Ocorrência?
410
(S = 1; N = 0)
- Você sabe que após fazer um Boletim de Ocorrência, você
deve representar o agressor em seis meses, pois esta é a
única forma para que responda criminalmente sobre o que
fez? (S = 1; N = 0)
1.4) Conhecimento da Lei Maria da Penha
A Lei Maria da Penha é uma conquista relativamente recente
que mudou radicalmente o cenário dos recursos da lei para a proteção da
mulher vítima de violência de gênero. É importante saber se a usuária
possui informação sobre o assunto, o que pode ser feito através dos
seguintes indicadores:
- Você já ouviu falar na Lei Maria da Penha? (S = 1; N = 0)
- Você sabe para que serve esta Lei (em que situação é aplicada)?
(S = 1; N = 0)
- Você sabe que por esta Lei pode ser pedida a medida protetiva, e
assim o Juiz pode ordenar que o agressor mantenha distância
da mulher agredida?
(S = 1; N = 0)
2) Forma de resolução de conflito
A forma de resolução de conflito é um importante termômetro que indica o
grau de saúde que predomina na relação. Assim, os componentes abaixo
apontam várias possibilidades de reação que se podem observar na
mulher que sofre violência, mas que nem sempre resolvem de maneira
saudável o conflito

2.1) A usuária fica paralisada (permanece na situação inicial)


Indica desde uma simples acomodação, a falta de confiança
em si mesma, a falta de perspectivas até um grau mais avançado de uma
patologia que pode ser o desamparo adquirido ou uma depressão grave. O
indicador abaixo aponta para algumas pistas a esse respeito:
- Nos últimos seis meses, diante de um problema com seu
parceiro, muitas vezes você tem estado paralisada e
desanimada, sem saber o que fazer?
(S = 0; N = 1)
2.2) A usuária se omite e deixa que o parceiro resolva.
Este componente reflete a falta de confiança em si e a
imaturidade psicológica por parte da usuária, o que corrobora e fortalece
sua dependência do parceiro:
411
- Nos últimos seis meses, diante de um problema com seu parceiro,
você espera que ele resolva e faça o que quer, mesmo que não
seja de sua vontade?
(S = 0; N = 1)
2.3) Uso do diálogo e da negociação.
Esta seria a saída mais adaptativa do ponto de vista da saúde do
vínculo, refletindo um bom nível de auto-confiança e segurança interna
por parte da usuária:
- Nos últimos seis meses, diante de um problema com seu
parceiro, você tenta dialogar e “negociar” o seu ponto de vista?
(S = 1; N = 0)
- Nos últimos seis meses, diante de um problema com seu
parceiro, vocês acabam se ofendendo e xingando um ao outro?
(S = 0; N = 1)
- 2.4) Utilização da força física.
Quando falham outros mecanismos menos coercitivos de
controle, apela-se para um método mais primitivo de domínio sobre o
outro, reprimindo desta forma o conflito. Isto pode ser observado através
dos seguintes indicadores:
- Nos últimos seis meses, quando há algum problema entre você e
seu parceiro, vocês acabam discutindo e até mesmo “se
pegando?” (S = 0; N = 1)
- Nos últimos seis meses, você tem apanhado de seu parceiro?
(S = 0; N = 1)
2.5) Utilização do papel de vítima para obtenção de ganhos secundários:
É comum as mulheres utilizarem-se da situação desfavorável
em que estão, e que vivenciam a partir do papel de vítima, para a
obtenção de ganhos secundários, seja na relação ou fora dela. Para
investigar isto, tem-se os seguintes indicadores:
- Nos últimos seis meses, você tenta conseguir algum tipo de ganho
usando a situação em que se encontra? (S = 0; N = 1)
- Você costuma “falar mal” de seu marido para as pessoas que
conhece, de forma que elas tenham pena de você? (S = 0; N = 1)
- Nos últimos seis meses você percebeu que algumas atitudes suas
possam ter contribuído de alguma forma para o problema que a
trouxe aqui?
412
(S = 1; N = 0)
3) Potencial de defesa
O potencial de defesa é uma dimensão importante, pois indica o grau de
vitimização da mulher que sofre violência. Pesquisa se a mesma tem
internalizado os recursos internos para auto-defesa, e se é capaz de
identificar situações de risco e agir de maneira coerente com isto. Os
componentes abaixo contêm as várias possibilidades desta dimensão,
que por sua vez estão contidos nos seguintes indicadores

3.1) Iniciativa imediata para buscar informações e ajuda


Investiga se, no momento em que a mulher sofre violência, ela
é capaz de agir em busca de sua segurança e proteção:
- Ao sofrer violência, você se cala diante da situação? (S = 0; N = 1)
- Ao sofrer violência, você conta o que aconteceu a seus
familiares ou amigos? (S = 1; N = 0)
- Ao sofrer violência, você já procurou a Delegacia de Mulheres ou
outra delegacia para fazer uma queixa? (S = 1; N = 0)
- Ao sofrer agressões físicas, verbais ou tentativa de assassinato,
você já discou 190 para chamar a polícia? (S = 1; N = 0)
- Em situação de risco de vida, você pede ajuda? (S = 1; N = 0)
- Ao se sentir vitimizada, você busca informações sobre seus
direitos?
(S = 1; N = 0)
3.2) Capacidade de perceber situações de risco
Investiga se a mulher consegue discriminar se a situação que
está vivendo se constitui em ameaça e perigo à sua integridade física
explícita ou subrepticiamente, e se paralelo a isto, é capaz de tomar as
medidas para se proteger.
- Você sai de casa ao ser ameaçada de morte? (S = 1; N = 0)
- Numa situação em que esteja fora de casa, tendo sofrido
ameaça de morte e/ou tentativa de assassinato, você volta à
casa para pegar suas coisas?
(S = 0; N = 1)
- Em uma discussão com seu marido, você continua discutindo ou
fala coisas que ele não gosta, mesmo que ele esteja alcoolizado
ou nervoso?
413
(S = 0; N = 1)
- Quando seu parceiro lhe faz uma ameaça de morte ou tenta matá-
la você ignora o fato e continua agindo como se nada tivesse
acontecido?
(S = 0; N = 1)
3.3) Busca ativa de uma solução efetiva para o seu problema.
A solução do problema da violência de gênero não termina nas
medidas imediatas de auto-proteção, sendo necessário que a pessoa
vitimizada empreenda uma busca ativa de uma solução para o seu
problema, que em geral, se processa a longo prazo. Assim, os seguintes
indicadores devem ser levados em conta:
- Você faz (ou já fez) psicoterapia? (S = 1; N = 0)
- Você procura se informar e conversar com outras pessoas que
sofrem o mesmo problema? (S = 1; N = 0)
- Você se empenha em comparecer à consulta com a advogada e
providenciar os documentos solicitados (se for o caso)?
(S = 1; N = 0)
- Você procura o seu médico sempre que precisa? (S = 1; N = 0)
3.4) Nível de assertividade nas respostas com o parceiro.
A assertividade nas respostas com o parceiro é essencial para
a saúde da relação e indica em que medida a mulher tem clareza de sua
identidade e suas fronteiras psicológicas, sendo capaz de devolver o que lhe
está sendo indevidamente imputado, não introjetando assim, elementos
estranhos ao seu ego. Evidentemente que, a auto-estima seria um elemento
facilitador nesse processo.
- Quando o seu parceiro tenta lhe culpar sobre tudo o que acontece,
você acaba se sentindo culpada? (S = 0; N = 1)
- Você consegue dizer “não” sem se sentir culpada? (S = 1; N = 0)
- Você consegue rebater quando seu companheiro a
responsabiliza por algo que considera injusto? (S = 1; N = 0)
- Na relação com o parceiro, você acha importante conhecer a
si mesma?
(S = 1; N = 0)
4) Desenvolvimento de rede de proteção
A rede de proteção consiste em valioso recurso externo que a mulher
414
dispõe em situação de violência e pode ser considerado um indicativo de
saúde mental. O isolamento e um quadro de “portas fechadas” somente
contribuem para a manutenção da usuária em situações de violência,
portanto, corrobora a patologia do vínculo.

4.1) Desenvolvimento e manutenção de relacionamentos sociais


É necessário verificar se, ter se submetido ao modelo de
intervenção do SOS Ação Mulher e Família, em alguma medida contribuiu
para que a usuária ampliasse seu leque de relacionamentos sociais e
adquirisse mais confiança na relação com o outro. Assim, foram elencados os
indicadores abaixo:
- Você tem amigos? (S = 1; N = 0)
- Você fez novos amigos nos locais que freqüenta nos últimos seis
meses?
(S = 1; N = 0)
- Você se aproximou mais de seus amigos e pessoas que conhece
nos últimos seis meses? (S = 1; N = 0)
- Você conversa sobre a situação de violência vivida com seus
amigos e/ou vizinhos? (S = 1; N = 0)
4.2) Fortalecimento de vínculos familiares.
Investiga se a usuária possui pessoas próximas da família com
quem pode contar, e mais do que isso, se ela fortaleceu os laços com esses
familiares após ter passado pelo programa, e ainda, se a mesma reconhece
esses familiares como uma alternativa segura a quem possa pedir ajuda.
Assim:
- Você tem familiares que residam perto de você? (S = 1; N = 0)
- Você visita seus familiares com freqüência? (S = 1; N = 0)
- Você confia em seus familiares para te ajudar? (S = 1; N = 0)
4.3) Conhecimento e utilização da rede de apoio do município.
Investiga se a usuária sabe que existe, e se ela efetivamente
conta com os recursos de proteção e ajuda provenientes das políticas do
município. Assim, os indicadores abaixo:
- Você se utiliza dos serviços do Posto de Saúde do seu bairro?
(S = 1; N = 0)
- No seu bairro você já procurou ajuda em entidades e/ou
instituições?
415
(S = 1; N = 0)
- Você já ouviu falar ou conhece a Delegacia da Mulher?
(S = 1; N = 0)
- Você já buscou ajuda na DDM, CEAMO, CRAS ou qualquer outra
instituição? (S = 1; N = 0)
4.4) Manifestações de solidariedade.
Entende-se que nas relações sociais, a solidariedade é um importante
exercício e faz parte do ato de dar e receber (dificilmente se consegue
receber e vislumbrar uma fonte de ajuda, se não se consegue dar).
Assim, o indicador abaixo:

- Você já ajudou alguém em situação difícil (ou vice-versa)?


(S = 1; N = 0)
5) Reasseguramento do empoderamento pessoal.
Em um vínculo patológico onde a mulher sofre violência, em geral ela
costuma delegar o seu poder pessoal – atributo que lhe faculta a
capacidade de responder sobre si mesma e controlar as situações
adversas de sua própria vida – para o parceiro, sendo este quem toma as
decisões sobre sua vida. Assim, o empoderamento da mulher, onde a
mesma se reapropria de algo que lhe pertencia, é uma meta importante,
tendo em vista a saúde do vínculo.

5.1) Capacidade de tomar decisões.


A capacidade de tomar decisões reflete o nível de
empoderamento da mulher. Uma mulher ainda muito fragilizada não
consegue tomar decisões, fica dividida entre sentimentos confusos e
contraditórios e acaba delegando esta difícil tarefa para o parceiro.
Principalmente porque tomar decisões implica em assumir responsabilidade
sobre seus atos e as conseqüências desses atos, e a mulher que sofre
violência em geral está num estado de “menoridade” emocional e necessita
viver sob a tutela de outro. Assim, os indicadores abaixo:
- Em momentos difíceis, em que se faz necessário tomar uma
decisão, você consegue decidir por si mesma? (S = 1; N = 0)
- Em momentos difíceis, em que se faz necessário tomar uma
decisão, você prefere que seu parceiro tome a decisão por você?
(S = 0; N = 1)
- Você tem medo de decidir e depois não conseguir arcar com as
conseqüências? (S = 0; N = 1)
416
5.2 ) Nível de independência do parceiro. (S = 0; N = 1)
A independência do parceiro reflete o empoderamento da mulher, assim
quanto mais empoderada, mais independente ela é, seja em termos
financeiros, quanto emocionais e afetivos.

- Você é independente financeiramente do seu parceiro?


(S = 1; N = 0)
- Se não é, tem se empenhado na busca de um emprego ou de um
meio de geração de renda? (S = 1; N = 0)
- Você necessita da aprovação do seu parceiro para as coisas que
vai fazer?
(S = 0; N = 1)
- Para você é tão importante sentir-se protegida, mesmo que isto
custe “colocar sua vida nas mãos do outro”? (S = 0; N = 1)
5.3 ) Capacidade de levar adiante suas decisões
A pessoa de posse de seu poder pessoal tem energia e força para levar
adiante suas decisões, é capaz de traçar metas e perseguir seus objetivos,
mesmo que não possa contar com a aprovação do parceiro ou de
terceiros.
- Você consegue manter sua decisão, mesmo que seu parceiro
discorde ou não aprove o que você quer fazer? (S = 1; N = 0)
- Você freqüentemente muda suas decisões quando percebe que
dá muito trabalho/esforço levá-las adiante? (S = 0; N = 1)
5.4 ) Nível de consecução de seus objetivos
Quem está de posse de seu poder pessoal, em geral, tem mais
energia e força para lutar por seus objetivos e consegue perseverar apesar
dos obstáculos e adversidades. O nível de consecução de seus objetivos
talvez seja a maior demonstração do empoderamento da mulher. Assim:
- Você consegue realizar as coisas a que se propõe? (S = 1; N = 0)
- Quando você deseja alguma coisa, você espera que o seu
parceiro lute por isto em seu lugar? (S = 0; N = 1)
6) Alteração na qualidade do vínculo.
Quanto mais doentia é a relação, mais simbiótica, pois existe
uma tendência regressiva, de eternizar o estado fusional com a mãe. A
possibilidade de sobreviver sem estar fundido ao outro, e viver a partir de uma
distância ideal, é o grande desafio que inaugura a possibilidade da separação
momentânea como algo saudável.
417
6.1) Capacidade de discriminação “Eu-Outro.”
A fusão é o germe do Encontro, experiência máxima da
espécie humana, relação entre seres completos e equilibrados, capazes de
discriminação entre Eu e Tu, disponíveis para a entrega recíproca e
intencional. O ser humano vive em conflito entre o desejo de afirmação de sua
individualidade e o desejo de fusão e favorece ora um aspecto, ora outro
(Echenique & Fassa, 1992, p. 59). Assim, os indicadores abaixo:
- Você consegue sentir-se confortável ao saber que você e seu
parceiro são duas pessoas diferentes, que funcionam de
maneira diferente e têm diferentes formas de encarar a vida?
(S = 1; N = 0)
- Você fica muito chateada quando seu parceiro não atende suas
expectativas? (S = 0; N = 1)
- Você se sente insegura quando pensa em se separar?
(S = 0; N = 1)
- Você tem medo de ficar sozinha? (S = 0; N = 1)
6.2) Diminuição da idealização do(a) parceiro(a).
Em geral, quanto menor o tamanho do ego e a percepção de
sua individualidade, maiores os sentimentos de inferioridade e mais
dependente é a pessoa. Condições estas, que criam a situação favorável
para a idealização do parceiro em detrimento da espoliação do ego. Assim, os
indicadores abaixo:
- Você se sente inferior diante de seu parceiro? (S = 0; N = 1)
- Você tem medo de seu parceiro? (S = 0; N = 1)
- Você consegue ir contra a opinião de seu parceiro? (S = 1; N = 0)
- Você acredita que seu parceiro está sempre certo? (S = 0; N = 1)
6.3) Distanciamento da fusão na relação a dois, acompanhado da
crescente busca da individualidade.
Segundo Echenique & Fassa (1992), a procura e a afirmação
da individualidade é condição básica do ser, mas, paradoxalmente, o ser só é
“com outro,” portanto fruto de momentos fusionais, e a afirmação da
individualidade motiva o medo de perder a fusão para sempre. Isto gera uma
certa confusão associada a sentimentos de ambigüidade, que dificultam sair
do estado de fusão em busca da individualidade. Assim, os indicadores
abaixo:
- Você e seu parceiro agem como se fossem uma só pessoa?
418
(S = 0; N = 1)
- No caso de você e seu parceiro terem diferentes pontos de vista e
de serem infelizes juntos, ainda assim não conseguem se
separar? (S = 0; N = 1)
- Você acha importante “ser você mesma” na relação? (S = 1; N = 0)
7) Nível de fortalecimento interno.
Quanto mais forte psicologicamente a mulher estiver se
sentindo, mais fácil será para ela “tomar uma atitude” (se posicionar), sair da
situação de violência, e portanto, caminhar em direção à saúde. Uma mulher
que não esteja se sentindo fortalecida, não tem confiança em si mesma,
portanto, não é capaz de sair da situação de violência, sucumbindo ao seu
próprio medo.

7.1) Elevação da auto-estima.


O nível de fortalecimento interno está diretamente relacionado
à elevação da auto-estima e vice-versa, o que pode ser observado através do
seguintes indicadores:
- Você tem cuidado de sua saúde? (S = 1; N = 0)
- Você nota suas boas qualidades? (S = 1; N = 0)
- Você conquistou algo que lhe tenha sido significativo nos últimos
seis meses? (S = 1; N = 0)
- Você se sente bonita? (S = 1; N = 0)
7.2) Superação da condição de desamparo.
Estar fortalecida internamente (psicologicamente) possibilita a
superação da condição de desamparo, onde a mulher sente que “não há
nada que se possa fazer.” Na condição de superação a mulher “descobre
que pode,” isto é, ela se sente prenhe de alternativas de resposta e está
pronta para sair em busca da solução para o seu problema.
- Você está se sentindo mais forte? (S = 1; N = 0)
- Você sente que está em suas mãos mudar o rumo de sua vida? (S
= 1; N = 0)
- Você acha que pode fazer isso? (S = 1; N = 0)
7.3) Nível de segurança interna.
A segurança interna é um elemento de fundamental
importância para que a usuária tenha clareza do que deseja e possa agir
419
sem titubear diante de uma situação de risco. A mulher, quando se sente
insegura, não consegue tomar decisões e se apóia muito no parceiro. E
sente que, tudo que é expressão de si mesma é insignificante e
desprezível.
- Você está se sentindo mais segura para tomar decisões?
(S = 1; N = 0)
- Você ainda se apóia no parceiro? (S = 0; N = 1)
- Você necessita da aprovação do parceiro para tudo o que vai
fazer?
(S = 0; N = 1)
- Você sente vergonha de relatar seu problema para outra
pessoa?
(S = 0; N = 1)
7.4) Nível de auto-confiança.
A auto-confiança é um ingrediente importante,
intrinsecamente ligado à auto-estima, constituindo ambas componentes
essenciais da base que fornece sustentação à mulher para que esta
possa agir.
- Você acha que pode se realizar na vida? (S = 1; N = 0)
- Você acredita que é capaz? (S = 1; N = 0)
- A opinião do outro a seu respeito te incomoda? (S = 0; N = 1)
8) Rompimento do pacto com a doença.
O rompimento do pacto com a doença é a prova definitiva de
saúde e a interrupção da complementaridade do vínculo patológico. Aliado a
isto a busca de formas mais saudáveis de gratificação fecha o quadro.
8.1) Quebra da complementaridade patológica na relação com o parceiro.
Na relação com o parceiro existe a complementaridade
saudável (um busca no outro aquilo que falta em si, de forma que cada uma
das partes possa se sentir mais inteira), e a complementaridade patológica
(um complementa no outro aspectos neuróticos da personalidade de cada
um).
- Na relação com o parceiro, diante de velhos problemas você
agora consegue tomar uma atitude diferente, de forma que ele
reclama e sente falta daquela “antiga mulher”? (S = 1; N = 0)
- Você consegue deixar o seu parceiro “falando sozinho” quando
420
percebe que ele pretende arrumar uma briga? (S = 1; N = 0)
- Você deixou de ter problemas de saúde, tais como pressão alta,
palpitações, dores pelo corpo, tontura, insônia e outros, por conta dos
antigos aborrecimentos na relação? (Não engole mais “sapos”) (S
= 1; N = 0)
- Para você a situação de voltar para casa e continuar apanhando
deixou de acontecer? (S = 1; N = 0)
8.2) Busca de formas mais saudáveis de gratificação.
Na medida em que uma pessoa consegue sair de uma relação
neurótica, espera-se que a mesma busque então formas mais saudáveis
de gratificação e prazer, e que a satisfação de suas necessidades passe
pela via do seu crescimento psicológico.
Assim:
- Você sabe o que é bom para você? (S = 1; N = 0)
- Você sente pena de si mesma? (S = 0; N = 1)
- Você sente pena de seu parceiro? (S = 0; N = 1)
- Você hoje consegue fazer aquilo que, de fato, te faz feliz?
(S = 1; N = 0)
RESULTADOS OBTIDOS
Como a pesquisa ainda está em andamento só se poderá
apresentar aqui os resultados obtidos na pesquisa piloto realizada junto a 3
usuárias, onde, tendo sido aplicada a fórmula apresentada na metodologia
para obtenção do Índice de Resignificação dos Modelos Disfuncionais das
Relações de Gênero, chegou-se aos seguintes resultados:
Resultado final
IRMDG = 1/8 soma dos sub-índices das dimensões
Maria: 1/8 4,13 = 0,52
Sílvia: 1/8 7,19 = 0,90
Joana: 1/8 6,44 = 0,80
Observe-se que o índice varia num continum de 0 a 1, sendo 0
(zero), o limite máximo da doença e 1 (um), o limite máximo da saúde.
Assim, Sílvia é a que mais se aproxima do nível 1 e Maria, a que mais se
aproxima do nível 0. O índice permite uma clara visualização do
funcionamento da usuária na relação com o parceiro frente a situações de
421
violência e indica seus pontos fortes e fracos. Em se tratando da efetividade
do modelo de intervenção são aceitáveis resultados acima de 0,6
(inclusive).
Concluindo, o instrumento parece atender aos objetivos
propostos.

422
REFERÊNCIAS

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Lúcia. et al. (orgs). Uno e o múltiplo nas relações entre as áreas do saber.
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OLIVEIRA, Maria Cristina. As múltiplas “faces” da negligência nas


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Dissertação de mestrado em Serviço Social. Pontifícia Universidade Católica
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PAVEZ, Graziela Acquaviva; OLIVEIRA, Isaura Isoldi de Melo Castanho e.


Vidas Nuas, Mortes Banais: nova pauta de trabalho para assistentes
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SLUZKI, C. Violência familiar e violência política: implicações terapêuticas de


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STOLCKE, V. Sexo está para gênero assim como raça para etnicidade?
Estudos afro-asiáticos, v. 20, p.101-117, 1991.
423
VIOLÊNCIA DE GÊNERO E POLÍTICAS PÚBLICAS
Michele Ribeiro de Oliveira
Renata Lígia Rufino Neves de Souza

Fenômeno social antigo a violência contra a mulher, expressa a


discriminação e preconceito, que ocorre no mundo inteiro, manifestando-se
sob diversas facetas, comprometendo o desenvolvimento humano, expresso
por violação de direitos.
A violência contra a mulher veio à tona a partir do Movimento
Feminista na década de 70 (século XX), no cenário internacional e nacional,
que contribui para a denúncia desse fenômeno que se apresenta antigo na
humanidade, arraigado na formação e hierarquia das relações entre homens
e mulheres. Esse Movimento contribuiu para visibilidade das diversas
manifestações de violência que eram (e ainda são) perpetradas contra as
mulheres, ocorridas no espaço público e doméstico, com enfoque para a
manifestação doméstica.
Assim, o presente trabalho debate sobre a temática da violência de
gênero, na forma da violência doméstica, analisando o avanço de direitos
alcançados pela mulher e os desafios das políticas públicas quanto à
efetivação desses direitos, no tocante ao enfrentamento da violência de
gênero no município de João Pessoa/PB.
1. DISCUTINDO O CONCEITO DE GÊNERO E VIOLÊNCIA DE
GÊNERO
O conceito de gênero pode ser compreendido como é estabelecido à
relação homem e mulher na sociedade, fenômeno este, construído, pela
tradição cultural e pelas estruturas de poder, configurando a desigualdade
nas relações sociais.
A partir da década de 1970, a categoria gênero foi incorporada ao
discurso do Movimento Feminista, e também, das Ciências Sociais e
Humanas, para demonstrar as desigualdades sócioculturais existentes entre
mulheres e homens, fenômeno social que repercute na vida pública e privada
de ambas as classes, pois nesse contexto estão inseridos papéis
sociais diferenciados, construídos historicamente, imbuídos por dominação e
submissão da mulher pelo homem, expressando relações de poder nas
relações de gênero.
O Movimento Feminista brasileiro exerceu importante papel quanto
ao discurso da desigualdade entre o sexo, partindo do pressuposto que “[...]
na perspectiva feminista, a hierarquia sexual que secundariza a posição da
mulher na sociedade não reconhece fronteiras de países nem classes
sociais.” (HEILBORN, 2000, p.92)
Segundo Saffioti (2004, p. 70), ao discutir gênero, interpreta esse
conceito também como “[...] um conjunto de normas modeladoras dos seres
humanos em homens e mulheres, normas estas expressas nas relações
destas duas categorias sociais, ressalta-se a necessidade de ampliar este
425
conceito para as relações homem-homem e mulher-mulher.”
Quanto à conceituação de gênero a referida autora acrescenta que:
Nas relações entre homens e entre mulheres, a desigualdade de gênero não
é dada, mas pode ser construída, e o é com freqüência. O fato, porém, de não
ser dada previamente ao estabelecimento da relação a diferencia da relação
homem-mulher. Nestes termos, gênero concerne, preferencialmente, às
relações homem-mulher. (SAFFIOTI, 2004, p.71)
Na busca da definição do conceito de gênero, teremos a visão de
Teles e Melo (2003, p. 17):
Portanto, o termo gênero pode ser entendido como um
instrumento, como uma lente de aumento que facilita a percepção
das desigualdades sociais e econômicas entre mulheres e
homens, que se deve à discriminação histórica contra as
mulheres.
Analisando o conceito gênero, observamos que gênero não deve ser
confundido ao sinônimo de sexo. Este se refere às características e
diferenças biológicas, fisiologia e anatomia dos organismos pertencentes ao
sexo masculino e feminino.
A questão da violência contra a mulher começa se delinear no Brasil
no final da década de 1970, como problema social, articulado com o
Movimento Feminista no país que ressurgiu com novos contornos no
contexto histórico de vigência do Regime Militar. Influenciado pelas
discussões em termos internacionais, emerge a análise da discriminação da
mulher na sociedade, questionando a divisão tradicional de papéis construído
histórico e sociocultural entre o homem e a mulher.
A violência é um grave problema que afeta toda a humanidade,
atingindo todas as pessoas, independente da classe social. Assim, entende
por violência o uso intencional da força física, o abuso de poder, cometido
contra uma pessoa ou grupos sociais, que traz conseqüências danosas para
o desenvolvimento humano.
Ao abordar a violência de gênero, deve se mencionar que esta ocorre
de forma diferenciada para os homens e para as mulheres, conforme Queiroz
(2008, p. 14), “[...] os homens sofrem violência nos espaços públicos, em
geral praticada por outro homem, as mulheres sofrem a violência masculina,
dentro da casa, no espaço privado e seu agressor, via de regra, é ou foi o
namorado, o marido, o companheiro ou o amante.”
Com esse pano de fundo, os diversos acontecimentos de violência
contra a mulher são colocados como resultante de uma cultura e relações
sociais inscrita nas relações de gênero com privilégio do homem, arraigadas
pela ideologia patriarcal e machista. Esse fenômeno remete-se a ideologia
patriarcal que expressa à dominação e poder masculino, que se encontra
permeada na forma de organização das sociedades.
Conforme coloca Saffioti (1989, p. 57), “[...] o homem é socializado
para externar sua agressividade. Assim como a suavidade é valorizada na
426
mulher, a agressividade aumenta, segundo a ideologia machista, a virilidade
do homem.”
Naquele contexto, as iniciativas e mobilizações do Movimento
Feminista tornam pública a situação de violência perpetrada contra a mulher,
possibilitando reivindicar os direitos da mulher, exigindo e propondo políticas
públicas nas distintas esferas do Estado. Assim, a denúncia da
violência de gênero e doméstica permite que fosse percebida e enfrentada na
esfera política, ou seja, exige que o Estado intervenha nessa problemática.
Percebemos que é base fundante para a visibilidade do fenômeno
social, da violência de gênero, as reivindicações e denúncias do Movimento
Feminista que conseguiu inserir os anseios além do espaço da militância,
mas para o reconhecimento por parte do Estado como problema social a
violência perpetrada contra a mulher. Assim, a violência de gênero ganha
visibilidade nas discussões e estudos acadêmicos, ampliando para diversos
setores da sociedade.
A violência de gênero implica nas relações de dominação, exploração,
hierarquia e de poder nas relações entre os gêneros, sendo o principal alvo as
mulheres.
Na visão de Teles e Melo (2003, p. 18), o conceito de violência de
gênero,
[...] deve ser entendido como uma relação de poder de
dominação do homem e de submissão da mulher. Ele demonstra
que os papéis impostos ás mulheres e aos homens, consolidados
ao longo da história e reforçados pelo patriarcado e sua ideologia,
induzem relações violentas entre os sexos e indica que a prática
desse tipo de violência não é fruto da natureza, mas sim do
processo de socialização das pessoas. [...] Os costumes, a
educação e os meios de comunicação tratam de criar e preservar
estereótipos que reforçam a idéia de que o sexo masculino tem o
poder de controlar os desejos, as opiniões e a liberdade de ir e vir
das mulheres.
Ainda, na definição de violência de gênero destacamos o
posicionamento de Saffioti (2004, p. 81), que expressa o mecanismo de
sujeição das mulheres aos homens na ordem social, ou seja, “[...] não ocorre
aleatoriamente, mas deriva de uma organização social de gênero, que
privilegia o masculino”.
Neste trabalho partiremos de uma análise na perspectiva de violência
de gênero, sob a forma da violência doméstica, que perpassa o contexto
familiar e de relações afetivas. Adotamos essa perspectiva tendo em vista a
discussão de conceitos quanto à violência doméstica, familiar e intrafamiliar.
Podemos compreender a violência familiar é aquela que envolve
membros de uma família ligados por laços consangüíneos ou por afinidade,
que pode ocorre no interior do domicílio ou fora dele, sendo mais freqüente
dentro do espaço do domicílio.
427
A violência doméstica apresenta sobreposição com a familiar, porém,
pode atingir pessoas não pertencentes à família, incluindo pessoas que
vivem no mesmo espaço do domicílio, que vivam parcial ou integralmente,
atingindo os membros mais subalternizados na estrutura das relações
familiares.
Ainda, temos o conceito à violência intrafamiliar, outra categoria de
análise, que se aproxima ao conceito de violência familiar, ocorre com
membros da família, entretanto pode ocorrer fora do espaço. Quanto esse
conceito há cautela quanto à utilização para tratar de violência contra a
mulher, pois segundo Teles e Melo (2003), o temo inclui outros integrantes da
família, como crianças, idosos, pessoas com deficiência, podendo esconder
a violência contra a mulher.
Na verdade, essa discussão de conceito permite desmistificar a
ideologia da família como lócus de proteção, sagrado, amor e perfeição. Ao
mesmo tempo, observamos que o caráter familiar, doméstico, contribui que
essa violação seja colocada na esfera privada, íntima, sem a compreensão
que esta necessita de intervenção pública, que é uma temática de relevância
pública, com intervenção do Estado.
Conforme coloca Rocha (2007, p. 29),
A violência doméstica, pelo seu envolvimento, em grande parte
dos casos, com relações familiares o espaço do domicílio, é
caracterizada como uma questão relativa estritamente à esfera
da vida privada encoberta também pela ideologia que apresenta
a família como instituição natural, sagrada, na qual se
desenvolvem apenas relações de afeto, carinho, amor e
proteção, a ser preservada pela sociedade. Essas noções
contribuem para naturalizar e despolitizar o problema.
1. Políticas Públicas para as Mulheres e Violência de Gênero
Nas últimas quatro décadas visualiza-se um movimento internacional
quanto à proteção dos direitos humanos da mulher. Presenciamos um
avanço quanto ao reconhecimento de direitos da mulher, seja com as
Convenções e Tratados Internacionais, seja por Leis Nacionais, no que
tange a proteção, prevenção e diminuição de descriminação, preconceito e
violência contra a mulher.
Segundo Piovesan (2003, p.40),
Faz-se necessária a especificação do sujeito de direito, que passa a ser
visto em suas particularidades. Neste sentido, determinados sujeitos de
direitos, ou determinada violações de direitos, exigem uma resposta
específica e diferenciada. Transita-se do paradigma do homem,
ocidental, adulto, heterossexual e dono de um patrimônio para
visibilidade de novos sujeitos de direitos.
Concernente a violência a violência contra a mulher tem-se a
Convenção da ONU sobre Eliminação de todas as formas de Discriminação
contra a Mulher, ratificada pelo Brasil em 1984; e a Convenção
428
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher,
ratificada em 1995.
No Brasil, o importante Movimento Feminista contribui para a
incorporação do discurso político dos desejos e anseios das mulheres,
culminando no reconhecimento e construção de marcos legais no país, e no
espectro da proteção direcionada mulher, destaca-se a Constituição de 1988,
que trouxe avanços significativos para classe social. Nessa Constituinte, está
assegurada a igualdade entre homens e mulheres, inclusive, expressa a
proibição da descriminação no mercado de trabalho, e ainda, prever o dever
do Estado de coibir à violência no âmbito das relações familiares (art. 226,
parágrafo 8º). Ainda, sobre os direitos da mulher, podemos destacar a lei de
cotas para as mulheres nos partidos políticos (Lei n.º 9.504, de 30/09/1995).
No tocante as políticas públicas de violência de gênero no país
destacam-se Conselho Nacional dos Direitos da Mulher; Delegacia
Especializada no Atendimento à Mulher; o Programa Nacional de Direitos
Humanos e a Lei n.º 11.340 – denominada Maria da Penha, que supera a
Lei n.º 9.099/95.
Ainda, no avanço da conquista de direitos e no reconhecimento da
necessidade de formular políticas públicas para mulheres, tem-se Plano de
Políticas Públicas para Mulheres, lançado em 2004 que baliza as políticas
públicas com enfoque de gênero, aborda em seus capítulos diversos
assuntos pertinentes aos direitos e cidadania da mulher, com destaque para o
fenômeno da violência.
Concernente ao fenômeno da violência de gênero, doméstica e familiar,
ressalta-se a Lei n.º 11.340 (“Lei Maria da Penha”), aprovada em 07/08/2006,
que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a
mulher, dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às
mulheres em situação de violência doméstica e familiar. O conceito de
violência a partir da Lei é:
Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e
familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no
gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou
psicológico e dano moral ou patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o
espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo
familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade
formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados,
unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor
conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente
de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo

429
independem de orientação sexual.
Art. 6o A violência doméstica e familiar contra a mulher constitui
uma das formas de violação dos direitos humanos.
Ao discutir violência deveremos analisar na plataforma de um
fenômeno social, cultural e político, como expressão da questão social. A
violência contra as mulheres é uma expressão da dominação masculina, que
se estrutura e se reproduz nas relações de poder entre homens e mulheres.
Segundo Portella (2004), as relações se fundam em contextos históricos e
socioculturais que conferem características diferenciadas à violência.
Ainda, como colocada Piovesan (2003), que mesmo com os
extraordinários avanços legais internacionais e constitucionais, dos direitos
da mulher, não implicam automaticamente em sensível mudança cultural.
A conquista de direito consubstancia o avanço da luta das mulheres,
expresso nas leis e tratados mencionados, porém na realidade presenciamos
a violência de gênero a qual atinge parcela considerável de mulheres,
situação que pode ser agravada pela influência do caldo cultural machista e
patriarcal, em especial na região nordestina, que está arraigada nas relações
social de gênero, em que como resquício a figura feminina ainda é visualizada
sob a perspectiva da propriedade e sujeição ao homem. Diariamente nos
deparamos com notícias acerca do femicídio, estupros, ameaças, lesões
corporais entre os tipos de violência que são perpetrados contra as mulheres
através de homens do seu convívio familiar ou parceiros íntimos.
Na análise das políticas públicas para as mulheres, a criação da
Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres em 2003, apresenta um
avanço na proposta de coordenação, articulação e formulação de políticas
que contemplem a relação de gênero, em especial, da condição da mulher na
sociedade brasileira, na perspectiva da promoção da igualdade de gênero,
que se coloca como desafio presente na realidade social.
A realização de duas Conferências Nacionais de Políticas para as
Mulheres (CNPM), sendo a I CNPM em 2004 e a II CNPM em 2007,
resultaram na elaboração do I Plano Nacional de Políticas para as Mulheres
(PNPM), em 2004, e o II PNPM em 2008.
O PNPM aponta ações com perspectiva de gênero nas diversas
políticas públicas das esferas do Estado, com a articulação e
responsabilidade entre o governo Federal, Estadual e Municipal.
Nesses instrumentos tem-se a discussão e proposições de ações
acerca da violência de gênero, que atinge a mulher, em especial em sua face
doméstica. Coloca essa temática inserida como questão pública, com as
ações direcionadas para o enfrentamento, coibição e atendimento das
mulheres em situação de violência quando inaugura a Política Nacional de
Enfrentamento à Violência Contra a Mulher, com objetivo de articular serviços
e as diversas esferas do poder e organizações no enfrentamento da violência
de gênero.
Atinente a coordenação e formulação de políticas para as mulheres,
430
ressalta-se a importância da implantação das Coordenadorias Municipais e
Estaduais de Políticas para as Mulheres, que direciona a promoção de
políticas públicas para mulheres, com o enfoque de gênero em diversas áreas
das políticas sociais, inclusive no fenômeno da violência. Nesse sentido,
vislumbra-se o a implantação do Centro de Referência para Mulheres, na
perspectiva de promover à prevenção e o atendimento, através de serviços e
ações direcionadas as mulheres vítimas de violência, que à luz da Política
Nacional de Enfrentamento da Violência contra a Mulher, preconiza a
proteção e o atendimento humanizado e de qualidade às mulheres, ainda,
visa à redução dos índices de violência.
Conforme Almeida (2007), no Brasil existe um fosso entre o
reconhecimento da necessidade de formulação de políticas de promoção da
igualdade de gênero e a efetivação desses direitos. Ainda, a autora enfoca
que no país a intervenção na violência de gênero está estruturada em
delegacias especializadas no atendimento a mulher (DEAMs); centros e
núcleos de atendimento à mulher e as casas-abrigo.
Vale destacar que a DEAM foi marco inicial no atendimento as mulheres
em situação de violência na década de 1980, que se apresenta como
mecanismo importante, apesar da precarização da estruturação dos
serviços. As casas-abrigo, espaço essencial na atenção e efetivação dos
direitos das mulheres, precisam está articulada com as demais políticas e
serviços.
No ano de 2005, no município de João Pessoa/PB é implantada a
Coordenadoria Municipal de Políticas Públicas para Mulheres, e em 2007, o
Centro de Referência para Mulher, em que apontam para um avanço nas
políticas públicas para as mulheres, porém inexiste o serviço de Casa-Abrigo.
Recentemente, foi assinado pelo Estado o Plano de Enfretamento à Violência
contra a Mulher, em que se vislumbram ações e metas que concerne ao
enfretamento e atendimento a essa problemática.
Nesse sentido, analisar quanto à efetivação das políticas públicas
para mulheres em situação de violência de gênero, em sua modalidade
doméstica aponta como foco de reflexão neste trabalho, dimensionando os
limites e impasses apresentados na realidade para acesso dos direitos e
proteção conquista.
2. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das reflexões apresentadas visualizamos os avanços dos
direitos da mulher no âmbito internacional e nacional, afirmando direitos que
_____________________________________________________________

360
Entendemos por questão social a definição apresentada por de Marilda Iamamoto e Raul Carvalho
(1983, p. 77) “A questão social não é senão as expressões do processo de formação e desenvolvimento da
classe operária e de seu ingresso no cenário político da sociedade, exigindo seu reconhecimento como
classe por parte do empresariado e do Estado. É a manifestação, no cotidiano da vida social, da
contradição entre o proletariado e a burguesia, a qual passa a exigir outros tipos de intervenção mais além
da caridade”.
361
Termo trabalhado por Safiotti (2004).
431
historicamente representa a luta das mulheres.
Contudo, presencia-se uma relação desigual entre os gêneros,
determinada pela construção histórica, social e cultural da sociedade, em que
as relações de dominação, exploração e poder entre mulheres e homens são
presentes. Assim, a violência de gênero, fenômeno social, cultural e político,
se apresenta como expressão da questão social.
A implantação da Secretaria Especial de Política para as Mulheres
aponta para um avanço nas políticas públicas para as mulheres. Quanto à
questão da violência de gênero, a Lei n.º 11.340 – Lei Maria da Penha –
supera a Lei n.º 9090/95. Nesta a violência contra mulher é considerada
questão de menor potencial ofensivo, ou seja, de menor gravidade, em que
reforça a naturalização da violência em que atinge a mulher, afirmando a
hierarquia entre os gêneros, como expressão patriarcal.
A Lei Maria da Penha aponta mecanismos de coibição à violência
doméstica e familiar contra a mulher, prevendo a criação dos Juizados de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e a assistência e proteção às
mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
As DEAMs, casas-abrigo e centro de referência são políticas de
atendimento as mulheres em situação de violência, configuram-se avanço
enquanto direitos das mulheres, porém necessitam de efetivação e
implementação das ações e serviços, pois há limites e impasses na realidade
concreta para acesso dos direitos e proteção das mulheres na situação de
violência.
Essa a problemática precisa ser incorporada na agenda pública,
enquanto dever do Estado em implementar políticas públicas para prevenir,
punir e combater a violência contra a mulher, com políticas que realizem os
atendimentos e acesso com as condições necessárias de materializar os
direitos conquistados pelas mulheres.
Portanto, a pesquisa em construção permitirá compreender o
direcionamento das políticas públicas sobre a violência de gênero pela esfera
governamental e a percepção das mulheres vitimizadas concernente a
violação de direitos, seja na violência sofrida, ou seja, sobre o acesso a
política pública de proteção à violência de gênero.

432
REFERÊNCIAS
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políticas públicas. Suely Souza de Almeida (org.) Editora UERJ: Rio de
Janeiro, 2007.
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e políticas públicas. Suely Souza de Almeida (org.) Editora UERJ: Rio de
Janeiro, 2007.
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Editado por Etienne G. Krug, Linda L. Dahlberg, James A. Mercy. Anthony B.
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ROCHA, Lourdes de Maria Leitão Nunes. Casas-Abrigo no enfrentamento
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SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. “A síndrome do pequeno poder” In:
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SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. O Poder do Macho. São Paulo:
Moderna, 1987. (Coleção Polêmica.)
SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado, violência. São
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QUEIROZ, Fernanda Marques. Não se rima amor e dor: cenas cotidianas
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TELES, Maria Amélia de Almeida, MELO, Mônica. O que é violência contra
a mulher. São Paulo: Brasiliense, 2003. (Coleção Primeiros Passos.)

433
GT 5 – GÊNERO, IDENTIDADE E CULTURA
COORDENAÇÃO: Profª. Dra. Iraildes Caldas Torres -
DIREITO DE FAMÍLIA: mulher e regime dotal na legislação republicana

Elizabeth Sousa Abrantes


Na virada do século, as transformações socioeconômicas e a
crescente urbanização contribuíam para imprimir novo estilo de vida às
mulheres de elite, observado nas novas formas de socialização, seja nas
reuniões sociais, nos passeios das avenidas, os chamados 'footings', nas
matinées dos cinemas, nos teatros, clubes, cafés. Essas mudanças, no
entanto, eram alvos de críticas dos conservadores que temiam modificações
na família se as mulheres das classes médias e altas adquirissem o costume
das ruas. A permanência dessa mentalidade patriarcal de preservar a mulher
na esfera do lar se fez presente nas primeiras leis civis da república, as quais
continuavam atrelando a socialização da mulher à dependência da figura
masculina, do pai ou do marido.
Tradicionalmente, nos países de código civil, a subordinação
legal das mulheres era obtida através de duas técnicas: o poder marital e a
incapacidade civil da esposa (SINEAU. In. DUBY; PERROT, 1991. p. 559).
Esses dois processos de manutenção da tutela feminina subsistiram nas
primeiras legislações da república brasileira, onde “arranjar marido”
significava para a mulher perder sua capacidade jurídica, ser uma menor, cujo
direito estava subordinado à boa vontade do seu esposo. O casamento civil
republicano continuava sendo uma associação de dois seres desiguais em
direitos e deveres, demonstrativo da concepção patriarcal de família que
marcou o sistema jurídico brasileiro durante a maior parte do século XX. Essa
recusa em atribuir às esposas uma vida civil autônoma permaneceu
legalmente no Brasil até 1962, quando foi criado o Estatuto da Mulher
Casada.
Uma análise comparativa da situação da mulher perante a
legislação luso-brasileira do início do século XX mostra como o direito civil
continuava a marcar a diferença entre os sexos em favor dos homens.
Pelo Código Civil portuguêsem vigor no início do século XX, a
mulher casada era mantida numa posição totalmente subalterna. A escritora
_____________________________________________________________

1
Universidade Estadual do Maranhão
2
Lei do Casamento Civil, decreto nº 181, de 24 de janeiro de 1890; Código Civil, lei nº 3.071, de 01 de
janeiro de 1916, respectivamente.
3
Da Lei de 1890, ver capítulo VII: Dos Efeitos do Casamento; e do Código Civil ver: Livro I: Do Direito de
Família - Título II: Dos Efeitos Jurídicos do Casamento; Título V: Das Relações de Parentesco, capítulo VI:
Do Pátrio Poder.
4
Lei nº 4.121, de 27 de agosto de 1962. Essa lei, conhecida como Estatuto da Mulher Casada, tratava da
situação jurídica da mulher casada, e alterava vários artigos do Código Civil (06, 233,240, 242, 246, 248,
263, 269, 273, 326, 380, 393, 1.579 e 1.1611) e o artigo 469 do Código de Processo civil. Estabelecia que a
mulher, tendo bens ou rendimentos próprios, será obrigada, como no regime de separação de bens, a
contribuir para as despesas comuns, se os bens comuns forem insuficientes para atendê-las.
5
O Código civil português, de autoria do Visconde de Seabra, vigorou desde 1867 até 1910, quando foi
proclamada a República e instituída nova legislação civil.

437
portuguesa Ana Osório (1905, p. 207-220) analisou a situação da mulher
casada e da mulher solteira perante a lei de seu país e mostrou como a
legislação era cerceadora da liberdade da mulher que casava, a qual deixava
de ser uma criatura livre, de ser senhora do seu destino e das suas ações,
porque devia “obediência ao marido”; deixava de ser a administradora dos
seus bens, porque qualquer que fosse a forma do contrato matrimonial, a
administração pertencia ao marido e só na falta ou impedimento dele a mulher
tomaria o seu lugar.
À mulher era negado o direito de alienar ou adquirir quaisquer
bens, tanto móveis como imóveis, enquanto o marido podia adquirir
quaisquer bens sem autorização da esposa e alienar os mobiliários; à mulher
era totalmente proibido fazer dívidas sem autorização do marido, enquanto
que o homem podia contrair, só por si, dívidas pelas quais respondiam os
bens do casal, no todo ou em parte.
A mulher não podia ser a educadora dos filhos, porque estes
pertenciam ao pai, que os regia, protegia e administrava, constituindo, assim,
o poder paternal, e embora o mesmo código proclamasse a mãe co-
participante desse poder, para ser ouvida em tudo que respeita os
interesses dos filhos, tal não sucedia na prática, pois o pai era o único
representante do poder paternal e contra ele a opinião e vontade materna
nada valiam.
A mulher casada não podia negociar, exercer uma indústria ou
uma profissão, escrever para o público e publicar seus livros sem a
autorização do marido; a esposa tinha obrigação de acompanhar o marido
para onde ele entendesse que a devia levar; não podia abandoná-lo, salvo em
casos especiais previstos pela lei: “adultério no domicílio conjugal ou com
escândalo público, desamparo completo, sevícias, ofensas graves”. Assim,
perante a lei civil portuguesa, a mulher, ao se casar, perdia todos os seus
“direitos e alforrias”, e podia se considerar legalmente a tutelada do homem.
Já a mulher solteira em Portugal, segundo Ana Osório, era quase
livre, equiparada ao homem perante o código, mas nesse quase havia um
imenso abismo a transpor. Depois de 21 anos podia livremente ganhar sua
vida exercendo a profissão para que se julgava habilitada, era um indivíduo
autônomo, podendo ser professora, médica, proprietária, industrial e
comerciante. A lei não excluía a mulher solteira de nenhum trabalho,
“apenas o costume, a tradição e o homem faziam reparo, a cada nova
conquista da tenacidade feminina”. A mulher solteira podia estudar as leis do
seu pais, e, visto que a lei era igual para todos, salvo casos especialmente
declarados no Código Civil, freqüentar o curso de direito e tirar a carta de
bacharel, mas ainda não poderia estar em juízo como testemunha civil.
_____________________________________________________________

6
Mesmo viúva, a mulher teria que dar contas da sua administração ao conselheiro que o defunto nomeou,
se ele tivesse reservado o poder de continuar dirigindo, mesmo depois da morte, as ações e procedimentos
de sua esposa.

438
No entanto, solteiras ou casadas, do ponto de vista da cidadania
política, as mulheres eram equiparadas pelos códigos aos menores não
emancipados, ambos menores perante a lei, não tendo a faculdade de se
ingerir nos negócios públicos, não eram eleitoras nem elegíveis.
No Brasil, o tratamento dado á mulher pela legislação civil não era
muito diferente, pois mesmo que as leis de 1890 e 1916 tenham alterado
alguns pontos do direito de família, não modificaram substancialmente
preceitos de origem canônica do Código Filipino. Segundo a historiadora
Linda Lewin, essas leis restringiram a autoridade que os pais,
como chefe de família, tinham sobre seus filhos, especialmente os filhos
homens, “embora o poder patriarcal tenha permanecido com menos
limitações nas prerrogativas legais que os maridos (e pais) continuavam a ter
em relação a suas mulheres e filhas”. (LEWIN, s/d, p. 156). Ou seja, o homem
continuava sendo o representante legal da família, o cabeça do casal, com o
poder marital e o pátrio poder, competindo a administração dos bens, a
escolha do local de moradia, a autorização para o trabalho feminino, bem
como a palavra final no consentimento para o casamento dos filhos não
emancipados.
Muitos defensores e defensoras dos “direitos da mulher”, no início
do século XX, denunciavam que a mulher continuava sujeita ao regime de
subalternidade moral e legal, que, “nem por ser adoçado pela brandura dos
nossos costumes, perdeu o seu caráter iníquo e jugo de opressão”. Esses
críticos lamentavam que a mulher continuasse um ente de submissão,
educada no desejo exclusivo de um bom marido para lhe garantir a existência
quando lhe faltasse o desvelo paternal. O marido sendo encarado como o seu
futuro, sua esperança, sua única condição de conforto, e dada a sua inaptidão
para a vida prática, devido o desconhecimento completo do mundo, achava
que só o marido a pouparia da amargura de uma vida cheia de dificuldades,
de dias escuros, de serões sem proveito, ou que era pior, de um agasalho por
caridade, essa dolorosa perspectiva de tanta moça sem fortuna. O resultado
era que, uma vez casada, a autoridade do pai era substituída pela autoridade
marital.
Os críticos ressaltavam a necessidade de elevar o nível moral e
intelectual da mulher, para que a família se assentasse sobre bases mais
dignas, pois ainda se baseava no interesse pessoal. Para os homens, esse
interesse era o de fazer um bom negócio e para as mulheres a vantagem de
se garantirem das incertezas do futuro.
Essa idéia colocava a mulher como colaboradora do homem, seu
complemento, que não devia representar um peso para o marido era. Assim
_____________________________________________________________

7
As leis portuguesas de 1910, do governo republicano provisório, alteraram sensivelmente o código civil
anterior, estatuindo o divórcio e firmando que a sociedade conjugal baseava-se na liberdade e igualdade,
incumbindo ao marido especialmente a obrigação de defender a pessoa e os bens da mulher e dos filhos
8
Revista A Mensageira. Direitos da Mulher. 15.01.1900, n. 36, p. 217 -221.
9
Revista A Mensageira. Direitos da Mulher. 15.01.1900, n. 36, p. 217 -221.

439
como a ideologia do trabalho, do homem provedor, considerava uma desonra
para o marido não poder arcar sozinho com as obrigações de sustento do seu
lar, cabia à mulher, especialmente da classe média, o dever de gerenciar bem
as economias domésticas e evitar o desperdício com luxo e futilidades.
Mesmo que trabalhasse, sua atividade era sempre vista como auxiliar e seu
salário como complemento.
O caráter conservador do regime republicano no tocante à família
foi percebido por alguns críticos, como Barbosa Lima, para quem a república
não subvertera todo o quadro de costumes brasileiros, pelo menos fora do
domínio das reformas políticas. Além das medidas como o casamento civil,
que decorriam da separação entre a igreja e o Estado, “a república não
pensou senão em conservar”, foi buscar as fontes de sua doutrina social no
tradicionalismo, pois o Brasil estava integrado ainda em práticas e usos
patriarcais, com a família e os seus dependentes vivendo ainda os resquícios
da relação da casa grande do senhor e a senzala.
Com a república e a maior interferência do estado nas questões
de família, a influência se fazia sentir na reação contra os excessos do chefe
da família, criando em torno da mulher, aparentemente, um sentimento de
maior respeito e de apoio. Essa contribuição no sentido de divulgar esses
novos princípios coube principalmente aos discípulos de Augusto Comte,
pois o filósofo acreditava que as reformas humanas precisariam vir por
intermédio da influência feminina, e entregava à mulher os mais “rudes
encargos da educação dos homens, para os fins sociais de sua existência”.
A lei sobre o casamento civil, de 1890, instituiu as novas regras do
casamento sob o regime republicano brasileiro. De imediato, ficava suspenso
o valor legal do casamento religioso, e as pessoas que pretendessem casar
deviam habilitar-se perante o oficial do registro civil.
A nova lei mantinha a proibição dos casamentos entre parentes,
ascendentes e descendentes e demais parentes até segundo grau civil. A
idade mínima para o casamento era de 14 anos para a mulher e 16 anos para
o homem, e os menores de 21 anos eram obrigados a obter o consentimento
dos pais, caso fossem casados, e no caso de divergência entre eles, apenas
o consentimento do pai era suficiente.
Os efeitos do casamento civil eram constituir família legítima e
legitimar os filhos anteriormente havidos entre os contraentes, investir o
marido da representação legal da família e da administração dos bens
comuns e dos que por contrato antenupcial devessem ser por ele
administrados, investir o marido do direito de fixar o domicílio da família,
autorizar a profissão da esposa e dirigir a educação dos filhos, bem como
obrigá-lo a sustentar e defender a mulher e os filhos.
Quanto aos bens, quando o casamento não fosse no regime
comum, era necessário apresentar uma escritura antenupcial, pois na falta
desse contrato os bens dos cônjuges eram presumidos comuns desde o dia
seguinte ao casamento. Não podia haver comunhão de bens imediata se a
440
mulher fosse menor de 14 anos ou maior de 50, se o marido fosse menor de
16 ou maior de 60, e se os cônjuges fossem parentes dentro do 3º e 4º graus.
Nesses casos, os bens da mulher, presentes e futuros, seriam considerados
dotais e garantidos na forma do direito civil. Quanto a faculdade conferida à
mulher casada para hipotecar ou alhear o seu dote, conforme o artigo 27 do
Código Comercial, era restrita apenas às mulheres que já eram comerciantes
antes do casamento.
O pedido de divórcio continuava sendo aceito em alguns casos:
adultério, sevícia ou injúria grave, abandono voluntário do
domicílio conjugal e prolongado por dois anos, mútuo consentimento dos
cônjuges se casados a mais de dois anos. O divórcio não dissolvia o vínculo
conjugal, mas autorizava a separação indefinida dos corpos e fazia cessar o
regime dos bens, como se o casamento fosse dissolvido, embora no caso de
cônjuges com filhos comuns o divórcio não anulasse o dote, que continuaria
sujeito aos ônus do casamento, passando a ser administrado pela mulher se
ela fosse o cônjuge inocente.
Essas regras do direito de família foram, em grande parte,
ratificadas pelo primeiro Código Civil brasileiro, elaborado pelo jurista Clóvis
Beviláqua, o qual, no tocante ao casamento, manteve dois sistemas das leis
civis anteriores: a separação total de bens e o contrato de dote e arras. Apesar
de permanecer na nova legislação o regime dotal, a opinião do jurista sobre
o dote era que este fazia com que a mulher comprasse o marido.
No tocante aos bens, o Código Civil de 1916 permitia aos
nubentes estipular o que lhe aprouvesse, devendo ser feito por escritura
pública, pois caso não houvesse essa convenção, vigorava o regime de
comunhão parcial de bens.
No regime de “comunhão parcial ou limitada”, eram excluídos da
comunhão os bens que os cônjuges possuíam antes do casamento ou que
obtiveram depois por doação ou sucessão, também os que foram adquiridos
com valores pertencentes exclusivamente a um dos cônjuges. Entravam na
comunhão as doações, heranças ou legados que fossem em favor de ambos
os cônjuges, e a administração dos bens do casal competia ao marido, bem
como as dívidas por ele contraídas obrigavam não só os bens comuns, como
também, em falta destes, os bens particulares de um e outro cônjuge, na azão
do proveito que cada qual houvesse lucrado.
Os demais regimes de bens previstos eram o de “comunhão
universal”, “separação de bens” e “regime dotal”. No primeiro caso, havia a
comunicação de todos os bens presentes e futuros dos cônjuges e suas
dívidas passivas, com exceção de alguns bens, como, por exemplo, o dote
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10
Vida Doméstica. O conceito republicano da família e do lar, novembro de 1928, n. 128, p. 125.
11
O Decreto n. 521, de 26 de junho de 1890 proibia cerimônias religiosas matrimoniais antes de celebrado o
casamento civil. Essa medida foi adotada pelo governo provisório diante da oposição de parte do clero
católico ao decreto do casamento civil. O governo encarava essa atitude como um meio da Igreja anular a
ação do poder secular e um risco para os direitos da família que resultam do casamento.

441
prometido ou constituído aos filhos, também as roupas de uso pessoal, as
jóias esponsalícias dadas antes do casamento pelo esposo, os livros,
instrumentos de profissão e os retratos de família. O regime de separação de
bens dava a cada cônjuge o direito de administrá-los, sendo que a mulher era
obrigada a contribuir para as despesas do casal com os rendimentos de seus
bens, na proporção de seu valor, relativamente ao do marido, salvo estipulado
em contrário no contrato antenupcial.
Por fim, o regime dotal, estabelecia a necessidade de descrever e
estimar na escritura antenupcial cada um dos bens que constituíam o dote, o
qual poderia ser constituído pela própria nubente, por qualquer dos seus
ascendentes ou por outrem. Essa escritura deveria estabelecer as condições
para administração e uso do dote, como até mesmo a reversão ao dotador
em caso de dissolvida a sociedade conjugal. Os frutos do dote eram devidos
desde a celebração do casamento, caso não se estipulasse prazo e o
contrato dotal podia estabelecer que a mulher recebesse, diretamente, para
suas despesas particulares, uma determinada parte dos rendimentos dos
bens dotais.
Para facilitar o acesso das mulheres de elite ao conhecimento dos
seus direitos e deveres perante o código civil, as revistas femininas
freqüentemente apresentavam às suas leitoras artigos sobre os direitos da
mulher, dando algumas noções sobre a condição da mulher no direito
brasileiro a fim de ensinar o que elas devias saber para 'os gastos da vida'.
A revista Vida Doméstica tinha uma coluna dedicada às senhoras
e moças totalmente leigas na ciência de direito, “para melhor se governarem
na vida, dentro da lei, da justiça, da ordem e da paz doméstica”. Seu redator, o
bacharel em Direito Paulo Gaia, solicitava às interessadas que enviassem
para a redação da revista cartas fechadas relatando seu caso de forma clara,
discreta, com fidelidade. A resposta desse “consultório jurídico” seria dada
através da coluna da revista ou de maneira particular, com devolução da carta
consulta, caso a autora da carta-consulta desejasse.
A Revista Feminina também dedicou vários artigos à questão dos
direitos civis das mulheres e divulgou com entusiasmo o lançamento do livro
do Dr. Vicente Ráo em 1922, que tratava da capacidade civil da mulher
casada, dizendo que a obra era muito útil, especialmente “neste século
apavorante e atemorizante” em que o “sexo ex-frágil” vertiginosamente
conquistava dia a dia, principalmente para além das fronteiras do Brasil,
posição de destaque na vida pública, entrando em franca competição e
nivelando-se com o homem que outrora a castigava de acordo com a lei.
O comentário ainda dizia que nestes dias em que nos comícios e
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12
O código civil foi elaborado por Clóvis Beviláqua e enviado ao Congresso Nacional, que o modificou e
retardou sua promulgação. Segundo Florisa Verucci (apud. DANTAS, 2003) o civilista queria o código bem
mais liberal no que se referia à mulher.
13
Essas disposições estão contidas no Título II, “Do Regime dos Bens entre os Cônjuges”. In. Código
civil. 2.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997. p. 164-171.

442
nas assembléias de senhoras se recordava a cada passo que “depois da
declaração dos direitos do homem e do cidadão, a declaração dos direitos da
mulher é uma conseqüência lógica e necessária”, era natural e preciso
mesmo que a mulher inteligente e letrada levasse para o lar o novo e
interessante livro do Dr. Ráo, lendo e meditando sobre aquelas páginas
compreensivas dos direitos que lhe reconhecia a lei.
A obra do Dr. Vicente Ráo sobre a situação jurídica da mulher,
especialmente a mulher casada, comparava a legislação brasileira de 1916
com o direito romano e com a legislação de outros países europeus e dos
Estados Unidos. Reconhecia que a situação jurídica da mulher, sua posição
na ordem social e econômica, evoluía a passos lentos e demorados, e
embora na ordem política ainda fosse um campo de violentas lutas entre os
defensores da total abstenção da mulher na política e dos que
reivindicavam sua intervenção absoluta, na ordem privada, os “verdadeiros
princípios” já estavam assentados e a eles deviam as sociedades modernas
as reformas que lentamente vinham penetrando no espírito de cada um e na
realidade da vida.
O preceito da incapacidade da mulher, utilizado pelos
legisladores e pela sociedade de uma maneira geral para concluir pela
inferioridade da mulher (fragilitas sexus), ora partia do pressuposto de uma
inferioridade física e psíquica, ora admitia que a mulher era ser tão nobre que
devia ser protegida e dirigida pelo homem longe das lutas da vida, ora se
baseava no evidente exagero da necessidade de obediência ao marido.
Para o Dr. Ráo, o recente código civil realizou notáveis reformas e
colocou a mulher, solteira ou casada, em posição mais elevada e mais digna
da que lhe atribuía o direito anterior, mas por um excessivo respeito à mal
entendida tradição do direito brasileiro e não tomando em conta os novos
fatores que impulsionavam o meio social, não se emancipou por completo
dos velhos preconceitos e continuou a declarar relativamente incapaz a
mulher casada, colocando-a ao lado dos menores, dos pródigos e dos
silvícolas, dos que não podiam se reger por si sós por falta de necessário
discernimento.
Considerava que, se os próprios princípios científicos admitiam
que a mentalidade da mulher era perfeitamente igual a do homem,
juridicamente os termos dessa igualdade na família e no casamento deviam
ser “igualdade de direitos e unidade de direção”. Ou seja, homem e mulher
eram seres fisicamente diferentes, mas o exercício das funções impostas
'pela natureza' não devia acarretar a inferioridade jurídica da mulher, mesmo
que a unidade de direção da sociedade conjugal fosse prerrogativa
_____________________________________________________________

14
Pelo artigo 305, do Código Civil, presume-se recebido o dote se o casamento se tiver prolongado por 05
anos depois do prazo estabelecido para sua entrega, ficando ao marido o direito de provar que não recebeu
o dote, apesar de exigi-lo.
15
Vida Doméstica.Direitos da Mulher. Setembro de 1925, n. 92, p. 44
16
RÀO, Vicente. Da Capacidade Civil da Mulher Casada: estudo teórico – prático segundo o código civil.
São Paulo: Livraria Acadêmica Saraiva & C. Editores, 1922.

443
masculina.
Se a capacidade civil da mulher solteira, na legislação moderna
de quase todos os países cultos, era completa e igual a do homem, para a
mulher casada a situação era outra. Considerava que o direito civil brasileiro
anterior ao código de 1916, desde as obsoletas Ordenações do Reino que
reconheciam ao marido o direito de castigar a mulher, até a instituição do
casamento civil pelo decreto de 1890, não fez nenhuma reforma essencial no
tocante à capacidade civil da mulher casada, sempre consagrando o velho
conceito do poder marital. Esse poder formava-se pela deslocação de certos
direitos de pessoa da mulher para a pessoa do marido, roubando-lhe a
faculdade de governar-se a si mesma, de contratar e de dispor dos bens,
pondo-a sob a direção do marido, constituindo o estado de incapacidade da
mulher. A mulher era plenamente capaz até o momento do casamento, desse
momento em diante sofria uma verdadeira diminuição, passando sua
capacidade civil a ser absorvida de todo pela do marido (RÁO, 1922, p. 19-
20).
No princípio da relativa incapacidade civil da mulher, também
chamado de sistema intermediário, o casamento só influía sobre a
capacidade civil da mulher de uma maneira restrita à necessidade da direção
do marido na sociedade conjugal. Para o Dr. Vicente Ráo, o código civil
brasileiro, embora incluindo a mulher casada entre os relativamente
incapazes, se aproximava mais do sistema intermediário, onde a nova
interpretação do poder marital e do pátrio poder, não resultava mais da
necessidade de proteger a incapacidade da mulher e sim assegurar a
unidade da direção na sociedade conjugal (RÁO, 1922, p. 29).
Mesmo assegurando que o direito civil brasileiro concedia ao
marido uma proeminência ainda demasiada, considerava que o poder marital
já era mais segundo o velho conceito absorvente de toda a capacidade
jurídica da mulher, assim como também o pátrio poder no direito
moderno era instituído antes por utilidade dos filhos de que do pai, mais pelos
encargos que impunha que pelas faculdades que conferia ao pai, com os
deveres se sobrelevando aos direitos (RÁO, 1922, p. 37-38).
Quanto aos atos de administração do casal na vida econômica,
ou seja, no tocante às rendas e os bens, explicava que o código civil distinguia
os atos de “administração corrente”, cotidiana, que cada cônjuge exercia
normalmente dentro de suas 'atribuições naturais', dos atos de
“administração definitiva”, que interessavam essencialmente o patrimônio do
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17
A Revista Feminina. Da capacidade civil da mulher casada, de agosto de 1922, n. 99, p. 03, publicou o
artigo do Dr. Adalberto Garcia, em que comentava o livro do advogado Dr. Vicente Ráo, “Da Capacidade
Civil da Mulher Casada”, publicado no Jornal do Comércio, de São Paulo, em 20 de julho de 1922, obra que
tratava da situação da mulher no código civil brasileiro.
18
Quanto à mulher casada, sua situação civil se inspirava em três sistemas: o da incapacidade civil, da
capacidade completa e o intermediário.
19
Idem, p. 9-11

444
casal e exigiam a participação de ambos os cônjuges.
Na administração cotidiana, a mulher podia praticar todos os atos
necessários à economia doméstica, comprar, mesmo a crédito, as coisas
necessárias, obter por empréstimo as quantias exigidas para a aquisição das
coisas de uso corriqueiro para a manutenção do lar. Também podia dispor
livremente dos seus bens móveis que possuísse livre da administração do
marido ou que houvesse reivindicado em conseqüência de doação.
Já os atos de administração definitiva só eram realizados com
autorização do marido, tais como, alienar, hipotecar ou gravar de ônus real os
bens imóveis ou seus direitos reais sobre imóveis alheios, pleitear acerca
desses bens e direitos, prestar fiança, fazer doação com os bens ou
rendimentos comuns, contrair obrigações que pudessem importar alheação
de bens do casa (RÁO, 1922, p. 57-62).
A mulher casada precisava da autorização do marido para
trabalhar fora, a exemplo daquelas que queriam montar seu próprio negócio
no comércio. Segundo os dados da Secretaria da Junta Comercial do
Maranhão, entre 1892 e 1900 foram registradas 06 autorizações de marido
para a mulher negociar.
Quanto ao regime de bens, mesmo não podendo aumentar ou
diminuir a capacidade civil da mulher casada, a escolha do tipo de contrato
nupcial podia conferir novos direitos e obrigações e estender a atividade da
mulher casada em relação ao seu patrimônio, conferindo maior ou menor
poderes de administração e facultando maior ou menor responsabilidades.
Assim, bem diversa era a situação da mulher casada no regime dotal daquela
que estipulou ou aceitou o regime de comunhão de bens ou de separação.
A comunhão de bens era a regra que a lei presumia no silêncio
das partes, quando não havia contrato antenupcial, já a separação de bens
era a exceção, embora houvesse casos especiais que, para proteger
interesses ou dificultar casamentos indesejáveis, o código determinava em
caráter obrigatório esse regime (RÁO, 1922, p.141-143).
O Dr. Vicente Ráo analisou o regime dotal no código de 1916 com
base no conceito de dote e sua significação rigorosamente jurídica, “como a
porção de bens incomunicáveis que a mulher, ou alguém por ela, transfere ao
marido para com os frutos e rendimentos provenientes sustentar os ônus do
matrimônio, sob a clausula de restituição de tais bens dissolvida a sociedade
conjugal”.
Sendo assim, o regime dotal apresentava caracteres
acentuadamente diferentes dos demais regimes, sendo seus elementos a
incomunicabilidade dos bens dotais, estimados na escritura antenupcial, a
sujeição deles à administração do marido, a destinação dos frutos e
_____________________________________________________________

20
Ordenações Filipinas, livro 5º, título 36, parágrafo 1º e titulo 59, parágrafo 4º.
21
Quanto à mulher, somente na falta ou ausência do marido, mesmo na vigência do casamento, tinha
plena capacidade para o exercício do pátrio poder

445
rendimentos à sustentação dos encargos do matrimônio e a restituição à
mulher ou a seus herdeiros ou ao instituidor do dote.
O dote podia compreender, no todo ou em parte, os bens
presentes e futuros da mulher, mas era vedado aos casados aumentar o dote.
Era permitido estipular no contrato dotal que a mulher recebesse para as suas
despesas particulares uma determinada parte dos rendimentos dos bens
dotais e que a par desses bens dotais houvesse outros,
submetidos a regimes diversos. Assim, quando além dos bens dotais, os
nubentes tivessem bens particulares e estipulassem o regime de separação,
os bens se distinguiriam em: bens dotais pertencentes e administrados pelo
marido, bens parafernais, pertencentes à mulher e por ela administrados,
bens adquiridos pertencentes a ambos e administrados pelo marido, bens
particulares do marido.
Como os bens dotais eram inalienáveis, era direito do marido
administrá-los, perceber os seus frutos e usar das ações a que derem lugar. O
marido adquiria a propriedade dos bens dotais quando móveis, e dos bens
dotais imóveis só mediante cláusula expressa dando transferência do
domínio para o marido. Mas, uma vez entrando os bens dotais para o
patrimônio do marido, ficava este obrigado a pagar o preço quando se
dissolvesse a sociedade conjugal ou quando fosse ocasião de o restitui
(RÁO, 1922, p. 159-163).
O dote devia ser restituído pelo marido à mulher ou seus
herdeiros, dentro do mês que se seguisse à dissolução da sociedade
conjugal, se não pudesse imediatamente. A mulher podia requerer
judicialmente a separação do dote, quando a desordem nos negócios do
marido leve a recear que os bens deste não bastassem para assegurar os
dela. Requerida e obtida a separação do dote, a mulher passava a administrá-
lo, continuando inalienável e sujeito a todas as prescrições legais que
caracterizavam os bens dotais (RÁO, 1922, p. 164-168).
O direito do marido de administrar e receber os frutos do dote era
justificado em atenção ao fim primordial e determinante da instituição do dote,
ou seja, a sustentação dos encargos matrimoniais, em subsídio à obrigação
imposta ao marido de prover a manutenção da família. Esse auxílio para o
homem, que devia ser o único e legítimo provedor do lar nas camadas médias
e altas, podia ser visto agora como um desprestígio, uma demonstração de
não confiança em sua capacidade de manter a esposa e filhos com o fruto do
seu trabalho.
Embora ainda houvesse casos de dotes incentivando os
pretendentes, o mais comum no século XX eram os noivos dotarem suas
noivas, como uma garantia futura para elas. Observa-se a preocupação da lei
com o dote, considerado ainda uma garantia futura para a mulher, devendo
ser protegido e seu valor original intocável, mesmo que seus frutos pudessem
_____________________________________________________________

22
Secretaria da Junta Comercial do Maranhão, em 31.12.1892, 22.01.1897; 31.12.1897; 09.01.1900

446
ser utilizados. Era um bem que poderia ser tirado dos riscos da economia de
mercado, sendo uma garantia para os indivíduos considerados dependentes,
no caso, a mulher e os filhos, resquícios da mentalidade patriarcal nesse
momento de transição para a consolidação de uma sociedade burguesa e
capitalista.
Pelo Código civil de 1916, os noivos eram livres para fazer
doações recíprocas, ou apenas de um a outro, devendo constar na escritura
antenupcial tanto estas doações como aquelas feitas por terceiros. Segundo
os testamentos do início do século XX, eram mais comuns os casos de noivos
dotando suas futuras esposas, fato excepcional no período colonial. A prática
do dote, em vez de desaparecer nesse período como pareciam indicar as
críticas a esse costume desde o século XIX, parecia receber nova roupagem,
“modernizando-se”.
A condenação do uso do dote nos arranjos matrimoniais das
classes favorecidas parecia mais discursiva que efetiva, e essa nova forma
de dotação pode também ser vista como uma resistência dos valores
conservadores da sociedade, uma forma dos homens continuarem a tutelar
suas esposas, especialmente da classe média, para que não buscassem sua
independência em uma profissão, mas terem no casamento a garantia de sua
subsistência sem a necessidade de um trabalho fora de casa.
Os testamentos e insinuações de dote do início do século XX
apontam algumas mudanças no costume e na diversificação dos
bens que constituíam o dote, em novos arranjos que revelam que entre as
famílias ricas mantinha-se a preocupação com o futuro da mulher garantindo-
lhe um dote, uma vez que a possibilidade de uma profissão era menos
incentivada nesse meio social.
Nos casos de noivos dotando as futuras esposas, para se
certificar que a doação do dote era feita de livre e espontânea vontade, as leis
vigentes exigiam a insinuação do dote, com a apresentação de testemunhas
que confirmassem a declaração do doador de que o referido dote foi por ele
constituído “sem indeferimento algum, arte, engano, medo, pressão ou outro
qualquer conluio”.
Os noivos ricos ou remediados costumavam dotar suas futuras
esposas, geralmente quando estas eram de condição econômica inferior e
eles já estavam no segundo ou terceiro casamentos, eram mais velhos ou
viúvos.
Foi o caso de José Ferreira da Cunha, que em seu quinto
casamento, com dona Amélia Ribeiro da Cunha, dotou a sua referida esposa
com 03 contos de réis. Suas posses em Portugal e no Maranhão eram
_____________________________________________________________

23
Os imóveis dotais não podiam ser onerados nem alienados, a não ser por autorização do juiz competente
nos seguintes casos: se o casal quisesse dotar suas filhas comuns, em caso de extrema necessidade para
subsistência da família, para pagamento de dívidas da mulher anteriores ao casamento na inexistência de
bens extra-dotais, para conservação de outro imóvel dotal, quando se achasse indiviso com terceiros, no
caso de desapropriação por utilidade pública, quando em lugar distante do domicílio conjugal.

447
constituídas por capital financeiro, constando de contas de depósito,
inscrições da dívida externa portuguesa, conta corrente com uma firma
comercial, prédios, ações de bancos e companhias. Determinou que o dote
de sua esposa dona Amélia devia ser pago com os ditos papéis de crédito
tantos quantos fossem necessários, com a recomendação de que fossem
compradas inscrições da dívida interna portuguesa e estas averbadas em
usufruto a favor de sua sobrinha Carolina da Silva..
Outro exemplo foi o fazendeiro José Fernandes dos Santos, 63
anos, natural do Maranhão e residente em São Luís. Seu testamento feito em
1926 informou que foi casado em segundas núpcias e no regime dotal com a
senhora dona Laura Marques Santos. Resolveu deixar a metade dos seus
bens à sua mulher, em cujo legado ficava o estabelecimento de lavoura de
cana de açúcar no município de Monção, avaliado em 35 contos de réis.
Como o dote devido a sua esposa era de 30 contos, lhe outorgava a faculdade
de repor aos herdeiros forçados, seus oito filhos do primeiro casamento, a
diferença em dinheiro ou outros bens, para que ficasse sendo senhora da
propriedade.
A diversificação da composição dos bens dotais e da herança,
feita em forma de ações de crédito de bancos e companhias, títulos,
inscrições da dívida pública, demonstra o desenvolvimento da economia de
mercado, com os negócios resultantes de investimentos financeiros
especulativos. Nesse caso, apesar da recomendação legal para que fossem
utilizados apenas os frutos dessas doações, ou seja, seu rendimento, esse
novo bem dotal era mais propenso aos riscos do mercado por se tratar de
ações financeiras.
Segundo Susan Besse, nas camadas médias, em muitos casos,
mães viúvas e com dificuldades econômicas, temendo pelo futuro das filhas,
as obrigavam a casar-se com homens que pareciam dispostos a lhes
propiciar riqueza e status social. No entanto, eram poucos os casamentos
realmente arranjados nesse meio social, pois os pais recorriam agora a
formas indiretas para ajudar os filhos a conseguirem casamentos vantajosos,
e mais do que nunca as moças precisavam adquirir atrativos sociais e
educação básica para competir na busca de um marido. Nas classes altas, se
os pais já não podiam efetivamente obrigar as filhas a casarem-se dentro dos
limites estreitos da antiga elite, podiam tentar influenciar nas opções de
casamento das filhas restringindo o âmbito do contato social permitido
(BESSE, 1999, p. 56).
_____________________________________________________________

24
Documento que confirmava a doação feita em testamento ou contrato antenupcial.
Essa expressão foi mantida das Ordenações Filipinas.
25
Testamento de José Ferreira da Cunha. Juízo da Provedoria de Resíduos de São Luís, 25/04/1912
26
Para as suas duas filhas dos dois primeiros casamentos deixou jóias de prata e ouro, para as duas netas
ações do Banco Comercial de São Luís, e ao neto Dacio Cunha Souza, 50 ações do banco
27
Comercial e a propriedade dos ditos papéis de crédito, bem como o relógio e a chatelaine de ouro e um
alfinete de gravata com um brilhante.

448
Apesar de serem ainda comuns nas primeiras décadas do século
XX os registros de doações de dotes nos testamentos, a confirmação desses
dotes não parecia uma preocupação imediata dos noivos. Segundo os dados
da Secretaria da Junta Comercial do Maranhão, desde o final do XIX era
registrado um número insignificante de confirmação de dotes. Entre 1892 e
1900, por exemplo, encontramos registradas duas escrituras de confirmação
de dotes e onze escrituras antenupciais de não comunhão de bens. Quanto
aos casamentos oficiais, somente no ano de 1900 foram registrados em São
Luís e vilas vizinhas, 87 casamentos, cerca de 90% entre solteiros,
adotando o regime da comunhão de bens, apenas dois com contrato
antenupcial com separação de bens e nenhum pelo regime dotal.
Apesar da prática do dote ainda figurar em alguns arranjos
matrimoniais e ter amparo jurídico, de acordo com o Código Civil de 1916,
crescia a oposição a essa prática, significando também que as famílias
estavam perdendo o controle sobre o futuro de suas filhas, onde o padrão de
vida delas dependia cada vez mais de suas qualidades pessoais, como a
educação, para arranjar um “bom partido”, e menos do dote material. “O novo
interesse pela educação feminina era um tipo de proteção contra as
conseqüências incertas do casamento sem dote; educar para torná-las mais
atraentes como noivas; a educação da mulher tornou-se um substituto do
dote” (NAZZARI, 2001, p. 256).
Por outro lado, a permanência do dote nas relações matrimoniais
era uma prova do recorte de classe no tratamento de gênero na sociedade
capitalista, pois ao mesmo tempo em que empurrava milhares de mulheres
pobres para o mercado de trabalho, nas fábricas, setor de serviços e até no
magistério, com salários extremamente baixos, mantinha mecanismos para
assegurar a proteção financeira das mulheres das camadas médias e altas,
dificultando assim, o possível abandono ou negligência das
atribuições de esposa e mãe, garantindo a subsistência dessas mulheres por
meio do casamento legal.
A educação superior feminina era incentivada, nesses casos,
como adorno dos 'dotes naturais', e não como instrumento de emancipação.
As mulheres de classe média se situavam entre os discursos que apontavam
a educação como seu novo dote, para 'arranjar marido' ou para substituí-lo
em caso de necessidade. Já as mulheres pobres, precisavam lutar sozinhas
pelo seu “dote de cada dia”, pois sua sobrevivência dependia do seu trabalho.

_____________________________________________________________

28
Testamento de José Fernandes dos Santos, de 22/06/1926. Termo de Abertura do dito testamento, de
13/03/1940.
29
Secretaria da Junta Comercial do Maranhão, em 31.12.1892, 22.01.1897; 31.12.1897 e 09.01.1900.

449
REFERÊNCIAS
BESSE, Susan K. Modernizando a Desigualdade: reestruturação da
ideologia de gênero no Brasil. 1914-1940. São Paulo: Edusp, 1999.
BUITONI, Dulcília Helena Schroeder. Mulher de Papel: a representação da
mulher na imprensa feminina brasileira. São Paulo: Edições Loyola, 1981.
HAHNER, June E. Emancipação do Sexo Feminino: a luta pelos direitos da
mulher no Brasil, 1850-1940.Florianópolis: Editora Mulheres, 2003.
_____________. A Mulher no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1978.
LEWIN, Linda. Política e Parentela na Paraíba. Rio de Janeiro: editora
Record, s/d.
NAZZARI, Muriel. O Desaparecimento do Dote: mulheres, família e
mudança social em São Paulo – Brasil, 1600-1900. São Paulo: Companhia
das Letras, 2001.
OSÓRIO, Ana de Castro. Às Mulheres Portuguesas. Livraria Editora Viúva
Tavares Cardoso, 1905.
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prático segundo o código civil. São Paulo: Livraria Acadêmica Saraiva & C.
Editores, 1922.
REVISTA A MENSAGEIRA. Direitos da Mulher. 15.01.1900, n. 36.
REVISTA FEMININA. Da Capacidade Civil da Mulher Casada, de agosto
de 1922, n. 99,
REVISTA VIDA DOMÉSTICA. O Conceito Republicano da Família e do
Lar, novembro de 1928.
REVISTA VIDA DOMÉSTICA. Direitos da Mulher. Setembro de 1925, n. 92.
SINEAU, Mariette. Direito e Democracia. In. DUBY, Georges; PERROT,
Michelle. História das Mulheres no Ocidente. Lisboa: Edições
Afrontamento, 1991. p. 559.

451
LEITURAS DE JORNAIS E ROMANCES: relações de gênero em tempos de
exceção
Andréa Bandeira
“E Deus disse: que haja luz”.
Homme et femme sous le paraplue.
“A relação do homem com a mulher é a relação mais
natural do homem com o outro homem”.
A proposta deste artigo é analisar, a partir da abordagem de
Gênero, como as publicações em jornais e romances reafirmaram uma
identidade de gênero para o ser mulher. Entendemos o discurso como um
móvel reprodutor das relações sociais e a linguagem como símbolo, forma de
contato humano (intercessão da) e modelo de representação da realidade, o
que possibilita a desconstrução da naturalização da inferioridade e
consequente subordinação social da mulher em relação ao homem. Esta é
uma imagem recorrente no discurso prevalente em nossa sociedade, onde
observa, ainda, que a masculinização ideal da mulher em tempos de
exceção, mais que transformá-las em exércitos de reserva, autoriza o lugar
hegemônico do masculino e a manutenção da cultura patriarcal.
Inicialmente, importa dizer que o debate aqui proposto nasceu de
uma questão que reporta a uma característica naturalizada comumente à
mulher paraibana – Mulher Macho.
E diante a certeza de não se tratar de um elogio ao feminino, mas
antes uma reafirmação da sua negação ou negatividade, posto que a
identidade prima e única é a masculina, este artigo inicia a discussão
apresentando um referencial teórico que possibilitará compreender as
origens do epíteto. Depois, observar que a construção dessa imagem da
masculinização ideal da mulher é naturalizada no discurso literário. Neste
recorte, valoramos os discursos jornalísticos e romanescos.
Para iniciar o debate, uma imagem logo se estabeleceu: o estudo
de Gustave Caillebotte para o quadro impressionista Rue Paris: Temps de
Pluie, 1877. Especificamente, o excerto talvez até mais famoso que a obra, o
_____________________________________________________________

1
Professora Assistente na Universidade de Pernambuco – UPE e doutoranda em História na Universidade
Federal da Bahia – UFBA, sob a orientação da Prof.a Lina Maria Brandão de Aras, desenvolve pesquisa na
área de Resistência Feminina no Período Militar no Brasil. E-mail: andreabasa@uol.com.br
2
Genesis, 1:3.
3
Esboço e excerto da obra Rue Paris: Temps de Pluie, 1877. Estudo de Gustave Caillebotte (1848 – 1898),
ilustração em PERROT, Michelle. Mulheres Públicas. São Paulo: UNESP, 1998, 6.
4
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Sagrada Família ou Crítica da Crítica Crítica contra Bruno Bauer e
seus Seguidores (1844). São Paulo: Moraes, 1987. Podendo-se também dizer: a relação do homem com a
mulher é a ralação mais natural da mulher com a outra mulher, do outro homem com a outra mulher, do
outro homem com o outro homem, ampliando ab ovo ad infinitum o direito à diferença com direito a
igualdade.

453
estudo feito pelo pintor e intitulado Homme et femme sous le paraplue. Nunca
uma figura foi, tantas vezes, exemplo das razões dos embates feministas: a
inexistência simbólica das mulheres. A partir desta imagem, produzida no
último quartel do século XIX, na França, concomitantemente a criação de
uma identidade brasileira, pretende-se continuar o caminho do deslocamento
da imagem para a historicização da identidade nordestina.
Porém, antes será necessário situar o referencial teórico para
continuar a análise da figura de linguagem, Mulher Macho, e daí para a
observação da literatura como representativa e reprodutora de uma
identidade de Gênero para o ser mulher. Uma identidade que ultrapassa o
espaço e a cultura nordestina. Esse deslocamento espacial reitera a
afirmação da existência de uma sujeita mulher.
Em seguida, apresentar o conceito e iniciar a análise, partindo da
imagem, passando pela frase, desconstruindo-a e retornando à imagem,
estabelecendo um novo padrão de olhar sobre o papel social de mulheres e
homens ao longo da história, desde as últimas décadas dos oitocentos
quando se fundou a identidade do homem macho nordestino, primeira idéia
de uma civilização brasileira per si. Sem olvidar que se escreve sobre o
passado porque se vive no seu futuro e se sabe da sua conseqüência. No
presente, debruça-se sobre as experiências alheias que dizem sobre os
humanos (sobre nós) e dos humanos (de nós) se falam segredos que muitas
vezes se recusam (nós recusamos). E se recusam (nós recusamos) porque a
fala esconde relações de experiências humanas, apenas racionalizadas nos
esquemas teóricos. Plagiando Marx, fala-se e não se sabe muito do que diz
na fala. E mesmo os esquemas mentais têm um lugar de nascimento que
exige um contexto próprio. Assim foi com a abordagem de Gênero, que se
utiliza para discutir a questão apresentada.
Nessa abordagem, o Gênero é o resultado das formulações pós-
modernas que reconhecem o sujeito – abrangente, mas não mais universal,
no sentido moderno de universal – como resultado da soma das suas muitas
participações nas diversas relações constituídas socialmente. Observa,
ainda, que a realidade dessas relações é compreendida à luz do discurso. Um
discurso que mesmo arbitrário não é metafísico, pois foi gerado no espaço-
tempo da matéria, pelo Ser-no-mundo. E, em sendo o discurso uma
compreensão arbitrária que depende dos vários interesses encadeados
dialeticamente – as muitas relações das quais esse sujeito participa – é o
resultado interessado dessas relações. Assim, cria imagens próprias para
reproduzir não apenas as cadeias de relações, mas, também, o próprio
discurso. Este conceito observa que a economia política do sexo faz parte de
sistemas sociais totais, sempre costurados em arranjos econômicos e
políticos, consequentemente a interdependência mútua da sexualidade, da
economia e da política, sem subestimar a total significação de cada uma na
sociedade humana. Uma análise retrospectiva das várias correntes de
pensamento está no cerne da construção da abordagem de Gênero. Desde
454
as teorias marxistas, passando pelos estudos estruturais do parentesco de
Lévi-Strauss, a contribuição de Michel Foucault, a teoria da linguagem de
Jacques Lacan e a definição de desconstrução de Jacques Derrida,
importante por desprender as oposições binárias do lugar da realidade
própria das coisas. Joan Scott conclui e conceitua: “Gênero é um elemento
constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os
sexos, e o Gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder”.
Além disso, a obra de Durval Muniz de Albuquerque Júnior,
Nordestino, uma Invenção do Falo, contribui para o estudo sobre a
construção subjetiva do Nordeste e do nordestino, cabra macho, na virada do
século XIX e que apenas se estabeleceu em meados dos anos 1950, como
resultado de um contexto de crises e decadência de uma elite agrária. E como
bem ressalta o autor, até as mulheres nordestinas receberam a alcunha de
macho, sendo este um adjetivo justificado pelo caráter bravo, resistente e
emotivo desse povo. Um povo que sobreviveu porque manteve uma luta
árdua com o espaço geográfico adusto do sertão. Um povo que nasceu de um
discurso operado num intricado entendimento eugênico, racial,
antropológico, sociológico, etnográfico e histórico. Nesse ecletismo teórico, o
homem sertanejo e nordestino, cabra macho, é fruto do seu meio, de uma
evolução das raças – em que o nordestino sertanejo mistura o melhor do
sangue de três “raças” –, adaptado e abrasado pelo sol na sua história de
sobrevivência possível pelos elos de solidariedade próprios da personalidade
do mestiço nordestino. O autor continua afirmando que somente a ausência
do estado federal e a influência de grupos estranhos (à natureza e ao caráter
desse homem nativo) e estrangeiros (os paulistas) explicam a má formação
que degenerou em uma história de messianismos e banditismos, resultado
de uma surpreendente perda do “sentido vital de realidade” e distanciamento
de uma longa hereditariedade cultural.
Pensar o homem cabra macho é pensar a “casa grande” que
recolheu todos sob seu teto. O homem nordestino é antes de tudo um
patriarca, um pai macio, por isso protetor, mas também forte, por isso severo.
Todos, na sua cerca/cinto, lhes rendem votos e vivem do/no seu curral sem
redil, como as cabras robustas acostumadas aos desertos, mansas vagam
livres até os cintos/cercas. Pensar o homem nordestino é pensar o homem
sertanejo, numa família sertaneja, em que todos que integram a “casa” é feita
desta mesma “fibra” forte e macia, inclusive as mulheres. Elas são as cabras
machos, são aquelas acostumadas às lidas, aos fardos, à violência
_____________________________________________________________

5
PERROT, Michelle. Mulheres Públicas. São Paulo: UNESP, 1998, 6.
6
ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz. Nordestino: uma invenção do falo. Uma história do gênero masculino
(Nordeste – 190/1940). Maceió: Catavento, 2003, passim.
7
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006, passim.
8
“O homem não sabe que faz história”. MARX, Karl. O Dezoito Brumário e Cartas a Kugelmann. São Paulo:
Paz e Terra, 1997, 21.
9
MARX, Karl. Manuscritos Econômico-filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1989; A Ideologia Alemã. São Paulo:
Boitempo, 2007.

455
nordestina de lutar cotidianamente pela liberdade, desbravadoras, guerreiras
e devotas, quando não santas e piedosas. Essas mulheres são homens nas
ausências dos homens da casa grande. E elas não podem ser outra coisa ou
não gerariam outros homens cabras machos.
Gerar os filhos dos homens é o “destino” das mulheres e disso
resultou na sua subordinação social com o advento da civilização fundada na
propriedade privada dos meios de subsistência e, depois, de produção
desses meios de subsistência. Essa tese aceita, principalmente entre as
teóricas marxistas, explica a partir de um referencial materialista-histórico,
como o conhecimento sobre a concepção e reprodução humana foram
utilizadas para regular os lugares dos sexos nas sociedades. O poder
decorrente da propriedade sobre a prole resultou na origem da invenção do
falo como representação desse poder. Em estudo etnográfico, intitulado A
Vida Sexual dos Selvagens, Bronislaw Malinowski apresenta dados de
grupos humanos que, ignorando a participação masculina na concepção, já
adotaram o pátrio poder sobre os filhos constituídos em alianças de
casamento. Essas sociedades quando adotaram formas econômicas
fundadas na propriedade privada dos meios de subsistência e reprodução
dos meios de subsistência estabeleceram diferenças de poder entre os
sexos, apropriando a força de trabalho e reservando-a ao masculino. Uma
apropriação da prole racionalizada e explicada pela adoção de divindades de
caráter masculino. Na cultura mística desses povos, os deuses enviavam
filhos aos homens como troféus pelas suas vitórias através das suas
esposas. Do que se pode concluir que a submissão das mulheres pode ser/é
anterior ao conhecimento da participação do homem na reprodução da
espécie. Importa mais saber que essa mística representante da submissão
feminina antes de tudo integra a economia baseada na propriedade privada,
reafirmando a teoria defendidas por Friedrich Engels na obra As Origens da
Família, da Propriedade Privada e do Estado, materializando e historicizando
a teoria do patriarcado.
A invenção do Falo, o falo como representação de poder, importa
_____________________________________________________________

10
LÉVI-STRAUSS, Claude. As Estruturas Elementares do Parentesco. Petrópolis, SP: Vozes, 2008.
11
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
12
Sobre as contribuições dos estudos de Lacan e Derrida, ver: RUBIN, Gaule. “O Tráfico de Mulheres: notas
sobre a 'economia política' do sexo”. Recife: SOS Corpo, 1993 (“The traffic of Women: Notes on the
'Political Economy' of Sex”, New York, 1975); SCOTT, Joan. “Gênero: uma categoria útil para análise
histórica”. Recife: SOS Corpo, 1991; KALIMEROS. A Mulher: na psicanálise e na arte. Rio de Janeiro:
Conta Capa, 1995.
13
SCOTT, Joan. “Gênero: uma categoria útil para análise histórica”. Recife: SOS Corpo, 1991, 7.
14
Ocorre uma verdadeira sobreposição de imagens e enunciados extraídos de discursos de matrizes
teóricas diversas para compor o tipo regional nordestino, que aglutina desde percepções de base racista,
passando por imagens de fundo mesológico, até imagens de tipos sociológica e historicamente definido.
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Nordestino: uma invenção do falo – uma história do gênero
masculino (Nordeste – 1920/1940). Maceió-AL: Catavento, 2003, 188.
15
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Nordestino: uma invenção do falo – uma história do gênero
masculino (Nordeste – 1920/1940). Maceió-AL: Catavento, 2003, 191.

456
o estabelecimento das diferenças entre os sexos e a consequente
subordinação da mulher ao masculino. As teorias psicanalíticas colaboram
para uma compreensão da reprodução das identidades dos sujeitos ao
entender o Simbolismo do Falo, o Falo como o lugar de poder de que se quer
ter propriedade, mas não explicam suas origens. Os conflitos entre os sexos
que se reproduzem no consciente coletivo são o resultado das máscaras das
lutas pelo poder que se produzem no inconsciente coletivo. Jacques Lacan
explica a produção e a reprodução de identidade do sujeito a partir da
linguagem e da representação do sujeito através do símbolo. Apenas a teoria
marxista permite a formulação de um modelo de compreensão da realidade
que perceba a complexidade da produção das relações materiais e a
reprodução dessas relações, integrando as subjetividades de classe aos
entendimentos do Gênero – este buscou na Teoria do Parentesco de Lévi-
Strauss o modelo para pensar a importância das relações étnicas na
reprodução das sociedades, bem como nas relações entre os sexos, as
gêneses das diferenças que se mantém entre eles e as razões para
manutenção dessas desigualdades.
A diferença naturalizada no discurso, então, reafirma a
construção de uma identidade que exclui outras identidades. Na Antiguidade,
Aristóteles afirmou na sua Poética que as personagens femininas no teatro
não poderiam ser ou ter atitudes viris, porque deveriam representar a
realidade daquela sociedade, na qual as mulheres porque não possuíam
alma, eram imperfeitas e, por isso, necessariamente, submissas aos
homens. Tal afirmativa do filósofo ajuda a compreender que o Ser é uma
invenção social que deve solucionar os conflitos resultantes do lugar de
propriedade estabelecido na constituição da desigualdade fundada na
economia de subsistência baseada na propriedade privada dos seus meios
de produção. O abismo entre o Público e o Privado, a divisão sexual do
trabalho e a opressão do sexo feminino (gerador da vida) servem para
reprodução do produtor da mercadoria primária: a força de trabalho, os filhos,
e para reprodução da força de trabalho, as filhas, reprodutoras da vida.
Hannah Arendt, na sua obra A Condição Humana, adverte para a dicotomia
dos lugares próprios a cada sexo: a produção e a reprodução da propriedade,
lugar do público, do Ser; reprodução da força de trabalho, da vida, lugar do
privado, do doméstico, do outro, do Não-ser.
Tais entendimentos resultam na crença num essencialismo
próprio do humano, na naturalização dos papeis sociais dos sexos, e na
representação imagética e lingüística dos lugares de poder ocupados por
homens e mulheres na hierarquia social, primeira forma de diferenciação
_____________________________________________________________

16
O homem sertanejo e nordestino foi comparado à fibra do algodão mocó, da melhor qualidade e da mais
resistente fibra de todas as Américas. A Voz da Manhã apud Idem, 187.
17
MALINOWSKI, Bronislaw. A Vida Sexual dos Selvagens. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983, passim.
18
ENGELS, Friedrich. As Origens da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1995, passim.

457
entre os sexos e de divisão de poder. A exemplo do significado de Ser-
homem, Ter-poder, Ser-proprietário, muito bem representado no grito de He-
man, herói de um desenho infantil televisivo, “I have a power!”. A dicotomia
presente nas contradições próprias do sistema revela o significado de Não-
ser-homem e Ser-o-outro como característica inata do feminino, isto é Ser-
Mulher (!?).
Mulher macho. O que é Ser Macho? Segundo Durval Muniz de
Albuquerque Júnior, em sua obra já citada, ser macho na sociedade
nordestina qualifica o masculino ao lugar de poder na sociedade burguesa em
avanço para o modelo de propriedade nas colônias abrasadas pelo sol,
porque o torna hábil para o desenvolvimento do sistema de mercadoria sob a
linha do Equador: o caráter bravo, resistente e emotivo desse homem, fruto
do seu meio, de uma evolução das raças – em que mistura o melhor do
sangue de três “raças” –, adaptado e “soleado” na sua história de
sobrevivência só é possível porque aliado pelos elos de solidariedade
próprios da personalidade do mestiço nordestino. Uma marca inerente de
“cordialidade”, que nem mesmo o pensamento moderno mais pragmático
conseguiu negar como sendo do caráter da identidade do povo brasileiro.
Em situações adversas, a sociedade pode aceitar uma revisão do
papel social da mulher, desde que se afirme e reconheça o deslocamento
provisório. Um exemplo, entre outros similares, que não destoa, portanto, dos
ideais propostos pela sociedade para a mulher e colabora com o
fortalecimento da cultura patriarcal. Nessa tradição, a mulher apenas se
coloca como reprodutora da natureza humana e, quando necessário, dos
bens de produção, sendo, então, inserida na economia formal, mas sempre
de modo indireto e inconstante, apenas quando as estratégias para
manutenção do sistema exigem o seu Exército de Reserva.
A revisão do papel social de homens e mulheres foi narrada e ao
se observar a literatura do período a partir do último quartel do século XIX aos
anos de 1940, desde os romances até as reportagens que circulavam em
lugares distintos do mundo, encontraremos imagens construídas de
mulheres e homens associados a um contexto de avanço da industrialização
e da crescente urbanização, com seus ares cosmopolitas e progressistas.
Homens e mulheres que a partir de estratégias diversas vivenciaram os
novos tempos e experimentaram esses momentos de transição e de
deslocamento dos valores.
Através dos textos jornalísticos e dos retratos fotográficos, sabe-
se que Maria Bonita, no sertão nordestino, e Amélia Robles, na área rural
mexicana, a partir de leituras distintas do papel feminino em meio aos valores
masculinos, atuaram de modos diversos ao participarem do mundo público,
mas as duas reafirmaram a inversão dos lugares de gênero que ocuparam,
refazendo imagens do feminino e do masculino arraigadas culturalmente nas
sociedades em que estavam inseridas. Os discursos construídos e os
“retratos de estúdio procuravam estabelecer a identidade social do indivíduo
458
fotografado segundo um código visual de elegância” admitidos, conclamados
e usados por essas sujeitas, bem como pelos seus redatores e leitores.
A baiana Maria Déa ou Maria Gomes de Oliveira, a Maria Bonita,
em 1929, aos 18 anos de idade, integrou um grupo cangaceiro como esposa
do mito Virgulino Ferreira da Silva, nascido pernambucano de Serra Talhada.
Foi a primeira mulher participante do banditismo, alterando o cotidiano rude
da peleja com o colorido das roupas e maquilagens, introduzindo relações
domésticas na vida pública da guerrilha, reforçando o papel de coronel
pretendido por Lampião. Nas fotos, aparece fardada, armada e bem
penteada. Era apreciada na sua beleza – tinha o porte baixinho, era
rechonchuda, com olhos e cabelos castanhos – e também na sua valentia e
intolerância nos julgamentos e condenações, quando as mulheres eram
consideradas “naturalmente” benevolentes e melindrosas. Morreu lutando e
foi decapitada como exemplo na Serra dos Angicos, em Sergipe, no ano de
1938. Com Lampião, teve uma filha, deixada muito cedo com a avó.
Amélia Robles, por sua vez, participou no exército camponês em
plena guerra civil mexicana, assumindo mais que o papel de soldado,
transvestindo-se de homem nesse processo,
um perfeito janota: terno escuro, camisa branca, gravata,
chapéu preto de aba larga, sapatos de pelica e nesga de lenço branco no
bolso do casaco. De pé e com um charuto numa mão, a outra posta sobre
o revólver como para fazer ressaltar a arma que levava dependurada no
coldre da cintura.
Amélia Robles, nascida em 3 de novembro de 1889, no povoado de
Xochipala, no estado de Guerrero, registrada e batizada Malaquias, segundo
o calendário religioso, foi reconhecida uma menina no seu primeiro
documento. Em casa, chamada pelo nome de Amélia, cresceu cumprindo os
rituais da época, fazendo os serviços domésticos e integrando uma
congregação católica responsável por encaminhar espiritualmente as
jonvens, Filhas de Maria. O que não a impediu de aprender a domar cavalos e
manejar as armas, habilidades reconhecidas e necessárias no momento em
que resolveu torna-se soldadera. Zapatista, lutou sob as ordens de vários
chefes por mais de cinco anos, até que a decadência do movimento e a morte

_____________________________________________________________

19
ARISTÓTELES, “Caracteres, Verossimilhança e Necessidade. Deus ex machina”. Ética à Nicômaco;
Poética/ Aristóteles, São Paulo: Nova Cultural, 1987, passim.
20
ARENDT, Hanah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000, passim.
21
Tradução livre: Eu [Ele-homem] tenho a força! He-Man é o personagem principal da série de brinquedos
Masters of the Universe, lançados pela americana Indústria de Brinquedos Mattel, em 1983, animados pela
produtora Filmation Studios, e desenhados em gibi pela DC Comics. O seriado foi popularizado no Brasil
através da Rede Globo de Televisão, na sua programação infantil, pela Editora Abril, distribuidora dos gibis,
e pela Mesbla, comerciante de brinquedos, entre os anos 1983 e 1985. E ainda hoje é transmitido em rede
particular de televisão. He-Man pretende ser a representação do homem forte, masculino e sexualmente
viril. Personagens femininas secundárias foram criadas paralelamente, sempre subordinadas ao herói, a
exemplo de She-Ra.
459
de Zapata a inclinaram por outros rumos dentro e fora das batalhas.
Na maturidade teve o reconhecimento de sua identidade masculina, Amélio
Malaquias Robles Ávila, a partir dos documentos que atestaram a sua
participação em diversos grupos, tais como: filiação ao Partido Socialista de
Guerrero (1934), delegado em Xochipala da Liga Central das Comunidades
Agrárias (1945) e membro da Associação Pecuarisra de Zumpango (1956 e
1958), entre outros, incluindo um exame médico atestando a sua virilidade,
pelo doutor Pedro González Peña. Foi entrevistada em vários momentos de
sua vida, por jornais locais e estrangeiros, e sua figura foi avaliada por
jornalistas homens e mulheres de modos diversos, sempre sensacionalistas,
dos quais são exemplos dois episódios: Em El Universal, talvez o jornal de
maior circulação na década de 1920, na cidade do México, quando a figura de
Amélia Robles foi descoberta e sua identidade feminina estampada, mas nem
por isso menos valorizada a virilidade que imprimia na foto acompanhando a
entrevista. E, décadas mais tarde, nos anos de 1940, outra vez entrevistada
por Gertrude Duby, jornalista suíça exilada no México e militante socialista.
Nessa entrevista, a figura de Amélia Robles sofre um giro completo e
transforma-se em memória das mulheres que combateram na Revolução,
referindo-se a Robles como “à coronela Amélia Robles no feminino”.
Observa-se, assim, como os usos da imagem “reproduzem a polaridade de
gênero dos papéis feminino e masculino” [e como] “a história de Robles ao
mesmo tempo subverte e fortalece as normas culturais de gênero”. É possível
também a partir dessa experiência perceber os usos das falas para a
construção e reconstrução das identidades, inclusive de gênero, e como se
forjam historicamente no enfrentamento de criar um sentido e um re-
alinhamento social necessário.
Maria Bonita e Amélia Robles ocuparam o vazio deixado pelo
masculino em situações adversas e foram retratadas de formas distintas
pelos grupos de interesse. As fotos produzidas em estúdio ou fora deles são
_____________________________________________________________

22
Durval Muniz de Albuquerque Júnior. Nordestino, uma invenção do falo. Op. cit., passim.
23
No capítulo em que analisa a obra Raízes do Brasil, de Sergio Buarque de Holanda, José Carlos Reis
observa essa cordialidade se deslocando do rural (onde ela é a expressão da igualdade entre as elites e
também a manifestação das formas paternalistas e de dominação entre os grupos sociais
hierarquicamente estabelecidos; fazendo-se e se reproduzindo nos bastidores, para poucos, em que ela é
sinônima de “ausência de espaço público”, de regalia) para uma afetividade urbana (dominada pelas
regras sociais; em que uma revolução lenta liquidaria as desigualdades) que possibilitaria a inserção das
camadas menos favorecidas: “No Brasil, são inconsistentes os preceitos de raça e cor, recusamos toda
hierarquia muito rígida, somos cada vez mais urbanos e rejeitamos a violência. Estes valores cordiais são
também democráticos. Poderia haver uma articulação entre sentimentos do homem cordial e as idéias da
democracia liberal. Não podemos trocar simplesmente o nosso ser cordial por esquematismos rígidos e
impessoais. Não podemos ignorar o nosso ritmo espontâneo próprio. O que não podemos fazer é nos
abandonar a Ele. [...] Nossa realidade contraditória precisa ser incluída de alguma forma na construção de
nossa sociedade democrática”. Apud REIS, José Carlos. As Identidades do Brasil: de Varnhagem a FHC.
Rio de Janeiro: FGV, 2000, 138.
24
BANDEIRA, Andréa. “O Sagrado”. In: Gênero & História. Cadernos de História. Ano 1. Nº 1. Recife:
Universitária UFPE, 2002, 69-82; As Beatas de Ibiapina: do mito à narrativa histórica (1860-1883).
Dissertação de História. Recife: UFPE, 2003, passim.

460
as marcas dessas sujeitas, que usaram as tecnologias possíveis para
divulgar uma imagem, o retrato fotográfico: “Os elementos formais da
fotografia – enquadramento, iluminação uniforme, entorno e, sobretudo, a
pose contida e serena do sujeito colocado no centro da cenografia – se
ajustam às convenções do retrato burguês, em que a pessoa fotografada usa
seu melhor traje e posa com decoro”. Reconstruíram os modelos de
feminilidade a partir das brechas que favoreceram suas inserções no mundo
do público.
No romance, as personagens Luzia-homem e Capitu permitem
notar as contradições dos discursos que socializaram a nova imagem da
mulher no processo de da industrialização brasileira.
Luzia-homem, na obra-título de Domingos Olímpio, é o retrato de
uma mulher nordestina, do interior do Ceará, que no final dos anos 1870,
retirante da seca, necessita sobreviver num meio hostil a sua condição de
mulher e a sua opção sexual, que, em princípio, é apenas implícita e assim
continua, apesar de um contraído casamento que não se consuma pelo fim
dramático escolhido pelo escritor. Mulher robusta, acostumada ao trabalho
braçal, fazia as tarefas ditas masculinas, e por isso, a sua alcunha. Descrita
como recatada e silenciosa, uma conduta própria para a feminina, usava
desses atributos para recusar o amor dos homens que por ela se
apaixonavam e tentavam dela se aproximar, inclusive à força, pelo soldado
Capriuna; o leal e respeitoso Alexandre, de quem ela aceita apenas a relação
de amizade e ajuda mútua. Luzia não se interessa por esses amores. No fim
do romance, o poeta formado no determinismo característico da literatura
Romântica e Naturalista, decide tragicamente pela solidão humana ou por
manter o disfarce da conduta sexual da personagem.
Capitu é uma mulher subentendida na fala da figura dramática de
Bentinho. Um homem com uma curiosa percepção da realidade. A
personagem feminina não existe senão através da palavra e do juízo do seu
narrador/personagem. Machado de Assis narra a estória da história da vida
contada por Bentinho. Machado de Assis não sabe quem é Capitu e ela é
apenas secundária na sua ficção, intitulada Dom Casmurro. Quem é Capitu?
Ela é a mulher inventada por Bentinho e existe no entrelaçamento das duas
vidas. Na ausência de ser a mulher amada e odiada pelo amante e esposo,
ela não existe. E, no entanto, se torna fundamental, porque, como afirma o
personagem no inicio do conto, ele vai narrar o seu drama e seu drama é a sua
_____________________________________________________________

25
CANO. Gabriela. “Amélio Robles, Andar de Soldado Velho: fotografia e masculinidade na Revolução
Mexicana”. Cadernos Pagu. N. 22. Campinas-SP: Unicamp, março de 2004, 115-150.
26
Idem.
27
Segundo Gabriela Cano, a identidade feminina de Amélia Robles não era um segredo e ao longo da sua
vida ela foi tratada ora assumindo sua identidade masculina, ora assumindo sua identidade feminina,
sendo então chamada de coronela Robles. CANO. Gabriela. “Amélio Robles, Andar de Soldado Velho:
fotografia e masculinidade na Revolução Mexicana”. Cadernos Pagu. N. 22. Campinas-SP: Unicamp,
março de 2004, 115-150.
Idem.
461
vida e a sua vida começa quando ele encontra e se encanta com os olhos, o
olhar oblíquo, de Capitu. Ela desliza nos seus sonhos entre a virtude e o
pecado, a crueldade e a ingenuidade. A obra machadiana, publicada em 1899
é um conto que utiliza a metalinguagem para desenvolver uma perspectiva
subjetiva da realidade da sociedade carioca do fim do século, construída
numa narrativa fantástica e romântica, onde, ainda assim, predomina o
determinismo próprio do realismo característico da obra machadiana. Duas
imagens de ser feminina num mundo onde impera o masculino e o masculino
tem a fala.
Amélia Robles, Luzia-homem, Capitu, Maria Bonita, todas as
mulheres, elas são adivinhadas. Descritas, sem falas, são inventadas.
Lembradas, são ignoradas. É mister historicizar as mulheres. Buscar as
fontes construídas por elas sobre si, e ainda assim, serão transversadas. Mas
quem existe per si? Quem é? Que modelo ou olhar esconde-se do
demasiadamente humano? Mas como também garantir que elas se
escondem nas epistemologias existentes, que elas não reconhecem a si?
Desde quando homens e mulheres não participam sob o mesmo
sol de primavera? Mas, este é um outro diálogo.
A proposta-resposta desse artigo foi a desconstrução do papel
subserviente da mulher na atual sociedade, observando a importância da
linguagem na manutenção das diferenças entre os sexos e sua implicação
ideológica, e propor uma nova visão do papel social feminino, passo para a
conclusão do projeto de criar uma identidade positiva para o Ser Mulher. A
desconstrução da naturalização da inferioridade e consequente
subordinação social da mulher em relação ao homem resultará em relações
de equidade entre homens e mulheres e o fim de uma era patriarcal.
Assim, entender a alcunha Mulher macho como uma
representação da inexistência do feminino na nossa sociedade varonil e
misógina é uma forma de identificar os modos como se conservam o papel
superior e a identidade única do masculino e re-avaliar as transversalidades
discursivas.
Na literatura, como exposto, nota-se que os valores de gênero
constroem identidades e reproduzem as relações entre os humanos. Pois,
estabelecem um senso de desenho de realidade transposta para a escrita e ai
naturalizada. Ao analisarmos essa literatura, oportunizamos a compreensão
de como os referenciais teóricos equacionam uma mentalidade formal sobre
os valores de Gênero e os seus usos. Bem como, faz notar a experiência
corrente na sociedade, para que possamos interferir no processo de
transformação da realidade. É, também, uma forma de iniciar uma prática de
fala responsável, porque autocrítica e preocupada em importar a equidade
entre os sexos.
_____________________________________________________________

28
Idem.
29
Idem.
30
Idem.

462
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464
O RITUAL DA MOÇA NOVA NA CULTURA SATERÉ-MAWÉ
Solange Pereira do Nascimento
Iraildes Caldas Torres
Os Mawé ou Sateré-Mawé são um povo indígena heterogêneo
originado do tronco Tupi, pertencente à etnia Tupi-Guarani. Os estudos de
Yamã (2007, p.15) dão conta de que esses indígenas,
São trilingues: falam o idioma nacional Sateré, o português (implantado
pela sociedade dominante), além da língua geral, o Nheengatú, falada por
parte dessa sociedade que, por estar há mais de trezentos anos em
contato com os brancos, atualmente vive em estado de integração, o que
lhe tirou muito de sua tradição.
Os Mawé estão organizados e divididos em cinco clãs tribais:
Sateré, o clã principal e detentor dos direitos políticos do povo; Napu'wany'ã,
o clã agricultor; Koreriwá, o clã caçador; Watunriá, o clã pescador e Hwariá,
o clã guerreiro. Além desses cinco há outros clãs menos importantes
pertencentes a cada clã principal: o Awi'á, clã das abelhas, o Wasaí, o Ga'ap,
o Mói, o Waraná, o Maraguá (independente) e o Hamaut.
O nome composto da etnia é carregado de significado assim
como todos os outros elementos da cultura Sateré-Mawé são densos de
simbologia. O primeiro nome Sateré é uma homenagem aos antepassados
deste povo, precisamente ao clã dos tuxauas considerado de alta estirpe
entre o seu povo. O segundo nome, mawé, é uma referência ao povo simples
da etnia (estrato subalternizado). Para Uggé (1991), este é o nome mais
completo da etnia na medida em que toma como símbolo um tipo de papagaio
falante existente na região. Esta simbologia acabou dando um tom popular à
denominação da etnia.
De acordo com a consulta aos códices existentes nos arquivos
das Bibliotecas Públicas do Pará e do Amazonas, não há unanimidade em
relação ao termo mawé. Isto vem desde o início da conquista
espiritual da Amazônia, dos descimentos e amarrações, relativamente ao
nome dos indígenas a que nos referimos (PEREIRA, 2003). Os vários nomes
que esta etnia recebeu foram os seguintes: Mooz, Mabué, Mangués,
Manguês, Jaquezes, Maguases, Mahués, Magués, Mauris, Mawés,
Maraguá, Mahué e Magueses. Um Pajé indígena ouvido nesta pesquisa
considera que,
O nome Mawé foi dado por um missionário que entrou na reserva para
catequizar os índios. Falavam que os missionários pegavam as crianças e
jogavam no rio. Então, os tuxauas atacaram os luzeiros (missionários)
numa praia de Ponta Alegre. O único padre que restou (do ataque),
_____________________________________________________________

1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia da Universidade Federal
do Amazonas
2
Professora da Universidade Federal do Amazonas (PPGSCA) e Doutora em Ciências Sociais pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

465
indignado com a barbárie cometida pelos índios, lançou uma praga que teria
firmado o nome da etnia: mau és, mau foste, mau serás.(Sahu, Ismael
Freitas, entrevista/2008).
Os Sateré- Mawé habitavam uma larga faixa de fronteira situada
entre os Estados do Amazonas e do Pará, numa região conhecida como
Mawézia, a pátria dos Mawé. Essa região abrange os municípios de Parintins,
Barreirinha, Boa Vista do Ramos e Maués, no Amazonas e Itaituba e Aveiro,
no Pará. Localiza-se a leste da segunda maior ilha fluvial do mundo, a ilha
Tupinambarana, berço da civilização Mawé. Atualmente os Mawé ocupam
somente um terço da Área Indígena Andirá-Marau, nos confins do território
original.
Ao todo, formam uma população de 12 mil pessoas, distribuídas
dentro e fora da fronteira de seu território. Muitos vivem em cidades vizinhas,
como Parintins, Maués e também, em Manaus.

Fonte: Quadro elaborado no processo de trabalho de campo/2008.


Quadro 1 – Organograma da Organização Político-Administrativo dos Sateré-Mawé.RÉ – MAWÉ

O Conselho de anciãos é quem escolhe os tuxauas menores


que são aqueles que vão chefiar vilas, aldeias ou comunidades. Da
associação dos Tuxauas menores, é escolhido um governador-geral ou
tuxaua-maior que tem a função de governar a todos dentro e fora da TI (Terra
Indígena). No caso específico dos Sateré, são escolhidos dois tuxauas-
maiores; um que governa a área do rio Marau e outro que governa a área do
rio Andirá, tendo em vista o número muito grande de habitantes e as
distâncias entre os clãs.
Os Sateré-Mawé vêm ao longo dos tempos, travando uma luta
466
desigual entre manter a cultura originária de seus ancestrais e a 'submissão'
aos cânones exógenos da sociedade moderna. É uma luta desigual porque
durante centenas de anos estes povos viveram um tempo marcado pela
natureza. O tempo era o dia e a noite. O dia para desenvolver suas atividades
laborais e a noite para descansar. Não conheciam o relógio e suas vidas
seguiam o ritmo natural como natural é a harmonia dos opostos. No entanto,
para garantir a sua sobrevivência estes povos vêm se ressignificando em
meio aos processos de urbanização e modernização.
Do descobrimento até os dias atuais, estes povos já passaram
por inúmeras situações adversas em busca de um diálogo não-
preconceituoso com a sociedade envolvente. Não admitem mais a tutela e
nem a alcunha de silvícolas como define a Constituição Federal do Brasil, que
continua tratando-os como seres menores de segunda categoria na
sociedade nacional. Estes povos necessitam de um olhar mais atencioso e de
um especial acompanhamento nesse processo de mescla com a cultura
branca sem que haja perda de sua identidade cultural.
O RITUAL DA MOÇA NOVA E A QUESTÃO DE GÊNERO
A identidade cultural dos Mawé é formada pelo Puratig̃ (uma
espécie de remo sagrado que eles acreditam ter poderes mágicos) e pelo
Sehaypóri (a coleção de histórias do povo, gravada no Puratig̃). Dentre essas
histórias, encontra-se o Waiperiá e o Ritual da Paca ou Moça Nova. O
primeiro é o ritual de passagem dos homens e o segundo das mulheres,
quando ambos deixam a infância e assumem as responsabilidades próprias
da fase adulta. É de novo interesse, neste paper, situar somente o ritual de
passagem das mulheres.
As memórias ancestrais dos Sateré-Mawé ainda têm força e se
encontram manifestas em seus rituais, principalmente o Waiperiá (ritual
masculino) e o da Paca ou Moça Nova (ritual feminino). Deter-nos-emos a
analisar agora o ritual de passagem especificamente feminino a partir da
narrativa da Tuxaua Baku que dirige a Comunidade Sahu-apé, lócus de nossa
pesquisa.
É interessante descrevermos o ritual da moça nova a partir da
narrativa de quem passou por esse rito. A tuxaua Baku nos narrou este ritual
com base na sua própria história e como ela vivenciou esse processo de
iniciação aos 11 anos de idade. Metodologicamente dividiremos a fala da
Tuxaua em pequenos trechos para melhor compreendermos a riqueza do
ritual de passagem da infância para a fase adulta. Cumpre-nos esclarecer,
que entre os indígenas não existe a pré-adolescência, adolescência ou
juventude. Se é criança vive-se como criança e depois se é adulto passa a ter
as responsabilidades de um adulto. Segundo a nossa informante:
O ritual da moça nova, ele é quando a gente fica... eu quando fiquei tudo

467
tinha onze anos. Eu menstruei pela primeira vez né. Eu não sabia, a minha
mãe nunca falou pra mim né como que a gente ia quando é a primeira vez
da gente né e nesse dia eu fiquei pra mim fazer uma faxina, aí né eu tava
capinando aí eu vi aquele negócio escorrendo pela minha perna aí fui me
embora tomar banho, aí comecei a tomar banho eu não sabia de nada né,
até que minha irmã mais velha perguntou: Zelinda o quê que ta saindo?
Eu disse: não sei, eu nem me cortei, nem nada, aí ela disse: Ah Zelinda tu
ta moça nova, vou já falar pra mamãe, aí ela foi e falou pra minha mãe, aí a
minha mãe veio de lá me agasalhar, ela ainda me bateu ainda né, porque
diz que o pau tinha me furado.(Tuxaua Baku, entrevista/2009).

Não é fácil à nossa entrevistada narrar a cena inicial da


passagem fisiológica da infância para a fase da 'mulher adulta'. Ela ficou
mocinha como dizemos no mundo dos brancos. Trata-se de um termo muito
carinhoso dos pais para demonstrar que mesmo não sendo mais criança, no
sentido fisiológico, também ainda não é uma mulher adulta na sua totalidade,
porque corpo e mente tem processos diferentes de amadurecimento. Aqui
percebemos, por exemplo, a 'ingenuidade' da infância e a vivência profunda
da mesma no mundo indígena onde a criança é considerada criança e nada
mais lhe é adiantado de outra fase, antes que ocorra o processo. A
menstruação marca literalmente o rompimento de uma fase, sinalizando que
vai começar outra envolvendo as responsabilidades.
Um outro fato surpreendente no discurso é que no caso
específico de Baku, mesmo sem entender o que estava ocorrendo, ela notou
a preocupação da irmã e da mãe quanto à certeza de ser ou não ser a
menarca. Note-se que é um mistério que envolve os cuidados para com a
moça nova. De acordo com a tradição Sateré, a mãe dá início ao primeiro ato
do ritual que é o de agasalhar.
Continuaremos a narrativa sendo didaticamente cuidadosas
com a seqüência lógica do ritual.
Não sei o quê, aí logo ela me colocou num quarto de barro né. Aquele
quarto já era sagrado e eu não sabia pra que era né. Aí ela atou uma rede
assim, (fez o gesto de atar e a posição). Mas, só que não era essa rede
(mostrou a rede que ela estava se embalando no momento da entrevista)
era a rede de mingangue - que falam né, rede de fio tecido. Aí se você
deita pra um lado, só pra aquele lado tu fica né, durante é...eu levei três dia
deitada só pra um lado né, aí ela veio e trouxe um pau. Ela disse: agora
com esse pau aqui tu cava um buraco bem aqui perto da tua rede né, aí eu
cavei o buraco bem perto da minha rede aquele pra mim fazer minha
necessidade né. Aí passei seis dia deitado só pra um lado e me alevantei
quando depois tomei banho, depois que eu tomei banho pela primeira vez
ai ela me arranhou toda com o dente da paca. Arranhou todo esse lado
aqui (mostrou o lado esquerdo) mas não mudei minha posição na rede

468
durante um mês pra num falhar o meu dia né, um mês deitado só pra um
lado, sem sair pra fora, só via água porque levavam na cuia, eu tinha meu
balde né, aí lá passei um mês. (Tuxaua Baku, entrevista/2009).

Um segundo momento, foi levá-la para casa, colocá-la num


quarto feito de paredes de barro, que é diferente do estilo arquitetônico das
residências dos Sateré, que normalmente são feitas de madeira e revestidas
de palha branca. A relação deste momento e a reclusão em um quarto
devidamente preparado e até sagrado como ela fala e também o ato de fazer
um buraco na terra e enterrar suas necessidades fisiológicas tem uma
relação muito profunda do mundo indígena com a terra. Podemos entender
que o barro das paredes do quarto representa a proteção da grande mãe que
é a terra de onde os Sateré tiram o seu sustento e mais ainda por ser a terra
semeada pelas mãos da mulher, a terra da roça que é o seu lugar específico.
O se resguardar no ventre da terra para que a própria terra lhe favoreça saúde
e vitalidade. Para Uggé, (1991, p. 16)
Na explicação indígena da procriação do ser humano, o útero da mulher é
considerado o berço (mãe da terra) onde o sêmen, depositado pelo
homem, cresce e torna-se fruto completo, sendo por isso o homem origem
da vida.

Então é possível entender que este processo de geração de vida


a partir da terra é cíclico na vida dos Sateré-Mawé. Ou seja, o primeiro
processo da vida é entendido a partir do que nos diz Uggé; o segundo
momento é o da preparação realizado no ritual da moça nova quando esta a
partir de sua menarca retorna ao ventre da terra representado pelo quarto de
paredes de barro para que ali na solidão e no resguardo ela possa ser
preparada para gerar futuramente outras vidas fortes e saudáveis conforme
as regras que lhe são impostas pelo seu grupo social. O último momento seria
o de retorno ao mundo dos mortos representado pelo ato de cavar um buraco
e enterrar neles seus excrementos – aos poucos o corpo vai se conduzindo ao
seu destino final.
Sabemos que são muitos os mitos que envolvem o processo de
menstruação, mesmo no mundo não-indígena. Antigamente, ou melhor, na
época de nossas mães e avós, havia proibição quanto ao fato de lavar os
cabelos, comer alguns tipos de fruta, carnes e outros elementos mais,
todavia, isso estava relacionado ao fato de preservar a saúde feminina. Hoje,
a medicina diz que isso é pura fantasia, porém, é também perceptível que as
mulheres desta época tinham menos problemas de saúde do que nos
momentos atuais. Fantasia ou não, o certo é que os Sateré também seguem a
_____________________________________________________________

3
Comunidade Sahu-apé da Etnia Sateré Mawé, localizada na AM 070 que liga Manaus a Iranduba no Km
39 na sua margem direita. Mais precisamente na Vila do Ariaú.
4
Ela se referiu à primeira menstruação ou menarca. Num primeiro momento fez gestos dando a entender
do que se tratava e não pronunciou a palavra; somente depois é que se referiu diretamente ao termo.

469
mesma linha de raciocínio fortemente presente no ritual da moça nova.
A Tuxaua nos disse que a moça após ser trancada num quarto
com paredes de barro, cavar um buraco ao lado da rede para depositar
dejetos fecais, ela fica deitada imóvel durante seis dias numa rede tecida de
fios. Ela fica deitada de um lado só, sendo alimentada por chibé trazido na
cuia pela mãe ou pela avó. A partir deste momento, durante o período de
reclusão também tem outras proibições, tais como:
Vamos dizer, se eu menstruei com essa roupa, (dá um exemplo mostrando
suas vestimentas) com essa aqui eu vou passar o tempo todo, num troca

não, num penteia cabelo, num come sal, num come açúcar, nada, só
farinha, o chibé. [..] Peixe, de jeito nenhum, pior ainda o peixe porque ele é
chapéu do boto, o índio tem muito medo do boto, aqui que eu converso com
o boto, mas só mesmo durante o mês, só chibé e farinha, como é sehay e a
farinha, aí com um mês aí já vai comer orelha do pau é urupê e a cutia e o
inambu, primeira comida da moça nova, aí depois de um mês, dois mês aí já
pode comer a castanha, pode comer paçoca de inambu, de tucano já pode,
peixe nem pensar. Nem, veado nem pensar. porque ele pula muito, ele é
muito danado, ele pula pra cá ele pula pra li, ele pula pra cá. De jeito
nenhum, por isso que hoje moça nova eles não param demais, porque eles
não se guardam né, vê essa minha neta aqui que ela é guardada, ela não é
muito danada não né, mas gente que não é guardada, ele puxa... não param
num lugar. (Tuxaua Baku, entrevista/2009).

Para os indígenas, o fato desta permanência e obediência a esta


regra significa resguardar o corpo contra outros males e assim manter a
saúde feminina. Observe-se que somente após os seis dias, ou seja,
basicamente após uma semana é que ocorrerá o primeiro banho. Depreende-
se que a menstruação cessou e então ela poderá se purificar, lavando o seu
corpo de forma completa, e não fazendo somente um asseio, por isso tem um
balde ao lado da rede. Em tempos idos seria uma espécie de pote de barro.
No terceiro trecho da entrevista, a tuxaua nos narra o segundo
mês após a menarca, ouçamo-na:
Depois do mês né, durante é...três, três dia só chibé e sehay, saúva, aí
depois que eu tomei banho já tem dois mês né aí arranharam todinho meu
corpo. Depois de arranhado aí minha mãe passou catauiri e mangarataia e
passa no corpo da gente todinho, arde, arde, arde... Mas ai, tu ainda não
pode sair do quarto. Tu ainda fica lá dentro. Aí meu pai trouxe cutia e inambu
pra mim comer, aí eu comia pouquinho, pouquinho até um mês, depois do
mês que eu menstruei outra vez aí eu já mudei meu lado né, desse lado
(esquerdo) eu já passei dormir pra esse lado (direito), já me virava, mas
ainda não sai pra andar não, fiquei só ali dentro do quarto.

No segundo mês a moça permanece longe dos demais membros


470
da comunidade, fechada no seu quarto, mantida isolada ou
resguardada. Novamente o seu corpo é arranhado com o dente da paca (o
lado direito) para liberar o sangue que eles consideram ser o sangue da
infância. Ou seja, daquela fase em que os pais faziam tudo para a criança e
que, portanto, era preguiçosa. Durante mais três dias que são praticamente
os dias da menstruação ela já pode comer além do chibé, o sehay saúva
(formiga amassada no pó de pimenta). Esta é uma iguaria que faz parte da
alimentação dos Sateré-Mawé e que eles acreditam ser adequada para este
momento do ritual, porque tanto a pimenta quanto a formiga representam
energia e coragem para o trabalho. E a moça nova deve desenvolver estas
características dentro do grupo tribal. Segundo Uggé (1991, p. 16)
As expressões culturais são o veículo através do qual as 'sociedades
primitivas (primitivas no sentido de grupos organizados nas formas mais
antigas de convivência) levam os próprios componentes a ter consciência
da identidade individual e tribal. [...] Numa sociedade tribal, o mapa
simbólico tem inúmeras formas de ser representado; os códigos de
aprendizagem cultural mais expressivo entre os Sateré-Mawé aparecem
nos momentos básicos da vida do índio: nascimento, iniciação,
casamento e doenças – morte.

Observe-se, que é somente a partir do segundo mês que ela


recebe alimentação pelas mãos do pai que traz um tipo de alimento
energético que gera coragem e força. Há aqui fortes traços de assimetria de
gênero. A moça nova precisa da força e do dinamismo para o trabalho que
vem do pai. Ou seja, é somente ele que pode transmitir esses dons, através
do alimento ofertado. A moça parece precisar do homem para ter força e
coragem. Esta questão da presença paterna é muito mais marcante do que
parece. É ele que delimita os espaços sociais de gênero. Maués, (1993,
p.109) tem mais a nos dizer.
O rito de passagem não representa apenas uma mudança biológica, no
sentido de um início da capacidade reprodutiva da mulher, mas tem

principalmente um caráter social, pois o fato de a menina se tornar 'moça'


implica assumir, a partir daí, a posição que lhe é reservada como uma
categoria oposta à masculina. Antes disso, ela, como menina, não ocupava
uma posição social definida, podendo, assim, circular livremente em certos
domínios que passam, agora a lhe ser interditados, uma vez que são tidos
em sua sociedade como masculinos e, como tal, vedados à mulher.
_____________________________________________________________

5
Vejamos a explicação dada pela própria Tuxaua sobre o sentido de arranhar o corpo com o dente da paca:
“Só o da paca, porque ele é amolado, ele parece uma faca... e a paca, diz que porque ela é gorda e agente
fica gorda, já vem dos velhos já mesmo pra ser gordo, aqui a perna pra ficar gordo, é. [..] É pra gente não ser
doente, pra gente não ter preguiça, porque o que mata a pessoa hoje é preguiça né, ai dormir até àquela
hora, eu num vou fazer nada né, isso é que mata, e você que é arranhado, você acorda cedo né, diz o João:
poxa mamãe se acorda muito, de madrugada, a mamãe se acorda, mas porque, graças à Deus, apesar de
né, não ser magra mas eu acho que eu tenho saúde”.
471
Neste universo cultural as relações entre homens e mulheres
parecem bem definidas e profundamente delimitadas. Aparece a presença
masculina impondo o poder pré-estabelecido como o mantenedor da ordem e
continuador dos costumes. Matos (2000, p. 23) chama atenção para o fato de
que:
É importante observar as diferenças sexuais enquanto construções
culturais, lingüísticas e históricas, que incluem relações de poder não
localizadas exclusivamente num ponto fixo – o masculino -, mas presente
na trama histórica. Bem como investigar os discursos e as práticas que
garantem o consentimento feminino às representações dominantes e
naturalizadas da diferença, o que não excluiria que à incorporação da
dominação às variações, manipulações, táticas, recusas e rejeições por
parte das mulheres, complexificando as relações de dominação históricas.

A partir do terceiro momento do ritual poderemos entender melhor


o poder dessas representações no contexto histórico em que elas estão
inseridas e o nível de dissimulação da dominação masculina que elas
camuflam, envolvidas em ritos disciplinares de iniciação ou passagem de
idade.
Aí quando é três mês, aí tu já sai pra roça. Tu vai tirar mandioca, aquele suor
puxa vida, dói muito, mas tu não pode gemer, tu não pode reclamar, tu tem
que ta ali arrancando mandioca, mete no paneiro e vem pra casa, aí deixa lá
e depois vai embora pro quarto de novo. Com o corpo arranhado, aí depois
de três mês, até quatro mês aí tu já sai, tu já começa a fazer as coisa em
casa, tu já começa tomar banho, mas tem banheiro apropriado de palha no
mato né. Só depois de cinco mês aí tu já pode tomar banho na beirada já. É
depois que ela sai né, ela vai tomar o banho aí, já ta boa de trabalhar né, todo
mundo já sabe, mas durante isso ninguém não. É só pessoal, é só mesmo
da mãe e do pai... A aldeia sabe por que ela some, ela ta guardada ali, já
sabe que ela ta moça nova. (Tuxaua Baku, entrevista/2009).

Durante a entrevista indagamos à Baku se existia relação direta entre o ritual


da moça nova com o casamento. Ela nos respondeu da seguinte maneira:
Olha é porque quando tem menina porque os índios Sateré-Mawé eles
criam criança pra velha deles né, quando é o homem, a mulher cria pra
marido dela né, então vamos dizer assim: aqui, aqui tem a Zeilinha ali né, se
tivesse um rapaz né, que gostasse dela ele já ia cuidar pra velha dele né,
quando ela ficasse moça né, ela ia se guardar durante três mês, depois

_____________________________________________________________

6
Mistura de água com farinha – um alimento consumido por todas as populações indígenas do Norte do
Brasil principalmente.
7
A cuia para os Sateré- Mawé é a representação do mundo segundo Uggé, (1991).
8
É algo reservadamente ao mundo feminino.

472
desses três mês ela já ia sair, aí já ia fazer o ritual da tucandeira. Aí vai ter
festa, pelo ritual pra ele e pra ela como moça nova né, mas se calhar né, mas
se num tiver durante essa época ela só se guarda ali, pra própria saúde dela,
depois que ela sai ela já começa a trabalhar já né. A moça é livre. Só casa se
ela quiser, se não fica aí.(Entrevista/2009).

Durante toda a nossa conversa com a Tuxaua ficou claro que o


ritual da moça nova é algo bem pessoal que só cabe à iniciada e seus pais.
Não tem uma expressão coletiva - sair do isolamento e ser obrigada a beber
caxiri e a dançar com os homens numa celebração pública como ocorre, por
exemplo, entre os Tukano do Alto Rio Negro. No mundo Sateré esta festa só
ocorrerá se a moça desejar casar e tiver algum pretendente. Se isto ocorrer
como disse a Tuxaua, não será pelo fato de ela ter se tornado mulher
(menstruado e feito seu rito de passagem), mas uma segunda situação que
seria a de um casamento: expressão maior do rito da tucandeira.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não é tarefa fácil entender os rituais de iniciação ou de passagem
no interior das sociedades indígenas. Percebemos no decorrer da pesquisa
que embora o ritual da moça nova se constitua num elemento visceral da
cultura Sateré-Mawé, não deixa de ser extremamente mesclado de aspectos
machistas profundamente preconceituosos.
Os significados dos eventos do nascer, do viver e do morrer para
os indígenas encontram fundamento no seu universo místico. A relação
profunda que os indígenas mantêm com a natureza é a base para
compreendermos o comportamento destes povos em todas as
suas dimensões, seja no âmbito político social ou no campo espiritual de uma
mística heterogênea. De acordo com Segato (2003, p.18):
Os aspectos religiosos, cosmológicos e rituais influenciam as relações de
gênero como, por exemplo, a existência de uma cultura masculina
centrada na casa dos homens; a execução de rituais de iniciação
masculina e feminina com suas características, específicas; a existência
de tabus de poluição relativos ao sangue feminino; a distribuição de
papéis de cura xamânico ou baseados no conhecimento de plantas e,
particularmente, o relato de mitos que abordam relações e conflitos de
gênero como eventos fundadores da lei atual do grupo.

É evidente as defectibilidades de gênero no ritual da moça nova,


na medida em que a moça fica totalmente isolada da família e da comunidade,
_____________________________________________________________

9
Quer dizer, no segundo mês.
10
São raízes que tem uma espécie de cânfora. Arde muito quando em contato com a pele e o ferimento,
porém dá uma sensação de alívio da dor logo em seguida.
473
a fim de preparar-se para ser boa esposa e boa mãe, prendada nos serviços
domésticos e apta a obedecer o marido.
O que mais nos chamou atenção no ritual da moça nova foi o
elevado teor de sofrimento físico que as mulheres são submetidas. Crianças
ou adolescentes são obrigadas a passar por excessivo sofrimento para
conseguir o seu status social na comunidade. Se os homens passam por
ferroadas de tucandeira durante vinte vezes não seguidamente, as mulheres,
por sua vez, são isoladas do convívio social, pasam fome porque nem tudo é
permitido comer. Têm seus corpos rasgados pelo dente amolado de paca;
são obrigadas a dormir numa única posição dentro da rede, não trocam de
roupa (permanecem com a roupa que estava no corpo no dia em que
menstruou pela primeira vez, embora a roupa seja lavada pela mãe). E mais:
elas trabalham na roça com o corpo aberto em chagas sob o sol escaldante da
Amazônia e ainda carregam o paneiro de mandioca nas costas sozinhas, não
podem falar com ninguém com exceção dos pais e não podem ser ajudadas
por ninguém com os serviços da roça. Voltam a reclusão do seu quarto até
completar cinco meses. Somente depois desse processo de confinamento é
que ela retorna ao convívio social do grupo.
Para os homens a passagem ritualística do Waiperiá ou
tucandeira não está associado somente ao aspecto da
demonstração de virilidade do iniciado. Está também associado ao lugar do
iniciado na hierarquia da comunidade. Está em jogo o seu futuro político
dentro do clã. Os adultos decidirão se ele será pajé, caçador, pescador,
guerreiro e dentre outras funções.
Já no caso feminino, não existem escolhas a serem feitas, porque
à mulher não é dada o direito de escolher. Trata-se de uma determinação a
ser cumprida como parte de um processo de amadurecimento do corpo e do
espírito conforme as crenças do seu povo. A mulher Sateré-Mawé é
preparada desde cedo para se tornar esposa e mãe; não é diferente das
demais sociedades indígenas. A menina em iniciação recebe uma roça para
tomar conta. Dessa roça ela deverá prover alimentação para o seu lar como
também cuidar da educação dos filhos, mantendo silêncio na esfera pública
porque esta é lugar dos homens. Torres (2005, p.26) nos diz que:
As relações de gênero são transvestidas de relações de poder. A ameaça
do outro e da possibilidade de perda de espaço e de hegemonia levaram
os homens a construírem os fundamentos para as desigualdades
legitimando, dessa forma, as diferenças entre eles.

Se os garotos são iniciados a partir dos nove ou dez anos em


diante conforme seus pais acharem que eles estão prontos para suportarem a
_____________________________________________________________

11
Neta dela que está no processo de preparação para o ritual.

474
dor provocada pelas ferroadas da tucandeira, para as meninas o processo se
dá desde o momento do seu nascimento. Os cuidados são redobrados e na
medida em que ela vai crescendo a mãe vai lhe ensinando somente os
afazeres domésticos. Atentemos para o nos diz Schwartzman in Silva, (1995,
p.25).
Devem ser os homens educados de modo a que se tornem plenamente
aptos para a responsabilidade de chefes de família. Às mulheres será
dada uma educação que as torne afeiçoadas ao casamento, desejosas
da maternidade, competentes para a criação dos filhos e capazes da
administração da casa.

É bem verdade que depois do contato com as missões religiosas


e com a escola as assimetrias de gênero tornaram-se visíveis nas
comunidades indígenas. Nas missões é comum ver as mulheres
desempenhando papéis diferentes e ocupando posições chaves que, de
acordo com a cultura indígena seria impossível como é o caso de
participarem das funções religiosas e de se tornarem professoras.
Dessa forma, percebemos que as assimetrias de gênero
independe da classe social, da raça ou do lugar. A s relações entre homens e
mulheres e os aspectos de poder que envolve estas relações são presentes
em todas as sociedades. Quando nos deparamos com uma Tuxaua que se
dispõe a falar sobre esta particularidade de sua vida ainda tão reservada ao
seu mundo, então percebemos que também as mulheres indígenas são
capazes de ultrapassar os limites do poder e se mostrarem ao mundo como
verdadeiramente são: simplesmente mulheres.

_____________________________________________________________

12
A Tucandeira ou Paraponera Clavata pode medir até 3 cm. Sua ferroada é muito dolorida, deixando o
membro ferroado bastante inchado e seu efeito dura de 24 horas ou mais.
475
REFERÊNCIAS
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Rio Negro. SP: UNESP; ISA; RJ: NUTI, 2005.
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gênero, simbolismo e ritualização numa comunidade amazônica. Belém:
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do Estado do Amazonas, 2003
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indígenas no Brasil. Série Antropologia, nº 326. UNB, Brasília, 2003
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serviço social: o começo, no Rio de Janeiro, há 50 anos. Em Pauta: Cadernos
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Ediciones Abya-Yala, 1991
YAMÃ, Yaguarê. Sehaypóri: o livro sagrado do povo Sateré-Mawé. SP:
Peirópolis, 2007

477
AS MULHERES SATERÉ MAWÉ E A FORMAÇÃO DE COMUNIDADES
ÉTNICAS EM MANAUS, AM
Wagner dos Reis Marques Araújo
Iraildes Caldas Torres
Esta pesquisa tem o propósito de verificar o modo como as
mulheres sateré-mawé se deslocaram de suas.
Com base no censo indígena do ano 2000 realizado pela
Confederação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB),
verificamos que em Manaus a população indígena constava entre 15.000 a
20.000. Percentualmente os Sateré-Mawé se sobressaem com 27,35% e os
Tikuna com 23,50%. Os outros percentuais estão distribuídos entre as etnias
do Alto Rio Negro com 23,41% da amostra, os restantes 25,74% provêm de
outras etnias da Amazônia.
A presença significativa dos Sateré-Mawé em Manaus foi
determinante para a escolha dessa etnia como objeto de investigação. Em se
tratando de uma pesquisa sobre os sateré-mawé, buscamos, ainda,
fundamento nos trabalhos de distintas comunidades de origens para a cidade
de Manaus, em busca de melhores condições de vida para si e suas famílias
pesquisadores, dentre eles os de Nunes Pereira (1982, 2007), Sonia Lorenz
(1992) e Roberto J. Bernal (2009). Nesses trabalhos encontramos
referências sobre o deslocamento de mulheres Sateré-Mawé para as cidades
de Manaus e Maués, centros urbanos próximos de suas aldeias.
À medida que íamos avançando na revisão de literatura sobre os
Sateré-Mawé, adotamos um questionamento ia aparecendo na pesquisa: em
que medida o estigma étnico e a desvalorização do trabalho doméstico
interferem na vida dessas mulheres. Ou seja, como o estigma étnico e a
invisibilidade do trabalho doméstico repercutem na subjetivação desses
sujeitos ?
Conforme observa Lorenz (2009), a história de migração Sateré-
Mawé para Manaus está fortemente marcada por um cunho feminino que se
verifica também entre os índios do Alto Rio Negro. As condições de extremo
contato interétnico e a diminuição do seu território por causa da colonização
extrativista, fizeram com que os Sateré-Mawé se opusessem “[...] à dispersão
excessiva das tribos e especialmente à saída das mulheres da comunidade”
(BERNAL, 2009, p. 97).
Nunes Pereira visitou o grupo em 1939, e coletou informações
que foram publicadas inicialmente na década de 1940. Nesse trabalho, o
_____________________________________________________________

1
UFAM - marquesreis@hotmail.com

479
autor analisou a estatura social dos Sateré-Mawé, descreveu aspectos de
alguns rituais e abordou questões sobre a religião nativa e os painis (pajés).
E, ainda, esse etnólogo esclarece que,
Em represália às perseguições e excursões punitivas, que os
portugueses lhes moveram, os Maués [Sateré-Mawé], proibiram as suas
mulheres de falar a língua portuguesa. Privando-se com elas, sente que
algumas têm o desejo de falar, mas não devem fazer; e não fazem.
Outras, cujos pais e irmãos falam português, denunciam que o
compreendem (PEREIRA, 2003, p. 85).

Embora os chefes tribais e painis fossem contrários à saída


especialmente das mulheres das comunidades, “[..] foi o deslocamento inicial
de algumas delas para trabalhar na cidade e fazer tarefas domésticas ou para
estudar, ou por terem casado com não-indígenas, entre outros motivos, que
abriu a era da migração” (BERNAL, 2009, p. 97).
Os deslocamentos das mulheres em muitos casos não ocorreram
isoladamente. Com elas partiram alguns homens: maridos, filhos ou outros
parentes. No contexto da cidade as mulheres não encontraram obstáculos
para “[...] encontrar um emprego nos trabalhos doméstico ou na produção
artesanal” (BERNAL, 2009, p. 97). Mas para os homens Sateré-Mawé foi
mais difícil encontrar um trabalho, pois não adquiriram alguma qualificação ou
habilidade compatível com o novo contexto urbano. Cabia, portanto, às
mulheres as funções de manutenção e sustento da família extensa.
O deslocamento das mulheres é o primeiro passo para a
desestruturação da comunidade étnica. O solapamento da figura da mulher
índia (símbolo da capacidade de reprodução de qualquer comunidade)
representou uma forma de violência simbólica, que contribuiu para a
desestruturação de aspectos significativos da organização social e cultural
sateré-mawé.
Na sociedade tradicional Sateré-Mawé as mulheres têm
participação preponderante na finalização do fabrico do pão de guaraná
(bastão do guaraná), e no preparo do çapó (bastão do guaraná ralado na
água) servido nos momentos importantes. Como destaca Lorenz (2008), era
na etapa de lavagem dos pães de guaraná que se percebia a participação da
mulher Sateré-Mawé durante as atividades de fabrico do guaraná. Para esta
autora,
[...] na sociedade sateré-mawé somente as mulheres adultas (mães) e
velhas (avós) recebem das mãos dos padeiros, após breve descanso
nos talos de bananeira, os pães de guaraná ainda frescos, moles e de cor
castanha, para serem demorada e caprichosamente lavados. A lavagem
dos pães de guaraná constitui-se, sem dúvida, no trabalho mais delicado
do fábrico, o que não é suficiente para explicar a incursão feminina
480
dentro do universo eminentemente masculino. (LORENZ, 2008, p. 12).

Na comunidade étnica tradicional a divisão do trabalho social é


marcada por uma divisão sexual que “[...] reserva aos homens a tarefa de
beneficiar o guaraná, quando nos mitos é função da mulher cuidar do
guaraná” (LORENZ, 2008, p. 17).
Para a autora, provavelmente são essas inversões que permitem
a quebra de tabu na divisão sexual do trabalho na etapa do fábrico (lavagem
do pão de guaraná), reservando às mulheres a continuidade das suas
funções míticas na vida social.
O deslocamento das mulheres para áreas urbanas causou certo
impacto na estrutura social sateré-mawé em razão de suas funções míticas
na vida social do grupo étnico. Outras formas do fazer comunidade étnica
foram surgindo no espaço urbano: associações, conselhos e comunidades
étnicas. Isto acontece pelo fato de que residem nelas “[...] a força e o
fundamento da construção de uma forma nova de instalação e estruturação
urbana” (BERNAL, 2009, p. 99).
A motivação para o deslocamento continua sendo à busca de
oportunidades de emprego. Geralmente ocorre a busca de emprego no
trabalho doméstico, alguém da tribo estabelece um contato prévio com o
futuro empregador, que comumente é algum “parente” ou conhecido que
também emprega ou já empregou alguma indígena. Segundo Bernal (2009,
p. 99-100)
Trata-se particularmente de mulheres que saem da sua comunidade de
origem para procurar um emprego, geralmente de serviços domésticos
em Manaus ou outras capitais do país como São Paulo ou Rio de
Janeiro. De maneira geral, elas agem sem ter mais informações
preliminares que aquelas dadas pela pessoa que permitiu o contato
inicial, e, depois, se perdem na cidade para trabalhar geralmente em
condições degradantes, semelhantes àquelas da escravidão. [...] essas
jovens mulheres perdem rapidamente o contato com seus parentes do
interior, quer seja pela força das circunstâncias ou de maneira
intencional.

No trabalho de Melo (1998) encontramos a idéia de que no Brasil


o trabalho doméstico é marcado pela origem no escravismo, o qual era
praticado de forma gratuita, ou quase gratuita, por mulheres livres ou
escravizadas. No período pós-abolição até meados de 1950 o trabalho
doméstico passa a ser feito por mocinhas, sob a denominação de “ajuda” e
apadrinhamento, isto é, uma espécie de “ajuda contratada”, um tipo de
costume que se manteve até meados dos anos de 1950, principalmente nas
regiões Nordeste e Norte do Brasil.
Mesmo na condição de assalariamento o trabalho doméstico
481
continua a carregar o estigma de trabalho relegado aos escravos, não
mudando seu status de trabalho subalterno e desqualificado. Conforme
Saffioti, mesmo com fim da escravidão “[...] uma imensa quantidade de
meninas e moças [continuaram] a trabalhar em casas de família em troca de
casa e comida, como crias da casa” (SAFFIOTI, 1978, p. 36).
O ato de “dar” a filha (o) a alguém que possui status social
considerável, continua sendo uma prática recorrente no interior da Amazônia.
Famílias da elite manauense recorrem com freqüência ao interior amazônico,
indo em busca de meninos e meninas caboclas ou índias para trabalharem
em suas casas.
Os pais motivados por uma melhor expectativa de vida para os
filhos e filhas, os dão na condição de “apadrinhamento” ou “ajuda”. Uma vez
apadrinhados, tornam-se “meninos de pátio” ou “meninas da casa”, sem
qualquer remuneração formal, ficando responsáveis pelos trabalhos
domésticos até chegarem à idade adulta. Esses costumes estão enraizados
numa cultura com resquícios de patrimonialismo e patriarcalismo na
constelação amazônica (TORRES, 2005).
Há casos de comunidades indígenas que se deslocaram
inteiramente para Manaus, com toda a sua família. Nesse novo contexto
social urbano os elementos que constituem a identidade étnica podem ser
acionados ou não. Nesta e noutras situações, o índio no espaço urbano pode
ser categorizado como caboclo não contemplado pelas estatísticas oficiais.
O assumir-se como caboclo é uma forma de inserir-se
socialmente no mundo dos brancos. Diante do não-índio, sob uma existência
“atomizada”, o silencio étnico é acionado como uma camuflagem que visa
controlar a manifestação étnica que “[...] leva o índio a estabelecer um padrão
de comportamento que atende ao interesse de quem pensa o índio como uma
etapa do processo evolucionista” (SILVA, 2001, p. 55-56).
O distanciamento entre ser índio e ser caboclo no espaço urbano
é definido a partir da aceitabilidade da pessoa nos espaços estabelecidos
pelos grupos, conforme salienta Raimundo Nonato Silva (2001). Portanto,
enquanto grupo ou comunidade, é a partir das interações intra-étnicas e
interétnicas que se restabelecem os padrões culturais para se
autodenominarem. Para esse autor,
[...] a redefinição dos valores culturais operadas pelos indígenas no
contexto urbano é marcado pelo conteúdo das relações estabelecidas
nesse espaço, de forma que a substancialização do valor étnico se centra
naquilo que as pessoas consideram, de forma subjetiva, importante para
qualificarem a si e aos outros, uma espécie de processo endoétnico
(SILVA, 2001, p. 55).

É imprescindível a existência de um espaço para o


482
estabelecimento das relações interétnicas e intra-étnicas, a partir do qual se
estabelecerá uma rede de relações sociais de reciprocidade necessária para
a articulação no espaço urbano. Esse espaço tem se materializado,
atualmente, nas associações de mulheres indígenas artesãs e nas
comunidades urbanas que foram se formando nos bairros periféricos de
Manaus.
Na falta do estabelecimento de uma rede de relações sociais
conduzida pela condição étnica, os índios passam a ser vitimas da “violência
simbólica”. Numa relação de forças, entre os que exercem o poder e os que
lhes estão assujeitados, legitimam-se outras formas de poder nas quais são
submetidos os indígenas. O poder simbólico, nesse contexto, é um “[...] poder
invisível que só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não
querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (BOURDIEU,
1998, p. 08).
No espaço urbano esses agentes sociais não conseguem
exercer efetivamente sua capacidade criadora, a sua reprodução social está
associada aos recursos naturais. Sua forma de organização social é
caracterizada por “[...] modos de produção pré-capitalistas, próprios de
sociedades em que o trabalho ainda não se tornou mercadoria, onde há
grande dependência dos recursos naturais e dos ciclos da natureza, em que a
dependência do mercado já existe, mas não é total” (DIEGUES, 2001, p. 82).
Nesse quadro de tensões e contradições, as visões
estigmatizadas do senso comum persistem em afirmar que o índio na cidade
deixa de ser índio. A formação de comunidades étnicas está fortemente
articulada com a questão do uso e da apropriação do território, enquanto
espaço de afirmação dos lugares políticos e identitários (ALMEIDA e
SANTOS, 2008). Nesse processo, ocorre a construção de uma identidade
étnica coletiva.
Silva (2008) identificou pelo menos vinte sete associações
étnicas em Manaus. Trata-se do processo organizativo de “[...] várias etnias
provenientes do Alto e Médio Rio Negro (Baré, Tukano, Arapasso, Wanana,
Tariano, Piratapuia, Dessana, Baniwa), do Alto Solimões (Tikuna), do Baixo
Amazonas (Sateré-Mawé) e dos rios Madeira e Purus (Mura,
Apurinã) dentre outros” (ALMEIDA e SANTOS, 2009, p. 87).
O nosso objeto de estudo são as mulheres Sateré-Mawé do
Baixo Amazonas, agrupadas no Igarapé do Tiú, no rio Tarumã-Açú. Na
construção da relação de proximidade com essa Comunidade Sateré-Mawé
do I'nhã-bé, procuramos estabelecer um certo “vínculo social” com os
indígenas moradores dessa área, conforme propõe Bourdieu (2007).
Ao vislumbrar o mundo do outro coube estabelecemos, também,
uma relação de cumplicidade ética com os sujeitos da pesquisa. Nosso
483
intuído nesta etapa da pesquisa é apresentar aspectos da trajetória dos
Sateré-Mawé na cidade de Manaus, e a constituição da comunidade étnica
Sateré-Mawé do I'nhã-bé.
Num primeiro momento, o deslocamento ocorreu para as
cidades próximas da Terra Indígena (TI) Andirá-Marau: Maués, Barreirinha e
Parintins. No segundo momento, o deslocamento dos Sateré-Mawé rumou
para Manaus, propiciando a formação de quatro pólos de atração da
mobilidade (SANTOS, 2008).
Como estratégia de resistência étnica, foram criadas cinco
comunidades indígenas em Manaus, a partir da iniciativa de quatro irmãs
Sateré-Mawé oriundas da área do rio Andirá: Zelinda (em sateré, Baku); Zeila
(em sateré, Kutera); Zebina (em sateré, Mekia) e Zenilda (Aruru). Todas essas
mulheres são oriundas de um núcleo familiar Sateré-Mawé centrado nos clãs
Gavião e Açaí, isto é, da família da Tereza de do senhor Adão (falecido).
Tudo começou no bairro Morro da Liberdade, mas a formação da
primeira comunidade étnica ocorreu com a ocupação de uma área próxima ao
Conjunto Santos Dumont. Foi, portanto, “[...] no espaço do bairro Redenção
que elas iniciaram o processo de constituição de comunidades étnicas na
cidade de Manaus” (SANTOS, 2008, p. 52).
Segundo Bernal (2009), as quatro irmãs tiveram um papel
preponderante na fundação e na evolução da Associação das Mulheres
Indígena Sateré-Mawé (AMISM), mediando conflitos que lhes
deram visibilidade em nível mídiático em Manaus (BERNAL, 2009). Mas por
volta do ano 2000, as acirradas disputas pelo controle da associação e pela
representatividade da comunidade motivaram brigas familiares que
fragmentaram a Comunidade Y'apyrehyt, no bairro Redenção.
No inicio de 2000 Dona Kutera, uma das irmãs, deslocou-se
juntamente com sua família para a região do Igarapé do Tiú, no rio Tarumã-
Açú, fundando a Comunidade Sateré-Mawé do I'nhã-bé. Os motivos do
descolamento são atribuídos aos conflitos entre as famílias, momento em que
os interesses particulares de pessoas do grupo começaram a se tornar
insustentáveis.
A formação da Comunidade Sateré-Mawé do I'nhã-bé com o
Senhor Curum Bené e Dona Kutera. A organização social do grupo se
estabelece em torno na família extensa: seus seis filhos, seus genros, noras
e netos.
Na comunidade constatamos a existência de oito famílias, entre
elas duas não possuem relação de parentesco com a família que deu origem
à comunidade étnica. Existem 42 famílias que residem em sete unidades de
referência na comunidade.
484
No contexto das relações exógenas, os Sateré-Mawé articulam-
se social e economicamente com seus “parentes” de Manaus e com não-
indios. A produção do artesanato indígena, e a realização do ritual da
Tucandeira para turistas, consistem atualmente numa estratégia econômica
do grupo étnico.
O artesanato produzido tanto pelas mulheres como por alguns
homens da comunidade é comercializado em dois estantes que a
comunidade possui na Feira de Artesanato Indígena da Praça Terneiro
Aranha, localizada no centro de Manaus. O espaço é tradicionalmente
conhecido como locus de venda de artesanato típico de origem indígena.
A praça é ocupada por artesãos, homens e mulheres indigenas,
que utilizam matérias primas locais como sementes de açaí, puca, morototo,
fibras de arumã, fios de tucum e a jarina (marfim vegetal) para a confeção de
artesanato etnico. Índios Tucano, Tikuna, Sateré-Mawé, dentre outras etnias,
vendem diretamente seus trabalhos aos turistas.
Atualmente o trabalho com o artesanato é a principal alternativa
econômica do grupo. Nesse aspecto a mulher Sateré-Mawé se reafirma
como provedora da família e liderança importante na comunidade.

485
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Notas:

488
MULHERES NEGRAS FEMINISTAS: conquistando visibilidade.

Silvana Santos Bispo

O feminismo enquanto movimento social tem se modificado ao


longo dos anos, adaptando-se ou incorporando novos questionamentos,
proposições e demandas de diferentes grupos de mulheres. O início do
movimento, no entanto, até a segunda metade do século XX foi marcado pela
afirmação de uma identidade comum a todas as mulheres dada pelo sexo,
diferenciada da de homem. A partir deste entendimento a categoria “mulher”
foi usada para afirmar todas as reivindicações em nome das mulheres como
se todas sofressem o mesmo tipo de opressão.

A crítica ao movimento surgiu, principalmente, entre as mulheres


norte-americanas. As mulheres negras, por exemplo, questionaram de que
'mulher' falavam as feministas brancas, considerando que não se sentiam
incluídas no debate. “... todo este debate fez ver que não havia a 'mulher', mas
sim as mais diversas 'mulheres', e que aquilo que formava a pauta de
reivindicações de umas, não necessariamente formaria a pauta de outras”.
(PEDRO, 2005: 87).

Ao questionarem a categoria 'mulher', as negras, índias e


mestiças afirmavam a necessidade de se pensar a diferença dentro da
diferença, ou seja, o fato de serem mulheres não as tornava iguais e
tampouco a opressão era vivida da mesma forma. O que estavam colocando
no debate era a necessidade do movimento aprofundar o entendimento sobre
diferença.

No Brasil o embate entre as mulheres no seio do movimento


feminista ocorrerá a partir da década de 80, período em que as mulheres
negras constituíram suas primeiras organizações não-mistas, “as mulheres
negras deram impulso à construção de sua organização com fisionomia
própria e caráter nacional, visando intensificar as reflexões e ações para o
combate às opressões racial e de gênero”. (RIBEIRO, 1995, p. 446).

O movimento feminista constituído em sua maioria por mulheres


brancas foi pressionado a repensar sua fala, pois “inúmeras foram às
contradições que se manifestaram, demonstrando a impossibilidade de se
pensar uma identidade comum. A fragmentação de uma idéia universal de
'mulheres' por classe, raça, etnia e sexualidade associava-se a diferenças
políticas sérias no seio do movimento feminista”. (SOIHET, 1997, p. 81).
_____________________________________________________________

1
PPG-NEIM/UFBA-BA - mnegrass@hotmail.com

489
No campo acadêmico, em especial na História também foi a partir
dos anos 80 que historiadoras/es passaram a usar gênero enquanto
categoria de análise. Segundo Maria Izilda S. Matos, “é em função dessas
críticas [referindo-se a categoria mulher] das próprias transformações nas
reivindicações dos movimentos feministas que surge o gênero enquanto
categoria de análise histórica”. (MATOS, 1997: 94). A introdução da categoria
gênero se constitui na possibilidade de evitarmos as posições binárias e
dicotomizadas nas relações entre homens e mulheres. Matos prossegue
dizendo:

Por sua característica basicamente relacional, a categoria gênero


procura destacar que os perfis de comportamento feminino e masculino
definem-se um em função do outro. Esses perfis se constituem social,
cultural e historicamente num tempo, espaço e cultura determinados. (...)
as relações de gênero são ainda um elemento constitutivo das relações
sociais baseadas nas diferenças hierárquicas que distinguem os sexos e
são, portanto uma forma primária de relações significativas de poder.

A partir desta perspectiva - do entendimento de que as mulheres


apresentam diferenças e que estas se traduzem em demandas específicas
nos movimentos sociais de mulheres, feministas, gays e lésbicas - nos
propomos a desenvolver um trabalho sobre o Movimento de Mulheres Negras
Feministas em Salvador, introduzimos nesta discussão os recortes de raça,
gênero e classe, para representar questões sócio-culturais e históricas que
incidem nas relações sobre as mulheres negras brasileiras.

ARTICULANDO O FEMINISMO NEGRO

Salvador – São Salvador da Baía de Todos os Santos – capital do


estado da Bahia, está como a terceira cidade mais populosa do Brasil.

Historicamente é conhecida por “Roma Negra”, devido a seus


aspectos físico-geográficos e por ser a cidade com maior população negra
fora do continente africano. Certamente poderíamos conceituá-la como a
cidade dos contrastes, da exclusão que afeta homens e mulheres negros
cotidianamente. Se por um lado temos a tão vendida e propagada
“felicidade”, “hospitalidade” afro-baiana, de outro, fazemos parte de um
contingente populacional fortemente excluído e discriminado em todas as
esferas desta sociedade. Somos nós que estamos ocupando os piores
índices estatísticos do país no que se refere ao acesso a bens e serviços
como, saúde, educação, segurança, emprego, habitação, dentre outros.

É a partir deste contexto que precisamos localizar e entender o


surgimento do Movimento Negro Unificado (MNU) em Salvador, com a
490
perspectiva de combater o quadro de exclusão da população negra na cidade
e no restante do Brasil. O MNU, uma das entidades negras mais antigas do
país, teve à sua frente uma luta extremamente conflituosa com os setores
dominantes e hegemônicos da sociedade baiana e contou com a participação
efetiva de mulheres negras em seus quadros políticos.

Numa sociedade onde prevalece o entendimento de


inferiorização das populações negras, refletir em torno da importância e
representatividade do Movimento de Mulheres Negras Feministas e sobre
suas bandeiras de lutas exige refletirmos e dialogarmos com o que Luiza
Bairros chamou de: “diferentes formas da experiência de ser negro (vivido
'através' do gênero) e ser mulher negra (vivida 'através' da raça), a qual torna
supérfluas discussões a respeito de que seria a prioridade do movimento de
mulheres negras. (...) do ponto de vista da reflexão e da ação política, um não
existe sem a outra”. (BAIRROS, 1995: 35).

Para Maria Consuelo C. Campos, “no entre-lugar, interseção e


síntese do movimento negro com o movimento feminista, o movimento de
mulheres negras afirma, politicamente, o protagonismo de um sujeito
específico, na luta contra o racismo e o sexismo” (CAMPOS, 2001: 5). A

pluralidade em torno das diferenças raciais que compõe a


sociedade brasileira nos leva a refletir sobre as experiências históricas das
mulheres negras e a forma como elaboram e ressignificam seus processos
identitários e de como isso se reflete no embate político com outros
segmentos. Assim, pensar em gênero e identidade conjuntamente significa
discutir um tema que em função de sua complexidade, exige o seu
entendimento em vários níveis de reflexão e análise. Para Kathryn
Woodward “as identidades são fabricadas por meio da marcação da
diferença. [...] ela ocorre tanto por meio de sistemas simbólicos de
representação quanto por meio de formas de exclusão social. A identidade,
pois, não é o oposto da diferença: a identidade depende da diferença”.

A escolha do recorte temporal, 1978 a 2001, justifica-se pela


importância que este período teve para o movimento negro de modo geral e
em especial para o movimento de mulheres negras. Em 1978 ocorre a
fundação do MNU/Salvador. As mulheres negras baianas ao lado dos
homens negros exerceram papel fundamental na estruturação do MNU,
transformando a seção Bahia num referencial de luta contra o racismo no
Brasil.

A III Conferência Mundial Contra o Racismo, realizada em


Durban, na África do Sul em 2001 se constitui como um marco extremamente
relevante para o movimento negro do Brasil, na medida em que algumas
491
reivindicações políticas históricas são problematizadas. A principal ação
política diz respeito ao documento final produzido e do qual o Brasil é
signatário. Nele o Estado brasileiro assume a existência do racismo na
sociedade, com isto a idéia de “democracia racial”, tão vendida e propagada
no país foi veementemente refutada. Durban se caracteriza também pela
conquista de ações que promovam políticas de ações afirmativas para a
comunidade negra. E neste cenário a ação política das mulheres negras foi
fundamental. Organizadas nacionalmente em torno de uma Articulação de
Mulheres Negras, as mulheres garantiram conquistas importantes nos
documentos finais da Conferência.

Trabalhamos com o conceito de identidade a partir de uma


dimensão relacional e dialética, buscando afastar qualquer referencial
essencialista quando nos referimos ao movimento de mulheres negras
feministas. “... a identidade está vinculada a condições sociais e materiais
(...) as identidades não são unificadas. Podendo haver contradições no seu
interior que têm que ser negociadas”. (WOODWARD, 2000: 113).

Dessa forma, tentamos priorizar as discussões que envolvem as


mulheres negras e suas experiências, embates e antagonismos
estabelecidos com o movimento negro e o feminista branco, porém,
entendemos que entre as mulheres negras existem diferenças e contradições
que, em alguns momentos, são negociadas, visando a um objetivo comum: a
luta contra a opressão das mulheres negras.

CONSTRUINDO UMA POLÍTICA DE EMPODERAMENTO E


POSICIONAMENTO

Este trabalho objetiva analisar a participação e contribuição das


mulheres negras nos movimentos sociais, movimento negro, feminista e de
mulheres, e a posterior formação de um movimento específico de mulheres
negras em Salvador, este, munido de uma articulação política ímpar e plural.
Embora saibamos que nossa tarefa é difícil, pois como nos informa Eliane
Borges da Silva, “grande parte das reflexões encontradas acerca do
movimento de mulheres negras, quando publicadas [...] não alcançam ampla
circulação, tornando difícil o trabalho das/os pesquisadoras/es”. (SILVA,
2005, p.15).

Estas produções, das quais nos fala a autora, no circuito


historiográfico são ainda mais raras, especialmente quando concernem às
ações políticas das mulheres negras, invisibilizadas pela academia. O debate
em torno do feminismo negro e as inserções das mulheres negras na
historiografia se constituem como um referencial importante, na medida em
que buscamos reverter a ótica do pensamento academicista
492
institucionalizado que, segundo Eliane B. da Silva, “as julgam
mais pelo caráter de manifesto político do que teórico e inscritos dentro de
uma linguagem inapropriada aos meios acadêmicos”. (SILVA, 2005: 2).

A feminista afro-norte-americana bell hooks acrescenta ainda


que, “as intelectuais negras trabalhando em faculdades e universidades
enfrentam um mundo que os de fora poderiam imaginar que acolheria nossa
presença, mas que na maioria das vezes encara nossa intelectualidade como
'suspeita'”. (HOOKS, 1995: 464).

Neste sentido, o desenvolvimento deste artigo pretende focalizar


processos políticos, sociais e históricos e mesmo, como se é pensado as
ações e articulações de mulheres negras soteropolitanas para a formação do
Movimento de Mulheres Negras Feministas na cidade do Salvador.

Orientamos nosso trabalho pela História Social que se apresenta


como um campo diversificado para o desenvolvimento do trabalho do/a
historiador/a ao se colocar como, “(...) um nexo básico de constituição,
enquanto forma de abordagens que prioriza a experiência humana e os
processos de diferenciação e individualização dos comportamentos e
identidades coletivas – sociais – na experiência histórica”. Frente à
multiplicidade de perspectivas propostas pela história nova e pela história
social, em termos de novos objetos e fontes, visualizamos ainda a história oral
e os documentos não-escritos como uma possibilidade para pesquisarmos a
história de um grupo, até então invisibilizado pela história oficial.

Diante dessa possibilidade recorremos a dois tipos de fontes para


desenvolvermos a pesquisa, a produção escrita por mulheres e organizações
negras brasileiras e entrevistas com intelectuais e ativistas negras que vivem
na cidade de Salvador. Procuramos, portanto, analisar e entender as
formulações teóricas e as demandas do Movimento de Mulheres Negras em
Salvador a partir do discurso escrito e do oral, priorizando como escolha das
fontes, ouvir a voz e as histórias de vida das mulheres negras.

Através da preservação da memória, articulada à História Oral,


resgatamos as tensões, antagonismos, ambigüidades, conquistas,
aprendizagens e experiências dessas mulheres. Utilizamos o
dimensionamento da história oral, ou seja, como “(...) um espaço de contato e
influência interdisciplinares; sociais, em escalas e níveis locais e regionais;
com ênfase nos fenômenos e eventos que permitem, através da oralidade,
oferecer interpretações dos processos históricos”.

Em nosso trabalho se possibilita a escrita da história das


mulheres negras sob uma ótica não androcêntrica. Entrevistamos três
493
mulheres negras, Luiza Bairros, Ana Célia da Silva e Vilma Reis. A escolha
destas ativistas negras intelectuais como sujeito da pesquisa é por
compreendermos que suas trajetórias de vida, articulação e atuação política
se estabelecem como significativos processos de intervenção na sociedade.
Suas produções teóricas e ações políticas demarcam politicamente que seus
trabalhos têm impacto significativo para a construção/contribuição de um
pensamento negro engajado na luta contra o racismo e o sexismo vivenciado
pelas populações negras de Salvador e do Brasil.

Para refletirmos sobre estudos de gênero, as obras de Rachel


Soihet e Sandra Jatahy Pesavento foram fundamentais, pois nos permitiram
entender como as categorias de análise como: mulher, mulheres e gênero
foram se construindo ao longo dos anos. Desse modo, a abordagem sobre
gênero deve ser percebida como uma categoria de análise que explica as
relações sociais entre os sexos, partindo da compreensão de que a história
das mulheres passa necessariamente pelo estudo das relações
estabelecidas com os homens.

Trabalhamos com o conceito de “diferença” debatido pela


pesquisadora Avtar Brah em seu trabalho intitulado, “Diferença, diversidade e
diferenciação”, para pensarmos as noções de diferenças dentro dos
movimentos sociais negros e feministas e perceber como estes movimentos
lidaram com as espeficidades em torno das mulheres negras. A incorporação
discursiva que envolve pertencimentos raciais, de classe e gênero como

fenômenos interseccionais e que subordinam mulheres negras,


foram pensados como mecanismos opressores e legitimadores de
discriminações.

As influências notórias da presença africana e afro-brasileira na


formação social e cultural da sociedade baiana e brasileira é bastante
significativa, assim, não é preciso nenhum esforço intelectual para confirmar
que essa presença tem algo significativo e que não deve ser secundarizado
se quisermos compreender com mais profundidade as características
próprias da sociedade. É deste lugar que queremos falar, o lugar a qual o
feminismo negro seja percebido como uma possibilidade interativa de
articulação política, este, munido de ações e complexidades.

As investigações acerca das mulheres negras no Brasil, embora


apontem para um aumento de pesquisas – trabalhos estes realizados em sua
maioria pelas ativistas e militantes negras - ainda são tímidas e a inserção da
história das mulheres negras na historiografia nacional é praticamente
invisível. As pesquisas sobre o contexto das experiências das mulheres
negras são em grande parte referentes ao processo de escravização.
494
Segundo Sueli Carneiro:

Desde o período colonial, as mulheres negras têm sido prisioneiras dos


estereótipos construídos pelo gênero dominante. Historiadores,
romancistas, poetas, retrataram-nas ora como trabalhadoras
adequadas a serviços desumanizantes, ora como personagens lascivas
e promíscuas. Em contraste com a mulher branca, exaltada como santa
e musa, a bestialização da “mãe-preta” e a exacerbação da sexualidade
da “mulata” são imagens fartamente exploradas nas representações
sociais.

Na década de 70, Lélia Gonzalez já falava sobre a urgente


necessidade de percebermos as mulheres negras deste país distanciada do
olhar do dominador. Ela nos alertava para a necessidade de fazermos
emergir questões sobre nós numa outra perspectiva, numa outra linha
discursiva, numa lógica que realmente capturasse nossa real representação.
Vejamos,

O fato é que, enquanto mulher negra sentimos a necessidade de


aprofundar nossa reflexão, ao invés de continuarmos na reprodução e
repetição dos modelos que nos eram oferecidos pelo esforço de
investigação das ciências sociais. Os textos só nos falam de mulher
negra numa perspectiva sócio-econômica que elucidava uma série de
problemas propostos pelas relações raciais. ... E isto começou a nos
incomodar. Exatamente a partir das noções de mulatas, domésticas e
mãe preta que estavam ali, nos martelando com sua insistência [...].

Essas diferenciações devem ser verdadeiramente percebidas se


quisermos construir um debate que reflita os diferenciais de identidades, de
perspectivas e atuações políticas, que não são únicos, homogêneos nem
muito menos fixos. E nesta linha argumentativa Avtar Brah nos explica que:

Nosso gênero é constituído e representado de maneira diferente


segundo nossa localização dentro de relações globais de poder. Nossa
inserção nessas relações globais de poder se realiza através de uma
miríade de processos econômicos, políticos e ideológicos. Dentro
dessas estruturas de relações sociais não existimos simplesmente como
mulheres, mas como categorias diferenciadas, tais como “mulheres da
classe trabalhadora”, “mulheres camponesas” ou “mulheres imigrantes”.
Cada descrição está referida a uma condição social específica. Vidas
reais são forjadas a partir de articulações complexas dessas dimensões.

À luz das idéias da autora pensamos, por exemplo, a importância


do processo de diáspora para as mulheres negras como condição social
495
específica, uma vez que culturas nas diásporas têm suas próprias
especificidades, e estas dimensões devem ser capturadas se quisermos
dimensionar, de certo modo, todo o processo histórico e político-social que
nos envolve enquanto populações afro-brasileiras, com todas suas
redefinições de pertencimento e subjetividades.

Com o desenvolvimento desta pesquisa percebemos que as


mulheres negras soteropolitanas construíram/constroem uma articulação
política plural, que tem como base a luta feminista, reivindicações estas,
munidas com seus referenciais de identidade, experiências e práticas que se
inscreveram e se inscrevem sobre uma diversidade de perspectivas relativas
ao gênero, raça, sexualidade e políticas de empoderamento. Pontua-se
assim toda complexidade destes grupos que estão ativamente engajados nas
lutas em relação à classe, na luta anti-racista, anti-sexista, anti - homofóbica e
lesbofóbica.

O processo de gestação e atuação do Movimento de Mulheres


Negras Feministas e do Movimento de Mulheres hoje espalhados por todo o
país em forma de coletivos, organizações, entidades, casas, grupos, núcleos,
institutos, devem ser percebidos como referenciais importantes de militância

e ativismo político, que cotidianamente expressam e denunciam


as percepções das desigualdades das quais mulheres negras são vítimas em
potencial.

O desenvolvimento deste trabalho nos levou a perceber e a


desenvolver esta pesquisa numa prerrogativa de entendimento de como as
mulheres negras, a partir do lugar que ocupam, com suas visões de mundo e
experiências que lhes são próprias, marcadas por raça e classe, transformam
e constroem alternativas de luta, sejam elas estabelecidas em práticas
políticas, teóricas e sociais ao longo de toda sua trajetória.

Foi perceptível no estudo sobre o movimento de mulheres negras


feministas as relações existentes entre as categorias raça, classe e gênero.
Estas categorias são dimensões estruturantes das discriminações e
opressões que operacionalizadas em torno das mulheres negras.

A utilização do conceito de etnia em trabalhos sobre as relações


entre negros e brancos no Brasil fez com que muitos intelectuais rejeitassem
o uso de raça como categoria discursiva, devido sua ligação histórica à idéia
de dominação político-cultural, caráter que afirma o dimensionamento
biológico de um determinado grupo sobre o outro. Contudo, o debate sobre a
utilização e/ou substituição do termo raça por etnicidade trouxe consigo
algumas questões. “A disputa quanto a se “etnicidade” e “raça” são
496
fenômenos interligados ou se referem a sistemas distintos de classificação
social parece análoga aos enigmas sobre se as diferenças de sexo
constituem a base natural a partir da qual se constroem as relações de
gênero”. (STOLCKE, 1991: 107).

É evidente que uma mudança de termo/conceito não irá


transformar as formas, a realidade e nem mesmo a maneira de percebê-la. Ao
discutirmos sobre o desenvolvimento das relações étnico-raciais não
podemos de forma alguma desmerecer e/ou desconsiderar o peso que os
aspectos raciais têm neste debate. “Nossa criação como uma categoria
distinta, como raça, embora mediada por especificidades, (...) e isto nos

singulariza a ponto de alguns pensadores afirmarem que a idéia


de nacionalismo limita a formação da identidade híbrida, que nos caracteriza
enquanto diáspora africana”. (BAIRROS, 1994: 185).

Dessa forma, o Movimento de Mulheres Negras e o Movimento


Negro, quando falam e debatem em torno da idéia de raça não as fazem
articuladas na construção de uma pureza racial enfaticamente empregada
em meados do século XIX, ou tão pouco calcada em uma supremacia
raciológica e/ou biológica de determinado grupo sobre outro.
“Conceitualmente, a categoria 'raça' não é científica (...). 'Raça' é uma
construção política e social”. (HALL, 2003: 324). O enfoque dado à raça por
estes movimentos é constituído através do referencial de experiências
compartilhadas, um conceito relacional que se construiu histórico, político e
culturalmente. Usam essa categoria com uma nova interpretação, baseadas
em uma reapropriação social e política.

As interlocuções e intersecções entre raça, classe e gênero foram


fundamentais para quebrar conceitos universalizantes, instaurando novos
referencias e novos paradigmas ao qual o Movimento de Mulheres Negras
com perspectiva feministas ou não, reivindicaram para si os seus
particularismos, suas especificidades, e suas singularidades.

PERCURSOS E VIVÊNCIAS

Um dos primeiros desafios a serem enfrentados por


organizações e Movimento de Mulheres Negras é a quebra da visão, a
percepção generalizante desenvolvida nos debates sobre gênero
desconectados com raça e classe. A visão de que todas as mulheres sofrem o
mesmo tipo de opressão, independente de outras categorias produtoras de
exclusão acaba por enfraquecer o desenvolvimento de políticas públicas
eficazes para mulheres em situações de vulnerabilidade múltiplas. Esta
postura universalizada sobre a opressão de gênero acaba por determinar
497
situações de marginalização e expansão dos padrões de desigualdades
presentes entre mulheres, com diferentes experiências de vida e de
diferentes classes sociais.

Ainda, ocultar ou diminuir a importância que a categoria classe


tem para o debate significa perpetuar a desigualdade. Como afirma Jessé
Souza numa sociedade em que a meritocracia contribui para a exclusão, a
qual para se constitui como “(...) um padrão que pressupõe opacidade e
intransparência ao esconder a fonte social e, portanto 'construída' da
desigualdade. A desigualdade passa a ser justificada e naturalizada na
sociedade em que é percebida como resultado do “mérito” e, portanto, com
produtos de qualidades individuais”.

É no campo do cotidiano que envolve dimensões sociais e


simbólicas, que as diferenças são interpretadas e entendidas como
inferioridade, e desta suposta inferioridade que são articuladas no sentido de
nos subordinar. Fatores de discriminação são produzidos diariamente,
racismo, sexismo, machismo, preconceitos, acabam por consolidar atitudes e
posicionamentos extremamente conflituosos, além de reproduzirem
parâmetros de abusos e marginalização de indivíduos negros.

As dimensões, portanto, relativas à raça, classe e gênero, são


formas que se entrecruzam e interagem para nos atingir, nos oprimir, nos
negar e conseqüentemente nos eliminar enquanto sujeitos históricos.
Munidas deste entendimento de que a luta deveria ocorrer a partir de três
frentes, contra o racismo, sexismo e diferenças de classe, é que mulheres
negras brasileiras organizaram-se para a ampliação das bandeiras de luta
dos movimentos feministas.

Dessa forma, para conhecer melhor as condições, a história da


constituição do movimento de mulheres negras feministas ou não, bem como,
suas estratégias de articulação, devemos partir de uma prerrogativa crítica-
reflexiva sobre as experiências vivenciadas por estas mulheres, que
delinearam uma alternativa negra para pensar suas experiências, ampliar
seus embates, afirmar suas reflexões e intervenções em diferentes lugares e
momentos os quais estavam e estão inscritas.

A partir de entrevista realizada com Luiza Bairros buscaremos


verificar como e pensado a formação de um Movimento de Mulheres Negras e
como a luta contra o sexismo é incorporada ao movimento tanto na cidade do
Salvador quanto nacionalmente. O período que vai da criação do MNU em
1978, o qual se origina do “Grupo Nêgo” de Salvador, até a década de 80 a
participação das mulheres negras, em grande escala, ocorre dentro das
entidades mistas do movimento negro, muitas delas foram responsáveis pela
498
fundação da entidade em todo o território nacional, considerando que o MNU
é formado por vários núcleos regionais. Neste período ocorrem fortes
embates, antagonismos e “pegas” com os militantes homens. Segundo Luiza,
“[...] a gente enfrentava uma 'barra muito pesada' na relação com os homens
dentro da organização. [...] então, o que acontecia, as mulheres compunham
a maioria da militância, mas, os homens é que tinham a visibilidade, os
homens é que dirigiam, os homens é que apareciam como os líderes do
movimento”.

Tendo em vista o papel como coadjuvantes dentro do movimento,


e especialmente nas representações dos espaços de lideranças, sem falar no
descaso diante das bandeiras levantadas pelas mulheres negras referente a
opressão de gênero, os conflitos dentro do MNU eram constantes. As
mulheres negras foram acusadas de estarem enfraquecendo a luta, de
estarem construindo “facções” dentro do próprio movimento negro e isto não
foi diferente em Salvador.

Pela iminência da dificuldade da maior parte dessas mulheres


estarem se colocando nas discussões conjuntas com os homens, mesmo no
seio de um movimento político/histórico de experiências compartilhadas
como a escravização, o racismo e a discriminação, existia o entrave da
perspectiva política que desse conta da prerrogativa da inserção da
discussão de gênero. Luiza Bairros prossegue relatando a estratégia, a
articulação política utilizada pelas mulheres do MNU/Salvador para serem
devidamente reconhecidas em suas espeficidades enquanto negras e

enquanto mulheres. Neste sentido, a estratégia utilizada por


aquelas mulheres foi a seguinte:

Fizemos na verdade um programa que foi quase uma 'capacitação', à


nossa moda, a gente não dava este nome, mas era o que a gente fazia.
(...), nas reuniões que tínhamos durante a semana, dia de quarta-feira
nem sempre dava para discutir tudo, então a gente tinha reuniões aos
sábados que também eram os momentos que recebíamos pessoas
novas interessadas em participar, e aproveitávamos para discutir
algumas questões com mais profundidade [...]. Então, o que nós
mulheres fazíamos? Nós reuníamos as mulheres pela manhã, e a gente
pegava toda pauta da reunião que ia haver de tarde, e discutíamos a
pauta da reunião toda antes, porque entre nós todo mundo falava
entendeu?! Então, era muito bacana, porque daí quando o restante da
militância chegava que eram os homens realmente, nós já estávamos
super aquecidas e quando chegava na hora da reunião toda mundo tinha
uma opinião, todo mundo se manifestava, todo mundo tinha uma idéia,
etc. (Grifos meus).
499
Mas é claro que a reação por parte da maioria dos homens não
era a das melhores. Luiza segue informando, (...) “a reação da maior parte
dos homens foi muito ruim a este processo, eles diziam que quase que
estamos formando uma 'tendência' dentro do MNU porque vínhamos para as
reuniões com as opiniões formadas, e não passávamos por aquele processo
junto com eles de construir as idéias”. (Grifos meus).

Segundo a opinião da depoente, este processo foi bastante


importante na medida em que ajudou a desvendar o próprio machismo que
existia e muitos homens se assustaram com a força que aquelas mulheres
foram ganhando. A experiência vivenciada pelas mulheres do MNU/Salvador
revela-se importante, uma vez que sua militância dentro deste movimento
lhes permitiu acumular um capital político bastante significativo acabando por
formar um grupo específico de mulheres negras dentro do MNU. Este grupo
ficou conhecido como GM – Grupo de Mulheres do Movimento Negro
Unificado e passou a participar fora do movimento negro das discussões do
movimento de mulheres. E esta perspectiva de militância dentro do
movimento de mulheres acabou ampliando muito as formas de luta e
reivindicações das bandeiras/agendas políticas das mulheres negras,
segundo Luiza Bairros: “... isto deu par gente uma outra possibilidade,
ampliou muito nossa possibilidade de intervenção em relação ao discurso
anti-racista”.

A adesão das mulheres negras ao movimento feminista revela-se


conflituoso desde o primeiro momento. Um dos elementos fundamentais em
torno dos embates dizia respeito ao universo do trabalho, e as posições sócio-
culturais de cada grupo. Ela prossegue:

[...] esta questão do trabalho era uma questão fortíssima naquele


momento, primeiro era uma coisa muito importante no movimento
feminista colocar a necessidade da entrada da mulher no mercado de
trabalho, como um fator de libertação da mulher. Ela ir para o mercado de
trabalho, ter acesso a sua própria renda, etc. E a gente colocava o
seguinte: para a mulher negra a questão não era ir para o mercado de
trabalho porque a gente já trabalhava há muito tempo. A questão era,
portanto, as condições como a gente estava inserida no mercado de
trabalho. [...] para que as mulheres brancas pudessem ir para o mercado
de trabalho era preciso que alguém tomasse conta das casas dela, e
estas mulheres eram as mulheres negras, exploradíssimas no trabalho
doméstico, com salários ridículos, sem nenhum tipo de direito, etc.

As visões de mundo diferenciadas, a experiência histórica


particular de cada grupo, as características distintas destes indivíduos, os
mecanismos específicos nos contornos políticos e culturais estabelecidos,
500
eram lidos de forma diferente pelas mulheres negras. Estas mulheres
queriam respostas que atendessem as suas especificidades. O exemplo em
torno do mercado de trabalho apontado por Luiza Bairros é elucidativo na
medida em que nós mulheres negras já estávamos há séculos envolvidas na
experiência prática do mundo do trabalho, a maioria dos quais estabelecidas
através de nossa opressão. “A gente insistia muito nesta coisa de que na
verdade a libertação da mulher branca era algo que dependia da nossa
opressão, isto dava muita confusão, muita confusão com estas mulheres”, diz
Luiza.

Assim, o racismo, a exploração econômica e social era crucial na


estruturação de nossa desigualdade. “(...) aquela mulher construída pelo
Movimento Feminista, ela era construída dentro de um padrão, que era um
padrão totalmente branco e que, portanto, não nos incluía”. Nesta conjuntura,
não havia como forjar uma unidade entre mulheres negras e brancas,
formular estratégias únicas de luta, pois o diálogo ainda estava sendo
construído.

As mulheres negras tinham como enfrentamento, construir


mecanismos políticos comuns para confrontar o feminismo branco
tradicional, as práticas patriarcais, o racismo, e as desigualdades nas quais
estavam escritas. Esta experiência de diferenciações é explicitada pela atual
coordenadora do CEAFRO Vilma Reis, quando ela diz:

[...] quando entrei no Fórum de Mulheres de Salvador em 95/96, teve


eleição da nova coordenação executiva do fórum [...] numa disputa
ferrenha com as mulheres brancas que achavam que a gente não era
nada. E a gente dizendo: “Gente, nós estamos numa cidade...” eu,
Terezinha Barros, Carmem, Edenice, [...] a gente chegou pra ocupar o
espaço mesmo, e reinventar um movimento de mulheres nesta cidade. E
a gente ocupou este espaço institucionalizado de articulação do
Movimento de Mulheres.

A afirmação da identidade feminista negra gestada a partir do final


dos anos 80 com a criação de diversas entidades de mulheres negras e
mesmos pelos vários encontros realizados deste período para cá, serviu para
se pensar o feminismo como um lugar político plural, não só pensado e
produzido por mulheres brancas. “... a conjugação do racismo com o sexismo
produz sobre a mulher negra uma espécie de asfixia social com
desdobramentos negativos sobre as dimensões da vida”. (CARNEIRO, 2004:
77). Sobre a importância do feminismo negro brasileiro ela prossegue
dizendo,

[...] o que aconteceu quando do momento de abertura, da suposta


501
democratização do país. Você (re) democratiza tudo, menos o espaço
institucional para viabilizar políticas públicas para o povo negro. [...] hoje
temos uma universidade com a presença de 57% das mulheres e as
mulheres negras são apenas 4%. [...] Porque a gente tem que manter de
pé a chama do feminismo negro? Porque as mulheres brancas estão
dentro das instituições, são maioria no judiciário, têm cargos, têm
espaços de poder, e as mulheres negras não emergem. Continuamos na
pirâmide. O que a gente fez a partir dos encontros de mulheres negras, a
partir dos encontros feministas, foi fazer emergir, trazer para a superfície
o legado de lutas das mulheres que estão se rebelando desde o primeiro
navio que aportou aqui [...] Nossas ancestrais não organizaram só a
família e a religião para guardar o que somos nós [...] revolução sexual, a
gente teve que tocar fogo na casa-grande e na senzala para evitar o
estupro colonial, a gente teve que matar nossos filhos e cometer
infanticídio como expressão do feminismo para não deixar nascer um
escravizado. [...] é deste lugar que estamos falando, e não queremos
falar de nenhum outro [...].

É justamente na esfera racista e sexista que o feminismo negro


opera, é a partir da percepção de estarmos buscando ações efetivas e que
tenham o poder de alterar as relações de desigualdades fortemente
estruturadas em nossa sociedade que o feminismo negro faz-se
cotidianamente. As ações e conquistas construídas pelo feminismo negro são
frutos de processos gestados há mais de três décadas, haja vista que
estamos lidando com uma sociedade moldada a partir de sustentáculos
racistas e excludentes. Uma sociedade que busca desqualificar
processualmente a identidade histórico-cultural das populações afro-
brasileiras, acabando por renegar às mulheres negras os espaços
subalternizados, marginalizados que são operacionalizados sob a ótica da
opressão e da discriminação racial.

Na emergência de estarmos pensando sobre as demandas


específicas das mulheres, perguntamos a pesquisadora negra Ana Célia da
Silva sobre a visibilidade das militantes, intelectuais, acadêmicas negras em
espaços de poder como, a exemplo, do universo acadêmico, como estas
relações estão sendo estabelecidas. Segundo a ela,

[...] estamos sendo vistas como pessoas boçais, invasoras, como


pessoas arrogantes, sempre como pessoas que estão nos lugares que
não eram para elas. Porque eles fizeram as representações onde o
nosso lugar é sempre o lugar da subalternidade, e eles sempre se
representaram nos lugares e funções consideradas superiores. Sempre
se vêem nos livros representações de médicos, engenheiros, padres,
advogados, professores, todos e todas em sua maioria homens, e

502
sempre brancos. Não só nas representações continuamos ausentes,
mas na vida real estamos tomando este lugar que são de todos e não só
deles, eles se sentem atingidos e nos tratam de uma maneira bastante
violenta.

Nossas formas de lutas a partir das mais variadas dimensões de


pertencimento se colocam como pressupostos elucidativos para construção
de nossas estratégias enquanto grupos diferenciados. Para a pesquisadora
Maria Consuelo C. Campos, “Em nosso país, a academia se
autocompreende, majoritariamente, como uma guardiã do status quo, em
termos de desigualdades sociais, (...) falta-nos, aqui, a tradição de uma
intelectualidade militante, transformadora”. (CAMPOS, 2003: 2). Os vários
aspectos das discriminações provenientes do racismo, sexismo e de classe,
os quais vivenciamos se processam, nos mais diferentes espaços que
atuamos. Na academia, por exemplo, essas estruturas se articulam para
tentar invalidar o pensamento negro.

Portanto, a forma de fazer e pensar política feminista negra se


caracteriza especialmente com interesses e valores que são particulares das
experiências, práticas e ações históricas construídas por estas mulheres. É
na contramão de não naturalizarmos as representações sociais e raciais em
torno da comunidade negra, discriminada, reduzida e oprimida que
alavancamos um debate que pontue as múltiplas ações do feminismo negro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O debate aqui apresentado tratou do universo da militância e do


ativismo político de mulheres negras que a partir de suas ações nutrem e
formulam um pensamento negro feminista. Este artigo buscou mostrar que
as mulheres negras enfrentaram conflitos bastantes fortes junto aos homens
do movimento negro e que a partir desses embates, se aproximaram dos
movimentos de mulheres, em especial do feminista. Entretanto, este contato,
este “encontro” se deu também a partir de conflitos e tensões, pois envolviam
processos históricos, sociais e raciais bastante diversos, ocasionando o que
Lélia Gonzalez chama de: “... o espanto e/ou a indignação manifestados por
diferentes setores feministas, quanto é explicitada a super-exploração da
mulher negra, muitas vezes é exprimido de maneira a considerar o nosso
discurso, de mulheres negras, como uma forma de revanchismo ou de
cobrança”.

Assim, este entendimento serviu/ serve para denotar os efeitos


do racismo cultural no país e possibilita percebermos os processos que
diferem os tipos de feminismos falados e praticados por mulheres de
diferentes construções histórico-culturais e raciais.
503
A proposta estabelecida pelo feminismo negro dentre as
intervenções em torno de bandeiras como saúde, educação de qualidade,
combate à violência, criação de espaços específicos de mulheres negras, e
outros, faz-se também de denúncias das múltiplas formas de opressão que
acometem a comunidade negra, em geral, e da mulher negra de forma

particular. A realização deste trabalho não pretendeu fechar e/ou


compartimentalizar categorias tão complexas como raça, classe, gênero,
sexualidade, identidade, e outras, mas, refletir em torno dessas
diferenciações.

Cada vez mais o desafio estabelecido por coletivos, núcleos,


entidades, organizações de mulheres negras está colocado no intuito de
estarmos nos empoderando politicamente, para que posamos de certa forma
romper com o abismo social, racial, econômico que separam brancos e
negros nesta sociedade hierarquicamente constituída.

Desse modo, “... se suas diferenças devem ser contempladas, os


aspectos que as aproximam, as semelhanças, também devem estar
presentes na análise” (BERNARDO, 2003: 174). Estes são referenciais que
envolvem complexidades, diversidades e contrapontos, e pontua as
multiplicidades desses indivíduos. No espaço do cotidiano, repletos destas
interfases, que se forjam as lutas para as conquistas de direitos sociais das
mulheres negras. E o processo de luta dessas mulheres vem se
desenvolvendo a partir das desigualdades que tem suas origens nas relações
sociais.

Tratei aqui das experiências do feminismo negro, experiências de


mulheres negras que vivenciaram de perto as transformações dos
movimentos sociais de perspectiva racial, mulheres que apesar das
dificuldades experimentadas dentro de suas organizações de origem, no
caso de Salvador, o MNU, não deixaram de criar formas de articulações e de
colocar-se enquanto formadoras de ações, projetos políticos de atuação
plurais.

A movimentação/mobilização por parte das mulheres negras


feministas envolvidas em questões políticas raciais sempre existiram, apesar
de não termos constituído organizações especificas de mulheres negras, isto
comparativamente com outros estados. Mas, nunca deixou de existir uma
militância fortemente engajada por parte do feminismo negro soteropolitano.

504
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506
VOZES XERENTE: gênero e construção da identidade a partir da percepção
da mulher Akwĕ
Maria Santana Ferreira dos Santos Milhomem
Profª Drª Maria Helena Santana Cruz
Este estudo propõe-se a analisar sob a perspectiva de gênero, as
relações sociais e a construção da identidade de mulheres indígenas da etnia
Xerente do Tocantins. Procura-se através dos estudos etnológicos,
apresentar uma discussão sobre a cultura indígena Xerente e seu modo de
vida, analisando como são construídas as identidades e conseqüentemente,
as relações de gênero a partir das experiências narradas por algumas
mulheres indígenas desta etnia residentes no Tocantins.
Acredita-se ainda que as reflexões apresentadas ao longo desse
trabalho podem contribuir para o atual debate acerca das relações de gênero
no espaço do cotidiano indígena cujo discurso dominante sobre as relações
de gênero é o da existência de igualdade e neutralidade de gênero
A ETNIA XERENTE A PARTIR DAS VOZES ETNOGRÁFICAS
Os Xerente são uma das várias etnias indígenas do Brasil
Central. Localizam-se entre o Rio Tocantins e o Rio Sono, próximos as
cidades de Tocantinia e Miracema do Tocantins. Essa comunidade se distribui
em duas áreas de demarcação indígenas, chamadas de Reserva Xerente e
Reserva Funil, a 70 km ao norte de Palmas, capital do Tocantins. As cidades
de Tocantínia, localizada entre as duas áreas, e a de Miracema, situada na
outra margem do Rio Tocantins, tornaram-se ao longo do século XX, palco de
tensões entre a população local não índia e os Xerente.
O Estado do Tocantins possui uma população de 1.243.627
habitantes, dentre os quais, de acordo com dados da Fundação Nacional de
Saúde – FUNASA, a população indígena é de aproximadamente 9.000 mil
índios, distribuídos em sete etnias indígenas, sendo os Karajá, Javaé,
Karajá/Xambioá, Xerente, Krahô, Apinayé e Krahô/Kanela.
_____________________________________________________________

1
NPGED/UFS - msfsantos@yahoo.com.br
2
NPGED/UFS - helenacruz@uol.com.br

507
508
feminina, sendo que os dois processos pertencem a duas
Metades Patrilineares. No entanto, segundo os etnógrafos existe uma
diferenciação. No caso do nome feminino, o princípio de patrilinearidade dá-
se pela negativa, ou seja, uma menina recebe um nome de uma classe de
idade que não seja a do seu pai. No caso do nome masculino, o princípio de
patrilinearidade dá-se positivamente uma vez que o menino recebe um nome
que deve ser do mesmo clã de seu pai.
Hoje, a maior parte dos Xerente fala o português, além da língua
nativa akwӗ, o que os caracterizam como um grupo bilíngüe. A exceção é feita
apenas às crianças em idade pré-escolar e algumas mulheres mais idosas,
que encontram dificuldades em para se expressarem em português. No
convívio familiar a língua falada é sempre o akwӗ. O português serve apenas
para comunicações triviais com aqueles que não dominam o idioma do grupo
(De Mattos, 2005).
Entre os Xerente, a família extensa4 tem grande importância. A
descendência segue uma ordem patrilinear, sendo o pai o proprietário de toda
a prole e também da esposa. A regra de residência é uxorilocal: o genro mora
na aldeia (ou no segmento residencial) do sogro. Geralmente, os Xerente não
costumam fazer restrições a casamentos interétnicos realizados entre índios
e mulheres não- índias, mas desaprovam explicitamente o matrimônio de
mulheres Xerente com não-índios. Entretanto, todo não índio (seja homem ou
mulher) que se casa com um Xerente, logo é incorporado às redes de
parentesco e aos sistemas cerimonial e político, adquirindo direitos e deveres
idênticos a um membro do grupo5. Quando ocorre a separação conjugal, os
filhos ficam com o homem e a mulher volta a morar na casa de seus pais, a
quem volta a pertencer
Os estudos etnográficos sobre os Xerente mostram ainda que,
apesar do feminino receber a nominação através de um Sistema de Classe
com um ritual específico, o nome pertence a uma Classe de idade masculina.
Nessa perspectiva, de acordo com as descrições etnográficas da
cultura e tradição do povo Xerente, em que o sexo masculino e feminino
desde o nascimento já pertencem a uma determinada Metade ou Classe e
que existem diferenças na posição, status e função de cada uma, é possível
compreender que ao feminino está reservado o espaço privado e doméstico,
e ao masculino o espaço púbico e cerimonial.
No entanto, no processo de contato com o não índio, os Xerente
abandonaram ou ressignificaram, gradativamente, alguns de seus costumes
cerimoniais e incorporaram hábitos e transformações da cultura brasileira.
Alguns ritos sociais foram preservados ao lado de novos costumes, criando-
se um misto da cultura de origem (indígena) e da cultura importada (não
6
indígena) .
509
Concomitante a análise etnográfica da Estrutura Social dos
Xerente, põe-se em questionamento as transformações ocorridas, nas
últimas décadas, na organização social e política dessa comunidade em
virtude da história do contato com o não índio. Como exemplo, indica-se o
rápido crescimento do número das aldeias, e, conseqüentemente, o número
de liderança - em 1987, elas eram 09, atualmente um total de 44 aldeias, e o
surgimento de novos papéis sociais (professores, vereadores, agentes de
saúde, diretores de associação, enfermeiros, etc). Esse rápido crescimento
do número de aldeias é resultado do fracionamento das antigas povoações.
Segundo Paula7, esse processo de cisão entre as aldeias Xerente
ganhou uma velocidade nunca vista em sua história a partir da década de
1989, e deve ser visto como uma das formas de expressão do faccionismo
Xerente em nossos dias. Para tanto, pode - se afirmar que os Xerente, como
as demais sociedades Jê, caracterizam-se por se expressarem-se através de
práticas sociais que, de acordo com o momento histórico, expandem-se ou se
retraem. Este é um movimento pertinente à dinâmica da sociedade Xerente,
8”
“contrair e reflorescer .
Dentre outras mudanças na organização social e cultural dos
Xerente, destaca-se o rápido e intenso processo de transformação das
unidades habitacionais, tanto no nível da forma quanto da tecnologia,
valorizando assim, os elementos da sociedade nacional.
Diante disto, coloca-se em questionamento a posição dos atores
nesse processo de ressignificação e de mudança dos costumes, valores e
consequentemente da cultura indígena, uma vez que a cultura atribui funções
reais e simbólicas inerentes ao sujeito, e “é no interior dos processos e
estruturas psíquicas inconscientes que esses traços são internalizados, re-
9
elaborados, ressignificados e transformados em valores e atitudes”.
Portanto, o exame dos sistemas culturais contribui para identificar algumas
características mais particulares dos atores sociais, tais como as
representações que, como grupos ou indivíduos, fazem do seu entorno, e os
padrões que utilizam em tais representações. Torna-se possível assim,
desvendar o significado das relações de poder.
Neste sentido, é importante destacar que diante desse aspecto
da modernidade, aparece apenas uma pequena parcela de mulheres
inseridas tanto no mercado de trabalho - com um total de 10 mulheres para
um total geral de 53 homens na atividade docente, quanto na atividade
política - dos 10 candidatos ao cargo de vereador do Município de Tocantínia,
apenas 01 era mulher. No entanto, nas atividades de pouco prestígio
(merendeira, e vigia noturno e ASG) existe a predominância das mulheres,
sendo que do total de 20 servidores administrativos da esfera estadual, 07
são homens e 13 são mulheres.
Ademais, mesmo diante dessa assimetria de gênero na
510
comunidade indígena Xerente, foi observado que através dos processos de
formação e de luta pelos seus direitos, as mulheres indígenas Xerente, têm
conseguido adentrar os espaços 'ditos masculinos', como é o caso do
10
exercício de liderança nas aldeias. Das 44 vagas para o cargo de Cacique
das aldeias, 02 vagas são assumidas por mulheres, e segundo o depoimento
11
de uma professora indígena entrevistada, esse avanço político é resultado
da inserção da mulher no mercado de trabalho e na organização de
associações, nos quais ocupam cargos de chefia.
A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DE GÊNERO: a mulher indígena
xerente em questão
Para análise das relações de gênero e construção da identidade
na comunidade indígena, é necessária a problematização das relações
sociais que não são neutras. Neste sentido, apesar desse estudo estar
focado nas relações entre homens e mulheres, não é possível deixar de
analisar as experiências vividas pelas mulheres indígenas Xerente.
Necessariamente conflituosas, as relações sociais remetem a relações de
poder, e certamente, uma de suas dimensões é a relação de gênero. Desse
modo, segundo Hirata12, “relação significa contradição, antagonismo, luta
pelo poder, recusa de considerar que os sistemas dominantes (capitalismo,
sistema patriarcal) sejam totalmente determinantes”.
Para construir um conceito de identidade, é mister que se façam
opções epistemológicas, metodológicas e políticas, pois existem diferentes
formas de pensar sobre qualquer conceito, mas para os propósitos que se
têm neste trabalho, constitui pressuposto fundamental a ideia de identidade
como uma construção social, superando o conceito de identidade como uma
entidade fixa e imutável, e destacando o caráter ativo do indivíduo no contexto
sócio-histórico de sua via.
Nesse sentido, faz-se uma incursão pelos trabalhos de Hall
(2007), Woodward (2007), Silva (2007), entre outros, que permitem a
construção de saberes necessários para a compreensão do processo de
constituição da identidade da pessoa humana.
Compreende-se que a identidade é um constructo tratado por
várias disciplinas, inclusive pela sociologia, sendo que do ponto de vista
sociológico, tem um núcleo ou essência interior que é o 'eu' real, mas este
núcleo forma-se e modifica–se num diálogo contínuo com o outro e com o
mundo. “A identidade, então, costura o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os
sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam tornando ambos
reciprocamente mais unificados e predizíveis” (HALL, 1991,
p.12). Para a Sociologia, na construção da identidade estavam presentes o
que estava ocorrendo para o sujeito num dado momento, a sua história e os
tensionamentos, conflitos e crises existentes no mundo.
511
Ainda do ponto de vista sociológico, identidade pode ser definida
como:
Características distintivas do carácter de uma pessoa ou o carácter de um
grupo que se relaciona com o que eles são e com o que tem sentido para
eles. Algumas das principais fontes de identidade são o gênero, a
orientação sexual, a nacionalidade ou a etnicidade, e a classe social. O
nome é um marcador importante da identidade individual, e dar um nome
é também importante do ponto de vista da identidade do grupo.
(GIDDENS, 2004, p. 694)

Depreende-se então que as índias Xerente vão construindo suas


identidades de gênero, entendidas por um conjunto de traços construídos na
esfera social e cultural que definem, conseqüentemente, quais os gestos, os
comportamentos, as atitudes, os modos de vestir, falar e agir, para homens e
mulheres. Assim, pode-se afirmar que a identidade social é relacional,
conjuntural, não é fixa, nem complexa. É, antes de tudo, uma construção
subjetiva que o humano se vale para simbolizar o mundo e sua participação
dentro deste.
Neste sentido, a identidade não é construída da mesma forma
por homens e por mulheres. Cada um se apropria da realidade simbólica e
sócio-cultural a partir da interpretação que faz da diferença anatômica entre
os sexos. “O sexo é socialmente modelado” (SAFFIOTI, 1992, p. 189). Pode-
se nascer do sexo masculino e culturalmente, tornar-se mulher. Atitudes
femininas podem ser tomadas tanto por homens, quanto por mulheres.
O estudo da identidade e representações de gênero tem
consolidado uma nova vertente teórica inovadora, tendo em vista que “o
gênero é um modo contemporâneo de organizar normas passadas e futuras,
um modo de nos situarmos e, por meio destas normas, um estilo ativo de viver
nosso corpo no mundo.”13 Nessa linha de reflexão, é importante destacar que
os estudos de gênero, inserem-se na dimensão intercultural, já que o gênero
está testando o que se aproxima e o que se distancia do discurso legitimado
por identidade.
Portanto, as representações das identidades de gênero são
utilizadas como aglutinadoras de posições sociais entre os Xerente. Assim,
estuda-se a representação da mulher, por exemplo, a partir de uma relação
social, afastando-se das concepções tradicionais que pregam o fixo e o
hegemônico para a identidade de gênero, pois “como relação social prática, o
gênero pode ser entendido somente através de um exame detalhado dos
significados de 'masculino' e 'feminino' e das conseqüências de ser atribuído
a um ou outro gênero dento de práticas concretas”.14
Para precisarmos melhor a acepção gênero, pode-se dizer que
as pessoas nascem macho ou fêmea e aprendem com os grupos sociais que
512
convivem a se tornarem meninos e meninas, homens e mulheres. São
ensinados, no dia-a-dia, comportamentos, atitudes e relacionamentos
adequados, papéis e atividades de meninas e de meninos. Esses
ensinamentos são aprendidos e incorporados determinando a organização
da identidade de gênero. Para tanto, “a identidade torna-se uma celebração
móvel: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas
quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos
rodeiam”.15 .
Entretanto, o conceito de gênero é dinâmico, podendo variar
entre raças, culturas, classes, dentre outros fatores culturais. Tais
comportamentos, papéis, mudam com o tempo, com as condições sócio-
históricas.
Atualmente, o conceito de gênero é bastante utilizado na França,
mas sua força vem dos Estados Unidos e da Inglaterra. Nasceu com o
movimento feminista, em uma denúncia contra o poder e a dominação
masculina. Por serem diversos, o entendimento e a utilização do conceito,
16
recorro a Joan Scott que o define como “um elemento constitutivo de
relações sociais baseados nas diferenças percebidas entre os sexos, e como
uma forma primeira de significar as relações de poder”. Neste sentido, como
um elemento constitutivo das relações sociais, o gênero implica quatro
dimensões relacionadas entre si: símbolos, que evocam representações;
conceitos normativos; concepção de política e referência às instituições e à
organização social, que incluem parentesco, mercado de trabalho, educação
e sistema político; e identidades subjetivas, que permitem refletir como as
identidades de gênero foram construídas.
A dimensão simbólica enfatiza as representações múltiplas e
contraditórias, a exemplo de Maria evocando pureza e bondade, e Eva
simbolizando o pecado, o mal.
A dimensão normativa evidencia interpretações do significado
dos símbolos que tentam limitar e conter suas possibilidades metafóricas, ou
seja, conceitos que são expressos nas doutrinas religiosas, educativas,
científicas, políticas e jurídicas que trazem duplo sentido na definição do
masculino e do feminino.
A dimensão organizacional diz respeito às organizações e
instituições sociais como mecanismos que aprofundam as assimetrias entre
os gêneros.
A dimensão subjetiva versa sobre as necessidades de examinar
as maneiras como as identidades de gênero são construídas e relacionadas
às atividades organizacionais, sociais e representações culturais
historicamente situadas.
Nesta linha analítica proposta por Scott, é necessário enfatizar os
513
conceitos de poder e de dominação que são utilizados como base para
explicação da subordinação feminina. Com origem na Sociologia weberiana,
17
a dominação patriarcal é a “probabilidade de encontrar obediência para
ordens específica (ou todas) dentro de determinado grupo de pessoas. Não
significa, portanto, toda espécie de possibilidade de exercer “poder” ou
“influência” sobre outras pessoas”.
Não se pode perder de vista que gênero diz respeito a relações de

514
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516
517
constrói a política, e, também como as relações de gênero
delineiam as relações sociais ao mesmo tempo em que estas edificam o
próprio gênero e a própria política.
Nesta posição, a suposta oposição entre homens e mulheres
passa a ser problematizada, contextualmente definida, repetidamente
construída e não mais unívoca e pré-determinada naturalmente. Com isso,
abandona-se a idéia de uma causa ou origem única e universal para a
dominação masculina, enfatizando a complexidade e a heterogeneidade das
relações sociais.
O cotidiano da comunidade indígena Xerente é formado pela
dominação de gênero. Em meio as nossas atividades mais triviais, a situação
privilegiada do homem aparece como algo natural, desde o salário inferior
concedido à mulher por trabalho igual a regras morais severas abrigadas sob
as “doces” normas que dizem o que convém ou não a uma “dama” ou a uma
“moça de bem”. Compreende-se então, que as relações sociais entre homens
e mulheres são atravessadas pelo poder; homens e mulheres são
classificados pelo gênero e separados por duas categorias: uma dominante e
outra dominada. As relações de poder constroem e legitimam as diferenças
desvantajosas para as mulheres com base na sexualidade, que é, portanto, o
ponto de apoio da desigualdade de gênero.
Para este estudo, adota-se ainda a idéia norteadora, da noção de
violência simbólica, na medida em que, apesar da categoria professor
exercer expressiva liderança dentro da comunidade, ou seja, ouvir e ser
ouvida, emitir opiniões, é quase irrisória a participação da professora nas
decisões da comunidade. Melhor dizendo, quando esta deseja emitir suas
opiniões é frequentemente impedida pelos homens da aldeia. O poder
simbólico da figura masculina, ainda assim, continua presente. Nesse
sentido, a inserção da mulher indígena no mercado de trabalho e sua
contribuição para a renda familiar, traço de modernização encontrada em
algumas mulheres indígenas Xerente, não garante à mulher a possibilidade
518
27
de escapar da condição de vítima do preconceito /discriminação.
Trata-se da violência como uma ação deliberada, que
independentemente das intenções que acompanhem, é capaz de destruir ou
violar a integridade física e psíquica, a dignidade humana de alguém,
“coisificando”28 o indivíduo. Para Chauí29, a violência é “[,,,] o conceito de força
física e da coação psíquica, para obrigar alguém a fazer alguma coisa
contrária a si, contrária a seus interesses e desejos, contrária a seu corpo e à
sua consciência, causando-lhe danos profundos e irreparáveis, como a
morte, a loucura, a auto-agressão ou a agressão aos outros”.
30
Esta definição exclui a denominada violência simbólica que não
se manifesta nem pela força física, nem pela coação psíquica, mas pelo
consentimento, e é tão potente e danosa quanto a violência física (ou mais do
que ela). Essa é uma forma de dominação suave, insensível, invisível as suas
próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente
simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou mais precisamente, do
desconhecimento, do reconhecimento ou em última instância, do sentimento,
responsável em grande parte pela naturalização da violência e pela
institucionalização de uma cultura de violência.
A violência simbólica constitui uma categoria importante para se
discutir determinadas formas de violência – como a violência contra a mulher,
em especial quando se refere à violência doméstica. A violência é, portanto,
um fenômeno complexo, multidimensional e amplo, atravessado por muitos
outros fatores (culturais, históricos, políticos e econômicos, raciais, e étnicos,
de gênero, classe, geração, etc.).
Não obstante, nas raízes das relações de poder,
desencadeadas a partir de relações hierárquicas e assimétricas, impõe-se
uma forma de violência por vezes imperceptível. Esta por sua vez, é exercida
através do poder simbólico, que segundo Bourdieu31:
É invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que
não querem saber que lhes estão sujeitos ou mesmo que exercem.[...] é
um poder que aquele que lhe está sujeito dá àquele que o exerce, um
crédito com que ele o credita, uma fides, uma auctocritas, que lhe confia

519
pondo nele confiança.

A despeito das muitas mudanças sociais ocorridas durante as


últimas décadas, o fato de que mulher e homem vivem uma relação
hierarquizada tem sido apontado em várias pesquisas e pode ser visualizado
por nós diariamente sem oferecer nenhuma dificuldade.
As relações de gênero têm como transversal em sua dinâmica a
dominação e o poder. Existe dificuldade de diferenciar a violência de outros
conceitos correlatos (poder e agressão) usados frequentemente como
32
sinônimos, conforme Hannah Arendt , para quem a necessidade de defini-los
como fenômenos distintos e diferentes, não se refere apenas aos significados
lingüísticos dessas palavras, mas ao seu significado histórico e político,
embora na prática não correspondam à realidade.
Enquanto categoria, a violência nomeia práticas que se
inscrevem entre as diferentes formas de sociabilidade em um dado contexto
sociocultural e, por isso, está sujeita a deslocamentos de sentidos. Para
muitos autores33, um dos signos da contemporaneidade é a insegurança, a
impotência, o medo de ser atingido pelos mais diversos tipos de violência,
quer como membro de uma coletividade, quer no plano da vida privada,
desestabilizando individualidades.
Nessa linha de reflexão, compreende - se que, pelo processo de
socialização a que foram submetidas, as mulheres, com freqüência,
interiorizam valores patriarcais e tendem naturalizar (considera como próprio
das mulheres) a submissão à formas de dominação. Muitas mulheres nem
sempre denunciam o agressor que comete a violência. Muitas não registram
queixas na polícia e quando procuram os hospitais omitem a violência sofrida
por medo ou vergonha.
As barreiras de acesso às esferas da sociedade favorecem
formas de discriminação – conceito mais amplo e dinâmico do que
preconceito. Ambos têm agentes diversos, sendo que a discriminação pode
ser provocada por indivíduos e por instituições e o preconceito só pelo
520
indivíduo. A discriminação possibilita que o enfoque seja do
agente discriminador para o objeto da discriminação. Enquanto o preconceito
é avaliado sob o ponto de vista do portador, a discriminação pode ser avaliada
sob o ponto de vista do receptor. Pode-se destacar, então, que a
discriminação poderia ser provocada por preconceitos ou motivada por
interesses de manter privilégios. A crença de que este comportamento é
natural é reforçado principalmente pela educação nos diferentes níveis.
Nessa linha de reflexão, a utilização da categoria gênero constitui
uma contribuição significativa e oportuna para a análise de uma das
desigualdades fundamentais do desenvolvimento humano e dos direitos
humanos; permite analisar os diferentes lugares de poder que mulheres e
homens ocupam em distintos espaços da sociedade e que devem ser
diferenciados nos aspectos da vida dos indivíduos de acordo com o sexo.
O conceito de gênero abre diferentes questões relativas à
participação da mulher e informa avanços na modernidade social em
diferentes sociedades, preconizando-se ações no sentido de se avançar em
mudanças sociais de envergadura, na reelaboração, na redefinição dos
papéis de gênero tradicionais que têm deixado as mulheres sem poder de
decisão sobre suas vidas. Ironicamente, o conceito de gênero, hoje, para
alguns críticos, é congelado, reduzido a termo de posição, e, como tal, é peça
chave no investimento das agências internacionais de apoio a um sistema de
organizações não-governamentais que lidariam com direitos das mulheres,
sem subverter, ao contrário, o edifício de relações sociais que se realizam no
capitalismo e seus motores como hierarquia, competição e apropriação
privada em proveito de alguns.
Reivindica-se o empoderamento, particularmente neste estudo, o
empoderamento de mulheres indígenas, considerando o processo mediante
o qual as relações desiguais de poder se transformam a favor das mulheres,
através da obtenção de poder interno para expressar e defender seus
direitos, obter maior confiança nelas mesmas, fortalecer a identidade
521
pessoal, a auto-estima, o controle sobre suas próprias vidas,
sobre as relações pessoais e sociais. Esse processo varia em grau ao longo
do tempo nas sociedades e dentro de uma sociedade em particular, de acordo
com as circunstâncias nelas existentes. Por exemplo, sabe-se que mulheres
jovens e adultas têm sempre menos poder que homens jovens e adultos,
tanto na esfera privada como na esfera pública.
A esse respeito, na perspectiva de uma rede de interações,
34
Fridemann destaca três pilares do empoderamento: social, psicológico e
político, constituindo uma tríade intermitente. O empoderamento social
compreende o acesso à informação, ao conhecimento, à participação em
organizações sociais e aos recursos financeiros; o empoderamento
psicológico refere-se à percepção da força individual, manifestando-se em
um comportamento autoconfiante, e o empoderamento político que
expressam-se no processo de tomada de decisão, na apropriação do poder
da voz e da ação coletiva.
MUDANÇAS NAS RELAÇÕES HOMEM-MULHER: a voz feminina
Tradicionalmente, um elemento comum a todas as etnias
indígenas e particularmente no Estado do Tocantins é a atribuição do
“privado” relacionado ao feminino, cabendo à mulher as atividades
domésticas, o cuidado com os filhos, e mesmo quando participam ativamente
de atividades no espaço público, como é o caso das índias Xerente, essa
função não é tida como um elemento de equidade em relação ao masculino.
No que diz respeito ao “público”, cabe ao homem assumir papéis de
liderança, de decisão e de assuntos políticos. Assim, o poder em âmbito
político cabe ao homem, e no ambiente doméstico cabe à mulher. Essa
dicotomia entre público e privado permeia as relações sociais de gênero entre
as culturas humanas, independente da posição social que cada um dos sexos
ocupa.
As mudanças nas relações socioeconômicas transformaram a
dinâmica social Xerente em uma velocidade que os homens, em sua maioria,
522
não foram capazes de acompanhar, o que tem levado a uma
ressignificação das relações de gênero dentro do grupo. Paulatinamente, as
mulheres começam a assumir o sustento financeiro da casa. Em sua maioria,
parecem ainda reconhecer como correta a submissão a seus maridos, sua
condição e a dos filhos de propriedade do cônjuge/varão. Por outro lado, elas
estão divididas entre o que é representado pela sua cultura e as mudanças
ocorridas com a sua inserção no mercado de trabalho, ou seja, à medida que
novas demandas sociais emergiram (como prover do sustento dos filhos e do
próprio marido) exige –se delas novos posicionamentos como mulheres e
como sujeitos sociais.
Mulher indígena Xerente é aquela que sabe respeitar, sabe falar na hora
certa, sabe ouvir, sabe educar os filhos, entrar com sua parcela de
contribuição em todos os aspectos né, embora ela seja muito reservada,
por mais que nós estamos conseguindo espaço no mercado de trabalho,
nas reuniões, ainda falamos pouco porque na nossa cultura o homem é
quem fala né. Não dão muita oportunidade, mas agente vem
conquistando nosso espaço e a gente tem essa brechinha pra colocar
nossas idéias e se preparando mesmo, a partir do momento que o
mercado de trabalho se abre as portas pra nós, temos mostrado que
domina aquele assunto e é assim que eles estão acreditando na gente.
(professora indígena)

Neste depoimento evidencia ainda a transmissão de “modelos”


de homem e de mulher, construídos culturalmente através dos estereótipos
de gênero, resultando assim, na introjeção dos diferentes papéis do sexo
feminino e do sexo masculino. Ademais, em conseqüência das percepções
sobre o masculino e o feminino e da forma como as mulheres são educadas e
socializadas, submetem a um aprendizado de virtudes, de abnegação e
resignação, conforme a representação dominante.
Questionou-se ainda: O que você pensa da falta de participação
da mulher indígena Xerente nos espaços públicos?
Ficamos divididas entre a nossa cultura e a necessidade da mulher
participar depois da entrada da cultura do branco nas nossas aldeias.
Primeiro porque cultura é costume, é tradição. Às vezes é bom ficar
sentada esperando o homem falar, mais ao mesmo tempo é bom ter o
nosso momento [...] mas nós estamos lutando pelo “nosso” povo, não só
pelas mulheres, mas pelo povo, porque ser índio é um povo só, só difere
as etnias (professora indígena )

Neste depoimento é notória a definição do que é ser mulher, na


medida em que se firma na primeira pessoa do plural, o 'nós', ou seja, uma
523
representação identitária que se reforça na posição de grupo.
Aparentemente parecem não perceberem que são únicas, individuais, e,
sobretudo, agentes da própria história.
Apesar de continuarem presentes nas relações sociais, os traços
da assimetria de gênero entre os Xerente, vale enfatizar que a mulher
indígena Xerente tem construído uma nova história sobre sua vida cotidiana.
“Hoje já conseguimos falar nas reuniões de cacique e eles já preferem as
mulheres para darem aula, porque as mulheres são mais comprometidas”.
Embora não se esteja abordando sobre o trabalho realizado em indústria,
35
esse depoimento presentifica o que Cruz teoriza sobre a transposição das
habilidades adquiridas pelas mulheres do espaço doméstico para o espaço
público, ou seja, atributos femininos, como coordenação motora, capacidade
de concentração, habilidade manual, etc.
Ao mesmo tempo em que passam a participar das discussões e
das campanhas reivindicatórias mais gerais dos indígenas com o Estado
brasileiro - como o direito territorial; o direito à saúde; o direito à educação
escolar adequada -, as mulheres indígenas trazem novas pautas e
preocupações. Elas enriquecem o debate, trazendo para o coletivo as
avaliações e demandas dos espaços específicos em que atuam como
mulheres. Nessa arena política, explicitam igualmente um conjunto de
restrições ao processo organizativo: suas dificuldades em participar de
formas de organização e decisão e dos encontros, que são decorrentes da
resistência das próprias comunidades, das lideranças masculinas, do Estado
e da sociedade não indígena, e também da falta de recursos, capacitação e
experiência organizativa.
Foi questionado ainda o porquê do número de mulheres ser
inferior ao número de homens na função docente.
A mulher antes era só para cuidar dos filhos e colocar filho no
mundo e ainda há um machismo do homem, ele acha que manda, ou seja, só
ele é capaz, são poucos os que acreditam que a mulher é capaz de fazer um
524
bom trabalho, tanto é que a comunidade prefere as mulheres para
dar aula. Mas a mulher vem conquistando seu espaço, aos poucos.
(professora indígena)
Diante disto, já é perceptível o confronto entre as experiências da
mulher indígena do passado com as experiências da mulher indígena da
atualidade. É possível falar de um novo tipo de Mulher, como também de um
novo tipo de Homem. Tanto a mulher, quanto o homem se apropriam da
realidade simbólica e sócio-cultural de forma diferente. Assim, o meio social
fornece e imprime significados diferentes para o comportamento de mulheres
e homens que vão sendo introjetados e assumidos como naturais e
pertencentes a um ou outro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A sociedade brasileira passou por significativas transformações
de ordem social, econômica e demográfica nas últimas duas décadas. A
expansão da economia, a crescente urbanização e o ritmo acelerado da
industrialização marcaram um momento de crescimento econômico,
consolidando sua industrialização e modernizando o aparato produtivo.
Para as mulheres, a saída da esfera doméstica, junto às
propostas de um ensino voltado para a formação específica da habilitação
profissional, provocou transformações na organização da família e na
realização das atividades domésticas necessárias à reprodução cotidiana,
implicando na crescente liberação para a esfera pública, na qual se inclui o
mercado de trabalho.
Esse significativo aumento da atividade das mulheres – uma das
mais importantes transformações ocorridas no País desde os anos 1970 –
teria resultado não apenas da necessidade econômica e das oportunidades
oferecidas pelo mercado em conjunturas específicas, mas também em
grande parte, das transformações demográficas, culturais e sociais que vêm
ocorrendo no Brasil, e, que têm afetado as mulheres e as famílias brasileiras.
A expansão da escolaridade e a entrada nas universidades viabilizaram o
525
acesso das mulheres a novas oportunidades de trabalho
Nas sociedades primitivas, neste caso os indígenas Xerente, são
factíveis as transformações nos âmbitos sociais, políticos, econômicos e
principalmente culturais após a história de contato com o não- índio. O
contato gerou para o povo Xerente, demandas e desejos antes inexistentes. A
transformação da relação entre a necessidade e o consumo, o significado
social da educação como estratégia de se buscar um futuro melhor, as
concepções emergentes sobre namoro e casamento, as mudanças nas
relações entre homens e mulheres, entre outros elementos, penetram o
universo Xerente, fazendo-os repensar seu lugar social.
Entre os efeitos das novas condições de vida dentro das aldeias
está o questionamento do papel do homem na esfera pública. As mulheres
passaram recentemente a ocupar algumas posições sociais que antes eram
destinadas apenas aos homens. Essas transformações repercutiram
simbólica e concretamente na forma como a aldeia se organiza hoje. Assim, é
licito dizer que tanto as relações com os bens de consumo como o contato
com outros grupos sociais, são importantes aspectos de transição cultural,
representando entre os Xerente, marcadores da relação entre a cultura de
origem e a cultura importada.
Portanto, é possível compreender como são construídas as
identidades da mulher Xerente. Ao se remeterem ao passado histórico e ao
tempo presente, as mulheres procuram construir suas identidades e
posicionamentos como mulher. Transitam entre os papéis tradicionais de
gênero e as novas inserções do feminino (maior escolarização, urbanização e
liderança social); entre os valores arraigados na cultura de origem e os novos
valores ditados pelos contextos sociais em que passam a se inserir. Assim,
elas compõem novas possibilidades de posicionamentos que, embora sejam
influenciadas pela cultura de origem e pela cultura do não índio, vão além
delas, às vezes, significando-as, às vezes, unindo-as ou as negando-as ao
longo do desenvolvimento.
526
NOTAS
1
Dados obtidos em 13/02/2009 na FUNASA/MS- Fundação Nacional de
Saúde em Palmas- TO
2
Cf. FARIAS, Agenor T.P. Fluxos Sociais Xerente: organização social e
dinâmica das relações entre as aldeias. 1990, p.74. Dissertação de
Mestrado apresentada à FFLCH/USP.
3
IDEM, 1990, p.101.
4
“A família constituída de varias famílias se dá o nome de família extensa”. (
MELATTI, 1993, p. 77)
5
ISA- Instituto Socioambiental. Apresenta dados sobre os povos indígenas
do Brasil. Disponível em: http://pib.socioambiental.org/pt/povo/xerente.
Acesso em 22 de janeiro de 2009.
6
Cf. SIFUENTES, Thirza Reis. Mulheres Indígenas Xerentes: Narrativas
Culturais e construção dialógica da identidade. 2007. Dissertação
(Mestrado em Psicologia) Universidade de Brasília. Distrito Federal.
7
Cf. PAULA, 2000, p.224 apud Moi, 2007, p.50
8
FARIAS, op. cit., p. 02
9
Cf. FAGUNDES, , T. C. P.(Org) Identidade feminina: uma construção
histórico- cultural. In: Ensaios sobre identidade e Gênero. Salvador: Editora
Helvécia: 2003, p.51.
10
Na língua Xerente, o termo que remete ao papel político desempenhado
pelo cacique é kmãdkâkwa ou dakmãdkâkwa, onde kmãdakâ (ou dakmãdkâ)
é um verbo que possui as seguintes acepções: assistir, governar, olhar, ver,
cuidar. Kwa é um sufixo que designa algo ou alguém que possui uma
determinada qualidade ou desempenha a ação designada pelo verbo que o
antecede na palavra. Assim, o “cacique” ou o kmãdkâkwa é “aquele que olha”
ou “aquele que cuida. (Paula, 2000)
11
Foram realizadas entrevistas com 04 professoras indígenas, na qual
através da história de vida, relataram seu modo de vida, aspectos relativos às
concepções de gênero e papéis sociais no meio indígena Xerente.
12
HIRATA, Helena. Nova Divisão sexual do trabalho? Um olhar voltado
para a empresa e a sociedade. São Paulo:Editora Boitempo, 2002, p.244
527
13
Cf. CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. São Paulo: Hucitec, 1999,
p. 273
14
FLAX, Jane. Pós-modernismo e relações de gênero na teórica feminista. In:
HOLANDA, Heloisa Buarque de. Tendências e Impasses – O feminismo
como critica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1991, p.230.
15
Cf. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós- modernidade. Rio de
Janeiro: DPSA,1999, p. 13
16
SCOTT, Joan. Gênero: Uma Categoria Útil para a Análise Histórica.
Traduzido por Christine Rufino Dabat e Maria Betânia Ávila. Recife, 1991,
p.19
17
Cf. WEBER ,Max. Economia e sociedade: Fundamentos da
sociologia compreensiva. São Paulo: editora UNB, 1999, p. 139
18
Cf FOUCAULT, Michael. O olho no poder. In: Microfisica do Poder. Rio
de Janeiro. Gaal, 1972.
19
Cf. BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1999, p. 17.
20
IDEM,1999
21
FARIAS,1990,
22
“ É definido pelo trabalho identificado apenas com o trabalho assalariado,
com o foco na vida pública dos homens”.( CRUZ 2005, p.54-55)
23
Cf. CRUZ, Maria Helena Santana.(Org). Múltiplos Enfoques e Espaços
Plurais da Pesquisa no Campo da Educação. São Cristóvão: Editora
UFS, 2008 , p.257
24
.BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Educação e Realidade, p.
138, jul./dez.1995
25
BOURDIEU, 1999
26
Costa, Ana Alice. As donas no poder. Mulher e política na Bahia.
Salvador: NEIM/Ufba e Assembléia Legislativa da Bahia. 1998 (Coleção
Bahianas, vol.2)
528
27
O preconceito é definido como a valoração negativa que se atribui às
características da alteridade. É a negação do outro diferente e no mesmo
movimento a afirmação da própria identidade como superior/dominante.
(BANDEIRA Lourdes; BATISTA, Analía Soria, 2002)
28
Cf. CHAUÍ, 1995
29
IDEM,1995, p. 336
30
Cf. BOURDIEU, 1999; 2002
31
IDEM, 1999, p.07, 188
32
Cf..ARENDT, Hannah . Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume
Delumará, 1994
33
Cf. BOUDON, 1993; BOURDIEU, 1997
34
Cf. FRIDEMANN, John. Empowerment Uma Política de
Desenvolvimento Alternativo. Oeiras: Celta Editora, 1996, p.34-35.
35
CRUZ, Maria Helena Santana. Trabalho, gênero, cidadania: tradição e
modernização. Aracaju: Fundação Oviêdo Teixeira, 2005.

529
REFERÊNCIAS
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1994
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CRUZ, Maria Helena Santana. Trabalho, gênero, cidadania: tradição e
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531
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532
A VISÃO DE SIMONE DE BEAUVOIR SOBRE A LESBIANIDADE
Gilberta Santos Soares
“Meus ensaios refletem minhas opções práticas e minhas certezas
intelectuais”
(S. de Beauvoir)
INTRODUÇÃO
A proposta do artigo é levantar reflexões críticas a respeito da
perspectiva apresentada por Simone de Beauvoir sobre a lesbianidade no
Segundo Sexo, no capitulo a “A lésbica” do vol. II, intitulado a Experiência
Vivida, em diálogo com as posições da autora, expressas na entrevista
concedida a Alice Schawarzer em 1985. Este diálogo incluirá o diálogo crítico
com a psicanálise uma vez que a autora a toma como referencial teórico para
discutir a lesbianidade, em movimento de apoio e contraposição.
No segundo volume de O Segundo Sexo, ela dedica um capítulo
ao tema, chamado “A lésbica“. Antes da publicação do livro, ele foi publicado
em Les Temps Modernes (BEAUVOIR, 2008), juntamente com os capítulos
“Iniciação Sexual” e “A mãe”, antecipando a publicação do livro. Anos depois,
na entrevista com Alice Schwarzer, ela avalia como errada a estratégia, pois
antecipou preconceitos, críticas violentas que também foram proferidos
contra O Segundo Sexo (SCHWAZER, 1985). Outro fato revelador do
capitulo “A lésbica” é o fato dele ter sumido da Biblioteca Nacional de Paris.
No momento da entrevista a Schwarzer, já tinham passado 34
anos da publicação de O Segundo Sexo. Simone estava noutra fase da vida,
Sartre já havia morrido e ela já se definia como feminista e como atuante do
movimento feminista, trazendo idéias que não haviam sido expressas
anteriormente, dotando de sutis diferenças a sua forma de se revelar.
Procurarei inserir as idéias da autora no contexto histórico e na
doutrina filosófica existencialista e trarei o debate sobre a institucionalização
das sexualidades e homossexualidades como objeto da ciência e como um
campo discursivo, assim como a crítica a estas. Também será considerado o
acúmulo teórico dos estudos lésbicos.
Voltar a ler Simone de Beauvoir, sobretudo a leitura de O
Segundo Sexo, me trouxe uma sensação de tomar água quando se está
sedenta. Havia um misto de encanto, curiosidade e revisitação no mergulho
_____________________________________________________________

1
Graduada em Psicologia Social e Mestre em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB.
Feminista, sócia fundadora da ONG Cunhã Coletivo Feminista/PB. Atualmente é doutoranda do Programa
de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo PPG-NEIM
desenvolvido na Universidade Federal da Bahia- UFBA. Bolsista da FAPESB. E-mail:
gilbertass@gmail.com
533
nas idéias expostas de forma sistemática e cuidadosa – um “Deja vu” da
práxis feminista. Isto aconteceu no mesmo momento em que estreou no
Brasil o monólogo “Viver sem tempos mortos” - peça de teatro, na qual
Fernanda Montenegro encarna a filósofa. A atriz não tem medo de afirmar
“Simone Beauvoir mudou as nossas vidas”.
O livro traz a genealogia da condição feminina, envolvendo a
crítica às fases da vida da mulher e aos discursos existentes. Nele, podem-se
reconhecer as opções metodológicas e políticas feitas pelo movimento
feminista (refiro-me ao feminismo brasileiro), como os grupos de reflexão, a
revisitação das experiências de vida na Linha da Vida, o compartilhamento de
experiências entre mulheres, a troca sobre vivências da sexualidade, da
maternidade, a afirmação da liberdade de escolha, a denúncia.
No entanto, ao ler o capítulo “A lésbica” fui tomada por uma
sensação de estranhamento, que pude localizar, especialmente, na utilização
de alguns termos e terminologias de cunho normalizantes e moralizadores.
Entre eles, o termo “invertida” para designar a lésbica, com a recorrência ao
modo discursivo da psicanálise para o entendimento dessa vivência.
Encontrei esta reflexão em Bonnet (2005) quando discute a dificuldade de
Beauvoir de tratar do tema da lesbianidade, afirmando “uma inconsciência da
homofobia” de parte da escritora.
O questionamento que trago parte do uso do termo “invertida”
sem que haja referência crítica ao processo de institucionalização das
sexualidades, ancorado na patologização, disseminação e implantação das
sexualidades anormais (polimorfas) através da psiquiatria, da psicanálise e
psicologia, como mecanismos de controle da sexualidade, a partir do século
XIX.
Essa abordagem coexiste com o fato de que a lesbianidade
aparece como uma possibilidade existencial e real na vida das mulheres.
Beauvoir também fala de vivências lésbicas nas seções em que ela versa
sobre a iniciação sexual e a vida adulta.
As ambigüidades que aparecem ao longo dos dois textos
analisados remeteram ao fato de que o questionamento sobre a
heteronormatividade obrigatória e as demandas e lutas das mulheres
lésbicas não tenham ocupado espaço proeminente na trajetória e nas
demandas epistemológicas e políticas do movimento feminista Latino
americano, sobretudo brasileiro, especialmente na Primeira e Segunda
Onda. As mulheres lésbicas demandaram o reconhecimento como sujeito

_____________________________________________________________

2
Sobre possíveis problemas de incoerência na tradução para o português, fiz consulta ao original em
Francês, no qual ela usa a mesm a terminologia. Esse cuidado é pertinente, sobretudo frente, aos
inúmeros problemas na tradução para o inglês.

534
político feminista e a visibilidade no contexto do feminismo da diferença e da
teoria feminista pós-moderna.
O EXISTENCIALISMO NA LEITURA DE BEAUVOIR SOBRE A
CONDIÇÃO DAS MULHERES
Qualquer análise a ser feita a respeito da obra de Simone de
Beauvoir, precisa situar o contexto histórico, a filosofia existencialista e o
impacto do Segundo Sexo no mundo ocidental, sobretudo na Europa.
O contexto histórico era marcado pelo fim da 2ª Guerra Mundial
com uma crise geral que abalou os valores da época e exigia a reconstrução
material. Sentimentos como o desespero, o desânimo, o pessimismo, o
desencanto com a humanidade pairavam no ar e afetavam, em especial, a
juventude. O holocausto havia deixado marcas indeléveis na história da
humanidade, diluindo mitos e afetando definitivamente a visão de mundo. A
França havia sido ocupada pelos nazistas alemães e a resistência foi uma
tarefa para os franceses.
As experiências nazi-fascistas e a ditadura do proletariado
Stalinista levaram a um anseio pela liberdade e o desejo de resgatar a
humanidade perdida. Existia uma pergunta no ar sobre o devir do mundo
após duas guerras mundiais. Dialeticamente, nos anos que se seguiram ao
fim da segunda guerra mundial, as inquietações do período suscitavam
mudanças e revoluções, existia um clima propício para uma nova paisagem
cultural, para formulações intelectuais e para a reinvenção de normas sociais.
As mulheres que tinham sido aproveitadas no mercado de
trabalho, como exército de reserva, perdiam seus postos de trabalho para os
homens e voltavam para casa. Na França, o direito das mulheres de votar foi
tardio, conquistado apenas em 1945. O aborto era crime e a anticoncepção
não era liberada.
A despeito de que a figura da “La Garçonne” tenha sido lançada
no imaginário francês na década de 1920, a situação de subordinação das
mulheres aos homens ainda era uma realidade naquele contexto e existia
forte preconceito contra lésbicas.
La Garçonne representou uma transgressão na imagem
feminina, um estilo, que surge na França com a publicação do romance de
mesmo nome, de Victor Margueritte, em 1922, ano em que o Senado Francês
negava o direito do voto às mulheres. O livro tornou-se um “best seller” e foi
considerado um escândalo, por apresentar uma jovem protagonista esbelta,
elegante, que se vestia como homem, usava cabelos curtos, fumava
cigarrilhas e tinha liberdade de sair sozinha à noite. A protagonista vivia
livremente sua vida, após ser traída pelo noivo, tendo outros parceiros. O
tema do livro remetia a questão da emancipação das mulheres e da igualdade
de direitos (MARGUERITTE, 1957).
535
A imagem de La Garçonne permaneceu no imaginário Francês
como transgressão, suscitando rebeldia, irreverência e
colocando em perigo a feminilidade. Teria sido reavivada a imagem da La
Garçonne com as idéias revolucionárias de Simone de Beauvoir sobre as
mulheres?
A reação ao Segundo Sexo não pareceu diferente, causando
muito incômodo. Simone foi duramente atacada, sob a pecha de imoral,
pornográfica, reduzida a mulher de Sartre. A defesa da moralidade foi um dos
argumentos utilizados com ironia, não só pelo fato dela introduzir na fala
pública temas que não eram usualmente tratados, como a sexualidade, a
lesbianidade, as diferenças sexuais, mas por romper o silêncio e atribuir a
mulher lugar de sujeito.
A hostilidade se dirige precisamente a esses temas desde o
aparecimento, na primavera de 1949, em Les Temps Modernes, dos
artigos de Simone de Beauvoir sobre “A iniciação sexual da mulher”, “A
lésbica” e “A maternidade” [...] Se as passagens dedicadas à análise
literária recebem acolhida favorável, o mesmo não se dá naquelas que
abordam sem tabus as experiências sexuais femininas ou desmistificam a
maternidade. (CHAPERON, 1999, p 43).

O livro foi um sucesso, despertando interesse de leitoras e


leitores, vendendo mais de 20.000 mil exemplares na primeira semana e foi
traduzido em mais de 20 países e proibido em outros. É significativo que o
Vaticano o tenha proibido. O fato era que existia espaço para as idéias
libertárias de Beauvoir, mas a elite intelectual política resistiu.
O Segundo Sexo foi ancorado na filosofia Existencialista. Muitas
vezes, reduzida a discípula existencialista, Beauvoir tinha uma vasta
produção na área e quando lançou O Segundo Sexo já era uma escritora
conhecida, mas não se reconhecia feminista. Logo na introdução do livro se
refere “a querela do feminismo” como uma questão “mais ou menos
encerrada” (BEAUVOIR, 1980).
Sua adesão ao feminismo aconteceu anos depois e foi
publicizada quando ela se engajou na luta pela legalização do aborto.
Simone Beauvoir foi uma das 343 mulheres que assumiram que fizeram um
aborto, assinando o Manifesto das 343, uma declaração publicada no “Le
Nouvel Observateur”, em 1971, que pretendia pressionar a Assembléia
Nacional da França (SCHWARZER, 1983). Em entrevista a John
Gerassi, (1976), 25 anos após escrever O Segundo Sexo, Beauvoir admite
que tomou consciência de sua própria condição enquanto escrevia O
Segundo Sexo. Percebeu que vivia uma situação privilegiada em relação às
mulheres, em geral, pela sua condição de classe e por ser uma intelectual
reconhecida. Admitiu que a sua obra seguiu o caminho inverso: da teoria
536
para a prática.
Como boa seguidora do existencialismo defendia a liberdade
como princípio, abordou a subjetividade das mulheres e a existência do ser.
Seu objetivo foi a desnaturalização das desigualdades entres os sexos, a
desconstrução da feminilidade como inata, trazendo com veemência a
perspectiva da construção social e cultural e rejeitando a idéia de que
“anatomia é o destino” (Freud) ou o corpo é a generalidade (Merleau-Ponty)
(BEAUVOIR, v. 1, p. 59). Ela criticou o determinismo biológico, para ela
interessava o corpo vivido e não o corpo objeto da ciência biológica.
Afirmando: “A mulher é uma fêmea na medida em que se sente fêmea. [...]
Não é a natureza que define a mulher: esta é que se define retomando a
natureza em sua afetividade”. (BEAUVOIR, vol. 1, p. 59).
Ela critica a imanência como lugar das mulheres que naturaliza e
legitima a dominação e afirma a existência do ser, que precede a essência.
Reafirma que a existência é socialmente construída a partir das escolhas e da
consciência individual. Para Sartre, a consciência está no mundo e tem como
característica fundamental a intencionalidade. É através da consciência que
o mundo adquire significado. Não existe natureza humana, o ser humano é
aquilo que ele faz de si mesmo (SARTRE, 1987). A consciência leva a
responsabilidade do agir.
Ao pensar a condição das mulheres, Beauvoir se diferencia da
concepção sartriana de liberdade, afirmando que a liberdade das mulheres é
circunstanciada e marcada por condições reais que interferem na sua
possibilidade de decidir. “Eu, ao contrário, insisti no fato de que existem
situações em que a liberdade não pode ser exercida ou não passa
de mistificação” (BEAUVOIR apud SCHWARZER, 1983, p. 107).
Nesse caso, as mulheres não agiriam por má-fé, mas
condicionadas e limitadas pelo lugar de outro na sociedade. A Má-fé refere-
se a uma mentira contra si mesmo, é o ato de fingir escolher diante da
angústia gerada pela responsabilidade da decisão a ser tomada, uma atitude
passiva. Esse ato acontece na esfera da consciência onde o indivíduo tem
consciência daquilo que oculta (PENHA, 1982)
Ela considera a importância do social na construção da
subjetividade feminina. Beauvoir entende a escolha como o diálogo entre:
“escolha, liberdade, projetos, por um lado, contra determinismo, alienação e
alteridade, por outro lado”. (MITCHELL, 1979, p. 322). Nesse sentido, Simone
questiona o determinismo do inconsciente da psicanálise, mas demonstra
apreciá-la ao dialogar com a mesma. Mitchell sugere que o existencialismo
contrapõe ao determinismo freudiano com o determinismo da consciência.
SIMONE DE BEAUVOIR E A MULHER LÉSBICA: “aquelas que escolhem
caminhos condenados”
537
Simone de Beauvoir inicia o capitulo “A lésbica”, reafirmando que
a biologia não define a feminilidade ou a masculinidade de alguém, que o jeito
de vestir e se comportar não estão relacionados a fatores biológicos, e ainda
que a homossexualidade na mulher não se relaciona a presença de traços
viris:
De bom grado imaginamos a lésbica com um chapéu de feltro ríspido, de
cabelos curtos e gravata; sua virilidade seria uma anomalia traduzindo um
desequilíbrio hormonal. Nada mais errôneo do que esta confusão entre a
invertida e a virago. Há muitas homossexuais entre as odaliscas, as
cortesãs, entre as mulheres mais deliberadamente 'femininas';
inversamente, numerosas mulheres 'masculinas' são heterossexuais.
(BEAUVOIR, 1980, vol. 2, p 144).

Beauvoir traz a convicção de que a construção da feminilidade


e masculinidade está a serviço da hierarquia entre os sexos:
[...] as mulheres mais voluntárias, mais dominadoras, não hesitam muito
em enfrentar o homem: a mulher dita 'viril' é muitas vezes francamente
heterossexual. Ela não quer renegar sua reivindicação de ser humano;
mas não deseja tampouco mutilar-se na sua feminilidade, escolhe
ascender ao mundo masculino e até anexá-lo. (vol. 2, 1980, p. 150).

Não descarta os casos em que questões fisiológicas levam ao


“aparecimento de indivíduos intermediários entre machos e fêmeas”
(BEAUVOIR, 1980, p.144) e admite que as variações hormonais que
atribuem características “viris” às mulheres podem influenciar “mais ou
menos diretamente uma vocação lésbica” (BEAUVOIR, 1980, p.145).
Voltarei adiante ao termo vocação. Em resumo, “Nenhum 'destino anatômico'
determina a sua sexualidade” (BEAUVOIR, 1980, p. 144).
No decorrer do capítulo, ela procura as causas para a
lesbianidade, lançando mão de histórias, personagens, e situações
específicas na busca de encontrar as explicações para além da psicanálise.
Nesta tentativa, ela recorre a dados fisiológicos, história psicológica,
circunstâncias exteriores, fracassos e ausências, aparecendo explicações
como: a vocação, a socialização, a relação com a mãe, a resistência a
sujeição aos homens, a convivência entre mulheres e a falta de oportunidade
de encontrar homens ou após desilusões amorosas. Utiliza termos como
danadas, viciosas, invertidas, viris; talvez em alusão a forma como a
sociedade as vê; também as considera encantadoras, determinadas, que
subvertem a ordem.
Essa abordagem pode ser reveladora da homofobia da
sociedade francesa da época. Consta que Simone foi suspensa de suas
funções de professora do Lycée Camille Sée, em 1943, após a acusação da
mãe de Natalie Sorokine, que lhe acusou de corromper a sua filha, que era a
538
sua aluna e estava morando com ela. Nada foi comprovado, Beauvoir foi
protegida pela “família existencialista” (BONNET, 2005).
Sem deixar de pensar a teorização de Beauvoir a luz do contexto
da época, é digno de nota o fato de que tenha utilizado a terminologia invertida
para se referir as lésbicas, assim como o fez Freud e a visão
dominante da época. Seria essa a expressão de algumas de suas
incoerências ao tratar do tema da lesbianidade e da inconsciente homofobia a
que se refere Bonnet (2005)? Seria uma utilização deliberadamente
estratégica de modo que pudesse dialogar com os autores e a sociedade da
época? Ou uma atitude cautelosa diante da acusação de amorais, devassos
e contra as regras que os existencialistas já vinham sofrendo?
A despeito de questões estratégicas ou dos limites
epistemológicos, as palavras utilizadas no texto são reveladoras de
resquícios da atitude preconceituosa corrente na época.
Faz-se necessário revisitar o significado da terminologia utilizada
e a episteme na qual está inserida. Beauvoir utiliza o termo invertida para
referir-se a lésbica, diferenciando da virago, aquela mulher com
características masculinas, sinônimo de marimacho; mulher forte de
maneiras varonis.
O dicionário Aurélio (1999) define invertido como aquele que se
inverteu, sinônimo de pederasta passivo, popularmente “diz-se do homem
em que outro exerce ações libidinosas”. A denominação associa-se a idéia de
perversão - pessoa pervertida, especialmente a que se entrega a atos
sexuais inaturais.
O conceito inversão sexual foi cunhado pela psiquiatria no final do
século XIX, quando os sujeitos passaram a ser categorizados com uma
identidade sexual específica e fixa com base em suas práticas sexuais. O
texto de Westphal, “As Sensações Sexuais Contrárias”, foi um marco da
definição de identidade sexual a partir da “inversão”, relacionando esta ao
comportamento e caráter dos sujeitos. Neste momento, constitui-se a
homossexualidade como uma categoria psicológica, psiquiátrica e médica
(FOUCALT, 1988).
Referindo-se aos exibicionistas, feitichistas, mulheres
disparêunicas, invertidos sexoestéticos, Foucault diz: “Tornam-se espécies
todos os pequenos perversos que os psiquiatras do século XIX
entomologizam atribuindo-lhes estranhos nomes de batismo” (1988, p. 44).
O homossexual passou a ser visto como o desviante da norma
_____________________________________________________________

3
BEAUVOIR, S. In: BONNET, 1999; p: 1.
539
heterossexual e por isso, passível de controle médico-legal.
Considerava-se que a então chamada "inversão sexual" constituía uma
ameaça múltipla: à reprodução biológica, à divisão tradicional de poder
entre o homem e a mulher na família e na sociedade e, sobretudo, à
manutenção dos valores e da moralidade responsáveis por toda uma
ordem e visão de mundo. (CHAPERON, 2007, p.).

Na história da Sexualidade, Foucault (1988) detém-se a analisar


os discursos sobre a repressão moderna do sexo que se instituíram na Idade
da repressão sexual, a partir do Século XVII, como parte da ordem burguesa e
do surgimento do modo de produção capitalista. Para Foucault:
Esta nova caça às sexualidades periféricas provoca a incorporação das
perversões e nova especificação dos indivíduos. O homossexual do
século XIX torna-se uma personagem: um passado, uma história, uma
infância, um caráter, uma forma de vida; também é morfologia misteriosa.
Nada daquilo que ele é, no fim das contas, escapa à sua sexualidade.
(1988, p. 43).

O uso do termo “invertida”, assim como (a) normal, (in) completa


reforça determinada perspectiva da homossexualidade. No entanto,
Beauvoir não comunga com a concepção patologizada, pois acredita que a
homossexualidade é uma expressão legítima da sexualidade humana e a
lesbianidade uma forma de viver a sexualidade não condicionada pelo desejo
do homem (BEAUVOIR apud SCHWARZER, 1985). Beauvoir acredita que a
bissexualidade é a forma ideal de vivência sexual:
Em si a homossexualidade é tão limitada quanto à heterossexualidade: o
ideal deveria ser poder amar tanto uma mulher, quanto um homem, pouco
importa, um ser humano, sem sentir medo, constrangimento ou
obrigações. (BEAUVOIR apud SCHWARZER, 1985, p.76).

Beauvoir defende que o amor entre mulheres faz parte da vida


das mulheres. Argumenta que a homossexualidade é parte da aprendizagem
das adolescentes, pois que toda adolescente teme a penetração e a
dominação masculina e deseja o corpo feminino. (BEAUVOIR apud
SCHWARZER, 1985, p.146). A afirmação traz implícita a idéia de que essa
fase seria superada, na vida adulta, pela heterossexualidade; idéia
desenvolvida por Freud (1931) sobre a sexualidade feminina imatura
(clitoridiana) e a fase madura (vaginal). Reafirmando a bissexualidade, ela
acredita existir uma face negativa da homossexualidade feminina: “ela não se
caracteriza por seu pendor pelas mulheres e sim pela exclusividade desse
pendor” (BEAUVOIR apud SCHWARZER, 1985, p. 147) . Com esta
afirmação, ela atribui um valor negativo a vivência da lesbianidade.
Na sua incursão pelos aspectos psicológicos da mulher lésbica,
Beauvoir chega a afirmar que: “assim como a mulher fria almeja o prazer,
540
embora recusando-o, a lésbica gostaria muitas vezes de ser uma mulher
normal e completa, embora não o querendo” (BEAUVOIR apud
SCHWARZER, 1985, p. 152). Mais adiante, Beauvoir deixa evidente que
essa incompletude está relacionada à falta do pênis na relação sexual e ao
papel da penetração nesta.
A lésbica poderia facilmente consentir na perda de sua feminilidade se
com isso adquirisse uma virilidade triunfante. Mas, não. Ela permanece
evidentemente privada de órgão viril: pode deflorar a amiga com a mão ou
usar um pênis artificial para imitar a posse; não deixa contudo de ser um
castrado, mas pode sofrer profundamente. (BEAUVOIR apud
SCHWARZER, 1985, p. 152).

E continua: “Amiúde a lésbica tentará compensar a sua


inferioridade viril por uma arrogância, um exibicionismo reveladores de um
desequilíbrio interior”. (BEAUVOIR apud SCHWARZER, 1985, p.152). Para
ilustrar essa afirmação traz o caso da menina Sarolta que foi educada como
homem/Sandor, e manteve relações afetivo-sexuais com mulheres.
A despeito da afirmação que corrobora com a idéia de castração
de Freud que trata o comportamento sexual feminino com parâmetros
heterossexuais e androcêntricos, ela considera que fatores sociais e
educacionais influenciaram a formação da identidade sexual de Sandor.
O foco de análise de Beauvoir não está sobre a reação social à
lesbianidade e o impacto desta no comportamento e na subjetividade dessas
mulheres como fatores para casos de desequilíbrio, doenças, desajustes;
mas afirma “são condenadas pela sociedade, conseguem mal integrar-se
nela” (p. 161) e sabe que alguns dos comportamentos adotados “é porque
elas não têm nenhum meio de viver sua situação com naturalidade” (p. 162).
Estaria mais preocupada com a subjetividade e o psicológico. Concordará
com a abordagem psicanalítica sobre a influência da relação com a mãe na
definição da vivência lésbica e a reprodução da relação mãe-filha em
relações lésbicas. Também estará atenta a observar a reprodução de papéis
heterossexuais, como passiva e ativa, em relações lésbicas.
De fato, parece intrigar Beauvoir a postura masculinizada – butch
- de algumas lésbicas. Ela reflete sobre a limitação de tentar classificar as
lésbicas em duas categorias estanques: viris e femininas (p 159). Apesar de
ponderar que a atitude viril está relacionada às responsabilidades sociais que
assume, ao dispensarem o homem, Beauvoir adota outro tom quando pontua
que existem mulheres que não abrem mão de sua feminilidade: “a maioria das
lésbicas procura ao contrário apropriar-se dos tesouros de sua feminilidade”
(p. 155). Neste caso, ela descreve a relação sexual e o amor entre mulheres
_____________________________________________________________

4
A partir de agora, todas as referências feitas no texto serão ao volume 2 de O Segundo Sexo – A
Experiência Vivida

541
como um reflexo de espelhos, em que o corpo e as preferências são
(re)conhecidas através de si próprias, fazendo uma referência a troca de
lugares na relação entre mulheres:
[...] as carícias são menos destinadas a se apropriar do outro do que a
recriar-se lentamente através dele [...] dentro de uma exata reciprocidade
cada qual é ao mesmo tempo sujeito e objeto, a soberana e a escrava; a
dualidade é cumplicidade (p. 156).

Os romances de Simone e sua bibliografia parecem revelar uma


vivência bissexual. Na entrevista a Alice Schwarzer (1985), a autora fala de
uma 'ternura acariciante', de um amor por mulheres, não necessariamente
erótico-sexual. Não esconde o seu encanto pelas mulheres: “elas são mais
bonitas, mais suaves, sua pele é mais agradável. [...] De maneira geral, têm
mais encanto” (BEAUVOIR apud SCHWARZER apud, 1985, p. 111). No
entanto, admite que sua sexualidade foi fruto de sua educação familiar e das
leituras, voltada para a heterossexualidade compulsória, quando afirma que
não teve relações afetivo-sexuais com uma mulher. Bonnet (2005) se
contrapõe e afirma a bissexualidade de Beauvoir baseada na análise de
publicações póstumas do Diário de Guerra de Simone de Beauvoir, de suas
Cartas a Sartre e de Memórias de uma Moça Malcomportada, de Bianca
Lamblin, que conviveu intimamente com Simone. Baseada nessas
informações, na abordagem no capitulo “A lésbica”, na ausência de
aproximação da autora com o movimento de mulheres lésbicas francês,
Bonnet respalda sua afirmação quanto à dificuldade de Beauvoir de afirmar-
se bissexual no contexto de homofobia da sociedade francesa.
Algumas teóricas lésbicas feministas discutem a lesbianidade
como uma proposta política de ruptura epistemológica e uma atitude ante o
sistema heterossexual de organização social, retroalimentado pelas relações
de gênero, de raça e classe |(FALQUET, 2006, SWAIN, 2004). Na mesma
perspectiva de Beauvoir, Adrienne Rich (1980) defende o amor entre
mulheres de forma ampla, envolvendo a solidariedade, a cumplicidade e a
união. bell hooks (2000) traz o termo sororidade para expressar o vínculo
entre mulheres de forma voluntária e política na luta contra o sistema
patriarcal.
Wittig (1980) afirmou “A lésbica não é uma mulher” para dizer que
as lésbicas não se sujeitam a hierarquização heterossexista, subvertem a
referência masculina como sujeito universal e questionam a relação de
sujeição das mulheres. Na entrevista acima citada (GERASSI, 1976),
Beauvoir reconhece o potencial revolucionário da radicalidade lésbica,
comparando com a ação política de negros americanos.
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5
Em 1870, o psiquiatra Carl Westphal escreveu o texto “As Sensações Sexuais Contrárias, colaborando
para a criminalização da homossexualidade pelo código penal alemão. Nessa perspectiva a
homossexualidade representava uma ameaça a ordem (MISKOLCI, 2007).

542
Beauvoir compreende a posição política de mulheres lésbicas de
recusa em partilhar relações sexuais e emocionais com homens. Pois,
acredita que a relação de dominação se perpetua nas relações sexuais e que
muitas mulheres se escravizam sexualmente. Para ela, a frigidez pode ser
uma forma de expressar o mal estar da relação de dominação com homens.
Beauvoir compreende que não é fácil para as mulheres assumirem o lugar de
ativas ante a expectativa dos homens de fêmea passiva. Ela afirma que entre
artistas e escritoras encontram-se muitas lésbicas por não se submeterem a
superioridade masculina e às exigências da feminilidade, já que sua
prioridade é o trabalho. (BEAUVOIR, 1980, vol. 2).
No entanto, ela questiona algumas posturas das mulheres
lésbicas a qual sente como imposição às heterossexuais “acho aborrecidas e
irritantes sua mística ao clitóris e todos aqueles dogmas sexuais que tentam
nos impor” (1983, p. 34). Neste ponto, ela se coloca como “nós” - mulheres
heterossexuais - e “elas” são as lésbicas.
Da mesma forma que lhe aborrece a imposição da sexualidade
lésbica, não pode sugerir a bissexualidade como a forma ideal; parecendo
uma incoerência mediante sua proposta libertária de amor, de relações
afetivas e para as mulheres.
Beauvoir também rechaça a idéia de que toda relação sexual com
homem seja uma violação, acreditar nisso seria uma retomada aos mitos
masculinos do sexo do homem como espada, uma arma, seria a
impossibilidade de recriar as relações (1980). “A mulher que não quer ser
vassala do homem, está longe de sempre o evitar: tenta antes fazer dele o
instrumento de seu prazer” (p. 151). No entanto, ela reconhece que isso
dependerá da presença de circunstâncias favoráveis e não apenas da
mulher.
Talvez tenha sido a sua crença na bissexualidade que fez com
que ela não contestasse a teoria freudiana de sexualidade feminina no
tocante ao desenvolvimento genital. Este aspecto da teoria tem sido
fortemente criticado por feministas pela perspectiva androcêntrica,
normalizadora e restritiva que representa.
Nesta teoria, ambos os sexos passam pelo desenvolvimento oral
e anal; no estágio genital, as meninas terão duas etapas, enquanto que
meninos uma. Freud diz:
O desenvolvimento da sexualidade feminina é complicado pelo fato de a
menina ter a tarefa de abandonar o que originalmente constituiu sua
principal zona genital – o clitóris – e, favor de outra, nova, a vagina (1931,
p.5).
_____________________________________________________________

6
Grifo meu.

543
Para Freud, o prazer clitoridiano é uma etapa na evolução da
sexualidade feminina. Essa transição se relaciona a passagem do foco do
amor materno ao paterno, que se relaciona diretamente à castração: “motivo
mais forte para a menina se afastar dela, a censura por a mãe não ter lhe dado
um pênis apropriado, isto é tê-la trazido ao mundo como mulher”. (Freud,
1931:6)
Freud utiliza expressões como “a mulher só atinge a normal
situação edipiana positiva” quando toma o pai como objeto (de desejo);
“atingirá a atitude feminina normal final” quando desloca o foco de seu prazer
sexual do clitóris para a vagina (1931:6).
O resultado do desenvolvimento sexual não é bem sucedido
quando as mulheres se revoltam e crescem insatisfeitas com o seu clitóris,
abdicando da sexualidade ou quando permanecem fixadas na mãe como
objeto, recusam a castração e buscam o pênis perdido, podendo resultar na
homossexualidade. Freud admite que o clitóris (segundo ele, com caráter
viril) continuará a funcionar na vida sexual feminina adulta, mas não hesita em
afirmar, no final de sua carreira, depois de um longo silêncio sobre o tema que
alguma coisa lhe escapou sobre a feminilidade, “esse continente negro” e
deixará no ar a pergunta, “afinal o que quer uma mulher?” (ANDRE, 1998).
Beauvoir contestou a idéia freudiana da castração e de que a
resolução esperada para o complexo de castração é a completude gerada
com a gravidez e o nascimento de um filho. Denunciou o reforço à
maternidade obrigatória como lugar de definição das identidades femininas.
Ela focou sua discordância na discussão da feminilidade e
masculinidade e no fato da teoria freudiana considerar a sexualidade
masculina como referência; o masculino como a norma; e o feminino como o
desvio, a mulher como o outro; a teoria serve ao reforço da idéia de sujeito
universal e do segundo sexo.
Para Beauvoir, “a elaboração do erotismo feminino é uma história
psicológica em que fatores fisiológicos são envolvidos, mas que depende da
atitude global do sujeito em face de sua existência” (p. 145). Ela discorda que
a homossexualidade seja uma falha no complexo de castração (Freud) ou um
ato de resistência e superioridade (Adler).
Simone estava interessada no aspecto psicológico da
lesbianidade, por isso dialogou com a psicanálise freudiana. Com ênfase no
psicológico, discute a articulação entre estes fatores e os sócio-culturais e
fisiológicos.
Sua teorização antecipa a noção de Orientação Sexual quando
afirma que a elaboração do erotismo feminino é uma história psicológica em
que os fatores fisiológicos são envolvidos, mas que depende da atitude global
do sujeito em face de sua existência. (p. 145). Beauvoir já trazia a conjunção
544
de fatores psicológicos, culturais e fisiológicos que são a base do conceito de
Orientação sexual.
Ela conclui o capitulo “A lésbica”, dizendo que “a
homossexualidade não é uma perversão deliberada nem uma maldição fatal”
(p. 164). É uma atitude escolhida em situação, isto é, existem fatores que
influenciam de modo que não se trata de uma intenção deliberada. Ela se
refere à noção de vocação lésbica como algo ligado a questões hormonais
em hermafroditas ou mulheres virilóides, como esportistas, mas não
condiciona a lesbianidade a esta questão. Para ela, a masculinidade ou
feminilidade de uma mulher não define a sua vocação lésbica.
Simone de Beauvoir recorre à psicanálise para entender a
existência lésbica. Ela reconhece o avanço da psicanálise ao lidar com a
sexualidade e com o corpo para além da biologia, considerando o corpo vivido
pelo sujeito que se aproxima da noção de corpo situação.
A afirmação de Mitchell (1979) de que Beauvoir elabora uma
filosofia com conteúdo psicológico é bastante pertinente para o capitulo “A
lésbica”. “Ainda que a psicanálise não se considere uma filosofia, S. Beauvoir
encontra nela uma dimensão filosófica”. (Mitchell, 1979, p. 320)
Ela construiu uma crítica epistemológica à psicanálise e à
compreensão desenvolvida acerca da subjetividade. Todavia, não deixa de
dialogar com a mesma, arriscando uma filosofia da psicanálise. O que teria
feito Simone insistir no diálogo com a psicanálise? Como conciliar o
inconsciente da psicanálise com o lugar da consciência para o
existencialismo?
Sartre é totalmente contrário à noção de inconsciente da
psicanálise, pois que acredita na consciência. Talvez o encantamento de
Simone fosse com o aparecimento de uma área de conhecimento que trazia a
subjetividade, a sexualidade; ou ainda a possibilidade de considerar o lugar
do inconsciente na liberdade circunstanciada. Simone não tinha medo do
desconhecido; de adentrar no conhecimento e de ousar.
Para Mitchell, Beauvoir aprecia a psicologia existente na
psicanálise, mas discorda da natureza desta psicologia (1979). Mitchell alerta
que 'a natureza da intenção psicofilosófica de Simone de Beauvoir determina
sua leitura de Freud” (1979, p. 320). A leitura de Beauvoir da obra de Freud é
determinada pela sua perspectiva crítica de desconstruir a inferioridade
feminina, o lugar da mulher como outro supremo em detrimento da definição
do homem como sujeito universal, sem deixar de reconhecer suas
_____________________________________________________________

7
Rich, A., Wittig, M. e Falquet, J. defendem a idéia de sistema patriarcal como lócus da opressão da mulher
e da heterossexualidade obrigatória.
8
Grifo meu.

545
contribuições e de transparecer certo encantamento com a nova área de
conhecimento.
BREVES CONSIDERAÇÕES FINAIS...
Leituras e releituras parecem insuficientes para apreender
Beauvoir em relação à lesbianidade. A autora desliza entre idéias
contraditórias acerca da lesbianidade; por um lado, trata como uma
experiência da existência feminina, presente em várias fases da vida e
reconhece como legítima a relação afetivo-amorosa entre duas mulheres.
Mas, não compreende a plenitude de uma relação lésbica e na sua tentativa
de psicofilosofar, em diálogo com a psicanálise, acaba levando ao lugar da
falta. Beauvoir parece mais consistente quando trata da relação afetivo-
amorosa entre mulheres, do que quando aborda os aspectos da sexualidade
propriamente dita. Todavia, o foco de seu interesse é a (dês) construção da
feminilidade e masculinidade atributos pré-determinados.
Não há duvidas quanto à pertinência e a atualidade dos temas
abordados por Simone de Beauvoir ao longo do livro O Segundo Sexo. Suas
análises são, em grande parte, pertinentes aos dias de hoje. Em relação à
questão do aborto traz um leque de argumentos que são sintonizados com a
abordagem hoje utilizada, como a questão da saúde púbica, da justiça social
e da autonomia das mulheres.
Quando aborda o tema da lesbianidade também está movida pela
idéia de liberdade existencialista e a defesa da autonomia feminina, por isso
trata de afirmar o direito de escolha. Não restam dúvidas que ter incluído essa
questão no livro foi uma atitude corajosa na sociedade francesa pós-guerra,
inclusive entre os existencialistas, grupo pelo qual nutria pertencimento. Suas
questões contribuíram para trazer o debate a tona, mesmo que tenham
gerado muitos, inclusive contra ela própria. Todavia, sua escolha em dialogar
com a psicanálise resvalou para posturas androcêntricas e reforçadoras da
moral da época, como já foi abordado ao longo do artigo.
Mesmo que não se declarasse feminista quando escreveu O
Segundo Sexo, este não foi apenas importante, foi fundamental para a lenta
revolução das mulheres e para uma geração de mulheres que disseram que
Beauvoir “mudou nossas vidas”, a exemplo da atriz Fernanda Montenegro.
Herdeiras de Beauvoir, o feminismo resistiu a incorporar as
questões das mulheres lésbicas em sua produção teórica e agenda política.
Há muitas lésbicas que fazem parte do movimento feminista. No entanto, boa
parte do movimento feminista se deixou intimidar pela pressão social que
_____________________________________________________________

9
Complexo de castração diz respeito à percepção e constatação que meninos e meninas terão da
ausência do pênis nas mulheres. Nos meninos, o interesse em preservar o pênis funcionará como uma
interdição ao amor materno e a superação do Complexo de Édipo. Nas meninas, a castração levará ao
reconhecimento da superioridade masculina e de sua inferioridade.

546
exigiu ao feminismo o silêncio sobre a lesbianidade e sua invisibilização para
que pudesse ser minimamente respeitado. As lésbicas passaram a ser um
tipo de ameaça, mesmo que estas lutassem pelas causas das mulheres
hetero, como a contracepção e o direito ao aborto (FALQUET, 2006).
O protagonismo de mulheres lésbicas feministas tem produzido
leituras críticas sobre a realidade das mulheres, inserindo de forma incisiva a
crítica a heteronormatividade e a lesbofobia nos estudos feministas, através
da categoria sexualidade, em diálogo com as dimensões de gênero, raça,
classe, geração. Assim como as mulheres negras, as lésbicas pautam e
enriquecem o feminismo brasileiro a partir de sua forma de olhar e atuar
politicamente.

_____________________________________________________________

10
O termo orientação sexual é considerado atualmente mais apropriado do que opção sexual ou
preferência sexual em concordância ao fato de que não se escolhe ser heterossexual ou homossexual.
Orientação Sexual considera a sexualidade nas suas dimensões biológica, psíquica e sociocultural. (MEC)

547
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http://sisyphe.org/spip.php?article2003 .
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548
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http://www.geocities.com/girl_ilga/textos/pensamentohetero.htm

549
GÊNERO, CIÊNCIA E PRÁTICAS ESCOLARES

Nadia Regina Loureiro de Barros Lima


Com este trabalho buscamos desenvolver uma reflexão sobre o
tema Gênero e Ciência na escola, tendo em vista apreender de que modo a
transversalidade do discurso de gênero se faz presente no saber científico,
desde as primeiras experiências discentes na instituição escolar. Para isso,
abordamos o processo de constituição do campo do saber científico,
destacando suas condições de produção histórica materializadas pelo
capitalismo e patriarcado em sua relação com a questão de gênero.
Entre as razões que despertaram nosso interesse por tal reflexão
destacamos um dado de realidade: a diminuta presença das mulheres no
campo das ciências da natureza. A importância desse processo investigativo
se justifica por um lado, pela importância da Ciência e da Tecnologia para o
processo de desenvolvimento das nações e, se as mulheres estão sub-
representadas nesse campo do saber, deixam de contribuir para esse
processo; por outro, pela adesão a uma postura política transformadora de
gênero direcionada para apreender as razões que estarão gerando essa sub-
representação feminina. Se no mundo moderno, as condições de acesso às
diferentes áreas intelectuais e profissionais são de relativa possibilidade para
homens e mulheres, que mecanismos estariam interferindo nessa diminuta
presença feminina nas ciências da natureza?
Considerando a premissa de que a realidade é socialmente
construída e, como tal, as relações sociais (classe, gênero, raça/etnia)
repercutem nos dizeres e construção de saberes, privilegiamos a análise da
relação de gênero na sua articulação com o saber científico.
Metodologicamente, fazemos uso do dispositivo da Análise do Discurso (AD)
de filiação francesa, inaugurada por Michel Pêcheux.
Num primeiro momento, tratamos de circunscrever o lugar das
mulheres nas ciências que, através da história, tem sido marcada pela sub-
representatividade: Por que tão poucas?Analisamos as condições de
produção do discurso, nos detendo em algumas categorias de análise, a fim
de apreendermos o Discurso Científico, na sua contextualização histórica da
sociedade moderna; nesta, destacamos os sujeitos discursivos à luz dos
Estudos de gênero. Em seguida, numa tentativa de aproximação de resposta
à questão proposta, buscamos as condições de produção histórica e
discursiva, através do capitalismo e patriarcado, da relação de gênero e
ciência. Esta, desde sua emergência, vem sendo marcada por valores
androcêntricos que, numa relação de desigualdade, delegam a natureza, as
mulheres e o feminino uma posição de subalternidade. Enfim, perscrutando
como o gênero entra na escola, buscamos apreender o funcionamento
_____________________________________________________________

1
Núcleo Temático Mulher & Cidadania – NTMC/UFAL

550
discursivo de um texto escrito (redação) produzido por um professor de
matemática, a partir da questão: “Como percebo o desempenho de alunos e
alunas na aprendizagem da matemática?” Discutimos a premissa hipotética
da relação existente entre a sub-representividade das mulheres nas ciências
e os mecanismos explícitos e implícitos (“currículo oculto”) veiculados na
escola, espaço institucional reprodutor de estereótipos ideológicos de
gênero.
Como resultado da análise, constatamos a existência de uma
posição de sujeito marcada por valores androcêntricos próprios de uma
formação social capitalista patriarcal de gênero, cujos canais de reprodução
ideológica se materializam entre outras formas, através das instituições,
como a escola. Nesta, o corpo docente constitui um dos elos da cadeia de
transmissão e perpetuação dos estereótipos de gênero e, através de suas
práticas no processo ensino/aprendizagem, produz efeitos de sentidos que
acabam repercutindo no distanciamento das mulheres em relação às
ciências. Porém, já que os valores inculcados em meninos em meninas na
escola são práticas discursivas historicamente construídas com base numa
lógica binária da diferença, também poderão ser descontruidas; essa
desconstrução, rumo a uma relação igualitária, teria como base uma
ontologia do múltiplo.
Como contribuição para efetivar mudanças nessas práticas,
propomos a realização de um trabalho com enfoque de gênero nas
instituições escolares com docentes e discentes, bem como nos Cursos de
Pedagogia das IES (Instituições de Ensino Superior), com estudantes que
estão recebendo formação para lecionar disciplinas do campo das ciências
da natureza.

551
POR QUE TÃO POUCAS? PERSCRUTANDO O LUGAR DAS MULHERES
NAS CIÊNCIAS DA NATUREZA
Por que tão poucas? Por que apenas nove
mulheres ganharam o
Prêmio Nobel em Ciências, contra mais de
trezentos homens?
(MCGRAYNE, 1994, p.13).
É questionando o lugar das mulheres no campo das ciências que
McGrayne abre sua obra Mulheres que ganharam o Prêmio Nobel em
Ciências: suas vidas, lutas e notáveis descobertas (1994) e, assim fazendo,
aponta para um dado de realidade: a reduzida presença das mulheres nas
ciências da natureza.
Se acatamos a premissa de que a realidade é socialmente
construída, isso significa que o socius é regido por relações de poder que
repercutem na produção de saberes e emissão de dizeres. Acatando essa
premissa, estamos assim navegando em águas epistemológicas que
argumentam a regência das condições sócio-culturais e econômicas no
processo de produção de idéias porque, como diz Marx (1977, p.24), “Não é a
consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que,
inversamente, determina a consciência.” Do ponto de vista da construção
discursiva da ciência, Pêcheux segue a linha do raciocínio marxiano ao
afirmar que essa produção é um “efeito (e a parte) de um processo histórico
determinado.”(1988, p.190). As condições de aparecimento
estão vinculadas, continua Pêcheux (1988, p.190), “ às ideologias práticas
do modo de produção capitalista e à relação que essas ideologias mantêm
com as do modo de produção anteriores.” E, conclui ele, “através delas, as
ciências 'já começadas'(essencialmente, o continente matemático).”.
Em se tratando de gênero e ciência, considerar a produção do
conhecimento como um “efeito (e a parte) de um processo histórico
determinado”, implica destacar a base material não só do modo de produção
capitalista, mas também do patriarcado que, lembrando Castells (1999,
p.278), “dá sinais no mundo inteiro de que ainda está vivo e passando bem
[...].”.
Assim sendo, partindo do dado de realidade do lugar das
mulheres nas ciências da natureza, fazemos nossa a questão de McGrayne –
Por que tão poucas? – e, fundamentada nessa leitura epistemológica de
produção do conhecimento e construção discursiva, partimos em busca das
possíveis relações históricas que apontam para a relação das mulheres com
a ciência, particularmente, com a matemática.
Do ponto de vista dos Estudos de gênero, esse tema vem sendo
objeto de investigação por teóricas feministas que, numa postura crítica à
ciência, há muito vêm evidenciando a presença de implicações de gênero no
campo do saber científico. Isso implica perscrutar o processo de construção
desse campo do saber, destacando suas condições de produção patriarcal e
552
capitalista, bem como sua articulação com a relação de gênero.
COMO PERSCRUTAR? DISCURSO E GÊNERO NA CIÊNCIA
Na produção desse campo investigativo gênero e ciência,
necessário se faz elucidar como vem se processando essa relação no que se
refere à produção do conhecimento científico. Em relação ao gênero – como
uma categoria de análise historicamente datada – muito se tem escrito sobre
e com sentidos diferenciados; porém, alguns aspectos vêm se mantendo
presentes nas diversas abordagens: o relacional (que implica atributos
masculinos e femininos historicamente construídos) e o de dominação
(homens/masculino sobre mulheres/feminino). Para Scott (1990), isso seria
traduzido através de duas proposições básicas: gênero como elemento
constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas
entre os sexos; gênero como primeiro modo de dar significado às relações de
poder.
Como elemento constitutivo de relações sociais, o gênero atua
através dos processos simbólico (simbolismo de gênero), estrutural (divisão
sexual de trabalho) e individual (identidade de gênero), intrinsecamente
relacionados e, como tais, atribuem significados à masculinidade e
feminilidade; em relação ao poder de gênero, uma das formas de dominação
social, em que o masculino é sempre mais valorizado que o feminino. Nesse
sentido, se o Modo de produção capitalista constitui o conceito-chave para
dar conta da dialética de classes, o de patriarcado (ordem patriarcal de
gênero) é a chave conceitual para a apreensão da dinâmica do
feminino/masculino, historicamente construídos.
Sobre essa abordagem patriarcal de gênero, Pateman enriquece
a discussão em The Sexual Contract (1988), quando trabalha o conceito de
patriarcado como um contrato sexual; atuante no âmbito privado, mas com
desdobramentos para o espaço público, essa conceituação permite que se
constate a estrutura patriarcal do capitalismo e de toda a sociedade civil,
donde os desdobramentos de estruturas patriarcais de pensamento. Para
ela, a “lei do pai” e a “lei do marido” vêm garantindo a perpetuação de uma
história de liberdade para uns sujeitos sociais e submissão para outros; a
relevância desse conceito se justifica nos Estudos de gênero, entre outras
razões, porque é através dele que são atribuídos direitos aos homens sobre
as mulheres, configurando uma relação de poder, cuja base material se
sustenta na desigualdade estabelecida no âmbito do trabalho e no controle da
sexualidade e reprodução. Se literalmente se entende patriarcado como “lei
do pai”, historicamente o sentido desse termo está associado a uma espécie
de pacto masculino para garantir a opressão das mulheres e, conforme afirma
Vivien Burr (1998, p.14), “Historically, the term was used to refer a system of
government in which older men governed women and younger men through
their position as heads of hoouse-holds olds.”.
Já em relação à gênese e desenvolvimento da ciência moderna,
sua emergência se deu por volta do século XVII, em meio a um processo de
553
transformações culturais e conflitos filosóficos, que culminou com a
derrocada da visão sacral de mundo, apoiada nas verdades reveladas; nesse
sentido, representou uma reação ao obscurantismo medieval que pretendia
reduzir todo conhecimento à tirania da “Santa” Inquisição, inclusive o
científico. Neste momento emergente, os princípios norteadores da nova
visão de mundo secularizada e apoiada na razão têm como “pais” duas
figuras excepcionais na história das idéias: René Descartes (1596-1650) e
Francis Bacon (1561-1620); neles, a Ciência moderna vai ser edificada
contando em seus alicerces premissas cartesianas, particularizando-se
como um conhecimento de caráter racional e empírico.
Diante dessa rígida construção teórico-metodológica do
emergente saber científico, assim estruturado em nome da neutralidade e
objetividade, não tardaram críticas questionando tais parâmetros de
cientificidade; a idéia de certeza embutida na ciência clássica, por exemplo,
foi questionada à luz do princípio da incerteza (termodinâmica, física
quântica, cosmofísica), vindo a gerar uma diversidade de discussões
epistemológicas. Na contemporaneidade, essas discussões contam com a
contribuição de Popper, Khun, Holton, Lakatos, Feyerabend, entre outros. No
cenário atual, cada vez mais se tende a constatar que a ciência está muito
mais para hipótese do que para certeza; que mesmo uma teoria provada, não
o está definitivamente, donde se apreender a construção do conhecimento,
nas palavras de Morin (1996), como um processo complexus (aquilo que é
tecido junto) e dialógico (espiral itinerante).
O movimento de crítica à ciência ficou conhecido como “crise dos
paradigmas” e, entre as críticas dirigidas, destacamos a do campo dos
Estudos de gênero, apontando para a presença dos valores androcêntricos
na concepção de ciência, bem como de sua prática. É nesse caldo de
discussão que nas últimas décadas do século XX (70 e 80) foi sendo forjado o
campo temático gênero e ciência, quando o feminismo, muitas vezes referido
como da segunda onda, se caracterizou como um movimento político e, como
tal, teve como efeito um projeto intelectual acadêmico: a teoria feminista. No
bojo desse movimento, em 1978 aparece pela primeira vez nomeado o
campo de estudo Gender and Science, num artigo de autoria de Evelyn Fox
Keller. Este projeto se dirigia a uma concepção de conhecimento
fundamentado na gênese da divisão sexual e emocional do trabalho, que
dicotomizava os sujeitos produtores: de um lado, o masculino identificado
com a mente, razão, objetividade; do outro, o feminino, com o coração
(corpo), sentimento, subjetividade, tendo como saldo, a exclusão das
mulheres do empreendimento científico. Buscava, em suma, identificar,
traços da ideologia androcêntrica nas ciências. Desde então, a produção
nesse campo vem se ampliando e se diversificando, mantendo como foco de
_____________________________________________________________

2
Entre outras produções nesse campo, destacamos as de: KELLER, E. F., 1991; HARDING, S.,1996;
ROSE, S., 1986; ROSE,H., 1977; JAGGAR,A. & BORDO,S.,1990.

554
direção questionar as bases da autoridade cognitiva das ciências da natureza
nas culturas ocidentais; nesse sentido, questionar as bases da construção do
saber científico, perscrutar o lugar das mulheres no campo das ciências,
implica a apreensão das condições de produção dessa realidade em que as
mulheres estão sub-representadas, bem como da construção discursiva da
relação de gênero na ciência.
Isso remete para um dispositivo teórico-metodológico
preocupado com o funcionamento discursivo, isto é, com uma leitura de
realidade a partir de uma proposta interpretativa de mundo, que desnaturaliza
o ato da leitura: o que ler quer dizer? Nessa questão, está posta uma visão de
leitura que vincula o dizer à sua exterioridade e, assim sendo, o ato de ler
assume o estatuto de um dispositivo teórico, conforme trata a Teoria da
Análise do Discurso (AD). Em nossa análise, adotamos a AD como dispositivo
teórico-metodológico e nele nos apoiamos na busca de apreensão do
funcionamento discursivo, remetendo o texto ao discurso.
A análise sobre o tema gênero e ciência implica buscar o
atravessamento de gênero na construção do saber científico, bem como a
vinculação dessas categorias com outras a elas relacionadas; nessa busca,
tanto a constituição social, como a relação de poder remetem para as
condições históricas de produção discursiva, donde a abordagem de dois
conceitos básicos: o de patriarcado e o de modo de produção capitalista.
No seu sentido mais geral, patriarcado consiste num lastro
constituinte fundamental caracterizado por relações hierarquizadas entre
seres socialmente desiguais que, na ordem de gênero, correspondem a
homens e mulheres. Historicamente, de acordo com estudos que vêm sendo
realizados (PATEMAN, 1988; CASTELLS, 1999; LERNER, 1986; JOHNSON,
1997) essa ordem patriarcal apresenta alguns traços marcantes e, entre
estes, destacamos o controle imposto, tanto em relação à natureza (meio
ambiente), quanto ao socius. Estes traços vão se manifestar em formações
discursivas várias, inclusive na da ciência, marcadamente construída pela
visão cartesiana e empiricista do saber; é diante disso que os traços
patriarcais na produção do saber científico também se fazem presentes,
através de parâmetros masculinos que subjugam a mulher e a natureza.
Na contemporaneidade, imagens androcêntricas continuam
sendo disseminadas e macicamente usadas no mundo da ciência quando por
exemplo, se faz uso de denominações do tipo: ciências exatas como dotadas
de rigor e as sociais, de flexibilidade; ciências hard e soft,
_____________________________________________________________

3
Sobre o nascimento da Ciência Moderna, Rossi (2001) estabelece um período em torno de 160 anos, que
vai do surgimento do tratado de De revolutionibus de Copérnico (1543) ao da Ótica de Newton (1704).
4
Em O Discurso sobre o Método, Descartes estabelece os fundamentos da Ciência moderna pelo
racionalismo e pela objetividade, bases do positivismo, que surgiria mais tarde, no século XIX. Defendia a
superioridade da Razão sobre os sentidos na apreensão dos fenômenos materiais (res extensa),
diferenciado do mundo dos espíritos pensantes e racionais ( res cogitans).
5
Considerado o “Pai do Empirismo”, Bacon criou a idéia de possibilidade de dominar as forças da
natureza para benefício do homem.

555
“duras” e “moles”, gendramente dicotimizadas. O outro conceito básico em
nossa análise – o de modo de produção capitalista –, particularmente, no que
se refere à emergência do saber científico, implica na questão: qual o lugar
da ciência no capitalismo?
No Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política,
(1977), Marx afirma que o modo de produção de vida material condiciona a
vida social, política e intelectual e, nesse sentido, a realidade social determina
a consciência. Ora, em se tratando da produção do saber científico em sua
inserção histórica e o modo de produção capitalista na formação social
européia do século XVII, observa-se como estão irmanados, donde se
identificar similaridades entre ambos. Já em meados do século XIX Marx
ressaltava a atuação da ciência como força produtiva direta de acumulação
capitalista e como meio de controle social, contribuindo para a perpetuação
do sistema.
Entendemos que é considerando essas condições de produção
da ciência, bem como sua construção discursiva, que Harding (1986) chama
a atenção para a imagem construída da figura de cientistas: em regra,
homem, branco e de classes favorecidas; um outro ponto, é o parâmetro do
modo de pensar, sempre marcado pela separação: seja na concepção e
execução da pesquisa, seja na concepção de procedimentos “científicos”
adotados, sempre marcados pelo signo da separação entre pensamento e
sentimento, sujeito e objeto, corpo e alma.
É a partir desse referencial portanto, que se argumenta ser a
construção discursiva da ciência sustentada por condições de produção de
nível material e também ideológico: idéias, costumes, religião, educação,
artes, etc. Esse nível ideológico funciona através de mecanismos que
buscam manter relações de dominação como se fossem da ordem do natural;
tanto Althusser, em Ideologia e Aparelhos ideológicos de Estado (1970),
como Pêcheux e Fuchs (1993) na Teoria da AD, trabalham a ideologia como
interpelação. Estabelecidos os marcos referenciais teórico-metodológicos,
abordamos a seguir o funcionamento discursivo, tendo como base um texto
escrito (Redação) de um docente de Matemática da 9° ano.
COMO O GÊNERO ENTRA NA ESCOLA? A MATEMÁTICA, RELAÇÕES
DE GÊNERO E PRÁTICAS ESCOLARES
Mesmo reconhecendo a ampla teia de condições históricas
possíveis propiciadoras dessa condição de sub-representatividade,
elegemos uma delas – a instituição escolar – por reconhecermos o papel
fundamental que exerce no processo de formação de crianças e jovens, nas
suas escolhas pessoais e profissionais. Ao mesmo tempo que consiste numa
instituição que desempenha papel fundamental na sociedade, reproduz no
seu interior (estrutura e funcionamento) as relações sociais e, como tal,
constitui o espaço em que se dá o discriminatório aprendizado da separação
e da desigualdade, destacando-se aí a de gênero.
Eis portanto um ambiente propício para que as relações de
556
gênero se manifestem, sejam construídas e reproduzidas, muito embora não
sejam as únicas nessa função, co-existindo ao lado de outras instâncias
ideológicas. Desde Althusser, com A Ideologia e os Aparelhos Ideológicos de
Estado (AIE) às recentes produções sobre esse campo institucional escolar,
sabe-se de sua importância, tanto no processo de socialização, como na
introjeção de mecanismos ideológicos que funcionam na modelação de
corações/mentes/corpos, incluindo aí as relações de gênero. Com os AIE,
Althusser lançou as bases para a crítica marxista da educação,
estabelecendo a relação educação e ideologia; para ele, a manutenção do
capitalismo dependeria não apenas da reprodução das relações de trabalho e
dos meios de reprodução, mas também dos mecanismos ideológicos.
Nesse processo, entram em cena, entre outras instâncias
ideológicas, a religião, a família, a mídia, as artes, a ciência, o senso comum,
a escola. Justificando sua argumentação sobre a posição da Escola como
aparelho ideológico dominante, afirma Althusser (1985, p.64) que, “Desde a
pré-primária, a Escola toma a seu cargo todas as crianças de todas as classes
sociais, e (...) inculca-lhes durante anos, (...) 'saberes práticos' (...) ou
simplesmente, a ideologia dominante no estado puro”.
Esse conjunto de saberes é atravessado pela ideologia de
gênero, perpassa as instâncias sociais e chega à escola através das mais
diversificadas vias: livro didático, currículo, brincadeiras, jogos, conteúdos
disciplinares (regra gramatical do masculino plural), bem como através do
“currículo oculto” (o dito no não-dito, gestos, silenciamentos), pela relação
estabelecida dos profissionais da educação com meninos e meninas. Esta
relação, por sinal, vem sendo objeto de estudos (WALKERDINE, 1995;
CARVALHO, 2001; CAVALCANTI, 2003) e sendo apontada como uma das
mais poderosas formas de reprodução da desigualdade de gênero no espaço
escolar; esse dado se fundamenta não só pelo modo diferenciado como
profissionais da educação tratam meninos e meninas mas, sobretudo, por
considerarem esse modo como da ordem do “natural”.
Sobre essa visão do “natural”, dos silenciamentos e implícitos, dos
ditos e não-ditos” Louro (2001, p.67), afirma que a educação marca as
pessoas com o que é dito, mas também com o que é silenciado, visto que “ tão
ou mais importante do que escutar o que é dito sobre os sujeitos, parece ser
perceber o não-dito, aquilo que é silenciado – os sujeitos que não são, seja
porque não podem ser associados aos atributos desejados, seja porque não
podem existir por não poderem ser nomeados”.
Já Cavalcanti (2003, p.183) argumenta que o cotidiano escolar
reproduz as relações sociais dicotomicamente, também em relação ao
conhecimento humano, “imputando aos meninos maior tendência à
atividade motora, à transgressão das regras estabelecidas e a uma relação
mais objetiva e impessoal com o conhecimento”; às meninas, em
contrapartida, continua Cavalcanti (2003, p.183), lhes é imputada
“uma forma mais passiva e pacífica de comportamento, uma maior motivação
557
para a organização e limpeza, e uma maior atenção em relação às emoções e
aos relacionamentos.” Essa postura geral se desdobra, particularmente, para
o ensino das disciplinas e, em relação à matemática, vem persistindo
questões sobre sua relação de distanciamento com o feminino. No campo
das ciências, apesar das estatísticas estarem apontando para um aumento
da presença feminina nesse campo do saber, as mulheres porém, continuam
hierarquicamente excluídas das posições de poder (exclusão vertical). É em
função disso que questionamos: De que modo a instituição escola, através de
seu corpo docente, pode estar contribuindo para o distanciamento das
meninas/jovens da matemática?
Eis a questão que nos leva a perscrutar o gênero na escola.
Assim sendo, tendo em vista apreender os possíveis mecanismos
reprodutores das relações de gênero a contribuir para a diminuta presença de
mulheres na matemática, elegemos a instituição escolar como nosso locus
investigativo; nela, buscamos um docente do 9° ano para produzir um texto
escrito (Redação) a partir da seguinte questão-temática: “Como percebo o
desempenho de alunas e alunos na aprendizagem da matemática?”.
Para efeito dessa reflexão, vamos nos deter no texto escrito que,
de acordo com as pistas discursivas fornecidas, nos possibilitará o acesso ao
discurso, conforme já anteriormente abordado: remeter o texto ao discurso,
buscando contextualizá-lo e situá-lo a partir de sua relação com as condições
de produção discursiva. Esta contextualização textual implica num processo
de intervenção no texto, recortando-o (R) em fragmentos (frases,
parágrafos), dando conta dos dizeres enunciados sobre a questão-temática

_____________________________________________________________

6
Disciplina emergente nos anos 60 do século XX, filiada à Escola Francesa de Michel Pêcheux e que tem
no Discurso seu objeto analítico; nessa concepção de AD, o que se busca é “como um discurso funciona
produzindo (efeitos de) sentidos.” (ORLANDI, E., 2001, p.63).
7
Em 2004, nos dados do CNPq, consta a seguinte distribuição por sexo no doutorado: masculino –7.836;
feminino – 8.750. Garcia e Sedeño (2006) afirmam que, mundialmente, a participação das mulheres nas
ciências está em torno de 30% e ocupando cargos de poder, de 5 a 10%.Resultados do Pisa (Programa
Internacional de Avaliação do Estudante) em 2006, por sua vez, apontam para uma evolução positiva na
posição feminina no desempenho e produção intelectual. Porém, tanto nas ciências, como na vida
profissional, essa posição continua aquém da masculina (diretorias de grandes empresas, altos escalões
do governo e na vida acadêmica).

558
proposta, o que resultou num tópico, conforme apresentado no
Quadro 1, seguido de análise.

Quadro 1: Homens e mulheres divergem na aprendizagem da matemática


Fonte: Elaborado com base nos dados da pesquisa

Nos recortes acima, o locutor reconhece que há divergência entre


homens e mulheres na aprendizagem da Matemática e, ao fazê-lo, através do
operador “De maneira geral”, parece remeter para algo que é da ordem da
construção ideológica do senso comum (o conhecimento comum, o já
conhecido por todos, o já-dito). Dando continuidade, afirma ele que essa
diferenciação se baseia em especificidades de campos cognitivos pois,
enquanto “os homens possuem mais facilidade para cálculos lógicos e
sintéticos (....) chegando à “finalização de seus objetivos num curto espaço
de tempo”, as mulheres, “entretanto, destacam-se no amplo e organizado
armazenamento de informações (....)inclinadas que são para “assuntos que
despertam a analítica e a espacialidade”.
No R3 nos chamou a atenção o conector “entretanto”, que
aparece como mediador entre uma primeira argumentação que privilegia os
homens inteligentes e sintéticos, para em seguida argumentar sobre as
mulheres (armazenamento de informações, analítica, espacialidade). À luz
da lógica binária, essa argumentação remete para o dualismo cartesiano e
559
sua “síndrome do analisicismo”, que entra em choque com a
visão de totalidade na ciência; esta, como lembra Crema (1991, p.83), postula
a “Integração da análise e da síntese na dinâmica todo e partes”. De acordo
com essa postura científica, análise e síntese são complementares pois,
como prossegue Crema (1991,p.86), “a parcialização analítica é saudável e
necessária desde que seguida por uma integração sintética que vincula e
restaura”. O operador “entretanto” na argumentação, à medida que sinaliza
para a lógica binária na ciência, também o faz para questão de gênero,
dicotomizando inteligência/síntese masculinas versus
armazenamento/análise/espacialidade femininas.
À primeira vista, esse dizer implica se constatar uma
diferenciação comum no campo da realidade humana, em que as diferenças
fazem parte do mundo natural e da construção do mundo social; no entanto,
num olhar mais apurado, buscando o funcionamento discursivo no sentido de
suas implicações significativas do dizer à luz de gênero, algumas pistas
discursivas acenam para um outro dizer aí implícito: um dito no não-dito. E
essa pista é dectada quando buscamos, na concepção de ciência, o que nela
é explicitado como da ordem do maior e menor teor de cientificidade. Que
critérios, na ciência moderna, são reconhecidos como de maior relevância na
dimensão do saber científico? São esses critérios que fazem o diferente se
tornar desigual. Numa sociedade marcada por relações desiguais (classe,
raça, gênero), em regra, o que é diferente do padrão considerado normal
(burguês, branco, masculino) é valorado como inferiormente desigual e, na
ciência, os critérios de cientificidade são identificados com o masculino.
Buscando situar o dizer do locutor, observamos que fala do lugar
do senso comum (“De maneira geral...”), dicotomizando a configuração
mental de homens e mulheres, como Uma Geografia Radical da Psique
masculina e feminina: de um lado, homens inteligentes e sintéticos e, do
outro, mulheres memorizadoras e analíticas. Embora tais atributos, no geral,
possam ser considerados dados de realidade (da constituição cognitiva) e
relevantes para a produção do conhecimento, no particular, todavia, esse
raciocínio remete para uma concepção de ciência e de produção do
conhecimento que privilegia a fragmentação, a separação, traços estes
próprios do paradigma cartesiano da ciência androcêntrica.
Estamos entendendo paradigma como um conjunto de
concepções gerais sobre o ser humano e a realidade (social, natural), de
métodos considerados legítimos de apreensão dessa realidade, de acordo
com modelos e soluções, crenças e valores de uma comunidade científica em
um determinado tempo; desse modo, opera como um “seletor perceptual”, na
medida em que, ao mesmo tempo que organiza relatos sobre o mundo, nos
_____________________________________________________________

8
A noção de locutor remete à idéia de Ducrot (1987), entendida como porta-voz do discurso.
9
Estamos entendendo “operador” no sentido trabalhado por Guimarães (1989), em que a língua é marcada
argumentativamente, através do funcionamento de preposições, conjunções, advérbios, etc.

560
impulsiona a observá-lo/apreendê-lo/interpretá-lo de acordo com referenciais
pré-estabelecidos. O que precisa ser ressaltado é que, de acordo com a
premissa de que o conhecimento é socialmente construído, a construção
paradigmática também o é e, como tal, está vinculada a relações de poder
que a sustentam e perpetuam.
É remetendo o texto do docente sobre a aprendizagem da
matemática por meninas e meninas para o discurso da ciência que buscamos
centrar a análise do funcionamento discursivo; este tem como pano de fundo
o dualismo ontológico, baseado na lógica binária da diferença com todas as
implicações que isso traz para questão de gênero.Sobre essa questão,
Tubert (1996, p.303), argumenta que “ El discurso masculino está constituído
por uma lógica binária (logocentrismo) que organiza todo lo pensable en
oposiciones y está asociado al falocentismo en tanto las oposiciones binarias
y asimétricas se relacionam siempre con el par hombre/mujer.”
A oposição de homens e mulheres na aprendizagem da
matemática, de acordo com o locutor, aponta para uma formação discursiva
de ciência androcêntrica, expressão do patriarcalismo, em que prevalece “el
discurso masculino” em todas as instâncias sociais, fundamentado na lógica
binária da diferença. Esta constitui o solo fértil a alimentar e nutrir
mecanismos ideológicos de gênero, regidos pela “mesmidade”, ou seja, “ la
lógica interna del logocentrismo” dicotomizando homens/masculino (posição
superior) e mulheres/feminino (posição inferior). Em oposição a essa lógica
excludente, própria do paradigma cartesiano, a leitura feminista de gênero se
fundamenta numa construção epistemológica que privilegia o complexus,
sempre atento às tendências separatista, reducionista e fragmentada.
Ontologicamente, se aproxima da ontologia do múltiplo (Badiou,1993), que
se caracteriza por: privilegiar verdades transposicionais e construção de
diferenças de gênero apoiadas na singularidade infinita de individualidades
históricas; entender os seres humanos nem como idênticos, nem diferentes
mas, simplesmente, como semelhantes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
MATEMÁTICA, ASSUNTO PARA MULHERES?
Como considerações finais de nossa reflexão, apresentamos a
seguir alguns resultados a que chegamos e apontamos algumas possíveis
alternativas tendo em vista o desencadeamento de mudanças nas relações
de gênero na ciência. Diante da prática discursiva do docente de matemática,
consideramos que faz sentido a premissa hipotética sobre o atravessamento
de gênero na produção científica, como um mecanismo que contribui para a
sub-representação das mulheres nesse campo do saber. Diante da questão
Por que tão poucas? consideramos que mecanismos explícitos, mas também
implícitos (pela via do “currículo oculto”) funcionam para a inclusão desigual
das mulheres nas ciências da natureza. E, diante disso, acrescentamos mais
561
uma questão: Até que ponto práticas discursivas similares à do docente de
matemática estariam funcionando também para a manutenção do Por que
tão poucas?
Na prática discursiva docente, destacamos os seguintes pontos:
em seu dizer, o locutor reconhece a existência de diferenciação
entre meninos e meninos na aprendizagem da matemática; entre as razões
que aponta (culturais e genéticas) sinaliza para uma heterogeneidade
discursiva mas, homogeneamente enraizada em traços patriarcais da cultura
brasileira. Assim sendo, diríamos que as pistas discursivas do docente
apontam para estereótipos que se presentificam na escola e nos dizeres de
profissionais da educação; estes tendem a funcionar como os elos fortes da
cadeia de reprodução de valores androcêntricos e, consequententemente,
contribuem para o distanciamento das mulheres das ciências da natureza.
Todavia, se a realidade é discursivamente construída, também
poderá ser desconstruída e reconstruída; se discursos gendrados perpassam
as instâncias sociais e chegam à escola fortalecendo a rede de aprendizagem
da separação entre o mundo masculino e feminino, práticas discursivas
outras poderão entrar em cena e abrir caminhos para que outras vias
discursivas sejam trilhadas. Em função disso, necessário se faz efetivar
programas nas escolas direcionados para o corpo docente e discente, tendo
em vista a reconstrução do feminino, desde uma nova menina à uma nova
mulher.
Em relação à mulher na ciência, incrementar atividades e
mudanças substantivas curriculares, inserindo nos conteúdos programáticos
estudos e discussão sobre as cientistas na história; no que se refere ao
“currículo oculto”, realizar ações afirmativas que eliminem atitudes
androcêntricas nas práticas informais na escola, nas atitudes
docentes/discentes. Tais mudanças se fundamentam na premissa de que
nem a escola, nem a ciência são neutras e objetivas; em direção à mudança,
necessário se faz a promoção efetiva de práticas discursivas (oficinas
temáticas), que reconstruam o masculino e o feminino, calcados numa nova
lógica: ao invés do binarismo da diferença, a ontologia do múltiplo.
No discurso da prática escolar, perscrutar novos olhares e
questionamentos, como por exemplo: se as meninas são apreendidas (pelo
corpo docente) como obedientemente cumpridoras de regras (maior
capacidade de atenção, observação e interesse), esse é um dado que se
choca com o imaginário coletivo sobre a natureza desagregadora do
feminino, responsável pela disseminação do mal no mundo. Pois, não cabe à
Eva, à Pandora, entre tantas outras imagens femininas miticamente
_____________________________________________________________

10
Título de um curso proferido por Carol Gilligan, citado por Dowling (2000, p.136).
11
À guisa de ilustração, lembramos a crítica de Paulo Freire à “educação bancária”, analogia aproximada a
um ensino que busca a memorização de informações depositadas a-criticamente.

562
construídas, a responsabilidade pela disseminação do mal no mundo? O que
aconteceu com a alma feminina? Mudou? Ou mudam as meninas que, depois
de adultas, se tornam desregradas /desagregadoras? Ou os mitos são
construídos exatamente com essa função de mascarar a “essência das
coisas”? Sabe-se, desde sempre e em toda parte, que se tem medo do
feminino e a mulher miticamente é acusada pelo masculino de haver
disseminado a infelicidade, a morte, o caos sobre a terra. Mesmo
reconhecendo o aparato concreto dessa representação, que tem na base
condições sociais de produção de um discurso patriarcal secularmente
sedimentado e que posiciona o feminino nesse lugar de agente
desagregador, o que importa atentar é para a força simbólica nela contida e
para os efeitos de verdade que produzem.
Esses são pontos que implicam num confronto interrogativo com
a “aparência exterior” das práticas discursivas escolares contidas, seja no
senso comum, seja na ciência, cujos discursos são alimentados e nutridos
pela ordem patriarcal de gênero; este se manifesta em formações discursivas
várias, como por exemplo, na ciência androcêntrica cartesiana. O confronto
interrogativo com essa “aparência exterior” implica o uso de ferramentas
teóricas e, entre elas, o da ciência crítica, que busca apreender as
contradições internas e as condições de produção material da construção
discursiva. É nessa direção que vêm caminhando os Estudos de gênero e as
investigações realizadas sobre o atravessamento de gênero na ciência.
Tendo em vista possíveis mudanças em direção a uma presença efetiva das
mulheres nas ciências, necessário se faz o desencadeamento de atividades
sob o enforque de gênero, seja no espaço da instituição escolar, seja nos
Cursos de Pedagogias das IES (Instituições de Ensino Superior). Tais
atividades terão como foco desconstruir os mecanismos ideológicos ,
sobretudo no “currículo oculto”, que vêm contribuindo para o Por que tão
poucas?
Pensar efetivamente em práticas educativas transformadoras
constitui um dos caminhos possíveis para, igualitariamente, construir um
espaço para as mulheres nas ciências.
Assim sendo, a matemática tornar-se-á, efetivamente, assunto
para mulheres.

563
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567
MULHERES CHEFES DE FAMÍLIA EM SALVADOR: articulações
interseccionais e experiências de empoderamento

Márcia dos Santos Macêdo


Neste trabalho, originalmente produzido como tese de doutorado
(MACÊDO, 2008) proponho-me a entender a realidade ainda pouco
conhecida das mulheres chefes de família de classes médias em Salvador,
visto que a grande maioria dos estudos sobre chefia feminina vem insistindo
na homogeneidade desse grupo social e tem associado sua expansão à
ampliação dos processos de pauperização, contemporaneamente
sintetizado na idéia de uma feminização da pobreza (BUVINIC et al., 1983;
BARROS et al., 1994). Nessa direção, busco refletir como a experiência de
chefia familiar por mulheres precisa ser analisada face à articulação
interseccional dos pertencimentos sociais de classe, gênero e idade/geração
desses sujeitos, dando ênfase à multiplicidade de interconexões entre
sistemas de opressão. Pude perceber, assim, a importância do
questionamento dessa homogeneidade artificial em torno dessas mulheres,
como se elas fossem sempre indivíduos pauperizados e, mais do que isso,
“as mais pobres entre os pobres” (LAVINAS, 1996; GONZALEZ DE LA
ROCHA, 1999). O que não é verdade, especialmente, com a sua expansão
em todos os estratos socioeconômicos e, em especial, entre as classes
médias brasileiras nas últimas décadas (SCOTT, 2002; WOORTMANN &
WOORTMANN, 2002).
Contextualizada a proposta da investigação, o objetivo desse
trabalho é lançar algumas luzes sobre complexidade e diversidade em torno
do fenômeno da chefia feminina no universo ainda pouco conhecido das
classes médias de uma metrópole brasileira, no intuito de compreender que
algumas mulheres vivenciam a experiência da chefia em termos bastante
diferenciados do viés dominante nesse campo de estudos, a depender da
combinação de seus diferentes pertencimentos sociais, o que
pode significar dizer que, em algumas situações, ser chefe de família pode ser
lido como o resultado da melhoria das condições de vida de algumas
mulheres e não o contrário.
Tomo como hipótese central nesta investigação, portanto, a
defesa de que o aumento do contingente de mulheres como chefes de
domicílio decorre da articulação de uma pluralidade de fatores de natureza
econômica, social, cultural e comportamental (BERQUÓ, 2001) – o que
implica atentar para o entrelace de dimensões fundantes da vida social como
classe, gênero, raça/etnia e idade/geração. Assim, a ênfase excessiva na
dimensão de classe, vem produzindo uma associação direta entre esse
fenômeno e os processos de pauperização – o que torna a chefia feminina
sinônimo de vulnerabilidade – e essa associação precisa ser questionada,
_____________________________________________________________

1
NEIM/UFBA

569
pois nem todas são pobres. Inversamente, acredito que seu crescimento
entre as classes médias pode ser tomado como um indicativo de que há uma
melhoria significativa nas condições de sobrevivência e existência dessas
mulheres, principalmente quando comparadas às mulheres de classes
populares.
A investigação levada a termo trabalhou dois eixos fundamentais:
as trajetórias e as experiências de 30 mulheres chefes de família de classe
média em Salvador. Assim, buscou entender quais os caminhos que as
levaram à condição de chefes de seus domicílios, através da reconstrução de
suas trajetórias familiares, educacionais, afetivo-sexuais e conjugais e como,
nesse contexto, foram sendo construídas suas carreiras profissionais. Na
outra ponta, buscou mergulhar nas experiências atuais das entrevistadas em
torno do triplo pertencimento à condição de mãe, trabalhadora e chefe de
família: a idéia, portanto, foi a de perceber como seus marcadores de gênero,
raça/etnia, classe social e idade/geração, vão, na trama das
interseccionalidades (CRENSHAW, 2002), definindo-lhes suas experiências
atuais, entre escolhas e constrangimentos.
Nessa perspectiva, optou-se pela adoção de uma epistemologia
feminista que reconhece o conhecimento como proferido a partir de um lugar
(HARAWAY, 1995) e uma metodologia que visava valorizar a articulação de
práticas e representações, buscando integrar as dimensões objetivas e
subjetivas da existência desses sujeitos através do uso do conceito de
habitus – de forma a dar conta do duplo movimento de objetivação e
subjetivação da vida social (BOURDIEU, 1994).
Assim, a pesquisa de campo foi operacionalizada mediante o uso
de uma abordagem qualitativa, através da reconstrução de histórias de vida e
entrevistas em profundidade (com uma tentativa de observação) junto a
mulheres na condição de provedoras de seus domicílios e conviventes com
filho biológico ou não (dependente economicamente), acessadas através da
estratégia de formação de redes entre as entrevistadas. O trabalho de campo
foi realizado exclusivamente por mim entre outubro de 2006 e maio de 2007,
um verdadeiro “mergulho em campo” que resultou mais de 500 páginas de
relatos. Vamos, portanto, aos achados!
OS ACHADOS DA PESQUISA: apresentando as entrevistadas e suas
trajetórias
De um modo geral, pode-se caracterizar o grupo entrevistado
como composto por 30 mulheres profissionais, residentes em áreas
consideradas tipicamente de classe média da cidade de Salvador
(principalmente nos bairros da Graça, Ondina, Rio Vermelho, Itaigara, Pituba
e Praia do Flamengo). Desse universo, 18 mulheres possuem apenas um
filho, 10 têm dois e apenas duas possuem três filhos. A faixa de idade varia de
33 a 60 anos, distribuída basicamente em três grupos: as “jovens” de 33-39
anos (04), as “adultas plenas” de 40 a 49 (15) e as “maduras” entre 50 e 60
(11) – a maior concentração está, portanto, na faixa das adultas plenas com
570
50% das mulheres.
Em termos de pertencimento étnico-racial, a grande maioria é
branca (18) e as negras estão sub-representadas, como era de se esperar
numa população de classe média, com respectivamente, 07 mulheres pardas
e 05 pretas. Já no tocante à situação conjugal, predominam, maciçamente, as
separadas (22) e, em segundo lugar, as solteiras (4) e viúvas (3) e apenas
uma delas permanece casada (recasamento). Pude ainda constatar um
elevado nível de escolarização: das 30 mulheres entrevistadas, 28 têm 15 ou
mais anos de estudo, sendo 22 graduadas, 04 mestres e 02 doutoras – 02
estão fazendo mestrado e, pelo menos 02, planejam fazê-lo em futuro
próximo e uma já estava se preparando para fazer doutorado. Por fim, no
quesito condições socioeconômicas: (i) as faixas salariais das entrevistadas
estão concentradas entre 6 e 9 salários mínimos (11) e entre 10 e 14 (10) e, de
15 e mais (9); (ii) 2/3 já é possuidora de casa própria; (iii) é bastante reduzido
o número de entrevistadas que disseram receber pensão ou algum tipo de
contribuição para o sustento dos filhos por parte dos ex-companheiros –
apenas 1/3 estão nessa situação e (iv) 2/3 das entrevistadas possuem
apenas um dependente, o outro terço possui dois filhos nessa mesma
condição e um número bastante reduzido (03) possui, além dos filhos, outros
membros da família (neto/a, mãe e outros) como dependentes.
Quando instadas a falar de suas trajetórias e experiências de vida
ficou evidenciada a ocorrência de uma série de continuidades e
descontinuidades em suas posições e atuações sociais, decorrentes, em
grande parte de seu pertencimento (em trânsito) a diferentes grupos de idade
e geração. No geral, a narrativa das entrevistadas busca fazer um balanço de
suas trajetórias e experiências de vida, que são lidas, simultaneamente, a
partir do encontro entre escolhas e possibilidades e constrangimentos
impostos pelas suas circunstâncias sociais e pessoais e o fator
idade/geração é referido com diferentes sentidos por mulheres de diferentes
idades e gerações – havia uma clara preocupação em resgatar o trajeto
biográfico em conexão com o contexto social, pois “cada trajetória é um
caminho tornado possível” pelo encontro de circunstâncias sociais e escolhas
possíveis.
Também merece ainda ser explicitada a opção pelo “recorte
geracional” como importante marcador para pensar as convergências e
diversidade, daí ser esta a estratégia privilegiada de exposição dos achados
para apresentar os trajetos de mulheres pertencentes aos diferentes grupos
etários participantes da pesquisa. Assim, as práticas e representações em
torno de geração denotam vivências contraditórias, marcadas pela imposição
de parâmetros socialmente impostos, minimamente “adequados” ao que se
espera de uma pessoa com uma determinada idade biológica e,
simultaneamente, social (BRITTO DA MOTTA, 1999a; 1999b; 2000).
Assim, através das noções de agência humana (ELDER, 1994),
estratégia (BOURDIEU apud WACQÜANT, 2002) e curso de vida
571
(FEATHERSTONE, 1994) a análise das trajetórias vai mostrar que as
mulheres dos três grupos vão apresentar diferentes tipos de protagonismo –
pois fazem escolhas em um tempo histórico que traz seus marcos objetivos e
valores que lhe são atinentes. Daí se poder dizer que as trajetórias dessas
mulheres foram constantemente “atravessadas” e “produzidas” pelo encontro
de seus pertencimentos de gênero, classe, raça/etnia e idade/geração,
possibilitando-lhes fazer escolhas que não podem ser explicadas apenas
pelo dado de classe (isto é, pela acumulação de capitais – nesse caso cultural
e econômico), mas também por fazerem parte de diferentes gerações que,
progressivamente, vivenciaram a difusão e as conquistas das bandeiras
feministas e outras mudanças culturais (legalização do divórcio, as lutas por
emprego e salário igual, as mudanças nas hierarquias de gênero no contexto
familiar ou ainda na liberdade sexual e no direito ao prazer etc.). Mas, mesmo
dentro de um determinado grupo geracional, o contexto sócio-histórico será
reinterpretado a partir das diferentes “combinações” de pertencimentos
sociais, daí não ser possível pensar em geração como uma dimensão
homogeneizadora dessas trajetórias (ou ainda das experiências), pois, em
interação com outras dimensões ela própria é reinterpretada, inclusive, em
entre sujeitos que partilham um mesmo contexto sócio-histórico.
Portanto, essas diferentes combinações dos marcadores sociais
de classe – inclusive o pertencimento a diferentes estratos dentro dessa
classe –, raça/etnia, origem rural urbana, histórico e background familiar, vão
favorecer a constituição de diferentes habitus entre as mulheres pertencentes
a esses três grupos. Algumas terão as suas trajetórias mais marcadas pela
dimensão da sobrevivência, do investimento prioritário no processo de
escolarização ou mesmo nas atividades profissionais. Outras menos, pela
sua própria origem familiar, assegurando-lhes não apenas a transmissão de
capital econômico e o acesso a um capital cultural, viabilizado pela freqüência
às melhores escolas, o que vai lhes permitir gozar dos benefícios
assegurados pelo “peso do diploma” (BOURDIEU, 1998); mas, também
receberam todo um capital cultural transmitido em “estado incorporado”,
como lembra Bourdieu, na forma de uma familiaridade confortável com os
códigos de boas maneiras, o domínio da linguagem culta ou a intimidade com
os livros.
Certamente que há uma série de outros elementos que se
entrelaçam a esse quadro tão simplificadamente apresentado para tentar
explicar os pontos de convergência e as diferenças entre essas mulheres.
Esta observação é bastante pertinente, inclusive, porque fatores muitas
vezes minimizados como temperamento, personalidade ou mesmo certos
traços idiossincráticos dos sujeitos sociais, não podem ser ignorados em
nome de uma abordagem mais objetivista – é sempre tentador, para um/a
analista social que partilha de uma orientação teórica mais próxima de um
referencial de corte mais histórico-estrutural, remeter os possíveis nexos
explicativos da realidade de seu objeto de estudo a dados “mais concretos”,
572
particularmente a uma relação mais imediata entre os indivíduos e as classes
sociais, enfatizando a objetividade do mundo exterior como modeladora
desse sujeito que se deseja conhecer, numa relação de mão única. Espero ter
sido exitosa no esforço de fugir a essa tentação, atentando sempre para a
mútua influência entre determinações sociais e sujeitos históricos.
CONFRONTANDO EXPERIÊNCIAS: entre escolhas e constrangimentos
31 de dezembro de 2007, ultimo dia do ano. Uma conhecida
revista de circulação nacional publica como matéria de capa uma reportagem
intitulada: “a segunda vida das mulheres: a crise da meia idade chega ao
mundo feminino – e traz mudanças muitas vezes para melhor”. Por que causa
espanto que a vida dessas mulheres esteja mudando para melhor? O que
surpreende é o simples fato de que todas elas são separadas e mães – e,
portanto, são chefes de família – e, paradoxalmente, não estão em situação
pior de que aquela vivenciada antes, na condição de “mulheres casadas”.
Pelo contrário: essa nova vida parece ser melhor que a anterior.
O tema mulheres chefes de família é um dos exemplos dessa
leitura enviesada de que mulheres nessa condição estão sempre “na pior”,
contribuído fortemente para a construção de representações sociais
negativas a respeito do fenômeno, relacionando-o diretamente e de maneira
generalizada aos processos de feminização da pobreza. E, como afirmado
anteriormente, nem todas são pobres. Assim, qual o diferencial das mulheres
chefes de família de classe média em relação às de classe popular? Há
alguma uma especificidade nesse primeiro grupo? Pode-se falar ainda de um
diferencial intra-classe no interior desse grupo?
Em sintonia com a análise das trajetórias que já apontava para
uma margem de escolha mais larga em relação às mulheres das classes
populares, os “achados” acerca das experiências dessas mulheres vão
mostrar uma referência maior à dimensão da existência em relação à da
sobrevivência. Quando argüidas sobre a experiência de tornar-se chefe de
família, as mulheres vão ressaltar a relevância de ter a sua vida de volta para
si – o que chamarei da conquista de uma recém descoberta “liberdade de
gênero”. Assim, a dimensão de gênero ao ser ressignificada pela dimensão
de classe vai terminar por fazer com que, muitas vezes, a dimensão da
existência se sobreponha à dimensão da sobrevivência, gerando assim uma
situação muito mais confortável para a mulher de classe média –
que passa simultaneamente pela dimensão material e simbólica –, fazendo
com que essas mulheres terminem por construir o que optei por chamar de
um “habitus de gênero conforme a classe”. Isso porque, a partir das
dimensões objetivas e subjetivas da classe, se constrói uma forma particular
de viver a dimensão de gênero. Bourdieu (1994) vai mostrar que os processos
de engendramento do habitus, enquanto o resultado de um agir movido pelas
determinações, também se manifestam na forma de escolhas
circunstanciadas (isto é: aspirações pré-adaptadas às suas exigências
objetivas). É isso que vai diferenciar as experiências das mulheres de chefes
573
de família de classe média daquelas das classes populares, pois as primeiras
podem efetivamente elaborar escolhas e construir projetos congruentes com
seu universo objetivo e simbólico, pois, na maioria das vezes, dispõem de um
arsenal de meios e recursos necessários e suficientes para convertê-los em
realidade.
A dimensão da volição é, portanto, um elemento fundamental
para entender esse novo sujeito que surpreende e chega a causar espanto.
Com as recentes transformações culturais e, particularmente, nas relações
de gênero, as mulheres tornam-se cada vez mais impulsionadas à
autodeterminação, o que termina por desestimular trajetos tradicionais,
favorecendo novas escolhas e investimentos em projetos individuais e não
apenas no casamento – aproxima-se cada vez mais do “indivíduo
individualizado” (SINGLY, 2007) típico das sociedades industrializadas no
mundo contemporâneo.
A maternidade como escolha termina por ser uma das situações
prototípicas desse processo de autodeterminação onde a biologia não é mais
destino e a opção por filhos torna-se cada vez mais um projeto – as situações
de maternidade a solo do tipo adoção de crianças fora da conjugalidade ou
mesmo a produção independente vão representar exemplos que
materializam essa lógica. Esse é um outro diferencial entre as mulheres de
diferentes classes sociais, pois entre mulheres de classes populares não se
verifica o mesmo nível de vinculação de “aspirações e práticas objetivamente
compatíveis com as condições objetivas” – o que termina por fazer com que
volição e oportunidade permaneçam como um par desencontrado para essa
últimas.
Esse diferencial também irá se expressar na centralidade dos
filhos no projeto existencial dessas mulheres, pois embora a maternidade
seja um marco na vida dos indivíduos de ambos os grupos, a forma de viver
esse projeto e sua interação com outras dimensões da existência será
conformada pelas possibilidades objetivas e subjetivas de manejar o tripé
mãe-chefe de família-trabalhadora, onde as demandas postas em cada uma
dessas dimensões da experiência não apenas reflete na outra, mas, termina
por redefini-las. Assim, ainda que central, o projeto da maternidade precisa
ser relativizado, pois ele é apenas um dos eixos na vida das mulheres de
classe média que, como sujeitos escolarizados e intelectualizados, vão
buscar mais freqüentemente construir e alimentar projetos individuais.
Ser mãe, trabalhadora e chefe de família é uma experiência que
será redimensionada ainda por fatores como o tipo de relacionamento
mantido com o pai da criança e a possibilidade de acesso à compra de
serviços relacionados ao cuidado com filhos e com a casa e ainda quanto à
participação em redes de suporte e solidariedade familiares. As mulheres
entrevistadas vão apontar para as dificuldades de manutenção do vínculo
parental com a ruptura do vínculo conjugal – há recorrentes situações de
afastamento dos pais em relação à provisão econômica e educação dos filhos
574
–, o que parece apontar para a persistência de ideologias hierarquizantes
nesse contexto. Assim, são apresentadas uma pluralidade de situações que
vão desde a ruptura em definitivo do vínculo parental até a guarda
compartilhada, o que termina por mostrar como essa última situação ainda
pouco freqüente, mas em expansão entre as classes médias, pode vir a ser
um outro diferencial em relação às mulheres nessa situação pertencentes às
classes populares, pois, com partilha de responsabilidades com os filhos não
se configura o modelo de monoparentalidade em que uma única pessoa
precisa dar resposta à provisão, autoridade e a toda a esfera do cuidado.
Portanto, a situação típica de monoparentalidade vai acentuar a
relevância do recurso ao trabalho doméstico remunerado – fundamental,
especialmente, quando há crianças pequenas. Para as mulheres de classe
média esse arranjo de organização doméstica tem uma importância
estratégica, sinalizando, inclusive, seu pertencimento às classes menos
pauperizadas. Entre as entrevistadas 2/3 tem empregada doméstica e
algumas necessitam que essas trabalhadoras morem no domicílio, o que
muitas vezes termina por gerar uma relação de dependência em torno de
arranjos complexos, onde se misturam relações de trabalho, identidades e
trocas afetivas ambíguas – como o caso da entrevistada que dizia ser o
provedor e a empregada a esposa e a mãe da criança. Esse diferencial é
extremamente importante para pensar os contrastes nas experiências entre
mulheres de diferentes classes sociais diante dessa tripla responsabilidade
como mãe, trabalhadora e chefe de família.
Por fim, a participação em redes de suporte ao núcleo doméstico
familiar também será um outro elemento fundamental, pois aqui é trocado
muito mais que cuidados e afetos – no caso das chefes de classe média a
solidariedade intergeracional resultou em vários momentos em apoio
material, tornando-se elemento vital para a definição do nível de vida do
grupo: aproximadamente, ¼ das entrevistadas – e exatamente aquelas com
melhor condição de vida – pôde contar com apoio material para realizações
como a compra da casa própria ou montagem de negócio próprio, através da
transferência de capitais entre as gerações.
ALGUMAS CONCLUSÕES
Em primeiro lugar é preciso deixar claro que não existe uma
identidade particular dos sujeitos nesse contexto, mas uma partilha de
circunstâncias comuns que podem produzir certas “disposições duráveis”,
mas o entrelace de diferentes dimensões da existência termina por
impossibilitar qualquer tipo de homogeneidade no grupo. Assim, a construção
das identidades desses sujeitos estará marcada por uma pluralidade de
olhares sobre questões aparentemente comuns como: o “peso” da
responsabilidade de ser simultaneamente mãe, mulher e trabalhadora ou
inversamente a interação entre essas dimensões como fontes de
_____________________________________________________________

2
Trata-se da revista Época, Editora Globo, n.502, de 31 de dezembro de 2007 (p.80-86).

575
retroalimentação; ou mesmo a avaliação quanto ao crescimento em termos
de mobilidade ascensional, formulado por algumas como um fator limitante e
por outras como um divisor de águas numa trajetória a partir daí marcada pelo
crescimento profissional e uma melhoria em termos sócio-econômicos – pelo
menos 50 % das entrevistadas se consideram como tendo melhorado de vida
– decorrente de uma aprendizagem auto-gerida sobre como manejar o uso do
dinheiro e da autonomia para a viabilização de projetos; algumas apontam
como dificuldade “a solidão de não poder errar” enquanto, outras,
inversamente, comemoram a possibilidade de tomar decisões sem a
necessidade de um “outro homologador”; há ainda dissenso com relação ao
exercício da autoridade sobre os filhos, tarefa árdua para umas e necessária
e manejada com relativa tranqüilidade por outras que avaliam terem se
tornado mais assertivas e seguras com a experiência de chefia de família.
No geral, é bastante perceptível a ocorrência de um conjunto de
mudanças que vão permitir um avanço nessa direção da autodeterminação e
da assertividade. Chamei essa experiência de “pedagogia da praxis”
(GADOTTI, 1994), pois evidenciam a construção de um discurso que aponta
para múltiplos sinais de empoderamento, expressos em vários momentos por
um sentimento de potência quanto à sua capacidade de envidar esforços e
articular recursos para construir novos projetos. Entre eles, está o firme
propósito de permanecer sozinha diante da incompatibilidade (muitas vezes
de ordem emocional, intelectual e financeira) com possíveis parceiros, pois
não estão dispostas a pagar qualquer preço para estar em união. Várias
entrevistadas vão afirmar que estão sós, mas não solitárias e se posicionam
firmemente contra a idéia de “baixar o nível de exigência para não ficar
sozinha”, inclusive porque não vêem o estar sem parceiro como um problema
– ao que perece, para muitas a conjugalidade não é mais um projeto central.
Mas, nem todas estão sós, pois pelo menos 1/3 admitiu ter parceiro
(namorado, caso, ficante, companheiro), mas muitas não desejam mais a
coabitação, defendendo o “viver juntos, porém separados”.
Assim, essas mulheres parecem não querer abrir mão de
importantes conquistas como: o direito a requisitos mais igualitários nas
relações de gênero, a manutenção de “um teto todo seu” e a possibilidade de
cultivar projetos individuais – como retornar a estudar, montar um negócio,
mudar de profissão, consumir e trabalhar menos e ganhar mais qualidade de
vida entre outros. Os filhos permanecem como parte importante desse
projeto: querem vê-los formados e pós-graduados, trabalhando, mas
algumas já projetam, inclusive, uma separação física deles para que possam
seguir vidas paralelas, próximo afetivamente, mas voltadas para por em
movimentos os projetos pessoais de cada um.
_____________________________________________________________

3
Os dados relativos às mulheres de classe popular são de uma pesquisa anteriormente realizada por mim,
como dissertação de Mestrado: MACÊDO, Márcia S. Tecendo os fios e segurando as pontas: trajetórias e
experiências entre mulheres chefes de família em Salvador. Dissertação (Mestrado em Sociologia).
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.
Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1999, 185p.

576
Por fim, espero que esse trabalho tenha terminado por oferecer
alguma luz para se compreender melhor o que é ser mulher chefe de família
de classe média hoje, sem tomar o “lugar social” desses sujeitos numa
perspectiva imobilizada do tipo “elas são assim” ou mesmo próxima de
qualquer tentativa de definir-lhes uma visão de mundo específica ou
particular. Portanto, gostaria ainda de reafirmar algumas questões
importantes que emergiram do trabalho de investigação. Entendo que as
mulheres chefes de família estão cotidianamente sendo desafiadas a
enfrentar as definições tradicionais do que é ser mulher, pois, pela própria
posição que ocupam no seu grupo familiar, têm vivenciado experiências que
não se encaixam nos esquemas tradicionais do gênero e, nesse processo,
são obrigadas a confrontar, em vários momentos, os códigos culturais e
estereótipos existentes.
Creio que desafio de compreender a emergência de uma nova
identidade entre essas mulheres, requer desvendar os processos de
estruturação, determinados por uma base objetiva e subjetiva de sua
experiência e que através das respostas produzidas por esses sujeitos, vai se
materializar em um novo habitus de gênero. Isso significa dizer que passa,
principalmente pela experimentação de muitas e novas maneiras de ser
mulher, mãe, trabalhadora, chefe de família e sujeito de sua história. Por outro
lado, é muito importante esclarecer ainda que não se trata aqui de pensar um
único habitus de gênero dentro de um esquema de simplificação das relações
sociais aí existentes. Isso porque elas estão sendo desafiadas
cotidianamente perante certas práticas, discursos e representações sociais
que são estruturadas por outros eixos hierarquizantes das relações sociais,
também igualmente relevantes, em termos de classe social, idade/geração,
raça/etnia, orientação sexual.
Portanto, arrisco a pensar que, nesse contexto de articulação
dinâmica de dimensões fundantes da vida social, essas mulheres chefes de
família estão sendo produzidas por e ao mesmo tempo produtoras de novas
possibilidades de viver a dimensão de gênero segundo sua classe social, sua
idade/geração e raça/etnia. Assim, como apontado anteriormente nesse
trabalho, preciso reafirmar as diversidades inter e intra-classes, pois ao falar
em mulher chefe de família de classe média estou me referindo à construção
de um habitus de gênero conforme a classe, pois é possível visualizar
diferenças significativas nas práticas e representações entre mulheres
chefes de família de diferentes classes sociais. Mas o processo não pára por
aí, pois esse habitus de gênero conforme a classe se apresentará de maneira
distinta ainda conforme a idade/geração dentro de um grupo de mulheres
chefes de família de mesma classe social, mas pertencentes a diferentes
grupos geracionais – e aí por diante –, sempre tecidos nas tramas das
relações interseccionais de seus outros pertencimentos sociais.
Finalizando: acredito que a adoção dessa perspectiva termina
por permitir que se possa compreender que algumas mulheres vivem a
577
experiência da chefia em termos bastante diferenciados do viés dominante
nesse campo de estudos, a depender da combinação de seus diferentes
pertencimentos sociais, o que pode significar dizer que, em algumas
situações, ser chefe de família pode ser lido como o resultado da melhoria das
condições de vida de algumas mulheres e não o contrário.

578
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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MULHERES CHEFES DE FAMÍLIA: CRESCIMENTO, DIVERSIDADE E
POLÍTICAS. Ouro Preto: ABEP, 2002, 99p.

580
MULHERES PESCADORAS: a construção da resistência no mundo da
pesca.
Maria do Rosario de Fátima Andrade Leitão
Alexsandra Silva de Lima
Gilmar Soares Furtado
O artigo objetiva analisar o processo de conquista das mulheres
na colônia Z-10 em Itapissuma, através da historia, das lutas e resistências
por elas vividas. A escolha do tema iniciou com as leituras sobre gênero e as
visitas a Colônia de Pescadores Z-10 em Itapissuma. A literatura além de
subsidiar a compreensão sobre o trabalho feminino, passou a ser
considerada como fonte de informação sobre o processo de luta e conquistas
dos pescadores, sobretudo, pescadoras, dentro de um espaço marcado pelo
machismo e desigualdade social. Ao longo da história do Brasil, podemos o
reconhecimento da atividade das mulheres no trabalho profissional da pesca,
tem sido observado como um fenômeno relativamente novo, porque a
Marinha de Guerra que tutelava as Colônias de Pescadores não admitia
mulheres em seu quadro, por isso também não concedia as mulheres
pescadoras o direito a se cadastrarem.
Considerando a questão da desigualdade entre homens e
mulheres ainda bastante arraigada em nossa sociedade, focando neste
estudo o espaço pesqueiro, traremos como problemática o relato de Luta,
Resistência e Conquista das Mulheres Pescadoras de Itapissuma, a partir de
sua história e trajetória.
Neste contexto o artigo fomenta o debate sobre o papel das
mulheres na pesca artesanal nas dimensões estabelecidas entre a casa e o
mundo do trabalho, destacando suas limitações potencialidades, destacando
as relações de gênero e identidade.
Alguns marcos na história das colônias de pescadores/as são:
 As primeiras colônias de pescadores do Brasil foram estabelecidas a partir de 1919, e
foi levado a cabo pela Marinha de Guerra. O primeiro estatuto das colônias de
pescadores data de 1º de janeiro de 1923, assinado sob a forma de aviso, proveniente
da Marinha. (BRAS)

_____________________________________________________________

1
Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Extensão Rural e Desenvolvimento Local.
POSMEX- Universidade Federal Rural de Pernambuco – UFRPE. rosario@dlch.ufrpe.br
2
Bacharel em Ciências Sociais – Universidade Federal Rural de Pernambuco -
UFRPE.alexsandralima18@hotmail.com.
3
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Extensão Rural e Desenvolvimento Local. POSMEX-
Universidade Federal Rural de Pernambuco – UFRPE. gilmarfurtado@gmail.com
4
Extensão Rural & Extensão Pesqueira: experiências cruzadas. Maria do Rosário de Fátima Andrade
Leitão (org.). Recife: Fasa, 2008.

581
 Em 1920 foi criada a Confederação dos Pescadores do Brasil. Posteriormente com o
decreto nº. 23.134/33 foi criada a Divisão de Caça e Pesca, onde um dos objetivos era
gerenciar a pesca no país. Os pescadores deixaram de estar submisso ao Ministério
da Marinha e passaram para o domínio do Ministério da Agricultura. Posteriormente
com o Decreto-Lei nº. 4.890 de outubro de 1942, retorna ao controle dos pescadores
do Ministério da Agricultura para o da Marinha.

 A partir dos anos sessenta, foi criada a Superintendência do Desenvolvimento da


Pesca – SUDEPE, sendo abolida a Divisão de Caça e Pesca. Com o golpe militar
(1964) e o Decreto nº. 221 de 28 de fevereiro de 1967 define as novas regras para o
setor. Outra legislação importante é da portaria nº. 471 de 26 de dezembro de 1973.

 A Constituição, em 05 de outubro de 1988, estabelece a equiparação das colônias aos


sindicatos de trabalhadores rurais.

 Outra mudança da década de 1980 foi a extinção da SUDEPE e a criação do


Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA,
órgão na ocasião responsável por gerenciar e promover o desenvolvimento do

setor pesqueiro do país. Posteriormente em fins da década de 1990, o Ministério


da Agricultura volta a incorporar os pescadores artesanais dentro de sua estrutura.

 A partir de 2003 a Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca passa a


coordenar as ações e políticas públicas relacionadas a pesca e aqüicultura.

PESCA E DESENVOLVIMENTO LOCAL


Algumas das dificuldades de operacionalização de
desenvolvimento local estão relacionadas, muitas vezes, a uma cultura
centralizadora, paternalista e clientelista, isto é, concentram o poder, com o
intuito apenas de proporcionar o crescimento econômico e não o seu
desenvolvimento (LEITÃO, 2008).
Desenvolvendo uma das profissões mais velhas do mundo, o
trabalhador da pesca, no Brasil, apenas passou a ter direitos aos benefícios
previdenciários com a promulgação da Constituição de 1988. Em regime de
assegurado especial, o pescador tem direito à aposentadoria, seguro por
acidente, pensão por morte, auxílio-doença e auxílio-reclusão. Para
conseguir esses benefícios, precisa estar filiado a uma colônia de
pescadores, que cumpre função similar ao do sindicato.
As Colônias de pescadores constituem a forma de associativismo
predominante na pesca artesanal. Estas tiveram origem em uma missão da
Marinha de Guerra do Brasil, realizada na década de 1920, com o intuito de
ocupar o litoral do país. Nesse período, a Marinha percorreu toda a costa,
sobretudo os trechos navegáveis dos principais rios, orientando e
organizando os pescadores em associações. Assim, os pescadores
passaram a ter a sua primeira organização de ordem social (CRUZ et al.,
1993; e LOURENÇO et al., 2003).
582
Em síntese, os espaços de lutas dos pescadores e, em especial
das mulheres pescadoras, são as colônias, bem como as associações de
pescadoras que segundo Maneschy e Almeida (2002), ultimamente tem
aumentado o número de mulheres de forma significativa. Informação
confirmada em diversas entrevistas com representantes de colônias em
Pernambuco.
COLÔNIA DE PESCADORES Z-10 EM ITAPISSUMA
O município de Itapissuma localizado no litoral Norte de
Pernambuco é considerado o principal núcleo pesqueiro da região. Segundo
Senso de 2000 do IBGE, a população residente é de 20.116 habitantes, os
habitantes do sexo masculino totalizam 9.843 (48,9%), enquanto que o
feminino é de 10.273 (51,1%). O IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) é
de 0,695 colocando o município em 21° lugar no ranking estadual e em 3.074°
no nacional. O Índice de Exclusão Social, que é construído por sete
indicadores (pobreza, emprego formal, desigualdade, alfabetização, anos de
estudo, concentração de jovens e violência) é de 0, 379, ocupando a 32°
colocação no ranking estadual e a 3,487° no nacional. (IBGE apud
MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA. 2005).
A Colônia de pescadores Z – 10 foi fundada no dia 10 de
novembro do ano de 1927, situada a rua Dr. José Gonçalves, 87 em
Itapissuma. Naquela época as colônias de pesca viviam sob o domínio de
poder da capitânia dos portos. Só nos anos 70 com a criação do CCP
(Conselho Pastoral dos Pescadores), e a chegada de uma freira a irmã Maria
Nilza de Miranda Montenegro, iniciou-se a transformação do município que
70 % da população sobrevive direta e indiretamente da pesca.
Sobre este período conforme narrativa de Joana Mousinho: “a
colônia era totalmente desorganizada, o prédio caindo aos pedaços, uma
verdadeira bagunça...”.Neste mesmo período, meados de 1973 a irmã Nilza
começou a organizar os pescadores e pescadoras, por meio de reuniões
com o objetivo de esclarecer seus direitos, como também, conscientizarem
que os mesmos não eram marginalizados. Seu trabalho se caracterizava pela
visitação e acompanhamento às famílias da colônia, inclusive com a
assistência médica, além das conversas á beira da maré, que foram
essenciais na criação de laços de confiança com a colônia.
O intuito da Irmã Nilza era também alfabetizar as mulheres
pescadoras, pois elas viviam na total marginalização, a maioria delas eram
analfabetas, muitas não possuíam documentação inclusive registro de
nascimento.
Ainda sobre o tema da alfabetização, a atual presidente da
Colônia Miriam Mousinho relata que a dificuldade era tamanha de alfabetizar
e organizar as pescadoras que algumas costumavam dizer que: “o lápis é
583
mais pesado do que o remo”.
Nos anos 80 do século XX, já conquistado o direito ao registro da
pesca, a luta inclui as questões ambientais, como por exemplo a degradação
do rio Botafogo e o canal de Santa Cruz, causado principalmente pelas
indústrias de cana de açúcar. Os pescadores nessa época organizaram
caminhadas, passeatas e manifestações na porta das fabricas e industrias. O
que chamou mais atenção de Joana Mousinho foi “à união do povo para
vencer a luta da poluição”.
Além da poluição no canal de Santa Cruz, outras questões
suscitadas pela Irmã Nilza, traziam a tona sérios problemas como: a pesca
predatória praticada não somente pelos pescadores locais, como por
pescadores amadores; lançamento de bombas por amadores da pesca,
matando uma quantidade incalculável da fauna fluvial marinha; um número
significativo de adultos analfabetos e crianças que não freqüentavam a
escola por negligencia dos pais; alta mortalidade infantil, grande
marginalização da mulher; desnutrição, especialmente de crianças,
agravadas pelas verminoses; moradias sem nenhuma condição de higiene;
dentre outros.
MULHERES E CONQUISTAS SOCIAIS NA PESCA
Em 1985 na Constituinte da pesca realizada em Brasília –DF, só
duas mulheres fizeram parte, a saber: Anita de Luna, de Ponte dos Carvalhos-
Cabo de Santo Agostinho/PE, e Margarida Rodrigues Mousinho de
Itapissuma/PE, que lutaram para que as pescadoras casadas oficialmente
tivessem direito a aposentadoria que não lhes eram concedidas.
Em fins da década de oitenta do século XX, a eleição definiu a
conquista de uma diretoria de colônia exclusivamente composta por
mulheres. De tal modo, as mulheres de Itapissuma foram as primeiras de
Pernambuco e do Brasil a possuírem o Registro Geral da Pesca (carteira
profissional de pescadora). Em relação a isso Joana Mousinho relembra que:
“antes da Irmã Nilza chegar nenhuma mulher fazia parte da colônia, só
homem comandava. As mulheres não tinham vez na Colônia... Os homens
não aceitavam que mulher assumisse trabalho nenhum”.
Neste contexto, Joana Rodrigues Mousinho passou a ser a 1ª
mulher eleita como presidente de colônia de pescadores já registrada na
história do Brasil, com o forte apoio do Frei Alfredo, um dos fundadores da
Pastoral dos Pescadores, segundo ela. Joana Mousinho saiu candidata pela
primeira vez em 1989 e, sendo reeleita em outras ocasiões, permaneceu no
cargo por 16 anos. Hoje ela faz parte do conselho deliberativo da colônia,
sendo também uma das coordenadoras da Articulação das Pescadoras de
Pernambuco. Sobre a eleição de Joana, a Irmã Nilza declarou na Pastoral dos
Pescadores: “a Colônia de Pescadores de Itapissuma é algo inédito na
584
história de Pernambuco e do Brasil, sem similares em qualquer lugar do país”.
Apesar de conseguirem tal êxito, segundo a irmã Nilza, o processo de
mobilização das mulheres foi e ainda é muito lento. Sobre isso Joana
Mousinho ressaltou:
A falta de uma maior mobilização do pescador ainda é a principal
dificuldade encontrada pela colônia. Eles não tomam consciência de seus
direitos e deveres. Se houvesse união, a gente seria a colônia de
pescadores mais fera do Estado.

Em outra entrevista, ainda sobre essa questão Joana Mousinho


diz: “a maior dificuldade é reunir esse pessoal. Falta esperança e
incentivo, os pescadores ficam desacreditados, essa turma já foi tão
enganada...”.
Em 1993, a Irmã Nilza foi transferida de Itapissuma, mas até o ano
de 2003, ela manteve a assessoria aos/as pescadores/as, por meio de
reunião mensal com a diretoria da Colônia Z-10, quando eram realizados a
revisão e planejamento das atividades.
Atualmente, a Colônia possui aproximadamente 2000
pescadores/as associados, desse total 65% são mulheres. A participação
das mulheres supera a dos homens, segundo a atual presidente, no seu
segundo mandato, Miriam Mousinho, afirma que:
As mulheres são mais organizadas e participativas, estão mais
preocupadas com as ações da colônia, já os homens só se preocupam em
ganhar o seu dinheiro, ele só quer ter o dele, não querem ter
compromissos, e geralmente, só procuram a colônia nos momentos de
dificuldades.

Miriam Mousinho também ressalta que uma das principais


dificuldades da colônia é a capitação de recursos, e esse problema se agrava
mais no inicio de ano e no período de chuva. Sobre sua atividade de
presidente avalia que:
Acredito que quase 80% do que me coube a fazer pela colônia eu fiz, pois
quando assumir vi uma grande quantidade de mulheres com idade para
se aposentar sem ter condições nenhuma para chegar lá, principalmente
por falta de documentação e conhecimento dos seus direitos. Então, corri
atrás e consegui aposentar mais ou menos trinta mulheres em minha
gestão, com ajuda de toda diretoria formada só de mulheres, mulheres
fortes e determinadas que quando quer correm atrás, consegue e trás.

A carência do trabalhador da pesca no panorama da discussão


das políticas publica que precisam apoiar a produção pesqueira traduz na
própria invisibilidade desses trabalhadores como profissionais e cidadãos, ou
pelo menos assinala para as muitas dificuldades que encontram para serem
585
vistos e ouvidos. (Leitão 1997: 7)
QUESTÕES DE IDENTIDADE: mulheres pescadoras
O processo de identidade se dá a partir do compartilhamento de
vários aspectos da vida cotidiana. Para Charles Taylor (2000), a identidade é
definida a partir de “[...] uma compreensão de quem somos, de
nossas características definitórias fundamentais como seres humanos”. A
Idéia de identidade está ligada, de certa forma, aos ideais éticos de
autenticidade, de originalidade e de peculiaridade.
Sobre o tema Costa (1989:22) afirma que: “a identidade é tudo
que se vivencia (sente, enuncia) como sendo eu, por ocasião àquilo que se
percebe ou anuncia como não-eu (aquilo que é meu; aquilo que é outro).” O
autor ainda destaca que “a identidade não é uma experiência uniforme, pois é
formulada por sistema de representações diversas. Cada um destes
sistemas corresponde ao modo como o sujeito se atrela ao universo sócio-
cultural. Existe assim, uma identidade social, étnica, religiosa, de classe;
profissional, sexual etc.” E enfatiza: “estas diversas representações do
sujeito possuem regras de formação e manutenção, baseadas em normas
que o orientam no cumprimento e julgamento do seu desempenho
identificatório”.
Segundo Stuart Hall (2002): As identidades nacionais
encontrarem-se se desfazendo, devido ao aumento da homogeneização
cultural atual na pós-modernidade; as identidades nacionais e outras
identidades "locais" ou particulares estão sendo reforçadas pela obstinação à
homogeneização globalizada e as identidades nacionais estão em
decadência, e outras identidades estão se formando.
Assim, ressalta Nancy Fraser (2001), a luta por reconhecimento
é, em geral, marcada por profundas desigualdades estruturais com: renda,
trabalho, educação, saúde, seguridade social, lazer, habitação e a
alimentação de grande parte da sociedade. A promoção de uma sociedade
justa, principalmente em sociedades profundamente desiguais como é o
nosso caso, requer tanto o reconhecimento cultural de diferentes grupos
sociais estigmatizados, quanto à redistribuição sócio-econômica para a
maioria da população. Os dois fatores estão intimamente interligados.
Quando falamos de identidade, é necessário situar este enfoque

_____________________________________________________________

5
Sobre o assunto da poluição e do lançamento de bombas no mar, em noticia de jornal, relata que Joana
Mousinho foi ameaçada de morte por ter denunciado um companheiro que jogava bombas para matar os
peixes. (Fonte: Diário de Pernambuco, 06 Janeiro de 1991).
6
Margarida Rodrigues Mousinho nesta época era presidente da colônia de pescadores Z-10, assumiu
o cargo com a renuncia do anterior presidente o Sr. Genival Aquino de Souza, sendo a 1ª mulher a
ocupar tal posição.

586
na memória de identidade profissional da pescadora. Mulher,
com baixo nível de instrução e de renda, luta para sobreviver numa profissão
estereotipada como masculina. Leva a mulher a uma situação coadjuvante.
Sobre esse assunto, Maneschy (1999) ressalta sobre o caráter completar da
atividade feminina:
A complemetariedade, que em princípio denotaria interdenpendenciae,
portanto, pressuposto para relações simétricas entre os sexos, como
acentuou Badinter (1986), é tradicionalmente pensada em termo de
ascendência dos papeis masculinos sobre os femininos, tidos como
acessórios. Tal modelo ideológico é acentuado sob o capitalismo, na
medida em que a noção de trabalho é associada à geração de renda
monetária, concebendo-se como secundarias aquelas atividades não
pagas, relacionadas ao consumo, como o preparo dos alimentos, sua
distribuição e, logicamente, o cuidado com os seres humanos”.
(MANESHY, 1999, p. 163).

A própria identidade dos pescadores é definida a partir da


identidade masculina, relativo ao mar. Assim, para todos os membros do
grupo, a atividade de pesca está absolutamente ligada ao mar e não na terra
(WOORTMANN, 1992, p.42). Sendo assim, os animais, que na maioria das
vezes, as mulheres pegam, do grupo dos moluscos e crustáceos, não são
considerados como pescados. Logo essas atividades não são tomadas como
pesca (MOTTA-MAUÉS, 1999, p.394-395).
No entanto, mulheres que tem ou tiveram oportunidade de
construir de forma crítica sua identidade de mulher pescadora, se apropria da
terminologia como o faz Joana Mousinho Ex-Presidenta da colônia Z-10 ao
declarar: “sou pescadora desde meus oito anos de idade, criei meus três
filhos desse jeito e eles seguiram o mesmo caminho. Até meus netos já
querem ser pescadores”.
No entanto, a visão crítica de Joana sobre a atividade das
mulheres na pesca, ainda é uma exceção, considerando que as meninas são
socializadas para reproduzirem significados socialmente construídos de
uma “essência feminina”, que se desenvolve, principalmente, na esfera de
vida familiar, na esfera do privado ou pré-político (Arendt, 1995). Inibidas,
historicamente, de “conhecer o mundo”, de praticar o poder no âmbito
público, as meninas crescem e se desenvolvem influenciadas pela
concepção de que existe áreas ou profissões tidas como mais adequadas à
condição feminina, que estão ligadas à cuidar do lar, do ensinar e do servir.
No entanto, as mulheres também surgem como lideranças e
trabalhadoras da pesca por uma ressignificação de atividades que sempre
_____________________________________________________________

7
(Fonte: Diário de Pernambuco, Janeiro de 1991):
8
Fonte: Diário de Pernambuco, Novembro de 1997 – Colônia de Pescadores Faz 70 Anos

587
desempenharam, mas que não eram vistas por causa de uma divisão social
do trabalho intensamente centrada no masculino, divisão que conceitua o
mar como ambiente de homens e posiciona as mulheres na terra. Assim, a
presença feminina na liderança da colônia de pescadores Z-10 em
Itapissuma se mantém na beira do mar, no mangue e na terra, e suas histórias
estão sendo reescritas por outras práticas e outros dizeres refeitos por essas
mulheres.
Vale ressaltar ainda a dupla jornada de trabalho para a mulher,
fato identificado por Joana Mousinho como a principal dificuldade da mulher
pescadora:
È muito difícil você sair você chegar, tratar, catar e cozinhar siri e outros
mariscos, consertar rede e ainda tomar conta da casa dos filhos... Porém,
pra mim tem uma vantagem, porque você esta convivendo diretamente
com a natureza, e isso é muito bom.

Assim, mesmo enfrentando inúmeras dificuldades e preconceito as


mulheres tem conseguido conquistar um espaço significativo na sociedade.
As relações sociais ainda não são igualitárias no que se refere às relações de
gênero, os homens ainda sobrecarregam as mulheres com a dupla jornada
de trabalho, pois os afazeres domésticos ainda são de responsabilidade
exclusivamente delas. Nesse sentido, ressaltam Boaventura de Souza
Santos e João Arriscado Nunes (2003:35) que:
As lutas das mulheres, dos ambientalistas, dos movimentos anti-racistas
ou pelo reconhecimento das identidades étnicas estão aí para nos
recordar que tanto a dominação quanto a resistência se fazem ao longo
de diversos eixos, e que estes não estão subordinados, de maneira
definitiva, a uma 'contradição principal.

Sobre o tema, Miriam Mousinho afirma que: “ainda há


preconceito. Sempre tem alguém que olha de lado [...]” e Joana Rodrigues
Mousinho também fala que: “em Itapissuma tem muito cabra machista, mas
eu sou meio teimosa, não ligamos pra isso não. Eles já se acostumaram.
Agente mete a cara e segue em frente”.
Sobre a educação formal na vida da comunidade pesqueira, em
Itapissuma a presidente da colônia afirma que as mulheres são mais
dispostas a voltar a estudar mesmo que o intuito principal delas sejam
aprender a assinar o nome. Hoje, essa situação vem melhorando, e as
mulheres continuam se sobressaindo em relação aos homens, segundo
Miriam, alguns pescadores costumam dizer que, quando são questionados
sobre voltar a estudar, afirma: “nasci burro, vou morrer burro. Não aprendi de
pequeno como vou aprender agora [...]”.
O problema do acesso das mulheres mais velhas à escola deve-
se, além dos fatores locais de não existência de unidades escolares na região
588
e horários da pesca incompatível com a jornada escolar. O casamento
precoce interrompe os projetos de estudo mesmo para aquelas que
ambicionavam buscar a escolarização.
GÊNERO NA PESCA
Luíza Bairros (1995), nos afirma que:
Como pudemos ver, a subordinação das mulheres em geral está
indissoluvelmente associada à divisão de gênero do trabalho. Por outro
lado, há que se considerar também a violência contra a mulher, às
diversas instituições sociais e as formas pelas quais elas mantêm e
reproduzem as relações de dominação/subordinação. A subordinação
feminina não se instala somente no plano subjetivo. Por tanto, a igualdade
de direitos, com equidade de gênero, requer formas de organização social
capazes de interromper o ciclo de reprodução das desigualdades; de
enfrentar os mecanismos de dominação que os homens utilizam como
grupo social; as formas pelas quais as mulheres são expropriadas dos
benefícios de seu trabalho, a valorização eqüitativa da capacidade e
comportamentos.

Assim, Segundo Mirian Goldenberg (1997, p. 352), numa


perspectiva feminista de gênero, o conceito de invisibilidade da mulher
significa posição inferior ou secundária que ocupa nas diferentes instituições.
Em se tratando do trabalho das pescadoras artesanais é bastante
desvalorizado no Brasil, tanto pelas questões ligadas ao gênero como pelas
de ordem estrutural, de proteção ao trabalho feminino, política de
financiamento, geração de emprego e renda (a esse respeito ver Lima, 2003;
Martins, 2005).
Segundo Scott (1995), dizemos que gênero é um elemento
constitutivo das relações baseadas nas diferenças que distinguem os sexos,
ou nas diferenciações observadas entre os sexos. Assim, o conceito de
gênero encontra-se ligado aos conceitos de identidade sexual, de papel
sexual e no de relações entre os sexos.
Ainda falando sobre as dificuldades das pescadoras,
ressaltamos também a questão da saúde, principalmente o trabalho das
marisqueiras que é extremamente insalubre, pois além de obter vários
ferimentos resultantes do contato acidental com as pontas de mariscos
presos à rocha, a longa e constante permanência junto à água salobra produz
reumatismos. A posição incômoda, curvada, para remover o marisco, faz com
que à maioria das marisqueiras apresente problemas na coluna, o que
constantemente provocaria afastamentos temporários da coleta. Sem
duvida, são problemas de saúde do trabalho que afetam a renda familiar,
quase sempre alcançada unicamente da pesca. Sobre o tema Joana
Rodrigues Mousinho, Ex-Presidente da Colônia Z-10, relata que: “uma das
589
principais dificuldades das pescadoras é na saúde, muito tempo dentro da
água e na lama enfraquece os ossos, prejudica a visão por causa do sal...”.
Dito isso, no dia a dia das pescadoras, as suas relações de
trabalho estão submetidas aos condicionamentos ao ambiente que elas
vivem. Segundo Michel de Certeau (1994) o homem mesmo evolvido em um
sistema plural “constrói modos de fazer” que os distingue de lugar para lugar.
As pescadoras dominam um enorme conhecimento do meio que são
adquiridos na própria experiência de vida e são comunicados oralmente.
Ainda sobre essa questão, ressalta NOBRE e FARIA (2002), a
economia feminista questiona pensamento e o conceito restrito do trabalho,
atividade econômica, considerando o trabalho de forma mais abrangente,
incluindo o mercado informal, o trabalho doméstico, a divisão sexual do
trabalho na família, e integram a reprodução como fundamental à nossa
existência, incorporando saúde, educação, dentre outros relacionados à
economia.
A divisão do trabalho produtivo entre homem e mulher parte de
uma visão de mundo que distingui mar/terra e homem/mulher que tem sido
usada, e até, de acordo com a tradição acolhida pela literatura. Esse fato
converge para a não percepção das mulheres enquanto ator social produtivo,
permanecendo o mito da invisibilidade feminina dentro do universo
pesqueiro. Ademais, muito do que as mulheres realizam não se reserva ao
mercado e não é visto, portanto, como trabalho produtivo, mesmo se tratando
de trabalhos que permitem aos homens pescar como: cozinhar, costurar
velas de canoa, confeccionar armadilhas de pesca para o marido e os filhos,
fazer café e o carvão que eles levam a bordo, remendar roupas de trabalho,
etc. (MANESCHY, ALENCAR e NASCIMENTO, 1995).
Dito isso, ainda, mesmo com a adoção de uma perspectiva mais
crítica alguns espaços bem definidos não deixam de serem “vistos” e
apreendido como caracteristicamente masculinos. Às mulheres fica
reservado o espaço da coleta de mariscos, moluscos, algas, camarão e
coisas que se pode pegar na beira de praias, lagos e rios, ou seja, o
extrativismo em geral. Essa concepção também foi observada na colônia de
pescadores Z-10 em Itapissuma, para Miriam: “a maioria dos homens são
pescadores de rede enquanto que as mulheres pescam mais mariscos,
porém, existem homens marisqueiros e mulheres trabalhando com rede”.
Concluindo, as mulheres brasileiras, de maneira especial e geral,
nas últimas décadas, das mais diversas formas, têm garantido a sua
cidadania, constituindo-se como sujeitos sociais ativos por meio dos seus
movimentos e ações, atreladas ou não a instituições políticas. Esta situação
não é excepcionalmente brasileira. Pelo contrário, a presença feminina nos
_____________________________________________________________

10
Jornal Diário de Pernambuco, 10 de novembro de 1997.

590
processos de mudanças sociais, culturais e políticas em países tem-se
evidenciado de forma expressiva, merecendo estudos e reflexões mais
profundas. Ser mulher hoje requer muita luta pelo reconhecimento da sua
posição como sujeito social, exigindo dos cientistas sociais um estudo maior e
especial das relações de gênero. O maior desafio de homens e mulheres é a
garantia de mecanismos para atuação das mulheres nos espaços de poder.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A História de luta, trabalho, resistência e conquistas revelam a
existência de uma pesca realizada por mulheres, que está relacionada há um
amplo conhecimento tradicional acumulado por gerações. O discurso
observado na entrevista com Mirian Mousinho da Paz, Presidente da Colônia
de Pescadores de Itapissuma destacou-se pelo “fazer-se pescadora”, pela
própria complexidade da pescaria do dia a dia onde enfrente risco oferecido
pela natureza e pela violência. A experiência de vida e trabalho dela enriquece
o discurso histórico com a apresentação de seus feitos, com também seus
relatos de perigo no mar, mas não subestima sua força e coragem, não
apenas dela, mais de todas as mulheres pescadoras que precisam trabalhar
para prover suas famílias.
Portanto, as mulheres pescadoras têm sido sujeitos de luta na
garantia dos territórios e direitos sociais das comunidades costeiras. Mas
essa presença precisa ser mediada pela visibilização de suas problemáticas.
Daí a necessidade e os esforços que desenvolvem para constituir-se como
sujeito político, visibilizadas e reconhecidas, na medida em que dão
movimento à construção de um espaço igualitário, democrático e
efetivamente sustentável. Num momento histórico em que se faz essencial à
organização política da sociedade civil, a organização política das mulheres
tem constituído um importante diferencial em relação ao fazer emergir outras
dimensões das desigualdades, como a exploração e opressão das mulheres,
refletida no machismo e nas estruturas patriarcais que ultrapassam as
dimensões de classe, de acordo com a tradição, tratada pelos diferentes
movimentos.
As pescadoras quebram barreiras advindas das relações de
gênero, que se proclamam na subordinação e na subserviência, quando
buscaram a edificação de um novo mundo. A partir das mudanças sociais,
advindas da valorização do conhecimento local e da participação eficaz de
todos os atores, em todas as etapas do processo, elas estão conquistando o
resgate da auto-estima da equidade e da inclusão social.
As colônias e associações de pescadores precisam assumir essa
ação e procurar rever a definição estreita de pescador, de modo a que
trabalhadoras da pesca hoje invisíveis tenham um espaço, ou seja, um lugar.
O acesso a benefícios como aposentadoria, seguro saúde, ou auxílio
maternidade constitui uma condição própria da cidadania. Garantir às
591
mulheres o estatuto de trabalhadoras da pesca, como parceiras de terra ou
das águas, é um grande passo na conquista de uma cidadania de qualidade,
com relações mais justas, igualitárias e democráticas entre homens e
mulheres.
Assim sendo, a manutenção e sobrevivência nas comunidades
pesqueiras é uma luta cotidiana. Na terra, as mulheres assumem a árduo
trabalho de fornecer alimentos e renda, na falta ou omissão dos homens. Elas
devem, pois, descobrir formas de sustento, e inventar novas táticas. Deste
modo, no universo da pesca, a idéia atribuída ao trabalho da mulher requer
análises mais aprofundadas, já que essa idéia aparece em geral ligar-se a
uma visão romântica e estereotipada da natureza feminina, que determinar
como essencial do feminino a maternidade e o trato do lar.

592
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594
GT 6 – GÊNERO, LITERATURA E COMUNICAÇÃO
COORDENAÇÃO: Profª. Dra. Margarete Edul Prado Lopes – UFAC
APRESENTAÇÃO

Nosso GT Gênero, Literatura e Comunicação, neste ano de 2009,


no XIV Encontro da Rede Feminista Norte e Nordeste de Estudos e
Pesquisas sobre Mulher e Gênero - REDOR e no IV ENCONTRO DE
PESQUISADORAS/ES MARANHENSES DE GÊNERO recebeu riquíssimos
resumos para discutir a atuação da mulher autora/leitora na mídia seja em
novelas da TV, nos jornais, revistas em quadrinhos, folhetins, documentários;
também com satisfação contatamos as pesquisas envolvendo a escrita da
mulher negra, a lésbica, a indígena, ou seja, as minorias invisíveis como
temática, nos trabalhos acadêmicos, nas teses de doutorado, em que as
novas pesquisadoras ainda timidamente se aventuram.
Temos também, nesse novo encontro de nosso GT, cada vez
mais em relevo os estudos sobre autoria feminina com escritoras do Norte e
Nordeste, cujos trabalhos ainda sofrem de grande invisibilidade nos grandes
centros culturais do Brasil, como Rio de Janeiro e São Paulo, nos quais não
encontram nenhuma circulação e muito menos são comentados ou
apontados em Bienais do Livro, parecendo quase uma produção marginal,
autoras maravilhosas carecendo de maior divulgação na mídia e de serem
descobertas pelo grande público leitor em território nacional.
Também foi expressiva a inscrição de trabalhos tematizando a
produção acadêmica contemporânea brasileira em que se pode ver os
estudos de gênero dialogando com as questões de memória, loucura,
identidade, a partir da análise de três áreas de conhecimento casadas com a
literatura: a História, a Psicanálise e os estudos culturais.
No Brasil, os estudos que abordam as relações de gênero
acompanham os diferentes momentos dos movimentos feministas. A partir da
década de 1980, o país começou a sair lentamente dos chamados anos da
“ditadura militar” iniciada em 1964. No entanto, desde meados dos anos
setenta que as mulheres brasileiras já se mobilizavam contra o custo de vida,
por creches no trabalho e timidamente buscavam uma maior abertura
política. Neste sentido, muitas pesquisadoras já demonstravam preocupação
pela temática feminista e os principais trabalhos versavam sobre mulher e
trabalho. Porém nos anos oitenta diferentes movimentos feministas
começam a criticar a condição da mulher no Brasil. E nas universidades, as
pesquisadores não ficam imunes aos apelos por uma maior igualdade social
entre os sexos. As ciências humanas e sociais, particularmente a Sociologia,
a Antropologia e a Historia, produzem trabalhos abordando diferentes
temáticas, com uma perspectiva de resgatar a mulher e seu papel nas
diferentes sociedades e particularmente na sociedade brasileira
contemporânea, foi o surgimento dos Estudos de Gênero, centrados na
mulher e mais tarde incluindo os estudos de diversidade e os estudos de
masculinidade. Assim, os estudos de gênero cresceram em qualidade e
597
quantidade durante os últimos quase 30 anos, em todo o território nacional.
Nosso objetivo com este GT de Gênero, Literatura e Comunicação é
continuar regatando escritoras esquecidas e dando visibilidade aos trabalho
de autoria feminina no Brasil, come ênfase para escritoras negras, lésbicas,
indígenas, todas duplamente marginalizadas e invisíveis.
A constatação da existência da autoria feminina configurando
uma produção literária, que se estende do século passado até hoje, nos
instiga a apontar os rumos desta trajetória, enfatizando, concomitantemente,
as marcas do percurso. Elaine Showalter, em A Literature of Their Own:
British Women Novelists from Brontë to Lessing, afirma que: "Muitos críticos
estão começando a concordar que quando nós olhamos para a mulheres
escritoras coletivamente, nós podemos ver um imaginação de fluxo contínuo,
a recorrência de determinados patterns, temas, problemas, e imagens de
geração para geração". É o que ela chama de "female literary tradition", sem
que isto implique em nenhuma forma de essencialismo. Showalter investigou
em seus estudos as formas como a mulher escritora tem traduzido ela mesma
e todas as mulheres na escrita literária, não perdendo de vista as
transformações sofridas através dos tempos. É esta perspectiva
historicizante e culturalista que vai nos orientar nos trabalhos de nosso GT
ainda com artigos muito preocupados em resgatar a produção de escritoras
desconhecidas, com destaque para as negras, lésbicas e também com
mostrar a insistência de preconceitos e estereótipos sobre as mulheres na
mídia impressa, televisiva, cinematográfica.
Na literatura brasileira, até o presente momento, considera-se o
romance Ursula (1859) de Maria Firmina dos Reis, escritora maranhense, a
primeira narrativa de autoria feminina. Com seu estilo bem sentimental,
perfeitamente enquadrado nos padrões românticos, o romance reduplica os
valores patriarcais, construindo um universo onde a donzela frágil e desvalida
é disputada pelo bom mocinho e pelo vilão da história. Contrariando os finais
felizes, a narrativa termina com a morte da protagonista, vítima da sanha do
cruel perseguidor.
Júlia Lopes de Almeida, nascida em 1862 e autora de uma obra
vasta e variada, é, ainda, mais representativa desta fase de internalização
dos valores vigentes e dos papéis sociais. Pertencente à alta burguesia,
enquanto Maria Firmina dos Reis é uma simples professora do interior, Júlia
Lopes constrói sua obra sobre os alicerces patriarcais, sedimentada por
rígidas relações de gênero. As rainhas do lar coroam os finais felizes deste
universo ficcional. Também o romance A sucessora (1934) de Carolina
Nabuco, embora mais elaborado do ponto de vista psicológico, não escapa
do processo de imitação dos valores vigentes, uma vez que a protagonista
resolve seu conflito interior a partir do momento em que se percebe grávida; é
como reprodutora que ela supera o fantasma da primeira esposa estéril...
Ainda estávamos sob o domínio do determinismo biológico.
Essas autoras ilustram a primeira etapa da trajetória da narrativa
598
de autoria feminina, na literatura brasileira; elas reduplicam os padrões éticos
e estéticos, mesmo porque elas ainda não tinham se descoberto como donas
do próprio destino. Neste ano de 2009, nosso GT apresenta estudos que vão
desde narrativas de mulheres coloniais, passando por autoras
consagradas como Emily Dickson, uma escritora norte-americana, até
chegar em escritoras negras no Brasil, como Conceição Tavares,
apresentando ainda autoras lésbicas, ou mesmo autoras nortistas (como
Florentina Esteves e Francisca Trindade Lopes, do Acre) completamente
desconhecidas do grande público. Que nossas leitoras (es) possam degustar
estes excelentes trabalhos com voracidade.

Profª. Dra. Margarete Edul Prado Lopes


Coordenadora do GT 6 – Gênero, Literatura e Comunicação

599
MULHER INVISÍVEL: a imagem da mulher negra no jornalismo de revista
feminino brasileiro
Erly Guedes Barbosa
Prof. Dr. Silvano Alves Bezerra da Silva
Com o famigerado mito da democracia racial, a miscigenação
deixa de ser um ato natural e é analisada como um dispositivo de poder,
capaz de se manifestar como elemento que permite justificar e mascarar uma
prática que permanece invisível até então.
Na condição de dispositivo de poder, a mestiçagem comanda
ações, saberes e sentimentos em determinada direção, com o objetivo de
integrar e tornar dóceis as raças que estão na raiz da nacionalidade brasileira.
Nesse sentido, conforme Munanga (1999), a elite brasileira exalta a mistura
de etnias e as possibilidades de ascensão social do mestiço, como os meios
que comprovam que o Brasil é um país multicultural sem preconceitos e sem
discriminação – uma verdadeira democracia racial.
O mito da democracia racial forja a crença de que o negro não
enfrenta problemas no interior da sociedade brasileira, tendo em vista que
não existem distinções raciais e as oportunidades são iguais para todos. Esta
ideologia difundiu-se socialmente e se tornou senso comum, ritualmente
celebrada nas relações do cotidiano ou na abordagem dos mais diversos
temas pelas mídias brasileiras.
Esse mito acabou por esconder um dos mais graves problemas
do país. Nos últimos anos, os dados sobre a exclusão social da população
negra não deixam dúvidas: mais de um século após a Abolição, pessoas
brasileiras negras estão segregadas nas periferias das grandes cidades,
concentradas nos setores com os menores índices de renda, de emprego e
de escolaridade.
Os meios de comunicação de massa influenciam na organização
social e na construção da realidade na sociedade moderna. A mídia
apresenta-se como elemento da comunicação de massa que
influencia o pensamento social ao definir pautas e conteúdos do discurso
público. O discurso é compreendido como uma forma de difusão de
significados que exerce papel não somente para a elaboração, transmissão e
reprodução de referências, idéias, valores, como também de preconceitos.
Para forjar representações acerca da mulher negra, as revistas
jornalísticas voltadas para o público feminino utilizam-se de recursos de
linguagem específicos. Tais representações possuem a faculdade de
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7
UFMA - erlyguedes@gmail.com
601
alimentar as práticas culturais em vigor na sociedade, apresentando a
capacidade de reproduzi-las ou modificá-las.
Desta maneira, esta pesquisa almeja analisar as representações
de mulheres negras publicadas nas revistas Claudia e Marie Claire, de
circulação nacional, voltadas para o público feminino, no período de outubro
de 2007 a março de 2008. Este estudo busca evidenciar os mecanismos de
dissimulação do racismo e do sexismo presentes na revistas femininas, para
promover discussões sobre sua produção e interpretação, tendo em vista que
os componentes raça, cor e gênero são elementos integrantes da costura
entre as relações sociais.
Como outros veículos de comunicação, as revistas femininas
trazem as representações das relações de gênero da sociedade em que
estão inseridas. Além disso, pertencem aos dois maiores grupos de
comunicação brasileiros, o Grupo Abril (Claudia) e as Organizações Globo
(Marie Claire).
A perspectiva teórica aqui adotada parte do pressuposto de que a
esfera da produção e circulação de sentidos, o campo da produção simbólica,
é um espaço extremamente importante para o desenrolar das lutas contra-
hegemônicas. É nessa arena que os diferentes grupos sociais tentam fazer
circular seus discursos, elaborar seus significados e torná-los legítimos
perante o próprio grupo e a sociedade.
Esta perspectiva de análise permite assumir a existência,
especificamente no âmbito das práticas discursivas, da mesma
luta pela fixação dos significados sociais que se situa em toda a esfera da
produção cultural e simbólica, conferindo dinamismo às formações
discursivas.
MULHER NEGRA: dupla jornada de preconceito
Duplamente discriminada, por ser mulher numa sociedade
machista e negra numa sociedade racista, analisar e, ao mesmo tempo,
procurar romper com a visão estereotipada da mulher negra desqualificada
moral, intelectual e socialmente coloca-se como uma questão de grande
importância.
Embora a sociedade considere o racismo e suas implicações
como elementos periféricos da estrutura social, eles são responsáveis pela
sustentação da ideologia da superioridade branca que produz resultados
práticos.
Entendidas como mecanismos que justificam a opressão das
mulheres e de como essa opressão se reflete nas mentes, as relações de
gênero interferem diretamente no cotidiano de homens e mulheres,
reproduzindo-se em muitas situações que passam a ser consideradas como
602
verdade absoluta e determinantes nos comportamentos sociais.
Compreender como as revistas direcionadas ao público feminino
retratam uma parcela desse público – a mulher negra – no plano simbólico por
meio dos textos da mídia impressa e como isto pode manter determinados
discursos hegemônicos é essencial para entender a estrutura social atual.
Afinal, o exercício do poder simbólico é, em parte, responsável por afirmar
estereótipos e hierarquizar grupos sociais, alem de influenciar na formação
ou deformação da identidade dessas mulheres e, consequentemente, na luta
para ultrapassar a barreira de estereótipos e invisibilidade.
Racismo e sexismo têm sido os principais obstáculos para que a
mulher negra possa ter a sua cidadania assegurada, pois mesmo entre os
negros, as diferenças de renda entre homens e mulheres são mais
significativas que entre os demais grupos raciais. A pobreza no Brasil tem cor
e sexo: é negra.
Segundo Antonia Aparecida Quintão (In CARRANÇA; BORGES,
2004, p. 53), a mulher negra é excluída dos espaços de poder político e
econômico já conquistados pelas mulheres brancas.
Com as transformações sociais, culturais e econômicas que ocorreram ao
longo dos anos muitas mulheres da classe média ingressaram nas
universidades, nas repartições públicas em busca da sua emancipação.
Quem vai fazer a faxina, cuidar das crianças, preparar o jantar? Quem
afinal vai possibilitar essa emancipação? É a mulher negra.

Em geral começam a trabalhar muito pequenas. Aos 4 ou 5 anos já


devem, já podem auxiliar nos serviços caseiros; lavar prato, varrer a casa,
cuidar dos irmãos mais novos. É preciso aprender. Em função disso
faltam à escola numa proporção muito maior que os meninos.

Sobre a mulher negra, portanto, recai o peso da herança colonial,


onde o sistema patriarcal apóia-se sobre a superioridade masculina branca
na seguinte escala de valores: o poder político e econômico, social, cultural é
privilégio do homem de cor branca; em seguida, numa degradação de valor,
fica a mulher branca; abaixo dela, o homem de cor negra, ficando a mulher
negra como o estrato mais desvalorizado da população brasileira. Por isso, a
situação da mulher no Brasil parte dessa desigualdade histórica, entre a
mulher branca e negra.
Apesar das transformações nas condições de vida e papel das
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8
A revista Claudia foi lançada em outubro de 1961 pela Abril Cultural (Editora Abril), cujo slogan era:
“Claudia: a revista amiga”. A publicação era voltada para a mulher casada e dona de casa, apresentando
matérias de moda, decoração e culinária. Além de sexualidade, seus textos tratavam da condição de
emancipação da mulher. A Claudia é a revista feminina mais antiga em circulação no Brasil. Fez 40 anos
em 2001. A revista Marie Claire foi lançada no Brasil, em setembro de 1991, pela editora Globo. Ela é a
versão da homônima francesa, lançada em 1937. Diferente dos conceitos das demais revistas, a Marie
Claire é supostamente dirigida à mulher que pensa, como diz seu slogan “Chique é ser inteligente”.

603
mulheres de todo o mundo, a mulher negra continua vivendo uma situação
marcada pela dupla discriminação. Se no período escravista as mulheres
negras atuavam como trabalhadoras à força, no período pós-abolição elas
passam a exercer trabalhos braçais e insalubres. Portanto, o discurso da
ocupação feminina de áreas profissionais antes restritas aos homens
concerne apenas ao grupo de mulheres brancas. Enquanto isso, as mulheres
negras continuam associadas às funções que elas desempenhavam na
sociedade colonial, tais como: empregada doméstica, lavadeira, faxineira,
cozinheira.
A ausência ou distorções da imagem da mulher negra nos meios
de comunicação, por exemplo, é uma forma de violência extremamente
dolorosa, cruel e prejudicial, pois sem referenciais positivos, a mulher negra,
enquanto grupo recortado e atravessado pela raça e pelo gênero,
simplesmente deixa de existir. Não é por acaso que são poucas as negras que
se reconhecem como tal no Brasil; definem-se, em grande parte dos casos,
como morena, mulata, marrom, morena jambo, mestiça, parda.
A COR E O SEXO NO JORNALISMO DE REVISTA BRASILEIRO
As produções simbólicas podem ser instrumentos de dominação,
visto que a formação dos objetos se dá no ato da enunciação. Ao classificar ou
nomear um objeto, o sujeito oferece uma posição no mundo a ele. Dessa
capacidade do discurso surge uma forma de poder chamada por Bourdieu
(2006, p. 7) de poder simbólico que é “uma espécie de círculo cujo centro está
em toda parte e em parte alguma [...] é, com efeito, esse poder invisível o qual
só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber
que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem”. Portanto, o poder simbólico
é um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem
das coisas.
O discurso não só é alvo de disputas, mas é o local privilegiado da
disputa pelo poder visto que a cada enunciação busca-se a hegemonia do
que é dito. Para Bourdieu (2006, p. 14) o poder simbólico é o poder se fazer
tomar em consideração, o poder de falar e se fazer ouvir:
O poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação, de
fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e,
deste modo, a acção sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase
mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força
(física ou económica), graças ao efeito específico de mobilização, só se
exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário.

Esse poder se exerce nas relações sociais, é constitutivo e, ao


mesmo tempo, constitui-se na dinâmica social. Por meio das práticas
discursivas, os agentes sociais disputam essa espécie de poder, isto é,
disputam a prevalência do seu modo de perceber e classificar as coisas do
604
mundo e o outro e, assim, de produzir a realidade e de intervir sobre essa
realidade.
A linguagem enquanto discurso é interação, e um modo de
produção social. Deixa de ser considerada ingênua, natural, desprovida de
intencionalidade, e torna-se o lugar privilegiado de manifestação da
ideologia.
Dessa forma, Brandão (2004, p. 11) explica que a linguagem é
lugar de conflito, de confronto ideológico, e não há como desvinculá-la dos
processos histórico-sociais que a constituem. “Seu estudo não pode estar
desvinculado de suas condições de produção. Esse será o enfoque a ser
assumido por uma nova tendência lingüística que irrompe na década de 60: a
análise do discurso”.
Segundo Bourdieu (2006, p. 15), o poder simbólico é uma forma
transformada e legitimada de outras formas de poder – como o político,
econômico, intelectual – resultante do trabalho de transformação dos
diferentes tipos de capital em capital simbólico.
É dessa maneira que a mídia produz e reproduz estereótipos
negativos em relação à mulher negra, bem como permite assumir a existência
de uma luta pela fixação dos significados sociais que se situa em toda a esfera
da produção simbólica, sem que, no entanto, essa violência seja apreendida
objetivamente pelos interlocutores. É por meio do poder simbólico que as
revistas femininas estudadas tendem a forjar a apreensão da ordem
estabelecida como natural, por meio da imposição mascarada de sistemas de
classificação ajustados às estruturas sociais.
Produtos históricos que refletem, de certa forma, a história do
desenvolvimento capitalista da economia nacional, as revistas femininas são
produtos culturais destinados a um público específico que aparece
construído e concretizado nas páginas do periódico, veiculando concepções
sobre os papéis sexuais da família e da relação entre os sexos, porém,
silenciando sobre as relações conflituosas entre as diferentes raças que
compõem o desenho da população brasileira.
Claudia e Marie Claire são mensais e publicadas pelas editoras
Abril e Globo, respectivamente. Ambas abordam temas como educação,
beleza, moda, saúde, comportamento, sexo. A publicação define os temas
que, supostamente, dizem respeito à mulher: profissão, vida em família, casa,
moda e cozinha. Ao instituir uma mulher, Claudia institui também temas que
lhe dizem respeito, exercendo, assim, o poder simbólico estudado por
Bourdieu.
Segundo dados da Distribuidora Nacional de Distribuição
(DINAP, 2004), a revista Marie Claire é direcionada às classes ABC, assim
distribuídas. A revista apresenta um perfil editorial que promove o seu
605
diferencial a partir da aquisição de prêmios jornalísticos distribuídos por
instituições prestigiosas. Assim, associa à própria imagem uma distinção pela
“inteligência”, que pode ser estendida àquelas que lerem as suas matérias. A
representação da “mulher Marie Claire” fica clara no slogan da revista: Marie
Claire. Chique é ser inteligente.
As concepções culturais de masculino e feminino como duas
categorias complementares, mas que se excluem mutuamente, nas quais
todos os seres humanos são classificados, formam, dentro da cultura
brasileira, um sistema simbólico ou um sistema de significações que
relaciona o sexo a conteúdos culturais de acordo com valores e hierarquias
sociais.
O conceito de gênero chama a atenção para a construção social
dos sexos, sobre a produção do feminino e do masculino, não como algo dado
e pronto no momento do nascimento, mas como um processo que se dá ao
longo de toda a vida e vai fazendo com que as pessoas, os sujeitos, se tornem
homens e mulheres de formas muito diversificadas.
Para compreender como o jornalismo de revista voltado para
mulheres representa o feminino negro, utiliza-se a análise de discurso, que
disseca o texto em busca de um sentido, o que pode chegar a uma articulação
de sentidos. Isto é necessário porque o jornalismo, ao se investir de um
discurso que se propõe objetivo e imparcial, acaba por apresentar um texto
que é produto de um discurso prévio. Para Orlandi (2007, p. 197):
Ao explicitar o funcionamento desse fenômeno lingüístico a que
chamamos discurso, ao mostrar como um texto funciona, o analista de
discurso fornece subsídios metodológicos para a prática de produção e
leitura. Sem esquecer que o traço essencial desse funcionamento é a
relação do texto com os outros textos, com a situação, com os
interlocutores, ou seja, com suas condições de produção.

Para tanto, foram selecionadas matérias que abordam a mulher


negra em seu contexto de atuação, veiculadas em Claudia e Marie Claire nos
meses de outubro a dezembro de 2007 e nos três meses iniciais de 2008
(janeiro a março), de tal forma que o corpus da pesquisa incorpora 13
matérias jornalísticas sobre temas que compõem o universo da mulher negra,
sintetizadas no Quadro 1.

606
As duas revistas totalizam 230 matérias com referências à mulher
branca, 104 na Marie Claire e 126 na Claudia. Portanto, no universo de 244
matérias jornalísticas, verifica-se que apenas 5,73% notas ou reportagens
trazem temas do universo da mulher negra.

Quadro 1 – Notícias selecionadas sobre mulher negra nas


revistas Claudia e Marie Claire, entre outubro de 2007 e
março de 2008.
Fonte: Pesquisa direta.

607
Nas doze revistas pesquisadas, não foram encontradas capas
com mulheres negras brasileiras. A capa da revista é o chamariz das
mulheres para que a comprem e traz as chamadas das principais matérias da
edição. Retratadas nas capas são atrizes, apresentadoras de TV, modelos ou
cantoras brasileiras brancas que estão na pauta do discurso midiático. A
exceção está presente na edição de novembro de 2007 da Marie Claire: a
atriz norte-americana Angelina Jolie.

Figura 1: Capas das revistas Claudia e Marie Claire


entre os meses de outubro de 2007 e março de 2008.

Esse trânsito constante de mulheres brancas nas capas revela o


ideal de perfeição construído nas/pelas revistas femininas. Percebe-se,
portanto, a adoção de um padrão branco como norma, a branquitude
normativa, resultante da incorporação, por essas revistas, do mito da
democracia racial brasileira e da ideologia do branqueamento. Edith Piza, no
artigo intitulado Branco no Brasil? Ninguém sabe, ninguém viu... (In
HUNTLEY; GUIMARÃES, 2000, p. 103) discute o conceito de branquitude
formulado por Ruth Frankenberg:
Segundo esta autora, branquitude é 'um conjunto de dimensões
interligadas', isto é, um lugar social de vantagens e privilégios raciais; um
lugar 'de onde pessoas brancas vêem a si mesmas, aos outros e ao
mundo'; 'refere-se a um conjunto de práticas culturais que são
comumente não-demarcadas e não-nomeadas'.

A representação dessas mulheres de sucesso e brancas é usada


pelos veículos para vender ao público feminino um ideal de beleza e perfeição
608
física, emocional, social, psicológica. Dessa forma, a imprensa
feminina cria e dissemina um modelo ideal de mulher e sugere que todas
sejam como ela, tanto fisicamente quanto em seus comportamentos,
desejos, repulsas, sonhos, planos.
Para isso, as matérias trazem sugestões de comportamento,
vestuário, maquiagem, alimentação, atividades físicas para “melhorar” a vida
das mulheres, isto é, para que as interlocutoras, negras e brancas, se
enquadrem na busca para atingir esse ideal irreal de perfeição.
Em um total de 43 chamadas de capa, presentes nas duas
publicações, apenas uma remetiam a matérias jornalísticas referentes a
mulheres negras, o que representa 2,3% das inserções, apontadas no
Quadro 2:

Quadro 2 – Chamada de capa selecionada sobre mulher negra nas


revistas Claudia e Marie Claire, entre outubro de 2007 e março de 2008.
Fonte: Pesquisa direta.

Agrupando as notícias do corpus de acordo com características


dos temas abordados que remetem ao universo das mulheres negras, traça-
se categorização dos tipos de representação do feminino negro mais
frequentes nos conteúdos dos periódicos analisados, embora sem a
pretensão de esgotar a possibilidade de classificação. Assim, o estudo adota
duas categorias de projeções identitárias construídas por Claudia e Marie
Claire, que não se pretendem universais, mas que visam a facilitar a análise
discursiva das notícias que têm temas relacionados a mulheres negras como
cerne. Eis as categorias:
Categoria 01 – Mulheres Notáveis: incorpora temas que remetem a mulheres
negras cujo destaque recai no lado profissional.
As matérias reunidas nesta primeira categoria possuem como
personagens, seja protagonista ou ocupando lugar secundário, um tipo de
609
mulher que se enquadra na classificação de Lipovetsky (2000, p.
236) como a terceira mulher, definida como “um novo modelo que se
caracteriza por sua autonomização em relação à influência tradicional
exercida pelos homens sobre as definições e significações imaginário-sociais
da mulher”.
Tal como afirmado anteriormente, quando se cruza o fator gênero
com o fator raça, pode-se constatar a exclusão das mulheres negras dos
espaços de poder político e econômico já conquistados pelas mulheres
brancas. É sobre a negra que recai todo o peso da herança colonial, onde o
sistema patriarcal apóia-se sobre a superioridade masculina branca, na
seguinte escala de valores: o poder político e econômico, social, cultural é
privilégio do homem de cor branca; em seguida, numa degradação de valor,
fica a mulher branca; abaixo dela, o homem de cor negra, ficando a mulher
negra como o estrato mais desvalorizado da população brasileira.
Portanto, as mulheres poderosas retratadas nas matérias
jornalísticas apontadas são exceções em relação ao contingente de mulheres
negras que ainda não ocupam áreas profissionais de maior remuneração, de
comando ou decisão, antes restritas aos homens.
No corpus foram identificadas seis notícias (Quadro 3) que
representam mulheres com o referido perfil.

Quadro 3: – Categoria 1: Mulheres Notáveis, Claudia e Marie Claire, outubro de 2007 a março de 2008.
Fonte: Pesquisa direta.

610
Por outro lado, há, paradoxalmente, em todas as matérias, a
tendência para ironizar ou, no mínimo, por em evidência, pontos
considerados femininos que, na verdade, são pistas do cunho discriminatório
do discurso das publicações estudadas acerca do feminino negro.
Categoria 02 – Mulheres Estereotipadas: incorpora temas que representam a
negra por meio de ideias pré-fixadas socialmente: os estereótipos.
As mulheres retratadas nas matérias incluídas nesta categoria
são representadas de forma estereotipada e vazia. Quando ocupa lugar de
destaque na reportagem, é representada sob a forma de estereótipos como a
mulata sensual, indivíduo exótico, pessoa que depende da ajuda da mulher
branca, bandida ou marginal, feia.
Deste modo, o lugar delineado para a mulher negra é em um
contexto mítico e ambíguo de sedução e desejo, repulsa e perigo. Segundo
Côrrea (1996), forja-se um estereótipo do feminino negro ligado à submissão,
à sensualidade, ao perigo e ao prazer, mas um prazer relacionado à pobreza,
à miséria e à desordem, atributos que somados ao estereótipo da
negatividade dirigida à sua cor de pele tornam-na em um ser duplamente
discriminado: por ser mulher e por ser negra.
No corpus de análise foram identificadas oito notícias (Quadro 4)
que representam mulheres com a referida representação.

Quadro Z: – Categoria 2: Mulheres Estereotipadas, Claudia e Marie Claire, outubro de 2007 a março de 2008.
Fonte: Pesquisa direta.

611
Essa estereotipia justifica a exclusão e a marginalização histórica
da mulher negra. Ela legitima um projeto de nação que vem sendo construído
nestes 500 anos: de hegemonia branca e exclusão ou admissão minoritária e
subordinada de negros, indígenas e não-brancos em geral. E é este mesmo
projeto de nação que o imaginário da revistas femininas busca consolidar.
A discriminação racial na sociedade brasileira manifesta-se,
muitas vezes, não em comportamentos que podemos observar ou detectar,
mas exatamente na sua ausência. Trata-se, portanto, de procurar analisar o
que está oculto sob o manto da indiferença, o que está implícito, as omissões,
os silêncios, a inexistência, a ambiguidade.
Por estar sujeita a um ideal branco inatingível e ter seus valores
negativados pela sociedade, a mulher negra tem grandes dificuldades para a
afirmação da sua identidade. Em função dessa ideologia, elas tendem a
introjetar os valores e princípios de ascendência européia, determinados
como superiores, e a desvalorizar o universo de ascendência africana. Esta
internalização é feita de forma inconsciente, causando prejuízos para a
construção de sua identidade.
SILÊNCIO ESTAMPADO
A mulher negra, no jornalismo feminino, é silenciada, tendo em
vista que aparece de forma diminuta no conjunto das matérias jornalísticas.
Apesar de não declarar explicitamente, as revistas estudadas adotam uma
política de silêncio e discriminação em relação às mulheres negras, forjando
um discurso fundado no mito da democracia racial brasileira e da ideologia do
branqueamento. O resultado dessa construção é a negação da mulher negra
em relação a sua raça e cultura.
O poder do discurso é perpassado por uma dimensão do silêncio
que remete ao caráter de incompletude da linguagem: todo dizer é uma
relação fundamental com o não-dizer. Segundo Orlandi (2007, p. 13), o
silêncio é “Reduto do possível, do múltiplo, o silêncio abre espaço para o que
não é “um”, para o que permite o movimento do sujeito”.
Portanto, o silêncio atravessa as palavras, existe entre elas,
indica que o sentido pode ser outro, ou que aquilo que é mais importante não
se diz, enfim, o silêncio é fundante. Há, pois, um aspecto político da
significação que resulta no silenciamento como forma não de calar, mas de
fazer dizer “uma” coisa, para não deixar dizer “outras” coisas. Ou seja, o
silêncio recorta o dizer. Essa é sua dimensão política e está assentada na
dimensão fundante do silêncio.
No discurso, o sujeito e o sentido se constituem ao mesmo tempo.
Ao se utilizar o mecanismo da censura, se proíbe ao sujeito ocupar certos
lugares, isto é, proíbem-se certas posições do sujeito, se interdita a inscrição
dele em formações discursivas determinadas. Consequentemente, a
identidade do sujeito é afetada, tendo em vista que a identidade é resultado
de processos de identificação segundo os quais o sujeito deve ser inscrito em
determinada (e não em outra) formação discursiva para que suas palavras
612
tenham sentido.
Os meios de comunicação contribuem para determinar e definir o
lugar feminino negro na contemporaneidade. Assim, concebe-a em condição
de agente passivo na relação com o homem, aproximando-a da identificação
de mera dominada e elemento relegado ao segundo plano na relação. Ao
mesmo tempo, representa-a como oposta e inferior à mulher branca.
O modo como a mídia produz as notícias atende, em primazia, a
orientações ideológicas que obedecem a interesses comerciais próprios, à
medida que seguem linha editorial específica e preestabelecida pelos
proprietários. Selecionando, desse modo, os elementos da realidade e
alterando as formas de articulação deles, a ideologia concebe uma forma de
ser do mundo.
Dessa forma, os meios de comunicação, enquanto produtores de
discursos, detêm o poder influenciador, de certa forma limitado, de funcionar
como elementos de constituição ou reforço de identidades para a mulher
negra. Isso se dá por meio de exclusão da temática que não convém e/ou não
é oportuna expor à sociedade.
CONCLUSÕES
Diante da análise de matérias jornalísticas editadas em revistas
femininas de difusão nacional, constatou-se que a mulher negra é
apresentada por esses periódicos de forma estereotipada e vazia. Ela é
invisível nesses produtos midiáticos, pois não é foco das matérias
jornalísticas e, quando ocupa lugar de destaque na reportagem, é
representada sob a forma de estereótipos como a mulata sensual ou
indivíduo exótico. Apesar de não declarar explicitamente, as revistas
estudadas adotam uma política de silêncio e discriminação em relação às
mulheres negras, forjando um discurso fundado no mito da democracia racial
brasileira e da ideologia do branqueamento. O resultado dessa construção é
a negação da mulher negra em relação a sua raça e cultura.
Os meios de comunicação não transmitem uma imagem
equilibrada nem da diversidade das mulheres, nem de suas contribuições à
sociedade. A falta de sensibilidade sobre o tema se evidencia no fracasso em
eliminar os estereótipos baseados no gênero, constatando-se a contínua
projeção de imagens negativas e degradantes das mulheres negras, que
precisa urgentemente ser mudada.
Compreender os vários papéis culturais construídos através das
mídias impressas, que afetam os formadores de opinião, empresários,
artistas e políticos, para as mulheres negras é de grande importância para o
desenvolvimento saudável da auto-estima dessas mulheres e a superação
do preconceito racial e de gênero, afinal, as representações forjadas pela
mídia influenciam na formação ou deformação da identidade dessas
mulheres e, consequentemente, na luta para ultrapassar a barreira de
estereótipos e invisibilidade.
613
REFERÊNCIAS

LIPOVETSKY, G. A terceira mulher: permanência e revolução do feminino.


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CORRÊA, M. Sobre a invenção da mulata. São Paulo: Cadernos Pagu (6-7),
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MUNANGA, K. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional
versus identidade negra. Petrópolis: Vozes, 1999.
CARRANÇA, Flávio; BORGES, Rosane da Silva (Orgs.). Espelho infiel: o
negro no jornalismo brasileiro. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2004.
HUNTLEY, Lynn; GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. (Orgs.) Tirando a
máscara: ensaios sobre o racismo no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
SANTOS, Gevanilda; SILVA, Maria Palmira da. (Orgs.) Racismo no Brasil:
percepções da discriminação e do preconceito racial no século XXI. São
Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2005.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz (português
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BUITONI, Dulcília Schroeder. Imprensa feminina. São Paulo: Ática, 1986.
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ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos.
6 ed. Campinas, SP: UNICAMP, 2007.

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A MORAL FEMININA EM FOLHETINS NA SEGUNDA METADE DO
SÉCULO XIX: entre o lazer e o discurso

Maria José Lobato Rodrigues


Iran de Maria Leitão Nunes
A utilização de jornais como fonte documental tem se mostrado
fecunda entre as ciências humanas, por estes apresentarem uma diversidade
de informações e discursos que caracterizam tempos e espaços específicos,
tornando possível que se possa compreender a dinâmica social do qual
fazem parte, bem como a ação dos mais variados sujeitos históricos. Para o
estudo que pretendemos, justifica-se porque representam um importante
difusor de idéias à época, apreciado pela população letrada, que podia, por
intermédio dessa fonte acompanhar informações sobre os mais diversos
assuntos. Também lançamos mão dos folhetins, por terem sido uma opção de
entretenimento para os que tinham gosto literário.
Assim, o presente trabalho resulta de parte da pesquisa que está
sendo realizada para a dissertação de Mestrado em Educação da
Universidade Federal do Maranhão e tem por objetivo identificar e analisar o
discurso voltado para as mulheres presentes nos folhetins romanescos
publicados nos seguintes jornais maranhenses: O Globo (1854), O
Ramalhete (1863) e o Publicador Maranhense (1872), entre os anos de 1854-
1872, por considerarmos que acabaram por servir como meio de difusão dos
ideais morais femininos, socialmente aceitos na segunda metade do século
XIX, na Província do Maranhão, bem como compreender o contexto
socioeconômico e cultural do período em estudo.
Partimos, dessa forma, do pressuposto de que valores morais
“adequados” às mulheres (recato, castidade e obediência) difundidos pela
sociedade imperial, encontraram como um dos meios de reprodução e
difusão os folhetins romanescos publicados nos jornais da época, visto que
estes tiveram significativa aceitação junto às mulheres, em especial as
escolarizadas das classes mais elevadas.
Para o estudo proposto, utilizamo-nos das seguintes categorias
de análise: moral feminina, relações de gênero, literatura e análise de
conteúdo as quais estruturaram o roteiro e estabeleceram os procedimentos
investigativos, calcados em leitura e análises de fontes documentais e
bibliográficas.
O trabalho está estruturado nos seguintes tópicos: o Maranhão
no contexto do século XIX; a educação feminina e a moral feminina em
folhetim. Desse modo, tencionamos contribuir com os estudos sobre a mulher
brasileira no século XIX, em especial a maranhense.
O MARANHÃO NO CONTEXTO DO SÉCULO XIX
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Estudante da Universidade Federal do Maranhão.
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Professora do Departamento de Educação da Universidade Federal do Maranhão.

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Desenvolvendo uma economia agroexportadora baseada no
trabalho escravo e tendo como principal produto o algodão e o arroz, o
Maranhão apresentava-se, durante o século XIX, plenamente integrado ao
quadro econômico nacional. Mas, a partir de 1850 a Província passa a
enfrentar obstáculos para concorrer internacionalmente com seus produtos,
pois, além dos fortes competidores e das oscilações dos preços no mercado
mundial, a lavoura enfrentava problemas como insuficiência técnica,
dificuldade de transporte e de comunicação. Problemas desse tipo levaram
muitos proprietários a vender parte de seus cativos, buscando dessa forma
capital para investir no plantio, o que na prática serviu para contribuir com o
tráfico interprovincial (CABRAL, 1984).
Os esforços dos proprietários em fortalecer a economia
maranhense, apesar de terem conquistado a adesão das autoridades
provinciais, não conseguiram sensibilizar o governo central, que tinha sua
atenção voltada para o novo polo econômico, o Centro-Sul. Portanto, é dentro
do quadro de perda da hegemonia política e econômica do Nordeste que
podemos entender, em parte, as dificuldades enfrentadas pela economia
maranhense no período.
Para Ribeiro (1900, p.65), a economia da Província foi marcada
por um estado de crise permanente “que decorreram das condições
estruturais em que se assentou a economia brasileira, de feições nitidamente
coloniais [...]”.
Por outro lado, segundo Meireles (1972), os problemas
financeiros que a Província enfrentava não impediram que algumas
melhorias fossem realizadas, como, por exemplo os serviços de navegação a
vapor, construção e melhorias de estradas e implantação de um sistema
bancário. E, por que não citar a criação de jornais como O Publicador e O
Globo, que, à época, representavam importantes instrumentos para o
desenvolvimento urbano da capital maranhense, por facilitarem a
comunicação e promoverem o comércio, num momento em que as cidades
assumem posição destacada na economia nacional.
No aspecto social, O Maranhão possuía uma estrutura bem
definida. Os seus vários elementos ocupavam lugares específicos e
previamente ditados pela sua condição econômica e jurídica. A classe
senhorial era formada pelos grandes proprietários de terras, comerciantes e
altos funcionários da Coroa; o segmento médio era composto por
funcionários públicos, pequenos comerciantes, profissionais liberais, padres
e letrados; na base social estavam os brancos pobres, índios e mestiços livres
– estes eram destituídos de qualquer fortuna e privilégio dentro do modo de
produção – ; e por fim os negros escravos, sobre os quais como é sabido,
recaía o trabalho diário e exaustivo que se fazia em todas as frentes (nos
campos, engenhos, transporte, afazeres domésticos, dentre outras).
Viveiros (1954), ao discutir a situação dos pobres livres da
Província, esclarece que o fato de estes exercerem um papel secundário nas
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atividades produtoras levou os setores abastados a difundirem a ideia de que
este segmento social era avesso ao trabalho e à produção de bens de raízes,
rotulando-os de vadios, sem, contudo, considerar a estrutura econômica na
qual estavam inseridos, que desprivilegiava a mãodeobra livre em detrimento
do trabalho escravo. Mas os pobres livres executavam trabalhos tão pesados
quanto o escravo, para garantirem a sobrevivência.
Para alguns autores, o crescimento comercial vivido pelo
Maranhão foi responsável por mudanças socioculturais, como o refinamento
da elite aristocrática, que, influenciada pelos costumes europeus, adotou o
gosto por produtos refinados e pelos modos europeus de falar e vestir. E além
da moda, os móveis, os bailes, as peças teatrais, as aulas de piano e francês,
os folhetins e os saraus dançantes e literários faziam com que a vida social
mantivesse um ar opulento e ostentador, como bem observa Lacroix (2000, p.
45-56):
Tornou-se corriqueiro o uso de servir em bandeja de prata ou de faience o
xerez, o madeira, o champanhe de ouro ou de púrpura [...], os sorvetes
gelados do ocidente o néctar dos deuses. Nada faltava nos casarões e era
servido com graça, presteza e ordem, ditadas pelas boas maneiras
européias.
Culturalmente, a Província possuía uma posição destacada no
cenário nacional e muitos foram os intelectuais maranhenses de formação
europeia a produzir grandes obras literárias e históricas. Para Abranches
(1992, p.109), “a cultura do vernáculo tornara-se o padrão de glória dos
maranhenses: ninguém os excedia pelas outras províncias na pureza, na
correção e na elegância da linguagem [...]”.
O desenvolvimento cultural, associado à elegância e ao
refinamento da classe abastada, fez com que no meio intelectual da época
fosse gestada a ideia de São Luís ser a Atenas Brasileira. Entretanto, Lacroix
(2000, p.64) questiona a singularidade da cultura maranhense desse período
e advoga que “foi no meio de uma pequena fatia da população branca que se
verificou aquela efervescência intelectual [...], talvez semelhante à de outras
províncias”.
Ao levarmos em consideração que o acesso da população livre
pobre à mínima instrução oferecida pelo poder público passava por inúmeras
dificuldades, como: um número reduzido de professores; instalações
precárias; longas distâncias e a recusa dos pais em dispensar os filhos da
lavoura, entendemos em parte esse desinteresse, que resultou,
consequentemente, num reduzido número de crianças livres em idade
escolar frequentando as aulas de primeiras letras e serve para demonstrar
que a elite local apenas criara argumentos para reforçar sua condição social
privilegiada, em meio a uma maioria de analfabetos.
A EDUCAÇÃO FEMININA
A sociedade imperial brasileira foi herdeira das relações
patriarcais de gênero do período colonial. Os discursos que buscaram manter
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e legitimar essa ordem social apoiaram-se em fundamentos morais
específicos como recato, castidade, virtude e honra, atribuídos ao sexo
feminino, com o objetivo de determinar seus comportamentos e sentimentos.
A mentalidade patriarcal ainda atribuía à mulher uma fragilidade
física em relação ao homem, fundamentada por uma diferença biológica, e
que servia para justificar a divisão de papéis dentro do modo de produção e a
permanente “necessidade” de proteção e submissão do sexo feminino.
Bourdieu (2004, p.33), a esse respeito, esclarece que “a força particular da
sociodicéia masculina lhe vem do fato de ela acumular e condensar duas
operações: ela legitima uma relação de dominação inscrevendo-a em uma
natureza biológica que é, por sua vez, ela própria uma construção social
naturalizada”.
Segundo Samara (1989), cabia à mulher a vida privada, a lida
doméstica e o cuidado com os filhos, enquanto que ao homem eram
reservadas iniciativas sociais e contatos diversos. Conceber, parir, criar,
parecia ser seu destino, quando passava da tutela do pai à do marido. Criada
para o casamento, à mulher, em grande parte, eram confiados o
fortalecimento e o sucesso da vida familiar. Portanto, deveria ser sempre o
modelo de perfeição a ser seguido pelos membros de sua família.
A visão social que predominou à época sobre a educação foi que
os homens deveriam ser instruídos e as mulheres, educadas, recaindo sobre
estas a ênfase na formação moral e sobre aqueles a formação intelectual.
É importante destacarmos que a educação de meninos e
meninas, apesar de fazer parte de um projeto nacional, não se insere em um
processo único dentro da sociedade imperial e, como pontua Louro (1997, p.
444), “as divisões de classe, etnia e raça tinham um papel importante na
determinação das formas de educação utilizadas para transformar as
crianças em mulheres e homens”.
A própria escritora Nísia Floresta, ao defender uma educação
feminina mais completa, pautada em conhecimentos científicos, filosóficos e
princípios morais e religiosos, produziu um discurso que, apesar de moderno
para a época, não fugia da concepção de esposa e mãe. Considerava que
uma boa educação levaria a mulher a exercer adequadamente seu papel
(ABRANTES, 2004). A educação da mulher seria feita, portanto, para além
dela, já que sua justificativa não se encontrava em seus próprios anseios e
necessidades.
Apesar de sujeita a um padrão duplo de moralidade,
característico da sociedade de então, as mulheres das classes abastadas
experimentaram durante o Império o alargamento das oportunidades de
convívio social, motivado pelo desenvolvimento econômico e
consequentemente urbano. Espaços como a escola, o baile, o teatro, os
saraus, os chás e o passeio público deixaram de ser frequentados em sua
maioria pelos homens. Os eventos sociais eram momentos nos quais a
mulher se tornava peça indispensável.
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Essa mudança se fez sentir com maior intensidade a partir da
segunda metade do século XIX. Nesse momento, a influência de
pensamentos filosóficos e científicos, como o liberalismo, e a dinamicidade
da vida sóciocultural do Brasil, apontaram para a necessidade de educação
da mulher vinculada à modernização da sociedade (ALENCASTRO, 1997).
No Maranhão, as iniciativas do poder público provincial para
educar as mulheres foram a criação de aulas de primeiras letras para
meninas, conforme estabelecia a Lei de Instrução Pública do Império, a
fundação do Asilo de Santa Tereza e o sustento de algumas educandas no
Recolhimento de N.S. da Anunciação e Remédios. Também foram fundadas,
a partir da década de 1840, várias escolas femininas, mas a maioria de
caráter particular e destinadas às filhas da elite.
As escolas particulares para as moças, além de prendas
domésticas, ensinavam a ler, escrever, noções de aritmética, dança, tocar
piano e falar francês, o que revela um espírito de renovação, já que não mais
se restringia unicamente a ensinar o necessário para a vida no lar.
O colégio de N. S. da Glória, fundado em 1844, foi o único espaço
de educação particular para meninas durante vinte anos em São Luís. A partir
de 1874, outros foram fundados. Dentre os principais cabe citar o colégio de
N.S. de Nazaré, N.S. de Santana, N.S. da Glória e N.S. da Soledade. Com um
corpo funcional composto basicamente por mulheres, esses espaços de
sociabilidade representavam a oportunidade de exercícios outros, que não os
domésticos.
Nos jornais de época, era comum aparecerem anúncios de
escolas oferecendo aulas para moças. Um bom número destes
estabelecimentos, preocupados com a aceitação e a credibilidade junto aos
pais, ofereciam, além do ensino, acomodações às internas e semi-internas,
bem como serviços de costura, conforme anuncia o jornal O Globo (NUNES,
1854, p.4):
[...] no colégio de D. Emília de Magalhães Branco na praia do caju [...]
aprontam-se co toda a perfeição, e ao gosto modernovestidos,
quinzenas, manteletes, chapéus, toucados e todas as obras de agulha
própria dos modistas. E no mesmo colégio continua a receber-se meninas
tanto internas como externas, de cuja educação se cuida com todo
desvêlo”.
A participação das mulheres abastadas na vida social
pressupunha alguma preparação. Era natural, portanto, que, com o passar do
tempo, os pais procurassem instruir suas filhas para que, quando atingissem
a idade casadoura, pudessem frequentar os ambientes públicos e neles
mostrassem suas qualidades, facilitando a conquista de um consórcio
vantajoso. A presença feminina nas escolas e nos bailes já era vista pela
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Regime de relações civis que dá direito ao homem sobre as mulheres e representa uma estrutura
relacional hierárquica de poder baseado tanto na ideologia quanto na violência (SAFFIOTI, 2004).

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sociedade como algo natural, conforme destacado em O Globo (NUNES,
1854, p. 1):
[...] quando nossos avós fechavam as filhas e não queriam que elas
soubessem ler nem escrever, para que não lessem novelas, nem
tivessem correspondência com peraltas (janotas daquele tempo); quando
as mães levavam as filhas à missa primeira, ocasião única das pobres
raparigas tomarem ar [...] Mas hoje que as meninas aprendem a ler e
escrever conforme podem, hoje que os pais mesmos alguns dos mais
sisudos vão comprando a biblioteca [...] hoje que há bailes, teatros,
passeios, músicas, etc. [...] parece que aquela chorada meia hora de
missa podia, e devia dar-se toda a Deus.”
Para a Igreja, a educação necessária à mulher era aquela útil ao
bom desempenho da vida conjugal. Criticava as inovações na educação
feminina por considerá-la mundana e voltada para bailes e ostentações. No
Recolhimento, única instituição religiosa em que era oferecida educação a
mulheres leigas, estas aprendiam apenas a ler, escrever, noções de
aritmética, prendas domésticas, além de forte orientação cristã. Como não
poderia deixar de ser, os religiosos do Maranhão usavam os jornais para
exaltar a importância da religião para a formação do espírito da mocidade (O
Eclesiástico,1857).
Apesar do discurso conservador da Igreja com relação à
educação das mulheres da elite, a educação leiga ganhava espaço dentro da
sociedade provincial maranhense, assim como no restante do país. Se por
uma parte as mulheres abastadas podiam ter, além da educação costumeira,
uma preparação para a vida social, o mesmo não acontecia com as camadas
pobres, que contavam apenas com as aulas de primeiras letras ou o ingresso
em uma das duas instituições citadas anteriormente.
A MORAL FEMININA EM FOLHETIM
Gênero literário importado da Europa para o Brasil, os folhetins
romanescos eram histórias de leitura rápida, publicadas nos jornais em
espaços determinados e destinados ao entretenimento. Possuíam um
caráter didático, o que contribuiu para que se popularizasse
progressivamente e aumentasse o número de leitores durante o século XIX.
Por serem publicados diariamente e aos pedaços, as ficções narrativas
passaram a fazer parte do cotidiano dos leitores brasileiros, que através de
seus enredos, heróis, heroínas e vilões assimilaram modos e modas
europeizantes (REIS; BRAGA, 2009).
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O Brasil, em sua Carta Constitucional de 1824, estabelece que a instrução primária é gratuita a todos os
cidadãos e se compromete com a abertura de colégios e universidades. Mas somente com a Lei Geral de
Ensino de outubro de 1827, as escolas de primeiras letras tomam forma, sendo definido que os saberes
elementares (ler, escrever e contar) se dará por meio do tripé: Língua Portuguesa, História Nacional e
Religião Católica. O Estado deixa, portanto, entrever que pretende agir sobre meninos e meninas por meio
da instrução para conferir ao Império brasileiro a condição de moderno e civilizado (GONDRA, 2008).
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A Sociedade e a Religião cristã defendiam uma moral diversa para homens e mulheres. A virgindade, o
recato e a submissão eram entendidos como comportamentos próprios do sexo feminino, enquanto aos
homens se atribuía a virilidade, honra e autoridade (SAMARA, 1989).

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Os folhetins de estrangeiros, traduzidos em terras brasileiras
encontraram nos precursores nacionais importantes colaboradores que
passaram a escrever e a atender um público cada vez maior. O gênero aos
poucos foi se disseminando entre as classes populares, uma vez que tratava
de evento a que todos estão expostos e de paixões que todos conhecem,
estabelecendo dessa forma uma proximidade com o leitor e deixando de ser
lido apenas por uma elite em seus momentos de ócio (ABREU, 2009).
Apesar da popularidade dos folhetins, a partir da segunda metade
do século XIX, o maior número de leitores estava entre as mulheres, que, por
terem limitado acesso a outros escritos, acabaram por fazer deste mais que
um instrumento de lazer, um meio de conhecer o mundo. Isto fez
considerarmos que os valores e as prescrições de conduta moral presentes
no texto ficcional encontraram no público feminino maior possibilidade de
serem assimilados sem que desse fato tivesse plena consciência.
Desse modo, faz-se necessária a análise de conteúdo desses
folhetins, cujo ponto de partida é a mensagem, ou seja, seu significado e
sentido, mas com ênfase no ponto de vista do produtor, por entendermos que
todo autor traz consigo concepções de mundo que fazem com que seus
enunciados não sejam arbitrários e estejam direcionados pelos interesses de
sua época ou de classe, o que acaba por evidenciar sua concepção da
realidade, a qual é filtrada mediante seu discurso (FRANCO, 2005).
Como pontua Brandão (2002), o sujeito histórico fala a partir de
um espaço social e um tempo histórico determinado, e sua fala é um recorte
das representações da sua vivência e experiência, o que faz com que o
sujeito situe seu discurso em relação aos discursos do outro. E o outro não é
apenas o destinatário, mas também os outros discursos historicamente já
construídos e que emergem na sua fala.
Para este estudo, usaremos os folhetins: “O cavaleiro do cruzado
novo e o cavaleiro do botão de rosa”, publicado no jornal O Globo, em 1854;
“Elisa e Alfredo”, publicado no jornal O Ramalhete, de 1863 e a “A freira no
subterrâneo”, publicado no jornal O Publicador Maranhense, de 1872. O
intervalo de tempo e a diversidade dos jornais devem-se ao fato de tentarmos
observar as permanências ou mudanças nos discursos moralizantes. Todos
os três folhetins têm enredos ambientados na Península Ibérica, o que serve
para percebermos as concordâncias ou divergências dos discursos,
presentes em espaços geográficos distintos, mas marcados por uma moral
cristã semelhante.
Ainda por meio do romance naturalista “O Mulato”, do
maranhense Aluísio de Azevedo, escrito em 1881, buscamos criar um
contraponto aos enunciados discursivos presentes nos folhetins, por ser uma
literatura da Província e apresentar as convenientes relações patriarcais que
a moldavam. Assim, os folhetins e o romance acima citados associam-se
como fontes para o estudo do discurso moral voltado às mulheres
maranhenses na segunda metade do século XIX.
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Nos enunciados romanceados, pontuamos a imagem feminina
de virgem, esposa e mãe, visto que nos estudos sobre a história das mulheres
no período, estes três aspectos são apresentados como tendo importante
implicação no papel moral que a mulher deveria desempenhar. Portanto,
interessa-nos perceber como o discurso que fundamenta a moral feminina foi
reproduzido pelos folhetins romanescos de autores estrangeiros, publicados
nos jornais da época na capital maranhense, e possivelmente lidos pelas
moças letradas da Província.
O folhetim “O cavaleiro do cruzado novo e o cavaleiro do botão de
rosa” possui um enredo simples, em que uma moça e um rapaz, ambos ricos,
apaixonam-se e acabam casando-se. Enquanto a família de Adelaide
desconhece a origem abastada de Pedro e de seu interesse em casar-se com
ela, existe uma evidente preocupação de que estivesse envolvendo-se com
um rapaz de condição inferior à sua e que pudesse ser seduzida por um
homem experiente, colocando dessa forma em risco a sua honra e a de sua
família.
Já no folhetim “Elisa e Alfredo”, o amor do casal não é permitido
pelo pai, que a promete a outro homem. Elisa aceita o casamento em
obediência ao pai. Ao longo da estória a heroína pede insistentemente ao
amado que não faça nada que possa ir contra a vontade de seu pai, mas,
prefere morrer de tristeza e desalento a casar-se com um homem que não
amava.
Por sua vez, o folhetim “A freira no subterrâneo” também
apresenta um enredo em que o amor do casal não era permitido pelo pai, por
questões políticas e étnicas. Surpreendida pelo pai em um encontro
clandestino com o seu amado, Bárbara em um momento de desespero,
diante de um possível assassinato, aceita ir para um convento e tornar-se
freira, renunciando dessa forma ao seu amor.
Mesmo que nos três folhetins os envolvimentos amorosos das
personagens levem--nas a destinos diferentes (ao casamento, à morte e à
contemplação), todos representam a prevalência da autoridade masculina
que balizava as relações de gênero até então.
A preservação da virgindade das mulheres é um tema recorrente
nos três enredos e estava socialmente vinculada à manutenção da honra
masculina, o que fazia do recato o comportamento conveniente e esperado
das mulheres para conservar a sua honra e a de sua família. Em 'O cavaleiro
do cruzado novo (1854, p.2)', Rafael, irmão de Adelaide, assim a repreende:
“[...] mas dize-me minha irmãzinha as relações que tem havido entre te, uma
mocinha inocente, e um mancebo amestrado seguramente da arte de
seduzir? [...]”. Nesse enunciado a fala é dada ao homem, e não a outra
mulher. Aquele, na condição de irmão, se coloca como vigilante e atento aos
possíveis riscos que a irmã poderia correr em um envolvimento amoroso não
legitimado pela família.
A virtude também aparece como alvo de exaltação pelos autores
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dos folhetins e foi colocada pelo personagem Alfredo como condição de
continuidade do seu amor pela jovem Elisa, como podemos observar em
'Elisa e Alfredo (1863, p.1)': a tua virtude te há feito sublime, mulher
encantadora “[...] conserva sempre essa virtude, que se em algum momento
me atormenta, é também o laço mais forte que me uni a ti [...]”. A virtude é
entendida aqui, assim como o recato, como um valor ético que leva a mulher a
preservar a sua virgindade. Ou seja, a mulher virtuosa é aquela que se
comporta de modo a conservar sua pureza sexual.
Nos enunciados também aparecem censuras aos
comportamentos que colocavam em risco a virgindade. Em 'A freira do
subterrâneo (1872, p.1)', o narrador, ao construir o enunciado do pai
surpreendendo sua filha em um encontro furtivo com o namorado, constrói
seus argumentos da seguinte forma: 'O amor que Barbara sentia não lhe era
estorvo a conhecer que cometia grave culpa contra seu pai e contra os bons
costumes. Seria amaldiçoada pelo pai [...], o mundo culpá-la-ia, e as mães
proibiriam as suas filhas que lhe falassem'. Este enunciado também mostra
as reações da sociedade e o tratamento dado a uma mulher que não soube
proteger sua moral.
Em outro enunciado de contexto semelhante, Raimundo,
protagonista de 'O Mulato', censura sua amada, Ana Rosa, por querer
renegar as convenções sociais e casar-se com ele sem a autorização de seu
pai. Ele assim se expressa: “Mas supões que eu seria capaz porventura de
sacrificar-te ao meu amor? Que eu seria capaz de condenar-te ao ódio de teu
pai, ao desprezo dos teus amigos e aos comentários ridículos desta província
estúpida? [...] Segue o teu caminho honesto; és virtuosa, serás a casta mulher
de um branco que te mereça [...]” (AZEVEDO, 1997, p.157).
Para D'Incao (1997, p.235), independentemente de ter sido ou
não praticada como um valor ético, a virgindade funcionava, no período,
como um dispositivo para manter o status da noiva como objeto de valor
econômico, sobre o qual se assentaria o sistema de herança de propriedade
que garantia a linhagem da parentela.
Outra imagem importante para o papel moral que a mulher
deveria desempenhar era o de esposa. O casamento era apresentado como
o ideal da mulher, a concretização dos sonhos de juventude, mas, na prática
acabava por reforçar a continuidade de sua tutela pelo homem. Este, não
mais na posição de pai, mas de esposo. Em conformidade com esse discurso,
o protagonista Raimundo de O Mulato assim expressou-se: “via-se dona de
casa, pensando muito nos filhos [...], muito dependente na prisão do ninho e
no domínio carinhoso do marido [...] mas uma pobre mulher que futuro
poderia ambicionar que o casamento?” (AZEVEDO, 1987, p.21).
Em outro enunciado do folhetim 'Elisa e Alfredo (1863, p.1)', a
protagonista mostra ter consciência de não poder escolher livremente o seu
cônjuge e, ao mesmo tempo, expõe o remorso por ceder às emoções do
amor, agindo contra o desejo de seu pai: “Perdoai-me meu Deus, o juramento
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que acabo de fazer sem o consentimento do meu pai e ter cedido aos gostos
de Alfredo prometendo-lhe a nossa união [...]”. A obediência aparece aqui
como o comportamento adequado à mulher na condição de filha, bem como
de esposa. Em determinada passagem de 'A freira do subterrâneo (1872,
p.1)', a mãe de Bárbara conversando sobre casamento, expôs
sua opinião da seguinte forma: “Porque o evangelho nos ordena obediência
ao marido e a lei nos obriga [...] eu respeito o evangelho e sigo a lei [...]”. Nos
dois enunciados a fala foi dada à mulher no reconhecimento da autoridade do
homem, seja na condição de pai ou de esposo, o que se reveste de um peso
ainda maior, pois não é o homem que veicula o discurso, mas aquela mesma
que sofre sua ação. Disso podemos apreender que a obediência feminina,
como algo reconhecido sociamente, parece nestes dois folhetins como algo
que deveria partir da mulher, fundamentalmente.
Se, por um lado, uma parte significativa dos enunciados
confirmava os valores morais femininos em voga, em alguns momentos eles
os rejeitam e/ou os completam. Em 'A freira do subterrâneo (1875, p.1)', a
protagonista Bárbara, reconhece a submissão ao seu futuro marido, mas
rejeita que a escolha deste não respeite sua inclinação:
Quero obedecer a meu marido, quero amá-lo muito, segui-lo, ser a
metade vivente, pensante e apaixonada do esposo recebido perante o
padre; mas quero escolher esse marido que há de me dominar; quero
estimá-lo, adorá-lo antes de lhe sacrificar a vida. E tão pouco admito o
casamento de conveniência, como o casamento por dinheiro.
É importante pontuar que os folhetins caracterizavam-se por um
Romantismo que propunha sentimentos novos, em que a escolha do cônjuge
passa a ser vista como condição de felicidade e não como objeto de arranjos
familiares que visavam à preservação da riqueza e do status social. Porém,
mesmo que os folhetins manifestassem uma tendência à preferência de
casar por amor, não era esta uma prática corrente ainda, na sociedade, que a
vontade dos enamorados fosse utilizar o amor como critério para as uniões
entre as famílias ricas, já que outros interesses estavam em jogo. Entretanto,
o enunciado manifesta uma contestação à autoridade paterna que, à época,
julgava-se legítima e inquestionável.
A imagem da mulher-esposa completa-se com a da mulher-mãe
cuja família aparece como o centro de suas preocupações. As
idéias filosóficas, como o liberalismo e o positivismo, também influenciaram
as produções folhetinescas e fizeram com que a mulher passasse a ser
considerada a base moral da sociedade, devendo, como esposa e mãe, ser
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A obra retrata a realidade social de São Luís, capital da Província do Maranhão por volta de 1870. Tem
como tema central o preconceito racial sustentado pelo escravismo, e deixa entrever os prejuízos de uma
estrutura social arcaica.
15
Para aprofundar essa idéia, ler o artigo Educação Feminina em São Luís - Século XIX (ABRANTES,
2004).

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fiel ao marido, construir uma descendência saudável, educar os filhos e
cuidar do comportamento da prole, o que reforçava a importância do papel
moral que deveria desempenhar.
Em 'O Mulato', o narrador assim se expressa ao destacar que a
função principal da mulher é ser mãe:
E ela então sentiu bem nítida a responsabilidade dos seus deveres de
mulher perante a natureza, compreendeu o seu destino de ternura e de
sacrifícios, percebeu que viera ao mundo para ser mãe; concluiu que a
própria vida lhe impunha, como lei indefectível a missão sagrada de
procriar muitos filhos [...] (AZEVEDO, 1987, p.76).
Vigiar a castidade das filhas também aparece nos folhetins como
um dos deveres de mãe e, para tanto, esta devia estar atenta aos
envolvimentos amorosos das filhas e dos possíveis perigos à sua honra. Em
um enunciado de 'Elisa e Alfredo (1863, p.1)', a personagem Elisa,
demonstrando cumplicidade à sua mãe, assim se manifesta: ”Eu te juro
Alfredo, que serei só tua e prometo escrever-te com a condição de que minha
mãe há de ler as tuas cartas e as minhas [...]”. Em 'A Freira do subterrâneo
(1872, p.1)', o erro da filha Bárbara foi apresentado a partir da fala do pai como
negligência da mãe no desempenho do seu papel de educadora, e abriu
espaço para que o marido a recriminasse, como indica o enunciado a seguir:
“Tu educas mal esta rapariga, deixando-lhe nutrir no coração idéias de
independência que tarde nos darão que sofrer [...]”. Este enunciado indica a
não identificação do pai com a função de educar e orientar a filha, mas com a
de proteger a honra familiar, visto que, na trama, quando este se vê diante de
um perigo moral, impõe à filha uma vida conventual.
CONCLUSÃO
Os folhetins romanescos, publicados nos jornais, foram uma
prática corrente, na segunda metade do século XIX, em todo o Brasil. Ao
oferecerem romances sentimentais, acabaram por conquistar o público
feminino e serviram como um dos veículos balizadores do seu
comportamento. No Maranhão, as representações sobre as mulheres que
aparecem nos três folhetins, aqui apresentados, que foram publicados nos
jornais da capital, São Luís, apesar de europeizadas, encontram duplamente
correspondência na sociedade provincial, primeiro pelo considerável número
de portugueses que aqui viviam e, segundo, por ser a imagem ocidental cristã
do feminino, reproduzida nas relações patriarcais aqui estabelecidas.
Assim, numa sociedade em que o homem estabelece relações de
gênero hierárquicas e de submissão, o ideal de mulher é aquele que reproduz
essa ordem. Foi, pois a partir da imagem de virgem, esposa e mãe, que a

_____________________________________________________________

16
Movimento artístico, literário e filosófico que se originou na Europa do século XVIII, caracterizado por ser
uma reação ao Neoclassicismo e por dar livre curso à imaginação e às emoções. Temos no Brasil
significativos representantes.

627
moral feminina, socialmente aceita, construiu o perfil de virtuosa, casta,
obediente, honrada, educadora e guardiã do lar, como características
próprias da mulher, o que na literatura aparece de forma romanceada através
de personagens femininas. Isto nos leva constatar o caráter moralista da
sociedade imperial brasileira, que procurava, na maioria das vezes, reforçar o
modelo atribuído a mulher.
Enfim, os folhetins confirmam, rejeitam, completam e baseiam-se
nos discursos historicamente construídos sobre a mulher do século XIX,
tendo em vista que é nas vivências sociais que o autor vai buscar argumentos
para compor seu enredo. E, justamente por isso, encontrou correspondência
na sociedade da época.

628
REFERÊNCIA
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<http://www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br/estudos>. Acesso em: 05
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A FREIRA DO SUBTERRÂNEO. O Publicador Maranhense. Nº173, 23 de
outubro de 1872, p. 1. Caderno folhetim.
A FREIRA DO SUBTERRÂNEO. O Publicador Maranhense. Nº 174, 24 de
outubro de 1872, p.1. Caderno folhetim.
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629
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VIVEIROS, Jerônimo de. História do Comércio do Maranhão (1612-1895).
São Luís: Associação Comercial do Maranhão, 1954.

630
NARRATIVAS SOBRE MULHERES NA AMÉRICA COLONIAL
Lina Maria Brandão de Aras
A presente comunicação objetiva discutir a relação estabelecida
entre a história e a literatura a partir de suas formas narrativas. Tomamos para
objeto de análise duas obras Doña Francisca Pizarro e Inés da Minha Alma,
cujo foco de preocupação se concentra nas relações de gênero na América
espanhola no período da conquista.
Em O General em seu Labirinto, Gabriel Garcia Marquez utilizou
a metáfora “labirinto” na composição da sua obra, com o objetivo de analisar
as relações de gênero. O desafio que apresentamos neste trabalho trilha o
mesmo caminho, no sentido de buscar as relações entre a História e a
Literatura na construção do conhecimento histórico. Além de que, ao tomar as
mulheres como centro de análise, impõe-se a questão de que a nossa
problemática pergunta sobre o “ seu lugar, a sua condição, os seus papéis e
os seus poderes, as suas formas de ação, o seu silêncio e a sua palavra que
pretendemos prescutar, a diversidade das suas representações – Deus,
Madona, Feiticeira – que querem só captar nas suas permanências e nas
suas pujanças” (sic).
As relações entre os escritos literários e os históricos
encontramproximidade nas crônicas, escritas no mundo ibérico desde o
século XIII. Essas crônicas servem como relatos históricos ao descrever,
datar, situar e apresentar o passado e seus contextos a partir do olhar do
próprio cronista, trazendo para o texto sua vivência e, com ela, os elementos
do mundo no qual estava inserido.
Outro elemento motivador da aproximação da História com a
Literatura foi estabelecido para além das fronteiras entre a ciência e o objeto,
_____________________________________________________________

17
Professor Associado II, do Departamento de História, da FFCH/UFBA e professora permanente dos
programas de pós-graduação em História e de Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e
Feminismo.
18
ROSTWOROWSKI, Maria. Doña Francisca Pizarro. Uma ilustre mestiza (1534-1548). Lima: IEP, 2003.
19
ALLENDE, Isabel. Inés da Minha Alma. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.
20
ARAS, Lina Maria Brandão de e OLIVEIRA, Wálney da Costa. No cenário da guerra: as mulheres e a
literatura. In: MOTTA, Alda Brito et alli. Um diálogo Simone de Bauvoir e outras falas. Salvador:
UFBA/NEIM, 2000, 199-217. Este artigo é um extrato de outro texto em construção por esses autores.
21
DUBY, Georges e PERROT, Michelle. História das Mulheres no Ocidente. Porto/São Paulo:
Afrontamento/Brasil, 1990, 7.
22
DOSSE, François. A História em Migalhas. Campinas: Ensaio, 1992.
23
VÉSCIO, Luiz Eugênio e SANTOS, Pedro Brum (Orgs). História e Literatura: perspectivas e
convergências. São Paulo: Edusc, 1999; CHALHOUB, Sidney e PEREIRA, Leonardo Affonso de M.
(Orgs). A História Contada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

631
pois, a escrita da história, ao adotar a leveza literária, estimulou e ampliou o
público leitor do texto historiográfico e se inseriu no mercado editorial, cujo
consumo encontra-se em ascensão.
Entre as fronteiras do histórico e do literário, encontra-se um
profícuo campo de produção de conhecimento a ser, constantemente,
otimizado pelo trabalho conjunto e pelo compartilhamento de ferramentas
analíticas e experiências específicas. A essência do que somos, de quem
fomos dificilmente se expressa na objetividade de relatos pessoais ou de
seus observadores – amplamente traduzida através das representações
imagéticas ou literárias. Ao transcender através da linguagem plástica, ou
fugindo da angustiante pretensão da fiel descrição – dispensável e até
mesmo indesejável no literário –, poderemos tratar a obra como fonte, e
conseguimos ouvir muito mais do que pretenderam nos falar seus autores.
O fazer historiográfico contemporâneo assume feições que
tangenciam as considerações de Barthes sobre o abandono de uma busca
pelo “efeito de realidade” no discurso da História, quando esta rompe com
uma narrativa simplificada e direta que presumia a retratação do real. Nesta
reflexão, o autor ressalta a relação possível entre ficção e História,
destacando a – crescente – preocupação em entender as formas de
apreensão e reprodução discursiva do real, assim como a percepção de que a
estruturação da narrativa (histórica e literária) revela visões de mundo,
aspirações, ideologia e escolhas – seja do autor ou do pesquisador.
Para atingir o alcance histórico do produto literário é importante
refletir sobre a importância do texto e a interação com seu leitor – “quem lê” e
“com que intenção”. Ao considerar a leitura como ato criador e as condições
de leitura como produto de um contexto histórico específico, podemos
entender como as idéias eram (e são) transmitidas por vias impressas, ao
mesmo tempo em que são abertos os caminhos para percebermos como o
contato com a palavra grafada afetou o pensamento e o comportamento da
humanidade.
O confronto de biografias que se gestam distintamente nos
domínios do fazer literário e do fazer historiográfico, transita, mutuamente,
em bases que não se descolam da lógica científica da história, resulta da
constatação e do amadurecimento das abordagens que circunscrevem
ambas as narrativas, as quais recorrendo a materiais e métodos distintos
fazem convergir os dois campos de produção textual para o universo de
produção do conhecimento humano, do conhecimento histórico.
A busca da aproximação interdisciplinar caracteriza o
reconhecimento – quiçá num caminho de retorno, mas nunca em contramão,
pois é necessário articular as diversas instâncias da sociedade na busca pela
explicação do objeto.
632
A literatura dos espaços relativos ao terceiro ou quarto mundo é, antes de
mais, a que equaciona fatos do domínio (ou âmbitos do visível ou
imediatamente verificável). Constrói-se, escreve-se, substitui-se à
história não oficial dos povos que preenchem esses espaços. Porque é
impossível conceber povos sem história e se esta é devorada pelo
silêncio dos arquivos (que não há ou se queimam), dos jornais que não
relatam (ou a censura estrangula), a Literatura tem de fazer-se “história”,
num sentido científico do termo, porque a História não se pode fazer sem
documentos e estes não existem. Daqui, mais uma vez, a necessidade do
sintagma literatura documental.

A interação entre o texto literário e a documentação arquivística,


permitiu o estabelecimento de uma relação de complementaridade que
enuncia um projeto literário (projeto de obra literária, ao menos), cujo fazer
ficcional pretende uma verossimilhança historicamente possível. Possuindo
a liberdade da livre criação, consegue retratar o fenômeno histórico em
movimento, com leveza (e beleza) que causa inveja e admiração aos
profissionais das ciências humanas. Sem mitificar a literatura como espelho
exato do real, convém evidenciá-la como testemunho de seu tempo, pois se
constituem em produtos das relações materiais entre as personagens
visibilizados pelo discurso.
A História da América e com ela a História das Mulheres foi
marcada pela aproximação e muitas vezes superposição do texto histórico
com o texto ficcional. Muitas das crônicas do período colonial tornaram-se
base dos estudos historiográficos, cujas principais alterações ocorreram no
contexto da formação do Estado nacional no século XIX. Essas crônicas são
muito importantes diante das dificuldades de conhecer a realidade da mulher
no período colonial. Esses textos ao tempo que situaram o lugar da mulher
contribuíram, através da lente do imaginário católico, para a afirmação da
imagem de mulher na sociedade colonial.
Como resultados preliminares, apresentaremos uma discussão
sobre as especificidades na escrita histórica e na escrita literária, o que nos
_____________________________________________________________

24
BARTHES, Roland. O Rumor da Língua. São Paulo: Brasiliense, 1988. Especialmente, no capítulo “O
Discurso da História”.
25
Cf. CHARTIER, Roger. Entre Práticas e Representações. Lisboa: Difel, 1986; DARNTON, Robert. O
Beijo de Lamourette. São Paulo: Companhia das Letras, 1990; PRADO, Maria Ligia Coelho. América
Latina no Século XIX: tramas, telas e textos. São Paulo: EDUSP, 1999.
26
DARNTON. Op. Cit.
27
TORRES, Alexandre Pinheiro. “O problema da privação biográfica ou um seu correlativo
(indeterminação de identidade individual e nacional) em “mulatos-tipo” de Castro Soromenho”. In: Actes
du Colloque Les Litteratures africanes de langue portugaise: a la recherche de l'identite individualle et
nacionale. Colloque Les Litteratures africanes de langue portugaise: a la recherche de l'identite
individualle et nacionale. Paris, 28-30/novembre e 1/décembre/1984. Paris: Foundation Calouste
Gulbenkian/Centre Culturel Portugais, 1985, 169-173

633
permite fazer aproximações e distanciamentos e, ainda, realizar uma
discussão teórica sobre o conhecimento produzido pelo historiador e pelo
romancista.
As obras tratam de duas narrativas sobre figuras femininas que
fizeram percursos inversos, a primeira saiu da América e se fixou na Espanha
e, a segunda, saiu da Espanha e se fixou na América. A escolha por mulheres
peruanas, nascidas no Peru ou lá erradicadas (e, por isso, vinculadas à
história desse país), tem um ponto em comum: a mestiçagem. Os estudos
sobre as mulheres e a mestiçagem no Peru encontram uma ampla produção,
visto que a sociedade colonial no Vice-Reino representou o maior contingente
mestiço na América espanhola. As fontes disponíveis e já mapeadas e
trabalhadas, tem assegurado o aprofundamentos dos estudos sobre as
mulheres e a existência de uma bibliografia consolidada motiva o
desenvolvimento de novas pesquisas.
A abertura para novos temas e abordagens, herdadas dos
Annales e ampliadas ao longo do século XX, nos possibilitou o encontro com
as fontes e com elas a identificação com outros sujeitos históricos,
anteriormente silenciados. A partir das décadas de 1960 e 1970, ancorados
nos movimentos feministas, as mulheres passaram a ocupar o espaço central
dos estudos renovados. Entretanto, somente na década de 1980 é que a
História das Mulheres se estabeleceu como campo do saber histórico
consolidado, tendo ainda que enfrentar a oposição das feministas que
desejam que a temática fosse tratada dentro do campo das relações de
Gênero.
A História das Mulheres, por sua vez, ao incorporar na sua
tessitura as discussões sobre Gênero, classe e etnia-raça, aprofundou suas
investigações, buscando os parâmetros sociais que permeiam as relações
nas sociedades. Para a América Latina, acrescentamos o patriarcado como
elemento fundador das relações de Gênero, na medida em que essa
sociedade é marcada pelas orientações da Igreja Católica Ibérica, cuja
expansão ultramarina estava calcada na conquista dos infiéis.
Daí que recorremos à apreciação de Rafael Varón Gabai.
Segundo este autor há duas vertentes de análises sobre a mulher. Gabai
distingue o primeiro grupo que se ocupa da mulher passiva, protegida e
recolhida ao mundo doméstico do segundo grupo que defende a mulher como
pessoa decidida e capaz de gerir ela própria sua vida e seus negócios. Muitas
vezes encontramos essas duas vertentes de forma complementares, sem,
contudo, prejudicar a análise. Entretanto, a dicotomia entre essas duas
vertentes trazem problemas para as análises históricas, especialmente, para
aquelas que tratam das diversas formas de violência contra as mulheres.
Nesse sentido é pertinente trazer para este estudo a presença
marcantemente masculina na conquista e colonização da América Latina,
634
sem perder de vista a presença feminina e os papéis por elas
desempenhados. Nesse contexto, ressalte-se que a bibliografia tem centrado
sua atenção para o masculino, mas, com a ampliação das pesquisas sobre as
mulheres, esse contingente tem se diferenciado e evidenciado nas páginas
da história.
Voltando à questão do espaço reservado à mulher na sociedade,
bastante discutido na historiografia, destacamos que a mulher também se fez
presente no espaço público, embora de forma diferenciada, isto quer dizer
que as suas ações e participações, dentro de uma estrutura social, estavam
mais bem delimitadas que a dos homens, visto que, na sociedade ocidental e
cristã, ao homem estava reservado o espaço público, enquanto às mulheres o
espaço doméstico, da casa.
Maria Ligia Colho Prado identificou uma série de mulheres que de
maneiras diversas se fizeram presente nas guerras de
independência na América. Esse trabalho de mapeamento é muito
importante para evidenciar os vários momentos em que as mulheres
atuaram. E, com isso, abrir as discussões em torno das várias identidades de
mulheres, tirando a exclusividade da ação de grupos sociais particulares ou
situações específicas. Isto tem, ainda, contribuído para a ampliação dos
estudos e gerado outros e novos modelos, visto que a Historia da Mulher
como exemplo único não possibilita a percepção dos sujeitos históricos.
É certo, entretanto, que o movimento pela construção do panteão
das heroínas contribuiu, ainda nos anos de 1960, para a disseminação da
idéia de que as mulheres poderiam desempenhar papéis tão importantes
quanto os homens, inclusive nos cenários de guerra, sem atentar para as
mediações entre o herói-heroína e a sociedade na qual estava inserida.
Em se tratando da História da América Colonial, os registros dos
cronistas já anunciavam a forte presença feminina nas sociedades ali
encontradas e que, mesmo entre os europeus, as mulheres já exerciam
diversas funções no espaço público. Assim é que as mulheres, nas ausências
de maridos, pais, tutores, parentes próximos, assumiram de forma ampla a
administração dos negócios da família, quebrando com o paradigma de que
_____________________________________________________________

28
SÁ, Eliane Garcindo de; AZEVEDO, Francisca. L. Nogueira; MONTEIRO, John. M. Fontes para Estudo
de História da América Espanhola: Descoberta e Conquista. América Raízes e Trajetórias. São Paulo:
EDUSP/EXPRESSÃO E CULTURA, 1996.
29
SANTARO, Ana Cristina de Menezes. “A participação feminina no cenário da conquista peruana”.
www.anphlac.hpg.ig.com; SÁ. Op. Cit., traz as instituições e os fundos documentais onde estão fontes
importantes para o estudo da mulher peruana.
30
SCOTT, Joan. “História das Mulheres”. In: BURKE, Peter (org.) A Escrita da História. São Paulo: UNESP,
1992, 63-95.

635
para elas estava reservada, apenas, a atuação no ambiente doméstico. Além
disso, é notória a participação das mulheres na produção literária e na vida
religiosa, sem contar com o papel desempenhado pela prostituição nas
sociedades patriarcais.
Maria se destacou desde o início nas pesquisas sobre a História
das Mulheres. Nascida em Barranco, é investigadora de história andina com
ampla publicação na área e formadora de uma geração de historiadores
peruanos. É membro de instituições culturais como o Instituto de Estudos
Peruanos (IEP) e da Academia Nacional de História do Peru. Recebeu vários
títulos honorários, dentre elas o de doutor honoris causa da Pontifícia
Universidade Católica do Peru e da Universidade Nacional de Trujillo. É
professora honorária da Universidade Católica de Santa Maria (Arequipa-
Peru). Recebeu o prêmio “Sigillo D´Oro Del Centro Internacional de
Etnohistoria (Palermo-Itália).
Em 1984, no Primeiro Seminário Nacional de Mujer e Historia em
El Peru, apresentou trabalho com o título “La Mujer em La Historia del Peru”.
Os trabalhos posteriores preocuparam-se com o aprofundamento das
pesquisas, destacando-se com sua pesquisa sobre Francisca Pizarro, que
iluminou outros trabalhos sobre essa mesma personagem.
Em 1988 foi publicada a primeira edição de sua obra mais
conhecida Historia Del Tahuantinsuyu, que teve reedições ampliadas,
notabilizando-se como pesquisadora da historia peruana há mais de
quarenta anos, porque discuti as fontes e a historiografia produzida sobre o
Peru pré e colonial. A escrita da sua história e suas preocupações teórico-
metodológicas se reproduz em Francisca Pizarro, cuja preocupação com as
fontes e a bibliografia de apoio se fazem presente com grande freqüência ao
longo do texto em análise.
Isabel Allende é uma escritora consagrada na literatura de língua
espanhola. Nascida em Lima, em 1942, exerceu a profissão de jornalista e
escritora desde muito cedo. Começou a publicar aos17 anos, atingindo o
sucesso em 1982 com a Casa dos Espíritos em um momento em que se dava
a transição para a democracia em vários países latino-americanos.
A personagem feminina é o ponto principal e a espinha dorsal da
obra, o que se justifica por se constituir em uma crônica redigida a partir das
_____________________________________________________________

31
ROIZ, Diogo da Silva. “A Discreta e Sedutora 'História das Mulheres'”. Cadernos PAGU (30), jan-
jun/2008, 445-452.
32
GABAI, Rafale Varón. La ilusión del poder. Apogeo y decadência de los Pizarro em la conquista del Peru.
Lima: IEP, 1997.
33
LACOSTE, Pablo. La carcel y el carcelero de la mujer colonial. Estudos Ibero-Americanos, v. 33,
dez/2007, 7-34.
34
PRADO, Maria Ligia Coelho. Op. Cit.

636
memórias de Inês Suarez. Isabel Allende publicou em 2006, em espanhol, a
obra Inés da Minha Alma, publicada no Brasil dois anos depois, 2008, pela
Bertrand. Allende justificou em sua obra “A soma dos dias” a sua escolha por
Inês e por outras personagens trabalhadas em sua obra. Essa é uma escolha
ancorada numa posição política explicitada no víeis feminista, elemento
freqüente na obra desta autora e que se faz presente em seus outros escritos.
É também uma opção política de trazer para seus leitores questões
polêmicas referentes às questões sociais do seu tempo, a exemplo da
discussão sobre o patriarcado presente em “Meu país inventado”.
DUAS AUTORAS, DUAS OBRAS: mulheres e suas vidas
As autoras latino-americanas estudadas evidenciam um
procedimento narrativo revelador, que ultrapassa os procedimentos literários.
O fazer historiográfico ao se aproximar da literatura busca uma fluidez
palatável ao grande público que, cada vez mais, consome as biografias; de
outra parte, o texto literário nasce da leitura de um documento e, tal qual na
prática da pesquisa histórica, procura ultrapassá-lo pela conjectura
circunstanciada na pesquisa conjuntural. As notas bibliográficas no texto de
Maria foram utilizadas no corpo do texto e apresentadas também no final da
obra. E no texto de Isabel Allende elas foram incorporadas ao final do livro.
Assim, a diferença reside no refinamento de não propor uma
análise histórica, mas travesti-la na criação literária, fazendo um faz de conta,
tecendo um enredo que não é, mas que poderia (ou pode!) ter sido o cotidiano
da personagem retratada. Desta forma a escolha de duas obras – uma
literária e outra histórica – escritas por uma historiadora e por uma escritora,
são as bases para o nosso trabalho.
As obras trabalhadas foram escritas em espanhol, mas só o
romance foi traduzido para o português. As publicações de Isabel Allende em
português no Brasil é uma constante, visto que a maior parte de sua obra
encontra-se publicada em português brasileiro. A obra da historiadora
peruana é amplamente conhecida dos círculos acadêmicos, aparecendo na
bibliografia trabalhada pelos pesquisadores e professores de História da
América no Brasil e seu livro mais conhecido sobre a sociedade inca
encontrou grande aceitação no mercado editorial brasileiro.
As duas obras são biográficas. Esse fato por si só já chama a
atenção por ser essa uma opção corrente na historiografia e na literatura
contemporâneas, onde proliferam as publicações, cujo tema central, a
biografia, encontra um público leitor ávido por conhecer diferentes trajetórias
ditas individuais. A biografia, por outro lado, é uma escrita da história e pode
ser utilizada de forma política para construir uma imagem positiva das
mulheres, pois muitas delas passaram às páginas da história pelo olhar
sexista, desprestigiada e, especialmente, desqualificada. Exemplo clássico
na História da América é Malinche e Carlotta Joaquina, onde aparecem com
637
mais profundidade os contextos em que suas personagens viveram, e suas
autoras conseguiram traçar perfis que as livraram dos estigmas a elas
reservados nas páginas da história, sem, contudo, deixar de explicitar
aqueles elementos próprios de sua personalidade.
As obras em estudo quebram a linha do individual e traçam os
percursos das personagens escolhidas dentro de um coletivo que se constrói
com a contribuição de todos os envolvidos, pois as personagens fazem parte
de um contexto que, se isoladas, perdem o sentido de suas existências. A
escolha pela escrita de uma obra biográfica, onde são observadas as tramas
e teias sociais, enriquecem o biografado e dão a dimensão do objeto em si
mesmo, além é encontrar, mais uma vez, respaldo nos estudos históricos e
literários, recebendo a legitimidade desejada pela (o) autor (a) e pelas (os)
leitoras (es).
A escrita pela pena feminina tem sido objeto de muitas
discussões sobre a produção do conhecimento e as questões de gênero. No
caso em estudo são duas autoras, mulheres forjadas em países distintos,
com ampla experiência com a escrita e pertencente a setores intermediários
das sociedades latino-americanas. Com tais características, a seleção dos
conteúdos trabalhados nas suas respectivas obras buscou ressaltar as
temáticas mais recorrentes dentro da sociedade patriarcal, o papel das
mulheres nessas sociedades e como elas se inserem dentro delas. Nesse
sentido é importante repetir, mais uma vez, os ensinamentos de Michelle
Perrot, quando afirma:
[...] o 'ofício do historiador' é um ofício de homens que escrevem a
história no masculino. Os campos que abordam são os da ação e do poder
masculinos, mesmo quando anexam novos territórios. Econômica, a
história ignora a mulher improdutiva. Social, ela privilegia as classes e
negligencia os sexos. Cultural ou 'mental', ela fala do homem em geral,
tão assexuado quanto a Humanidade.

Ainda que encontremos muitos historiadores contribuindo para a


escrita da história das mulheres, é necessário atentar para as marcas que vão
ficando no caminho, visto que os valores mudam em longa duração e a
história das mulheres não pode ser mais tecida com um viés patriarcal. Com a
abertura do olhar para as fontes, surge uma infinidade de documentos que
contribuem para situar a mulher na história, onde as relações de gênero, raça
e classe e geração sejam incorporadas. Como é exemplo Allende ao traçar a
trajetória de Inés e expos as situações e dificuldades enfrentadas por ela em
suas várias fases da vida.
Allende escolheu Inés porque gosta de personagens femininas
marcantes como já explicitado anteriormente. No caso da narrativa literária
produzida no último século encontramos um leque de publicações sobre os
638
temas mais diversos, mas também, os mais problemáticos, especialmente,
aqueles que não encontravam/encontram espaço na historiografia latino-
americana. Esse é o caso da obra de Isabel Allende, cuja escolha recai por um
período conturbado – a conquista – e um tipo de personagem pouco presente
na história: a mulher.
No texto de Isabel, encontramos dois planos na sua estruturação:
o primeiro, de caráter historiográfico, busca traçar um importante panorama
da sociedade; e outro, ficcional, a escritora utiliza no seu ofício para dar
espaço a criação literária e compor o seu texto, sem se afastar da crônica
histórica que lhe serviu de inspiração.
A historiadora peruana, de outro modo, escolheu uma
personagem significativa, e realiza aí o ofício de historiadora, buscando a
elucidação de suas questões na pesquisa. Chamam-nos a atenção que uma
mestiça de origem peruana e uma espanhola chegada à América passaram a
desempenhar papéis e ocuparem seu tempo com atividades, muitas vezes,
consideradas das mestiças. Inés é uma espanhola despossuída de bens e
Francisca é uma mestiça na América com bens, mas isso não lhe tira o
estigma da mestiçagem. Bem selecionou Maria a definição do ser mestiço
naquele momento em que viveu Francisca, recorrendo a Garcilaso de La
Veja:
A los hijos de español y de índia o de índio y española, nos llaman
mestizos, por dezir que somos mezclados de ambas nasciones; fue
impuesto por los primeros españoles que tuvieron hijos em Indias, y por
ser nombre impuesto por nuestros padres y por su significación, me llamo
yo a boca llena, y me honro com él.”

Essa informação é elucidativa do sub-título do livro Doña


Francisca Pizarro. Uma ilustre mestiza 1534-1598, bem como tem o mesmo
objetivo o “Prólogo a esta edición”, onde Maria faz os acréscimos necessários
às edições anteriores, mesmo apresentando os créditos da primeira edição e
da terceira edição aqui trabalhada. Ela utiliza-se da recomendação de que o
historiador deve informar ao leitor os caminhos percorridos e que foram
complementados na “Introducción”, onde ela discutiu, rapidamente, os
efeitos da conquista no Peru sobre o universo feminino e as mulheres de
forma geral, distinguindo a conquista para homens e mulheres.
Las mujeres, em cambio, tuvieron um contacto más directo y estrecho
com los conquistadores, por ser amantes, esposas, mancebas,
prostitutas o sirvientas; entre las mujeres indígenas y los invasores se

_____________________________________________________________

35
ALLENDE, Isabel. A Soma dos Dias. Rio de Janeiro: Betrand Brasil, 2008.
36
ALLENDE, Isabel. Meu País Inventado. Rio de Janeiro: Betrand Brasil, 2003.
37
ESQUIVEL, Laura. Malinche. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007.

639
estabeleció desde muy temprana fecha uma obligada relación de
dependência. Ellas compartían La vida diária de los hispanos,
cohabitaban com ellos segpun sus diferentes condiciones. La escasez de
mujeres españolas em los rimeros tiempos hizo indispensable para los
varones europeos la presencia de las mujeres andinas.

Da mesma forma, registrou Isabel Allende em Inés de minha


Alma, explicando que partiu de uma fonte histórica “Crônica de dona Inés
Suárez, entregue à igreja dos Dominicanos, para sua conservação e
proteção, por sua filha, dona Isabel de Quiroga, no mês de dezembro do ano
de 1580 de Nosso Senhor , Santiago da Nova Extremadura, Reino do Chile”
para trabalhar a trajetória de sua personagem a partir da literária escrita
dentro de uma realidade possível, como uma forma não científica de
comunicar o documento. Tomando o cuidado necessário ao escritor quando
se insere no mundo do historiador e situando seu ponto de partida e estratégia
para o desenvolvimento da narrativa ela apresenta a chamada “Advertência
Necessária”, onde explica:
Inés Suárez (1507-1580), espanhola, nascida em Plasencia, viajou para o
Novo Mundo em 1537 e participou da conquista do Chile e da fundação da
cidade de Santiago. Teve grande influência política e poder econômico.
As façanhas de Inés Suárez, mencionadas pelos cronistas de sua época,
foram quase esquecidas pelos historiadores durante mais de
quatrocentos anos. Nestas páginas narro os fatos tal como foram
documentados. Limitei-me a alinhavá-los com um exercício mínimo de
imaginação.

Esta é uma obra de intuição, mas qualquer semelhança com fatos e


personagens da conquista do Chile não é casual. Também tomei a
liberdade de modernizar o espanhol do século XVI para evitar o pânico
entre meus possíveis leitores.

Partindo de uma crônica – documento histórico – ela reescreve o


texto de forma a dar uma narrativa literária ao documento histórico e com isso
acrescenta elementos para costurar o texto, mas sem se afastar do real,
conforme consta na “Advertência necessária”. Por não ser um texto
acadêmico Isabel apresenta as referências utilizadas, mas não as apresenta
de forma corrente entre os acadêmicos, por não ser um texto científico. Ela
não apresenta a narrativa, como se estivesse buscando a legitimação no
documento para construção da sua verdade. No caso de Isabel Allende, ela
se segura na figura de Inês e os homens compõem o cenário.
No caso da historiadora Maria, ela trata a personagem em meio
ao texto, tendo em certos momentos a figura de Pizarro se sobrepondo a ela
própria. Para dar maior importância a Francisca Pizarro, encontramos os
anexos como elementos fundamentais para a pesquisa. Pois, com os
640
documentos – “testamento de dona Francisca Pizarro”, rico em
detalhes, a lista das despesas realizadas durante a viagem entre a América e
a Espanha, o “quadro genealógico de La familia Pizarro”, a lista das fontes
trabalhadas e a bibliografia apresentada –, legitima a narrativa e dá
credibilidade ao texto.
Outro elemento importante dessa análise em que se estabelecem
vínculos entre as obras estudadas e suas personagens é o fato de que tanto
Francisca Pizarro e Inéz Suarez tiveram participação econômica na vida
colonial e metropolitana ao deterem, sob suas mãos, a administração de
encomiendas, minas e terras. Mesmo que, em vários momentos, no caso de
Francisca Pizarro, a administração de seus bens estivesse em mãos de
homens a ela vinculados por laço de sangue.
A viuvez foi a forma mais freqüente de tomada da administração
de seus bens em suas mãos. Tanto Francisca quanto Inés tornaram-se viúvas
e, mais para Inés do que para Francisca, a viuvez foi um momento de
expansão da sua inserção e participação na sociedade. Afinal, Inés tirou
vantagem de pertencer a uma classe menos abastada e, com isso, menos
comprometida com o padrão de mulher vigente, podendo aproveitar as
benesses que a viuvez lhe daria, como exercer sua liberdade e tocar sua
própria vida sem a tutela de um novo marido ou tutor.
As duas obras são ilustradas, Allende optou por utilizar as
ilustrações da edição publicada em 1852, na edição de La Araucana,
publicada em Madri, nas edições Gaspar y Roig. A cada abertura de capítulo
foi apresentada uma ilustração. O uso do material histórico indica uma
preocupação com a aproximação da narrativa literária com a histórica. Já
Maria, utilizou-se, para ilustrar sua obra, das reproduções de pinturas de
época, de fotografias de construções que fazem referência ao seu objeto de
estudo, essas últimas cedidas por seus autores, Chuty e Rafael Váron. Uma
fotografia de uma escultura representa a Francisca Pizarro. A historiadora fez
uma descrição de onde se encontra tal escultura, numa preocupação em
situar, com precisão, as referências de tais ilustrações. No caso das fontes,
Maria as trabalhou no corpo do texto, enriquecendo a pesquisa com a coleta e
sistematização das informações contidas em documentos dispersos,
localizados em arquivos e biblioteca na Espanha e no Peru. A dispersão da
documentação nos indica a preocupação em se aproximar do objeto e ao
mesmo tempo reflete a experiência da pesquisadora peruana.
No caso de Inés Suares sua trajetória traz momentos em que era
impossível de ser compreendida pela historiografia tradicional como são as
guerras. A visão construída em torno dessas mulheres, principalmente,
através de biografias espalhadas por toda a América Latina, reforçou a
_____________________________________________________________

37
AZEVEDO, Francisca L. Nogueira. Calota Joaquina na Corte do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003.
39
PERROT, Michelle. Os Excluídos da História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

641
imagem tradicional, consolidada no imaginário coletivo através de
representações de uma mulher devota, que reagiu em defesa da pátria, que
apoiava causas caridosas. Essa visão se justifica com a preocupação em
disseminar valores e dificultar o rompimento deles, como é o caso da inserção
das mulheres nas forças em armas. Na historiografia tradicional, a mulher
soldado na conquista da América ou não existia ou era um caso isolado,
apenas, recentemente, se tornou um elemento importante nos campos de
batalha. Aqui não discutiremos de que lado estava Inés Suarez no momento
em que assumiu esse papel, mas que ela se incorporou a um projeto político
“masculino”, defendeu esse projeto e, como mulher, liderou ações
impossíveis de serem consideradas da competência feminina.
A presença da cultura indígena é marca da obra de Isabel Allende:
Inés é acompanhada de Catalina, uma índia quéchua, cujas práticas culturais
estão presentes durante toda sua existência, pois “los vencidos conservaron
sus crenças a ultranza em um intenso proceso de resistência indígena que
repercutió profundamente em nuestra historia y em La construcción de una
identidad nacional”. Outrossim, Maria se preocupa mais com os
distanciamentos entre a herdeira Pizarro das suas raízes mestiças.
Nesse sentido Sara Guardia continua a explicitar o papel
desempenhado pela mulher da elite inca e suas relações com os
conquistadores, pois refletem para além “de su dimensión humana y cultural,
reflejan la articulacíon y negociación de estas alianzas políticas em el âmbito
público y privado, al convertirse em sus esposas, concubinas, y madres de los
primeiros mestizos compartiendo vida y patrimonio”. Da mesma forma que
Francisca Pizarro era filha de uma inca com o conquistador e este fato lhes
rendeu prestígio e apoio, as teias de solidariedade tecidas entre Inés Suarez
e os indígenas que estavam ao seu redor lhe proporcionou conhecimento e a
auxiliou nas estratégias de sobrevivência no Novo Mundo.
Para Francisca Pizarro a viagem teve significados diversos e a
depender do interesse do pesquisador é nesse ponto que temos uma grande
riqueza de informações na documentação e suas possibilidades de
elucidação das questões. O risco da viagem entre a Europa e a América foi
uma escolha nas duas narrativas, pois ambas discutiram a distância
percorrida e o desconforto da viagem, além dos custos. No caso de Francisca
Pizarro, o custo de seu deslocamento motivou uma querela sobre os gastos
despendidos, como também serviu de objeto de pesquisa específica. Já a
viagem de Inês Suarez, esta se apresentou como espaço de afirmação do
seu papel de mulher, cujas viabilidades – domésticas e no exercício das
curas, contribuíram para a construção de um perfil de mulher decidida, em
busca de um objetivo e nesse percurso não permitira qualquer pedra no
_____________________________________________________________

40
A Sobre as discussões as narrativas na História ver: BURKE, Peter. A história dos acontecimentos e o
renascimento da narrativa In: BURKE, Peter. A escrita da história. São Paulo: Editora da UNESP, 1992. P.
327-348.
41
LA VEGA, Garcilaso de. Comentarios Reales de los Incas. México: Fundo de Cultura Econômica, 1995.
42
ROSTWOROWSKI, Maria. Op. Cit., 15
642
caminho.
Pela árvore genealógica, Maria começou a obra a partir dos
parentes pela linha familiar materna de Francisca, o que a remeteu aos
últimos tempos do império inca. O caminho pelo mundo inca demonstrou os
vínculos que foram estabelecidos entre os conquistadores e os incas, as
atitudes dos conquistadores na execução dos nativos, sem deixar, entretanto,
de chamar a atenção para os papeis desempenhados pelas mulheres e a sua
participação nas tramas.
A partir do sexto capítulo, Maria retomou as concessões de
encomiendas a dona Francisca e a morte de Pizarro e seu irmão Fruceto, bem
como a preocupação em casar Francisca com onze anos. Como única
herdeira dos Pizarro, com a morte de seu irmão, Francisca se viu rica. A partir
da contextualização histórica Maria deu inicio ao estudo do primeiro
testamento de dona Francisca. Nesse contexto, Maria destacou a
recomendação do Conselho das Índias em transferir os herdeiros Pizarro
para a Espanha.
O primeiro testamento foi datado de 12 de março de 1551, às
vésperas da viagem para a Espanha, detalhando os riscos da viagem e os
problemas com os tutores que gastaram parte dos recursos financeiros. Além
da sua chegada à Espanha, acompanhou os caminhos percorridos por
Francisca. Maria buscou trocar o perfil de Hermando Pizarro, seu tio e futuro
esposo, pois o prestigio de Hermando estava relacionado as suas ações na
conquista inca, enfrentando seu desejo por amealhar fortuna e como se havia
indisposto com a Coroa. Neste estudo interessa a solução encaminhada por
ele para afastar Isabel de Mercado de sua companhia e levar adiante seus
planos de casar-se com Francisca Pizarro.
Maria chama a atenção, ainda, para a expectativa de Francisca
em relação a Espanha. Tal expectativa está vinculada à educação recebida
sob a batuta de Inês Munoz e uma referência à herança paterna. Pois, mesmo
mestiça, Francisca era filha do conquistador do Peru. Diferentemente de sua
tia Inês Munoz, Francisca foi caracterizada no testamento de Hernando como
uma mulher submissa e silenciosa, mas a recomendação para que não se
casasse não foi atendida, visto que Francisca realizou o segundo matrimônio,
dentre outras vontades expressas. Dos cinco filhos – três homens e duas
mulheres, dois deles não chegaram a fase adulta, morrendo ainda na
infância.
_____________________________________________________________

43
ALLENDE, Isabel. Inés da Minha Alma. Op. Cit., 4.
44
A legislação espanhola era muito rigorosa com a condição jurídica das mulheres. Por isso, a viuvez se
tornou uma condição importante para a liberação das mulheres de certas obrigações anteriormente
estabelecidas. Sobre essa legislação ver: CAPDEQUI, José Maria. OTIS: Instituições. In. BERETTA,
Antonio Blallesteros y (Dir.) História de América y de los Pueblos Americanos. Barcelona: SALVAT, 1959.

643
O destino conventual se fez presente para várias mulheres
independente do requisito de pureza. A manutenção de mulheres por toda a
existência foi uma constante nas sociedades ibéricas e latino-americanas.
Era um destino para mulheres viúvas, jovens sem proteção e, como nos dois
casos protagonizados pelos Pizarro, solução para relacionamentos pouco
recomendáveis para a sociedade de então.
A linha de desenvolvimento segue a cronologia linear, mas como
recurso da narrativa se permite o retorno ou avanço no relato dos fatos. Nesse
sentido, Maria acompanhou a vida dos descendentes de Francisca e
Hernando. Seus filhos aparecem nas esculturas com o casal. Dois, desses
filhos, aparecem ainda, nas fotografias dos edifícios em Trujillo, que fazem
referência aos Pizarro. Francisca Pizarro é uma mulher preocupada com a
sobrevivência material da prole, inclusive com o dote das filhas. O segundo
matrimônio, um desastre financeiro, foi posterior ao casamento do seu último
filho. Francisca herdou, após a morte do seu filho Francisco, enorme legado
que não conseguiu gastar. Sua morte, logo em seguida, obrigou sua biógrafa
a continuar a história a partir dos seus descendentes, da mesma forma que
deu início a sua obra a partir da ascendência inca de dona Francisca.
A historiadora surpreende no Capítulo 15 ao buscar uma
comparação entre dona Francisca e Garcilaso de La Veja. Tal exercício segue
a linha da descendência mestiça onde o pai é espanhol e a mãe índia, mas
com trajetórias diversas “no solo por pertenecer a sexos distintos sino por lãs
circunstancias que rodearon su crianza”. Aqui foi tomada para análise a
questão do Gênero como espelho, pois neste capítulo Maria evidencia que o
homem americano não se acultura, permanece ao lado da mãe índia e com
ela convive com os costumes incas, enquanto que para a mulher ocorria o
contrário.
No caso de Inés Suarez, como uma mulher nascida na Espanha,
sua trajetória se constrói no sentido oposto ao de dona Francisca, pois ela se
desloca da Espanha em direção a América e se afasta de seus objetivos, pois
pretendia encontrar o marido que partira em busca das riquezas do Novo
Mundo. Já dona Francisca encontrou seus maridos na Espanha. Todavia
ambas trazem sob suas cabeças muitos elementos em comum,
especialmente, os padrões e efeitos do catolicismo sobre suas vidas.
Inês Suarez mesmo com seus diversos momentos de recusa ao
padrão de mulher estabelecido manteve comportamentos e práticas
condizentes com a sociedade que a forjou, mesmo longe da Europa, distante
_____________________________________________________________

45
Para as guerras de independência em todo o território latino-americano, foram identificadas mulheres
que tiveram ampla participação nesse processo. Da mesma forma, para a Guerra do Paraguai há uma
produção significativa sobre as mulheres presentes nos vários lados envolvidos no conflito.
46
GUARDIA, Sara Beatriz. “Mujeres de la Elite Incaica em el Drama de la Conquista: la mestiza Francisca
Pizarro y su viaje a España”. (1534-1598). Labrys Études Feminita. Jan/jun, 2007, 1.
47
GUARDIA. Op. Cit., 1-2.

644
de sua gente e ela própria uma desconhecida daquele Novo Mundo. Para dar
início a sua narrativa, Inés Suarez se situou no tempo e no espaço de onde
falava. Era uma mulher idosa que escrevera grande parte de sua crônica, mas
que naquele momento necessitava do auxílio para completar sua obra.
Do casamento com Juan de Malaga, seu primeiro marido, Inês
relata o muito que trabalhou e o aprendizado nas coisas do corpo e do prazer.
Das habilidades manuais e dos quitutes que sabia preparar e o quanto isso
lhe foi útil na sobrevivência, tanto na travessia do mar tenebroso quanto da
vida que enfrentou em seguida. Dessas habilidades também ganhou o
respeito de homens que lhe defenderam e daqueles que conquistaram o seu
amor.
Já na América, a sua acompanhante, a índia quéchua Catalina
percorreu boa parte de sua trajetória, pois só a morte conseguiu afastá-las.
Eram eram cúmplices e parceiras nas ações que desenvolveram. Não
chegou a ser denunciada à Inquisição por práticas condenáveis, mas Inês e
Catalina faziam uso das diversas práticas de cura advindas da medicina
quéchua, bem como Catalina realizava seus ritos sem que fosse recriminada
por sua senhora, dentro de um pacto de ajuda mútua e
solidariedade entre mulheres. E, mais, Inês Suarez cometeu um crime em
defesa de sua honra. Tal fato, ancorado na neutralidade da expansão
ultramarina foi compreendido e aceito pelo comandante da embarcação que
trouxera Inês à América. Sem o corpo e sem o crime, Inês continuou sua
procura pelo marido, sem esquecer que tirara a vida do seu agressor.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Allende parte do documento, mas extrapola para criar o cenário
possível que não, necessariamente, precisa ser provado. Maria dialoga o
tempo todo com o documento, se preocupando em não extrapolar o
documento, como ato criador, ficcional. Passagens semelhantes entre um e
outro texto – mostrar como apresenta uma situação sem precisar do
documento, usando estratégias diferentes na construção do conhecimento.
Os comportamentos apresentados das duas mulheres nos
ajudam a buscar semelhanças ou disparidades nas formas de lidar com a
sociedade e com os padrões estabelecidos. São elas personagens
contemporâneas no tempo, mas o local que ocuparam na sociedade motivou
ou não atitudes que as ajudaram a experienciar situações das mais diversas.
As duas obras permitiram discutir questões de relação e valores
de gênero, etnia-raça, classe e geração de forma a perceber numa trajetória
de vida feminina. E da mesma forma, os acontecimentos que marcaram suas
rotas e as desviaram dos caminhos socialmente estabelecidos.

_____________________________________________________________

48
ROSTWOROWSKI, Maria. Op. Cit., 81.
49
Universidade Federal do Tocatins - UFT
645
ENTRE A MEMÓRIA E A LIBERDADE: Conceição Evaristo e Ezilda Barreto
no combate ao racismo
Ana Maria Coutinho de Sales
No prefácio do livro de Conceição Evaristo, Becos da memória
(Mazza, 2006), Maria Nazareth S. Fonseca destaca a relevância histórica de
romper o silêncio das vozes marginalizadas que ao serem reproduzidas pelo
traço da escrita, provocam ruídos na transmissão oficial dos acontecimentos
ou na forma como o social é construído. No caso específico do silêncio
imposto às mulheres negras, podemos constatar como são esquecidas em
lugares de pouca visibilidade, inclusive na literatura, pois raramente ocupam
o lugar de protagonistas principais nos romances. Um dos objetivos
fundamentais da literatura Afro-brasileira é a afirmação e a reabilitação da
identidade cultural, da personalidade própria dos povos negros.
Nessa direção, analisando uma parte da produção literária das
escritoras da Paraíba do começo do século XX, constatei como determinados
textos são fontes significativas para rever e construir novas interpretações
sobre a visibilidade da população afro-descendente, em particular a
relevância da mulher negra na formação cultural da sociedade brasileira. O
nosso trabalho está fundamentado nas teorias dos estudos culturais,
articulando as categorias de gênero, raça, etnia e classe social, tomando-se
como referencial básico, entre outros, autores como Frantz Fanon, Homi
Bhabha, Edward W. Said, Michelle Perrot, que nos vêm ajudando a
compreender, analisar e perceber a relevância social de pesquisas sobre a
problemática dos efeitos negativos do racismo, como nos ensina Maria
Aparecida Andrade Salgueiro (2004), que combater o racismo é uma forma
de lutar por um futuro mais justo, fraterno, solidário e coerente para a
humanidade.
Neste artigo analiso brevemente alguns fragmentos das
produções literárias de Conceição Evaristo e Ezilda Barreto, evidenciando no
processo escritural dessas autoras, a forma de unir a narrativa insubmissa à
ação política de promoção da igualdade racial, confirmando que a Literatura
Afro-Brasileira é um local para o exercício de liberdade e do cuidado com a
dignidade de todas as pessoas, em particular da população afro-
descendente. Vale ressaltar que a emergência de uma Literatura Afro-
Brasileira de autoria feminina, instiga a produção de novas pesquisas através
de perspectiva comparatista. No caso deste artigo, a escolha dos nomes de
Conceição Evaristo e Ezilda Barreto ocorreu em função de que suas obras
problematizam as questões de gênero, raça e etnia. A análise dos textos
selecionados segue numa perspectiva interdisciplinar.
_____________________________________________________________

51
UFPB

647
A socialização desses romances ganha relevância no contexto
das ações afirmativas e da Lei No. 11.645/08, que reconhece a necessidade
de promover-se a valorização histórica das populações afro-descendentes e
indígenas. Nesse contexto é pertinente dar visibilidade à mulher negra na
literatura, considerando que essa representação não revela uma verdade
única, mas abre um leque de possibilidades para nos fazer pensar sobre a
relevância de analisar obras produzidas por mulheres de diferentes regiões
do Brasil e de diferentes períodos históricos. Sabemos que analisar
criticamente textos de autoras vivas é uma atividade desafiadora. Neste
sentido, trabalhamos com os romances de Conceição Evaristo, que nasceu
em Minas Gerais, e com o romance de Ezilda Barreto, que nasceu na Paraíba
no final do século XIX. Mulheres de tempos e lugares diferentes, mas que
usam as palavras como armas na luta contra a violência, a injustiça, a miséria,
a escravidão e os efeitos nefastos do racismo.
Assim, romances e outros textos literários podem contribuir para
desenvolver um olhar que sirva para reler o passado e ultrapassar antigas
visões estereotipadas da população afro-descendente. Além disso, o olhar
sobre duas autoras até hoje não estudadas em conjunto, na perspectiva de
gênero, raça e etnia, também constitui uma contribuição para
confirmar a dimensão pedagógica do diálogo entre literatura e história como
um meio facilitador para a irradiação de novas imagens da mulher negra,
quebrando as algemas das discriminações raciais e produzindo novos
conhecimentos. Neste ponto a universidade brasileira tem, entre outras
tarefas, o compromisso de produzir pesquisas que possam colaborar para
combater toda forma de preconceito social, sobretudo a discriminação racial.
Como sabemos o racismo, entre outros fatores, é fruto dos anos de
colonialismo e de um dos maiores crimes cometidos contra a humanidade
que foi a escravidão, responsável pelo extermínio físico, psicológico e
simbólico de povos indígenas e dos negros africanos e seus descendentes.
Decorre daí a relevância da emergência de uma literatura Afro-
brasileira que rompe o silêncio da população afro-descendente, em particular
da mulher negra que ficou durante muito tempo no porão da história. Esta é a
razão pela qual escolhemos como objeto de pesquisa os romances de
Conceição Evaristo, de Minas Gerais, e de Ezilda Barreto, da Paraíba. São
autoras que trabalham com memórias de mulheres negras. Como sugere
Nazareth Fonseca (2006), essas narrativas revolvem os conflitos provocados
pelo afloramento das “memórias subterrâneas” ao palco da história que as
sonega. Decorre daí a função social das narrativas das romancistas
selecionadas neste artigo, pois salvam do esquecimento, como adverte a
historiadora Margareth Rago, as histórias de vida mergulhadas na pobreza
extrema e no abandono. Ezillda Barreto e Conceição Evaristo, fazendo-se
sujeitos participantes, assumem narrar as histórias dos lugares degradados
como uma forma de luta contra o racismo e a miséria, revelando assim a
648
dimensão política da escrita ao retratar as vidas dos que lutam por sobreviver
em condições extremamente desumanas.
A analogia entre Nos Arcanos do Império, de Ezilda Barreto, e
Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo é surpreendente. Quem lê, logo
identifica a semelhança de processo: o espaço de fala que é destinado à
população escravizada, especificamente a mulher negra. Nesses romances
entram em cena personagens femininas afro-descendentes, com traços de
muita inteligência, coragem, força, sensibilidade, insubmissão, resistência,
enfim, mulheres negras que assumem o lugar de sujeitos históricos, lutando
para conquistar a liberdade tão desejada. Podemos perceber, claramente, a
identificação das narradoras com a população marginalizada, fazendo da
palavra um meio para superar a opressão.
EZILDA BARRETO: uma romancista da Paraíba no combate ao racismo
Ezilda Milanez nasceu a 29 de fevereiro de 1898, em Guarabira,
na Paraíba. Desde menina sonhava em ser escritora. Após a conclusão do
Curso Normal foi morar na cidade de Areia, na região do brejo da Paraíba,
onde viveu até o seu falecimento aos 88 anos de idade. Era também jornalista
e professora. Escrevia com freqüência para o jornal O Areiense. Tornou-se
uma figura emblemática da cidade pela sua luta em favor da população
marginalizada. Provavelmente, decorre daí, a sua preocupação literária com
a história das mulheres e da população afro-descendente, alinhando-se na
direção inaugurada pela maranhense Maria Firmina dos Reis, autora do livro
Úrsula, publicado em 1859, o primeiro romance histórico afro-brasileiro de
autoria feminina.
Nos Arcanos do Império foi escrito desde o começo do século XX,
mas diante de inúmeras dificuldades só foi publicado em 1981. A
encadernação em tons salmonado e marrom apresenta na capa uma
fotografia em preto e branco de uma Ama de Leite embalando uma criança
branca. Apesar da sua condição social ser desfavorecida, entretanto o seu
corpo retrata a elegância de uma rainha. Essa linguagem corporal pode ser
interpretada como uma forma de não se curvar diante do autoritarismo
imposto pelo modo de produção escravista do Brasil. Assim, a atitude política
da escritora de escolher o retrato de uma Mãe Preta para ilustrar a capa do
seu romance, ajuda a recompor a memória coletiva das mulheres
escravizadas, rompendo o silêncio histórico dessa população.
A narradora inicia o primeiro capítulo do romance Nos Arcanos do
Império utilizando a imagem de um castelo abandonado como metáfora para
criticar o sistema escravagista, o abandono e o desamparo em particular das
mulheres escravizadas. O antropomorfismo do castelo faz lembrar que a
estética nasceu como discurso do corpo. A vivência da penúria afina alguns
instrumentos narrativos para expor as vidas subterrâneas, centradas na
carência secular de melhores condições de vida para a população negra. O
649
romance recompõe as experiências de pessoas expostas à dura pobreza,
que, contudo não arrefece o desejo de continuar vivendo e lutando por
melhores dias. No universo de vidas tão sofridas e de histórias construídas de
migalhas, os efeitos negativos da fome e da violência minam o corpo de
sofrimento, abandono e de doenças. Vale ressaltar que o corpo é na
atualidade uma das categorias centrais nos debates feministas. Na
perspectiva das relações de gênero, raça e etnia fica evidente como no texto
de Ezilda Barreto o corpo da mulher escravizada é moldado por formas de
poder, sofrendo os impactos da violência e do abandono:
O castelo de Moran está mergulhado nas trevas. Há muitas horas
que os lampiões de sua grande fachada e os candelabros dos seus salões
fecharam-se dentro da noite para uma noite também.
O seu corpazil negro, lodoso, de torres desguarnecidas, recebe a
luz difusa das ruas mais próximas, como a coroá-lo de cuidados, como
apresentá-lo, na noite imensa, aos notívagos na sua grandeza antiga, nas
lendas que o cercam, no desprezo de seu dono que o abandonara à mercê do
tempo, sem nenhum reparo a limpeza, sem luz permanente, por dentro ou por
fora, como se desejasse que ele fosse enterrado nos próprios escombros de
um passado de grande glória ou desgraça também.
Era o que se deduzia desse aspecto doloroso de corpo retalhado
de fendas e roupagens esfrangalhadas (BARRETO, 1981, p. 7).
No livro A poética do espaço, Bachelard (2003) nos ensina que, a
casa tem a dimensão simbólica do abrigo, proteção, ninho de lembranças e
de integração dos sonhos, fator de integração do indivíduo. Desse modo, fica
explícito que a descrição do castelo é uma metáfora da condição social da
mulher negra. A sua grandeza antiga é uma referência à liberdade que havia
na África. E, na lendas que o cercam, abre espaço para servir como meio
facilitador para desconstruir os estereótipos racistas das lendas que ainda
hoje cercam a população afro-descendente. Observamos que o castelo de
Moran representa o abrigo, segurança. Assim, tal castelo sem nenhum reparo
denuncia o descuido absoluto da sociedade em relação à população negra
depois da abolição da escravatura, a falta de cidadania e dos direitos
humanos.
De outra parte a narradora ainda utilizando o castelo como
metáfora do corpo da população afor-descendente, denuncia que diante de
tanta violência muitos homens e mulheres escravizados fugiam ou até
mesmo preferiam morrer, como é possível constatar no texto abaixo:
Minha avó costumava adormecer os netos com esta história. O
castelo Negro, situado na província de Beira [...] sua dona há muito
desaparecera [...] Uns diziam que ela se suicidara e outros que emigrara para
alguma terra distante (BARRETO, 1981, p. 37).
650
Como podemos observar a escravidão espalhou vários
preconceitos a respeito da África. Como nada é por acaso num romance,
através dessa narrativa a autora intenta socializar outra imagem da Mãe
Preta, valorizando a mulher negra escravizada na função pedagógica de
contadora de história, ressignificando-a como personagem importante da
nossa literatura infanto-juvenil. E mais adiante a narradora entrelaça os fios
da ficção com os fios da história, denunciando que muitas pessoas negras
não suportavam os diversos tipos de violência, adoeciam e até chegavam a
falecer. Muitas pessoas escravizadas desapareciam, uns morriam de
“banzo”, que é um tipo de saudade da África que provoca uma tristeza
intensa. E nas palavras da Mãe Preta, mais uma vez a utilização do castelo
como metáfora para o corpo de uma mulher africana, destacando a condição
diaspórica vivida pela dona do castelo cujo destino foi o suicídio ou uma
viagem para algum a terra distante, que provavelmente é a África, de onde foi
arrastada. Esse trecho além de reler um fragmento da história de nossas
ancestrais na áfrica, faz uma intertextualidade com o capítulo nove do
romance Úrsula, de Maria Firmino dos Reis, narrando o aprisionamento de
mãe Suzana no dia em que foi seqüestrada da África dos nossos ancestrais.
Fica evidente a crítica que Ezilda Barreto faz ao sistema
escravagista a exemplo do diálogo entre o General Otto e sua filha Rose:
“- Quem são aquelas famílias que habitam o porão?”

Otto estranhou aquela pergunta tão inusitada, fora dos assuntos do dia,
mas respondeu calmamente:

“-São escravos fugitivos de algumas fazendas.”


- Escravos?! Disse a filha, horrorizada pelo que ouvira. Nunca pensara
que o pai escondesse essa gente em sua própria casa.

- Sim. Escravos, filha, são criaturas, como nós, massacrados por pessoas
desalmadas, `a procura de proteção. De modo que está havendo, em todo
o país, um movimento pacífico para a libertação dos mesmos. Nosso
Imperador ainda não se pronunciou a respeito. Grande parte do Exército
já se manifestou a favor dos oprimidos (BARRETO, 1981, p. 63).

O romance Nos Arcanos do Império busca reverter, no espaço da


ficção, os papéis sociais do ponto de vista predominantemente das relações
de gênero, raça, etnia e relações interpessoais entre os negros e os brancos.
A crítica literária feminista Ívia Alves (2001), observa que, a voz feminina
procura deslocar a idealização da mulher, feita pela voz masculina, para as
subjetividades de suas personagens, construindo, assim, personagens
masculinos com traços femininos a exemplo do General Otto, um homem
bondoso, compreensivo, sensível e solidário para com a Abolição da
Escravatura. A narradora subverte a ordem social estabelecida e torna um
homem branco, representante do sistema patriarcal e da classe dominante,
651
um aliado das pessoas escravizadas, como grande parte do próprio Exército
solidário para com os oprimidos.
O corpo emerge, nos últimos anos, como uma das categorias
relevantes não paenas da crítica feminista, mas também nos Estudos
Culturais sendo considerado central na reprodução e transformação da
cultura, lócus através do qual interagem e no qual se inscrevem as estruturas
de gênero, raça, etnia e classe social. Tal visão permite evidenciar que os
corpos adquirem capacidade de ação e de resistência. A partir das relações
entre identidade de gênero, raça e etnia, é possível debater sobre corpos,
violência interpessoal e coletiva. Esta análise indica, num breve esboço,
algumas das características principais da história recebida que herdamos na
nossa concepção atual dos corpos, chamando a atenção para o fato de que
se a teoria feminista aceita acriticamente essas suposições comuns, Ela
participa da desvalorização social do corpo que anda de mãos dadas com a
opressão e o silêncio das mulheres negras (GROSZ, 2000, p. 45).
Torna-se pertinente lembrar aqui as palavras do crítico literário
Lourival Holanda (1992), advertindo que reduzir uma pessoa ao silêncio é
uma forma de matá-la. Porque a palavra é o espaço para superar a opressão
do silêncio. A exploração da mulher negra tem seu esteio no arrancar-lhe a
palavra: emudecê-la é reduzi-la a nada, facilitar o mando – impedindo-lhe
dizer a palavra que forja a possibilidade de sonhar outro destino, diverso da
escravidão. Calar a voz autêntica da mulher negra e impor a alheia é o
processo básico da aculturação. Nulifica-se e repete o padrão fundamental
da pedagogia do desastre que alicerçou todo o processo de colonização do
nosso País.
A identidade feminina é singular e socialmente construída num
determinado corpo, tempo e espaço. A luta de Ezilda Barreto contra o racismo
pode ser confirmada em diversas passagens do romance, a exemplo da
reclamação da sinhazinha Rose, perturbada com a presença de pessoas
escravizadas no castelo: “Há muito que o castelo se transformara numa
senzala (BARRETO, 1981, p. 11).
E mais adiante uma crítica ao sistema de escravidão:
Esta fortaleza lembra tragédias e crimes (BARRETO, 1981, p.
36).
A vida tem desses caprichos: uns com tanto, outros com tão pouco. (...)
Paulina e Jeremias trocavam algumas palavras e risinhos discretos. Mal
entendidos ainda na Casa Grande, amavam-se. Eram almas irmãs,
vindas do berço comum da senzala, onde se bebia o mesmo leite e falava-
se a mesma língua! (...). Eram felizes, mesmo assim, de vassoura na mão,
pés nus, a espanar o pó do passado para a imposição do presente
(BARRETO, 1981, p. 41).

652
E trechos denunciando a violência e o sofrimento d apopulação
escravizada são inúmeros, como podemos verificar:
Esta casa ainda está cheia das recordações do meu sofrimento.
Meu sangue e minhas lágrimas ainda vivem por aqui como uma maldição. Os
gritos de dor dos escravos, no tronco, ainda ecoam nos meus ouvidos dentro
da casa (BARRETO, 1981, p. 96).
Abandonaram o castelo no dia 13 de maio de 1888, data marcada
para a assinatura da Lei Áurea (BARRETO, 1981, p. 98).
Riam, choravam e gritavam: “Não somos mais escravos!”
Entretanto, ainda traziam consigo os ressaibos da vida passada, a marca dos
arrochos das correntes na pele escura e o sangue a gritar, com a vibração
saída de bocas e dos seus corpos em movimentos atávicos ou ondulações
hipnóticas (BARRETO, 191, p. 99).
Os foguetões estouravam, os sinos tocavam, cantava-se e
dançava-se, alguns caíam com ataques de histeria. As dilig6encias não
paravam, levando doentes, embriagados e agressores, que tentavam
apedrejar algumas resid6encias onde os escravizados eram massacrados, e
até mortos pelo patrão (BARRETO, 1981, p. 100).
Somos todos livres, João. Eu também fui à escrava branca e rica,
hoje, como você, sinto o que voc6es sentem: o entusiasmo deste espetáculo
tão maravilhoso que irmana uma humanidade inteira num só pensamento: a
Liberdade (BARRETO, 1981, p. 101).
Todos traziam consigo “[...] correntes de flores e faixas, a
ornamentarem o corpo das criaturas que deixaram atrás de si a relho, a
corrente, o trabalho forçado e outras atrocidades que não convém relatar,
porque ofuscaria o valor deles no trabalho do crescimento da nossa Pátria!”
(BARRETO, 1981, p. 113).
Como podemos constatar nos diversos fragmentos acima
destacados, Nos Arcanos do Império afloram as recordações. O tempo
presente liga-se a um passado distante da África. É interessante analisar
como este mesmo fenômeno também ocorre no romance Ponciá Vicêncio de
Conceição Evaristo, que utiliza as palavras para cicatrizar as feridas da
memória das mulheres negras.
CONCEIÇÃO EVARISTO: uma romancista curando com palavras as feridas
da memória Maria da Conceição Evaristo de Brito nasceu em Belo Horizonte,
Minas Gerais, em 1946. É a segunda filha de uma família de nove irmãos. A
mãe, Joana Josefina Evaristo Vitorino; a tia, hoje falecida, Maria Filomena da
Silva, assim como outros membros da família, transmitiram a Conceição
Evaristo o gosto pelo “contar e ouvir histórias”. Da experiência em que tudo,
do maior ao menos acontecimento, se transformava em uma narrativa,
vislumbrou para Conceição Evaristo, desde cedo, a necessidade da escrita.
653
Em 1973, depois de ter concluído, em 1971, o antigo Curso
Normal pelo Instituto de educação de Minas Gerais, parte para a cidade do
Rio de Janeiro em busca de trabalho, faz concurso e começa a trabalhar no
magistério público. Continua seus estudos se formando em Letras
(Português – Literatura) pela UFRJ. É Mestre em Literatura Brasileira pel
PUC/RJ e Doutoranda em Literatura Comparada na UFF. Esteve como
palestrante, em 1996, nas cidades de Viena e de Salzburgo/Áustria e, em
2000, Mayagüez, Porto Rico, falando sobre literatura afro-brasileira.
Publicando sempre em antologias, seus primeiros trabalhos surgem, em
1990, na coletânea Cadernos Negros, do Grupo Quilombhoje de São Paulo. A
partir de então, anualmente, a série Cadernos tem sido o principal veículo de
socialização de sua produção literária. Para este artigo destacamos alguns
fragmentos de dois romances: Ponciá Vicêncio, de 2003 e Becos da
memória, de 2006, ambos publicados pela Mazza Edições, de Belo
Horizonte.
O romance Ponciá Vicêncio conta a história da protagonista com
o mesmo nome, sinaliza os seus caminhos, andanças, sonhos e
desencantos. A romancista traça o itinerário da personagem da infância à
idade adulta, destacando seus amores e desafetos, sua trama com a família e
com, os amigos. Um ponto relevante é a questão da identidade de Ponciá,
como podemos conferir nos seguintes trechos:
O tempo passava, a menina crescia e não se acostumava com o próprio
nome. Continuava achando o nome vazio, distante. Quando aprendeu a
ler e a escrever, foi pior ainda, ao descobrir o acento agudo de Ponciá. Às
vezes, num exercício de autoflagelo ficava a copiar o nome e a repeti-lo,
na tentativa de se achar, de encontrar o seu eco. E era tão doloroso
quando grafava o acento. Era como se estivesse lançando sobre si
mesma uma lâmina afiada a torturar-lhe o corpo (EVARISTO, 2003: p. 27).

Quando Ponciá Vicêncio resolveu sair do povoado onde nascera, a


decisào chegou forte e repentina. Estava cansada de tudo ali. De
trabalhar com o barro da mãe, de ir e vir às terras dos brancos e voltar de
mãos vazias. De ver a terra dos brancos coberta de plantações, cuidados
pelas mulheres e crianças. (...) Cansada da luta insana, sem glória, a que
todos se entregavam para amanhecer cada dia mais pobres, enquanto
alguns conseguiam enriquecer-se a todo dia. Ela acreditava que podia
traçar outros caminhos, inventar uma vida nova (EVARISTO, 2003: p. 32).

Como podemos observar nos fragmentos acima grande parte do


texto de Conceição Evaristo destaca a fortaleza de espírito e de corpo das
mulheres e a criatividade como meios para reinventar a vida. Ponciá e a sua
mãe trabalham o barro, fazem objetos de cerâmica para uso diário. A
dimensão simbólica do barro sugere movimento, modelagem, mudanças e
novas possibilidades para refazer o itinerário de sua vida. E, neste aspecto, a
654
sua trajetória do espaço rural para o urbano simboliza tanto o seu desejo de
traçar o seu destino com também a sua condição diaspórica.
Nesse aspecto, o tempo presente liga-se a um passado distante
da África. As memórias e os corpos das mulheres negras guardam marcas de
violência, mas também sinalizam resistência. Os romances de Conceição
Evaristo e Ezilda Barreto representam objetivos comuns e compromisso com
a vida que não podem ser destruídos pela escravidão, uma vez que, a África
não ficou para trás, nem é uma página virada, como esclarece Evelyn C.
White:
O que os colonizadores não entenderam foi a profundidade das nossas
alianças. Quando nos arrastaram da África para os portos do Haiti,
Jamaica, Cuba, Mississipi e Brasil, não sabiam que nossos corações
separados continuariam a bater como se estivessem em um só corpo. E
que as nossas vozes, mesmo fraturadas, continuariam cantando em
uníssono (WHITE, 2000, p. 07).

655
A ESCRITURA FEMININA NORDESTINA EM JORNAIS DO SÉCULO XIX E
XX: Ignez Sabino e Edith Gama
Maria da Conceição Pinheiro Araújo
A literatura escrita por mulheres em livros, revistas e
periódicos no século XIX e início do XX não foi anotada nos manuais,
compêndios e histórias da literatura. Essa produção se manteve por longo
tempo fora dos ambientes acadêmicos, invisibilizada estrategicamente por
um cânone androcêntrico, começou a ser estudada, no Brasil, em 1970,
quando os estudos literários sobre a mulher começam a ser realizados ainda
que de forma esporádica e individual.
O GT Mulher na Literatura, originado no ano de 1986, e os
Encontros Nacionais, ocorridos entre 1987 e 1989, tornam-se mais
sistemáticos nos anos de 1990 e início do século XXI. Eles representam um
marco no que se refere às respostas práticas, em termos de produção
científica, das reuniões realizadas nos congressos da ANPOLL, e nos
seminários nacionais Mulher e Literatura. Dos Encontros, Congressos e
Seminários resultou, além dos Anais, uma produção intelectual que registra
as discussões mais recentes em torno da questão da escrita feminina do
passado à contemporaneidade.
As autoras e/ou organizadoras são professoras, pesquisadoras e
feministas do século XX, que quebraram uma norma ao desmontarem um
estereótipo construído para excluir, das histórias da literatura, as obras de
autoria feminina. Não há motivos justificáveis para essa exclusão, apesar dos
“normatizadores de plantão” insistirem num valor estético que,
afirmam eles, os textos femininos não teriam, e, portanto, o crivo masculino
não aprova(va).
As pesquisadoras audaciosas enveredaram por um projeto de
revisão da história literária e como resposta ao processo estabelecido,
produziram livros que salvaram as obras do passado, do sequestro ou do
limbo em que se encontravam. São antologias, coletâneas biográficas e
dicionários cujo objetivo se pauta em resgatar a ousadia das escritoras de
outros tempos que fizeram história, ao se inserirem no espaço público, em um
momento quando a atividade literária só era permitida aos homens. Ressalto,
porém, que os textos e obras escolhidas, a fim de respaldar este estudo, não
_____________________________________________________________

52
Instituto Federal da Bahia/Salvador
53
A exemplo temos: AZEVEDO, Josefina Álvares de. Galeria ilustre: mulheres célebres, (1897); SABINO,
Ignez. Mulheres illustres do Brasil, (1899); OLIVEIRA, Andradina de. A mulher rio-grandense e escritoras
mortas, (1907); BRITO, Cândida de. Antologia feminina: escritoras e poetisas contemporâneas, (1929);
BITTENCOURT, Adalgisa. Mulheres e livros, (1948); TACQUES, Alzira Freitas. Perfis de musas, poetas e
prosadores brasileiros, (1956-1958); GUIMARÃES, Rute. Mulheres célebres, (1963); GALEANO,
Henriqueta. Mulheres admiráveis, (1965); BITTENCOURT, Adalgisa. Dicionário biobibliográfico de
mulheres ilustres, notáveis e intelectuais do Brasil, (1969), (III volumes); GALENO, Henriqueta. Mulheres
do Brasil, (1971) - (IV volumes).

657
são os primeiros trabalhos. Muito antes, desde o século XIX, já existia a
preocupação com o resgate de textos de autoria feminina.
Tais publicações contestam um projeto androcêntrico que foi
construído para olvidar as obras escritas por mulheres. Ao resgatar as
produções de nossas primeiras escritoras, revisam a história literária tendo
como alicerce teórico os estudos da crítica feminista e sua confluência com as
relações de gênero.
O difícil acesso ao material referente às escritoras do passado e a
dificuldade de localização dos textos produzidos por elas são questões
tratadas pelas pesquisadoras. Em um ensaio publicado no ano de 1994, Ria
Lemaire defende que a escrita e o ensino de história literária no ocidente tem
se mostrado “um fenômeno estranho e anacrônico”. A história literária
tradicional repete a sucessão de escritores brilhantes, como a genealogia das
sociedades patriarcais do passado pautava-se na seqüência cronológica de
guerreiros heróicos. Nos dois casos, “as mulheres foram eliminadas ou
apresentadas como casos excepcionais, mostrando que, em assuntos de
homem, não há espaço para mulheres normais”. A ensaísta contesta a
assertiva, dizendo que esse tipo de historiografia, definida em termos
patrilineares, com ênfase excessiva na paternidade cultural, precisa ser
desconstruída em dois vieses: a desestabilização do sujeito masculino e,
conseqüentemente, do “herói” das obras literárias e do mito de uma única
literatura.
A redescoberta dessas escritoras, diferente do perpassado em
forma de omissão pelas histórias literárias, comprova que seus textos levam
em conta pressupostos teóricos. Eles são concernentes aos discutidos como
novidade em termos de literatura na época quando foram escritos. Até
mesmo, as escritas femininas do período apresentam temas e questões
muito mais revolucionários do que aqueles tratados pelos homens.
Hoje, a publicação e a recepção de obras desse caráter mostram
que muitas mulheres conseguiram extrapolar as barreiras impostas à sua
condição sexual e insubordinaram-se no sentido mais audacioso da palavra,
ao burlar os mecanismos de opressão impostos a elas. E, ainda, fortalece as
atuais pesquisas no campo do resgate de textos de autoria feminina, na
medida em que acrescenta mais um tijolo no recente, mas promissor projeto
de formulação de uma historiografia feminista e da construção de uma
tradição literária feminina brasileira.
É inegável, na atualidade, a importância social, cultural e política
dos estudos na área de resgate e visualização de textos produzidos por
grupos ditos minoritários, no caso específico, o da mulher. Esses estudos
iniciaram uma reflexão sobre a escrita feminina, reavaliando a própria história
literária através da recuperação dos textos produzidos. Na medida em que
essas vozes foram caladas ou consideradas menores, constatou-se o
empobrecimento da literatura e da própria história da humanidade.
Em meio a descoberta de uma vasta produção de obras literárias,
658
constatou-se ao, longo das pesquisas, que também havia uma produção
jornalística por ser resgatada. Assim, apesar do difícil acesso aos jornais,
recuperou-se um grande número de textos publicados por mulheres tanto na
Imprensa quanto na chamada “Imprensa feminina”. Os primeiros estudos a
respeito desse tema surgiram no Rio de Janeiro e São Paulo. Mas
essa já era uma discussão presente no GT da ANPOLL “A Mulher na
Literatura”, onde frequentavam pesquisadoras de todo o Brasil.
No IV Encontro Nacional, acontecido em 1989, em São Paulo, a
professora Luzilá Gonçalves Ferreira (UFPE) apresentou, em uma mesa-
redonda, o seu projeto de trabalho que tinha como objetivo recuperar a
memória feminina na imprensa de Pernambuco. Assim diz a pesquisadora:
Buscando recuperar a fala feminina brasileira, através de documentos
vários, deparamo-nos com um número surpreendente de jornais e títulos,
escritos por mulheres, empenhadas em criar para elas próprias e para
suas contemporâneas um espaço de fala possível. São 18 títulos, 38
números de jornais, que testemunham uma evolução do pensamento
feminino brasileiro e cujo estudo nos obrigará, certamente, a uma re-
leitura da História
Ao decorrer do texto, Luzilá apresenta alguns títulos: A Mulher
(1883); Sociedade Abolicionista Ave Libertas (1885); A Rosa (1890); O Lyrio
(1902) e o Myosote (1911). Lendo alguns textos publicados nos periódicos, a
professora da UFPE faz algumas constatações: eles foram instrumento de
mobilização a favor da campanha abolicionista; a mulher podia escrever o
que quizesse sem a supervisão masculina; eram catalisadores de
informações de obras literárias femininas; refletiam a luta coletiva pela
emancipação da mulher; eram prova da capacidade intelectual feminina.
Dez anos após a publicação do artigo referido acima, a mesma
pesquisadora publica um texto intitulado “A Luta das Mulheres
pernambucanas” no qual retoma a discussão sobre a importância dos jornais
femininos na luta abolicionista. Destacando, principalmente, a atuação do
jornal da Sociedade Ave Libertas, em oposição a jornais como O Liberal
Pernambucano que se opunha a alforria dos escravos. Sobre a Associação, a
pesquisadora pernambucana declara:
A ação da Sociedade Ave Libertas foi contínua e eficaz, até que se
assinou a Lei áurea, prolongando-se depois dela. Desde o momento de
sua fundação, para despertar o público sobre a causa que defendiam e
para angariar fundos de libertação de escravos, aquelas senhoras se
desdobravam em organizar festas e quermesses, passeatas, concertos e
até peças de teatro, como o noticiam os periódicos.
Luzilá apresenta-nos três intelectuais pernambucanas que
escreviam poemas e artigos em prol da abolição; Ignez de Almeida Pessoa
(1854- 1892), professora; Maria Amélia de Queiroz ( ? ), ex-aluna de Nísia
Floresta, republicana, feminista e prestigiada conferencista; Maria Augusta
Estrela (1860- ?), redatora do jornal A Mulher. E, ao final, sabendo da
_____________________________________________________________

54
LEMAIRE, Ria. Repensando a história literária. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.) Tendências e
Impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 58-71.

659
impossibilidade de trazer uma lista maior de nomes, chama a tenção do leitor
para outras mulheres:
Muitas outras mulheres escreveram artigos sobre a Abolição além das
articulistas e conferencistas citadas. Em jornais especializados, como O
Abolicionista, poemas e textos em prosa de mulheres como a poetisa e
pianista Laura Fonseca, largamente conhecida em sua época, como
Beatriz Castro, tecem louvores aos abolicionistas e os exaltam. Em
periódicos de informação como A Tribuna ou em jornais que se dedicam a
atividades específicas, como O Artista, escritoras cujos nomes já não
falam aos leitores de hoje, escrevem, e suas vozes, que o tempo calou,
nos chegam, indignadas ainda, regozijadas ainda com o fim da
escravidão no Brasil.
Mesmo após a abolição, essas mulheres não descansaram, ao
contrário, iniciaram uma nova luta: a alfabetização e profissionalização dos
escravos.
O nome que sobressai na imprensa Rio-grandense do século XIX
é o de Nísia Floresta Brasileira Augusta (1810-1885) autora do provocativo
livro Direito das Mulheres e Injustiça dos Homens, publicado em 1832, e com
duas reedições, em 1833 e 1839. Na época da publicação, Nísia tinha 22
anos e revelou uma ousadia admirável nas discussões apresentadas no livro
que era uma tradução livre da versão francesa do panfleto inglês Vindication
of the rights of woman (1792), de Mary Wollstonecraft, uma resposta à
Declaração Universal dos Direitos do Homem. Segundo Constância Lima
Duarte, a tradução de Nísia é uma nova escrita inspirada na leitura da obra da
autora inglesa e por isso mesmo “o texto fundante do feminismo brasileiro”.
Segundo a pesquisadora:
Em sua essência, os Direitos das Mulheres de Nísia Floresta se
encontram com os Rights of Woman de Mary Wollstonecraft, tanto na
denúncia da mulher como classe oprimida, como na reivindicação de uma
sociedade mais justa, em que ela seja respeitada e tenha os mesmos
direitos. Também são pontos comuns a denúncia da superioridade
masculina apoiada na força física, a valorização da função materna, a
educação como o meio eficaz de promoção feminina e o aparato filosófico
de feição iluminista. No mais, os textos se distanciam tomando cada qual
_____________________________________________________________

55
Podemos citar aqui os trabalhos de BICALHO, Maria Fernanda Baptista. O Bello Sexo: Imprensa e
Identidade feminina no Rio de Janeiro em fins do século XIX e início do século XX. Dissertação de
mestrado. Rio de Janeiro: UFF, 1988; BERNARDES, Maria Thereza CAIUBY Crescenti. Mulheres de
Ontem? Rio de Janeiro – século XIX. São Paulo: T.A.QUEIROZ, Editor, 1989; PAIXÃO, Sylvia. A fala-a-
menos: a repressão do desejo na poesia feminina. Rio de Janeiro: NUMEM Editora, 1991.
56
FERREIRA, Luzilá Gonçalves. O discurso feminino possível: um século de imprensa feminina em
Pernambuco (1830-1930). In: GOTLIB, Nádia Battella. (org.) A Mulher na literatura. Belo Horizonte,
Imprensa da Universidade Federal de Minas Gerais, 1990, p. 69.
57
FERREIRA, Luzilá Gonçalves. A Luta das mulheres pernambucanas. In: FERREIRA, Luzilá Gonçalves,
ALVES, Ívia. FONTES, Nancy Rita... et al. Suaves amazonas: mulheres e abolição da escravatura no
nordeste Recife: Ed. Universitária da UFPE, 1999, p. 41- 110.
58
FERREIRA, 1999, p. 88.

660
o seu rumo, srgundo as motivações das autoras, o público a que se
destinavam e as peculiaridades da condição feminina num e noutro lugar.
Nísia Floresta publicou grande parte da sua obra em jornais.
Mesmo antes da publicação do seu mais famoso livro, já colaborava em O
Espelho das Brasileiras, de Recife. É em 1831 que estréia naquele jornal
dedicado às senhoras pernambucanas, escrevendo artigos sobre a condição
feminina no século XIX. Naquele periódico e em outros (O Diário do Rio de
Janeiro, O Liberal, O Brasil Ilustrado) tratava de questões polêmicas, o que
provavelmente custou-lhe o esquecimento nas Histórias Literárias.
Em se tratando da Bahia, cabe ressaltar o trabalho pioneiro de
Ívia Alves junto à UFBA e ao NEIM para resgatar autoras baianas do séc. XIX
completamente desconhecidas. Seu projeto resultou numa antologia virtual
onde consta o resgate da vida e obra de 24 autoras. Também é preciso
destacar o livro de Lizir Arcanjo, publicado em 1999, intitulado Mulheres
Escritoras na Bahia. Na Coletânea, a autora recupera poemas de 34 poetisas
baianas do século XIX, encontrados em livros, revistas literárias e jornais
pertencentes aos acervos de Bibliotecas de Salvador, Rio de Janeiro e São
Paulo. Na Apresentação, informa ao leitor, o objetivo do trabalho, qual seja,
resgatar a produção literária feminina de toda uma época em que pouco ou
quase nenhum valor se lhe dava, exatamente por ser de mulher.
A pesquisadora destaca os nomes de Ildefonsa Laura César
(1794-?), Adélia Fonseca ( ?), Ana Autran (1856 – 1933) e Ana Ribeiro de
Góes Bittencourt (?). É no Diário de Notícias que as escritoras encontram, na
década de 80, um espaço para exercer mais livremente suas atividades
literárias: “Em setembro de 1880, o Diário de Notícias publica nota dirigida às
senhoras da Bahia, solicitando suas valiosas produções, quaisquer que
fossem, em prosa ou verso, logogrifos, charadas, etc., para honrar as páginas
do Almanaque”. Quase duas décadas depois, em 1897, O Diário da Bahia,
publica em sua primeira página 36 poemas escritos por mulheres brasileiras.
Algumas publicações dedicadas ao público feminino florescem no interior da
Bahia como O Espelho das Belas (Margogipe, 1860-1861); A Grinalda
(Cachoeira, 1869-1870); O Echo Sant'Amarense (Santo Amaro, 1881 –
1884); O Propulsor (Feira de Santana (1898-1901), entre outras.
Um nome pouco conhecido mas bastante representativo na
imprensa do século XIX é o da baiana Maria Ignez Sabino Pinho Maia (1853-
1911) filha de Olegário Sabino Ludgero Pinho e Gertrudes Pereira Alves
Maciel, nascida em 31 de dezembro de 1853. Entre as pesquisadoras dos
_____________________________________________________________

59
Idem, ibidem, p. 107.
60
DUARTE, Constância Lima. Nos primórdios do feminismo brasileiro: Direitos das Mulheres e Injustiça
dos Homens. In: GOTLIB, Nádia Battella. (org.) A Mulher na literatura. Belo Horizonte, Imprensa da
Universidade Federal de Minas Gerais, 1990, p. 38.

61
DUARTE, Constância Lima. Nísia Floresta Brasileira Augusta. In: MUZART, Zahidé Lupinacci. Escritoras
brasileiras do século XIX: antologia. Florianópolis: Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000. v. I.,
p.175.

661
estudos de gênero, ela é conhecida pelo seu livro Mulheres ilustres do Brasil,
no qual faz um trabalho pioneiro sobre a memória literária feminina. A família
de Ignez Sabino mudou-se para a Cidade de Nassau, em Pernambuco, e a
autora frequentou aulas no curso propedêutico. Teve aulas particulares com
intelectuais que considerava seus mestres: Tobias Barreto e Autran da Matta
Albuquerque, professores renomados da Faculdade de Direito de Recife.
Notando a vocação intelectual da filha e seus pendores artísticos para a
pintura e a música, o pai a enviou para estudar na Inglaterra, mas sua estadia
foi encurtada com a morte do seu genitor e, conseqüentemente, com a
dificuldade financeira da família.
A autora casa-se com o comerciante português Francisco de
Oliveira Maia, residente em Recife, com quem teve uma filha. Ignez Sabino e
sua família se mudam para São Paulo e, posteriormente, fixam residência no
Rio de Janeiro até 1911, ano de sua morte.
A primeira obra publicada de Ignez Sabino foi o livro de poesia Ave
Libertas [s.d.] e ainda, Rosas Pálidas (1886) e Impressões (1887). A sua
estréia no campo da narrativa acontece com Contos e Lapidações. O livro,
contendo 340 páginas, composto de 19 contos, 30 poesias e dois artigos, foi
muito bem recepcionado pela crítica por alguns anos. Ainda como
contista, Ignez Sabino publica Noites Brasileiras, uma coletânea de 19 contos
e um bosquejo histórico. Impresso em Paris e ornado de gravuras, o livro é
dedicado às crianças e aos adolescentes.
Com Lutas do Coração, Ignez Sabino inaugura sua carreira de
romancista. Na época de publicação do romance, Ignez Sabino já é uma
escritora conhecida em Portugal e a recepção ao livro Lutas do Coração é
constatada na seção “Publicações recebidas”, do Almanach de Lembranças
Luso-Brasileiro.
Em 1899, aparece Mulheres Ilustres do Brasil, publicado no Rio de
Janeiro, pela editora Garnier. No prefácio do livro, a autora indaga: “Por
que razão a mulher não poderá ser conhecida pela pena de outra mulher,
estudando em si, a psicologia alheia?” Em 1996, a editora Mulheres inicia
uma série de publicações com a reedição fac-similar deste livro,
considerado um marco na historiografia. Nele, Ignez Sabino resgata
nomes esquecidos, já demonstrando preocupação com o apagamento
dos nomes de mulheres, que contribuíram para a história do nosso país
nas mais diversas áreas.
Zahidé Muzart cita, como parte da obra de Ignez Sabino, o livro
Esboços Femininos. Na verdade, trata-se de uma coluna no jornal carioca A
_____________________________________________________________

62
http://escritoras baianas.ufba.br. Acesso em 04 de abril de 2009.
63
ALVES, Lizir Arcanjo. Mulheres Escritoras na Bahia: As poetisas – 1822 – 1918. 2ª ed. Salvador: Étera
Projetos Editoriais, 1999, p.15
64
FONTES, Nancy Rita Vieira. A bela esquecida das letras baianas: a obra de Anna Ribeiro. Dissertação de
Mestrado. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1998.
65
Idem, ibidem, p. 38.
66
ARAUJO, Maria da Conceição Pinheiro Araújo. Tramas femininas na Imprensa do século XIX; tessituras
de Ignez Sabino e Délia. Tese de doutorado. Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul, 2008.
67
SABINO, D. Ignez. Mulheres ilustres do Brazil. (Edição fac-similar). Florianópolis: Mulheres, 1996.

662
Estação, para o qual a autora escreve artigos publicados, primeiro
quinzenalmente e depois mensalmente, de 15 de abril de 1890 a 15 de março
de 1891. Nos artigos, ela traça o perfil biográfico de diversas mulheres do
Brasil e do mundo.
Além da bibliografia aqui mencionada, Zahidé Muzart acrescenta
Através dos meus dias [s.d.] e Kátia Bezerra menciona O crime de amor [s.d.],
Memórias do meu país [s.d.] e Psicologia de vários homens de letras [s.d.]. O
jornal Corymbo também divulga uma nota sobre Ignez Sabino, na qual
informa às(aos) leitoras(es) sobre uma nova obra que estaria no prelo.
Ignez Sabino foi uma das escritoras brasileiras que mais publicou
na imprensa do século XIX no Brasil: Alagoas (A União Acadêmica); Bahia
(Diário da Bahia); Pernambuco (Revista da Sociedade Ave Libertas do
Recife); Rio Grande do Sul (Corymbo e Escrínio); Rio de Janeiro (Almanaque
Brasileiro Garnier, Echo das Damas, A Estação, Jornal do Brasil, A Semana, O
Tempo); São Paulo (A Mensageira). Fundou, juntamente com Josefina
Álvares de Azevedo, o jornal A Família (RJ).
A própria escritora fala da sua atividade intelectual em várias
áreas do conhecimento, no jornal Corymbo:
Desde que me lancei há vários anos neste labirinto intrincado que se
chama literatura, os estudos históricos também têm chamado a minha
atenção, porque, dedicando-me também a estudos psicológicos, eu creio
que existe a grande necessidade de se cuidar da psicologia da história...
No total, o Corymbo divulga 43 textos dessa autora. São eles: 13
poemas, cinco biografias, nove prosas literárias e 17 artigos, sobre temas
como educação feminina, religião, luta da mulher pela profissionalização, etc.
Como não foi localizada a coleção na íntegra do jornal, muitos textos estão
incompletos. Alguns possuem apenas o início e outros apenas o final.
Em Portugal, Ignez publica textos no Almanach de Lembranças
_____________________________________________________________

68
SABINO, Ignez. Contos e Lapidações. Rio de Janeiro: Laemmert & C.Editores, 1891. Agradeço a
generosidade da pesquisadora Zahidé Muzart que me cedeu o seu exemplar para cópia, na ocasião em
que participou de uma banca de doutorado na PUCRS, em setembro de 2005.
69
SABINO, Ignez. Noites Brasileiras. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1897. Existe um exemplar dessa 1ª edição
na Biblioteca Nacional (RJ), no setor de obras raras. Fiz a leitura entre os dias 12 e 13 de agosto de 2005. A
Biblioteca Nacional, através do seu serviço de reprodução de imagens, providenciou-me a digitalização da
capa e do prólogo.
70
SABINO, Ignez. Luctas do Coração. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro Santos, 1898. Um exemplar dessa
1ª edição encontra-se na Biblioteca Municipal Mário de Andrade, em São Paulo, na seção de obras raras do
1º andar. Não houve permissão para fotografar, nem há serviço de digitalização na Biblioteca. A editora
Mulheres publicou (em 1999) uma edição fac-similar com atualização do texto, notas e apresentação de
Susan Canty Quinlan. Cf. SABINO, Ignez. Lutas do Coração. Florianópolis: Mulheres; Santa Cruz do Sul:
EDUNISC,1999. As citações desse estudo foram retiradas dessa edição.
71
Existe um exemplar dessa 1ª edição na Biblioteca Nacional e outro na Biblioteca Central em Salvador.
72
SABINO, D. Ignez. Prefácio. In: ______. Mulheres Ilustres do Brasil. Florianópolis: Mulheres, 1996, p.
VIII.

663
Luso-Brasileiro. Nessa publicação recolhi 35 textos entre poemas, crônicas,
artigos e biografias, publicados entre os anos de 1891 e 1913 e dois textos no
Almanach das Senhoras.
A produção jornalística de Ignez Sabino revela uma proposta de
construção de uma literatura que promovesse a imagem da mulher leitora,
como interlocutora de sua obra na medida em que suas “patrícias” se
instruíssem e pudessem interferir no destino da nação. Sua opção por
dialogar com as suas “companheiras de sexo” denota comprometimento com
a causa feminino/feminista. Dedicando-se à “literatura para mulheres”, Ignez
Sabino assume uma postura político-pedagógica que pode ser
notada na quase totalidade de seus textos, divulgados em diversos espaços:
prólogos dos romances; títulos, dedicatórias e/ou temas recorrentes. Os
preceitos contidos na moralidade cristã e os princípios estabelecidos para o
comportamento social das mulheres e, particularmente, das jovens eram
matéria constante da escrita de Sabino e deveriam ser observados por
aquelas que desejavam assumir uma posição de destaque na sociedade
onde viviam.
Apesar de deixar claro que a profissionalização da mulher
escritora não poderia ascender à categoria de substituta das tarefas
domésticas e do cuidado com os filhos e o marido, Ignez Sabino assume a
escrita de um texto marcadamente feminino como estratégia político-
ideológica de enfrentamento com o masculino. É publicando textos, em sua
grande maioria, nos jornais femininos, que ela constrói modelos de afirmação
da identidade feminina dentro do que é possível construir por mulheres no
conturbado final do século XIX e limiar do século XX. Esse ethos feminino vai
se apresentando como parâmetro para que a mulher tenha subsídios para
tomar as decisões acertadas e “não se perder”, em meio às propostas
finisseculares de emancipação feminina: profissionalização, divórcio, voto,
elegibilidade. Pode parecer um discurso contraditório, mas era justamente
essa discrepância que marcava esse “tempo das mulheres”. Tempo de
avanços e recuos estratégicos, de afirmações e negações, de entraves e
negociações. Ignez, por exemplo, em um texto defendia a necessidade de a
mulher obter conhecimento mesmo que seja para se tornar uma mãe
qualificada para educar os filhos que serão a pedra de toque da nação. Em
outros, solicitava que as mulheres tivessem cuidado com as novas idéias em
relação aos questionamentos sobre o papel da mulher na família.
No início do século XX, A Revista do Grêmio Literário da Bahia
(1901-1904) publica textos de Amélia Rodrigues e Adelaide de Castro Alves
Guimarães. Mais tarde, Amélia Rodrigues cria A Paladina do Lar (1910 -
1917), primeira revista escrita por mulheres e para mulheres em Salvador.
_____________________________________________________________

73
Catalogação feita por mim na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro em agosto de 2006 e janeiro de 2008.
74
Nenhuma dessas cinco obras citadas foi encontrada.
75
SABINO, Ignez. Impressões de leitura. Corymbo, Rio Grande, 01 jan. 1903, p. 01.

664
Na década de 30 (séc.XX) o nome mais representativo nas letras
baianas é o de Edith Mendes da Gama e Abreu, primeira mulher a entrar na
Academia de Letras da Bahia, fundadora e presidente vitalícia da Federação
Bahiana para o Progresso Feminino, filial da Federação Brasileira para o
Progresso feminino, fundada por Bertha Lutz no Rio de Janeiro.
Edith Mendes da Gama e Abreu (1898 – 1982) nasce a 13 de
outubro de 1898, natural de Feira de Santana, Bahia. Filha do casal João
Mendes da Costa e Maria Augusta Falcão Mendes da Costa. Seu pai, figura
eminente de Feira de Santana, foi coronel da Guarda Nacional, político e
prefeito daquela cidade, de 3 de janeiro de 1931 a 29 de maio de 1933, por
força da Revolução de 30. Edith tinha um irmão João Mendes da Costa Filho,
advogado, constituinte de 1946 e Ministro Vice-Presidente do Superior
Tribunal Militar, falecido em 1971, e uma irmã Judith Mendes da Costa,
musicista, companheira inseparável que lhe sobreviveu.
Sobre sua infância e adolescência sabe-se apenas que estudou
com preceptores em sua própria casa, como era o costume daquela época
entre as famílias abastadas. Estudou no Colégio Nossa Senhora de Lourdes,
e na Escola Complementar da profa. Estefânia Mena em sua cidade natal.
Em Feira de Santana foi nomeada professora pela Prefeitura
Municipal entre 19/09/1918 e 23/12/1920 para reger a “Escola do sexo
Masculino”. As informações a respeito da sua vivência naquela cidade são
escassas. Há, portanto, um hiato sobre o caminho percorrido pela escritora
até quando esta passa a entrar em evidência, no cenário intelectual e político
em Salvador, por volta do ano de 1930.
Em Salvador, cursa o pedagógico no Educandário dos Perdões, atual
Educandário do Sagrado Coração de Jesus, equiparado à Escola Normal da

_____________________________________________________________

76
ALVES, Ívia. Amelia Rodrigues: Itinerarios Percorridos. SALVADOR: NUCLEO DE INCENTIVO
CULTURAL DE SANTO AMARO/BUREAU, 1998. 125 p.
77
OLIVEIRA, Aline Paim. A Paladina do Lar: escrita feminina baiana – 1910/17. Dissertação de Mestrado.
Salvador: UFBA, 2000.
78
ARAÚJO, Maria da Conceição Pinheiro. Uma imortal baiana: a produção de Edith Mendes da Gama e
Abreu e relações de gênero. Dissertação de Mestrado. Recife: Universidade Federal de Pernambuco,
2001.
79
Sobre a data de nascimento de Edith é interessante informar que em toda bibliografia consultada a data
que consta é 13/10/1903. Entretanto ao consultar os Arquivos da Faculdade de Filosofia em agosto/2000,
encontrei uma cópia da Certidão de Nascimento bem como da Carteira de Identidade as quais atestam o
ano de 1898 .

665
666
diversos países da Europa, onde fazia turismo cultural visitando
as catedrais, museus, castelos, teatros, universidades, etc. Era uma
dedicada representante das mulheres de sua classe social e época.
Edith faleceu no dia 20 de janeiro de 1982, às 11:30 em sua
residência na Vitória. A Imprensa local divulgou, com notas elogiosas sobre a
escritora, a funesta notícia. Foram diversos os registros do falecimento da
nossa dama intelectual baiana.
No primeiro aniversário de falecimento de Edith, a cidade de
Salvador homenageia a memória de sua ilustre escritora com a atribuição do
seu nome a uma das novas ruas e importantes vias públicas do bairro da
Pituba. Há ainda um colégio em Feira de Santana que tem o nome da
escritora.
A participação feminina na imprensa baiana na década de 30 e 40
foi bastante significativa no que diz respeito à propagação das idéias
feministas. Neste sentido, Edith Mendes é a mulher mais representativa da
Bahia. Destacou-se nos meios culturais e ocupou espaço na Imprensa
escrevendo assiduamente em jornais da Bahia e do Brasil. Atuou como
correspondente, em jornais de vários estados: Em Porto Alegre no Correio do
Povo e Diário de Notícias; No Rio de Janeiro no Jornal do Brasil, Correio da
Manhã, e O Espelho; Em São Paulo no Oeste Paulistano, O Paulistano e
Folha da Noite. Mas é em Salvador que encontra-se disperso o maior número
de seus artigos publicados em jornais. Destacamos aqui: A Tarde, Diário da
Bahia, O Estado, O Jornal, Diário de Notícias e Estado da Bahia. Escreveu
para o jornal O Imparcial durante vinte e cinco anos, primeiro como
colaboradora e, posteriormente, como redatora. Publicou, também, nas
revistas Vida Doméstica e Cruzeiro.
Da participação da articulista no Jornal O Imparcial foi possível
recuperar 57 textos escritos entre os anos 30-40. As temáticas abordadas são
as mais diversas desde a preocupação com questões caritativas à questões
políticas que envolvem problemas de interesse nacional. Destes textos 15
667
tratam sobre feminismo e questões relativas à mulher; 06 sobre o
pacifismo; 05 sobre política; 04 sobre história; 06 sobre religião; 06 sobre
caridade; 06 sobre literatura; 05 biografias e 04 discursos.
A leitura e análise dos textos de Edith Mendes da Gama e Abreu
revelou-nos uma escrita bastante preocupada com a condição feminina, a
elevação cultural e intelectual da mulher, demonstrando comprometimento
com a luta pela Emancipação da Mulher. A Educação e a Cultura são,
segundo Edith, os alicerces que sustentam o Ideal Feminista. A posição que
assumia como presidente vitalícia da Federação proporcionou-lhe certo
prestígio junto à sociedade baiana o que permitiu à acadêmica um trânsito
constante na imprensa local escrevendo uma quantidade surpreendente de
artigos que eram amplamente divulgados nos jornais. Para consolidar a
simpatia e adesão de muitos, inclusive figuras eminentes da política baiana,
adquirida ao longo da sua trajetória como feminista. Como personagem
atuante na imprensa baiana, questiona o papel desempenhado pelas
mulheres na sociedade e reivindica, a todo momento, um lugar para elas. O
discurso da feminista era marcado por um tom político-militante que
procurava, primeiro, convencer seus interlocutores da justeza e
inofensividade de sua luta e, segundo, garantir que a inserção da mulher na
esfera pública e no Movimento Feminista não ocorreria em detrimento de
seus deveres de mãe e esposa.

668
REFERÊNCIAS
ALVES, Ívia. Amor e submissão: Formas de resistência da literatura de autoria
feminina? In: RAMALHO, Cristina (org.) Literatura e feminismo: propostas
teóricas e reflexões críticas. Rio de Janeiro:Elo, 1999, p. 107 – 116.
ALVES, Ívia. A escritora baiana e a abolição. In: FERREIRA, Luzilá
Gonçalves, ALVES, Ívia. FONTES, Nancy Rita... et al. Suaves amazonas:
mulheres e abolição da escravatura no nordeste. Recife: Ed. Universitária da
UFPE, 1999, p. 17-40.
ALVES, Ívia. Amelia Rodrigues: Itinerarios Percorridos. SALVADOR:
NUCLEO DE INCENTIVO CULTURAL DE SANTO AMARO/BUREAU, 1998.
125 p.ALVES, Lizir Arcanjo. Mulheres escritoras na Bahia: as poetisas – 1822
– 1918. 2. ed. Salvador: Étera Projetos, 1999.
ARAÚJO, Maria da Conceição Pinheiro. Uma imortal baiana: a produção de
Edith Mendes da Gama e Abreu e relações de gênero. Dissertação de
Mestrado. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2001.
ARAUJO, Maria da Conceição Pinheiro Araújo. Tramas femininas na
Imprensa do século XIX; tessituras de Ignez Sabino e Délia. Tese de
doutorado. Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul, 2008.
BICALHO, Maria Fernanda Baptista. O Bello Sexo: Imprensa e Identidade
feminina no Rio de Janeiro em fins do século XIX e início do século XX.
Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: UFF, 1988;
BERNARDES, Maria Thereza CAIUBY Crescenti. Mulheres de Ontem? Rio
de Janeiro – século XIX. São Paulo: T.A.QUEIROZ, Editor, 1989;
DUARTE, Constância Lima. Nos primórdios do feminismo brasileiro: Direitos
das Mulheres e Injustiça dos Homens. In: GOTLIB, Nádia Battella. (org.) A
Mulher na literatura. Belo Horizonte, Imprensa da Universidade Federal de
Minas Gerais, 1990, p. 38.
DUARTE, Constância Lima. Nísia Floresta Brasileira Augusta. In: MUZART,
Zahidé Lupinacci. Escritoras brasileiras do século XIX: antologia.
Florianópolis: Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000. v. I., p.175.
FERREIRA, Luzilá Gonçalves. O discurso feminino possível: um século de
imprensa feminina em Pernambuco (1830-1930). In: GOTLIB, Nádia Battella.
(org.) A Mulher na literatura. Belo Horizonte, Imprensa da Universidade
Federal de Minas Gerais, 1990, p. 69.
FERREIRA, Luzilá Gonçalves. A Luta das mulheres pernambucanas. In:
FERREIRA, Luzilá Gonçalves, ALVES, Ívia. FONTES, Nancy Rita... et al.
Suaves amazonas: mulheres e abolição da escravatura no nordeste Recife:
Ed. Universitária da UFPE, 1999, p. 41- 110.
669
FONTES, Nancy Rita Vieira. A bela esquecida das letras baianas: a obra de
Anna Ribeiro. Dissertação de Mestrado. Salvador: Universidade Federal da
Bahia, 1998.
FONTES, Nancy Rita Vieira. A escritora Anna Ribeiro e a escravidão. In:
FERREIRA, Luzilá Gonçalves, ALVES, Ívia. FONTES, Nancy Rita... et al.
Suaves amazonas: mulheres e abolição da escravatura no nordeste. Recife:
Ed. Universitária da UFPE, 1999, p. 111- 122.
LEMAIRE, Ria. Repensando a história literária. In: HOLLANDA, Heloísa
Buarque de (org.) Tendências e Impasses: o feminismo como crítica da
cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 58-71.
MENDONÇA, Maria Helena Mendonça. Nísia Floresta: romantismo e
consciência reformadora. In: CUNHA, Helena Parente Cunha. Desafiando o
Cânone.
OLIVEIRA, Aline Paim. A Paladina do Lar: escrita feminina baiana – 1910/17.
Dissertação de Mestrado. Salvador: UFBA, 2000.
PAULAFREITAS, Ayeska. Presença: revista para moças – um lugar para
leitoras e escritoras do pós-guerra. Dissertação de Mestrado. Salvador:
UFBA, 2000.
PAIXÃO, Sylvia. A fala-a-menos: a repressão do desejo na poesia feminina.
Rio de Janeiro: NUMEM Editora, 1991.
SABINO, D. Ignez. Mulheres ilustres do Brazil. (Edição fac-similar).
Florianópolis: Mulheres, 1996.
SABINO, Ignez. Contos e Lapidações. Rio de Janeiro: Laemmert &
C.Editores, 1891.
SABINO, Ignez. Noites Brasileiras. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1897.
SABINO, Ignez. Luctas do Coração. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro Santos,
1898.
SABINO, Ignez. Lutas do Coração. Florianópolis: Mulheres; Santa Cruz do
Sul: EDUNISC,1999. As citações desse estudo foram retiradas dessa edição.
SABINO, Ignez. Impressões de leitura. Corymbo, Rio Grande, 01 jan. 1903, p.
01.
Sites:
http://escritoras baianas.ufba.br. Acesso em 04 de abril de 2009.

670
NAS ENTRELINHAS DE MULHER E BRUXA: identidade e sexualidade em
um conto de Sônia Coutinho
Lilian
Santana da Silva
Este artigo tem como objeto de estudo o discurso das
personagens do conto “Os venenos de Lucrécia” (1978) de Sônia Coutinho.
Considera-se aqui discurso aquilo que está no texto, no suporte, no próprio
material. Para Fairclough (2001, p. 91), texto é considerado como uma
dimensão do discurso: o produto escrito ou falado do processo de produção
textual. A compreensão da Análise do Discurso Crítica para o discurso está
centrada numa combinação de Análise Linguística e Teoria Social. Esse
conceito de discurso e análise de discurso é tridimensional. Qualquer evento
discursivo ou exemplo de discurso é considerado como simultaneamente um
texto, um exemplo de prática discursiva e um exemplo de prática social. A
dimensão do texto cuida da análise linguística. A dimensão da prática
discursiva especifica a natureza dos processos de produção e interpretação
textual. A dimensão de prática social cuida das circunstâncias institucionais e
organizacionais do evento discursivo e como elas moldam a natureza da
prática discursiva e os efeitos constitutivos / construtivos dos discursos.
O método de análise utilizado pela Análise do Discurso Crítica
(ADC), através do enfoque tridimensional do texto baseia-se na teoria
sistêmica da linguagem (Halliday, 1989) que considera a linguagem como
multifuncional, e que os textos representam a realidade, ordenam as relações
sociais e estabelecem identidades. Halliday (1989) registra três
macrofunções que atuam simultaneamente em textos: ideacional,
interpessoal e textual. Fairclough (2003) propõe no lugar das funções da
linguagem, os três tipos de significado: o significado acional, o significado
representacional e o significado identificacional. Esses significados têm o
mesmo valor das funções e atuam dialeticamente no discurso.
Com o objetivo de perceber o caráter ideológico do discurso que
contribui para legitimar uma relação assimétrica de poder entre a
personagem feminina e a personagem masculina do conto, as categorias
analíticas escolhidas para a análise do significado do discurso foram: a
intertextualidade, a metáfora e a representação de atores sociais. Esses
elementos discursivos servem para especificar como o processo de
construção das formas simbólicas atua na narrativa.
A ideologia é uma das maneiras de assegurar as lutas de poder.
Para operacionalizar a ideologia, a ADC baseia-se na concepção crítica de
Thompson (2002) que postula a natureza da ideologia como hegemônica, no
sentido de que ela serve para estabelecer e sustentar relações de dominação
_____________________________________________________________

80
PPGNEIM-UFBA

671
e, por isso, serve para reproduzir a ordem social que favorece indivíduos e
grupos dominantes. A importância dessa abordagem para a ADC é a
constituição de ferramentas para analisar linguisticamente construções
discursivas revestidas de ideologia.
No conto, o aspecto cultural e religioso que mobiliza os
conhecimentos e crenças constrói uma identificação híbrida entre as
personagens, o que veremos mais adiante. Portanto, para trabalhar essa
questão, utilizo os pressupostos de Castell (1999) sobre a identidade. A
análise também destaca a relação entre identidade e sexualidade das
personagens dos contos. A sexualidade entra nesse jogo porque se
transforma num ponto de encontro entre a auto-identidade e as normas
sociais, um dos aspectos trabalhados na análise.
A Crítica Feminista está diluída por toda a análise, e o ponto
central será a assimetria das relações de gênero e poder expressas pelo
discurso narrativo. Na primeira parte, faço considerações sobre a ADC e a
LSF e apresento as categorias de análise; em seguida, abordo o conto e os
seus pontos discursivos e literários.
PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS EM ADC
A vertente britânica da ADC, apresentada por Fairclough (2001,
2003) e Chouliaraki e Fairclough (1999), é uma abordagem multidisciplinar
para estudos da linguagem. Trata-se de um modelo teórico-metodológico que
dialoga com a Linguística Sistêmico-Funcional (LSF) de Halliday,
operacionalizando seus conceitos e categorias, o que será abordado mais
adiante. A Teoria Social do Discurso trabalha com um modelo que considera
três dimensões passíveis de serem analisadas. Fairclough (2001) propõe em
Discurso e Mudança Social, um modelo tridimensional de análise que
compreende a análise da prática discursiva, do texto e da prática social. O
modelo de análise é pormenorizado em categorias que compreende o uso da
linguagem como prática social
A ADC está preocupada com os efeitos ideológicos que os
sentidos dos textos possam ter sobre as relações sociais, ações,
conhecimentos, crenças, atitudes, valores e identidades. Ou seja, como os
discursos estão a serviço de projetos de dominação e exploração, que
sustentam a distribuição desigual de poder. (THOMPSON, 2002). Esta é uma
das questões centrais para os estudos feministas, o que justifica a utilização
desse aparato para a análise de textos narrativos de autoria feminina. Já que
tais textos tentam subverter as relações desiguais de poder na escrita.
A LSF aponta três macrofunções simultâneas da linguagem,
passíveis de serem identificadas nos textos: a ideacional (enfoque na oração
como processo); a interpessoal (enfoque na oração como ato de fala) e a
textual (enfoque na oração como mensagem). Ao dialogar com a FSF,
672
Fairclough (2003) sugere que um texto envolve simultaneamente as funções
ideacional, interpessoal (identitária e relacional) e textual, as quais devem ser
vista sob os três tipos de significados do discurso, ou seja, como ação (por
meio de gêneros textuais), representação (discursos) e identificação (estilos).
Nessa perspectiva, cada ordem do discurso encerra gêneros discursivos
característicos, que articulam discursos e estilos de maneira relativamente
estável num determinado contexto sócio-histórico e cultural.
Nos exemplos que apresento mais adiante, trabalho com
algumas categorias de análise que correspondem a formas e significados
acionais, representacionais e identificacionais. O significado acional é
abordado a partir da categoria intertextualidade. Bakhtin (2002) enfatiza a
dialogicidade da linguagem, e pressupõe que os textos são dialógicos em
dois sentidos: textos aparentemente monológicos, participam de uma cadeia
dialógica, no sentido que respondem a outros textos e antecipam respostas;
segundo, o discurso é dialógico devido à polifonia, todo texto articula diversas
vozes.
Em termos gerais, a intertextualidade é a combinação da voz de
quem pronuncia um enunciado com outras vozes que lhe são articuladas.
Fairclough (2003) define a intertextualidade como “a presença de elementos
atualizados de outro texto em um texto - as citações”. Para discutir a
intertextualidade, Fairclough (2001, p. 153) utiliza as categorias de
representação do discurso (discurso relatado direto ou indireto),
pressuposição, negação, metadiscurso e ironia. São elementos que podem
ou não estarem presentes na intertextualidade. Uma questão importante na
análise da intertextualidade é a presença ou ausência das vozes. Quando
uma voz externa é articulada em um texto, pode-se ter duas vozes que
representam diferentes perspectivas, interesses e objetivos. A relação entre
as vozes pode ser harmônica, de cooperação ou tensa, uma contra a outra.
Com respeito à categoria da representação de atores sociais,
discutida pelo analista crítico Van Leeuwen (1997), a sua relação ocorre com
o significado representacional e com o conceito de discurso como
representante dos aspectos do mundo e das diferentes “realidades”.
De acordo com Van Leeuwen (1997, p. 219) devemos buscar
as maneiras como os atores sociais são representados em textos, o que pode
indiciar posicionamentos ideológicos em relação e a eles e as suas
atividades. Trata-se de uma proposta que conjuga o social e o lingüístico, mas
com ênfase na “agência” sociológica. Segundo o autor, determinados atores,
por exemplo, podem ter sua “agência” ofuscada, ou enfatizada, em
representações; podem ser representados por suas atividades ou
enunciados; ou ainda podem ser referidos de modos que presumem
julgamentos acerca do que são ou do que fazem.
As representações incluem ou excluem atores sociais para
673
servir a interesses e propósitos particulares. A inclusão pode ser realizada de
diversas maneiras, como nomeação e categorização. Os atores podem ser
representados em termos de sua identidade única, sendo nomeados ou
categorizados. A nomeação realiza-se através de nomes próprios, ao passo
que a categorização ocorre por funcionalização e identificação. A primeira
ocorre quando os atores são referidos em termos de uma atividade, ocupação
ou função à qual estão ligados. Na identificação, os atores são representados
por aquilo que mais ou menos são, como sexo, idade, classe social, etnia, e
princípios religiosos.
Os atores podem ser incluídos também de forma não
individualizada, ou seja, de forma assimilada, por meio de referência genérica
ou específica. A primeira pode ser realizada linguisticamente através do plural
sem artigo e do singular como artigo definido ou indefinido. A segunda
representa os atores sociais em grupos e pode se realizar por meio de
especificação por agregação, quantificando grupos de atores como dados
estatísticos ou por coletivização.
Sobre a metáfora, uma categoria relacionada ao significado
identificacional, parto dos pressupostos de Lakoff e Johnson (2002) que
compreende a metáfora como um fenômeno da linguagem de valor cognitivo.
De acordo com estes autores, o processo metafórico estrutura o pensamento
e a ação humana. A metáfora é definida como um processo cognitivo próprio
do sistema conceitual humano, não apenas como uma função da linguagem.
Estes conceitos dirigem nossos pensamentos, regem as nossas atividades
cotidianas, exercendo um papel na definição de nossa realidade e de nossas
experiências. “Eles estruturam o que percebemos, a maneira como nos
comportamos no mundo e o modo como nos relacionamos com outras
pessoas” (LAKOFF e JOHNSON, 2002, p. 45-46).
Em sua teoria, os autores estabelecem uma classificação dos
conceitos metafóricos, agrupando-os em três grandes classes, a saber:
Metáforas estruturais ou conceituais - são aquelas nas quais “um
conceito é estruturado metaforicamente em termos de outro.”
Metáforas orientacionais ou espaciais - são as metáforas que,
diferentemente das primeiras, “recebem uma orientação espacial não-
arbitrária, pois é baseada na nossa experiência física e cultural”. Essas
metáforas recebem esse nome porque a maioria delas tem a ver com a
orientação espacial, por exemplo, feliz é para cima, que possibilita
expressões como “Estou me sentido para cima hoje.”
Metáforas ontológicas - essas metáforas surgem de nossa
experiência com substâncias e objetos físicos. Segundo os autores, as
experiências que vivenciamos (especialmente com o nosso corpo) fornecem
uma ampla base de metáforas ontológicas, ou seja, a maneira como
674
concebemos eventos, atividades, emoções, idéias, como entidades e
substâncias. Um exemplo é a metáfora a mente é uma máquina, de onde
surge a expressão “Estou um pouco enferrujado hoje.”
A ênfase dada pelos autores aos aspectos cognitivos pode
parecer que eles não estão inclinados a ver o caráter sociocultural das
metáforas. Entretanto, se observar o tratamento dado às metáforas
estruturais, os autores enfocam a importância da relação entre metáfora e
cultura: As metáforas “trabalho é um recurso” e “tempo é um recurso” não são
universais. Elas emergiram em nossa cultura devido à maneira como
concebemos o trabalho, à nossa paixão pela quantificação e à nossa
obsessão por fins específicos. Essas metáforas enfatizam aqueles aspectos
do trabalho e do tempo que têm importância central em nossa cultura.
(LAKOFF e JOHNSON, 2002, p. 140)
No trabalho com o significado identificacional, a investigação
abrange as identidades e diferenças que se ligam aos sistemas de poder e,
então questiona os modos legitimados que servem de suporte na atribuição
de sentidos para o corpo feminino da personagem.
Castells (1999) propõe três formas de construção da identidade:
a identidade legitimadora é introduzida por instituições dominantes a fim de
legitimar sua dominação; a identidade de resistência é construída por atores
em situação desprivilegiada na estrutura de dominação; a identidade de
projeto é construída quando atores sociais buscam redefinir sua posição na
sociedade e constitui recurso de mudança social. Esta discussão sobre
identidades é uma questão importante para a ADC. A luta hegemônica sobre
modos de identificação é a luta entre a fixação / estabilização e subversão /
desestabilização de construções de identidades que reconstitui identidades e
diferenças.
A relação entre identidade e sexualidade das personagens dos
contos baseia-se no encontro entre o corpo, a auto-identidade e as normas
sociais (GIDDENS, 1992, p. 22).
Giddens (1992) acredita que o eu (que inclui a sexualidade) é
resultado de um projeto reflexivo, de um questionamento contínuo do
passado, presente e futuro. Portanto, refletir sobre identidades e diferenças
põe em xeque os processos que concebem as identidades e a capacidade
das pessoas de transformarem sua condição como agentes sociais e
operarem escolhas.
ENTRE MULHER E BRUXA: Lucrécia
O conto Os venenos de Lucrécia de Sônia Coutinho, que teve sua
primeira edição em 1978 e a segunda em 2005, mantém sua inquietante
sensação de que a ficção transforma as realidades do sujeito. O narrador-
personagem da história condensa sonho, realidade e delírios na tentativa de
675
reconstruir seu passado e sua identidade, que passa por uma reflexão do eu
em contato com a cultura e o social.
Tudo começa com a chegada de nosso narrador-personagem na
cidade, e quando o seu amigo lhe apresenta uma bela viúva, madura, rica e
versada em ocultismo e Artes Divinatórias, Lucrécia é o que se pode chamar
uma dama com características do século XIX, a casa colonial e os objetos
decorativos garantem o aspecto misterioso e o ar de encantamento e ilusão
ao redor da personagem, sempre a receber amigos e conhecidos. A
personagem é nomeada e sua identidade marcada a partir da referência
histórica ao seu nome.
O narrador-personagem não tem um nome, parece ter uma
antiga profissão, foi (diz ser) um marinheiro britânico aposentado, que agora
viaja pelo mundo. Ao nomear a figura feminina, a autora deixa entrever que o
narrador-personagem é também o autor porque constrói e desconstrói a
narrativa ao sabor de seus desejos. O que chama a atenção para o fato de
que o texto escrito por uma mulher não marca a escrita com características
próprias, mas permite inferir que autoria e voz não precisam destacar
aparentemente o sexo/gênero de quem escreve. Sônia Coutinho costuma
escrever como um ser andrógino, flutuando de uma voz masculina para
feminina sem se fixar em nenhuma. O que lembra a definição de Donna
Haraway sobre a escrita cyborg, uma escrita em que as histórias recontadas
são “versões que revertem e deslocam os dualismos hierárquicos de
identidades naturalizadas”.(HARAWAY, 1994, p. 275).
No conto em questão, a voz masculina predomina na criação de
uma visão de mundo em que o feminino é instável, problemático e confuso, o
que se percebe nos relatos do narrador-personagem sobre os interesses de
Lucrécia pela Rainha do Vodu de Nova Orleans, Marie Laveau, e pelas artes
de adivinhação.
Com a personagem Lucrécia, o narrador-personagem desfia o
novelo de textos que se comunicam com a história do conto, primeiro é o
nome da personagem que lembra a figura histórica de Lucrécia Bórgia,
depois com as figuras de Marie Laveau e Isobel Goldie (bruxa confessa que
viveu no ano de 1662), além de Medusa, e o Barba Azul. Todas as figuras
recuperadas por intertextualidade em referência a identidade de Lucrécia,
são figuras de aspectos negativos e com características “pejorativas” na
História Social e na cultura, também são desprestigiadas pelo narrador,
principalmente quando diz não acreditar na descendência de Marie Laveau:
Marie Laveau, mulata livre, nascida em 1794, para alguns descendentes
da nobreza francesa, versão que, segundo outros, não passaria de uma
tentativa desnecessária de glorificar ainda mais aquela que ganhou fama
como possuidora de dotes mágicos quando, simples mulher do povo, ...
resolveu questões de amor, saúde e dinheiro para suas clientes.

676
(COUTINHO, 1978, p. 56)

Lucrécia Bórgia, a inspiração para a nossa personagem, foi uma


figura emblemática na História. Assassinatos, envenenamentos, orgias,
incesto, são alguns dos crimes associados a seu nome. Consta que seu pai e
irmãos são os principais responsáveis por esses crimes, já que eram os
beneficiários dos fatos. O alvo preferencial deles foram os seus maridos,
geralmente homens influentes e poderosos que de alguma forma
atrapalhavam os planos de enriquecimento e poder articulados pelos
Bórgias. Por isso, Lucrécia Bórgia casou-se, descasou e tornou-se viúva
várias vezes apesar de sua curta vida. Mesmo com todos os contratempos,
calúnias e acusações, morreu aos trinta e nove anos como mãe decente de
oito filhos e dona de beleza incomparável. A Lucrécia, personagem do conto,
também teve vários maridos, acusações de assassinatos e beleza
envolvente, o único contraste é a ausência de filhos.
Na identificação de Lucrécia, um ponto predominante são as suas
crenças religiosas, que ligam sua história à cidade de Salvador, e traçam um
paralelo entre os aspectos sóciohistóricos e os culturais. A personagem é
uma bruxa e para isso o narrador apresenta todas as provas, a marca de
bruxa na nádega direita, os licores espessos, a indumentária (saias
compridas, excesso de babados e tecidos), o casarão colonial, os objetos
(santos barrocos, candelabros, figuras), o interesse pela adivinhação através
do exame das entranhas de animais sacrificados, e o próprio narrador a sentir
o feitiço ou encantamento que não o deixa partir. Lucrécia e seus malévolos
perfumes transforma-se em viúva negra com um sexo devorador. A
sexualidade que envolve Lucrécia e o narrador parece ser uma ilusão ou uma
imagem construída apenas pelo narrador, já que Lucrécia em nenhum
momento da história parece sentir atração física e sim, pressente os augúrios
da morte que rondam seu ambiente depois da chegada do viajante e
enigmático personagem. Em uma de suas ilusões ou realidade, o narrador
afirma ver o sexo de Lucrécia em uma passagem que denota a relação de
poder ou fascínio exercido por Lucrécia sobre ele:
Vi as meias negras e rendadas de Lucrécia, com desenhos muito
marcados contra a pele branquíssima, vi as gordas coxas comprimidas
pelas ligas rufadas de negro organdi, com um pequeno broche de
brilhantes de cada lado, vi, afinal (erguida a saia de uma vez, num gesto
brusco) - o sexo de Lucrécia assim a descoberto, os vermelhos lábios da
aranha, a Viúva Negra. (COUTINHO, 1978, p. 60).

O que também chama a atenção nesse ponto é a metáfora da


viúva negra, a mulher com um sexo devorador, a mulher relacionada à
natureza, como um animal, uma associação tipicamente falocêntrica. A
“mulher” como representação, como o objeto e a própria condição da
representação de uma ideologia de gênero. Portanto, condizente com a
677
teorização de Lauretis (1994) sobre um entendimento de gênero como
representação e como auto-representação, produto de diferentes tecnologias
sociais, como o cinema, os discursos, epistemologias e práticas críticas
institucionalizadas, bem como das práticas da vida cotidiana. Esta metáfora
retorna um pouco modificada ao relacionar Lucrécia com a Floresta
Amazônica: “Quanto às suas pernas, eram inumeráveis e uma delas,
separada do corpo, percorre incansavelmente a trilha dos mochileiros, na
Ásia Central. Pois Lucrécia era a Floresta Amazônica” (COUTINHO, 1978, p.
65).
O poder exercido por Lucrécia permanece até o narrador
descobrir que ela é apenas uma “simples mulherzinha”. Um termo que
demarca a condição de inferioridade imposta pelo discurso masculino, o que
ocorre porque a personagem admite suas fraquezas, carências e o trauma
sexual infantil sofrido. Lucrécia deixa de ser uma bruxa, e passa a ser apenas
uma mulher. A construção histórica do ser mulher como o outro, como um ser
subordinado, instaura outra relação desigual de poder, se antes o domínio era
de Lucrécia, agora o narrador-personagem se impõe marcadamente na
escrita, já que anteriormente ele estava comum poder implícito. Essa posição
se inscreve no discurso falocêntrico em que os homens representam a
cultura, a razão, o poder, o público e a mulher, a natureza, a emoção, a
intuição, o privado.
O termo poder é compreendido a partir da definição de Foucault
(1992), como um exercício, como algo que está nas práticas sociais
cotidianas, distribuídas universalmente em cada nível de todos os domínios
da vida social e são constantemente empregadas para moldar e se ajustar às
necessidades do sujeito.
Após recuperar e misturar elementos místicos da religião
africana, mitologia grega, e crenças orientais, como o I Ching, Jogo de Ifá,
Alquimia, bola de cristal, e Vodu. O narrador-personagem descobre que
matou Lucrécia. E como desde o início tenta relembrar os acontecimentos e
recontá-los para si mesmo, chega à constatação: “Fui eu quem matou
Lucrécia” (Coutinho, 1978, p. 63). Uma frase em que o pronome “quem” indica
o processo de contar a si mesmo algo feito. Nessa descoberta, percebe-se
que o processo de intertextualidade construída com vozes de diversos textos,
como a biografia da bruxa Gowdie, ou o misticismo atribuído à cidade de
Salvador, serviu como um fator explicativo para a ação do narrador-
personagem. A bruxa Isobel Gowdie que se entregou à Inquisição para ser
castigada e os maridos mortos de Lucrécia em uma referência ao conto de
Barba Azul, que assassinou suas esposas, estes fatos tornam positiva a ação
do narrador-personagem ao matar Lucrécia e também justifica a passividade
da personagem ao aceitar ser golpeada com um punhal de Toledo ou
esquartejada, tendo as partes espalhadas pela cidade, ou queimada em seu
casarão.
678
Assim deixei que se aproximasse, assim abri cuidadosamente os três
botões do seu decote (senti como ela tremia, prestes a desferir o grito de

vitória), assim retirei rapidamente da bainha marchetada o meu punhal


de Toledo - a águia bifronte sorriu sobre o cabo de madrepérola - assim
enterrei a fina lâmina temperada sob o seio esquerdo de Lucrecia, logo
acima da sexta costela. (COUTINHO, 1978, p. 63-64).

Não importa se o narrador-personagem descobre que tudo não


passou de uma febre epidêmica surgida na época da sua estada na cidade de
Salvador, o que importa são as provas da existência de Lucrécia:
Mas trago sempre junto de mim a prova irrefutável da existência de
Lucrécia - sua calcinha de cetim vermelho (visivelmente importada de
Copenhague, do tipo apreciado pelos marinheiros e vendido em
pequenas lojas especializadas) e uma liga de negro organdi rufado,
preciosas peças que ponho no bolso do casaco, ao sair, ou debaixo do
travesseiro, quando vou dormir. (COUTINHO, 1978, p. 66).

No imaginário referente ao período medieval, as bruxas eram as


“prostitutas” dos demônios, a representação final de Lucrécia está associada
a esta imagem, a calcinha de cetim vermelho e a liga de negro organdi
preferida por marinheiros são os fetiches dessa relação. A calcinha de
Lucrécia surge apenas no final como prova da sua inexistência, já que o
narrador-personagem viu somente o sexo da personagem em seus delírios.
De acordo com o conceito de metáfora ontológica, como sendo
uma maneira de compreender eventos, emoções, idéias, acredito que
Lucrécia é a grande metáfora para entender o narrador-personagem,
reconstituir a história de Lucrécia e matá-la foram as formas de reconstruir a
identidade perdida do narrador, através de sua ligação com as cidades
envoltas em misticismo, com os venenos produzidos e administrados pelas
bruxas, os “venenos” da vida que o levam de uma cidade a outra, numa busca
ou fuga de si, para construir sua história de vida. Os “eus” mesclam-se em um
hibridismo que reforça a idéia de uma identidade de resistência em Lucrécia,
apesar de tudo a sua imagem permanece significativa e dominante na relação
com o narrador-personagem.
BREVES CONSIDERAÇOES FINAIS
Este texto, prenhe de vozes oriundas de diferentes lugares,
desnuda traços de um indivíduo múltiplo e de um lugar complexo, lugar de
mulher que é apreendido e expresso a partir da relação assimétrica de poder.
O resultado é um conjunto de discursos que faz a riqueza do
conto. São os discursos das bruxas, da religião africana, da mitologia grega,
dos contos de fada que fazem dialogar ilusão e realidade, ficção e história.
A identidade nomeada de Lucrécia em oposição a um narrador-
679
personagem sem nome, que geralmente é um artifício para personagens com
papéis passageiros e funcionais contradiz o valor da representação de uma
personalização indeterminada de acordo com os postulados de Van
Leeuwen. Esta indeterminação da representação comprova que Lucrécia
parece ser a auto-representação do narrador-personagem, não existindo um
deles.
Fica claro que o narrador-personagem constrói e desconstrói
Lucrécia, durante grande parte do texto, a personagem principal domina a
cena e passa a idéia de que detém o poder de decisão e ação na narrativa,
mas o discurso desprestigiado da imagem feminina associada à bruxas,
medusa, aranha e natureza finaliza a soberania do poder masculino que
decide o destino da mulher / bruxa Lucrécia, segundo as vozes atuantes no
discurso falocêntrico, a bruxa queima ou se desfaz numa nuvem de ilusão e
mistério.
Num conto marcado pela cultura, a memória traça um percurso
que vai do mito para à arte literária, contando a história de diferentes
personagens que se mescla em um, resumidos na articulação de uma
linguagem rica em vozes. Entre o vivido e o construído perpetuam-se as
imagens de mulher e bruxa no espelho da complexa realidade da experiência
humana.

680
REFERÊNCIAS
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2002.
CASTELL, M. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
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(org.) Tendências e Impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de
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HOLLANDA, Heloísa B. de. Os estudos sobre mulher e literatura no Brasil:
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THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na
681
era dos meios de
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2002.
VAN LEEUWEN, T. A representação dos atores sociais. In: PEDRO, E. R.
(org.) Análise crítica do discurso: uma perspectiva sociopolítica e funcional.
Lisboa: Caminho, 1997, p. 169-222.

682
A MULHER E SUAS CONDIÇÕES DE EXISTÊNCIA NA AMAZÔNIA NA
FICÇÃO DE AUTORIA FEMININA NO ACRE.

Profª Drª Margarete Edul Prado Lopes


"O Acre é o Acre. Tudo aqui é tão Acre que existe até a
associação Acreana das Viúvas, presidida pelo Raimundo
Ceguinho. Um homem". Chalub Leite
Minha preocupação nesse artigo é enfocar os problemas, os
temas e as metáforas referentes à mulher presentes nas narrativas de
Florentina e Francisca Trindade Lopes. O artigo focaliza a mulher e suas
condições de existência na Amazônia, com atenção específica ao romance, o
qual, segundo Edward Said, sendo artefato cultural da sociedade burguesa, é
entre todas as principais formas literárias, a mais recente. O seu surgimento é
o mais datável, sua ocorrência, a mais ocidental, seu modelo normativo de
autoridade social, o mais estruturado. Além disso, o romance é uma forma
cultural incorporadora, de tipo enciclopédico. Dentro dele se encontram tanto
um mecanismo altamente preciso de enredo quanto um sistema inteiro de
referências sociais que depende das instituições existentes da sociedade
burguesa, de sua autoridade e poder. Sendo assim, o romance acreano de
autoria feminina se revela um excelente instrumento de estudos de mulheres
atuantes e determinadas, em que aparece de maneira marcante a mulher
indígena.
A Amazônia foi palco da contemplação pura e simples dos
primeiros cronistas e estudiosos, que se deslumbraram diante dos cenários
diferentes e desconhecidos, deleitando platéias curiosas e sôfregas por
histórias novas. A imagem construída sobre a região, nos séculos XVI a XVIII,
é de uma natureza maravilhosa e mítica, terra do fabuloso e das fantasias. No
século XX, surgem vários romances descrevendo uma Amazônia exótica e
luxuriante tais como: A Amazônia misteriosa (1925), de Gastão Cruls; Terra
de Icamiaba (1932), de Abguar Bastos; Seiva (1938), de Osvaldo Ourico,
entre outros. Apesar da força dos mitos e após o deslumbramento inicial
diante da nova paisagem durante os primeiros séculos, a partir do
século XIX pode-se notar um movimento contrário nos relatos e depoimentos
sobre a Amazônia. Surge a necessidade de entender, explicar, explorar e
dominar a região.
O Acre, que ainda não pertencia ao Brasil na época dos primeiros
viajantes, não foi contemplado com relatos deslumbrados dos viajantes
diante da nova terra, mas tem sido descrito, desde os primeiros romances,
como um lugar do homem branco em conflito permanente com a terra, com os
índios, com os estrangeiros (portugueses, bolivianos, americanos, ingleses).
Retrata-se o ser humano lutando para sobreviver na floresta, nas mais
683
miseráveis e rígidas condições de vida, uma vida sempre por um fio, em
terreno hostil e inócuo, habitado por animais nocivos e de condições
climáticas extremas. Pode-se ler o seguinte trecho no romance A Selva, de
Ferreira de Castro:
Era outro o meio, outra a terra e outros os seres. Nada se criara ali para o
comprazer, nada lhe falava das pessoas com quem convivera, dos seus antigos
costumes, das coisas que amara. Era um mundo à parte, terra embrionária,
geradora de assombros e tirânica, tirânica ! [...] Existia o emaranhado vegetal,
louco, desorientado, voraz, com alma e garras de fera esfomeada [...] porque ali
somente a selva tinha vontade e imperava despoticamente”. (A Selva, p. 123).

Das narrativas reconstruindo os fatos históricos da região,


destacam-se Guerra dos Seringueiros, de Jesuíno Ramos e Território de
bravos, de Francisco Marins. Embora os dois autores não sejam acreanos,
relatam, na forma de ficção, a história detalhada da Revolução chefiada por
Plácido de Castro, que resultou na anexação ao Acre ao Brasil. Em relação
aos autores acreanos, nas Memórias de um padre seringueiro, de Expedito
de Castro, bem como em Ô de Casa, de Francisca Trindade Lopes, os
personagens principais se movimentam em meio aos acontecimentos
violentos da Revolução Acreana, que servem de pano de fundo. Memórias de
um seringueiro, de Jersey de Brito Nunes, conta a história da origem e
formação da cidade de Sena Madureira, enquanto O trabalho vence tudo e
Luta contra os astros, ambos de José Higino de Souza Filho, resgatam e
documentam o cotidiano e costumes dos habitantes de Vila Sobral (hoje
Tarauacá), nas primeiras décadas do século XX. Quanto à autoria
feminina, são três os romances de mulheres no Acre: Terra de Deus (1993),
de Luciana Barbosa; O empate (1993), de Florentina Esteves e Ô de casa
(2003), de Francisca Trindade Lopes.
O romance de Francisca Lopes se inicia na cidade, quando um
homem que está há muito tempo sumido e dado como morto, reaparece no
portão da casa da protagonista chamando: “Ô de casa!”. Imediatamente se
inicia um flash-back para contar a história dos dois personagens que se
apaixonaram no passado: Luísa e Dêro. Ela com apenas dezesseis anos, ele
bem mais velho, nas terras designadas para os seringueiros trabalharem
depois que foram expulsos pelos fazendeiros de gado. O relato contém todos
os detalhes de como o casal de conheceu e foi se apaixonando devagar. Ela,
sempre de gênio forte e voluntariosa, ele, um homem calmo e de atitudes
sensatas. Quando eles estão de casamento marcado e ela acaba de
entregar-lhe a virgindade na véspera, ele sofre uma emboscada e chegam as
notícias de que foi assassinado.
Tem início outro flash back, para os tempos em que o Acre foi
anexado ao Brasil, os tempos de Plácido de Castro, gaúcho que liderou a
revolução que tomou o Acre da Bolívia. Esse novo relato conta a história de
684
um ascendente do protagonista, Artur, o avô de Dêro, que foi um dos heróis da
Revolução Acreana. Mais da metade do romance é tomada por esse relato
histórico (da página 57 até 190) e se encerra com ele. As duas primeiras
narrativas ficam abandonadas e inacabadas, sem nenhum desfecho.
No entanto, sobre a terceira história, há muitos aspectos
relevantes a serem discutidos. Artur, ao contrário da maioria de nordestinos
que vieram trabalhar nos seringais, sabia ler e escrever: “Artur escreveu para
seus pais e para Rosinha, a primeira carta depois que chegara ao seringal” (Ô
de Casa, p.92). Também, os registros da fala de Artur são dentro da norma
culta. Entretanto, a característica mais importante do livro de Francisca
Trindade Lopes é que criação de uma personagem indígena. Os
personagens índios são raros nos romances do e sobre o Acre, de inscrição
masculina. Embora que o primeiro romance amazônico, publicado em 1857,
Simá, de Lourenço da Silva Araújo Amazonas, seja declaradamente
indianista, ainda que retratando um drama que se limita a um destino de
submissão à colonização portuguesa. A importância do livro reside em ser a
primeira tentativa de registrar a condição de vida na Amazônia, de definir as
relações entre índios e brancos, recriando a atmosfera da região ainda em
confronto aberto com os conquistadores:
A relação entre brancos e indígenas, a força do clero, as disputas políticas estão
colocadas como pano de fundo atrelado a uma intensa descrição da paisagem e à
preocupação com a construção do perfil do homem amazônida, fruto da
miscigenação. A natureza é caracterizada como uma dádiva divina, metáfora do
Éden. Como motivo principal da narrativa, temos a trajetória da heroína, Simá, sua
vida, amizades, amores, destino, tragédia. Uma heroína romântica da Amazônia,
com fim trágic.

O Brasil não tem uma tradição de literatura indianista muito forte,


mas Simá comparece como um romance precursor dos escritos de José de
Alencar. Todavia, tal como o escritor cearense, Lourenço Araújo propõe uma
visão otimista do encontro entre as duas culturas, branca e indígena, ainda
que antevendo os pesadelos internos. Também como Iracema (1965), a
heroína indígena Simá morre de forma trágica ao final da história, numa
alusão de impossibilidade da cultura aborígine sobreviver à colonização
portuguesa. No entanto, é bastante significativo que a primeira personagem
de ficção da Amazônia seja uma jovem índia e não um elemento branco.
Um dos primeiros romances sobre o Acre também valoriza e
descreve a cultura autóctone: Ressuscitados, de Raimundo Morais,
publicado na década de trinta. Seguindo em linha contrária a ideologia dos
livros de José de Alencar e Lourenço Araújo, Raimundo Morais descreve uma
jovem índia ipurinã, Corina, que não morre ao final da narrativa, mas sim mata
a sangue frio seu ex-marido branco, porque ele matou seu amante índio. Após
o sinistro, ela vai embora para o coração da floresta viva e vitoriosa.
685
Os miolos escorreram. A cara se lhe transformou numa posta sangrenta.
Corina vibrou-lhe ainda outro golpe, pisou-lhe o rosto, cuspiu-lhe,
apostrofou-o, estava horrivelmente sinistra. Era agora uma das próprias
Fúrias, uma das Gorgonas, tentando talvez metamorfosear em pedra a
carne daquele maldito que lhe matara o amante. Delirava em torno dos

despojos de José Alves. Ia e vinha olhando-o furiosa, à espera sem dúvida


que lhe acudisse à lembrança algum suplício que fizesse urrar de dor o
morto. Dando, todavia, com o Cauré estendido no chão, foi outra vez para
ele, mudando-se de novo na imagem duma soros Pudibunda. Suas mãos
piedosas acariciavam a cabeça ensangüentada do amante. Nisto
chamou Japiim, tal se lhe houvesse ocorrido alguma idéia. Convidou o
irmão a carregar o corpo, e, como se levasse ali o seu grande tesouro, os
seus anelos e a própria alma, desapareceu na floresta. Nunca mais
ninguém soube dela”.

A narrativa transcorre nos tempos em que o Acre ainda pertencia


à Bolívia, em fins do século XIX, no local onde hoje se localiza a cidade de
Sena Madureira. José Alves Ferreira, cearense, rude e de pouca instrução, só
havia cursado o primário, tinha trinta anos quando os índios canamarí
deixaram Corina em seu seringal e ela foi “adotada” por ele: “O capitão
Ferreira desceu curioso até junto das embarcações. De uma delas,
embrulhada em trapos e metida num panaçu, o tucháua tirou a criança. Mal
abria os olhos de recém-nascida. Trazia dois dedinhos da boca, José Alves
pegou a criança e chamou, gritando, pela mãe Genoveva, que recebeu e
levou no colo a cunhantain (Ressuscitados, p.13)”.
José Alves faz da indiazinha ipurinã sua protegida e quando ela
alcança a idade de oito anos, envia a menina para ser educada em colégio de
freiras, em Belém: “Educou-se com as freiras. Sabe de um tudo. Borda, pinta,
fala inglês, francês, espanhol, italiano, latim. Ela entra com a sabedoria e ele
com o dinheiro. Bonita pra doer” (Ressuscitados, p.150). Após a passagem de
mais oito anos, José Alves vai buscá-la, mas como nunca teve olhos de pai
com a protegida, pretende casar-se com ela. Sua viagem até Belém é descrita
em vários capítulos, mostrando as extravagâncias e gastos do seringalista
em Manaus e a visita ao famoso bordel de francesas, a Pensão Florou. Dono
de oito mil contos de réis, José Alves compra diamantes, peles e roupas finas
para presentear Corina.
Márcio Souza assinala as discrepâncias nas atitudes de um
coronel da borracha: ele era o cavalheiro urbano em Manaus e o patriarca
feudal nos seringais. O outro lado, o lado terrível, do isolamento e do regime
de semi-escravidão dos seringueiros, das estradas secretas, ficava bem
protegido, escondido no infinito emaranhado de rios, longe das capitais. Ele
ainda ressalva a importância de se tomar conhecimento dos exageros de
consumo dos "coronéis de barranco", que bebiam do melhor uísque
686
importado da Europa, sendo que algumas famílias tinham a extravagância de
mandar a lavar a roupa em Lisboa. Mas essa opulência teve seus dias
contados.
O romance descreve a parvoíce e ignorância dos seringalistas
enriquecidos pela borracha, que são explorados nas grandes cidades por
comerciantes inescrupulosos. O termo “Ressuscitados” nomeia aqueles que
ficaram enterrados durante anos no trabalho extrativista e, é como se
renascessem para o mundo, quando reaparecem nas cidades de Manaus ou
Belém, ricos e atrapalhados, sem saber como se comportar na civilização,
sem nenhum traquejo para a vida em sociedade. José Alves, no caso, está
saindo do Seringal Santa Clara, para buscar Corina, depois de 36 anos
internado na floresta:
No mesmo dia em que José Alves Ferreira Chegava a Belém, espalhara-se a
noticia, através, aliás, de cem versões, algumas fabulosas, outras reais, todas,
porém, como sentido justo duma existência que se afundara na planície, já lá iam
36 anos, pobre e desvalida, para ressurgir rica e prestigiada. A imprensa toda,
depois, explorando o caso, aludia ao seringueiro. Certo matutino – A Província do
Pará – sob o título de Um Ressuscitado, comentava a vida de José Alvez, vida
rude na mata (Ressuscitados, p. 143).

O elemento em destaque no romance de Raimundo Morais é a


representação da mulher indígena (Amazônia, natureza) superando e
matando o homem branco (colonizador, explorador). A índia Iracema, de
Alencar e Simá, de Lourenço Araújo sucumbem diante da dominação
portuguesa, contudo, Corina personifica a resistência da raça. Do mesmo
modo, a personagem Iana, do romance Ô de Casa, de Francisca Trindade
Lopes. Iana é uma índia de cerca de dezessete anos, sobrevivente ao
massacre de sua tribo: “Quando ela chegou aqui, fugia muito e ficava de três
dias sem aparecer. Achávamos que ia procurar sua gente. Como não
encontrava nem vestígio deles, uma vez que, com sacrifício até de vidas,
conseguimos expulsa-los para bem longe, ela retornava, mas só aparecia à
noite para roubar comida, quando era pega e castigada para não fugir mais”
(Ô de Casa, p.88).
Iana trabalha como babá do filho do patrão, dono do seringal.
Quando Artur chega do Ceará, aos 23 anos, para trabalhar no corte de
seringa, ela é designada para ser companheira dele: “Seu ajuntamento com
Iana aconteceu arranjado pelo patrão e quando ficou sabendo que uma
mulher índia ia ser sua companheira, quis recusar” (Ô de Casa, p.135). De
início, Artur demonstra preconceito em seu relacionamento com Iana. Ele
deixou os pais e uma namorada, Rosinha, esperando por ele, no Ceará. Ele
decide ficar com a índia somente por uns dois anos, para preencher a solidão
na selva e depois voltar para sua terra. Mas logo, Iana tem um filho de Artur.
Durante a gestação, os companheiros de luta festejaram: “Eh, brabo! Adeus,
687
Ceará. Você vai mesmo é ficar por aqui...” (Ô de Casa, p.119). Os
preconceitos de Artur vão desaparecendo paulatinamente e ele começa a ver
vantagens da união com a índia que não aconteceria com uma esposa
branca. Sua namorada, Rosinha, no Ceará, não permitia nada além de
rápidos e leves beijos, enquanto na floresta, a índia está sempre disponível
para o sexo.
Ter uma mulher índia como companheira foi a melhor coisa que
aconteceu comigo depois que saí de casa. Ela sabe viver e trabalhar na
mata! E se não fosse ela, estava, como a maioria dos companheiros,
trabalhando sozinho, enfrentando, além dos perigos de viver no meio do
mato, uma grande solidão, o que não estava acontecendo com ele graças
à índia. E o que era melhor, Iana era uma mulher que não se fazia de
rogada. Fosse nos caminhos das estradas de seringa, fosse na beira do
igarapé ou mesmo noutro lugar, estava sempre disposta para uma sem-
vergonhice. Mas isso ele não ia contar aos pais; estava longe, mas não
estava doido. Imagina contar essas coisas para o velho, nem que o padim
pade Ciço pedisse (Ô de Casa, p.135).

No mundo dos índios não existe os interditos e vetos que a


sociedade ocidental impôs sobre as mulheres desde os tempos da
Modernidade. A índia desfrutava de um comportamento mais livre que a
mulher da cidade jamais teria naqueles tempos. Em seguida, Artur é
convocado pelo patrão, com mais meia dúzia de seringueiros, para lutar sob o
comando de Plácido de Castro, na Revolução Acreana, em que os brasileiros
tomaram o Acre da Bolívia. Meses depois, ao retornar da batalha, Iana já tinha
tido outro filho e também aprendera a ler e escrever e já dominava um
vocabulário maior do que tinha antes. Por ter participado da guerra, Artur teve
sua dívida com o patrão perdoada e no final do ano de 1905, já com três filhos,
foi ao Ceará rever os pais e irmãos. Mas ao final do romance, Artur se
estabelece de vez no Acre, sempre com Iana com a qual teve um total de oito
filhos. De forma semelhante à Corina, a índia Iana sobrevive e se encaixa na
sociedade dos brancos, porque assimila e aceita a cultura do Outro.
No romance O empate (1993), Florentina Esteves discute a
polêmica questão das queimadas e do desmatamento na região do Acre, os
conflitos entre fazendeiros e seringueiros. O termo "empate" tem origem no
verbo "empatar" e foi empregado na região acreana com o sentido de impedir
alguém de realizar ato danoso contra a natureza ou um determinado grupo.
Para enfrentar a força desagregadora dos criadores de gado, que tentavam
desarticular o antigo extrativismo vegetal da borracha e da castanha,
tradicional na região, implantando fazendas nas terras de seringais, os
seringueiros se utilizavam do “empate”. Homens, mulheres e crianças se
posicionavam de mãos dadas, na frente das armas, de motosserras e dos
peões que trabalhavam para os fazendeiros e madeireiros, para impedir a
invasão de suas terras e a derrubada da floresta. Se necessários ficavam
688
horas na mesma posição ou até o dia inteiro. Esta atitude de resistência foi
chamada de "empate".
Os primeiros empates foram organizados pelos seringueiros como forma de se
contrapor aos fazendeiros, que queriam expulsá-los de suas Colocações de
Seringa, ou para impedir que derrubassem as florestas para formar pastos para os
bois. [...] Em um empate, a polícia sempre se apresentava ao local para proteger
os patrimônios dos grandes proprietários e para fazer cumprir as ordens judiciais.
Os seringueiros enfrentaram, em seus empates, ordens judiciais e violências
policiais [...].

O herói da narrativa é Severino Sobral, que mora com o filho,


Firmino. Pai e filho vivem no tempo da liderança de Chico Mendes, no
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, com o mercado da borracha
decadente e a chegada de homens e máquinas de São Paulo e outros
estados do sul, para desmatar a floresta para feitura de pastos para a criação
de gado. Esse tempo de transição de uma economia para outra é bem
registrado no romance com os empates feitos pelos últimos seringueiros,
liderados por Firmino.
Na primeira parte do livro, a narrativa se detém na solidão de
Severino, vivendo isolado na mata, no corte da seringa, com visitas
esporádicas do amigo Celestino. O amigo, que era casado, dizia-lhe sempre
para arranjar uma mulher, pois a cachorra Lindalva, que lhe servia de
companhia, de mulher só tinha o nome.
- Pois então me diga onde é que tem mulher.

- Ter, não tem nem bagulho. Você já viu a Chiquinha do finado Idroaldo?
Aquilo é que é ser canhão: vesga, manca, corcunda, e, além de tudo,
preta que nem tição. Pois ainda no velório, Simplício e seu Zé-dos-Bodes
armaram tal fuzuê que um foi pra casa sangrando, e o outro levou a
mulher, antes mesmo do defunto feder. Mas se tu tem coragem, faz como
o finado Cosme: um dia que Gumercindo viajou a Xapuri, ele foi no seu
barraco, agarrou a mulher, levou à força. E inda deixou recado: se vier
buscar, leva bala. Só que ele não contava cruzar com Gumercindo, no
meio do caminho. Foi bala, seu Severino. E do pobre do Cosme as
piranhas deixaram só o esqueleto (O empate, p.07).

Aqui a manifestação de relações de raça e de gênero está em


questão. A mulher disputada pelos seringueiros no velório é negra. A
presença do elemento negro é ainda mais rara que a do indígena no romance
acreano. Além de praticamente não existir escritores negros, os
representados nas narrativas são personagens sempre subalternas, a
serviço de um seringalista rico e explorador. É o caso do capataz e comboieiro
negro Tomaz, que trabalhava para o Coronel Tonico Monteiro, em Terra
Caída, de Jose Potyguara. Outra personagem negra é a mãe Genoveva,
689
cozinheira de José Alves, dono do seringal Santa Clara, em Ressuscitados,
de Raimundo Morais. Ela é uma nordestina, responsável pela criação e
educação de Corina até os oito anos de idade, quando então lhe contava
histórias do imaginário popular nortista, ensinava as cantigas e os mitos
locais. Ao final da narrativa, quando José Alves está se preparando para
atacar a aldeia de Corina, com um regimento de seringueiros armados, mãe
Genoveva pede as contas e volta para Belém, alegando ao patrão que prefere
ir embora para não ter que ver a morte de “sua rica e bela menina”.
Severino, após beber em excesso no baile, fica bem doente e
viaja com Celestino para tomar os remédios da índia Jandira. Nessa ocasião,
Severino conhece Mani e, no mesmo dia, volta com ela para sua barraca,
para ser sua companheira: “Severino sentiu que Mani era parte de seu ser, de
que também faziam parte a terra, rio, árvores, pássaros e o ar que respirava”
(O Empate, p.16). No decorrer da narrativa, sobressai aos olhos do leitor a
história de amor do seringueiro Severino Sobral e sua companheira Mani,
índia da tribo dos Ianomâmis, uma vez que a mulher branca contava em
quantidade insuficiente para todos os seringueiros. Ele e Mani (homem
branco e índia) formam um casal de amantes perfeitos, vinculados entre si e
com a mata. O trecho abaixo demonstra a força da ligação entre Severino e
Mani, que, ao nascimento de cada filho, plantavam uma árvore em
homenagem à criança:
Mandaram logo recado a Jandira. Mas como a índia não chegou a tempo,
ele mesmo serviu de parteira. Serviu de parteira também quando nasceu
Iraci, depois Jaci, Conceição, Maria Rita, Antônia, Agaildo, Aquino.
Jandira só precisou vir na vez do temporão: Firmino. Aí ele levou-a ao
terreiro, 'vem ver os irmãos dos meninos'. Enfileirados, mostrou-lhe que
depois da sapupema vinha a ingazeira, o cedro, copaíba, pau-d'arco,
mulateiro, o sapoti e a tamarineira. Pouco adiante, atravessando a
trepadeira do portão do barraco, estava o pé de cumaru-ferro: este é o
irmão de Firmino. (O empate, p. 20).

Quando nasceu Nino, o primeiro, plantaram uma Sapupema.


Jandira, mãe de Mani, era parteira e ajudava nos partos, pois, na floresta, os
médicos aparecem esporadicamente. O próprio marido passa a fazer os
partos de sua esposa, voltando a pedir ajuda da sogra no último e nono filho.
Assim, o quintal floresce farto de árvores, cada uma plantada de acordo com o
desejo que Mani teve na gravidez e com a característica que seria marcante
no filho que nascia.
Todos esses elementos servem para revelar ao leitor como seria
difícil, impossível para um homem como Severino deixar suas terras,
plantações e moradia, uma vida de seringueiro para viver na cidade, só
porque a terra agora pertencia a fazendeiros. Mani adoece e acaba por
falecer depois que os filhos estão adultos. Ela começa a entristecer com a
690
morte de Agaildo, o filho que decide ajudar nos empates depois de se casar e
constituir família. Ele morre durante um dos empates de emboscada,
esfaqueado por um peão, deixando a esposa grávida do primeiro filho. Mais
tarde, Nonato, o marido de Toinha, filha de Severino e Mani, mata um peão
que mexera com sua esposa. Nonato foge e desaparece depois do crime.
Severino leva Toinha e os netos para sua casa (barraco). Quando ela resolve
voltar para sua colocação, toma conhecimento que os “paulistas” queimaram
tudo e já se apropriaram das terras. Ela deixa as filhas menores com os avós e
decide morar na cidade com o filho mais velho. Certa ocasião, em que
Severino vai visitá-la, descobre desgostoso que a filha vive na prostituição.
Após tais acontecimentos a saúde de Mani piora, causando-lhe a
morte. Ela não teria como sobreviver. Sendo ela a representação da natureza
dentro da narrativa. Ela, mulher indígena, que conhecia todos os remédios
feitos com as ervas da floresta, conhecimento ancestral, passado de mãe
para a filha. Ela que conhecia os mistérios e os segredos da mata, morre, uma
alegoria de que os criadores destruindo e queimando as árvores
indiscriminadamente para a criação de pastos, matavam também as
tradições, a sabedoria do povo da floresta, seus costumes e meios de vida. O
massacre ambiental equivaleria a um massacre cultural.
Mary Louise Pratt, em seus estudos sobre o amor transracial, em
relatos de viajantes ingleses, de 1750 a 1800, observa que os enredos desse
tipo de amor articulam o ideal de harmonia cultural através do relacionamento
amoroso. O que faz deste ideal um ideal é, mais de uma vez, a mística da
reciprocidade. “Enquanto ideologia, o amor romântico, como o comércio
capitalista, se vê como recíproco. Reciprocidade, o amor retribuído entre
indivíduos igualmente valiosos um para o outro, é seu estado ideal”. O drama
ou escândalo acontece quando fracassa a reciprocidade, ou a equivalência
entre as partes.
A crítica assinala também que por mais que os amantes desafiem
as hierarquias coloniais, no final, eles obedecem a elas. A reciprocidade se
torna irrelevante. Assim, seja ou não correspondido o amor, seja o amante
colonizado homem ou mulher, o resultado parece ser aproximadamente o
mesmo: os amantes são separados, o europeu é reabsorvido pela Europa e o
não-europeu morre prematuramente. Pratt se refere em suas análises ao
amor transracial entre negros (ma maioria das vezes crioulos, mestiços) e
brancos, entre o colonizado e o colonizador, entre o europeu e o não-europeu,
como, por exemplo, na Narrativa de uma expedição de cinco anos contra os
negros revoltosos de Suriname, de John Stedman, a qual conquistou
imaginações por toda a Europa durante trinta anos, após sua publicação em
1796. Ainda assim, é possível aplicar suas palavras a romances como
Iracema, de Alencar e Simã, de Lourenço Araújo, nos quais os amantes são
separados ao final e o elemento europeu é “reabsorvido pela Europa e o não-
europeu morre prematuramente”.
691
Se as índias Iracema e Simá morrem nas narrativas românticas
do século XIX, ainda refletindo a ideologia de relatos como os de Stedman, o
mesmo não acontece em relação à produção ficcional da Amazônia,
tematizando o amor transracial, principalmente, nas narrativas de autoria
feminina do Acre. As diferenças estão em que as relações agora são entre
homens e mulheres do Brasil, mas de raças diferentes: indígena e branca. Os
amantes ainda pertencem a espaços geográficos distantes e diferentes: o
homem é sempre nordestino, que veio de fora para viver no Acre, as mulheres
são indígenas.
Necessário apontar também que o amor transracial se realiza e
tem permanência porque um dos amantes de fixa no espaço do outro. Aqui
são os homens que permaneceram na Amazônia. Em Ô de Casa, de
Francisca Lopes, inicialmente Artur tem planos de voltar para o Ceará e se
casar com Rosinha, depois que juntar dinheiro suficiente produzindo
borracha. Porém, após o nascimento de seu primeiro filho com Iana, ele
começa a mudar de atitude. O amor ente eles floresce e tem longa duração
porque ele resolve se fixar no Acre. Quando ele visita seus pais, no Ceará,
depois de lutar na Revolução Acreana, note-se que ele não leva Iana com ele,
apenas o filho mais velho. Nas palavras de Pratt, “os vínculos amorosos se
desenrolam em algum espaço marginal ou privilegiado onde as relações de
trabalho e propriedade estão suspensas” Da mesma forma, acontece entre
Severino e Mani. O idílio é perfeito porque o casal vive nas entranhas da
floresta, no ambiente dela.
O elemento indígena sobrevive ao branco segundo duas
condições: aniquilar o branco ou assimilar e aceitar sua cultura, sufocando a
sua própria. No caso do romance Ressuscitado, Corina mata José Alves
porque na verdade ela nunca teve nenhum amor por ele, senão talvez filial.
Também ela era uma moça fina e culta, que dominava a cultura ocidental
muito melhor do que ele. Ela recebeu uma educação formal completa, ele mal
fizera o curso primário. Já no amor de Artur e Iana, ela aceita a
transculturação, ela assimila o mundo do branco. Mani também é brilhante e
atuante porque nunca é retirada de seu mundo da floresta, o qual ela domina
totalmente. Quando esse mundo é ameaçado pelas máquinas dos
“paulistas”, pelo desmatamento e desapropriação, ela morre de desgosto.

692
REFERÊNCIAS
CUNHA, Euclides da. (2000). O paraíso perdido. Seleção e coordenação
de Hildon Rocha. Brasília: Senado Federal.
ESTEVES, Florentina. (1993). O empate. Rio de Janeiro: Oficina do Livro.
LOPES, Francisca Trindade. (2003) Ô de casa! Rio Branco: Printac.
LOPES, Margarete Prado. Motivos de Mulher na Amazônia: produção de
escritoras acreanas no século XX. Rio Branco: Editora da UFAC, 2006.
MORAIS, Raimundo. [s.d]. Ressuscitados: romance do Purus. São Paulo:
Melhoramentos.
PRATT, Mary Louise (1999). Os olhos do império: relatos de viagem e
transculturação. Bauru, EDUSC.
SOUZA, Carlos Alberto Alves de. (2002). História do Acre: novos temas,
nova abordagem. Rio Branco: Editor Carlos Alberto A. de Souza.
SOUZA, Márcio. (1977). A expressão amazonense do colonialismo ao
neocolonialismo. São Paulo: Alfa-ômega.
SOUZA, Márcio. (1994). Breve história da Amazônia. São Paulo: Marco Zero.

693
GT 7 – GÊNERO, RELAÇÕES DE TRABALHO E MEIO AMBIENTE
Coordenação: Profª. Dra. Isaura Rufino Fischer
APRESENTAÇÃO
A condição da mulher foi estruturada na sociedade de forma
particular, no tempo e no espaço, em cada civilização, assumindo traços e
peculiaridades, segundo os valores, a cultura, a religião e a tradição de cada
época. Como diz Saffioti, (1996), as mulheres, desde as sociedades a-
históricas, além de executarem tarefas domésticas, produziam para o
consumo de outros, tanto no artesanato quanto na agricultura. Apesar de
realizarem diversas atividades, oficialmente não trabalhavam, pois seu labor
não era considerado de natureza social, pelo fato de estar associado ao
espaço privado onde o trabalho é invisível.
No prenúncio da contemporaneidade, com o surgimento da
industrialização que lastreia o sistema burguês, as mulheres do mundo
considerado civilizado dão passos regulares na direção do espaço público, ao
serem convocadas para desenvolver atividades remuneradas. No novo
processo de trabalho são submetidas ao assalariamento e a exploração que
lhe é peculiar. Nessa condição triplicam suas atribuições na sociedade ao
serem responsabilizadas pelo cuidado da família, pela reprodução da força
de trabalho e, também pela participação na chamada produção social na
condição de assalariadas. É o início de uma era em que elas passam a
transitar em espaços que lhes são estranhos, a conviver com pessoas do
outro sexo e ter acesso ao dinheiro, o que ao longo de séculos foi um privilégio
masculino (FISCHER, 2006).
A feminização do trabalho coexiste com a reprodução da divisão
sexual daquele: na realidade, as fronteiras se deslocam, mas a divisão do
trabalho se mantém (HIRATA, 2002), servindo assim para indicar diferenças
de posicionamentos na estrutura ocupacional e para sinalizar que o trabalho
doméstico é próprio da mulher. A divisão social do trabalho contém a divisão
sexual do trabalho e nela está implícita a opressão dominação, que se
mantém através de uma hierarquia de poder entre os sexos. Essa condição
histórica está presente em todas as sociedades, mas sempre ligada a uma
estrutura em que o trabalho masculino tem valor superior ao
trabalho feminino.
Na trama da dinâmica social, o mundo do trabalho passa por
transformações movidas pela ampliação do capital no universo,
acompanhado pela metamorfose do sexo do trabalho. A globalização
modifica o lugar das mulheres na economia e nos espaços de trabalho, mas
também os papéis masculinos e femininos no âmbito da vida política e social,
alterando simultaneamente as formas de desigualdade entre mulheres e
homens. As mulheres são mais pobres, mais desempregadas, mais sujeitas a
violência. Têm menos acesso a tecnologia da informação, da comunicação
etc. embora desfrutem mais da educação hoje que no passado (HIRATA,
2004).
A efetivação do trabalho está centrada no uso dos recursos
naturais. Desse uso tem surgido a preocupação, a nível mundial, com as
questões ambientais atreladas as economias universais. Com a urbanização
697
da população mundial vem aumentando a preocupação quanto ao uso
racional dos recursos naturais, principalmente, nos aspectos das escolhas
tecnológicas, conservação da água, da terra, do planeta e da humanidade, de
um modo geral. As mulheres são chamadas a reduzir o nível de consumo dos
recursos naturais através da diminuição da taxa de natalidade.
A forma de uso dos recursos naturais tem gerado pois,
questionamentos quanto ao paradigma do desenvolvimento adotado que
prioriza o crescimento sem no entanto integrar questões sócio econômicas,
políticas e ecológicas considerando as relações de gênero, classe, etnia e
geração, ai estabelecidas.
Essas e outras referencias sobre o mundo do trabalho permeiam
a pauta da produção acadêmica do GT Gênero Relações de Trabalho e Meio
Ambiente, em sua atualização histórica do momento atual. Tal GT agrega,
pois trabalhos de pesquisa realizados através da metodologia qualitativa,
método predominantemente adotado nas pesquisas sobre a condição das
mulheres na sociedade.
O elevado número de trabalhos de pesquisas contidos neste GT,
como pode-se observar a seguir, dificulta o uso da prerrogativa de apresentar
cada pesquisa, isoladamente, além de que este foge ao objetivo desta breve
apresentação.
Este GT agrega predominantemente pesquisas sobre as
mulheres, no campo do trabalho remunerado, porém geralmente
desvinculado da obrigação empregatícia e da formalidade dos direitos. A
produção acadêmica do GT está alinhada a discussão sobre a invisibilidade
do trabalho feminino, os arranjos de sobrevivência adotados pelas mulheres,
as triplas jornadas de trabalho, a reivindicação do direito a terra, a visibilidade
política das mulheres nas políticas públicas (inclusive aquelas relativas ao
crédito, renda, conhecimento científico tecnológico e questão ambiental) e,
em órgãos classistas.
A principal explicação para os problemas apresentados nesses
trabalhos está pautada na divisão sexual do trabalho, constituída como forma
de dominação submissão que antecede o capitalismo e deriva da
propriedade privada (ENGEL, 1984). Ela não apenas permanece mas se
torna evidente com a emergência do capitalismo, que desarticula a indústria
doméstica, capitaliza a produção agrícola e submete o trabalho a condição de
assalariamento. A divisão sexual do trabalho é social, e não natural, e está em
permanente mutação. No espaço público, o trabalho da mulher se coloca
como extensão do trabalho doméstico de forma que são dedicadas a ela a
execução de tarefas secundárias que ideologicamente dispensa força física e
supostamente justifica a desvalorização do trabalho feminino na esfera da
produção. No manto de tal justificativa é atribuído salário mais baixo, e
tratamento diferenciado, inferior aos trabalhadores masculinos, cujos
encargos, em tese, exigem força física.

Profª. Dra. Izaura Rufino Fischer


Coordenadora do GT 8 - Gênero, Relações de Trabalho e Meio Ambiente
698
QUESTÔES DE INVISIBILIDADE DO TRABALHO DAS MULHERES PARA
A FAMÍLIA E A SOCIEDADE: abordagens comparativas

Neuza de Farias Araújo


O presente texto trata de apresentar reflexões da pesquisa
desenvolvida em nível de pós-doutorado tendo como unidade acolhedora a
Faculdade de Economia da Universidade do Porto, Portugal.
Nesta investigação tentamos dar visibilidade a contribuição
econômica das mulheres para a família e a sociedade, através da análise das
atividades que elas desenvolvem, abordando aspectos comparativos Brasil e
Portugal, considerando a análise dos aspectos referentes à invisibilidade que
envolve esta contribuição.
Nossos referencias situaram-se, em primeiro lugar nas pesquisas
que venho desenvolvendo nesta área de gênero desde a década de l990,
tendo já produzida uma tese de doutorado defendida na Universidade
Sorbonne Paris VII, sobre as estratégias de sobrevivência e organização das
mulheres chefes de família, na região do nordeste brasileiro, Dando
continuidade às pesquisas no contexto brasileiro sobre a inserção sócio
política destas mulheres na sociedade, pesquisa realizada, com
financiamento do CNPq, que resultou em capítulo de livro.
Voltando-se para as questões da contribuição econômica das
mulheres para a família e a sociedade, procurando analisar as atividades
desenvolvidas por elas utilizando como modelo de análise crítica o esquema
circulatório da economia, identifica como o trabalho das mulheres vai
aparecer ou não nesta circulação do aparelho produtivo, e na contribuição
das famílias como consumidoras de bens e serviços.
Um segundo ponto de nossa reflexão, inspira-se nas correntes
feministas, no que concerne a defesa pelo reconhecimento pelo trabalho
doméstico, invisível, não pago para dar suporte às análises das questões de
gênero, trabalho e emprego do tempo, no domicílio e no trabalho externo.
Outro aspecto a considerar é a identificação destas questões, e
como estão sendo vivenciadas em nível dos dois países utilizando o método
comparativo para identificar quais são suas semelhanças e diferenças.
Inicialmente faremos referências à ciência econômica, as noções
de trabalho, de forças produtivas e da inserção das mulheres como
responsáveis de família, e alguns traços de invisibilidade desta inserção.
A ciência econômica é descrita como uma ciência social que diz
_____________________________________________________________

1
Professora Adjunta da Universidade de Brasília – UnB - neuza@unb.br
699
respeito à produção e alocação de bens e serviços e a busca do bem-estar
material das pessoas. a economia é muito mais que isso. Seus contornos
estão em contínua expansão em relação a novas pesquisas, interesses e
preocupações. No século XX o progresso da ciência econômica foi
importante. Saindo da academia para elaboração de leis, dos programas e
planos de ações nacionais e das organizações internacionais.
John Maynard Keynes, um dos economistas mais influentes
deste século, afirmou que a ciência econômica se tornaria redundante em
longo prazo, pois resolveria os problemas mais importantes com que se
defronta a economia. Outros autores acharam que a ciência econômica iria
desaparecer, pois seus fracassos seriam marcantes. Para alguns estudiosos
o desempenho da ciência econômica ficou entre duas previsões, a crescente
complexidade do mundo, a crise da dívida internacional, uniões monetárias.
As forças produtivas referem-se às capacidades produtivas da sociedade,
não apenas em sentido tecnológico, mas também no sentido social, e incluem
não apenas os meios materiais de produção, mas também as capacidades
humanas, tanto físicas quanto conceituais. As relações de produção referem-
se às relações sociais sob as quais a produção é organizada: como os
recursos e os trabalhos são alocados, como o processo de trabalho é
organizado e como os produtos são distribuídos. È a combinação específica
tanto das forças produtivas quanto das relações de produção que define o
padrão das relações de classe em qualquer sociedade.
Considerando o esquema circulatório acima, adotado por Castro
e Lessa,( onde demonstra que o aparelho produtivo é responsável pela
geração de fluxo real, que é composto de bens e serviços, e que por outro lado
dá origem ao fluxo nominal ao contratar o emprego de pessoas, utilização de
capitais e terras, tem-se, portanto o mercado de serviços gerando uma
contrapartida tais como: juros, aluguéis, salários do pessoal qualificado e não
qualificado, estabelecendo no mercado de serviços a existência de serviços
contratados. Neste esquema incluem-se o trabalho das mulheres, sendo elas
as proprietárias de fatores contribuindo com seu trabalho para o consumo das
famílias, enquanto grupo social que se tornará consumidor a procura de bens
e serviços e consequentemente contribuindo economicamente para a
sociedade. Sendo que nesta circulação vai aparecer o trabalho desenvolvido
pelas mulheres mo aspecto formal e regulamentado, enquanto que o trabalho
informal, as atividades do lar, o cuidado com os filhos, idosos e outras
atividades como preparar os alimentos, lavar, passar, se ocupar da
arrumação da casa, não são contadas, permanecendo na gratuidade e
invisibilidade.
As questões da análise sobre o trabalho indicam diferentes
atividades em diferentes sociedades e contextos históricos. Em sentido mais
amplo, o trabalho é o esforço humano dotado de um propósito e envolve a
transformação da natureza através do dispêndio de capacidades mentais e
700
físicas. Nas sociedades capitalistas, trabalho é sinônimo de emprego
remunerado, e muitas atividades que se qualificam como cuidar das crianças,
dos idosos são descritas e vivenciadas como ocupações em horas de lazer,
como algo que não significa verdadeiramente trabalho.
Nossa observação volta-se para a questão do trabalho
doméstico. Sendo essencial à sobrevivência, saúde, e perpetuação da
população humana, o trabalho doméstico (cozinhar, limpar, cuidar dos filhos
pequenos, dos doentes, dos idosos na família) tem baixo status social, é
preponderantemente executado por mulheres e não é remunerado.
Essas mesmas atividades podem ser desempenhadas como
trabalho pago em hotéis, residências, firmas, restaurantes, e diversos
serviços tais como limpezas em geral. È importante assinalar a grande
categoria de trabalhadoras domésticas no Brasil. Com muito poucas
exceções, as mulheres muito ricas, todas as mulheres realizam trabalhos
domésticos, mesmo quando trabalham em outras atividades fora da casa.
Não podemos dizer a mesma coisa dos homens, embora eles precisem e
usufruam de uma casa limpa e bem arrumada, de crianças bem cuidadas e
bem educadas, de refeições saudáveis e saborosas. Atualmente, muitas
mulheres vêem essa situação como injusta e gostariam que esse trabalho
fosse mais dividido e que houvesse outras condições sociais que facilitasse a
vida das pessoas. E, quando pensamos nas atividades domésticas
tradicionalmente realizadas pelas mulheres: indagamos é trabalho mal
remunerado.
Tentaremos entender alguns acontecimentos, para descobrirmos
o valor do trabalho doméstico. No debate das ciências sociais, existem
numerosas explicações sobre as questões que envolvem o tema trabalho. A
ciência econômica, no paradigma neoclássico dominante, refere-se que os
valores relativos atribuídos a diferentes atividades produtivas e serviços, e,
por conseguinte as recompensas e o status que resultam para os seus
fornecedores são governados pelo efeito recíproco das forças da oferta e
demanda no mercado. O fato de muitas mulheres se especializarem no
trabalho doméstico particular não remunerado é considerado uma resposta à
estrutura predominante de recompensas relativas. Esse trabalho pode
produzir um bom nível de satisfação para os seus consumidores à “família,”
mas para quem o executa no caso a “mulher” é gratuito, e faz jus a um baixo
salário quando é fornecido através do mercado.
Para entendermos o valor do trabalho doméstico precisamos
diferenciar algumas palavras: trabalho, emprego doméstico, mulheres que
realizam atividades domésticas. e trabalhadoras domésticas. Há muitas
diferenças entre cada uma destas coisas e é importante ter clareza sobre
elas. A primeira questão vem com a palavra trabalho. Afinal de contas, as
atividades que são feitas dentro de casa são ou não trabalho? Para os
701
economistas do trabalho, emprego, salário, preços, tudo o que gera renda
pode ser considerado trabalho. Como o trabalho doméstico é feito para uma
família e é consumido ali dentro mesmo, ele não gera renda, não sai de casa
para ser vendido. Trabalho seria, portanto produzir mercadorias ou serviços e
vende-los para fora da família trazendo dinheiro para dentro de casa.
Na visão econômica, o trabalho doméstico é improdutivo, ou seja,
não produz nada. È aquilo que as mulheres reconhecem: é um fazer e
desfazer contínuo, dificilmente percebido por alguém. Ou melhor, só se
percebe quando não é feito (ninguém percebe quando uma casa está
arrumada, mas enxerga muito bem, quando está desarrumada e suja).
A partir das análises da corrente feminista que defende o
reconhecimento pelo trabalho doméstico, nascida nos debates do neo
feminismo no ocidente e partindo do princípio de que os marxistas clássicos
se interessam pela produção de mercadorias, enquanto que os marxistas
desta corrente passam a interessar-se pelo trabalho da reprodução dos seres
humanos, logo esse trabalho é realizado geralmente pelas mulheres
principalmente na família . A casa aparece como o primeiro lugar de trabalho
das mulheres. Elas produzem o que há de mais precioso “os seres humanos”.
Elas reproduzem não somente a vida, mas permitem aos seres humanos de
funcionar durante toda a vida: aos homens de trabalhar, as crianças de serem
educadas, aos doentes e idosos de serem cuidados. Quanto vale este
trabalho?
Massivamente as mulheres se ocupam deste suporte material e
imaterial, o lado afetivo dos seres humanos. Ora esse trabalho é a chave
mestra da reprodução humana, o lugar das sociedades, que é também o lugar
da exploração das mulheres, portanto este trabalho é feito gratuitamente.
Esta condição de “domestica” constitui um denominador comum, em quase
todos os países. No nível mundial, o lugar das mulheres, onde estão, a que
classe elas pertencem.
TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS E CHEFIA FAMILIAR
FEMININA.
Uma das conclusões de nossas pesquisas em termos de
realidade brasileira, a identificação da presença feminina na
responsabilidade da manutenção da família.
De acordo com CARVALHO; 1996, a identificação de famílias
chefiadas por mulheres parece se justificar por três razões: 1) o crescente
aumento de famílias sem a presença masculina e a conseqüente ausência de
rendimentos masculinos; 2) o incremento de famílias e domicílios chefiados
por mulheres não se tem dado apenas pelo crescimento das famílias onde
não há a presença do chefe masculino, mas também pelo crescente
isolamento feminino na manutenção econômica da unidade familiar; 3) a
702
adoção do conceito “famílias chefiadas por mulheres” é útil para identificar e
selecionar um tipo de domicílio que normalmente não se beneficia das
políticas e projetos tradicionalmente concebidos e direcionados para o chefe
masculino.
As famílias que tem uma mulher como responsável principal
sempre existiu, mais particularmente nas culturas onde a mulher tem o direito
de herdar, de possuir a terra e de montar sua casa. Este fenômeno aumentou
depois diminuiu em certos períodos da história durante e depois de
acontecimentos como guerras, deslocamento de populações e migrações
massivas. Existem evidencias do seu crescimento nos últimos trinta anos,
mas esta tendência é mais antiga remontando às transformações sócias
econômicas iniciadas pelas colonizações. Na África sub-saahariana, a
migração dos homens para as minas e para as plantações deu á numerosas
mulheres a responsabilidade da exploração agrícola da família. No Caribe a
referencia ao modelo tradicional da família patriarcal enfraqueceu. Com
efeito, a separação residencial de homens e mulheres, imposta pela
economia escravagista, obrigou muitas mulheres a assumir seus
dependentes. Nova forma de união conjuga menos restritivas se
desenvolveram.
Trata-se então de visualizar mais precisamente as interações
entre dinâmicas coletivas, familiares e individuais e, se possível, de distinguir
as transformações estruturais e as perturbações conjunturais.
As transformações das economias, através da colonização, da
industrialização e da urbanização, desestabilizaram as bases econômicas do
patriarcado. As migrações de trabalhadores, para as cidades e para o
estrangeiro, tanto de homens como de mulheres, enfraqueceram,
freqüentemente, os laços conjugais. Por outro lado, nos últimos vinte anos, a
taxa de atividade dos homens estagnou ou regrediu em dois terços dos
países em desenvolvimento, a taxa de atividade das mulheres, ao contrário,
aumentou, principalmente na América Latina, no Caribe, no leste, sudeste e
oeste da Ásia, na África do Norte. Bem que o acesso das mulheres ao
mercado de trabalho se dá em condições de super exploração (atividades
formais ou informais pouco qualificadas e mal remuneradas, sem proteção
social) e de discriminação (remuneração inferior aquela dos homens para o
mesmo trabalho), cada vez mais as mulheres dispõem de uma renda própria
em dinheiro. Apesar do custo crescente das crianças em matéria de nutrição,
de saúde e de educação, assiste-se a uma desresponsabilização de um
número crescente de homens neste aspecto. Assim, as mulheres não
somente tem que enfrentar o desengajamento crescente dos homens, mais
igualmente dos Estados.
A severa recessão econômica não deteve um processo que se
acredita irreversível: a progressiva incorporação da mulher ao mercado de
703
trabalho. Em parte, esta tendência se explica pelas opções de política
econômica priorizando as exportações, de “maquilado as”, como é exemplo
mais divulgado, no México, abrem-se oportunidades para o emprego
feminino, preferindo-se as mulheres pela habilidade manual e o reduzido
nível de reivindicação. Não apenas o setor exportador vem empregando mais
mão de obra feminina, o setor formal da economia brasileira apresenta a
mesma tendência. No caso mexicano, os setores econômicos que empregam
mais mulheres – serviços pessoais, comércio e manufaturas tradicionais –
foram menos afetados pela crise do que os setores onde predomina a mão de
obra masculina.
È a unidade familiar que se recompõe para enfrentar a crise, com
a entrada de novos membros da família no mercado de trabalho, que antes
não trabalhavam, sendo que, em distintos tipos de família em diferentes
etapas do ciclo doméstico, aumenta a carga de trabalho, sobretudo nas
famílias cujo chefe é uma mulher, exceção feita no caso das famílias de forte
carga de trabalho doméstico. O atendimento das necessidades básicas das
famílias desfavorecidas se realiza pela mobilização das mulheres que, dentro
dos limites impostos pela situação econômica, acionam redes de
solidariedade que possibilitam uma redefinição dos papéis de gênero e o
incremento de sua participação política.
Os conflitos internos e externos aos Estados, as repressões
políticas internas são fortes fatores de desestruturações familiares.
Quaisquer que sejam as causas dos crescentes conflitos, nos últimos vinte e
cinco anos, o número de refugiados multiplicou-se por dez. Na medida onde o
envolvimento militar e a repressão política e armada atingem os homens,
80% dos refugiados são mulheres e crianças. A maior parte das mulheres
adultas, nesta população, são mulheres chefes de família.
Importantes perturbações econômicas e políticas destas últimas décadas
afetaram o funcionamento e a integridade das famílias. As repercussões
sociais e culturais destas perturbações se lêem, igualmente, no nível do
discurso dos atores sociais referentes à família. A manutenção do
reconhecimento jurídico do homem como chefe de família não basta, em
muitos casos, para ocultar a crise que afeta profundamente sua imagem em
termos econômicos e morais. A perda do poder econômico e da autoridade no
seio da família provoca, em muitos homens, reações de frustrações que se
exprimem de diversas maneiras: Por um comportamento paradoxalmente
consumista e ostenta tório (cigarros, roupas, outras mulheres, etc.), ele pode
esperar compensar a perda do status, ligado à perda do emprego, através de
jogo de aparências e da manipulação dos símbolos de prestígio masculino . A
conseqüência direta desta atitude é a formação de uma família cuja mulher
torna-se o principal sustentáculo. Outro tipo de déviance, voltado, desta vez,
para o álcool, assinala uma fuga da realidade e uma irresponsabilidade ainda
mais desastrosa. Produzindo uma imagem desfavorável junto à comunidade,
704
desentendimentos e violências no seio da família, este comportamento
conduz, num primeiro momento, à formação de uma família cuja mulher é a
chefe de fato. Podendo chegar, entretanto, à formação de uma família cuja
mulher torna-se chefe de direito, depois de uma separação ou um divórcio.
Ao nível coletivo, as perturbações econômicas, a ascensão do
individualismo e o relaxamento do controle social no âmbito das famílias são
fatores que interagem entre si. A crise econômica atinge as famílias pobres e
não somente aquelas cujo chefe é uma mulher de direito ou de fato. Os
mecanismos tradicionais de solidariedade são então ameaçados, dentre
eles, aquele que, durante longo tempo, assegurou a proteção das viúvas e
das mulheres divorciadas, mantendo-as na sua família ou reintegrando-as
nas suas famílias de origem, na não ocorrência de um segundo casamento.
Desde então, as mulheres viúvas e divorciadas, tradicionalmente assumidas
pelas famílias ampliadas, vem aumentar o número de mulheres chefes de
família de direito. A anomia social, que resulta da confusão de valores
coletivos e da perda de referencias individuais provoca movimentos
contraditórios: relaxamento dos controles sociais sobre a família e as normas
de comportamento dos indivíduos, de um lado, e apelo à ordem social de
outro. O primeiro movimento que nos interessa aqui, o movimento de
permissividade, se exprime em dois níveis: a elevada freqüência de
dissolução de casamentos por abandono, repúdio, separação ou divórcio e o
desenvolvimento de uma sexualidade adolescente fora do casamento. Este
último fenômeno revela a ausência cruel para os jovens duma educação
sexual e de meios contraceptivos, uma vez que a vida sexual é
temporalmente aumentada.
A predominância desta categoria nas faixas mais pobres da
população, não só no Nordeste urbano mais no Brasil e também na América
Latina. A condição de serem mulheres, pobres e habitarem em países e
regiões cujas estruturas sociais, econômicas e culturais, passaram por
transformações que só fizeram agravar suas características de exclusão,
constituindo uma resultante desse processo a ausência do homem como
provedor.
1. A noção de mulher chefe de família – MCF, não se identifica
direta e imediatamente com a idéia de “família mono parental”. Existem
MCF's casadas, solteiras, viúvas, outras coabita com seus
companheiros, outras recebem seus parceiros de quem recebem ajudas
eventuais ou são por eles exploradas, mas, elas trazem para a casa a
renda que garante a sobrevivência do grupo familiar, ali onde existe a
falha masculina como provedor econômico, à contrário dos padrões
culturais estabelecidos. A prática tradicional ligando o termo “chefe” ao
homem, a superioridade do masculino na hierarquia é assim contestada;
2. As mulheres chefes de famílias – MCF's. analisadas
705
mostraram uma percepção clara de seu papel como suporte econômico
principal da família, em conseqüência da ocupação de um espaço social
na esfera pública, no entanto, a representação que elas fazem dessa
situação, resulta numa percepção ambígua, resultado do habitus
patriarcal cuja ideologia reserva o estatuto de chefe o homem;
3. Um complexo de obstáculos (jurídicos, ideológicos,
culturais, sociais, econômicos, estatísticos, psicológicos e políticos)
impede o reconhecimento do estatuto de MCF, situação concreta que
estas mulheres assumem na vida cotidiana;
4. A necessidade, para esta categoria de mulher, de
estabelecer meio (ESTRATÉGIAS DE SOBREVIVÊNCIA) a fim de
realizar sua integração em contextos fora do mundo da casa, para fazer
face às insuficiências financeiras de seu grupo familiar, o que representa
uma ruptura nas estruturas instituidoras dos papéis do homem e da
mulher no mundo social;
Como ponto de partida da pesquisa, chegamos à seguinte
definição de Mulher Chefe de Família – MCF:
A mulher que é responsável pela manutenção econômica da
unidade doméstica (U.D.) e sobre a qual pesa a responsabilidade de
sobrevivência das pessoas sob seu encargo, tais como seus filhos, pais ou
terceiros (marido ou companheiro, irmãos, tios, primos, pessoas com quem
mantém laços afetivos ou de solidariedade). Por unidade doméstica (U.D.) se
entende uma ou várias pessoas habitando sob o mesmo teto e utilizando a
mesma infra-estrutura doméstica, ligados por laços conjugais, sanguíneas ou
outros .
Na prática estatística, a condição para que uma mulher seja
reconhecida como chefe de família, é que nenhum homem adulto esteja
presente ao lado dela. Tal não é, entretanto, a condição de simetria: para que
um homem seja reconhecido como chefe de família, não haja nenhuma
mulher adulta ao lado dele. Esta assimetria revela o caráter conservador
desta definição. Numa sociedade patriarcal as informações dos membros de
um domicílio (bem como as perguntas do recenseador) podem estar
influenciadas por posições subalternas que resultam na identificação do
homem como o chefe de família.
Segundo FOLBRE, conflitos internos e diversas realidades no
interior das famílias são homogeneizados na superfície, por esta definição, e
freqüentemente oculta, um sistema autoritário de liderança que o homem
assume na condução da família. Com freqüência, quando o parceiro
masculino está ausente do domicílio, filhos mais velhos ou outro adulto
homem podem ser contabilizados como os chefes de família. O fato de o
domicílio ser economicamente mantido pela mulher, raramente é
706
considerado razoável para a mulher assumir o comando da família quando o
homem está presente. Com efeito, num domicílio residindo o casal, mas
substancialmente mantido, economicamente, pela mulher, raramente é
identificado como chefiado por ela. Quando o conceito baseia-se na
contribuição da renda masculina, existe a tendência de considerar este o
único sustento da família, quando, na realidade, a renda da mulher e de
outros membros da família constituem importantes meios de sobrevivência
entre muitos grupos de baixa renda. Outro problema com este conceito de
chefia familiar é que ele tende a ocultar a existência de outras formas de
família instaladas em vários domicílios, sustentadas por uma mulher, vivendo
em grupos de família extensa ocultando a existência da mulher chefe de
família.
A manutenção de uma visão patriarcal da família, bastante
interiorizada na maior parte das formações sociais, segundo a qual, somente
o homem pode ser reconhecido como chefe de família e interlocutor
privilegiado dos poderes públicos, exceção aceita, apenas no caso da
ausência de um homem. A questão não é somente estatística mais,
igualmente política e econômica. Com efeito, o chefe de família pressupõe
ser o principal esteio da família, o mais apto a redistribuir os recursos
recebidos.
A contribuição econômica principal, em numerosos casos, nos
parece ser o critério mais claro. Teoricamente, é necessário avaliar os
rendimentos monetários e não monetários de cada membro da unidade
doméstica; o nível de consumo individual de cada um deles, a fim de calcular,
de cada um, a contribuição líquida nas despesas do domicilio.
Somente pesquisas de pequena dimensão, ou dotadas de meios
suficientes, poderão estabelecer precisamente quem é segundo este critério,
chefe de família. Na prática, é muito difícil de compatibilizar a multiplicidade
de ínfimos rendimentos monetários, obtidos de atividades informais que não
são alvo de uma contabilidade específica, de valorizar contribuições que não
são monetárias, como o trabalho doméstico, cuidar das crianças, a produção
doméstica. Foi sugerida a utilização de medidas aproximativas da
contribuição econômica principal.
É discutível se domicílios chefiados por homens ou domicílios
com múltiplos trabalhadores de fato assegurem um melhor nível de vida para
seus membros. Este aspecto é fundamental porque, apesar das
oportunidades de ganhos serem baixas, tanto para homens como para
mulheres de uma classe social de menor poder aquisitivo, existem evidências
de que uma melhor distribuição dos recursos entre membros de domicílios
chefiados por mulheres tende a anular os piores efeitos da pobreza e,
portanto, reduzir a vulnerabilidade do grupo domiciliar. De fato, gastos e
investimentos de homens e mulheres têm sido apontados como
707
diferenciados e ligados a diferentes prioridades dentro do domicílio, com uma
melhor distribuição e acesso mais democrático de todos os membros aos
recursos nos domicílios mantidos por mulheres. Em um estudo na cidade do
México, constatou-se que os recursos nestes domicílios eram mais
democraticamente distribuídos, comparados com os domicílios chefiados por
homens, uma das razões pelas quais muitas mulheres optaram por se
tornarem chefes de seus próprios domicílios e famílias. Por outro lado,
mulheres também podem não estabelecer relações conjugais e preferir criar
seus filhos sozinhas. Podem optar por fixarem residência autonomamente,
como uma questão de escolha. É importante, portanto, considerar as
condições para a emergência da chefia feminina como social e
historicamente fundada e não, necessariamente, como resultado direto do
aumento da pobreza.
Outro aspecto é que, enquanto os domicílios chefiados por
mulheres sozinhas podem resultar em menor opressão e maior autonomia
feminina devido à ausência de um parceiro, domicílios mantidos por
mulheres, mas chefiados por homens, podem significar pressão em dobro, já
que as mulheres se incumbem da geração de renda, mantém seu papel
doméstico e tem pouca autoridade sobre o orçamento e decisões
domiciliares.
Estabelecemos algumas dimensões quanto às
responsabilidades e papéis exercidos pelas mulheres com relação ao grupo
familiar:
Dimensão econômica - A mulher que é responsável pela
manutenção econômica da unidade doméstica (U.D.) e sobre a qual pesa a
responsabilidade de sobrevivência das pessoas sob seu encargo, tais como
seus filhos, pais ou terceiros (marido ou companheiro, irmãos, tios, primos,
pessoas com quem mantém laços afetivos ou de solidariedade). Esta
capacidade econômica é conseguida através do uso de sua força de trabalho
ou habilidades, saberes e competências ou outras dotações pessoais
capazes de gerar recursos tais como direitos adquiridos ou reconhecimentos
sociais.
Dimensão poder - Possuir autoridade suficiente sobre todos os
membros da unidade doméstica capaz de orientar atitudes e comportamento;
Dimensão liderança - Capacidade suficiente para decidir e
controlar, no cotidiano e no longo prazo, os recursos gerados para a
reprodução da unidade doméstica.
A mulher mantenedora, em contraste com a mulher chefe de
família, possui completamente, apenas a dimensão econômica. Á mulher
mantenedora falta ou é insuficiente à ocupação plena dos espaços da
autoridade e da liderança.
708
A noção de Unidade Doméstica (U. D) também se amplia: Por
unidade doméstica (U.D.) se entende uma ou várias pessoas habitando sob o
mesmo teto e utilizando a mesma infra-estrutura doméstica, ligados por laços
conjugais, sanguíneas ou outros. Podendo também compreender situações
internas e externas ligadas ao espaço mantido pela mulher mantenedora ou
chefe de família, podendo agregar outros tetos e infra-estruturas domésticas.
Relacionadas às “conexões econômicas e intra familiares, laços
ou redes e fluxos internos”.
Em breve análise sobre os debates teóricos referente ao trabalho
das mulheres no Brasil, revela-se uma preocupação inicial centrada na
incorporação ou expulsão da força de trabalho feminina no mercado, sob os
efeitos do capital. A produção teórica pouco a pouco vem mostrando maior
sensibilidade tanto para fatores culturais, como simbólicos que também
explicam a subordinação feminina quanto à inserção das mulheres no espaço
da reprodução familiar.
O Gráfico 1 a seguir indica a evolução da situação dos arranjos
familiares correspondente ao período de 1992\2007 onde se verifica que a
presença da mulher vem crescendo nestes arranjos, seja ela sozinha (de
6,2% para 8,5%), ou com filhos (de 12,3% para 15,5%). Ao mesmo tempo em
que o homem sozinho (de 5,4% para 7,5%), e pai com filhos (de 1,6% para
2,0%), está em patamar inferior em relação à mulher.
Segundo P. Laboissière (2008), as mulheres brasileiras chefiam a
família cada vez mais, participam do mercado de trabalho e continuam
acumulando a maioria das tarefas domésticas. Sendo o que mostra a série
PNAD 2007: Primeiras Análises que, desta vez, aborda os temas população,
família e gênero. De acordo com a pesquisa, os resultados indicam
'extensivas jornadas de trabalho - remunerado e não-remunerado - para as
mulheres. O IPEA constata que proporção de famílias chefiadas por mulheres
passou de 24,9%, em 1997, para 33%, em 2007, o que representa um total de
19,5 milhões de famílias brasileiras que identificam a mulher como principal
responsável.
Durante o mesmo período, famílias formadas por casais com
filhos e chefiadas por mulheres também representam um "fenômeno em
ascensão". Entre 1997 e 2007, os números passaram de 600 mil para quase
3,3 milhões. Em 1997, entre as famílias formadas por casais com filhos,
apenas,4% eram chefiadas por mulheres. Em 2007, a proporção subiu para

709
11,2%. A PNAD indica que o aumento de quase 8% pode estar
relacionado à maior longevidade das mulheres, aliada a um envelhecimento
geral da população. Em quase 27% dessas famílias, a mulher considerada
chefe tem 60 anos ou mais e, em muitos casos, mora sozinha. O aumento da
participação feminina no mercado de trabalho também é um dos fatores
responsáveis pelos índices, pois permite que as mulheres assumam
sozinhas ou com a presença de um companheiro, o sustento de um lar.

TEMPO DEDICADO AOS AFAZERES DOMÉSTICOS - Brasil


Segundo Bruschini (2006), entende-se por afazeres domésticos
na PNAD: (tarefas que não se enquadram no conceito de trabalho) arrumar
ou limpar toda ou parte da residência, cozinhar ou preparar alimentos, passar
roupa, lavar roupa ou louça (utilizando ou não aparelhos eletrodomésticos)
cuidar dos filhos menores ou moradores, limpar o quintal, terreno que
circunda a residência, orientar ou dirigir trabalhadores domésticos na
execução das tarefas domésticas.
Na Tabela 1 está descrito, de acordo com a PNAD – 2002, um
quadro da distribuição, segundo o sexo, situação familiar e situação urbana e
rural, da média de horas semanais dedicadas aos afazeres domésticos.
710
Cerca de 140.338.544 pessoas (72.662.611 mulheres e
67.675.933 homens) foram inquiridas com a pergunta de número 121 se
“cuidava de afazeres domésticos na semana anterior à pesquisa”. Um
número de 95.551.607 pessoas ou 68,1% responderam positivamente
(89,9% mulheres e 44,7% homens).
O total geral da média de horas semanais dedicadas aos afazeres
domésticos é de 21,9 horas por semana. Sob a ótica do sexo as mulheres
trabalham, em média, 27,2 horas por semana, enquanto que os homens
trabalham 10,6 horas. Observando-se que o corte entre urbano e rural
contém diferenças irrelevantes. Ou seja, as mulheres trabalham, em média
duas vezes e meia mais que os homens.
• As considerações a serem feitas é que os dados
apresentados comprovam inúmeras afirmações que tem sido feita
nos estudos de gênero especialmente por (BRUSCHINI, LOMBARDI,
UNBEHAUM 2006).
• As mulheres muito mais que os homens dedicam
grande parte do seu tempo às atividades domésticas.
• Os dados revelam que a idade, a escolaridade tem
efeito relevante sobre o tempo dedicado ao trabalho doméstico,
principalmente pelas mulheres.

Pessoas que cuidavam de


Sexo e Média de horas semanais afazeres
Situação dedicadas aos afazeres domésticos.
Familiar domésticos
% Nº Abs.

Total Geral 21,9 68,1 95.551.607

Homens
Urbana 10,7 45,3 25.553.995
Rural 10,1 41,6 4.692.780
Total 10,6 44,7 30.248.775

Mulheres
Urbana 27,0 89,3 55.723.287
Rural 28,2 93,7 9.581.545
Total 27,2 89,9 65.304.832

711
Tabela 1 - Média de horas semanais dedicadas aos afazeres domésticos e pessoas que realizavam
estas atividades, segundo situação domiciliar (1) - Brasil - 2002
Fonte: IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD. Microdados.
(1) Situação urbana: cidades (sedes municipais), vilas (sedes distritais), ou áreas urbanas isoladas.
Situação rural: abrange toda área situada fora dos limites acima descritos. Critério idêntico é utilizado
na classificação de população urbana e rural.
• O aumento da participação das mulheres no mercado de trabalho não
tirou delas a responsabilidade pelo afazeres domésticos estudos
com base nos dados estatísticos da Pesquisa Nacional por Amostra
de Domicílio referente ao período de 2001 a 2005, divulgada pelo
IBGE mostra que desde a infância as mulheres recebem a
incumbência de realizar atividades domésticas e que a participação
dos homens nos afazeres da casa aumenta entre os homens mais
velhos e os mais escolarizados.
• Na média, 90,6% das mulheres tinham afazeres domésticos em 2005,
enquanto entre os homens, essa proporção era de apenas 51,1%. Em
média, os brasileiros gastavam 19,9 horas semanais com trabalhos
nas residências. As mulheres dedicavam mais tempo a estas tarefas
25,3 horas semanais, enquanto os homens despendiam apenas 9,9
horas.
• A maior participação masculina acontecia em 2005, acima dos 60
anos, com a média de 13 horas semanais de trabalhos domésticos.
Entre as mulheres, na faixa de 50 a 59 ano, a média era de 31 horas
dedicadas á casa por semana.
TRANSFORMAÇÕES EM PORTUGAL
Desde os anos 90, o INE - Instituto Nacional de Estatística de
Portugal, divulga dados e informações desagregadas por sexo, conciliando-
se com os objetivos da plataforma de ação da Quarta Conferência Mundial
Sobre as Mulheres, ocorrida em Pequim, no ano de 1995.
Em 2000, ano em que ocorre uma série de avaliações da
execução da plataforma de ação de Pequim, o INE agendou estudos
contemplando o enfoque de gênero caracterizando a situação das mulheres
712
nos domínios demográfico, econômico e social.
Dentre os resultados em evidência destaca-se o fato que as
mulheres tendem a adiar a chegada dos filhos (através de métodos
contraceptivos), utilizando o seu tempo para aperfeiçoamento educacional e
independência financeira, ingressando na vida profissional.
Por obrigações familiares o INE define: Cuidar da casa, do marido
e das crianças e de parentes agregados.
Na Tabela 2 está descrito, de acordo com o INE/PT, segundo
publicação de : Amâncio & Lyonette, 2007, um quadro da distribuição,
segundo o sexo, situação familiar e grau de qualificação profissional
(qualificação manual como o nível mais baixo, intermediária e de qualificação
superior). Não foi encontrada referência sobre o número de pessoas
entrevistadas nem o percentual de respostas btidas como consta sobre a
realidade brasileira.
As informações obtidas, ressalvadas suas limitações, nos
permitem avançar que os portugueses do sexo masculino, dedicam entre 5,0
a 8 horas semanais aos afazeres domésticos. Ao passo que as mulheres
dedicam dedicam entre 17. a 26 horas semanais.
As mulheres portuguesas que vivem com um cônjuge ou
companheiro e exercem uma atividade a tempo integral despendem em
média 22 horas por semana em tarefas domésticas ,sendo que os homens
com cônjuge ou companheira e atividade profissional é de 5, 8 horas
semanais dedicadas as atividades domésticas. O total de horas globalmente
dedicadas á profissão e as tarefas domesticam é superior em Portugal,
sobretudo entre as mulheres. Em média juntando trabalho profissional e
trabalho doméstico, os homens portugueses com cônjuge ou companheira
empregados a tempo integral trabalham menos onze horas semanais do que
as mulheres nas mesmas circunstâncias. Esta diferença é mais acentuada
entre os trabalhadores manuais, com as mulheres desta classe a trabalharem
em média, mais quase dezesseis horas por semana do que os homens que
713
também têm profissões manuais Em análise sobre a situação
portuguesa em 1999 Perista (2004), mostrou que os empregados homens
gastavam, em média uma hora e meia por dia em tarefas não remuneradas,
contra uma média de quatro horas gastas diariamente pelas mulheres
empregadas (Amâncio apud R. Crompton, C. Lyonette,2007).
Quanto as tarefas desempenhadas por mulheres e homens que
vivem em casal, verifica-se que as atividades de tratar das roupas apresenta
um percentual de 25,7% para as mulheres e de 78,5%,

Tabela 2 - Média de horas semanais dedicadas aos afazeres domésticos por ocupação e sexo

vivendo em casal - Portugal – 2000

Fonte: Amâncio R. Crompton, C. Lyonette,2007)Família e Gênero em Portugal e na Europa, ICS,

Lisboa.2007

714
para os homens, enquanto que as compras para o lar são realizadas em
média 15% pelas mulheres e 20% pelos homens, outras atividades tais
como: limpeza da casa, cuidados com familiares doentes e pequenos reparos
são executados exclusivamente pelas mulheres. (Amâncio apud R.
Crompton, C. Lyonette,2007 )
Dados do ISSP (Internacional Social Survey Programme)
demonstram que as tarefas domésticas representam em média 39% do
tempo global de trabalho das trabalhadoras manuais, contra apenas 11% do
total das horas de trabalho gastas pelos homens com profissões
manuais.Para o conjunto de mulheres, o trabalho doméstico representa em
média cerca de 35 % do tempo global despendido a trabalhar, contra 11% no
caso do conjunto dos homens. (Amâncio apud R.
Crompton , C. Lyonette,2007).
A situação em Portugal considerada no aspecto comparativo com
outros países da Europa resulta que a divisão sexual das tarefas domésticas
existindo um subseqüente peso deste trabalho no tempo das mulheres. De
acordo com estes estudos continua a existir tarefas marcadamente femininas
e masculinas. Sendo que esta diferenciação de gênero atravessa as
diferentes culturas. A divisão das atividades revela-se nas compras, sendo
uma tarefa realizada fora do espaço doméstico. Por outro lado os cuidados
com os filhos e os ascendentes ficam a cargo das mulheres. Quanto mais
elevada à escolaridade das mulheres, maior é a afirmação da igualdade ideal
entre os cônjuges, tanto na esfera doméstica como profissional. O sentido da
ajuda aparece nas mulheres sem escolaridade ou aquelas que são
portadoras de um nível de aprendizado primário.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando a realidade brasileira, as mulheres muito mais do
que os homens dedicam grande parte significativa de seu tempo ao trabalho
para a reprodução social, sendo elas as conjugues e, principalmente as mães
que dedicam um número mais elevado de horas semanais nos afazeres
domésticos e, entre as que tiveram filhos, e se esses filhos são
pequenos, aqueles cujo tempo semanal de dedicação aos afazeres
domésticos é o mais elevado. São esses as mulheres que estão adentrando
com mais vigor no mercado de trabalho e nele permanecendo mais tempo.
Ou seja, são aquelas que mais trabalham atualmente na atividade produtiva,
as que mais consomem seu tempo no domicílio, na atividade reprodutiva,
enfrentando sobre carga de trabalho e dificuldade de conciliação entre as
responsabilidades familiares e profissionais. Sendo necessário o
reconhecimento da importância de implantação de políticas sociais que
possam apoiar essa classe de trabalhadoras, sobretudo, aquela de baixos
rendimentos.
715
Na situação portuguesa, os estudos feministas tem mostrado que
a segregação no mercado de trabalho tem sido amplamente documentada.
Apresenta-se a questão da desigualdade na distribuição dos tempos entre
homens e mulheres. A Análise dos mecanismos de apoio às famílias
(maternidade, paternidade) objetiva facilitar o ingresso no mundo do
trabalho, tendo esses efeitos influenciados as decisões de oferta e de procura
de trabalho, assim como se verifica certo avanço quanto a um aspecto da
visibilidade do trabalho das mulheres, constando em publicação do Instituto
Nacional de Estatística incluindo o recorte gênero.
Nos dois contextos em estudo, verificam-se aspectos do oculto
trabalho doméstico e suas relações com o que se constitui a produção, sua
invisibilidade, seu valor como contribuição a sociedade, A condição de
doméstica constitui o que existe de comum entre todas as mulheres de todos
os países. As mulheres nos dois contextos analisados demonstram que
mesmo diante de todos os obstáculos encontram-se na luta por maiores
ganhos legítimos no que se refere a uma inserção econômica e social,
enquanto que os homens ainda não alcançaram à inserção no mundo
doméstico. No que se constitui a ampliação dos estudos feministas e de
gênero, assim como a capacitação técnica científica e acadêmica, a
organização de numerosos grupos redes e associações voltadas para
questões das relações de gênero e de toda a problemática envolvendo a
família trabalho e gênero no contexto desta sociedade, existe um campo
particularmente importante e similar nos dois países, que abre novos
horizontes para o avanço dos estudos econômicos que caminham em direção
crítica e analítica, quanto a invisibilidade da contribuição econômica das
mulheres para a família e a sociedade.

716
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718
MULHERES AGRICULTORAS E PRODUÇÃO DE ENERGIA
HIDRÁULICA: a Realidade da Região do Xingo
Izaura Rufino Fischer

Pesquisar as relações sociais na perspectiva de gênero num


ambiente que envolve um mega projeto de geração de energia para garantir o
desenvolvimento do país constitui algo raro, tendo em vista que se trata de
estudar um espaço de domínio genuinamente masculino e que envolve uma
vultosa soma de recursos financeiros, questões que muito raramente
constituiu preocupação dos segmentos envolvidos com a temática de gênero.
A junção desses elementos talvez justifique a reduzida produção de estudos
sobre as desigualdades de gênero em espaços rurais situados no entorno de
áreas de hidroelétricas. Trata-se de uma questão histórica, pois desde os
primeiros momentos de militância acadêmica, as estudiosas feministas
direcionaram suas preocupações à análise centrada na formação e educação
das mulheres evidenciando a sua ausência nos mercados de trabalho, na
perspectiva de contribuir para abrir caminhos, sobretudo, para que as
mulheres conquistassem a independência econômica e pudessem, a partir
daí, construir sua plataforma de emancipação sem depender do homem para
lhe garantir o sustento. Historicamente os grandes investimentos, sobretudo
aqueles destinados ainfraestrutura para produção de energia, pouco
constaram como tema transversal aos estudos sobre mulher e relações de
gênero. Somente na atualidade esses estudos começam a surgir, com mais
freqüência.
Assuntos que envolvem grande volume de recursos financeiros
dificilmente constituem foco de preocupação das estudiosas da problemática
da mulher. Elas costuma centrar seus estudos num plano de conquistas de
direitos básicos como o da moradia, da saúde, da política etc. Mesmo na
atualidade, concentram-se ainda na abertura de espaços para as mulheres
em áreas que lhes possibilite a participação na efetivação de direitos sociais,
políticos e econômicos.
Isso não significa desconhecer a existência de mulheres
empenhadas em estudar vertentes do desenvolvimento, principalmente
aquelas associadas à questão da sobrevivência e preservação da vida, a
exemplo de Shiva (2004). No entanto, assuntos como geração de energia
ainda constitui campo que faz parte do mundo masculino geralmente
empenhado na geração do lucro e apropriação dos recursos naturais,
apropriação essa, muitas vezes, usada em nome do desenvolvimento e bem
estar da população.
Mesmo sem fazer parte do mundo da geração de energia, as
mulheres mais diretamente envolvidas com o efeito nefasto da energia são as
trabalhadoras de áreas localizadas na circunvizinhança de hidrelétricas que
_____________________________________________________________

1
FUNDAJ

719
geralmente necessitam liberar suas terras onde vivem e plantam. Ao
deixarem suas terras, algumas perdem a razão de ser como trabalhadoras e,
por conseguinte, a identidade. Junta-se a isto, a perda do seu referencial de
produtoras de alimento, de criadora de pequenos animais, além da ligação
com o meio ambiente do qual habitava e conservava para que ele lhe
possibilitasse viver melhor.
Sem condição de atuar no seu espaço e sem os recursos naturais
que auxiliavam a sobrevivência, algumas mulheres buscam um outro
caminho focado na defesa da família e do meio ambiente. Para tanto,
procuram introduzir-se na defesa da causa ambiental dirigindo-se para a
organização política. Nesse ambiente se coloca na discussão da geração de
energia e seus efeitos sobre a natureza, pesando na discussão as condições
de vida da família e a dívida computada para as gerações futuras.
Centrado no eixo referente à mulher rural, este texto faz parte de
um estudo maior realizado nos municípios de Canindé do São Francisco
(SE), Piranhas (AL) e Poço Redondo, que teve como objetivo apresentar
algumas referências sobre as condições de vida de mulheres rurais
residentes no entorno da Usina hidrelétrica do Xingo.
A pesquisa amparou-se em dados qualitativos levantados
através de entrevistas semi-estruturas que foram aplicadas junto às mulheres
rurais, lideranças rurais, antigos moradores das cidades, historiadores,
governantes municipais e todos aqueles que podiam trazer algum
esclarecimento capaz de auxiliar na compreensão da problemática
pesquisada.
A ENERGIA HIDRELÉTRICA NA POLÍTICA DESENVOLVIMENTISTA:
Um Paralelo com o Movimento Feminista
No chamado período desenvolvimentista, que tem inicio na
década de 1950, é acionada a construção da barragem de Três Marias, no rio
São Francisco, no Estado de Minas Gerais, considerada primeira obra de
grande porte, cuja conclusão se deu em 1961, no calor da inauguração de
Brasília e de outras ações do então governo Juscelino Kubscheque. Dentre
essas ações encontra-se a criação da Eletrobrás no Ministério de Minas e
Energia ao qual é atribuído o encargo de coordenar o setor elétrico brasileiro
sendo a Chesf transformada, portanto, em sua subsidiária. Naquele período
político, o complexo energético de Paulo Afonso é ampliado com a construção
da Usina Hidrelétrica Paulo Afonso II.
Também por volta dos anos de 1960, o então movimento
feminista ganha visibilidade com a ação das mulheres que lutam para ter
reconhecimento e respeito na sociedade. Em ato simbólico, queimam sutiãs
em praça pública na tentativa de chamar atenção para a condição de
subordinação vivenciada pelas mulheres. Espalha-se um movimento mundial
pela liberação da mulher com repercussão em várias partes do mundo. No
nordeste do Brasil, o movimento se fez presente, mas sem nenhuma
repercussão no direcionamento dos orçamentos públicos destinados à
720
construção de fontes energéticas até porque, naquele momento, o
movimento feminista nada apontava nessa direção. No Brasil, o movimento
feminista de acordo com suas vertentes, se manifestava politicamente
reforçando ações dos movimentos políticos que queriam, na época, assumir
a direção do país, a saber, o movimento dos militares e do chamado
movimento da esquerda. O chamado feminismo liberal fortalecia o
movimento dos militares ao participar, por exemplo, da passeata contra a
carestia (que refletia um desgoverno) enquanto um outro considerável
número de mulheres, principalmente aquelas comprometidas com o ideal
marxista, aderira ao movimento da esquerda em toda a sua extensão
temporal e amplitude. O movimento liderado pelos militares toma o poder,
submete o país a uma ditadura e adotam dentre as suas prioridades, a política
das grandes obras para geração de energia enquanto as mulheres militantes
da academia e da sociedade civil permaneciam indiferentes à temática
energética.
Os projetos de geração de energia baseados em grandes
barragens são intensificados na década de 1970, por todo o país. As
indústrias em implantação no Brasil demandavam energia eletrointensiva
naquela conjuntura nacional em que se colocava a posto o chamado “Milagre
Brasileiro”. Nesse momento histórico, o setor energético era conduzido e
administrado por consórcios de empresas estatais ou concessionárias. O
Estado assume o papel proeminente na implantação da indústria pesada e
investe maciçamente em infraestrutura, que o capacita a estabelecer,
simultaneamente, as bases de associação entre os interesses do capital
interno e externo (CARNEIRO, 1993 - a).
Para atender aquela perspectiva desenvolvimentista, são
implantadas hidrelétricas nas regiões Norte, Nordeste e Sul, a exemplo de
Itaparica, no Rio São Francisco /NE, Itaipu, no Rio Paraná/Sul, ITÁ no Rio
Uruguai/Sul e Tucurui, no Rio Amazonas/Norte. Os capitais interno e externo
se escudam no Estado para explorar o manancial de água doce existente no
país (CHESF, 2006).
A década de 1970, no entanto, é permeada por dois fenômenos
que se colocam como obstáculos no caminho da construção das barragens.
Um deles é a crise econômica que se instala na economia
mundial afetada pelo choque do petróleo explicitando o ensejo à
reestruturação global das economias centrais com a periferia capitalista
(CARNEIRO,1993) e o outro se manifesta através da organização das
populações das áreas ocupadas pelas barragens que se confrontam com a
proposta do modelo hidrenergético.
Enquanto o Estado direciona suas ações para geração energia,
as mulheres, particularmente, as nordestinas continuam a construir seu
mundo a partir de uma militância acadêmica e civil algumas vezes, baseada
em estudos pontuais e reivindicações consideradas por segmentos da
academia e a administração do estado, como dotada de caráter romântico,
721
permeado por inocência, inexpressão e de pouca importância no jogo do
poder econômico e político. Diante da reduzida valorização do que fazem,
como fazem e para quem fazem, as mulheres do Nordeste, vão, passo a
passo, consolidando o movimento feminista, à luz do movimento mundial que
estudiosos dotados de respeitabilidade reconhecida como Bobbio (1995),
Mezaros (2002), Castells (1999) e vários outros passam a aponta-lo como um
dos movimento de maior expressão na transformação da sociedade.
Desprovidas de prestígio político e econômico, as mulheres dividem suas
ações sem causar grandes incômodos à proposta de desenvolvimento
representada pelo setor energético.
Durante a construção de hidrelétricas, inicialmente, ocorrem
aumento de empregos, mas no seu final a redução de empregos é fatal,
criando-se, assim, verdadeiros nichos de desempregados que vêm se
organizando em movimentos sociais na tentativa de encontrar uma saída
política para a problemática do desemprego e do uso dos recursos naturais.
A partir desse movimento, as mulheres e a produção de energia
tendem a se cruzar. Alguns grupos de mulheres rurais estão inseridos no
movimento de barragens que reclamam os prejuízos causados pelas
hidrelétricas às famílias rurais e ao meio ambiente. Essa questão, ao
contrário da pura geração de energia que lhes era indiferente, lhes dizem
respeito diretamente. Dessa feita, a luta daquelas mulheres rurais
tende a significar um marco na luta das mulheres, ao aderirem publicamente à
questão ambiental em prol da preservação da vida no planeta. Os recursos
naturais tornam-se cada vez mais escassos e as barragens denotam
prejuízos a serem divididos, principalmente, com as mulheres.
No quadro de contingenciamento econômico, político, social,
somado a experiência vivenciada pelos trabalhadores e a empresa
responsável pela construção de usinas hidrelétricas no Nordeste, é
construída a Usina Hidrelétrica de Xingó que se coloca como destaque pelo
potencial de produção de energia (3000MW) (Chesf, 2006), gerando,
atualmente, cerca de um terço da energia elétrica consumida no território
nordestino.Xingó apresenta-se perpassada por um jogo de interesses que faz
parte da trajetória conjuntural capitalista, sem dúvida, orientada pela
concentração e centralização da riqueza mundial a partir da apropriação dos
recursos naturais.
Como toda obra que envolve grande capital, a barragem de Xingó
deixa o rastro da mudança de reprodução social permeada por conflitos
gerados pela destruição de meios de produção que se manifestam no
ambiente, na pobreza, migração, desemprego, violência, desestruturação
familiar, dentre outros.
AS MULHERES AGRICULTORAS DA REGIÃO DO XINGÓ
A implantação da usina de Xingó provocou mudanças diversas na
região, dentre outras, o desemprego. A ausência de uma política do governo,
através da Chesf, capaz de gerar emprego ou oportunidades de trabalho para
722
a população local afetada direta ou indiretamente da fase de construção obra
de engenharia, criou um dos maiores problemas para a região, segundo
depoimentos de pessoas entrevistadas.
O desemprego se revela como uma reserva de força de trabalho
sem emprego, inerente à sociedade capitalista, criado e reproduzido
diretamente pela própria acumulação de capital, a que Marx (1983) chamou
de exército de reserva ou exército industrial de reserva. Mesmo considerando
tal conotação, não se pode ignorar que dependendo das proporções, o
desemprego é sem dúvida o espelho que melhor reflete as dificuldades
econômicas e sociais de um país e suas relações com a insatisfação da
população manifestada através de conflitos. Além de criar um desajuste no
sistema produtivo causa desequilíbrio no sistema social e político. Esta é sem
dúvida uma contradição terrível para um sistema econômico porque o
desemprego se torna um mal necessário para o capitalismo, segundo o
pensamento de Marx. (BRAGA, 1999).
O fenômeno social do desemprego na área do Xingó, reduziu as
possibilidades, principalmente para os homens trabalhadores da construção
de obras e cujas conseqüências tiveram maior rebatimento nas famílias
rurais. Vários desses trabalhadores de obras sustentavam, na família,
desempregados que sequer conseguiam inserir-se no setor informal.
Refugiavam-se na rede de solidariedade familiar sob o comando das
mulheres que evitava o aumento da miséria entre aquelas famílias de
agricultores. Na rota do desemprego, conforme Rosanvallon (1998),
encontra-se implicações do tipo perda da moradia, dos colegas e dos amigos,
esfacelamento da família, corte crescente dos laços sociais e como diz a
socióloga Heleieth Saffiti (2004), o isolamento do próprio cidadão, chamado
por Aristóteles, no século IV a. C., de ser político.
Os municípios, principalmente, de Piranhas e Canindé do São
Francisco, que durante a construção da hidrelétrica estavam inseridos na rota
do emprego, convivem, na atualidade, com enorme contingente de
desempregados herdados das obras então consumadas. A cidade de
Canindé do São Francisco, então reconstruída, encontra-se cercada por um
cinturão de construções habitadas por miseráveis, do mesmo modo que
Piranhas, cidade cenográfica, ganha como adendo o chamado bairro do
Xingo, formado por um mesclado de habitações destinadas às famílias dos
técnicos responsáveis pela construção da obra e as residências de peões,
além de bairros improvisadas por prestadores de serviços.
A conseqüência desse desemprego nos municípios pesquisados
é tributada a homens e mulheres, mas os resíduos de ordem prática têm
rebatimento, sem dúvida, sobre o feminino que é cobrado, na família, pela
falta de alimento. Se ela mesma perde o emprego vê se desmoronar a sua
realização pessoal de permanecer como sujeito visível, pois, conforme a
prática adotada ao longo dos séculos, os primeiros a perder o emprego são as
mulheres (CASTELLS, 1999), sob a justifica de que o seu trabalho é
723
complementar, é ajuda. Esse fato se reflete nas próprias taxas de
desemprego no Brasil que, em 2008, segundo o Dieese (2007), os homens
somam 18,1% dos desempregados e as mulher 23,9%.
Na agricultura, o desemprego principalmente das mulheres é
cíclico e elas convivem com tal realidade sem sair do local. No caso dos
municípios pesquisados, o desemprego que mais causa sofrimento às
mulheres é o dos maridos que buscam a perspectiva de desemprego
friccional e saem deixando a família em seu local de origem. Periodicamente,
esses desempregados são constituídos, tanto pelos que partem em busca de
emprego (“os arrependidos” Expressão usada por entrevistada) quanto os
que ficam na localidade (“os inocentes” - Expressão usada por entrevistada).
A população da área pesquisada que vivenciou a prática da renda
fixa mensal se coloca como desolada e desamparada pelo poder público, ao
vivenciarem o desemprego e a falta de oportunidade de vender sua força de
trabalho. As mulheres rurais estão sempre apontando o desemprego como o
principal problema da região. Concorda-se com Saffioti (2004) que esse
problema atinge o país como um todo, mas na área pesquisada ele é mais
lembrado, pelo fato da abundante oferta de emprego que homens e mulheres
outrora vivenciaram.
Os depoimentos dessas mulheres retratam a situação:
A barragem deixou a construção no local e também a miséria. Hoje
os desempregados moram em locais desumanos. Até na bonita
cidade de Piranhas ficaram barrageiros desempregados e
marginais. Tudo analfabeto e semi-analfabeto.
O grande problema desse lugar é que não tem emprego pra
ninguém. Se viesse um ganho pros pais e mães de família, era
bom. Penso nos filhos que não podem ficar aqui. Aqui não tem pra
quem dá um dia de serviço, todo é mundo pobre.
O desemprego que atinge a população pesquisada reforça a tese
do aumento da pobreza que vem ocorrendo no país como um todo e está
sensibilizando os governantes a adotarem medidas para amenizar essa
problemática através de políticas públicas em níveis federal, estadual e
municipal.

MANIFESTAÇÃO DA MIGRAÇÃO NA REGIÃO DO XINGÓ


O fenômeno migratório que se verifica na área da barragem Xingó
não constitui fato exclusivo daquela localidade, mas é apenas uma face da
história da migração brasileira, que está atrelada ao sistema econômico e ao
planejamento, geralmente, realizado em descompasso com as necessidades
da população. Os efeitos dessas ações se apresentam na migração, por
vezes, usada como alternativa para amenizar a miséria e a pobreza agravada
pela desigualdade na distribuição dos bens econômicos.
Os migrantes que partem para os municípios da região do Xingó,
geralmente, são constituídos por famílias que se movem em busca de
724
condições básicas de sobrevivência, como o alimento e a moradia. No
entorno de Piranhas, a população migrante criou praticamente outra cidade
contendo bairros populosos onde se aloja a população mais pobre. O novo
município de Canindé, por exemplo, atualmente com uma população de
aproximadamente 26.000 habitantes, experimentou entre os anos de 2004 e
2006 um acréscimo populacional da ordem de 2.600 pessoas. Segundo
técnicos entrevistados, essa população é formada, principalmente, por
agricultores rurais que venderam suas terras. “Saíram do campo sem preparo
para habitar a cidade. São os que dão mais trabalho. Sai do
campo pra cidade e se perdem”. Esses migrantes justificam que procuram
esse município na esperança de usufruir dos royaltes, proporcionados pelo
governo federal como indenização pelo uso do espaço para implantar o
maquinário da barragem.
As conseqüências dessa migração se fazem presentes,
principalmente no entorno das cidades, uma vez que os trabalhadores
formam verdadeiros cinturões de marginalizados e excluídos que passam a
viver em favelas, invasões urbanas e guetos.
Na precariedade da situação, as mulheres das famílias migrantes
se colocam na linha de frente da mitigação tendo em vista que podem
conseguir junto a administração municipal (gás, cesta básica etc), ou seja,
produtos com referência no espaço privado. Conforme técnicas entrevistadas
As mulheres são quem mais pedem. Pedem para a família e para os maridos.
O homem tem mais vergonha de pedir do que a mulher.
Certamente, a questão da vergonha de o homem pedir está
associada ao fato de a demanda se expressar diretamente por bens de
consumo. Provavelmente, este comportamento seria diferente se a ajuda da
administração municipal fosse efetivada através do dinheiro em espécie.
Os migrantes que tem alguma estabilidade na área rural,
geralmente, saem sozinhos para os grandes centros urbanos,
provavelmente, com a ilusão de acumular algum recurso financeiro para
depois retornar ao lar, embora o crédito na agricultura se apresente reduzido,
principalmente, a partir da experiência do assalariamento vivenciada durante
a construção da barragem do Xingó.
Sempre que partem na busca do trabalho assalariado, o
comando da unidade de produção e consumo passa à responsabilidade das
mulheres agricultoras. Os homens entram num circulo de fluxo e refluxo
migratório, que, nas últimas décadas, tem mostrado pouco sucesso diante do
estancamento do emprego, particularmente, nos grandes centros urbanos da
Região Centro Sul e da sazonalidade do trabalho na cana-de-
açúcar, fato já observado, dentre outros, por Sales (1975) e Andrade (1986).
Dificilmente acumulam recursos financeiros e ainda se isentam de trabalhar
na agricultura familiar conforme expressado no depoimento de uma
entrevistada:
Ele trabalhou uns anos no Xingo e agora vai trabalhar na cana. Nesses

725
trabalhos se viciou na bebida, e não trás um tostão pra casa porque não
quer. Só dos meninos ela ganha R$ 75,00 por mês (salário família). Ele
compra som e geladeira velha que depois vende. Se o marido fosse igual
a mim a gente ia ter as coisas. Se ele pensasse, com o dinheiro do feijão
(a produção comercializada da roça) tinha comprado dois garrotes. Eu
pedi que ele fizesse tudo, mas me desse R$ 50,00 pra fazer uma feira.
Ele fez somente uma “caranha” de feira (comprou poucas coisas). O
feijão, este ano (2006) ele plantou sozinho porque eu estava operada,
era dele, tirou 35 sacos.
As mulheres, além de aturarem a desilusão dos que retornam
devem prepará-los para reconduzir ao trabalho na unidade de produção. Elas
quase sempre se mostram contrárias à saída dos maridos, justificando que a
migração já não representa alternativa para sobrevivência e que não vale a
pena largar a família conforme revela o depoimento:
Daqui foi gente pra São Paulo, mas hoje ninguém quer ir mais. Lá não tem
emprego. Pra sobrar é melhor ficar aqui mesmo. São Paulo, hoje não
presta mais, só vai pra lá flagelado, a fé que tenho hoje em São Paulo é
muito fraca. Ninguém gosta de morar em São Paulo, fica lá porque aqui
não tem emprego. É uma pena que a dificuldade pra morar aqui é tão
grande.
Estes trabalhadores agrícolas adaptados ao assalariamento,
parecem sem muitas alternativas, uma vez que, se a migração se torna uma
possibilidade distante, na conjuntura neoliberal o desemprego sinaliza como
ingrediente básico desta conjuntura no país como um todo e no mundo. O
término do trabalho na UEHX culmina com a escalada de desemprego que
parece ter poupado apenas o tradicional trabalho das mulheres que
permaneceram na agricultura familiar.
A VIOLÊNCIA NA REGIÃO DO XINGO: o contexto de estruturação
Na atualidade, a violência se apresenta como um problema de
caráter urbano e com extensão em, praticamente, todo território nacional.
Pesquisas vêm apontando a violência como um dos maiores problemas do
momento que atinge o país. Aparece, com maior freqüência, nas áreas onde a
iniciativa capitalista se faz presente, a exemplo da construção da Usina
hidroelétrica do Xingo, iniciativa que concentrou abrangente volume de
capital. Na fase de implantação, essa usina absorveu considerável volume de
mão-de-obra e atraiu trabalhadores rurais e urbanos que funcionavam como
reserva formando uma massa de miseráveis que passaram a residir no
entorno da cidade. Muitos deles, na ilusão de participar da circulação do
dinheiro, lá permaneceram após o término das obras. No manto dessa
realidade emergiu um foco de violência com atuação, sobretudo, nas
localidades em que a segurança pública se mostra despreparada para atuar,
como a área rural dos municípios situados próximos à barragem, geralmente,
habitada por trabalhadores pacatos que retiram da agricultura o pão de cada
dia. Aquelas famílias rurais estão atônitas, diante da violência herdada da
726
barragem do Xingó.
Como forma de agressão social antiga, a violência vem atraindo a
atenção de estudiosos, particularmente brasileiros, principalmente a partir da
década de 1970. É consensualmente, entendida como afirmação de poder.
Hannah Arend (1993), afirma, no entanto, que a violência abdica do uso da
linguagem característica das relações de poder, baseado na persuasão,
influência ou legitimidade. É desprovida, geralmente, do espaço para o
aparecimento do sujeito da argumentação, da negociação ou da demanda. A
violência se constitui termo polifônico, uma vez que, se traduz como força,
vigor, emprego da força física ou recursos tecnológicos. Na sua essência,
pode-se entender a violência como um conjunto de comportamento que
causa dano à outra pessoa, uma vez que, suprime do outro a autonomia, a
integridade física ou psicológica e mesmo o direito mais essencial, o de viver.
Está sempre transvestida de ações que machucam indivíduos envolve
desrespeito ao próximo, a humanidade e a cidadania.
Estudiosos classificam a violência como estrutural, sistêmica e
doméstica que incorpora o viés dos contextos social, econômico e político de
cada momento histórico e institui-se em nível institucional, doméstica e
interpessoal.
No Brasil, até 1970, a violência parecia encontrar mais
explicações nas raízes históricas da civilização, como se pode observar no
entendimento de Sérgio Buarque de Holanda assinalada no livro Raízes do
Brasil (1963), segundo o qual a violência estaria intrínseca a cordialidade do
povo brasileiro que é bom entre os amigos e violento com os outros. Ancorada
a dinâmica da sociedade, a violência passa a ser analisada, principalmente, a
partir da década de 1970, como problema estrutural centrado ao eixo do
desemprego, da miséria, da qualidade do serviço público destinado à
população e da ausência de políticas sociais. Expressava, quase sempre, a
desigualdade, a exploração, a dominação, a exclusão, a segregação e outros
males associados à pobreza ou a dominação de cor e gênero.
Nos anos de 1980, os conflitos tomaram formas diversificadas no
Brasil, permeados por questões étnicas e ideológicas. A violência é
reconhecida como problema social nacional, uma vez que, se espalha nos
espaços público e privado. Naquele momento, a violência pública se incluiria
como institucional e a privada seria considerada interna a ser resolvida no
âmbito da família.
No final do século, o problema da violência no Brasil sofre mais
intensamente os reflexos da globalização e perde o caráter de classe social,
tornando-se problema social cada vez mais generalizado. Atinge a escala
ética e política gerada pelo modelo societário. Permeia a sociedade civil, o
poder público e o espaço privado, na contramão dos direitos universais e
_____________________________________________________________

2
Termo extraído de enciclopédias Projeto Renascer Brasil (2007). Classifica como mudança de emprego
ou atividade dos indivíduos (...).
727
direitos históricos.
Essa violência urbana estruturada na sociedade brasileira se
estende ao pequenos municípios, principalmente aqueles situados em áreas
próximas a centros de grande circulação de moeda ou em locais onde
ocorrem desmandos como grilagens de terras. A sociedade rural, de certa
forma mais ancorada a valores morais, étnicos e a solidariedade torna-se
vulnerável diante dessa violência, conforme pode-se observar na região
pesquisada, principalmente, nos municípios de Piranhas e Canindé do São
Francisco.
A ÁREA RURAL DE XINGÓ: um novo porto de chegada da violência
Os trabalhadores rurais da região do Xingó parecem vivenciar um
tipo de violência figurativamente semelhante ao dos movimentos sociais que
atuaram na região Nordeste nos anos 20/30, dotada, porém, de nova
roupagem. Segundo entrevistadas, ela é praticada por pequenos grupos de
indivíduos encapuzados que se locomovem através de motocicleta para
praticar assaltos contra as famílias dos agricultores.
Naqueles municípios homens e mulheres rurais, movidos pelo
medo da ação dos marginais, dizem se enclausurar em casa com a chegada
da noite como forma de se proteger da violência. Escolas de alfabetização e
de educação para adultos fecham as portas pela impossibilidade de os alunos
freqüentarem as aulas. A participação das crianças que fazem o segundo
grau no expediente noturno na sede do município causa preocupação para as
mães e pais de famílias que somente dormem quando, em grupo, pegam
seus filhos na parada do transporte cedido pela prefeitura do município.
Com esse legado proporcionado pela UHX, que trouxe
desenvolvimento, porém para outras áreas do Nordeste, os agricultores têm
dificuldade de usufruir da infraestrutura de estradas instaladas no município
visando aliviar o isolamento das famílias rurais. Se, por um lado, o governo
cria condição para que eles consigam mais visibilidade política como
cidadãos, por outro lado, essa oportunidade é anulada pela violência que está
roubando a tranqüilidade outrora vivenciada no campo. Uma das
entrevistadas coloca sua angustia através do seguinte depoimento:
À noite ninguém sai de casa porque tem medo dos bandidos. Não há
segurança. Há alguns anos a violência vem aumentando. Aqui ela ta
grande. Na semana passada o bar foi roubado. Esses que roubam por
aqui são ladrões “cuia”, é gente de fora que não quer trabalhar. Se não
vem essa gente, aqui é o lugar mais santo e mais quieto que tem nesse
município de Canindé. Aumentou depois do Xingo com esse movimento.
Quando parou a obra a desgraça aumentou.
O medo referido pelas entrevistadas tem fundamento objetivo.
Não se trata apenas prevenção, mas da precaução de quem
vivenciou situações constrangedoras direta ou indiretamente. Considerando-
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3
Essa realidade referente aos movimentos sociais e messiânicos.

728
se órfãos da proteção do Estado não encontram saída para sobreviver. Se por
um lado não podem abandonar seus meios de produção e largar o local de
onde tiram o pão de cada dia, por outro lado, não vislumbram possibilidades
de frear aquela situação de violência. Sem saber como agir, famílias
entrevistadas apenas continuam vulneráveis a ação dos marginais que
assaltam sem piedade, tomando-lhes o mínimo que conseguem através do
trabalho na agricultura. O depoimento da entrevistada evidencia tal situação:
Já fui assaltada 14 vezes aqui dentro de casa. Acontece sempre no dia
ou próximo ao dia que vou pagar os trabalhadores. Eles chegam de
moto, armados de revolver e espingarda doze. Bota a arma, geralmente
na cabeça da mulher e manda o homem entregar tudo que tem. A gente
entrega tudo pra não morrer. Dizem que a polícia pegou um deles que
ficou foi mangando da gente na delegacia, dizendo que roubava tudo
daqueles bestas.
Apesar de apontarem várias faces da violência ocorridas no
campo, as trabalhadoras rurais entrevistadas não demonstraram
discernimento suficiente para conceber a violência doméstica em suas
variadas formas. Apenas reconhecem como violência doméstica a violência
física. A agressão psicologia, verbal e até o vício da bebida alcoólica dos
maridos, no entendimento delas não significa violência, mas trata-se de um
fato natural que perpassa a sua convivência de gênero através das gerações.
AS RELAÇÕES SOCIO AMBIENTAIS NA REGIÃO PESQUISADA
Em nome do desenvolvimento e crescimento do país e,
particularmente, da região Nordeste instalou-se na área da barragem Xingó
um desmonte do ambiente natural local que se inicia com a inundação de
grandes extensões de terras cobertas por vegetais, ação que provoca, por si
mesmo, danos consideráveis ao ecossistema e projeta desdobramentos
sobre as espécies da fauna e da flora. Estudos a esse respeito indicam que a
cobertura dos vegetais por inundações provoca a emissão de gases tóxicos
resultante do processo de decomposição do material orgânico imerso sob as
águas, além da proliferação de pragas, fenômenos que naturalmente criam
dificuldades ao desenvolvimento das espécies biológicas fundamentais
nesse ambiente (CASTRO, 2004; FREIRE, 2004).
Trata-se de mudanças impostas aos recursos naturais com
desdobramentos sobre as condições de vida das famílias ribeirinhas, onde
prevaleciam águas territoriais de pesca, de travessias, de cultura de várzeas
e espaços de lazer, permeadas por expressão de identidades conduzidas,
sobretudo, pelas mulheres rurais, desdobramentos que serão fatalmente
eliminados para atender interesses do mercado da água.
Com a construção da barragem Xingó suprimem-se meios de
subsistência das famílias pesquisadas sem que os governantes ofereçam
outras alternativas de sobrevivência aquela população que embora muito
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4
O Cangaço e outros de cunho Messiânico, como o de Canudos

729
próxima de grande volume de água, lhes falta água para produzir.
Sem alternativas para a população sobreviver, a população apela
para o uso indiscriminado dos recursos naturais. A maioria das famílias rurais
entrevistadas, antes de pensar na conservação nos recursos naturais lutam
pela sobrevivência usando indiscriminadamente os recursos naturais mais
demandados pelo mercado. Como diz uma entrevistada: Essas barragens
mataram o rio e a terra.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A usina hidrelétrica do Xingó, ao mesmo tempo em que
proporciona “desenvolvimento” para a economia do país, deixa como
herança o desassossego e a pobreza para a população de áreas
circunvizinhas a barragem. Além disso, os danos causados à natureza e o uso
dos recursos naturais são irreparáveis ao longo do rio São Francisco. Para as
mulheres rurais da área ribeirinha ocorreu a redução na produção para o auto
consumo com o redirecionamento do rio de onde tiravam o peixe para o
alimento e que hoje não o fazem mais, bem como com a destruição das terras
de plantio inviabilizada pelo controle do volume de água do rio. As heranças
malditas da barragem são também manifestadas pelo desemprego, pela
migração e desestruturação das famílias e a presença da violência que ora se
instala naquela região. Estaria o desenvolvimento associado a degradação
da saúde, da alimentação, da paz, e a destruição dos recursos naturais? Será
esse o tipo de desenvolvimento que se deseja para homens e mulheres do
campo?

730
REFERÊNCIAS
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SUÁREZ, Maria Teresa Sales de Melo et al. Açúcar: realidade e política.
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731
O PAPEL DAS MULHERES NA ELABORAÇÃO DE ESTRATÉGIAS DE
SOBREVIVÊNCIA
Neuzeli Maria de Almeida Bezerra1
Nos anos 60 e 70, os questionamentos feministas surgiram em
decorrência do caráter e da prática social androcêntrica e, também de
estudos científicos a respeito da posição da mulher na sociedade. As
discussões feministas procuravam definir como as metodologias e as teorias
existentes deveriam ser modificadas para incorporar a realidade da mulher a
um novo campo de estudo. A tarefa prioritária era a de descobrir as
abordagens mais apropriadas para o estudo da mulher, para se entender a
realidade em que se situava a condição feminina.
De modo bastante geral, por serem formadas em escolas onde
predominavam teorias androcêntricas, as feministas acadêmicas
privilegiaram a esfera pública em suas pesquisas e dedicaram pouca atenção
à posição da mulher na esfera privada. Com o desenvolvimento da reflexão
feminista, descobre-se que as explicações baseadas nas teorias
androcêntricas existentes só explicavam parte da realidade da mulher - e é
daí que emerge a teoria de gênero (Marques e Cebotarev, 1994).
Segundo Scott (1990), essa teoria postula que a categoria gênero
é uma interpretação cultural dos atributos biológicos feminino e masculino.
Essa interpretação é construída por meio de processos socioculturais,
criando um universo simbólico que fica incrustado na estrutura social, nos
distintos estratos sociais e nas relações sociais. A partir desse panorama da
realidade feminina, essa autora discute uma nova maneira de estudar a
posição da mulher, através da articulação de três categorias, quais sejam, as
de classe, de raça e de gênero. Dessa forma, constrói - se um novo ponto de
observação do estudo de gênero, visto que as mulheres, com vivências
diferenciadas dos homens, constróem o conhecimento científico sobre as
novas dimensões a serem exploradas (Saffioti, 1991).
Os escritos feministas dos anos 80 estavam centralizados em um
sujeito constituído no gênero, não apenas pela diferença sexual, e sim por
meio de códigos lingüísticos e representações culturais - “um sujeito não só
com experiências de relações de sexo, mas com a dimensão de raça e de
classe, portanto múltiplo, em vez de único, e contraditório, em vez de
simplesmente dividido”. Para especificar esse novo tipo de sujeito, foi
necessário um novo conceito de gênero que não estivesse tão fortemente
vinculado à diferença sexual (Scott, 1990; Saffioti, 1991).
A partir da teoria foucaultiana, propõe-se que o gênero é produto
de diferentes tecnologias sociais e de diversos discursos, bem como das
práticas da vida cotidiana (Laurettis, 1994). Em outras palavras, gênero não é
sexo ou uma condição natural, e sim a representação de cada indivíduo em
733
termos de uma relação social preexistente e definida em relação à oposição
conceitual e rígida dos dois sexos biológicos. Essa estrutura conceitual é o
que as cientistas sociais feministas denominaram de “sistema de sexo-
gênero” (Rubin, 1975).
Da perspectiva psicanalítica, Gilligan (1993) discute as teorias
tanto da psicanálise, propostas por Freud e Erikson, como da epistemologia
genética, formuladas por Piaget e Kohlberg, estas não levam em
consideração a realidade da experiência feminina, em que as diferenças de
gênero são concebidas como problemas ou falhas no desenvolvimento da
mulher. Gilligan procurou explicar a gênese das diferenças de gênero através
da dinâmica interpessoal de meninos e meninas, vividos em seus primeiros
anos, considerando o fato de que geralmente em sua primeira infância ambos
(meninos e meninas) são cuidados por mulheres. Ao serem vistos e tratados
como opostos e diferentes, os meninos definem sua masculinidade a partir da
experiência da separação, enquanto as meninas mantêm uma relação de
continuidade e identificação com a mãe e, consequentemente, são vistas
como iguais, definindo assim, sua feminilidade a partir da experiência do
apego. A partir dessa experiência, haveria a tendência de os homens terem
dificuldades com os relacionamentos íntimos, enquanto as mulheres
estariam propensas a problemas com individuação. De acordo com essa
análise, as mulheres seriam construtoras de teia de relações e mantenedoras
de vínculos sociais, sobretudo os de parentesco.
Assim, neste trabalho, procura-se examinar o papel da mulher no
âmbito familiar e na esfera pública, considerando-a como sujeito múltiplo,
com características de gênero, raça e classe social. Além disso, investigar-
se-á quais as representações de gênero que são incorporadas por essas
mulheres.
Trabalhos como os de Montali (1990) e Bruschini (1990) revelam
as diferentes articulações construídas pelas famílias para a organização de
seu cotidiano e para a superação das dificuldades, tais como a insuficiência
de rendimentos e a instabilidade no emprego. A análise das diferentes fases
do ciclo de vida da família (constituição, maturação e velhice) possibilita
identificar os arranjos organizados nos diferentes momentos. Cada fase de
desenvolvimento constitui momento de maior ou menor dificuldade que a
família atravessa. Essas fases indicam as peculiaridades do momento de
vida das famílias, como, por exemplo, idade, vigor físico para o trabalho, filhos
menores que requerem cuidados e despesas, número de filhos que
trabalham e contribuem para o orçamento, etc.
Outros trabalhos lembram que no interior das famílias são
construídas as identidades e os papéis, que se caracterizam pela hierarquia
centrada na figura do “chefe provedor” (Zaluar, 1985; Telles, 1990). Isto quer
dizer que caberá ao chefe da família o exercício de uma ocupação, no
734
mercado formal ou informal de trabalho. Embora se constate que a mulher,
principalmente a esposa, venha ocupando um significativo espaço no
mercado de trabalho, isto não diminui a responsabilidade que sempre lhe foi
atribuída quanto aos afazeres domésticos e à educação dos filhos (Oliveira,
1990; Bruschini, 1994).
A contribuição da esposa para suprir as necessidades da família
ocorre através do trabalho doméstico, produtor de valores de uso e da
atividade profissional remunerada, no mercado formal ou informal de
trabalho. No entanto, em função da baixa qualificação da força de trabalho
das mulheres das classes populares e da desvalorização geral do trabalho
feminino, a remuneração que elas podem obter é, de modo geral, pequena.
Além disso, o trabalho remunerado, muitas vezes, é realizado
simultaneamente com as tarefas domésticas, acarretando assim uma dupla
jornada de trabalho. Em todas as fases do ciclo de desenvolvimento do grupo
familiar, a esposa continua sendo, direta ou indiretamente, a grande
responsável pelas tarefas domésticas, mesmo quando sua execução é
delegada a outros membros do grupo familiar (Fausto Neto, 1982).
A produção de valores de uso pelas esposas, como lavar, passar,
preparar alimento, cuidar de filhos e arrumar a casa, é fundamental para
assegurar certo bem-estar e a reposição da força de trabalho despendida
pelo trabalhador no processo de produção. É a partir dessa dependência
entre a produção e a economia doméstica que é estruturado o grupo familiar.
O exame de trabalhos sobre o tema mostra que a unidade
doméstica urbana está integrada em redes mais amplas de ajuda mútua,
envolvendo parentes e vizinhos. Essas redes são organizadas e mantidas
principalmente pelas esposas e contribuem para satisfazer as necessidades
dos membros da família e da vizinhança. Além disto, a integração das famílias
de classes populares nas “redes horizontais” de troca de favores e
solidariedade tem a função de assegurar socialmente essas famílias. A
importância dessas redes cresce à medida que as famílias vão criando
vínculos que as tornem próximas, e consequentemente, ocorre uma
dependência mútua entre elas. A inserção dessas famílias nas redes de
relações se torna importantes em função do tempo de residência no bairro ou
pela escassez de recursos durante as crises de recessão econômica (Jelin,
1994).
Segundo Fausto Neto (1982), o trabalho remunerado da esposa,
com a finalidade de proporcionar a sua emancipação econômica na luta pela
sobrevivência, faz surgir no seio familiar à necessidade de
esforços suplementares por parte de outros membros, sem que, entretanto,
deixem de realizar as atividades que antes já vinham exercendo. Por outro
lado, a necessidade de a esposa participar do mercado de trabalho pode
provocar um declínio do nível nutricional da família, de suas condições de
735
higiene e dos cuidados prestados aos filhos (Fausto Neto, 1982).
A procura de outras saídas para os momentos difíceis da vida
cotidiana faz com que as esposas sejam levadas a se descolar do âmbito
doméstico para o público, organizando-se e, inclusive, participando de ações
coletivas. Essas experiências implicam transformação do âmbito doméstico e
criam novas condições para a presença da mulher nos movimentos sociais.
Ao integrar-se no cenário público, a mulher estabelece vínculos entre o
público e o privado, contribuindo para processos de transformações
macrossociais (Jelin, 1994).
Conforme Romanelli (1995), apesar de tudo, a participação das
esposas na produção de rendimentos provoca mudanças no sistema de
autoridade interna da família, na divisão sexual e etária do trabalho e nas
relações entre marido e esposa e entre pais e filhos, pois o fundamento
econômico da autoridade do marido diminui na medida em que a mulher, e
também os filhos, colaboram com as despesas domésticas. Essa dinâmica
resulta em linhas de conflitos entre os membros da família, sobretudo entre
maridos e esposas, quando aumenta a participação destas na força de
trabalho. Apesar desse conflito, a esposa acaba assumindo a
responsabilidade das tarefas domésticas, aumentando assim sua jornada de
trabalho.
A situação de dupla jornada de trabalho é uma realidade na
América Latina, no entanto, existem contradições. Se, por um lado, ocorrem
reivindicações das mulheres, que demandam reconhecimento de sua
individualidade pessoal, por outro lado, elas continuam sendo os verdadeiros
suportes da ordenação da vida doméstica, em função de seus papéis de
esposa e mãe (Jelin, 1994).
Durham (1983) mostrou que a participação da esposa nas tarefas
do âmbito familiar, como dona-de-casa, e sua inserção no sistema produtivo,
como trabalhadora e produtora de rendimentos, tende a sobrecarregar e
enfraquecer a relação conjugal, gerando tensão e conflitos internos na
família.
METODOLOGIA
Esse trabalho foi desenvolvido no município de Sertãozinho – SP
localizado no interior de São Paulo. Segundo dados do C.I.S.S. (Cadastro de
Informações Sociais de Sertãozinho), o município de Sertãozinho foi fundado
em 1896 e conta hoje com uma população de 88.418 habitantes, sendo que
54,57% nasceram na cidade, enquanto o restante, 45,43%, migrou de
cidades vizinhas ou de outros estados.
A grande maioria da população de Sertãozinho encontra-se
empregada, pois 77,27% possui emprego com duração mínima de seis
meses. Já o número de indivíduos que trabalhou menos de seis meses
736
representa cerca de 5%. O restante inclui os indivíduos que nunca
trabalharam (13,81%) e os que estão procurando emprego (3,69%). Deve-se
levar em consideração que os dados do C.I.S.S. foram coletados no período
de entressafra da cana-de-açúcar, quando aumenta o desemprego. Sendo
assim, esses dados certamente devem ser diferentes durante a época da
safra de cana-de-açúcar.
Sinteticamente a história econômica de Sertãozinho que passou
por três períodos importantes: o ciclo do café, a formação da economia
agroindustrial açucareira e o Programa Nacional do Álcool (PROALCOOL).
Esses períodos, além de determinarem a estrutura econômica, política e
cultural do município, marcaram profundamente as relações sociais entre os
habitantes da cidade, causando também um forte impacto demográfico.
A COLETA DE DADOS
A coleta de dados foi realizada por meio de entrevistas gravadas,
orientadas por um roteiro semi - estruturado e transcritas na íntegra. Também
foi adotada a observação participante através das constantes visitas aos
bairros onde residem as famílias. Esses dados foram registrados no diário de
campo. As famílias foram contatadas por intermédio da Sra. Regina Furlan e
do Sr. Braz Carmona, coordenadores da Associação de Assistência e
Proteção ao Adolescente Trabalhador (ADOT), de Sertãozinho, que realizam
diversas atividades nos bairros onde foi feita a pesquisa.
PROCEDIMENTO
Foi realizada uma coleta inicial de dados secundários sobre as
condições dos bairros Alvorada e Jardim Paraíso I. Esses bairros foram
escolhidos por estarem localizados em uma área periférica da cidade onde se
concentram migrantes que trabalham na lavoura de cana-de-açúcar. Em
seguida, procedeu-se a um levantamento histórico de Sertãozinho, quando
foram coletados dados sociais e econômicos referentes às condições de
emprego, ao índice de desemprego, ao problema do desemprego na
entressafra, à violência e ao tráfico de drogas nos dois bairros.
As entrevistas foram realizadas na época da entressafra e na época
da safra, o que permitiu conhecer tanto as condições de vida dessas famílias
no período em que seus componentes têm maiores possibilidades de estar
empregado quanto no período em que o desemprego aumenta acarretando
maiores dificuldades para a sobrevivência.
RESULTADOS E DISCUSSÕES
Analisando os diversos depoimentos dos entrevistados, verifica-se
que, quando as esposas têm trabalho remunerado e, consequentemente,
contribuem para o orçamento doméstico, acabam adquirindo o direito de
participar das decisões familiares e, dessa forma, acabam sendo mais
737
valorizadas.
Quando as esposas executam apenas atividades domésticas,
afirmam que não participam das decisões familiares, apesar da importância
dessas atividades para a manutenção da família. No entanto,
independentemente de as esposas terem ou não trabalho remunerado, na
maioria dos casos analisados elas efetivamente participam de decisões
relacionadas às atividades domésticas cotidianas, que o marido não domina
inteiramente.
Por outro lado, os maridos julgam não ser importante o trabalho
remunerado da esposa, ou acreditam que o poder de decisão dentro da
família não está relacionado com a contribuição financeira da esposa. Os
maridos relatam que o trabalho remunerado das esposas funciona para a
família como uma ajuda secundária, não admitindo a importância desses
rendimentos para compor o orçamento doméstico.
Para as unidades matrifocais a contribuição da mulher chefe de
família é a principal fonte de renda para garantir as despesas domésticas.
Apesar disso, as mulheres chefes de família não conseguem que os filhos -
principalmente os homens - as respeitem em função de assumirem o encargo
de provedoras e mantenedoras da família. Mesmo trabalhando no mercado
formal de trabalho, Madalena, uma destas mulheres, nunca participou da
tomada de decisões referentes à vida doméstica e seu ex-marido, que a
submetia a violências físicas e psicológicas, sempre controlava o dinheiro
que ela ganhava. No entanto, apesar de Madalena ser a única provedora da
família no momento, seus filhos acredita que ela não tem o poder de tomar
decisões referentes ao conjunto de interesses familiares e que não deveria ter
deixado o marido ir embora.
Por outro lado, os filhos de Márcia, outra mulher chefe de família, não
aceitam sua decisão de ter novos parceiros. Este é um dos motivos geradores
de constantes conflitos domésticos, e que fazem com que ela acabe
desistindo de suas relações amorosas, que sempre têm curta duração.
Os filhos de Márcia têm valores e idéias que os levam a acreditar que
a mãe não se encontra mais em idade de unir-se a outros companheiros, pois
ela não está mais em idade de procriação, e sim no início na velhice, quando
deveria exercer a função de avó, cuidando dos netos, pois esta é a tarefa que
cabe a uma mulher de 50 anos. A tentativa dos filhos de imporem limites sobre
sua vida afetiva é acompanhada pela falta de controle que ela exerce sobre
eles, que são viciados no uso de maconha e crack.
Os dados indicam que os papéis de esposa e de marido estão muito
bem definidos, cabendo à esposa o desempenho das atividades domésticas
e os cuidados com a socialização dos filhos. Já o marido possui o papel de
trabalhador, sendo responsável pelo sustento da família, correspondendo à
738
“ética do provedor” descrita por Zaluar (1985).
Mesmo as esposas que têm alguma atividade profissional e
contribuem para o orçamento familiar também possuem a mesma concepção
da divisão sexual do trabalho, qualificando a atividade remunerada delas
como uma ajuda secundária para as despesas domésticas. Nas
representações dos maridos, a divisão sexual do trabalho está definida de
modo rígido, pois eles julgam que o lugar da esposa é no âmbito doméstico.
As representações sobre o que é um bom marido e uma boa esposa fundam-
se na mesma divisão de papéis. Nas falas masculinas, a boa esposa é aquela
que cuida da casa e dos filhos, enquanto o marido ideal deve trabalhar para
prover o sustento da família, além de respeitar e dar carinho à esposa e aos
filhos.
Este posicionamento deixa clara a posição dos homens a respeito do
que consideram atributos ideais do masculino e do feminino, conforme
esclarece Gilligan (1993). A masculinidade é definida a partir das
experiências de separação do âmbito familiar, enquanto que as mulheres
mantêm uma relação de continuidade com a mãe, definindo sua feminilidade
a partir da experiência do apego e do cuidado com os outros, sendo
responsáveis pela manutenção da teia de relações sociais no interior da
família e com parentes. Ao contrário das mulheres, os maridos estão mais
ligados à vida pública, em que participam do mercado formal de trabalho e, na
maioria das vezes, não encontram disponibilidade para se dedicar aos
cuidados com os filhos e à realização das tarefas domésticas. No entanto,
quando os maridos realizam essas tarefas, eles não as assumem de forma
definitiva.
Outro fato importante observado é que, na maioria das vezes, a
necessidade da esposa participar do mercado formal de trabalho pode
provocar um declínio nos cuidados com a alimentação, com as condições de
higiene e com os cuidados prestados aos filhos (Fausto Neto, 1982). Isto
ocorre com a maioria das famílias estudadas em que as esposas saem para
trabalhar e não têm a quem delegar as tarefas domésticas. Quando a esposa
trabalha fora, essas tarefas são realizadas à noite ou nos fins de semana.
Porém, quando essas famílias não possuem parentes ou vizinhos que
possam assumir os cuidados com os filhos, estes ficam na rua desprotegidos
e expostos a acidentes, ao uso de drogas e a outras situações perigosas. Na
maioria dos depoimentos observados as famílias acreditam que os cuidados
com os filhos e as tarefas da casa ficam prejudicadas quando a esposa sai
para trabalhar fora.
Por outro lado, foi observado que as esposas que possuem
atividades profissionais não deixam de realizar as tarefas domésticas,
principalmente os cuidados dos filhos (Oliveira, 1990; Bruschini, 1994). A
dupla jornada de trabalho está sempre presente em todas as fases do ciclo de
739
desenvolvimento do grupo familiar, cabendo à esposa a responsabilidade do
controle das tarefas domésticas, mesmo quando elas são desempenhadas
pelas filhas, parentes e vizinhos. É o que ocorre em três famílias, nas quais as
entrevistadas recebem ajuda dos filhos ou dos maridos na realização das
atividades domésticas. Em uma destas famílias, os filhos e o marido
preparam as refeições quando Tereza está trabalhando. Madalena trabalha
na lavoura de cana e realiza as atividades domésticas nas horas vagas ou nos
fins de semana. Porém, algumas vezes, os vizinhos e os filhos a ajudam,
preparando o alimento e freqüentemente seus filhos organizam a casa
enquanto ela está trabalhando ou, até mesmo, quando ela se encontra em
casa.
Quando a esposa não conta com parentes ou vizinhos para fazer as
tarefas domésticas, ela própria realiza a noite as que são indispensáveis no
dia-a-dia; já aquelas que podem ser adiadas, como limpar a casa, lavar e
passar roupa, é concluído nos fins de semana. Os resultados indicam que
mesmo as esposas que não trabalham fora de casa também recebem ajuda
de parentes e vizinhos nas atividades domésticas
Quanto às esposas que não têm atividade remunerada, os dados
mostram que elas deixaram de trabalhar após o casamento. Nas
representações dessas mulheres isto se justifica porque tiveram que se
dedicar aos filhos e aos cuidados com as tarefas domésticas e também
devido à imposição dos maridos, que “acreditam” que não vale à pena a
esposa trabalhar fora de casa, pois eles têm condições de serem os únicos
provedores da família.
A análise dos dados indica que o papel da esposa no âmbito familiar
e na esfera pública deve ser relacionado às redes de ajuda mútua e à
solidariedade de parentes e vizinhos, que são bastante importantes para as
famílias entrevistadas.
Das dez famílias entrevistadas, cinco são formadas por uniões livres
e duas apenas por união civil, enquanto que as mulheres chefes de família
são separadas dos maridos. Um único casal é constituído por união civil e
religiosa. Dois casais vivem consensualmente sua segunda união, enquanto
o primeiro casamento desses dois casais ocorreu no civil e no religioso. O que
se pode perceber nas famílias estudadas é que ocorrem separações
freqüentes, às vezes seguidas de novas uniões. Com isso, formam-se
arranjos familiares diversificados, que podem ser instáveis e transitórios.
Três casais estudados, na faixa etária entre 19 e 28 anos, estão
vivendo sua primeira união, fundada em termos consensuais. Esse fato
poderia ser explicado pela condição financeira que essas famílias vivem, ou
seja, o casamento legalizado implica em custos que são elevados para esses
casais.
740
Como pôde ser percebido no item anterior, são inúmeras as
dificuldades para que a família consiga manter um padrão adequado de
consumo contando unicamente com o rendimento do marido e dos filhos. A
inclusão da esposa no mercado de trabalho, para seis das famílias, ocasiona
algumas mudanças na estrutura familiar, sobretudo na divisão sexual do
trabalho. Nesse acaso, o marido contribui esporadicamente com trabalho
doméstico que, na maioria das vezes, se restringe ao cuidado com os filhos,
quando a esposa está realizando afazeres da casa ou quando ocorre alguma
eventualidade e a esposa não tem disponibilidade de desempenhar as
tarefas domésticas. No entanto, quando essas atividades são delegadas aos
maridos estão sempre relacionadas a uma ajuda eventual e sem a
responsabilidade diária de executar tais tarefas.
Apesar de essas famílias considerarem importante a participação do
marido nas tarefas domésticas, as esposas mostram uma tendência em
cumpri-las, mesmo quando trabalham fora de casa, o que indica a
permanência de uma divisão sexual do trabalho convencional. Por outro lado,
nas famílias de classes populares, a inserção das esposas no mercado formal
ou informal de trabalho é necessária como meio de complementar o
rendimento do marido. Portanto, apesar dos conflitos e mesmo contra a
vontade do marido, este acaba cedendo e permitindo que a esposa trabalhe
para ajudá-lo a cobrir as despesas da família.
Na maioria das vezes, a inserção das esposas de classes populares
no mercado de trabalho provoca conflitos conjugais, pois o marido tende a
seguir um padrão de autoridade e hierarquia (Zaluar, 1985), que consiste em
vincular o valor moral do trabalho ao status do trabalhador. Por outro lado,
além de realizar as tarefas domésticas, a esposa acredita ter possibilidade de
participar do mercado formal ou informal de trabalho para complementar a
renda familiar. Mesmo quando as esposas exercem trabalho remunerado, o
homem continua ser identificado, como a autoridade moral (Sarti, 1996), o
que confere respeitabilidade à família. Apesar disso, a esposa enfrenta
grande dificuldade na relação conjugal para exercer o trabalho remunerado.
Os depoimentos permitem constatar que os problemas financeiros
geram conflitos na relação conjugal em todas as famílias entrevistadas. A
interrupção do rendimento do marido, devido a desemprego, ou sua reduzida
remuneração contribuem para o acúmulo de dívidas em mercearias e
farmácias do bairro, o que gera tensão na vida doméstica. Conjugado ao
problema financeiro que, na maioria das vezes, está relacionado ao
desemprego e à baixa remuneração dos trabalhadores rurais, a bebida tende
a ser utilizada como tentativa para amenizar a situação de pobreza em que
vivem. Mas, ao contrário, o alcoolismo prejudica o relacionamento conjugal,
gerando violência doméstica contra as esposas e filhos menores. Além da
educação dos filhos como mais um dos motivos que pode provocar conflitos
no âmbito doméstico. E questões de ordem emocional, moral e econômica
741
assumem um papel relevante no relacionamento conjugal.
Juntamente com as dificuldades financeiras, a infidelidade aparece
como outro motivo importante das separações. Essas rupturas ocorrem, na
maioria das vezes, durante a fase inicial do ciclo de desenvolvimento do
grupo doméstico, quando os filhos estão na primeira infância (Neves, 1984;
Fonseca, 1987; Scott, 1990). Nessa fase, as famílias de classes populares
enfrentam maiores dificuldades financeiras, pois a esposa está envolvida
com os cuidados com os filhos e o consumo doméstico depende apenas do
rendimento do marido. Entretanto, a separação é considerada negativa
porque compromete a possibilidade de consumo, uma vez que a diminuição
nos rendimentos provoca redução do poder aquisitivo e dificulta a melhoria de
suas condições de vida (Romanelli, 1991).
As mulheres das famílias matrifocais que foram abandonadas pelos
maridos acreditam que a presença destes dentro de casa poderia ter ajudado
na educação dos filhos, já que eles são fonte de autoridade. Os depoimentos
dessas mulheres, que hoje são chefes de família e que assumiram a
responsabilidade financeira pela sobrevivência dos filhos, são bastante
importantes porque permitem constatar que o marido ainda continua a ser
identificado como a autoridade moral, necessária para exercer controle sobre
os filhos e para assegurar a respeitabilidade da família.
CONCLUSÃO
A maioria das mulheres está desempregada, o que se deve à
redução de trabalho durante a entressafra e, também porque os maridos
procuram evitar que elas tenham atividade profissional. No entanto, foi
verificado que, mesmo não participando do mercado formal de trabalho, as
mulheres estão envolvidas com trabalhos informais, além da produção de
valores de uso para o grupo familiar.
Apesar disso, as esposas tendem a naturalizar o trabalho
doméstico, o que inclui a criação de representações (idéias, sistemas,
símbolos), levando-as a acreditar que esse trabalho não possui o mesmo
valor que têm as atividades remuneradas. No entanto, sua contribuição é
fundamental para a sobrevivência da família. A produção de valores de uso e
a participação feminina nas redes de ajuda mútua são essenciais para
compor o orçamento doméstico. Além disso, os dados mostram que as
relações de parentesco e de vizinhança, mantidas, sobretudo pelas
mulheres, ainda constituem recurso essencial para assegurar a reprodução
social e biológica das unidades domésticas e para minimizar os conflitos da
divisão sexual do trabalho na vida conjugal e na fase de constituição dessas
famílias.

742
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744
O ACESSO AO CRÉDITO: uma peleja para as mulheres agricultoras
familiares
Lígia Albuquerque de Melo
O acesso ao dinheiro, desde o início, constituiu prática social
exclusiva do homem. Essa determinação, respaldada pelo sistema patriarcal
que historicamente orienta a sociedade, alijou a mulher das relações que
envolvem o dinheiro. Tal realidade, no entanto, está se modificando com a
participação crescente do feminino no mercado de trabalho e com a luta dos
movimentos feministas para inclusão irrestrita das mulheres na sociedade.
Porém, a dificuldade de acesso da mulher ao dinheiro persiste, quando se
trata de crédito bancário para a agricultura familiar, modo social de produção
predominante na agricultura brasileira e que ocupa significante contingente
de mulheres.
O objetivo desse estudo é o de analisar o acesso da mulher
agricultora familiar ao crédito oferecido pelo Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar – Pronaf. O estudo foi desenvolvido
nos municípios pernambucanos de Garanhuns, Águas Belas e Manarí, junto
a mulheres agricultoras beneficiadas e não beneficiadas pelo crédito do
Programa nas modalidades do Pronaf “B” e Pronaf “Mulher”. Fizeram parte da
pesquisa 25 mulheres agricultoras, sindicalistas, técnicos do órgão oficial que
presta assistência a agricultura, do Banco do Nordeste do Brasil e do Banco
do Brasil, dentre outros.
A metodologia empregada de teor qualitativo teve como técnica
de apreensão dos dados, entrevistas semi-estruturadas e análise
documental. Embora o Pronaf tenha sido criado em 1995, a participação das
mulheres agricultoras de forma visível, somente aconteceu no ano de 2003,
através da criação da categoria específica do Pronaf Mulher, conquista dos
movimentos feministas. Mesmo com essa modalidade a participação das
mulheres no Programa acontece principalmente no microcrédito (modalidade
B), por ser menos exigente com relação às condições financeiras do
solicitante e, portanto, mais acessível às mulheres.
O pouco acesso às informações sobre o Programa constitui uma
das dificuldades para as mulheres acessarem o Pronaf Mulher. Apesar disso,
o Programa é responsável pela inclusão das agricultoras no circuito
financeiro, no acesso ao dinheiro, há muito negado as mulheres. O estudo
está apresentado em quatro partes: na primeira se enfoca a realidade das
mulheres com relação ao acesso ao dinheiro, considerando que essa
constitui uma prática socialmente atribuída aos homens. Na segunda parte é
abordada a modalidade do microcrédito como uma possibilidade de acesso
ao empréstimo bancário para as mulheres agricultoras familiares. A terceira
parte do estudo apresenta o Pronaf B, que se caracteriza como microcrédito,
sendo a modalidade mais acessível a mulher e por isso tem a sua preferência,
inclusive em relação a modalidade Pronaf – Mulher que foi criada com o
objetivo de incluir as mulheres agricultoras no Programa. Finalmente a quarta
745
e última parte foi reservada as considerações finais.
AS MULHERES E O DINHEIRO: breve histórico
O modelo de organização sob a égide do patriarca, de dominação
masculina, em que a sociedade se ancorou, desde a sua formação, e ainda
prevalecente no mundo atual, coloca a mulher em múltiplas situações
desfavoráveis, sendo emblemático, o acesso ao dinheiro.
Lidar com o dinheiro constituiu, numa prática inerente aos
homens, desde o começo. Eles obtinham os recursos financeiros,
inicialmente, através de herança de família e, em seguida da venda da
produção, da força de trabalho. Para as mulheres o acesso ao dinheiro surge
de forma considerada pela sociedade imoral, pois é obtido por meio da
prostituição, que segundo o dicionário de Aurélio se refere ao comércio
habitual ou profissional do amor sexual. A prostituição surge como a mais
antiga das atividades femininas. Assim, desde o início, estigmas da
indignidade, de desprezo social pelas mulheres que lidavam com dinheiro
foram estabelecidos. As prostitutas foram as primeiras mulheres a
desenvolver atividades remuneradas e, portanto, a atuarem no espaço
público.
Com base nessa realidade a sociedade criou uma cultura do
dinheiro como instrumento impróprio e injusto à mulher, fantasmas que ainda
na contemporaneidade atormentam o imaginário de algumas mulheres que
denotam certo acanhamento no lidar com o dinheiro, ou carregam o
sentimento de culpa, quando dispõem de maior quantidade de dinheiro do
que seus pares masculinos. Ainda neste sentido de representação do
dinheiro, observa-se que ele, muitas vezes, tem conotação social própria,
para cada sexo. Assim, para o homem, o dinheiro pode significar poder, vigor,
potência, coragem, audácia e realização, enquanto que para a mulher pode
representar ambição, ou o atributo de “interesseira” e, até mesmo, sem pudor.
Além disso, as mulheres bem sucedidas financeiramente, por vezes, são
chamadas de masculinas ou desviadas do comportamento do gênero
feminino (FISCHER, MELO; 2009).
O reconhecimento social do dinheiro como uma ferramenta para
o uso do masculino reflete na dificuldade de acesso das mulheres, para além
da remuneração da força de trabalho, onde o mercado, na maioria das vezes,
oferece melhores condições financeiras aos homens, inclusive para o
exercício de atividades idênticas desempenhada por trabalhadores de ambos
os sexos. Outra forma de acesso ao dinheiro pelas mulheres refere-se ao
crédito, ao empréstimo de dinheiro.
O crédito, com origem no vocábulo latim creditum, significa
confiança. A confiança constitui ingrediente imprescindível nas interações
sociais, e exige dos agentes envolvidos na rede, respeito às regras do
contrato. Trata-se de uma relação entre o credor e devedor. O credor é quem
detém “os meios”, “o dono do jogo” -, e o devedor – aquele que aceita
participar do jogo -. A partir daí, as partes envolvidas, em acordo, vão cumprir

746
o que foi acertado.
O sentido da palavra crédito, é amplo, pois envolve uma gama de
relações, dentre elas, morais, afetivas, jurídicas e econômicas. Porém, a
concepção econômica, que está relacionada ao empréstimo de dinheiro é,
sem dúvida, a que demarca o significado do crédito, e no caso, assume o
papel substitutivo de moeda. Ao assumir o esse papel ele é controlado pelo
Estado, e nesse caso são os bancos, os agentes intermediários e mediadores
da negociação. Nas duas faces do empréstimo bancário, o solicitante e o
credor, estão sujeitos às regras do mercado financeiro. Aquele que requer o
crédito precisa oferecer, em geral, garantias de pagamento ao banco, como a
posse de bens materiais. Além disso, o credor requer do solicitante do
empréstimo, o preenchimento de ficha cadastral com seus dados pessoais
para garantir a transação financeira. Após aprovação do cadastro, o banco
estabelece os prazos para liberação dos recursos, as formas de pagamento,
as taxas de juros aplicadas sobre o capital solicitado, dentre outras
exigências.
A aquisição de dinheiro por empréstimo, atrelado à garantia
patrimonial ou ao aval governamental amparado no subsídio, teve como
destinatário, desde a sua criação, à classe abastada. Porém, ele preteriu não
somente a classe econômica dos pobres, pela ausência de garantia do
retorno do capital, mas as mulheres, por questão de gênero. As relações
sociais entre homens e mulheres, de modo geral, são desfavoráveis a mulher.
Ela, historicamente, está mais afastada do dinheiro. Nesse sentido, a
confiança, elemento imprescindível na transação do crédito, que tem como
básico o econômico, a posse de renda, o patrimônio das pessoas, distancia
as mulheres do acesso ao dinheiro por empréstimo. Porém, a desatenção
para com as mulheres no acesso ao crédito bancário, ao contrário dos
pobres, nunca foi posta de maneira explicita. Elas foram, de forma sutil,
colocadas à margem desse processo. Assim, a discriminação contra as
mulheres se estabelece, de forma imperceptível pela sociedade, e inclusive,
muitas vezes, por elas próprias. Isso decorre da realidade que envolve
gênero, recheada por relações sociais desiguais, entre homens e mulheres,
com lastro no patriarcado. Por isso, em várias situações, a participação
feminina não está expressa, e o homem é o destinatário “natural” das ações
provenientes. A ocorrência de tal procedimento descaracteriza a existência
de exclusão, descriminação da mulher, ao mesmo tempo em que a mantém
de fato afastada do processo.
Considerando as exigências econômicas impostas pelo crédito
ou empréstimo bancário, participar dessas transações torna-se inacessível
para determinadas categorias sociais, a exemplo dos produtores rurais
pertencentes à categoria dos agricultores familiares, modo social de
produção do qual participam as mulheres, sujeitas sociais centrais do estudo
em pauta. Essa categoria, até recentemente, não dispunha de uma política de
crédito diferenciada. As normas bancárias eram generalizadas para todos os
747
agricultores solicitantes do crédito, sem considerar as diferenças entre as
diversas categorias de agricultores existentes.
O MICROCRÉDITO: possibilidades para as mulheres agricultoras Na área
rural do Brasil, espaço em que o estudo em tela foi desenvolvido, a adoção do
crédito começa na década de 1930, para atender a produção cafeeira do
País. Entre os anos de 1960 e 1970 foi criado o Sistema Nacional de Crédito
Rural – SNCR, regulamentado pela Lei 4.829, para fortalecer o setor rural
através de incentivos financeiros para investimentos, comercialização e
custeio da produção rural. Esse crédito tem como finalidade estimular os
investimentos rurais dos seus clientes: o produtor rural, as suas associações
e cooperativas. Segundo o Brasil (2008) a modalidade de crédito, objetiva
fortalecer o setor rural, favorecer o oportuno e adequado custeio da produção,
e a comercialização de produtos agropecuários, dentre outros.
Atender a camada da sociedade capaz de participar de negócios
financeiros e, portanto, retornar ao banco o empréstimo obtido, constitui, sem
dúvida, o principal objetivo do crédito financeiro. É ilustrativo, nesse sentido, o
modelo de desenvolvimento rural recomendado na década de 1960, aos
países em desenvolvimento, pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento
- BID e Banco Mundial – BIRD. O padrão de desenvolvimento proposto era o
de aplicar tecnologias agropecuárias que reforçassem a política de crédito
subsidiado, que foi mantida até os anos de 1980. O crédito para a área rural foi
vinculado a pacotes tecnológicos que exigiam na produção o uso de insumos
químicos e industriais. Apesar de não excluir nenhum segmento da
sociedade, o modelo de crédito aplicado, eliminou a maior parte da população
rural, pois as instituições bancárias ofereciam os financiamentos somente a
aquelas pessoas em condições de devolver os empréstimos realizados.
Ainda na década de 1980, o mundo capitalista assistiu ao
redirecionamento do crédito. Nesta época o sistema financeiro foi abatido por
uma crise econômica que reduziu os empréstimos de dinheiro para os países
em desenvolvimento, o que decorreu na reformulação das políticas de
crédito.
Na América Latina a política passou por significativas alterações,
redundando, dentre outros, na liquidação de sistemas financeiros e na
extinção de créditos subsidiados. Surgem, porém, outros mecanismos para
viabilizar o acesso ao crédito às camadas mais populares da sociedade,
inclusive de áreas rurais, a exemplo dos agricultores familiares As formas
encontradas de acesso ao crédito foram lideradas por organizações não
governamentais, com a cooperação internacional. As alternativas de crédito
criadas se adequavam ao modelo da microfinança, desenvolvidas no século
XIX, e ganharam impulso mundial.
Os programas de microcrédito foram iniciados na Alemanha, em
meados dos anos de 1800. Os primeiros registros de operação de crédito
ficaram conhecidos por Associação do Pão. Esta ação, desenvolvida por
iniciativa particular, tinha como objetivo, livrar os produtores de pão da
748
dependência de agiotas. Assim, financiavam-se os custos da matéria-prima,
para que os produtores conseguissem criar capital de giro. Tal iniciativa
transformou-se numa cooperativa de crédito. Processo semelhante a este,
ocorreu no Canadá em 1900, com a criação das Caisses
populaires. Estabelecidas por um grupo de 12 amigos que juntaram seus
capitais e formaram uma agência para emprestar dinheiro à população
descapitalizada desejosa em montar negócios. A iniciativa se expandiu, e as
Caísses somam, atualmente, mais de 1.000 agências no País.
Nos Estados Unidos, o microcrédito surge em 1953, com a
criação dos “Fundos de Ajuda” nos departamentos das fábricas, com
recursos dos próprios operários. Esses Fundos prosperaram e
transformaram-se na “Liga de Crédito”, e hoje funcionam em vários países.
A idéia do microcrédito se estabeleceu como uma iniciativa
popularizada através da experiência de Bangladesh, em 1976, que teve como
idealizador o economista bengalês Muhammed Yunus. Em suas
experiências, Muhammed observou que os produtores financiavam seus
negócios com dinheiro de agiotas, e mesmo assim pagavam corretamente
suas dívidas. Partindo de tal realidade, Yunes estabeleceu uma
intermediação entre bancos, instituições privadas e produtores, criando em
1978 o Grameen Bank, no qual legitima o modelo do microcrédito. Para
Yunus (2002), o microcrédito possibilita a população que vive a margem da
sociedade, uma melhoria econômica e social, com vistas à mudança de
status. Atualmente o microcrédito é reconhecido como sistema de crédito
relacionado aos pobres. Tal iniciativa foi adotada por vários países, como uma
forma de combate à pobreza. No ano de 2005 a Organização das Nações
Unidas, elegeu como o Ano do Microcrédito. E em 2006 Muhammed Yunus,
conhecido como “banqueiro dos pobres”, ganhou o Prêmio Nobel da Paz.
O microcrédito surgiu para assistir as pessoas físicas e jurídicas,
com desejo de montar ou ampliar um pequeno negócio. A alternativa de
microcrédito apresenta características diferenciadas do sistema de
empréstimo tradicional. A principal característica, em relação aos demais
programas de financiamentos, é a política de juro baixo para atender a
população pobre, seu público alvo. Apesar desse objetivo, “o pequeno
crédito”, atinge atualmente somente 47,8% das famílias de baixa renda do
Planeta. Segundo estudo divulgado pelo PNUD, no ano de 2006, o
microcrédito beneficiou 133 milhões de famílias pobres. Desse total, quase
70% estava abaixo da linha de pobreza (PNUD, 2008).
Ao longo dos anos, o microcrédito tem se expandido no mundo.
Na atualidade essa modalidade tem uso freqüente, inclusive em países
considerados desenvolvidos, como França e Alemanha. É, porém, nos
países da América Latina que vem ocorrendo a maior propagação do
microcrédito com Bancos criados na Bolívia (Banco Sol), no Chile (Fosis), no
Peru (Fogapi), na Colômbia (Corposol), no Brasil (BNB) etc.
No Brasil, o sistema de microcrédito se instala em quatro
749
momentos. O primeiro se concretiza com as redes Centro de Apoio aos
Pequenos Empreendimentos CEAPE filiadas a Women's World Bank. A
segunda se dá através do banco Portosol de Porto Alegre que envolve
governos estaduais e municipais. O terceiro se expressa pelo Fininvest e o
quarto pelo CredAmigo do Banco do Nordeste do Brasil - BNB.
A política do microcrédito na agricultura brasileira é adotada
recentemente, pois o crédito rural, desde a sua criação, tinha uma política
aplicável aos produtores rurais cujos critérios de acesso (juros, garantias)
exigidos aos solicitantes, dependiam da condição econômica. Com base
nesses critérios, os agricultores familiares, categoria menos favorecida
dentre os produtores rurais, ficavam alijados do acesso aos recursos
financeiros para aplicação na produção.
O microcrédito, como o próprio nome sugere, oferece pequenos
recursos financeiros às pessoas demandantes de empréstimos. O valor
mínimo é R$100,00 e o máximo R$1.000,00, sendo de R$ 250,00 o valor
médio do crédito. A distribuição dos recursos por comunidade é em torno de
R$ 8.000,00. O prazo de reembolso é de até seis (6) meses, disponibilizados
em conta corrente ou poupança criada para o solicitante do crédito, e os juros
cobrados são de 1,95 ao mês (BNB, 2007).
Na modalidade de crédito do tipo Credamigo, por exemplo, as
mulheres representam 64% do total de pessoas que acessam essa
modalidade de empréstimo (BNB, 2007). Elas buscam recursos do banco
com o objetivo de ampliar ou obter a renda familiar, caso seja a provedora da
família. Com o dinheiro do crédito as mulheres adquirem pequenas
ferramentas de trabalho, a exemplo de máquina de costura, liquidificador,
secador de cabelos, pipoqueira, fogões, geladeiras e material de manicure.
Também aplicam os recursos em produtos para revenda, como roupas,
calçados e cosméticos.
No microcrédito a mulher tem maior participação do que o
homem, pois o número de contratos registrados em nome dela excede os
pedidos feitos pelo homem, segundo informação de técnicos do BNB, em
2008. A presença mais significativa das mulheres encontra explicação, dentre
outras, no baixo valor do empréstimo concedido. Nesse sentido, os homens
sentem-se menos atraídos em participar, frente ao compromisso que
assumirão com o Banco, impossibilitando-os de solicitar outros empréstimos
que venham a ser oferecidos, até saldar o débito contraído.
Além disso, no caso dos produtores rurais do Nordeste do Brasil,
contrair dívida, ainda constitui um tabu, principalmente aqueles que
pertencem a gerações mais velhas que, muitas vezes, preferem trabalhar
numa escala de produção suficiente para sobrevivência, do que “fazer
negócio com Bancos”. Porém, enquanto homens da Região pensam assim,
mulheres produtoras vêem o empréstimo bancário, como uma oportunidade
de se inserir no “mundo masculino dos negócios”. Os depoimentos de
mulheres entrevistadas ilustram essa realidade:
750
Meu marido não gosta de negócio com o Banco. Ele nunca quis tirar o Pronaf.
Quando o presidente da Associação (Associação Rural do município) ofereceu o
empréstimo do Pronaf para comunidade eu disse: eu quero fazer o crédito. E aí
ele, com espanto, falou pra mim: é? Você quer mesmo? Eu disse quero, e aí eu fiz.
Meu marido é muito desanimado. Quando falaram na Associação sobre o
empréstimo logo me interessei, mas ele não. Eu já tinha os documentos (de
identificação pessoal) e aí foi só dá entrada nos papéis. Quando a pessoa começa
a lidar com o Banco fica mais informada. Logo que entrei no Pronaf (Modalidade B)
não sabia negociar, depois fui ficando mais esperta para aprender a comprar e
vender gado, antes que fazia tudo era meu marido.
As mulheres hoje podem tudo, a mulher tem que ser mulher. Com o dinheiro elas
ficam mais fortes. Saber comprar, vender e quanto vão ganhar, elas estão
aprendendo. A gente tem que saber entrar e sair direitinho num empréstimo.
Foi a primeira vez que fui ao Banco tirar meu próprio dinheiro (Pronaf B). Quase
morri quando cheguei lá dentro. Fiquei tão nervosa que soltei o dinheiro todo no
chão, e disse: Ave Maria! Nunca peguei em tanto dinheiro! (R$1.500,00). Nunca
pensei que podia tirar um empréstimo num Banco. Apliquei na compra de animais
e já paguei tudo ao Banco.
Quando a discussão é sobre o crédito rural, torna-se
imprescindível destacar que os agricultores familiares ficaram excluídos da
política até meados da década de 1990. Tal realidade ocorreu, embora esse
modo de produção seja predominante na agricultura brasileira e responsável
por mais de 40% da produção rural do País. A produção familiar reúne o maior
número de produtores e ocupa significante contingente de mulheres.
A inclusão desses produtores na política de crédito acontece por
pressão dos movimentos sociais que, desde o início dos anos de 1990,
intensifica mobilizações por uma política de crédito agrícola diferenciada. Até
então, as normas do financiamento bancário eram praticamente as mesmas
para todos os agricultores, independentemente da sua condição no setor
agrícola. Diante dessa pressão o governo criou o Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar – Pronaf. Esse foi, portanto, o primeiro
programa de crédito voltado diretamente para a agricultura familiar.
O PRONAF E AS MULHERES AGRICULTORAS FAMILIARES
O crédito bancário, desde a sua criação, preteriu não somente a
classe econômica dos pobres, pela ausência de garantia do retorno do
capital, mas as mulheres por questão de gênero. Porém, a desatenção para
com as mulheres, ao contrário dos pobres, nunca foi posta de maneira
explícita. Elas foram, de forma sutil, colocadas à margem do processo, bem
como de outras políticas sociais. Desse modo, a discriminação contra as
mulheres se estabelece, de forma imperceptível pela sociedade, inclusive,
muitas vezes, por elas próprias. Isso decorre da realidade social que envolve
o gênero, recheada por relações sociais desiguais, entre homens e mulheres,
com lastro no patriarcado. Por isso, a realidade tem apontado que em várias
situações de decisões, de participação, não estando explicitada a
751
inclusão da mulher, o homem é certamente o destinatário “natural” da ação
proposta, e as mulheres ficam a margem. A adoção de tal procedimento, em
que fica embutida a participação da mulher, descaracteriza a existência da
exclusão feminina, fortalece a postura patriarcal, e ao mesmo tempo em que
mantém a mulher afastada de direitos garantidos a todos os cidadãos,
independe do seu sexo.
No crédito oferecido pelo Pronaf a situação das mulheres
agricultoras no acesso ao crédito oferecido pelo Programa não se apresenta
de forma diferente, pelo menos inicialmente.
O Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar –
Pronaf, criado apenas como uma linha de crédito para custeio em 1995, pelo
então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso. Estabelecido
pelo Ministério de Agricultura e Abastecimento através de uma Resolução do
Banco Central, o Pronaf foi oficializado em 1996 pelo Decreto n° 1.946 28 de
junho, onde permaneceu até o ano de 1999, quando passou para a esfera do
Ministério de Desenvolvimento Agrário – MDA, e aí se mantém até o presente.
Esse Programa contempla todas as regiões brasileiras e, quando de sua
criação desenvolvia além da linha de crédito, as seguintes ações: negociação
de políticas públicas com órgãos setoriais; financiamento de infra-estrutura e
serviços nos municípios, capacitação e profissionalização de agricultores
familiares. Atualmente a principal referência do Pronaf é a linha de crédito.
Nos seus 13 anos de existência, o Pronaf passou por grandes mudanças e
ampliou seus instrumentos de atualização. Como outros programas sociais, o
Pronaf vem apresentando no decorrer de sua existência, modificações para
alcançar melhor desempenho ou para melhor se adaptar a demanda dos
agricultores, dentre elas, no ano de 2000 A partir do ano de 2000 o crédito do
Pronaf foi distribuído nas modalidades A, B, C e D e consolidou a modalidade
E. Para obtenção de créditos, os beneficiários do Pronaf eram classificados
em 6 grupos: A, B, C, A/C, D
As mulheres não foram explicitamente excluídas, porém, o
Programa quando implantado, se referia ao público beneficiado como sendo
os agricultores familiares, o que a escrita convencionou chamar no caso,
homens e mulheres que labutam na agricultura familiar. Assim procedendo,
não estava explicitado o direito de participação das mulheres, fato que
contribuiu para a baixa procura delas pelo crédito oferecido pelo Pronaf,
sendo os homens agricultores, portanto os maiores demandantes.
Evidentemente que a postura do Pronaf em relação às mulheres agricultoras,
quando fica evidenciado a direção para os homens Acresce-se a isso, o fato
do ambiente da produção agrícola familiar, ser espaço de trabalho
tradicionalmente masculino, mesmo com a presença efetiva das mulheres no
desempenho das diversas atividades que compõem esse modo social de
produção. Porém, no ano de 2001, por pressão dos movimentos sociais de
mulheres as mulheres agricultoras familiares foram incluídas, de forma
explícita no Programa, através da política de cotas com no mínimo 30% dos
752
recursos do crédito destinados às mulheres agricultoras.
Essa medida de inclusão, no entanto, não alterou a realidade das
agricultoras, pois na avaliação dos movimentos sociais de mulheres, os
Bancos não garantiram, naquele momento, o acesso delas ao crédito.
Entendendo de forma diferente, agentes financeiros se colocavam afirmando
que, as mulheres que se enquadravam nas exigências do Pronaf não
demandaram o direito de participação na cota (MDA, 2004). Na avaliação de
Melo (2003), naquele momento, havia um desconhecimento quase
generalizado da cota de crédito no Pronaf para as mulheres, tanto por parte
das organizações de trabalhadores rurais, movimentos de mulheres rurais,
instituições governamentais e não governamentais, os agentes financeiros
etc.
A ineficácia da política de cotas levou a uma pressão sobre o
governo de criar novas medidas para incluir as mulheres no Pronaf. Assim, foi
criada no do Plano de Safra 2004-2005 a linha específica de crédito de
investimento exclusiva para as mulheres, o chamado Pronaf-
Mulher. Ela surge como uma linha de crédito a mais para a família,
independente, para a mulher, embora atrelada a uma das modalidades de
crédito (C/D) realizado pela família. O valor do empréstimo tem como piso o
montante de R$ 7.000,00 e limite de R$ 36.000,00 com juros escalonados,
variando de 1% a 5% de acordo com o valor do empréstimo. Com esse crédito
as mulheres podem, segundo o Programa, aplicar em atividades agrícolas e
não agrícolas.
Embora o Pronaf tenha criado a modalidade de crédito específico
para a mulher com o valor do empréstimo acima mencionado, na região
Nordeste, a principal demanda das mulheres é pela modalidade B que se
caracteriza como microcrédito, pois o valor total do empréstimo atualmente é
de até R$ 4.000,00, com valor máximo para cada solicitação de até R$
1.500,00, no caso de repetição. Os juros cobrados são de 0,5% a.a. com
bônus de inadimplência de 25%.
A procura das mulheres pelo Pronaf B, em detrimento do Pronaf
Mulher, encontra explicação, dentre outras, a carência de informação das
mulheres e agentes responsáveis pela operacionalização do Programa,
sobre essa linha de crédito, e até o desconhecimento da sua existência
(FISCHER; MELO, 2009).
Não somente as mulheres agricultora familiares do Nordeste
lideram as solicitações do microcrédito, a exemplo do oferecido pelo Pronaf,
mas essa realidade se estende para além da Região, pois segundo dados do
PNUD (2008) 85% da população mundial assistida pelo microcrédito eram
mulheres, no ano de 2006.
Nas solicitações de pequenos empréstimos, as mulheres lideram
a lista dos financiamentos. Esta realidade pode ser explicada porque a
maioria da população mundial é formada por pessoas em condições
precárias de pobreza, e ela pertence ao sexo feminino. Acrescido a isso, a
753
situação de subalternidade social imposta à mulher frente ao homem, desde o
início da História da Humanidade reflete, ainda nos dias atuais, de forma
negativa na vida das mulheres. Neste sentido, quando o assunto envolve
dinheiro, o homem lidera as negociações, é o que ocorre, por exemplo, com
empréstimos bancários. O público demandante das transações é, em grande
parte os homens, porém quando se trata de microcrédito surge a
oportunidade de participação das mulheres.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A mulher agricultora, apesar da efetiva participação na produção
familiar, não é pensada como agente do processo produtivo, quando da
criação de programas que compõem a política agrícola. Esses programas,
inspirados na histórica divisão sexual do trabalho que determina espaços
diferentes para homens e mulheres, são desenhados para atender ao homem
agricultor, o responsável pela produção familiar. Tal realidade torna-se mais
evidente quando a política é dirigida ao crédito, pois falar da participação da
mulher em programas que impliquem em investimentos, significa falar de
dinheiro, instrumento simbólico vinculado ao espaço público, sacramentado
pela ideologia patriarcal como lugar dos homens.
A criação de uma linha de crédito agrícola específica para as
mulheres agricultoras familiares, criada pelo Governo Federal dentro do
Pronaf, significa o reconhecimento de que as atividades agrícolas realizadas
pelas mulheres são de fundamental importância para a estabilidade
econômica e o bem estar da unidade familiar de produção. Essa iniciativa
inovadora do Governo, ao mesmo tempo em que significa reconhecimento do
trabalho da mulher na agricultura familiar, possibilita a ela a oportunidade de
exercer o controle sobre sua própria vida, historicamente dirigida pelo
homem.
A realidade acerca da informação do Programa é vivida não
somente pelos agentes, mas pelas próprias agricultoras participantes do
crédito. Trata-se, portanto, de uma ineficácia no repasse de informação para
a sociedade envolvida sobre o Pronaf, bem da questão complexa que envolve
a abordagem de gênero para a efetivação da linha específica do Pronaf-
Mulher.
O acesso ao crédito pode ainda significar para mulher agricultora,
o reconhecimento social da sua capacidade de gerar renda e de contribuir
para o bem-estar da família. A confiança depositada pelos agentes
financeiros quanto à aplicação e a devolução do empréstimo, repercute na
sua auto – estima. Contribuir também para o empoderamento da mulher nas
diferentes perspectivas social, econômica e política, por exemplo também
pode consubstanciar elementos positivos à mulher, proporcionados pelo
crédito.
A inclusão das mulheres produtos familiares como agentes do
processo no crédito rural, mesmo acessando pequenos recursos como o
proporcionado pelo microcrédito, abre possibilidades para o seu
empoderamento na sociedade.
754
REFERÊNCIAS
BANCO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO SOCIAL. Pesquisa em Site
Disponível em: http://www.bndes.gov.br. Acesso em: 19/03/2008.
FISCHER, Izaura Rufino; MELO, Lígia Albuquerque de. A participação da
mulher agricultora no crédito do Pronaf “b” e Pronaf “mulher”. Relatório
de Pesquisa. Fundação Joaquim Nabuco Diretoria de pesquisas sociais.
Coordenação Geral de Estudos Ambientais e da Amazônia. Recife, abril de
2009. Digitado.
MELO, Lígia Albuquerque de. A relação de gênero nas transformações
mundo rural. Cadernos de Estudos Sociais, 2003 vol. 19, n.1, jan/jun., 2003.
(b)
MELO, Lígia Albuquerque de. Relações de gênero na agricultura familiar:
o caso do Pronaf em Afogados da Ingazeira- Pe. Recife, 2003. Tese de
Doutorado em Sociologia, UFPE.

755
NOVA DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO: uma leitura de gênero e novas
tecnologias

Maria Helena Santana Cruz


José Walter Santos Filho
Susana Rezende Lima
Estamos vivenciando na atualidade um fenômeno social visível
de interesse entre capital e trabalho, em conseqüência das novas
constituições pelas quais as sociedades vêem passando e que são
provocadas pelo processo de globalização, pelo ingresso de novas
tecnologias, pelo processo de reforma do sistema produtivo, em que irá
compreender todo um sistema social em suas mais diversas simbologias.
Tais mudanças são representadas pelas novas configurações do sistema
capitalista, em que a transposição do paradigma do modelo de produção
fordista em detrimento do novo modelo de acumulação flexível traz à tona
novas caracterizações, como: aumento das inovações tecnológicas trazidas
pela informática, pela microeletrônica, e novas descobertas que
proporcionam o aumento da produtividade e conseqüentemente da
competitividade que irão desembocar numa flexibilidade dos processos de
produção.
Surgem para a sociedade novas requisições em termos de
qualificação, competência e formação profissional, em que a nova dinâmica
dos processos de trabalho compreende novas organizações sexuais no
interior das empresas. Nessa linha de reflexão, é importante perceber a
posição das mulheres nos espaços de trabalho, e como ela aparece nos
processos hierárquicos, assim visualiza-se as divisões de gênero. Mudanças
nos papéis femininos têm sido proporcionadas pelas TIC, com destaque no
ramo da informática denominado Software, responsável pelo código que
comanda os computadores. A partir de tais evidências tomar-se-á iniciativas
para uma discussão crítica acerca do processo de transformação das TICs,
além de seu acesso para o sexo feminino. A partir de tais discussões, o estudo
desenvolveu-se objetivando analisar as mudanças ocorridas no trabalho
coma introdução das inovações tecnológicas, destacando como as
“tecnologias” e “normas” estruturam as relações sociais de gênero,
organizam o trabalho de analista de sistemas e programadores da Secretaria
de Estado da Fazenda de Sergipe (SEFAZ/SE). Procurou-se inicialmente
caracterizar o perfil das(os) trabalhadoras(es); investigar como são
percebidas as diferenças de gênero e conhecer a valorização de novas
competências para o trabalho com novas tecnologias no setor de informática.
Os estudos acerca do poder, suas relações e efeitos no âmbito
das organizações, abrangem temáticas instigantes e polêmicas, que
envolvem, entre outros elementos, a subjetividade, o conflito, a dominação,
adesões e resistências no processo da prática social. As dimensões
organizacionais, perpassadas pelas relações de poder, abarcam também as
757
relações de gênero vivenciadas na interação social, cuja análise deve ir além
da simples polarização entre o masculino e o feminino. A posição social das
mulheres na hierarquia social deve estar presente nos estudos sobre o
trabalho e nos estudos sobre as mulheres, por ser constitutiva da noção de
gênero. (KERGOAT, 1995). Sendo assim, “gênero” diz respeito às relações
de poder que constituem um campo onde este é articulado (SCOTT, 1991). A
análise do processo de empoderamento das mulheres no setor de novas
tecnologias poderá contribuir para a melhor compreensão das relações de
poder e gênero no ambiente organizacional.
Entende-se que o uso da internet trouxe impactos para as
culturas, como também para a sociedade de modo geral, principalmente para
as novas gerações que estão em permanente contato com os instrumentos
das novas tecnologias, como computador, internet, desde muito cedo. Assim
se perceberá que a influência das novas tecnologias se faz presente na
atualidade, em que as pessoas se desenvolvem ao mesmo tempo em que se
apropriam da tecnologia, em desenvolvimento mútuo. Segundo Castells, “as
pessoas, as instituições, as companhias e a sociedade em geral,
transformam a tecnologia, qualquer tecnologia, apropriando-a,
modificando-a, experimentando-a” (CASTELLS, 2003, p.10). Assim, não há
possibilidade de perceber o indivíduo e a tecnologia em separado de sua
conjuntura histórica, nem de sua cultura. Este estudo justifica-se pela
necessidade de entender como a sociedade se organiza em torno das
tecnologias, quais os seus significados, os impactos que provocam sob a
cultura e o homem, enquanto ser social atuante.
Revendo conceitos - Pesquisar as relações de gênero a partir
das transformações no trabalho e dos requisitos de qualificação necessários
na área de informática da SEFAZ/SE significa interrogar a respeito da
inserção da mulher em tal campo, estimular a reflexão das(os) participantes
da pesquisa sobre as práticas cotidianas no contexto de trabalho, com
relação à apropriação do conhecimento tecnológico, a democratização das
relações de gênero, a utilização dos artefatos tecnológicos, visto que tais
aspectos convergem para a formação da cidadania. O conceito de “gênero”
é compreendido como construção social do sexo e como uma forma de
rejeitar uma abordagem biológica e determinista que o uso da categoria
“sexo” carregava. “Gênero” demonstra as diferenças que existem entre
homens e mulheres como produto da cultura, sendo a primeira instância das
significações dessas relações que são relações de poder. A categoria gênero
constitui um instrumento de análise adequado para o estudo das
desigualdades das mulheres por se entender que o conceito de gênero
desconstrói a arqueologia de significados a partir de vários espaços em que
ele se constrói: a família, o mercado de trabalho, as instituições e a
subjetividade (CRUZ, 2005, p.45).
Para Bourdieu (1999), as desigualdades de gênero se
reproduzem conforme um sistema existente da sociedade que ele chama de
758
habitus que é adquirido desde a infância através de uma coletividade de
agentes e instituições. No entender de Bevacqua (2008), Tecnologia e
Gênero constituem uma face dos estudos relacionados à Ciência, Tecnologia
e Sociedade, que buscam examinar distintas perspectivas nas
relações entre mulheres, homens e tecnologia. Identificar gênero de forma
equivocada, com características biológicas de cada sexo, pode direcionar a
tecnologia a ser vista como algo masculino. A inserção das mulheres em
certas profissões, antes consideradas “masculinas”, consolida o fato de que
essa construção é social e não natural. Hirata (2001) questiona os novos
paradigmas produtivos, os novos paradigmas de qualificação na análise da
divisão internacional do trabalho e da divisão sexual do trabalho e adverte que
o trabalhador homem tem sido o referencial explícito ou implícito do
trabalhador universal. As qualificações e competências cognitivas sempre
estão relacionadas com as características e figuras masculinas: leitura e
interpretação de dados, lógica funcional, capacidade de abstração,
criatividade, responsabilidade, iniciativa, autonomia e competências
comportamentais (CRUZ, 2005, 1998; 1992). A “qualificação tácita”, informal,
é amplamente solicitada para o trabalho com as novas tecnologias.
Prognostica-se que o modelo produtivo da especialização flexível favoreceria
ao acesso e à valorização de habilidades tácitas (WOOD, 1984)
historicamente consideradas femininas: lealdade, comprometimento,
capacidade de iniciativa, flexibilidade, destreza manual, atenção a detalhes,
paciência para a realização de trabalhos repetitivos, habilidade de
comunicação e de solução de conflitos, sensibilidade e intuição. Sob a égide
do novo paradigma produtivo, sobretudo, a qualificação é considerada
altamente formadora de subjetividades e identidades do(a) trabalhador(a).
No “novo modelo produtivo”, o trabalho cooperativo em equipe, a
falta de demarcação de tarefas a partir dos postos de trabalho e tarefas
prescritas a indivíduos, implicam um funcionamento fundado na polivalência
na rotação de tarefas de fabricação, de manutenção, de controle da qualidade
e de gestão da produção. O termo qualificação tem sido empregado para
referir-se ao domínio de conhecimentos técnicos supostamente detidos pelo
trabalhador, seja em virtude de sua experiência, seja em decorrência de
cursos de formação (ou em função de ambos). Esse termo também se refere
ao conjunto de tarefas atribuídas a um posto de trabalho (qualificações do
emprego). O termo competência, para além dos conhecimentos técnicos,
refere-se ao conjunto de saberes que é portado por um trabalhador, mesmo
que não técnicos, mas, principalmente, refere-se à capacidade e
disponibilidade que tem esse trabalhador de mobilizar os diferentes saberes
para enfrentar e resolver os problemas e imprevistos com que se depara no
trabalho. É, portanto, um conceito que consulta muito de perto os interesses
da empresa integrada e flexível (CASTRO, 1992).
A omissão da participação das mulheres na história da
informática perpetua o entendimento da mulher como desinteressada ou
759
incapaz nessa área. No decorrer do processo da busca do conhecimento,
perguntas norteadoras começaram a emergir, recolocando a
problematização inicial. Dentre as demais perguntas, relaciono as seguintes:
estariam as mulheres na SEFAZ exercendo atividades nos contextos de
produção de softwares, principalmente os relativos à informação e à
comunicação? Quais as razões que levariam as mulheres à escolha da área
de informática como setor de formação e de trabalho? As qualificações
sociais tácitas influenciariam o acesso/seleção mulheres para os postos na
área de informática? Como as novas competências identificadas e
reconhecidas pela alta direção e por trabalhadores homens e mulheres? Os
trabalhadores da SEFAZ/SE percebem diferenças de gênero no setor de
informática?
Para Lévy, “as tecnologias são produtos de uma sociedade e de
uma cultura” (LÉVY, 2001, p.22). As inovações tecnológicas têm impactos
diferenciados em relação às categorias profissionais que, de acordo com o
grau de qualificação do profissional, este assume destaque na empresa, fato
que confirma as disparidades entre mão-de-obra qualificada e não
qualificada, em que os homens representam a primeira alternativa e as
mulheres, a segunda. Considerou-se que a exigência de flexibilidade
comportamental nos novos conceitos de produção está
freqüentemente relacionada com a maior flexibilidade de mulheres nos
processos interativos. Segundo Deluiz: “As qualificações profissionais são
respostas a necessidades econômicas, políticas, sociais e culturais de
sociedades historicamente datadas” (DELUIZ, 1995, p. 161).
Breve resgate histórico da informática – Nos últimos 50 anos,
a história da informática tem se desenvolvido de forma intensamente alinhada
com o progresso das ciências. A história das ciências relaciona-se
diretamente com a história da informática por ser esta claramente formada
pelas idéias e criações de uma grande quantidade de matemáticos,
engenheiros e cientistas que, ao sentirem a frustração de perderem tempo
com longos e fastidiosos cálculos, reconhecidamente repetitivos, deram
início à pesquisa sobre o computador, mesmo que essa descoberta não fosse
o objetivo inicial. (BRETON apud SCHWARTZ, 2006). As mulheres não foram
imaginadas como integrantes dessa história de criação envolvendo a
informática, principalmente em relação à tecnologia ser uma área das
ciências tradicionalmente dominada por homens.
Não se deve esquecer a contribuição das mulheres para a
ciência. Muitas mulheres prosperaram no campo da matemática, chegando a
lecionar em universidades no século XVIII. A Matemática é considerada uma
atividade de apoio para os cientistas, um espaço ocupado pelas mulheres
pioneiras, formadas em matemática e ciências, muitas com doutorado,
começando a trabalhar com os primeiros computadores. Destacam-se: Ada
Byron (Lady Lovelace) (1815-1852), considerada a primeira programadora
da história. Filha do famoso Lord Byron, foi casada com o matemático Charles
760
Babbage, criador do Engenho Diferencial, uma máquina de calcular com o
objetivo de computar tabelas aritméticas. Sua participação na tradução de
artigos do marido lhe rendeu importância. Impressionado com as anotações
de Ada, Babbage a convidou para participar no desenvolvimento que
culminou com o desenho do Engenho Analítico, um precursor do computador.
Segundo Garcia & Sedeño (2002; 2005), na ciência moderna, o
prestígio de determinadas atividades científicas é inversamente proporcional
à atuação das mulheres nelas, ou seja, a mulher exerce ações na ciência até
que essas ações se institucionalizam e se profissionalizam, momento em que
os homens as incorporam em seu agir. A consolidação de relações sociais
democráticas no trabalho traz em seu bojo a construção de uma nova
sociedade de classes, com o aprofundamento dos acessos diferenciados à
cidadania, aos serviços básicos e à qualidade de vida. A partir do conceito de
difração proposto por Haraway (2000) para as mulheres (e homens) que
produzem saberes sócio-historicamente situados, a partir de perspectivas
específicas de suas localidades, a difração que elas passam é a provocada
exatamente por seus saberes e conhecimentos adquiridos por suas
trajetórias de vida e vivências diversificadas, fazendo, portanto, a diferença
no mundo atual.
Acadêmicos feministas de gênero nas ciências e na tecnologia
argumentam que a maioria dos homens se relaciona de maneira diferente
com as tecnologias devido a valores e práticas culturais. Estes assuntos
envolvem a cultura, a questão da diversidade cultural, o direito a comunicar e
os direitos de propriedades intelectual. O individuo, ao nascer, já está inserido
em uma sociedade, assimilando, sua cultura. Entende-se aqui cultura no
sentido antropológico, isto é, como um conjunto de regras que organizam a
sociedade e dirigem os comportamentos individuais. O termo cultura,
usualmente, é utilizado como sinônimo de educação e não como o conjunto
de características de uma dada sociedade; é também empregado para
classificar grupos, pessoas ou sociedades. A cultura está sempre em
mutação, transformando-se e adaptando-se às mudanças tanto históricas
como tecnológicas, produzindo sentidos e significados.
TIC e as Questões de Gênero – As mulheres não foram
imaginadas como integrantes dessa história de criação envolvendo a
informática, principalmente por ser a tecnologia uma área das ciências
tradicionalmente dominada por homens. Hirata (2002, p. 198)
considera que o controle masculino da tecnologia desqualifica as mulheres
da mesma maneira que os técnicos e os cientistas do capital desqualificam os
operários. A omissão da participação das mulheres na história da informática
perpetua o entendimento da mulher como desinteressada ou incapaz nessa
área (LIGHT apud SCHWARTZ, 1999). A participação feminina nas TIC,
segundo Sabanes (2008), é fator decisivo para resistência da dominação de
gênero. As mulheres ainda têm pouca representação nos processos
decisórios com relação às TIC, e estas, por sua vez, se mostram neutras na
761
questão da diferença de gênero, ou seja, as políticas nessas áreas pouco dão
importância para as questões de gênero. É preciso que as mulheres se
envolvam ativamente nos projetos de novas tecnologias de modo a evitar a
exclusão.
Os procedimentos adotados na pesquisa - A pesquisa
caracteriza-se como um estudo qualitativo e a opção metodológica pelo
“estudo de caso organizacional” foi considerada relevante para a
abordagem de gênero e trabalho na SEFAZ/SE. Procurou-se integrar os
aspectos macro/micro, reduzir a distância entre indicador e indicado, entre
teoria e dados, entre contexto e ação, tendo em vista desvendar a trama das
relações sociais e apontar elementos capazes de informar análises que
contribuam para a melhor compreensão das transformações nas relações
sociais de gênero.
O campo empírico da pesquisa é a Secretaria de Estado da
Fazenda de Sergipe - SEFAZ/SE, particularmente a área de informática
responsável pela administração tecnológica, tanto para a aquisição de
equipamentos (computadores, impressoras, etc.) quanto para o
desenvolvimento e manutenção de Softwares (sistemas de informação).
Atualmente a organização integra em seus quadros 84 profissionais (58
homens e 26 mulheres), em quinze ocupações e em seis cargos de chefia.
Em mudança recente, 2002 a 2007, a direção do setor foi ocupada por uma
Mulher. No nível intermediário existem os cargos de Analistas de
Sistemas ocupados na proporção de 60% de Mulheres e 40% de Homens.
Por fim, na base do organograma estão os cargos de Programador, na
proporção de 82% de Homens e 17% de Mulheres. Para a produção do
conhecimento, foram consultados documentos, sites, priorizando-se 12
entrevistas semi-estruturadas realizadas com 06 mulheres analistas de
sistemas e 04 gerentes do setor (uma mulher e três homens), da área
tecnológica da SEFAZ/SE.
BREVE HISTÓRICO DA TRIBUTAÇÃO NO BRASIL E EM SERGIPE
O histórico da tributação no Brasil é apresentado dividido em três
modelos políticos: Colônia, Império e República. Durante nossa fase colonial,
os tributos eram ditados por Portugal, nossa metrópole, e assim os brasileiros
eram indiscriminadamente explorados pelos funcionários da Coroa. A
legislação tributária virou uma verdadeira desordem, pois as províncias
cobravam impostos sobre produtos já tributados pela União e ainda os
demais impostos eram numerosos e abusivos.
Com o tempo e a utilização de emendas constitucionais tentou-se
regular a questão, delimitando impostos da União e das Províncias, mas as
mesmas cobravam impostos inconstitucionais. No decorrer dos anos, muitas
foram as alterações nos impostos e na maneira como eles eram cobrados.
Uma significativa mudança veio com a Constituição de 1946, onde no inciso
XV, alínea “b” do art. 5o, coloca-se o Congresso Nacional como único órgão
competente para legislar sobre o sistema financeiro. Podemos colocar como
762
divisor de águas na política tributária nacional a Lei n° 5.172/66, possibilitada
pela emenda Constitucional n° 18 de 1965, também conhecida como Código
Tributário Nacional. A partir da Constituição da República Federativa do Brasil
de 1967 e Emenda n.º 1 de 1969 foi instituído o Sistema Tributário Nacional, e
com a Constituição de 1988, institui-se o princípio da estrita legalidade, bem
como o princípio constitucional da vedação ao confisco.
Em Sergipe, a história tributária possui um contexto muito amplo,
pois desde o período colonial já existiam processos de receitas como
resultados de trabalhos de contribuições no Estado. A SEFAZ foi criada em
1936, passando por várias mudanças administrativas até o ano de 2008,
introduzidos por 28 gestores (todos do sexo masculino) que assumiram a
Secretaria da Fazenda, indicando a exclusão feminina no comando da
instituição. A organização possui um histórico tecnológico subdividido em
quatro períodos marcados por grandes mudanças nos processos de trabalho
e das relações internas e externas da área tecnológica da instituição. Em
1986, ocorreu o início da digitação das informações dos contribuintes em
Mainframe, que são computadores de grande porte e com alta capacidade de
armazenamento e processamento. Em 1992, foi implantado o controle de
informações de contribuintes, recolhidas nos postos de fronteira em
equipamentos de plataforma baixa (microcomputadores). Em 2000,
implantou-se na instituição o PROMATE, processo de migração completa de
todos os dados em Plataforma Mainframe para equipamentos de plataforma
baixa (microcomputadores), acontecimento acompanhado pela instalou de
um parque computacional próprio, no interior das instalações da SEFAZ.
PERFIL DAS(OS) TRABALHADORAS(ES) DA ÁREA TECNOLÓGICA DA
SEFAZ-SE
Conforme dados da SEFAZ/SE, em 2008, foram observadas
algumas alterações no perfil dos profissionais da instituição e no padrão de
contratação referentes à área tecnológica. Entre os 84 trabalhadores, 58 são
homens e 26 mulheres, lotados em 15 cargos em várias seções,
evidenciando-se assimetria do poder na hierarquia da instituição. Entre os
analistas de sistemas, encontram-se 6 mulheres e 4 homens e,
inversamente, entre os programadores encontra-se apenas 03 mulheres e 22
homens. As analistas de sistemas são mais jovens do que os gerentes,
inserem-se nas faixas etárias entre 25-30 anos e 31-40 anos; os gerentes
inserem-se nas faixas etárias entre 30 anos e 41-50 anos de idade. Quanto ao
estado civil, prevalecem trabalhadores casados sobre os solteiros. O tempo
de serviço das analistas da SEFAZ/SE varia de 10 a 20 anos, 11 a 20 e até 30
anos entre os gerentes. Para os analistas e gerentes, as escolha
profissionais surgiram por diversos motivos como: afinidade com a área de
exatas, familiaridade e habilidades obtidas na formação acadêmica em
disciplinas com maior “peso” para inserção nos cursos de informática e
chances de inserção no mercado de trabalho. Conforme se observa no
exemplo:
763
Minha área de formação é jurídica, eu sou advogado entrei como auditor. Fiz pós-
graduação MBI em direito tributário vinculado a área, [...], aí, mais ou menos em 2000, a
Secretaria resolveu migrar auditores pra área da tecnologia [...], ai vim pra área de
tecnologia como um desafio, fui me especializar pra entender e obter um conhecimento
mínimo da área, do linguajar da área de informática (Gerente 3).
A minha trajetória foi toda aqui praticamente na área desde a graduação na universidade,
estagiei no TRT, que é o Tribunal Regional do Trabalho durante dois anos... quando
terminei o estágio em janeiro, me formei em fevereiro e comecei a trabalhar no Tribunal de
Contas como programadora em março. Aí fiquei só o mês de abril e um pedacinho de maio,
e no dia 22 de maio comecei a trabalhar aqui. (Entrevistada R)
Observa-se que o processo de empoderamento das mulheres
não ocorre de forma homogênea mediante a inserção nas organizações do
setor de informática na administração publica estadual. “Empoderamento é o
mecanismo pelo qual as pessoas, as organizações, as comunidades tomam
controle de seus próprios assuntos, de sua própria vida, de seu destino,
tomando consciência da sua habilidade e competência para produzir e criar e
gerir”. (COSTA, 1998, p.43). O acesso das mulheres no trabalho com
tecnologia sempre foi dificultado, seja pelo preconceito em que a área impõe,
seja por elas próprias, que às vezes se colocam como inferiores aos homens
para o desenvolvimento de determinada função. Existem também situações
muito raras em algumas instituições de ensino em que as mulheres
predominam nos cursos de informática, o que proporciona a elas uma visão
distorcida da realidade mundial da mulher com relação ao manejo de
tecnologias. Os depoimentos são elucidativos:
Nenhuma nunca sentiu isso. Por incrível que pareça, na minha turma se formaram 7
mulheres e nenhum homem. Todas, acompanho a todas, e todas estão na área, as
pessoas falam que é só homem, a minha realidade da UNIT era só mulher. (Entrevistada
C)
A área de exatas é predominantemente masculina, [...]. Talvez seja também oportunidade;
antigamente, as mulheres não chegavam a ter inserção no mercado como tem hoje, né?
As oportunidades são maiores em todas as áreas. [...], então eu acho que existem tabus e
barreiras de várias formas, tanto da mulher que entra no mercado de homem, como de
homem que entra no mercado de mulher. (Entrevistada A).
As mulheres não foram imaginadas como integrantes da história
de criação que envolve a informática, em que as tecnologias sempre foram
vistas como a área das ciências tradicionalmente dominada por homens.
Segundo Sabanes (2008), a participação das mulheres nas TIC, é fator
decisivo para resistência da dominação de gênero. As representações ainda
revelam resquícios de uma sociedade patriarcal. O “Patriarcado” refere-se a
uma forma de poder político, mas, apesar de os teóricos políticos terem
gastado muito tempo com discutindo a respeito da legitimidade e dos
fundamentos de formas de poder político, o modelo patriarcal foi quase
totalmente ignorado no século XX. Essa estrutura tem ressurgido com o
desenvolvimento do capitalismo. [...] “o patriarcado é definido como um
764
sistema sexual de poder no qual os homens possuem poder e privilégio
econômico e controle sobre o corpo das mulheres através de diversas
manifestações”. (CRUZ, 2005, p.39). A discussão em torno do sistema do
patriarcado questiona fortemente a dominação masculina, as diferenças que
representam o papel do homem em relação ao da mulher, principalmente ao
se falar em trabalho.
Oportunidades de qualificação/capacitação profissional
O impacto trazido pelo uso das tecnologias de base
microeletrônica tem ocasionado, nos últimos anos, transformações
significativas no processo de produção de bens e serviços, na organização do
trabalho e nos processos de qualificações, atingindo a formação profissional
que se vê impregnada a ajustar-se aos novos papéis que o trabalho
desempenha na sociedade contemporânea, que se “tecnifica e se
automatiza”. As oportunidades de qualificação são imprescindíveis no
processo de formação do trabalhador, que se mantém desprovido destas pela
empresa. Conforme depoimentos:
Tem as viagens, mas não são de curso, não é treinamento, não é uma
coisa de qualificação, mas sim em termos pessoais”. Aqui, aqui é
complicado, é bem limitado né?
A qualificação oferecida aos trabalhadores do setor da
informática, ainda deixa a desejar. A capacitação desses trabalhadores é
buscada por cada um de forma autodidata, fora do ambiente de trabalho. A
empresa tende a cobrar do trabalhador o que não oferece a este, e desse
modo o profissional busca desenvolver certas competências.
Neste ponto, autores têm enfatizado diferentes aspectos do
capital social dos trabalhadores e, em conseqüência, têm elaborado distintas
definições do mesmo. O capital social é entendido como um ativo intangível
que permite às pessoas e aos grupos obter benefícios como conseqüência de
sua participação em redes sociais nas quais construíram laços de confiança,
compartilham princípios éticos, se estabelecem relações de reciprocidade, e
se dão ações de cooperação. Os gerentes justificam não existir dificuldade
para as mulheres no quesito ascensão a cargos de comando:
Dos locais que eu passei eu não vi isso não. Você vê aqui, por exemplo, tem mais analista
mulher na área de direção, [...] então eu particularmente não vejo isso não, eu acho que é
pela competência, pelo seu destaque, como realmente a mulher é mais detalhista, ela
consegue ser um pouco mais detalhista, um pouco mais cuidadosa, eu acho até que ela
tem uma maior facilidade de assumir um posto de direção, ela foca mais na questão da
solução, de resolver o problema do servidor, ser mais ativa e por a mão na massa
(Gerente1) .

Aqui é o seguinte, aqui na SEFAZ somos todos terceirizados, por meio de um plano feito
com consultoria para as empresas que virou lei que especifica os deveres necessários
para cada função. A gente tem autonomia até certo ponto... ex. programador, pra ser
765
programador ele tem que ter tal, uma escolaridade específica, 1, programador 2 ,3, 4.
Depois analista 1, 2 ,3,4 e tal; tem pessoas que estão no topo em virtude de indicação por
estar dentro daquele quesito. Então, se você quer crescer, deve buscar se atualizar, fazer
outro curso, uma pós-graduação, tem que fazer por onde. (Gerente 2).

Na área tecnológica da SEFAZ/SE conhecida como GERTEC,


são identificadas dificuldade com relação às promoções, pelo fato dos
trabalhadores serem funcionários do Sergipe Parque Tecnológico, que é uma
empresa terceirizada que presta serviços à Secretaria da Fazenda. A
maioria das empresas hoje desenvolve sistemas de consultoria, em que
impõem uma série de requisitos no perfil do trabalhador a ser empregado. A
valorização de novas competências e habilidades para o trabalho no
setor da informática é destacada principalmente nos processos de
seleção do analista e do programador, orientados por requisitarem dos

766
767
encaixam muito no suporte, mas a gente tem uma gerente de suporte, então eu não acho
que tem que ter uma diferenciação não, tipo, esse cargo é pra um, esse é pra outro, isso
depende da competência e habilidade de cada um. (Gerente 1).

Aqui a gente não tem nenhuma preferência nesse sentido não. A gente vê das mulheres
alguma resistência quando é aquela parte de suporte que tem que carregar máquina,
instalar máquina, mas mesmo assim elas acabam se adaptando. (Gerente 3).
Observam-se divergências entre as falas das mulheres analistas
de sistemas e dos homens gerentes: enquanto elas acreditam em
possibilidades iguais para ambos os sexos, os gerentes enfatizam que o
trabalho na parte de suporte é diferenciado quanto à realização de atividades
exercidas por homens e por mulheres. Para Krüger (2004), os estereótipos
podem ser de duas qualidades distintas: positivos e negativos; e são
definidos como crença compartilhada coletivamente acerca de característica
psicológica, moral ou física, atribuída a um grupo humano. De acordo com
Barros (2008), a mulher ainda continua agarrada às tradições patriarcais, e
leva para o campo de trabalho uma visão estereotipada destas, vistas muitas
vezes como impossibilitadas de exercer funções até então consideradas
como masculinas.
Entre os entrevistados de modo geral, o homem tem certo poder
sob a ação tecnológica, visto que é maioria, principalmente na gerência
considerada o posto de maior poder e status da Área tecnológica da
SEFAZ/SE. Hirata considera que “o controle masculino da tecnologia
desqualifica as mulheres da mesma maneira que os técnicos e os cientistas
do capital desqualificam os operários” (HIRATA, 2002, p.198). Melhor
dizendo, o predomínio da presença masculina nos espaços de trabalho com
novas tecnologias proporciona uma maior ação tecnológica produzida por
estes. Campo caracterizado como masculino, as novas tecnologias e
Engenharias, em suas múltiplas manifestações como: mecânica,
eletrotécnica, eletrônica, florestal, agronomia, industrial, madeireira, civil, de
alimentos, entre outras, evidencia um perfil androcêntrico, tornando-se um
campo tradicionalmente excludente às mulheres. Essa dicotomia de gênero
pode ser observada em seus múltiplos níveis, como: pesquisa, pós-
graduação, graduação, ensino médio profissionalizante e técnico, nos cursos
tecnológicos e engenharias da UFS.
No Brasil, em se tratando de Engenharia, constata-se que apesar
das mulheres terem conquistado o direito de cursarem o ensino superior –
adquirido em 1879 – a Engenharia, enquanto área de estudo e trabalho,
demorou a entrar nas perspectivas e/ou possibilidades profissionais das
mulheres. Para os entrevistados, a aproximação da mulher com a área
tecnologia é um processo considerado complexo, exigindo a elaboração de
políticas públicas capazes de incentivar, motivar as mulheres a entrarem em
um espaço marcadamente masculino, assim como trabalhar a questão do
preconceito e da discriminação com as mulheres despertadas pela
informática. Hoje, no mundo inteiro, já existem várias campanhas,
768
movimentos em busca da aproximação da mulher com as tecnologias de
informação e comunicação. É possível supor que a nova sociedade da
informação ainda reflete velhas estruturas de relações de poder sobre as
mulheres, apesar de já existir um alto crescimento das mulheres nas
universidades nas áreas de comunicação. Pequeno é o acesso a
organizações de poder decisório nos espaços de trabalho
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo objetivou analisar as diferenças de gênero e a
valorização de novas competências no trabalho com inovação tecnologia
voltado não só para os aspectos técnicos, mas, sobretudo, para formas de
gestão de mão-de-obra. Foram destacados alguns avanços e barreiras
encontradas para a ampliação dos direitos e da cidadania das mulheres no
setor da informática, a democratização das relações sociais mais
participativas e enriquecedoras do trabalho e enfraquecimento das relações
sociais patriarcais na instituição e na sociedade.
As transformações acarretadas pela tecnologia da informação e
da comunicação (TIC) têm criado novas oportunidades econômicas e sociais
no mundo inteiro, contudo, seu uso permanece sendo dirigido pelas relações
de poder existentes nas sociedades. Compreende-se que os padrões da
desigualdade de gênero estão sendo reproduzidos na economia da
informação (igualmente ao que ocorre em todos os âmbitos). Na situação
particular deste estudo, observa-se a existência de avanços pontuais, na área
de informática da SEFAZ/SE, em termos de igualdade gênero, indicando que
essas relações estão em lento processo de transformação sem, contudo,
romper os mecanismos que historicamente inviabilizaram a democratização
dos espaços tecnológicos. As(os) entrevistadas(os) no setor de tecnológico
apresentam tendência a naturalizar as diferenças de gênero na instituição,
com base em estereótipos que organizam as relações sociais no cotidiano do
trabalho: “As mulheres são mais comunicativas”, “as mulheres são aptas a
desenvoler serviços que exigem um maior zelo”. Em geral, os homens se
orientam por um padrão de masculinidade caracterizado por força,
disposição para a atividade física intensa, a exemplo da área de suporte,
assim como para o trabalho no setor operacional que exige muita lógica, a
exemplo dos programadores. Os homens apresentam certa aversão às
tarefas que envolvam o trabalho com documentos, que exige uma maior
racionalidade, interpretação e paciência, consideradas mais destinadas às
mulheres.
As competências são valorizadas constantemente no processo
de qualificação dos trabalhadores desta área, visto que as tecnologias estão
sempre em processo de transformação, e as mulheres frequentemente ficam
à margem deste processo, às vezes pelas barreiras familiares associadas
aos papéis reprodutivas. A igualdade entre homens e mulheres e a
autonomia das mulheres figuram entre os Objetivos de Desenvolvimento da
Organização das Nações Unidas Para o Milênio, que estabelecem objetivos
específicos claramente definidos em matéria de educação. A ONU adverte
769
sobre a necessidade de reforçar as possibilidades de se conseguir a
igualdade dos gêneros, o empoderamento econômico, político e social das
mulheres no contexto de uma utilização mais generalizada das TIC, incluindo
as infra-estruturas, embora reconhecendo que as mulheres são já
importantes consumidoras.

770
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772
MULHER E POLÍTICAS PÚBLICAS DE DESENVOLVIMENTO: a divisão
sexual do trabalho no arranjo produtivo local de confecções em Toritama

Rosiane Pereira Alves


Laura Susana Duque-Arrazola
O objetivo principal desta apresentação é analisar a divisão
sexual do trabalho no Arranjo Produtivo Local (APL) de Confecções em
Toritama-PE, enquanto uma política pública de desenvolvimento local com
ênfase na geração de emprego e renda. O presente trabalho revela os
resultados parciais da pesquisa realizada em 2007 para a monografia de
conclusão do Curso de Economia Doméstica/UFRPE, vinculada ao sub-
projeto de pesquisa sobre políticas do trabalho e emprego, desenvolvida no
Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Mulher e Relações de Gênero –
NUPEM, do Departamento de Ciências Domésticas da Universidade Federal
Rural de Pernambuco - UFRPE. Por sua vez, integrado ao Projeto de
Pesquisa Políticas Públicas para as Mulheres: Reconhecimento ou
Transformação?
O programa de apoio aos APLs é tomado como uma política
pública e como tal, afirma Duque-Arrazola (2004) se constitui em um
mecanismo estratégico e contraditório de intervenção do Estado no processo
de reprodução do capital e da força de trabalho. No cenário atual, este
programa também aparece como uma proposta estatal de desenvolvimento
local, com foco nas micros, pequenas e médias empresas, e, por
conseguinte, na geração de emprego e renda em regiões rurais e urbanas do
país (BRASIL, 2007; VEIGA, 2003).
No Brasil, as políticas sociais pública, resultaram da mobilização
e luta por direitos do operariado e da resposta às políticas do trabalho
precedentes à Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Elaboradas por
representantes masculinos, limitou os direitos da cidadania feminina,
cerceada pelas desigualdades de gênero. Assim, a discussão prossegue
estruturada em dois capítulos da revisão bibliográfica, uma breve síntese da
metodologia empregada, discussão dos resultados e considerações finais.
POLÍTICAS SOCIAIS PÚBLICAS E DESENVOLVIMENTO LOCAL
As políticas sociais públicas, ressalta Laura Duque-Arrazola
(2004), surgem com o reconhecimento da existência da questão social por
parte do empresariado e do Estado, determinada pelas contradições do
capitalismo, cujo processo de acumulação está fundado na exploração do
trabalho e nas desigualdades sociais. Trata-se para essa autora de uma
medida anticrise, na proporção em que o Estado intervém para responder à
pressão e lutas organizadas das classes e setores sociais subalternos.
No contexto atual as políticas e os programas sociais se
_____________________________________________________________

1
NUPEM – DCD - UFRPE – rosipereiraa211@yahoo.com.br
2
NUPEM – DCD- UFRPE - lsduquearrazola@uol.com.br

773
apresentam como estratégias hegemônicas, na medida em que dão
respostas a um conjunto de necessidades das classes e setores sociais
subalternos. Mas também, estão referendadas pela legislação e pelos
direitos sociais conquistados pelas classes subalternas. Contudo, as políticas
públicas, são de responsabilidade do Estado. Este as financia, planeja e
executa, com o aval e controle da sociedade (DUQUE-ARRAZOLA, 2004).
Entretanto, durante a década de 1990, fase em que o Brasil
priorizou a superação da crise econômica e o alavancamento do crescimento,
sob influência das mudanças em curso no cenário mundial, as políticas
neoliberais implantadas, reduziram a presença do Estado nas empresas
estatais, as que passaram a ser assumidas pela iniciativa privada. Aliado as
políticas neoliberais, o processo de globalização da economia e de liberação
dos mercados induziu a reestruturação das empresas. Das quais, passou a
exigir-se o aumento da eficiência, da produtividade, da modernização das
máquinas e incorporação de novas tecnologias, implantação de novos
processos de produção, melhoria da qualidade dos produtos, diminuição dos
custos, redução dos preços, atenção ao consumidor (BRUM, 2005).
Simultaneamente, esses novos processos agravaram as
condições de reprodução da força de trabalho masculina e feminina,
sobretudo por conta do uso intensivo de tecnologias que desempregaram
grande contingente de mão-de-obra. Surge então o chamado desemprego e
pobreza estrutural acrescida da concentração de renda e do retrocesso do
modelo de proteção social (CARVALHO, 2001). No bojo desse processo o
programa de apoio aos Arranjos Produtivos se apresenta como uma medida
anticrise de política pública com foco no desenvolvimento local.
De acordo com Clélio Diniz (2007), o modelo de dinamização dos
APLs, diferente dos modelos de desenvolvimento já experimentados no
Brasil, caracterizados como exógenos, parte do princípio do desenvolvimento
endógeno, ou seja, a partir da localidade. Considera também a existência de
uma atividade econômica especializada em determinada região geográfica,
onde exista uma rede de inter-relação entre os fatores econômicos, sociais e
institucionais. No caso de Toritama, a atividade endógena corresponde à
confecção e beneficiamento do jeans, se considerada que essas atividades
são anteriores a atuação governamental e das instituições no local.
DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO E INDÚSTRIA DE CONFECÇÕES.
No início do desenvolvimento do capitalismo, a principal força
produtiva eram os/as operários/as, cuja produção dependia de suas
habilidades. Porém, com o advento das máquinas as diversas operações
executadas por uma única pessoa começaram a ser separadas (divisão
técnica do trabalho). Cada máquina passou a fazer apenas parte do trabalho,
e, em decorrência os/as operários/as foram separados/as, classificados/a e
reunidos/a na produção de acordo com sua capacidade de adaptação à
máquina (CEDAC, 1982). Hoje, a organização da produção é baseada no
desenvolvimento do trabalho parcelado e; no desenvolvimento de um
774
sistema hierarquizado que reproduzem, também a divisão sexual do trabalho.
A dependência do processo produtivo à maquinaria tem se
agravado nas últimas décadas com o uso da tecnologia, base da
reestruturação produtiva uma das respostas à crise global do capital, que de
acordo com Géssika da Silva (2009), trouxe como conseqüência
o aumento do desemprego, sobretudo o estrutural e a redução dos postos de
trabalho. Isso induziu o surgimento de novas estratégias para a sobrevivência
e de organização do setor informal: trabalho autônomo, terceirização de mão-
de-obra, prestação de serviços; trabalhos sazonais e subemprego, que
atingem homens e mulheres. E muitos dos/as desempregados/as têm sido
reabsorvidos/as pelas atividades informais ligadas a indústria de confecções
em diferentes regiões do Brasil, a exemplo do agreste de Pernambuco.
A indústria de confecções surge durante a primeira fase da
Revolução Industrial (1750-1800), teve como conseqüência a concentração
de capital, homens, mulheres e máquinas nas fábricas. (BRUM, 2005). O
surgimento da máquina de costura nesse período vai também modificar o
trabalho em domicílio, que se converte na seção externa da fábrica.
Modalidade de trabalho que persiste ainda hoje, como uma atividade
terceirizada e descentralizada, sub-contratada nos momentos de maior
demanda. (ABREU, 1986).
No cenário atual, as indústrias de confecções são formadas em
sua maioria por empresas de pequeno porte e informais, mas que absorvem
uma grande quantidade de mão de obra (ANTERO, 2006), tanto feminina,
quanto masculina.
Todavia, nos últimos anos, diferentes estudos têm revelado, a
exemplo dos dados do DIEESE (2007) que o desemprego ligado a diferentes
setores, atinge mais mulheres chefes de família (14,9%), do que os homens
na mesma situação (11,2%). Elas (46%), mais do que eles (33,5%) têm
ocupado posições de trabalho vulneráveis. São dados como estes, dentre
outros estudos, que têm chamado a atenção das organizações
internacionais. É o caso, ressalta Vera Soares (2007), do Banco Mundial que
nos últimos anos tem recomendado políticas de combate à pobreza e do
trabalho com focalização em mulheres. Isso porque apesar das barreiras que
já foram derrubadas, a situação histórica das desigualdades e hierarquias
das relações de trabalho entre homens e mulheres, ainda reproduzem as
relações desiguais de gênero.
Joan Scott (1995) define gênero como um elemento constitutivo
das relações sociais baseada nas diferenças percebidas entre os sexos;
como uma forma primeira de significar as relações de poder. Apoiando-se
nesta autora, Graciete Santos e Cristina Buarque (2006) concebem o gênero
como um conjunto de atributos construídos social e culturalmente para
designar os “papéis sociais” que devem desempenhar homens e mulheres
como se fosse expressão de atributos naturais. Dessas históricas relações
decorre a divisão sexual do trabalho, que designa e atribui atividades e
775
responsabilidades diferentes para homens e mulheres em nome das
diferenças entre os sexos. E como tal são desigualmente hierarquizadas, a
exemplo da diferente valorização atribuída aos trabalhos reprodutivo
(feminino) e produtivo (masculino). Divisão sexual do trabalho que se
desdobra numa divisão sexual de poder.
Desse modo, apesar das mulheres terem entrado no mercado de
trabalho de forma intensa durante a Segunda Guerra Mundial, seu trabalho
apenas começa a sair da invisibilidade na década de 1970, sob influência do
movimento feminista (ÁVILA, 2007). Essa entrada e permanência da mulher
no espaço público da produção são vista com um fator de redução das
desigualdades de gênero, na medida em que valorizou a autonomia e
independência feminina e, juntamente com a redução da fecundidade e
aumento da escolaridade, conduziu a uma melhoria na qualidade de vida
dessas mulheres. Entretanto essa “simetria”, não tem ocorrido de modo
generalizado, por isso devem ser analisados os contextos nos quais
permanecem as desvantagens para as mulheres em termos de rendimentos
e da qualidade das ocupações exercidas. (GUIMARÂES, 2007).
METODOLOGIA
Os dados apresentados neste trabalho são provenientes de uma
pesquisa exploratória de caráter qualitativo e descritivo,
conforme recomenda Cecília Minayo (2007) para uma melhor apreensão dos
significados, atribuído ao trabalho por parte dos/das entrevistados/as. Desse
modo, os procedimentos metodológicos foram distribuídos e realizados em
três etapas complementares: 1) pesquisa e revisão bibliográfica; observação
in lócus em confecções, lavanderia, Feiras de Componentes Têxteis; 2)
aplicação de entrevistas semi-estruturadas a trabalhadoras/es, com faixa
etária entre 20 e 65 anos, e empresários/as das facções, fabricos e fábricas
do município de Toritama; 3) sistematização e análise dos dados.
RESULTADOS E DISCUSSÃO: a divisão sexual do trabalho no APL de
confecções em Toritama O município de Toritama está localizado no Agreste
Setentrional pernambucano a 180 km do Recife, de clima semi-árido e com
2,
uma área de aproximada de 31 Km possuía cerca de 29.900 habitantes no
ano de 2007. No passado havia sido uma fazenda de gado a margem do Rio
Capibaribe, chamada Torres. Emancipado em 1953 e de clima desfavorável
para a agricultura aliado ao pouco incentivo político ao setor primário da
produção, sua população teve a sobrevivência garantida até a década de
1970 com a fabricação manufatureira de calçados. (IBGE CIDADES, 2007).
Essa atividade entra em declínio no bojo da crise econômica brasileira do
início da década de 80, e faz a população buscar na atividade de confecção
do jeans uma nova estratégia de sobrevivência. Em função da capacidade
dessa atividade gerar grande quantidade de emprego e renda, mesmo que
em sua maioria informal. Em decorrência, este município ficou conhecido
como o lugar no Nordeste onde não existe desemprego e desencadeou um
processo de desenvolvimento no local e nas redondezas.
776
As entrevistas revelaram que as indústrias de confecções e
têxteis lavanderias de beneficiamento) em Toritama estão desde o início da
década de 1980 organizadas num processo de divisão de trabalho entre
empresas, por meio da contração e prestação de serviços complementares.
As fábricas (confecções ou lavanderias formais) e os fabricos
(pequenas empresas que atuam na informalidade) terceirizam parte, e
algumas todo o processo de produção. São as facções (micro empresas
informais responsáveis apenas por parte do processo produtivo) que prestam
serviço para as fábricas e os fabricos.
Há também uma divisão social e sexual do trabalho. Esta se fez
presente desde o surgimento das confecções e lavandeiras em Toritama. Os
homens se colocaram inicialmente como comerciantes, organizadores e
gestores dos empreendimentos, enquanto às mulheres foram locadas na
execução das costuras. Num processo de divisão hierárquica de atribuições
com base nos sexos, que também se desdobra numa relação de poder,
salientada por Joan Scott (1995), da maneira como revela a fala seguinte:
[...] Eu e meu irmão, pedimos para que ele (o patrão) cedesse um fardo de
tecido para que a gente pudesse confeccionar umas peças para nós. Ele
cedeu emprestado. Agente levou para casa, ele emprestou também os
moldes. Aí a minha mãe costurou, naquela época toda dona de casa tinha
uma máquina de costura. E levamos para feira de Santa Cruz e vendemos
as peças. Nossa tia foi o segundo funcionário da empresa (Empresário do
pólo de confecções do agreste, 2007).
Hoje, nas confecções, e principalmente nas lavanderias, o
processo de gestão continua sendo executado, em sua maioria pelos
homens. Nas lavanderias de beneficiamento em Toritama, as mulheres não
são admitidas em cargos de comando, pois os funcionários da produção,
todos homens, não aceitam ser comandados por mulheres, como revela a
fala seguinte do entrevistado.
[...] Parece que há uma resistência das pessoas, que às vezes não
toleram ser comandados por mulheres. Na lavanderia há uma restrição
quando a mulher vai comandar o homem. Numa atividade que é
eminentemente masculina... Aí você põe uma mulher para comandar,
eles ficam assim meio que ariscos. Diferente da confecção, que é uma
atividade eminentemente feminina, você põe a mulher para trabalhar e
não tem muito problema (Empresário do pólo de confecções do agreste,
2007)
A esse respeito, Helena Hirata (2002), já havia comentado da
dificuldade posta por tarefas de comando de homens por mulheres, que
podem redundar em exclusão do emprego em vez de promoção e carreira
ascendente para as mulheres. Andréa Puppim (1994) complementa que o
aumento da participação das mulheres no mercado de trabalho, não teve a
ressonância na mesma proporção na esfera dos cargos de topo das
empresas brasileiras.
777
Já na linha de produção, atualmente, o Arranjo Produtivo de
Confecção em Toritama, é integrado por trabalhadores e trabalhadoras,
apesar de historicamente a atividade de confecções estar associada ao
trabalho feminino. Enquanto tais atividades eram características do ambiente
doméstico, sem remuneração e sem fins lucrativos para as mulheres, era
uma atividade apenas feminina, fato que se modificou quando essas tarefas
passaram a ter valor de troca no mercado e gerar renda, atraindo para si a
mão de obra masculina, desempregada e precarizada.
Essa entrada masculina, além de valorizar a atividade laboral,
tem uma relação direta com o processo de reestruturação produtiva ocorrida
nos últimos vinte anos. Fase em que, segundo Iracema Guimarães (2007),
houve um deslocamento da população economicamente ativa-PEA do setor
industrial para o setor terciário. Onde as mulheres começaram a ser maioria e
passaram a dividir tal atividade de trabalho com os homens que,
pressionados pelo cumprimento de sua responsabilidade social como
provedor, determinada pela divisão sexual do trabalho, mas desempregados,
assumiram os desafios de seu ingresso laboral ao mundo das confecções
local, re-orientando uma nova divisão sexual do trabalho no APL de Toritama.
A divisão do trabalho com base nos sexos, hoje em Toritama,
favorece o sistema capitalista e o aumento da lucratividade. O capitalista usa
as características tidas como feminina e como masculina segundo uma
ideologia de gênero, adequando-as aos serviços e funcionalidade da
empresa. Os homens trabalham em serviços que requer menos detalhes de
desenho, por isso é uma atividade de maior rapidez, e, portanto, consome
menos tempo. Enquanto as mulheres usam máquinas que fazem detalhes
nas roupas que requerem mais tempo, paciência, dedicação. Esse trabalho
repetitivo esta relacionado segundo Helena Hirata (2002), com a não
qualificação profissional, com o aumento da precarização do trabalho em que
as mulheres estão inseridas.
[...] as mulheres saem melhor quando o serviço requer mais qualidade do
que força ou velocidade. E aí tem serviço tanto na confecção como na
lavanderia que não é a força ou a velocidade que vai fazer a diferença e
sim a atenção, as minúcias, os detalhes (Empresário do pólo de
confecções do agreste, 2007)
Quando surgem as lavanderias de beneficiamento em Toritama,
usando máquinas e técnicas específicas, são os homens que se inserem
nesta atividade. Isso se deve de acordo com Maria Ângela Araújo (2007), a
modernização de alguns setores em meio ao movimento de reestruturação
produtiva, que acarreta numa masculinização da força de trabalho. Essa
masculinização do trabalho nas lavanderias é justificada na fala do
entrevistado:
Porque o serviço da lavanderia é um serviço muito insalubre, muito
pesado. Trabalha com produtos químicos, tem que levantar peso. Na
verdade, as mulheres são mais inteligentes, elas não querem trabalhar
778
em lavanderia... Uma função que depende da força muscular, eu não
coloco uma mulher, porque agente sabe que a própria estrutura óssea e
muscular da mulher não dá para competir com um homem (Empresário do
pólo de confecções do agreste, 2007).
Quando as mulheres aparecem nas lavanderias de
beneficiamento do jeans no pólo de confecção do agreste de PE, são em
atividades que não precisam de mão de obra qualificada como a passadoria,
aplicação de pino, ou em atividades onde são requeridas características tidas
como femininas.
Nós fomos à primeira lavanderia que colocamos mulher para trabalhar.
Agente separou alguns serviços que eram adequados para mulher:
passadoria, aplicação de pino. Hoje dos 87 funcionários, 30 são mulheres
(Empresário do pólo de confecções do agreste, 2007).
Quanto ao procedimento de lavagem do jeans que envolve o
desgaste, o amaciamento, o tingimento, é executado pelos antigos
funcionários homens, os quais adquiriram com a experiência o conhecimento
de controle do tempo de cada operação, levando em consideração os demais
fatores de lavagem descritos por Maria Elisabeth Gervini (1995) como ação
mecânica, ação química e temperatura. Entretanto, com a automatização do
processo operacional das máquinas de lavar, estas passam a ter dosadores
automáticos com controladores de tempo e temperatura.
Esse processo de automatização se encontrava em andamento
em algumas lavanderias do pólo de confecção no final de 2007, nas quais o
emprego dos funcionários antigos encontravam-se ameaçados,
principalmente porque a mão de obra necessária passa a ser a não-
qualificada e em menor quantidade.
[...] automatizando o processo, poderia se colocar uma mulher ao invés de
um homem trabalhando nas máquinas. Automação do processo inteiro,
você põe a roupa dentro da máquina e ele começa e termina sem
intervenção do homem. Ele não precisa mais colocar água, tirar água,
colocar o vapor, tirar o vapor, programar o tempo, mandar parar a
máquina, soltar [...] Então todo o processo seria automatizado, isso
acarretaria numa necessidade de uma menor força de trabalho e uma
maior qualidade na reprodutividade das peças (Empresário do pólo de
confecções do agreste, 2007).
A automatização do processo produtivo se dá em meio à adoção de
tecnologias que segundo Inaiá Carvalho (2001), desempregam cada vez
mais a mão de obra. Trata-se de um artifício usado para aumentar a
concentração de renda, que se fortalece com o enfraquecimento das
instituições reguladoras.
Outro fator relevante encontrado durante a pesquisa foi o trabalho de
prestação de serviço de costura em domicílio, executado pelas mulheres,
cuja circunstância difere de quando o trabalho é realizado nas facções.
Nestas o espaço de trabalho é externo a moradia, ou seja, possui uma
779
aparente externalidade, num espaço destinado ou terraço ou ao quintal da
residência. Dessa forma quando se está nesse espaço da facção se está no
trabalho. No trabalho em domicílio não há diferenciação entre o espaço da
casa e do trabalho. E por a atividade de costura estar subordinada ao serviço
doméstico, a produção da trabalhadora domiciliar cai. A jornada de trabalho é
mais extensa e intensa, enquanto seus ganhos são menores, porque nela
está incluído o trabalho remunerado e o trabalho não remunerado. Além
disso, como afirma Karl Marx (1999) neste caso, a exploração do trabalho é
mais depreciativa do que nas empresas, pois falta nele o fundamento técnico
que existe nas fábricas, trata-se de uma luta travada contra a produção
mecanizada em meio à pobreza e a condições inadequadas de trabalho como
espaço, luz e ventilação.
No referente à organização do APL de Confecções, esse é um
fator que tem contribuído para o crescimento econômico de Toritama, apesar
de está marcado pelo desenvolvimento desigual, concentrador de renda,
onde os donos do conhecimento e dos meios de produção acumulam cada
vez mais capital. Enquanto a maioria dos/das trabalhadores/as assegura um
ganho, uma remuneração que supre as necessidades da reprodução e
sobrevivência da família e, até mesmo o consumo de bens domésticos.
Ilusoriamente trabalhadores/as empregados/as parecem ter acesso ao
capital, através do aumento do poder de compra, do acesso a bens
domésticos, como expressa a fala abaixo. Entretanto, esse dinheiro não
permite o acesso à educação e qualificação profissional, saúde, moradia e
transporte de qualidade, entre outras.
Minha vida mudou no aspecto financeiro. Não dependo mais de mãe e de
pai para comprar roupa, comprar o móvel da casa [...] Reformei a casa.
Ainda tem o gasto maior, que é filho. (Empregado formal de uma
confecção e informal de uma facção, 2007)
A empregabilidade é alta na cidade de Toritama, chega a absorver
toda a mão de obra do próprio município e da região circunvizinha, mas o
emprego é precário, como expressa a entrevistada.
[...] aí fora, falam que Toritama é a cidade do emprego e que rola muito
dinheiro, né? Realmente tem emprego. Para quem tem coragem de
trabalhar, tem emprego de toda qualidade: serviços gerais, costureira.
Agora, tem uma coisa, o dinheiro rola aqui, mas no bolso dos ricos, porque
dos pobres, não rola não. Porque o dinheiro que nós ganha trabalhando,
só dá para nós sobreviver (Empregada de uma facção, 2007).
Existe uma insatisfação em relação à educação oferecida pela
rede pública em Toritama. A alfabetização nem sempre ocorre em tempo real.
Muitas crianças precisam dividir seu tempo entre o trabalho nas facções e em
casa com os livros. O resultado é a evasão escolar e a opção pelo trabalho,
que lhes parece mais imediata à realidade de suas necessidades.
A maioria deixa de estudar porque começa a trabalhar cedo. Aí se
interessa mais pelo trabalho, porque está ganhando dinheiro, do que pelo

780
estudo. Só a pessoa da classe mais alta (média) é que tem mais
oportunidade e estuda (Empregada de uma facção, 2007).
A cidade também não tem opções de lazer. Tudo gira em torno do
trabalho. O transporte dentro da cidade é deficiente, não há ônibus
intermunicipal. A opção são as Toyota e o único transporte alternativo
existente dentro do município são as moto-táxi. Também não há uma
estrutura de serviço para os ônibus que trazem os/as sacoleiros de outros
Estados.
A região agreste é seca e tem escassez de água, como revela a
fala seguinte. E na visão empresarial a preocupação é com a necessidade de
comprar a água que a natureza não disponibiliza. Isso porque a atividade de
confecções em Toritama para atender a demanda do mercado, passou a
utilizar o serviço das lavanderias no beneficiamento do jeans. Processo que
requer muita água. Nesse contexto, percebe-se a existência de uma
disparidade entre o que a região disponibiliza naturalmente e o que precisa
para desenvolver economicamente. Todavia, o desenvolvimento local implica
desenvolvimento econômico e social com sustentabilidade, baseado, nos
territórios rurais e nos princípios da agroecologia.
[...] na lavanderia essencialmente a matéria-prima é a água. Eu gasto aqui
250-300 mil litros de água por dia, e não tem água. Cavamos um poço
artesiano, 62 metros e não deu água, somente deu pedra. E agente não
tem fornecimento da Compesa e tem que comprar água de caminhão pipa
(Empresário do pólo de confecção, 2007).
O processo de lavagem do jeans é uma atividade poluidora dos
rios e riachos, compromete todo o ecossistema e a vida da população. Porém,
trata-se de uma situação que pode ser minimizada com o uso de tecnologia
que trate a água antes da mesma ser expelida para o meio ambiente.
Tecnologia que possibilita também a reutilização de uma parcela da água
tratada no processo de produção. Segundo dados obtidos através de
entrevistas, desde 2003 todas as lavanderias são obrigadas a ter uma
estação de afluente por determinação do Ministério Público em conjunto com
a prefeitura, Vigilância Sanitária e Corpo de Bombeiro. E só recebem alvará
de liberação de operação, as lavanderias que se encontram regularizadas.
No entanto, nem todas funcionam como deveria.
Apesar da implantação de estação de afluentes, recentemente
houve uma audiência pública e foi divulgado na mídia que a maioria das
lavanderias de Toritama não tem estação de tratamento. Essa estação
encarece o preço do produto final e para se manter no mercado, muitas
lavanderias, mesmo possuindo o sistema de tratamento, não o utilizam
adequadamente, principalmente as de menor porte.
O cuidado que se deve ter com o meio ambiente no APL de
confecções em Toritama, não se restringe à água, mas envolve também a
atmosfera, o aterro sanitário. Pois, segundo Argemiro Brum (2005), a
estratégia do desenvolvimento local, busca superar a crise estabelecida
781
pelos processos capitalistas de globalização que concentrou riqueza,
restringiu a democracia, agrediu a natureza e comprometeu o meio ambiente.
Ao mesmo tempo percebemos através da fala do empresário que os
prejuízos no meio ambiente têm uma relação direta com as leis da
concorrência dos mercados:
[...] a questão atmosférica que você tem que tratar, tem que ter os
ciclones, os coletores. Tem a questão do próprio lixo, que tem que colocar
o lixo no local correto, num aterro, armazenar em sacos. Então tem toda
uma despesa ambiental que o concorrente não tem, despesa que
encarece o produto final (Empresário do pólo de confecção, 2007).
O programa APL se apresenta como um novo modelo de
desenvolvimento, que enfatiza o local. Local que deve ser pensado com a
participação de todos, empregados/as e empresários/as. Deve ainda no
âmbito do desenvolvimento local, enfatizar não só o desenvolvimento
econômico e estimular a competitividade, mas também, o desenvolvimento
social sustentável.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O discurso do Programa Organização dos Arranjos Produtivos
Locais, apresenta-se como um novo modelo de desenvolvimento endógeno,
a partir de uma atividade predominante na região. No caso de Toritama a
produção do jeans. É um programa federal, descentralizado e focalizado;
executado pelos governos estaduais. Nesse sentido, têm-se percebido um
esforço por parte deste, através de seus órgãos representativos e parceiros
em alavancar o desenvolvimento do APL de confecções no pólo do agreste.
Porém, diante da complexidade em que se encontra Toritama e de todo o
contexto mundial como a abertura dos mercados internacionais em meio a
um mundo globalizado, além da emergência de um desenvolvimento
sustentável, diante de um planeta preste a um colapso ambiental, todo esse
esforço não tem sido suficiente para garantir um desenvolvimento
sustentável do ponto de vista ambiental.
Embora a proposta de organização de APL vise aumentar a
competitividade das micros, pequenas e médias empresas, tendo como meta
o incentivo ao empreendedorismo, a diminuição da informalidade e a maior
utilização de tecnologia. Em contrapartida, temos constatado que em meio
aos processos de reestruturação produtiva local o que tem ocorrido é a
adoção de tecnologias que desempregam a mão-de-obra masculina e
feminina e intensificam o crescimento da informalidade.
Essa informalidade e a falta de qualificação profissional em
Toritama atingem trabalhadores e trabalhadoras. Porém, mais do que os
homens, as mulheres se encontram em condições ainda mais desvantajosas.
No programa APL, não há menção específica à mulher, portanto não se
constitui em uma política pública com inclusão da agenda de gênero. É um
programa criado sem considerar a histórica desigualdade de oportunidades
entre homens e mulheres em Toritama. Principalmente em relação a políticas
782
que viabilizem condições para as mulheres manterem-se no mercado de
trabalho, desde uma maior capacitação como um aparato que garanta um
lugar adequado para os/as filhos/as como creches e escolas, enquanto as
mães trabalham. Como isso não acontece, a conseqüência é o trabalho a
domicílio para as mulheres, crianças e idosas.
O trabalho a domicílio, por seu caráter exploratório, já era motivo
de preocupação por parte das organizações sindicais dos governos e da
opinião pública, no início do século XX. Hoje em Toritama parece não haver
nenhuma preocupação com a regulamentação desse tipo de trabalho, ao
contrário, ele cresce e emprega muita gente. Expande-se longe da
invisibilidade pública e faz parte de uma informalidade alimentada pelas
políticas neoliberais.
Mesmo tendo havido uma inserção masculina nas confecções e
lavanderias, como resposta ao desemprego na região, isso se soma ao fato
de tais atividades, terem passado a gerar renda. Inserção que não anulou as
relações desiguais de gênero, mas criou uma reformulação local da divisão
sexual do trabalho nos moldes do capitalismo, de tal forma que serve para
aumentar a lucratividade. Nesta nova divisão sexual do trabalho, o trabalho
exercido pelas mulheres se tornou ainda mais precário, pois os homens
passaram a fazer parte do trabalho feminino, no mundo público da produção.
Ainda mais, na área operacional, nas atividades relativas à confecção e
lavanderias, eles passaram a ocupar os postos que precisam de maior
qualificação profissional e conseqüentemente são ocupações mais bem
remuneradas. As mulheres nesse contexto, mesmo fazendo parte desse
trabalho realizado no espaço público da produção, ocupam os postos menos
qualificados e dificilmente atingem os cargos de comando.
Diante do crescimento econômico em Toritama, o que se percebe
é um acúmulo de capital com distribuição desigual de renda. Fenômeno que
tende a perpetuar-se diante da ausência de uma educação de qualidade, de
estímulos para que as crianças possam ir à escola e permaneçam nela. Além
disso, o fato de existir o trabalho infantil, revela também que o trabalho
dos/das adultos/as não é suficiente para garantir uma boa qualidade de vida.
É preciso que toda a família trabalhe para obtenção de uma renda maior.
Portanto, não podemos dizer que estamos diante de uma
situação de desenvolvimento local sustentável, porque este engloba o
acesso das pessoas ao conhecimento (técnico, qualificação profissional), à
educação, o que não está garantido a todas as pessoas em Toritama, menos
ainda para as mulheres, salvo os empregados das fábricas ou
empreendimentos de médio e grande porte. Ainda mais, o desenvolvimento
econômico se dá sem distribuição eqüitativa de renda e sacrificando o meio
ambiente.

783
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786
A MULHER RURAL NOS ESPAÇOS PÚBLICO E PRIVADO: INTERFACES
COM AS POLÍTICAS DE ÁGUAS
Roberta Alves dos Santos
Lígia Albuquerque de Melo
Tradicionalmente, nossa sociedade vive no modelo patriarcal
onde as mulheres se inserem no meio público sob o viés da divisão sexual do
trabalho. Partindo disso, a pesquisa se insere no estudo de gênero esteado
dentro do assunto da política pública de recursos hídricos, que é
caracterizada como espaço público em que culturalmente as mulheres não
fazem parte. A participação feminina, nesse sentido, ocorre de acordo com a
perspectiva do patriarcado defendida por Rousseau, em que a mulher é
propriedade masculina e, por isso, cabe ao homem representá-la
publicamente (citado por Fischer, 2008).
Objetivando contribuir com essa questão, a pesquisa busca analisar
a dicotomia homem/mulher/público/privado e as implicações desses
processos na inclusão das mulheres na política de água. Pretende-se com tal
iniciativa analisar a contradição de como as mulheres rurais são apontadas
como gerenciadoras ideais do uso da água na esfera do lar e de entorno são,
ao mesmo tempo, desqualificadas para a gestão desse recurso no espaço
público. Analisa-se também o posicionamento de órgãos financiadores de
programas de desenvolvimento rural quanto à inclusão das mulheres na
política de recursos hídricos.
O estudo realizado se esteia aos moldes delineados por Santos
(2002) e Fachin (2003). A pesquisa tem caráter Explicativo, base bibliográfica
e com a realização de entrevistas. Também foi sustentada em dados
secundários, com o apoio da revisão bibliográfica e documental.
No desenvolvimento da pesquisa, inicialmente, foi realizado o
levantamento bibliográfico de materiais que abordavam as temáticas de
gênero, água, público e privado nas bibliotecas da Fundação Joaquim
Nabuco - Fundaj e da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Em
seguida, realizaram-se leituras, discussões com a orientadora dos textos
selecionados e foram elaborados resenhas de acordo com a Associação
Brasileira de Normas Técnicas – ABNT.
Para melhor entender os procedimentos da administração de
água, realizou-se uma visita ao Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio
Capibaribe, em Recife, e efetuou-se entrevistas com o presidente do comitê e
a secretária executiva suplente desse órgão, que forneceram também as Atas
e a composição atual dos membros do comitê. No fechamento do trabalho,
_____________________________________________________________

1
Estudante do Curso de Serviço Social – CCSA - UFPE; Bolsista Pibic/CNPq/Fundaj.
E-mail: beta_dossantos@hotmail.com,
2
Docente/pesquisadora da Diretoria de Pesquisas Sociais da Fundação Joaquim Nabuco – Fundaj -
Coordenação Geral de Estudos Ambientais e da Amazônia.
E-mail: ligia.melo@fundaj.gov.br

787
realizou-se a análise dos dados e a sistematização dos resultados obtidos.
Verificou-se que a condição imposta às mulheres pela divisão sexual
do trabalho representa um dos entraves para que assumam o gerenciamento
da água no espaço público e que a incorporação da perspectiva de gênero na
política de recursos hídricos consiste em um desafio.
A pesquisa pode contribuir para que as mulheres sejam
reconhecidas na política pública de recursos hídricos como competentes
colaboradoras e gestoras na implementação de programas de água para o
alcance de uma política sustentável e democrática.
O CONCEITO DE GÊNERO: RELAÇÃO HOMEM E MULHER
O conceito de gênero corresponde a uma relação socialmente
construída entre homens e mulheres num sistema de hierarquia e poder que
determina práticas sociais e dita o modo de agir e pensar nas sociedades
(FARIA; NOBRE, s/d).
De acordo com a perspectiva do conceito de gênero e de sexo,
as relações são construídas de forma desigual, fundamentada na
diferenciação biológica, desconsiderando seu aspecto histórico e social. Ao
considerar as relações de gênero construídas ao longo da história, pode-se
dizer que elas se manifestam de forma diferenciada dependendo do lugar, da
cultura, da sociedade e da época (IBAMA, 2000). No Brasil, o conceito de
gênero foi incorporado pelo feminismo e pela produção acadêmica sobre
mulheres a partir dos anos de 1980 e, desde então tem sido interpretado de
formas distintas por diferentes correntes. O debate de gênero tem sido
realizado por diferentes abordagens que justificam a subordinação das
mulheres e hegemonia masculina (FISCHER, 2006).
A primeira abordagem de estudos sobre a condição das
mulheres se refere ao Patriarcado que significa poder do pai, ou seja, a
superioridade masculina na maioria das instituições da sociedade. Tendo em
vista que a nossa sociedade vive no molde patriarcal, historicamente, os
homens exercem o poder nas diversas esferas da sociedade, determinando a
conduta das categorias sociais. Entre essas formas de categorização estão,
principalmente, às mulheres (SAFFIOTI, 2002). Weber diz que o patriarcado
é a situação onde as instituições familiares e econômicas são exercidas por
apenas uma pessoa de acordo com certas regras fixadas pela sociedade
(Citado por Fischer, 2006).
Outra abordagem corresponde à divisão sexual do trabalho,
que se manifesta através de uma hierarquia de poder entre os sexos, onde o
trabalho masculino é superior ao feminino. Essa inferioridade é justificada ao
associar o trabalho da mulher fora de casa como um complemento do
trabalho no lar, reafirmando sua posição no trabalho doméstico (FISCHER,
2006).
788
As relações de gênero são sustentadas e estruturadas por uma rígida
divisão sexual de Trabalho. O papel masculino idealizado é de
responsabilidade pela subsistência econômica da família e a isso
corresponde designar o trabalho do homem na produção. A atribuição do
trabalho doméstico designa as mulheres para trabalho na reprodução: ter
filho, criá-los, cuidar da sobrevivência de todos no cotidiano (FARIA;
NOBRE, s/d, p.12).

O PÚBLICO E O PRIVADO
Tradicionalmente o terreno público, de acordo com DaMatta
(1985), é um ambiente do povo, considerado um local onde estão diversas
categorias sociais em conflito. Por isso, tendo em vista esses aspectos, cria-
se um espaço que tem um ponto de autoritário, impositivo, falho,
fundado no descaso e na linguagem da Lei que, igualando, subordina e
explora. Já no espaço privado, a casa, representa a própria sociedade com
seus múltiplos códigos e também uma fortaleza contra valores de fora, do
mundo, da rua onde se deve manter a boa ordem numa relação de harmonia
onde a disputa deve ser evitada. A mulher tem o papel de intermediária entre a
rua e a casa, onde dentro do lar ela assume a posição de comandante e, fora
do ambiente privado, o marido ou pai é quem a representa (DAMATTA, 1985).
As transformações da atual sociedade patriarcal, que submete
a mulher ao homem vem se modificando, ao longo do tempo, com a iniciativa
do movimento feminista que é importante agente na transformação da
sociedade, pois luta para que as mulheres conquistem visibilidade e
transformem certos costumes através de sua inserção na escola, no mercado
de trabalho, ou seja, por igualdade no acesso aos direitos civis, políticos e
sociais para as mulheres rurais e urbanas de todas as classes (FARIA;
NOBRE, s/d).
Quanto à área rural, segundo Fischer (2006) a mulher sempre
participou na esfera pública, porém sem visibilidade. Esse fato encontra
suporte devido à divisão sexual do trabalho ser ainda mais intensa, pois os
costumes são mais arraigados e por isso a desconstrução da desigualdade
nas relações de gênero ocorre de forma mais lenta, mesmo com a
participação das mulheres rurais no espaço produtivo na agricultura de
subsistência da família. O fato é que as atividades realizadas pelas
agricultoras no meio produtivo são computadas ao trabalho doméstico. Além
de que, historicamente, os homens são responsáveis pela produção. Assim, a
atividade agrícola da mulher é considerada apenas como uma ajuda ou
complemento ao trabalho do marido ou pai (MELO, 2006). Somado a isso,
elas não têm poder de decisão quanto à aplicação do dinheiro conseguido na
agricultura. E o que vai ser reservado ao mercado, geralmente, é negociado
pelo homem sem qualquer tipo de participação da mulher o que contribui para
789
o não reconhecimento da trabalhadora rural (ABREU E LIMA,
2006). Apesar de, segundo Abreu e Lima (2006, p.104),
[...] o trabalho da mulher no meio rural não ser reconhecido, ser
desvalorizado, encarado como humilhação e atribuído à extrema
necessidade; ter sido, geralmente, mediado pelos homens e significar, na
prática, um peso maior para a mulher, que, no dia-a-dia, passava a
enfrentar um tripla jornada de trabalho (casa, roça e produção), pôde
contribuir para seu crescimento como pessoa e sua maior inserção no
espaço público, para vivenciar outras relações, lidar com outras
realidades, viver outras experiências, capacitar-se melhor, situar-se como
integrante de uma classe social, adquirir maior autonomia, construir sua
própria identidade.

POLÍTICAS PÚBLICAS, POLÍTICAS DE ÁGUA E A MULHER RURAL


As políticas públicas podem ser entendidas como um curso de
ação do Estado, orientado por determinados objetivos, refletindo ou
traduzindo um jogo de interesses (FARAH, 2004). Por ser as políticas
públicas uma ação de governo, e por isso correspondente ao espaço público,
às mulheres, historicamente, não tinham participação e eram, geralmente,
relacionadas às atividades domésticas.
Considera-se que atualmente o movimento feminista tem
conseguido conquistas referentes às políticas públicas. Pode-se citar como
exemplo de avanço das mulheres no meio público, o Plano Nacional de
Políticas para as Mulheres – PNPM que diante das desigualdades de gênero
exigem ações transversais que contemplem a perspectiva de gênero
(BRASIL, 2006).
Mesmo tendo um avanço significativo da presença das mulheres
nas políticas públicas, ainda hoje, muitas são ignoradas fato que contribui
para alimentar uma desigualdade estrutural na relação de gênero, como
ocorre na gestão da água (FISCHER, 2008). A política de recursos hídricos,
segundo Fischer (2008), pode ser mais um exemplo em que à inclusão da
mulher vem se dar de forma tardia. Ao se falar dessa política no Brasil não se
pode furtar de uma descrição de suas principais características.
A política de água no Brasil vem ganhando evidencia desde os
anos 60 do século XX. Trata-se da adoção de instrumentos que regulem o uso
da água, poluição e administração. Até os anos 80 essa política era
centralizada na União. Na Constituição Federal de 1988 surge a necessidade
de criar um novo modelo de gerenciamento que se caracterizou por uma
gestão colegiada e descentralizada dos recursos hídricos sendo abordada no
âmbito da sustentabilidade, da conservação e da democracia, que
supostamente inclui as mulheres. Esse novo modo de gerenciamento foi fruto
da iniciativa dos segmentos municipais, da sociedade civil e usuários por uma
790
maior participação na gestão da água (COMITÊ DA BACIA HIDROGRÁFICA
DO RIO SÃO FRANCISCO, 2007). Ribeiro (2006, p.7) ainda diz que:
A mudança na legislação sobre os recursos hídricos do país gerou
alterações nas políticas de gerenciamento dos mesmos. Tais alterações
culminaram na criação de Comitês de Bacia Hidrográficas como uma
forma de se democratizar o sistema, pois os Comitês são órgãos
deliberativos considerados como um fórum de debates, ou até, como um
parlamento das águas.

Os comitês de bacias são formados por representantes do poder


público (federal, estadual e municipal), da sociedade civil e dos usuários de
água. Entre as atribuições dos comitês está a de definir como devem ser
empregados os recursos arrecadados com a cobrança do uso da água, a
aprovação do plano de recursos da bacia e a resolução de conflitos pelo uso
da água na bacia. Os comitês de bacias hidrográficas são órgãos colegiados
que têm papel deliberativo e podem ser oficialmente instalados em águas de
domínio da União e dos Estados (FRANK, 2008).
Em meados dos anos 90, o Congresso Nacional aprovou o Projeto de
Lei Nacional de Recursos Hídricos, que instituiu a Política Nacional de
Recursos Hídricos e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de
Recursos Hídricos. [...] os principais instrumentos dessa Política são: os
Planos de Recursos Hídricos, elaborados por bacia hidrográfica e por Estado;
o enquadramento dos corpos d'água em classes; segundo os usos
preponderantes da água, a outorga de direito de uso; e a cobrança pelo uso
dos recursos hídricos (MACHADO, 2003, p.123).
A Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei nº. 9433 de 8 de janeiro
de 1997) baseia-se nos seguintes fundamentos:
a água é um bem de domínio público; a água é um recurso natural limitado, dotado de valor
econômico; em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a
dessedentação de animais; a gestão dos recursos hídricos deve sempre
proporcionar o uso múltiplo das águas; a bacia hidrográfica é a unidade
territorial para implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos
e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos
Hídricos; a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e
contar com a participação do Poder Público, dos usuários e das
comunidades (BRASIL, 1997, Art. I).
Os objetivos da Política Nacional de Recursos Hídricos estão
dispostos na Lei das Águas:
assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de
água, em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos; a
utilização racional e integrada dos recursos hídricos, incluindo o
transporte aquaviário, com vistas ao desenvolvimento sustentável; a
prevenção e a defesa contra eventos hidrológicos críticos de origem
natural ou decorrentes do uso inadequado dos recursos naturais.

791
(BRASIL, 1997, Art. II).
A política pública de recursos hídricos destinada a região Semi-árida,
é idealizada, planejada, conduzida e efetuada a partir de uma visão de mundo
androcêntrica que tem, de modo geral, o viés masculino (FISCHER, 2008).
Tradicionalmente, a política pública de recursos hídricos, por se remeter ao
meio público, tende a ignorar a perspectiva de gênero na sua implementação
e gerenciamento (FISCHER, 2008). No entanto, de acordo com GWA (s/d,
p.1), “uma gestão efetiva, eficaz e equitativa dos recursos hídricos só é
alcançada quando mulheres e homens estão igualmente envolvidos nos
processos consultivos e também na gestão e implantação dos serviços
relacionados à água”.
Quando mulheres e homens partilham decisões na gestão da água os
resultados são: uma melhor utilização do tempo do dinheiro e dos
recursos, incluindo os recursos humanos, um grande e genuíno
envolvimento e compromisso com os usos múltiplos da água, aumento da
criatividade para conservar recursos escassos. Baixo custo, soluções
sustentáveis podem ser identificadas. Quando empoderadas, as
mulheres os usuários de água mais pobres se farão ouvir, o que é
necessário para uma gestão integrada da água” (GWA, s/d, p.1).
A gestão de recursos hídricos, de forma integrada e sustentável,
pode contribuir significativamente para a melhoria da eqüidade de gênero,
ampliando o acesso de mulheres e de homens aos serviços relacionados à
água. Isso significa o envolvimento de homens e mulheres em papéis
influentes em todos os níveis de decisões a respeito dos recursos hídricos
(GWA, 2003).
Reconhecer o papel do gênero na política de recursos hídricos
requer uma ampla base de participação e de consulta aos interessados para
que haja a gestão sustentável do recurso. Além do que, o desenvolvimento de
uma política de gestão de recursos hídricos pode ter diferentes impactos em
homens e mulheres, pois cada um utiliza-se da água de maneira diferenciada
(GWA, 2003).
Com relação ao Nordeste Semi-Árido, onde a mulher rural,
geralmente, está envolvida na questão da água, sobretudo, para o consumo
doméstico, uma análise dos aspectos do ambiente se faz necessária. “O
Semi-Árido brasileiro apresenta clima quente e seco com temperatura
elevadas com chuvas escassas e irregulares. Os solos da região são rasos,
de baixa fertilidade e a vegetação característica é a caatinga” (MELO, 2006,
p.176).
O Semi-Árido possui uma área geográfica de 982.563,3 Km²,
constituída por 1.133 municípios, população de 20.858.264 habitantes,
engloba maior parte da região Nordeste do Brasil mais parte do território dos
Estados de Minas Gerais e Espírito Santo (MELO, 2006).
De acordo com Superintendência de Desenvolvimento do
792
Nordeste – Sudene, o Semi-Árido é caracterizado pelas
precipitações médias anuais iguais ou inferiores 800 mm; Insolação
média de 2.800 h/ano; Temperaturas médias anuais 23 a 27 C; Solos,
maioria, areno-argilosos e pobres em MO; Cristalino – substrato
dominante; Limitações pluviométricas e baixa retenção dos solos; rios
temporários; Águas subterrâneas – bacias sedimentares ou cristalino
(SUDENE, s/d).

A atividade agrícola é significante para a economia da região,


principalmente a agricultura de subsistência que é sustentada pela água e
realizada por quase toda família, na qual a agricultora possui importante
papel (MELO, 2006). Nesse sentido, observa-se que a região semi-árida
brasileira sofre pelas suas condições geoambientais desfavoráveis,
provocando a carência de água para o consumo humano, principalmente, em
épocas de seca. Este problema é enfrentado, sobretudo, pelas mulheres
rurais que estão diretamente em contato com a água no manejo dentro de sua
casa, em atividades como a limpeza da casa, higiene pessoal e da família,
preparo dos alimentos, o cultivo agrícola e o cuidado dos animais de pequeno
porte, dentre outras coisas. Estas mulheres mantêm uma estreita relação
com a água, sendo praticamente as únicas responsáveis por esse recurso
natural no consumo familiar. Segundo Melo (2006), a mulher é quem
administra e controla a distribuição da água na casa.
A maior conseqüência das secas é a busca por água para o
consumo humano. Nessa época a demanda por esse bem aumenta nos rios,
nos açudes, nos poços, nas cisternas, nos barreiros e nas cacimbas. Muitas
fontes de água ficam em locais distantes das residências o que torna o
trabalho cansativo para as mulheres que precisam sair de suas casas para
irem ao encontro da água. Geralmente, elas vão a pé carregando baldes na
cabeça. Já para os homens a maior preocupação com a falta de água é a
perda total ou parcial da produção agrícola e animal (MELO, 2006).
OS PROGRAMAS DE ÁGUAS E SEU POSICIONAMENTO REFERENTE À
MULHER
Os programas de política de água no Brasil são voltados, na sua
maioria, para o Semi-árido com o objetivo de amenizar os efeitos da Seca.
São exemplos, o Proágua, o Projeto Água Doce, a Revitalização do Rio São
Francisco, dentre outros. Eles envolvem ações relacionadas à água para a
sua conservação e uso racional (FISCHER, 2008).
Mesmo existindo a notável participação direta da mulher rural no
manejo da água dentro da esfera privada e produtiva, ela não é pensada
como sujeito ativo dos programas governamentais relacionados à água
(MELO, 2006). A política pública voltada para os recursos hídricos não
contempla a questão de gênero e quando inclui, muitas vezes, ou faz de
793
maneira deficiente ou parcial. Assim, a política pública de recursos hídricos
acaba se tornando exclusiva dos homens agricultores, desvalorizando a
participação das mulheres agricultoras na esfera econômica. Além disso, as
mulheres praticamente não participam das decisões de âmbito coletivo que,
no meio rural, ocorrem geralmente nas Associações Rurais ou em outras
organizações sociais, instâncias formadas na maioria das vezes pelo sexo
masculino. Esse fato revela o tratamento social desigual entre os sexos visto
que não é contemplada a perspectiva de gênero (MELO, 2006).
Por esses programas não fazerem referência às mulheres rurais,
alguns órgãos financiadores acabam não criando estratégias que abram
espaço para as mulheres contribuírem com suas experiências. Isso acontece
porque a maioria das mulheres cala-se, deixando que seus maridos falem por
elas. Como escreve Fischer (2006), as mulheres se vêem desqualificadas na
gestão dos recursos hídricos e, por isso, geralmente, atribui ao homem o
exercício de representar seus interesses. Por isso, ainda é relativamente
pouco significante a presença de mulheres na gestão da política pública de
recursos hídricos e, quando estão, seu espaço de atuação, na maioria dos
casos, é micro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No estudo realizado, foi possível determinar que os órgãos
financiadores não se posicionam com relação à participação das mulheres
nos programas que envolve a política pública de água. Por outro lado, vale
salientar também que outros órgãos financiadores já estão inserindo a
perspectiva de gênero e exigindo dos programas a iniciativa de incorporar as
mulheres. É exemplo à exigência da Conferência das Nações Unidas sobre o
Meio Ambiente e Desenvolvimento (1995, p.363):
A comunidade internacional endossou vários planos de ação e
convenções para a integração plena, eqüitativa e benéfica da mulher em
todas as atividades relativas ao desenvolvimento [...]. Aprovaram-se
várias convenções, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas
Formas de Discriminação contra a mulher (resolução 34/180 da
Assembléia Geral [..] e convenções da OIT e da UNESCO, para acabar
com a discriminação baseada no sexo e assegurar à mulher o acesso aos
recursos de terras e outros recursos, à educação e ao emprego seguro e
em condições de igualdade.

Ainda diz o Instituto de Investigación de las Naciones Unidas para


el Desarrollo Social (s/d, p.12): “Apesar de que instituições como o Banco
Mundial se interessam agora nas desigualdades baseada em gênero de
algumas esferas institucionais [...], a atenção de gênero é seletiva e desigual
[...] os silêncios e omissões são espacialmente reveladores”.
O que se observa é uma dificuldade dos programas e órgãos
794
financiadores sobre a questão de gênero em reconhecer as mulheres rurais
como colaboradoras e gestoras na implementação e execução de política de
recursos hídricos.
Esse fato se vem reforçar com o conteúdo de algumas Atas que
tenham em pauta a água e o meio ambiente, tais como as Atas do Comitê de
Bacia Hidrográfica do Rio Capibaribe, da Associação dos Produtores Rurais
do Vale do Moxotó - Univale, Conselho Municipal de Defesa do Meio
Ambiente – CODEMA.
Na Ata da 1ª Reunião Ordinária do Comitê de Bacia Hidrográfica
do Rio Capibaribe, realizada em Recife, no dia 15 de maio de 2008, a
presença das mulheres corresponde a 28,6% e do sexo masculino 71, 4%.
Em outras sete Atas do Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio Capibaribe a
presença feminina corresponde a 26% e a masculina 74%. Nessas Atas as
mulheres, apesar de serem quantitativamente inferior aos homens, elas se
colocavam com mais consciência política no que se refere à conservação e
uso da água, como mostra o depoimento abaixo:
Descrição de um Projeto intitulado Replantio de Mangue, e que espera
replicar este projeto para mais 4 comunidades como umas das ações do
Comitê para o ano, além da criação de uma sementeira em Brasília
Teimosa, em parceria com a Compesa, em função do terreno da área que
tem a caixa d'água do bairro ser do mesmo para produzir mudas de
mangue e de Mata Atlântica (COMITÊ DE BACIA HIDROGRAFICA DO
RIO CAPIBARIBE, 2008, p.1).

Os dados da pesquisa da Aliança de Gênero e Água - GWA sobre


gênero na gestão de águas no Brasil, a partir das informações do Sistema de
Acompanhamento e Avaliação da Implantação da Política de Recursos
Hídricos no Brasil - Siapreh (2002/2003), mostram que as mulheres
participam destas, mas em desvantagem, em comparação com os homens
no que se refere à implantação e gerenciamento da política de recursos
hídricos no Brasil, como mostra as tabelas abaixo:

795
Fonte: Elaboração própria fundamentada nos dados da Siapreh (2002/2003).
* Número de instituições pesquisadas.

Um exemplo de desigualdade entre os sexos ocorre no Comitê da


Bacia Hidrográfica do Capibaribe localizado no Estado de Pernambuco. Os
dados também são semelhantes aos apresentados pela Siapreh. No Comitê
da Bacia Hidrográfica do Capibaribe os membros são a maioria homens,
como mostra a tabela:

Fonte: Elaboração própria fundamentada nos dados do Comitê da Bacia Hidrográfica do Capibaribe.

De acordo com esses dados, quanto aos cargos e a posição,


pode-se se afirmar que além de as mulheres estarem em número inferior com
relação aos homens, nota-se que, geralmente, as mulheres ocupam posições
de suplentes. Estes são cargos que permitem menor participação nas
decisões. Estes dados nos admitem afirmar, que elas têm menor poder de
decisão do que o homem com respeito ao gerenciamento dos recursos
hídricos.
Nas Atas realizadas pelo Comitê de Usuários do Vale do Moxotó
na área rural do município de Ibimirim – PE, a presença das mulheres,
geralmente, é insignificante ou nula, a exemplo das Atas dos dias 18 de
novembro de 2007 e 08 de dezembro de 2007. Em outras Atas apenas uma
796
mulher estava presente representando o Conselho
Administrativo. Nessas reuniões ela praticamente não se posicionou
conforme mostra as Atas dos dias 06 de maio de 2008 e 17 de abril de 2008.
Ata do dia 02 de dezembro de 2007 da Univale contou com um
número maior de mulheres em comparação com as outras Atas já
mencionadas. A presença feminina correspondeu à aproximadamente 15
mulheres num total de 120 participantes. Nessa mesma reunião a pauta
estava voltada para a eleição e posse do Conselho Administrativo. Na
composição dos eleitos apenas uma mulher fazia parte dos membros com o
cargo de primeira secretária.
Fundamentado no exame das Atas pode-se afirmar que as
mulheres rurais encontram ainda mais dificuldades na participação de
reuniões para decisões coletivas e consequentemente no gerenciamento dos
recursos hídricos. Ainda, agem mais passivamente, levantando outras
questões gerais que não estão de acordo com a temática da reunião e sem
promover a defesa das suas necessidades especificas de mulher.
Os dados analisados nos permitem afirmar que a
representação das mulheres na política pública de recursos hídricos é
inexpressiva, fato que tem fundamento na divisão sexual do trabalho. A
condição imposta às mulheres na sociedade patriarcal representa um dos
entraves para que elas assumam o gerenciamento da água. Além disso,
contribui para que elas tenham mais dificuldade em reivindicar suas
necessidades no âmbito público, pois, culturalmente, foram limitadas ao
âmbito privado.
Em relação às mulheres rurais, existe uma incoerência no que se
refere ao gerenciamento dos recursos hídricos, pois embora estejam em
contato direto no manuseio da água na esfera privada, demonstrando a
capacidade de gerenciarem questões relacionadas à água na esfera pública
não o fazem, pois sua experiência adquirida no processo histórico priva-a
dessa atuação. No entanto, pode-se constatar que a política de água vem
inserindo cada vez mais a abordagem de gênero, embora isso
não signifique que a mulher participe plenamente como sujeito ativo nas
decisões correspondentes à água. O que se observa, na verdade, é um
desafio para a política de água que precisa incorporar a perspectiva de
gênero, tendo em vista a inclusão da mulher, no processo de decisão dessa
política de forma que não sinalize a reafirmação do estereótipo que coloca a
mulher como figura do âmbito privado, mas sim demonstrar a existência da
capacidade das mulheres de gerenciarem as questões relacionadas aos
recursos hídricos na esfera pública.
Por fim, a inclusão das mulheres rurais nessa política, tendo o
foco a conservação e uso adequado da água, é de grande valia para o
797
ambiente natural, pois é notável que a inexpressividade das mulheres na
política pública de recursos hídricos impossibilita uma política de água
eqüitativa, sustentável e democrática. A incorporação da perspectiva de
gênero na política de água, de forma que as mulheres e homens sejam
reconhecidos como sujeitos ativos e políticos é imprescindível para uma
gestão efetiva dos recursos hídricos e para que de fato atenda as demandas
de água no Semi-Árido.

798
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801
802
AS MULHERES MARISQUEIRAS: vida e trabalho nas comunidades
ribeirinhas
Vanda Maria Campos Salmeron Dantas
O interesse de conhecer o trabalho das catadoras de mariscos,
mulheres simples, que têm no seu trabalho o sustento da família, decorre da
sua relevância na linha de pesquisa que desenvolvemos, e busca identificar,
hoje, a centralidade da categoria trabalho para os diversos grupos sociais,
observados os diferentes contextos; já estudamos essa questão na rede
pública de ensino, nas escolas da educação do campo, e agora junto a
populações ribeirinhas, sob o recorte de gênero. A pesquisa analisa o
cotidiano dessas trabalhadoras invisíveis que lutam para a sobrevivência da
família.
É nesta abordagem, que a pesquisa retratará a vida das mulheres
que pescam na lama do mangue, considerando sua relação com a natureza,
seus saberes para lidar com o manguezal: a natureza presente na sua vida
como fonte de alimento, trabalho, além de retratar todo um ritual presente na
busca do marisco: os mitos, os contos, as músicas, as vestimenta e o preparo
para a mariscagem.
É na representação da relação entre mulheres e o manguezal que
investigamos os saberes que envolvem a mariscagem. Saberes que não
estão relacionados aos bancos escolares, mas sim construídos através da
relação familiar, do contato com a comunidade, observações da natureza
valorizando uma aprendizagem prática e repassada, através da oralidade, de
pai para filho, pois muitas não tiveram acesso à escola. De acordo com Morin
(2004, p.26), devemos ter em conta o valor das culturas, a sabedoria, o
saber, os modos de fazer, de conhecimentos muito sutis sobre o mundo
vegetal e animal.
Os saberes locais ligados à população tradicional envolvem a
relação entre a mulher e a natureza. Todo o trabalho da mariscagem é feito de
acordo com o movimento da noite, do dia, do tempo e das marés. A influência
dos saberes não científico é primordial para o equilíbrio entre o mangue e a
mulher marisqueira, como é chamada pela comunidade.
Portanto, a pesquisa tem como campo investigativo os povoados
de pescadores denominados Pontal, Preguiça e Terra Caída no município de
Indiaroba, Estado de Sergipe, banhados pelo Rio Real divisa com o Estado da
Bahia, cujas populações vivem da mariscagem.
A metodologia adotada é do tipo etnográfico, direcionada para

_____________________________________________________________

1
UNIT – Universidade Tiradentes – Se - Grupos De Pesquisa; Políticas Públicas, Gestão Sócio
Educacional e Formação de Professor (Gpgefop) - Vandasalmeron@Yahoo.Com.Br

803
observações, descrições, análises das atividades realizadas no cotidiano,
complementadas pela história de vida, imagens, além de pesquisa
bibliográfica, entrevistas, reuniões com os grupos. O princípio metodológico
da pesquisa parte do cotidiano e trabalho das mulheres catadoras de marisco
observando os meios utilizados para a pesca do aratu. A partir dessas
observações empíricas, analisaremos os saberes de que se valem as
mulheres para lidar com a natureza, no intuito de respeitá-la, e, ao mesmo
tempo, adquirir sucesso nas pescarias, para, dessa forma, compreender o
seguinte: como é a história de vida delas; de que modo é pensada e
executada a arte de capturar o aratu; como se dá a relação da divisão sexual
do trabalho, levando em conta as diferenças de gênero; e qual o lugar
ocupado pela mulher na divisão do trabalho no seu contexto social.
A justificativa da escolha desse objeto de estudo deve-se ao
interesse que surgiu ao trabalhar na escola da região, na qualidade de
professora de estágio do curso de Pedagogia, como também a uma pesquisa
realizada pela professora da Universidade Federal de Sergipe, Assistente
Social, Poeta e Romancista Núbia Marques na década de 80 (século XX) que
sempre procurou mostrar à sociedade e aos seus alunos da Universidade o
trabalha das mulheres, as dificuldades pelas quais passavam e o descaso
dos poderes públicos, além de divulgar a cultura da comunidade através de
seus livros. Além dos relatos dos professores e alunos sobre a vida dos pais.
Nos depoimentos dos alunos, professores abordavam que a
mariscagem é uma prática contínua entre as mulheres da comunidade, vinda
de um contexto histórico transmitido de geração a geração, através do qual
aprenderam com os pais os saberes, as técnicas, a relação com o manguezal
para usufruir do momento adequado para a pesca, destacando-se, ainda, a
falta de opção de trabalho, além dos respectivos companheiros estarem
envolvidos com o alcoolismo ou as abandonarem; estes são os fatos que as
obrigaram a pensar em novas alternativas .
Essas mulheres com déficit no nível de escolaridade têm uma
tarefa árdua no decorrer de suas vidas, devido aos fatos mencionados, que as
fazem procurar outros meios de sobrevivência, pois sexo frágil é apenas o
estereótipo inserido na sociedade capitalista implantada numa divisão social
cruel para elas que ainda lutam pelos direitos de uma vida digna.
Na pesquisa, observamos que muitas ainda moram em casa de
taipa ou palha, dormem em redes ou mesmo no chão coberto por uma esteira
e não têm acesso ao ensino formal, devido a abandonarem os estudos no
intuito de contribuir para a renda familiar. Reclamam da ida ao mangue, pois
sentem dores - o reumatismo é freqüente principalmente nas mais velhas, por
ficarem muito tempo na lama.
Assim, embasamo-nos teórica e metodologicamente a fim de
analisar e refletir sobre o cotidiano destas mulheres no seu contexto social, de
804
onde retiram seu sustento no manguezal: um complexo vivo, como fonte de
alimento, relação dos saberes que ocorrem entre a natureza e a mulher
marisqueira, pois envolve um trabalho árduo, porém o único meio para ela de
sobrevivência e a sua compreensão de que foi uma bênção de Deus ter
nascido nas localidades do manguezal.
A base teórica que fundamenta nossa posição circunscreve–se
aos estudos de Beauvoir (1980), Mead (1967), Marques (1983), Morian
(2003), Lévi-Strauss (1989).
Este estudo tem também como objetivo a denúncia, como forma
de sensibilização, de que não é apenas na zona urbana que as
mulheres sofrem preconceitos e lutam para ocupar seu espaço; na zona rural
o silêncio sobre a vida destas mulheres marisqueiras tem condições de
opressão e miséria. De acordo com Marques (1983, p. 16), “chegam à idade
madura completamente gastas, mulheres que, com a idade de 40 anos,
aparentam 60 ou mais anos. Não têm segurança nem social, nem afetiva, a
vida é de uma brutalidade total com elas”.
Dessa forma, a pesquisa deve interessar-se também pela
individualidade e como esta se adapta e dinamiza o processo social, levando
em conta, para isso, os aspectos instintivos e racionais que determinam a
relação indivíduo–sociedade e o ambiente analisado.
Neste trabalho, o objeto de estudo não é totalmente estranho,
justamente por conhecer a realidade, devido a ter acompanhado de perto,
quando Secretária de Educação do município em 2004, o contexto cultural
abordado na pesquisa de campo.
Indiaroba, palavra indígena que significa Índia Bela, situa-se na
zona geográfica do litoral Sul do Estado de Sergipe, distando 100 km de
Aracaju, foi marcada pelas disputas entre Sergipe e Bahia. Limita-se ao Norte
e ao Sul, respectivamente, pelos rios Sagüi e Real. Município de porte médio,
clima quente no verão e úmido e frio no inverno. Toda a extensão dos 32 km
do rio Real no município de Indiaroba é moldurada por belos manguezais, um
dos principais do Estado de Sergipe. Eles representam um aglomerado de
árvores e arbustos que se equilibram sobre raízes expostas e fincadas nas
águas pastosas do mar e do rio, que ali se juntam e fervilham mil formas
minúsculas de vida, dando origem a quase toda a vida do mar.
A primeira região é denominada Pontal. É um povoado de
pescadores onde vivem da pesca e da agricultura, como também do turismo
devido à proximidade com o Mangue Seco-BA, o distrito é banhado pelo rio
Real e faz divisa com a Bahia, sendo uma região rica em manguezal
constituindo uma fauna diversificada de mariscos, crustáceos e peixes. A
outra região é denominada Preguiça e vive da pesca e da agricultura, também
é banhada pelo rio Real. As duas regiões apresentam características comuns
805
em relação à pesca do aratu, porém são diferenciadas no seu relevo. Já Terra
Caída é um pequeno povoado que também vive da pesca, da agricultura e do
turismo.
Neste breve relato que apresentamos o município onde estamos
realizando a pesquisa a qual conta as histórias de vida das marisqueiras que
dali tiram seu sustento; esta apresentação se torna fundamental para
compreendermos o contexto e direcionarmos as etapas do trabalho científico,
proporcionando a percepção da complexidade que envolve os saberes
presentes nos diálogos entre os grupos de marisqueiras: a relação mulher-
natureza, mulher-trabalho, mulher – companheira, mulher-mãe.
Um contexto diversificado de saberes construído por
observações, análises e invenções, como citou Seu Clóvis, velho pescador,
“São a sobrevivência da pescaria, tem que inventar - são invenções do
marisqueiro” “Inteligência sofredora”. É nesse contexto encantador, e ao
mesmo tempo melancólico, que desenrolaremos o nicho de conhecimento e
saberes que envolvem a mulher marisqueira.
MULHER MARISQUEIRA: complexidade no papel de ser mulher
Durante muito tempo, as diferenças biológicas foram usadas para
inferiorizar a mulher. O fato das mulheres terem o corpo diferente do dos
homens foi interpretado como sinal de fraqueza física e de incompetência
intelectual. Na sociedade perpetuou-se um sistema em que a população
feminina era vista como incapaz de cuidar de si própria, de seus negócios, de
sua vida. De acordo com Beauvoir (1949, p.125), desde o feudalismo até os
nossos dias, a mulher casada é deliberadamente sacrificada à propriedade
privada.
No contexto social pesquisado, a supremacia dos homens em
relação à mulher é presente na divisão do trabalho. O homem pesca e a
mulher, além de mariscar, é responsável por ajudar o companheiro no retorno
da pescaria, cuidar da administração do lar e da educação dos
filhos. Algumas, para complementar o orçamento familiar, fazem cocadas,
moqueca de aratu para vender aos turistas e nas feiras de Indiaroba-SE e em
Estância - SE, como também catam mangaba quando está no tempo e
prestam serviços domésticos para as pessoas que têm casa de praia na
comunidade.
As mulheres apresentam tarefas múltiplas no decorrer do seu
cotidiano, as responsabilidades como organizadoras do lar, educar os filhos e
servir aos companheiros persistem nas comunidades em que estão
inseridas, assinalando que a questão cultural persiste em qualquer meio
social: tanto urbano como rural.
Nas comunidades a divisão do trabalho na pesca é
806
representativa: o trabalho de pegar o aratu é sempre da mulher, a maioria dos
homens não pesca o aratu, eles pegam o caranguejo, o siri, camarão e o
peixe. O aratu ficou determinado para as mulheres. De acordo com o
depoimento de Seu Clóvis, “Toda vida foi assim”. “Para a mulher pegar aratu é
mais fácil”. Na opinião das marisqueiras é porque o homem não tem paciência
de ficar esperando horas para que o aratu pegue a isca e tem que ser de um
por um.
Isto mostra a influência dos papéis numa cultura de dominação
masculina: Mulher tem paciência, homem não! Como aborda Mead (2003,
p.26), a padronização do comportamento dos sexos à luz do temperamento,
com as presunções culturais de que certas atitudes temperamentais são
“naturalmente” masculinas e outras “naturalmente” femininas.
Assim, determinado pela cultura dos contextos, pegar aratu é um
trabalho destinado as mulheres. É uma tarefa árdua no decorrer das suas
vidas, mas representa a luta para sobreviver. Quem determina o horário do
trabalho na pesca do aratu é a maré: é a natureza presente numa relação de
respeito e combinação. Para a pesca do aratu, é utilizada uma vara feita dos
galhos de árvores, da qual tiram todas as folhas e amarram um cordão; na
outra extremidade colocam a isca que pode ser o próprio aratu morto, um
pedaço de caju ou mesmo retalho de pano molhado de lama e
uma lata para pôr o aratu, quando eles pegam a isca. As marisqueiras agem à
maneira do bricoleur, vocábulo utilizado por Lévi-Strauss (1976, p.32) para
designar “aquele que trabalha com suas mãos, utilizando meios indiretos se
comparados com os artistas” se faz valer do material existente para criar suas
invenções e facilitar o seu trabalho. Vão de barco remando em grupo de três
ou quatro e no manguezal se separam cada uma para um canto, também vão
andando pelo manguezal.
O solo do manguezal é salino e apresenta deficiência de
oxigênio, portanto predominam os vegetais halófilos, as suas longas raízes
permitem a sustentação das árvores no solo lodoso.
Devido ao convívio frequente com o mangue, as marisqueiras
sabem identificar o tipo de solo propício para mariscar.
O mangue duro é o que não atola e o mangue mole atola e é muito ruim
para sair. Como já estou mais velha não aguento o mangue mole, pois
sinto dores na coluna e nos braços, devido ao tempo que fico nos
galhos,sentada esperando o aratu pegar a isca. É ruim para sair com a
lata cheia de aratu.

Também tem o mangue branco que tem o pico - pico é uma raiz do
mangue manso. Essa raiz tem que ter cuidado, pois se pisar inflama o pé
porque fura. Mas, mesmo assim eu só vou catar aratu descalça, já estou
acostumada e tenho cuidado para não pisar no pico – pico. Inflama fica

807
sem poder pisar. A gente esquenta a vela e pinga no lugar ou passa
doutorzinho, usa chá de canudinho, usa a planta “anador” para aliviar a
dor. ( MARIZETE, 67 anos, 2009)

A biodiversidade se traduz em significativas fontes de alimentos


para as populações humanas, como também nesse ecossistema se
alimentam e reproduzem mamíferos, aves, peixes, moluscos e crustáceos.
Os manguezais localizados nas comunidades ribeirinhas
pesquisadas representam vida, beleza, encanto, mistério, perigos, trabalho
e fonte de vida para muitas pessoas que apresentam famílias numerosas
para sustentar. Sobre o mangue dizem as marisqueiras.
O mangue é o nosso sustento. Graças a Deus que nascemos perto do
mangue. Quando a gente não tem o que comer vai no mangue pega
caranguejo, siri, aratu e mata a nossa fome. É difícil a vida da gente, mas
foi o que Deus deixou para nós. (LOURDES, 2008)

Somos pobres temos que fazer de tudo. (EDILENE, 2009)

É um pai e uma mãe. Dá o pão a gente. ( JANETE, 2009)

A gente vive disso. A enxada e o mangue. Desde os sete anos que vivo da
pesca e quem me ensinou foi minha mãe, porque teve mais paciência do

que meu pai. A minha mãe é que pegava o aratu. (MARIA LÚCIA, 2009)

Gosto demais do mangue porque me sento numa baga acendo meu


charuto, começo a mexer as folhas da árvore e fico esperando o aratu,
fico à vontade, despreocupada, não tenho raiva. (MARIZETE, 2009)

Para as pessoas da comunidade o mangue é uma dádiva de


Deus, pois elas não passam fome. O mangue representa a “Mãe
Natureza”. Por isso respeitam e cultivam uma relação de saberes e
comportamentos baseados nas aprendizagens adquiridas no decorrer das
suas vidas e repassadas por uma longa tradição oral onde vivem como parte
de seu ecossistema, pois precisam ter conhecimento do seu mundo para
sobreviver. Um contexto de beleza e diversidade que encanta e ensina às
comunidades ribeirinhas.
É assim que se caracteriza o mangue, um lugar sublime que
transmite muita paz e onde as marisqueiras vão à procura dos aratus. De
acordo com Vannucci (2002), o “silêncio é tão majestoso quanto uma grande
cerimônia, e instintivamente o homem se adapta a ele.”
A marisqueira Marizete afirma “ O mangue me dá muita paz”.
Com relação à pesca, os manguezais produzem 95% do alimento que o
homem captura no mar. Devido a esse fato, a sua manutenção é vital para a
subsistência das comunidades pesqueiras que vivem em seus entornos,
além do que a vegetação serve para fixar os solos, impedindo a erosão e,
808
ao mesmo tempo, estabilizando a linha de costa.
No Pontal, Preguiça e Terra Caída algumas mulheres usam camisa
comprida, calça, chapéu e sapatos amarrados com tiras para não atolar na
lama, dessa maneira se protegem do sol, dos mosquitos e da frieza da lama,
outras vão descalças e passam uma mistura de gás com óleo de coco no
corpo para se protegerem dos mosquitos.
De acordo com a marisqueira: “A catinga do gás afasta os
mosquitos”. “Se usar só o gás penetra na pele e enxuga, já com o óleo fica
molhado, porque ele é muito oleoso.”
“Desde criança que a gente usa, atormenta tanto, engrossa a pele,
tem uma formigagem no corpo, coceira.” “É a necessidade”.
(LOURDES,2008)
As marisqueiras procuram dentro dos meios disponíveis da natureza
descobrir maneiras para amenizar as dificuldades encontradas na busca do
aratu, a própria natureza fornece material para suas “invenções”.
Também fumam para espantar os mosquitos do rosto. Iniciam o
hábito desde pequena quando começam a ir ao mangue; uma das
marisqueiras disse que começou a fumar com dez anos. Elas compram uma
bolsa de fumo e usam o papel branco do pacote da massa de milho. Para
fazer o cigarro tem toda uma etapa: rasgam o papel, depositam o fumo e
depois enrolam e colam com a própria saliva.
“É um cigarro ligeiro, termina logo e é fraco”. ( IZABEL, 2008)
Para Morin (2004), cada civilização possui um pensamento racional,
empírico, técnico e, também, um saber simbólico, mitológico e mágico. Em
cada civilização há sabedoria e superstições.
Assim, a pesca se torna um ritual, pois começam a cantar, a assoviar,
a gritar ou a bater uma folha na outra da árvore do manguezal para os aratus
saírem do buraco, só não podem se mexer senão eles vão embora. Uma das
marisqueiras diz: “É sofrido mais é um pouco divertido”. “Você canta, chora rir
até chegar a hora de vim”.
“Tem dias que é triste quando não pega nada, tem outros que é bom
porque pega o aratu”.
Também cantam músicas dentre elas destacamos:
Chega aratuzinho,vem pra minha isquinha.

Quando for de noite

Você está na panelinha. ( IZABEL ,2008)

Ururu, urru já vem o aratu

809
Ururu, uru, ururu aratu ( MARIZETE, 2009)

Comecei a namorar com o aperto de mão ,ó sereia

Venha cá meu aratu . ó sereia

Venha cá fazer favor, ó sereia

Venha receber lembrança que a linha te mandou , ó sereia

Que o balde te mandou , ó sereia ( JOANINHA,2009

As mulheres passam horas paradas ou sentadas nos galhos do


manguezal à espera da presa. É um trabalho árduo e suportam quietas as
picadas dos mosquitos. O término do serviço não é marcado por sua
vontade e sim pelos horários da maré. Têm que ficar atenta para saber o
momento de saírem; quando a maré enche é hora de irem embora. Um
retorno difícil, pois voltam com um saco cheio de aratu na cabeça,
correspondendo a mais ou menos 30 kg (200 aratus), enfrentando as
armadilhas do mangue; a lama torna difícil o caminho de volta ao barco devido
ficarem atoladas, pois a formação do terreno e o peso contribuem para ter
dificuldade de locomoção. Mesmo assim há toda uma arte em saber andar no
lamaçal, difícil para qualquer um de nós que não tem o artifício do equilíbrio de
saber se locomover, nesse terreno.
Como cita Conceição Almeida “A natureza me Disse” (2007) a
história de vida dos pescadores é de uma complexidade de saberes, no
observar a natureza como diz Chico Lucas na obra :aprendemos que
'conversar' com as pedras e ouvir o vento ajuda, muitas vezes, a amenizar as
dores da alma.
O trabalho da marisqueira está na fase inicial, o retorno para casa
pode ser bastante alegre quando pegam muito aratu ou triste quando a
mariscagem não dá o resultado esperado. O trabalho das mulheres
representa uma batalha em prol da sobrevivência, após a pesca do aratu vem
toda uma etapa que envolve a preparação de matar, quebrar o aratu para tirar
a carne e vender o produto final.
O estudo em andamento do cotidiano das marisqueiras nos
possibilita compreender o papel social, as relações de gênero e a divisão
sexual do trabalho que envolve o cotidiano das mulheres da lama.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
São mulheres que lutam para sobreviver, para cuidar dos filhos e
companheiros, mas não tiveram oportunidade de ter uma visão crítica da
sociedade, uma educação que as levassem a refletir quanto ao seu papel
social, lutar por seus direitos conquistados, como diz Morin “aprender a torna-
se cidadã”. A pesquisa está em andamento, porém percebemos que
apresentam um saber sobre o Meio Ambiente, sua vida que nos deixa
810
encantada e nos faz continuar a conhecer a sua história de vida e dar
visibilidade à condição humana que pode nos ajudar a compreender e
valorizar o conhecimento da complexidade: sua cultura e o seu saber.
REFERÊNCIAS
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do Piató: fragmentos de uma história .2ª ed. Natal: Editora da UFRN,2006.
BEAUVOIR,Simone. O Segundo sexo: Fatos e Mitos. Rio de Janeiro: Edição
Graal, 1984.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: A vontade do saber um. Rio de
Janeiro: Edição Graal, 1984.
LEFF. Enrique. Saber ambiental. Petrópolis /RJ: Vozes, 1998.
LÉVI – STRAUSS,Claude- O pensamento selvagem.São
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MARQUES. Núbia N. Mulheres x cultura de subsistência. Aracaju /SE:
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MORIN,Edgar . O Paradigma Perdido: a natureza humana.Portugal:
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_______, Edgar. Saberes globais e saberes locais: o olhar transdisciplinar.
Participação de Marcos Terena. rio de Janeiro: Garamond, 2004.
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VANNUCI,Marta. Os Manguezais e Nós: uma síntese de
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Editora da Universidade de São Paulo,2002.
VANDANA SHIVA. Monocultura da Mente: perspectivas da biodiversidade
e da biotecnologia.São Paulo: Ed. Gaia,2003.

811
A GESTÃO SOCIAL TEM DOIS SEXOS
Luciene Assunção da Silva
Desde a publicação dos trabalhos da antropóloga norte-
americana Margareth Mead (1901 – 1978), a antropologia feminista vem
discutindo a divisão sexual do trabalho e as relações de gênero. Buscando
mostrar que essas divisões não são conseqüência de heranças biológicas,
mas de uma organização cultural, ou seja de “um sistema integrado de
padrões de comportamento apreendidos, os quais são característicos dos
membros de uma sociedade e não resultado de herança biológica” (FROST:
1976, p 04).
Mead (1962) ao apresentar a obra Sexo e Temperamento em
Três Sociedades Melanésias - Arapesh, Mundugumor e Tchambuli, da Nova
Guiné em 1935 objetiva mostrar a divisão dos papéis sexuais masculino e
feminino que organiza as sociedades a partir da diferença entre homens e
mulheres. Essa divisão não incide em uma única forma de organização social
presente em todas as sociedades, mas a partir da seleção do “arco cultural”
de possibilidades da vida humana, cada cultura escolhe comportamentos,
eliminando outros, dando a eles significados simbólicos específicos,
encontrados tanto na especificidade das instituições quanto nos
comportamentos dos grupos e indivíduos. Incorrendo na riqueza da
diversidade cultural.
A diferença sexual (sexo), segundo Mead (1962), foi à causa do
agrupamento das atitudes “sociais em relação ao temperamento em torno
dos fatores evidentes das diferenças sexuais” (p 22). Portanto, atribui-se à
fisiologia dos sexos os elementos constitutivos que são vestidos pela
“roupagem” da cultura. Assim, todas as culturas tem “de algum modo
institucionalizado os papéis dos homens e das mulheres” (p. 25).
Na divisão do trabalho, no vestuário, nas maneiras, na atividade social e
religiosa – Às vezes em alguns destes aspectos, outras vezes em todos
eles – homens e mulheres são socialmente diferenciados, e cada sexo, é
forçado a conforma-se ao papel que lhe é atribuído. (MEAD, 1962, p. 25).

A diferença entre masculino e feminino e a divisão sexual do


trabalho se configuram, para Mead (idem), não enquanto matriz essencialista
e predisposição natural, mas fruto da educação de meninos e meninas na
mais tenra idade. “Só o impacto do todo da cultura integrada sobre a criança
em crescimento podemos atribuir a formação dos tipos contrastantes”. (p.
269). Conclui assim que a natureza humana é maleável, respondendo as
condicionantes culturais.
Porém, para que as sociedades consigam manter a forma
escolhida de diferenciar o masculino do feminino, é necessário condicionar o
temperamento das crianças através da educação promovida pelos adultos.
813
Assim, na definição da personalidade do sexo, por exemplo, toda criança será
educada conforme o visivelmente fisiológico, os meninos para superar o
medo e as meninas para demonstrá-lo. [...] devem ser atribuídas quase
inteiramente à diferenças de condicionamento, em particular durante a
primeira infância, e a forma deste condicionamento é culturalmente
determinada. As adronizadas diferenças de personalidade entre os sexos são
desta ordem, criações culturais às quais cada geração, masculina e feminina
é treinada a conforma-se. Persiste, entretanto o problema da origem dessas
diferenças socialmente padronizadas. (p. 269).
Os estudos da antropologia feminista mostram efetivamente a
existência da divisão sexual entre homens e mulheres, mas ampliam a
concepção analisada por Mead, no sentido de que a divisão sexual implica
em subordinação das mulheres sobre os homens em todas as sociedades da
vida humana. E que essa divisão não pode ser pensada como conformista e
fixa, sendo simplesmente as crianças “moldadas” para aceitar todos os
condicionantes da sua cultura. Outro aspecto importante que a antropologia
feminista vai tentar responder é com relação a “origem dessas diferenças
socialmente padronizadas”.
O reflexo da divisão sexual é verificado em todas as esferas da
vida social, principalmente na divisão sexual do trabalho, onde observou-se
que as atividades desenvolvidas pelas mulheres tem menor valor social em
comparação com as desenvolvidas pelos homens.
A explicação que a antropologia feminista busca para essa
diferenciação é apontada por Rosaldo (1979), Orter (1979), Chodorow
(1979) ao desenvolverem trabalhos em que mostram o que efetivamente
leva todas as sociedades a subordinar às mulheres ao homem, ou o
“segundo sexo”. Mesmo em organizações sócio culturais, em que a mulher
seja vista como importante, poderosa e influente, em relação a mesma
geração e status sócio econômico do homem, ela necessita de mecanismos
de reconhecido que a valorize culturalmente.
Apesar da subrodinação universal, existe em toda sociedade
algum tipo de elaboração para a divisão sexual e ”embora hajam grupos onde
os homens vestem saias e as mulheres calças, em todo lugar há tarefas,
maneiras e reponsabilidades caracteristicas, especialmente associadas com
as mulheres ou com os homens” (Rosaldo; 1979, p. 35).
Essa valorização é vivida até em sociedades onde a atividade
desenvolvidas pelas mulheres é a principal alimentação do grupo familiar.
Entre os Tchambuli, estudados por Mead, (1962) as mulheres vivem em
grupos, realizam a pesca e estabelecem trocas econômicas com outros
grupos, controlando toda a produção e a circulação dos produtos
necessários, assim como o trabalho doméstico relativo às crianças e a si
mesmas. Os homens vivem isolados, cada um em uma casa, fazendo sua
814
comida, sendo artistas, confeccionando ornamentos para o grupo e se
enfeitando para as mulheres; atividade que é largamente valorizada pelo
grupo. Ao mesmo tempo, através do mecanismo do casamento, são os
homens que escolhem as esposas para seus filhos, promovendo as alianças
entre os clãs. A “escolha” supõe aceitação prévia, sendo que é a mulher que
sai para o clã do marido, formando uma sociedade patrilinear.
Rosaldo (idem) e Orter; (idem) não atribuem ao biológico, a
explicação para a divisão sexual e a subordinação da mulher. Sendo apenas
uma das suas variáveis.
Embora não haja dúvida de que a biologia seja importante e a ociedade
esteja constrangida e dirigida em seu desenvolvimento por fatores de
natureza física, acho difícil perceber como esses dados poderiam induzir
a avaliações morais. A pesquisa biologica pode ilustrar a ocorrência nas
tendências e possibilidades humanas, mas não pode considerar a
interpretação desses fatos numa ordem cultural. Pode contar-nos sobre a
proporção das dotações dos grupos ou de indivíduos particulares, mas
não pode explicar o fato de que em todos os lugares as culturas tem
determinado o Homem como uma catogeria oposta à Mulher em valor
social e importância moral. (Rosaldo; idem, p. 39).

O universalismo da subordinação da mulher é um “fato pan-


cultural”. Porém as concepções culturais e simbólicas sobre as mulheres tem
uma vasta variedade. “Além disso, o verdadeiro tratamento das mulheres e
seu poder e contribuição relativos, variam muito de cultura à cultura e em
períodos diferentes na história das tradições culturais particulares” (Orter;
idem, p. 95).
Mas, qual a explicação que a antropologia feminista busca dar
para tal subordinação? O que homens e mulheres tem de diferente para que
a razão da cultura infira universalmente tais significados? A resposta para
tais indagações encontramos em Rosaldo (idem), Orter (idem) e Chodorow
(1979) que afirmam o fato de ser a mulher a primeira e principal responsável
em alimentar e cuidar dos filhos, estabelecendo um vinculo mais duradouro
com eles, as coloca em um tempo maior de dedicação na esfera do
doméstico, impedindo-a participar efetivamente da esfera do público. Já os
homens, “não tem um único comprometimento tão duradouro, tão
consumidor de tempo e emocionalmente tão submetedor – tão proximo de
parecer necessário e natural - quanto a relação de uma mulher com seu filho
pequeno” (Rosaldo; idem, p. 40). Os homens, assim, ficam mais livres para
pensar as instituições e as organizações da vida pública que insere mães e
filhos particulares.
É o corpo e a função de procriar naturalmente que especifica
as mulheres. Orter (idem) ao apontar a dicotômia entre natureza e cultura, a
primeira feminina e a segunda masculina, mostra três niveis em que o fato
815
absolutamente fisiológico tem importância na divisão sexual:
[...] o corpo da mulher e suas funções, na maior parte do tempo mais
envolvidos com 'especies de vida' parecem colocá-las mais próxima à
natureza em contraste com a fisiologia masculina que o liberta mais
completamente para assumir o esquema da cultura; (2) o corpo feminino e
suas funções coloca-a em papéis sociais, que por sua vez são
considerados como sendo de uma classe mais inferior aos dos homens
no processo cultural; (3) os pápeis sociais tradicionais femininos,
impostos por seu corpo e suas funções, lhe dão por sua vez, uma
estrutura psíquica diferente, que com sua natureza fisiológica e seus
papéis sociais é vista como mais aproximada da natureza. (p. 102)

A partir dos atributos fisiológicos, a cultura cria simbolos e


representações, dando significados aos papeis masculinos e femininos. Já
que os homens não tem os atributos corporais das mulheres, que beira a um
naturalismo, eles, de certa forma são mais livres para pensar a organização
cultural. Mas, para Orter (idem) não podemos reduzir a mulher a função
natural do procrirar e igualá-la a natureza, ela também produz e é produto da
cultura, pois a função do cuidar doméstico é também fruto da razão cultural.
Porém, mesmo que assumisse as razões práticas e
emocionais que conspiram na manutenção da mulher na esfera da natureza,
é possivel demostrar que suas atividades no contexto doméstico a colocariam
logicamente, de modo direto na categoria cultural.
Essa afirmação dar-se obviamente porque a mãe não apenas
vigia os filhos, ela é também responsável pelo início do processo de
socialização deles, ao iniciar a transformação dos récem-nascidos que são
simples organismos vivos, em seres sociais e culturais, ensinando-lhes
maneiras e comportamentos existentes na cultura a qual ela pertence. Para
Chodorow (idem) e Orter (idem), o cuidado com a meninas se prolonga até a
vida adulta, enquanto os meninos, ao tornarem-se adolescentes são
transferidos para os cuidados do mundo masculino.
Chodorow (idem) ao tratar da personalidade de meninos e
meninas, a relaciona com o papel sexual das mulheres com seus filhos,
incorrendo em diferenças em termos tratamento entre meninos e meninas. A
jovem, ao seguir a mãe, tem a possibilidade de ser uma “pequena mãe”,
transferindo o papel materno para a vida adulta sem problemas. A
existência, quando ocorre, de ritual de passagem da menina para a vida
adulta serve para solidificar o seu papel de mãe. Assim, as maneiras e as
atividades femininas são aparentemente mais faceis e naturais de
assimilação. Os meninos passam por um processo completamente
antagônico na medida em que, a partir da adolescência são transferidos para
os cuidados masculinos. Aqueles, com os rituais de passagens, estabelecem
rupturas com a esfera doméstica - privada/feminina ao se inserirem no
816
mundo do público/masculino. Para alcançar o status, socio cultural dos
homens os meninos são forçados a mostrar comportamentos como força e
coragem, não apenas para si próprio, mas para todo o grupo. 'Tornar-se'
homem é um feito, como afirma Orter (idem).
Para Chodorow, (idem) “a situação universal da educação da
criança, reforçada pelo treinamento do papel feminino e masculino,
produzem estas diferenças que são copiadas e reproduzidas na sociologia
sexual da vida adulta” (p. 79). Podemos ampliar a formulação da autora para
outra esfera da vida social, que é a divisão sexual do trabalho. Ela é
configurada e definida a partir dos atributos constríuidos socio, cultural e
simbolicamente para homens e mulheres, demarcando portanto, os espaços
a serem ocupados na divisão do trabalho, que inside em maior
desvalorização do trabalho feminino.
DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO E O TRABALHO SOCIAL
Vimos que a subordinação da mulher sob o homem é em
decorrência da sua maior proximidade à natureza atreladae atribuida a
reprodução. É ela que, na construção sócio cultural se encontra como
intermediária e mediadora na relação natureza e cultura. Evidentemente que
a representação simbólica atribuida às mulheres na esfera da divisão sexual
do trabalho o mesmo fenômeno se repete, ou seja, as atividades laboriais que
tem a mulher como principal representante e atuante são, em todas as
sociedades da vida humana, menos valorizadas em comparação com as
atribuidas e desenvolvidas pelos homens. Como mostra Orter (idem), mesmo
desenvolvendo atividades em conjunto com os homens, como a caça e a
coleta, às mulheres são vistas como coletoras, atividade considerada de
menor importância, por não requerer organização e planejamento.
O mesmo podemos verificar nas atividades da pesca artesanal.
Nas comunidades pesqueiras, as mulheres desenvolvem a atividade de
mariscagem, que inside em coleta de moluscos e crustácios na beira mar ou
mangues, sem a utilização da força fisica, nem a implicação de risco de morte.
Já os homens pescam, geralmente, em alto mar, o que incorre em risco de
morte e o ato da pesca, principalmente, com uso rede ou arpão, exige
dispêndio de força física, sendo portanto, força e coragem são imprescidíveis.
Porém, não é verdade afirmar que as mulheres não usam a força física. Em
algumas comunidades pesqueiras, verificou-se que após a coleta dos
mariscos, com grandes baldes cheios, as mulheres e as crianças, caminham
uma longa distância com o peso do balde sobre a cabeça, até chegar ao local
de limpeza, cozimento e cata dos mariscos. O que significa dizer que a maior
valorização do trabalho masculino sobre o feminino está na forma de como as
culturais constróem suas representações e significados. A valorização do
trabalho dos homens pescadores se cristaliza pelo maior valor de troca do
produto no mercado.
817
A mudança de modo de produção não alterou a desigualdade na
divisão sexual do trabalho. Diversos estudos, como de Elizabeth Lobo (1991),
Pena(1981) e Hirata (?), mostram que o trabalho feminino no processo de
industrialização é mais desqualificado em comparação com dos homens. A
desqualificação não é apenas referente aos postos de trabalhos, geralmente,
sem exigência de profissionalização, mas também em termos de
remuneração.
Segundo Sacks (1979), desde a industrialização, a mulher vem
se inserindo na vida extra doméstica, e ocupando maciçamente trabalhos
públicos e privados remunerados. No Brasil, no final do século XIX e início do
século XX, o processo de industrialização, demandou mão de obra para
operar as máquinas. Para suprir essa lacuna, o governo estimulou a entrada
de vários estrangeiros de países europeus que já estavam consolidados com
a industrialização.
No período, segundo dados do Censo de 1890, foram 119.581
mulheres e 231.731 homens que aportaram no “novo mundo”. As mulheres
se destacaram na industria téxtil, principalmente, em postos de trabalho de
menor qualificação e remuneração. Essas trabalhadoras ocupavam um
tempo excessivo de suas vidas, dedicando-se as tarefas laborais industriais.
Rago; (2000) afirma que, em algumas indústrias, a carga horária de trabalho
variava entre 16 e 18 horas diárias e o salário médio diário para homens
adultos era de 5$329 contra mulheres de 3$738, segundo Censo de 1920
(Pena: idem, p. 123).
E para termos idéia de como o trabalho feminino era
desvalorizado, além dos requisitos apontados acima, outros grupos também
eram recrutados para desenvolver as mesmas tarefas das mulheres, como
homens desempregados que viviam de forma miserável aos redores das
cidades do litoral e crianças abandonadas que moravam nos orfanatos.
(Pena; idem).
Além dos trabalhos nas fábricas, as mulheres passaram a ocupar
cargos em setores emergentes, como comércio, administração, bancos,
serviços social. Nessas áreas, os elogios eram grandes, todos relacionados
ao que se considera ser próprio da “natureza” feminina, como paciência,
tolerância e maior concentração nos trabalhos que os homens.
Lobo (idem) ao destacar a grande concentração do trabalho
feminino no setor terciário, afirma que os critérios que determinam a divisão
sexual das ocupações nesse setor remetem as representações simbólicas
que identificam as mulheres com os serviços sociais (educação, saúde,
assistência social).
O mesmo podemos verificar no trabalho de Carloto (?), que
aborda o setor social e a inferência ao trabalho feminino:
818
Segundo o setor de atividade, as mulheres estão concentradas
na prestação de serviços, no setor social, (...). Outro setor em expansão,
marcado pela presença de mulheres foi o emprego público, incluindo
atividades de ensino, saúde e previdência. Essas ocupações tidas como
“trabalhos de mulher” são consideradas de menor prestígio, com salários
inferiores aos dos homens, refletindo a condição de gênero. (p. 09)
Efetivamente, não podemos negar a importância do trabalho social na
sociedade contemporânea, mas isto não o coloca em uma posição valoridaza
frente ao capital, tanto quanto as atividades relacionadas diretamente à
produção. Lembrar de trabalho social é lembrar de desvalorização, não
monetarização e não-profissionalização, ou seja, “trabalho de mulher”,
“trabalho barato”.
A partir dos anos 1980, o trabalho social, através das
Organizações da Sociedade Civil (OSCs), como as ONGs - Organizações
Não-Governamentais etc., locadas no “terceiro setor da econômia”, vem
ganhando cada vez mais visibilidade pela emergência mais ampla de
problemas sociais como, desemprego, exclusão, violência etc. Vale salientar
que algumas ONGs se formaram com viés de militância política, como as dos
setores ligados aos movimentos feministas, educação popular etc. mas, com
o tempo esse foco perdeu a sua prioridade, com a cooptação do modelo
neoliberal de desenvolvimento.
No Brasil, Fischer; (2006) mostra que a partir da Constituição de
1988, a presença da sociedade civil organizada tornou-se mais visível. Mas
são as ONGs que vem chamando mais atenção nas discussões acadêmias.
Segundo dados do IBGE de 2004, elas representam 1,4% do PIB nacional,
envolvem um montante de 32 bilhões de reais e tem mais de 1,2 milhão de
pessoas atuando em mais de 300 mil organizações.
A expressão ONG – Organização Não Governamental, teve
origem nas Nações Unidas, quando foi necessário distingui-las das
organizações representativas de governos e setores privados. Já a
designação "terceiro setor" surgiu nos Estados Unidos, englobando todos os
tipos de organizações sem fins lucrativos. A autonômia e a participação
politica em problemas sociais destas organizações inferem componentes
diferenciadores dos setores públicos e privados. Mas a independência e
autonômia na realidade não é absoluta, pois estas instituições são
financiadas com recursos privados e público. (Fischer; 2006).
Vale frisar que muitas ONGs sobreviveram nos anos de 1980 e
190, com recursos da chamada cooperação internacional - fundos de
governos do mundo desenvolvido, destinados a ação social e transformadora
nos países pobres. Muito recentemente, passa a fazer parte da cultura das
ONGs a captação de recursos locais.
819
Conforme Gohn (2004), essas organizações foram favorecidas a
partir das transformações econômicas ocorridas na sociedade
contemporânea, com a consolidação da globalização da econômia. Para ela,
as ONGs, reestruturaram o velho modelo das associações voluntárias
filantrópicas para um novo modelo onde combinam o trabalho voluntário com
o trabalho assalariado, remunerando profissionais contratados, segundo
projetos específicos. Além disto, a autora mostra que a reestruturação do
Estado, da economia e da sociedade, promoveu nessas organizações novas
formas articulações com as políticas públicas para as áreas do social,
gerando um novo tipo de associativismo, de natureza mista: filantrópico-
empresarial-cidadão.
Boaventura de Souza Santos (2000) afirma que as ONGs
trouxeram novos protagonistas sociais ao cenário político social, e um dos
motivos para isto, foi o isolamento político do movimento operário e a difusão
social da produção que desencadeou o desocultamento de novas formas de
opressão, não mais assentadas nas relações de classes e sim
transclassistas, ou mesmo a sociedade como um todo, ultrapassando as
relações de produção. “Desde então, estes novos protagonistas se
organizam em Novos Movimentos Sociais (NMSs) e buscam intervir em
ações que questionam aspectos como a guerra, a poluição ambiental, o
racismo, o machismo etc., advogando um novo paradigma social mais
assente na qualidade de vida e na cultura.” (p. 258).
São novos protagonistas que na luta pela igualdade de direitos,
colocam-se na definição de movimento societal, que através da ação coletiva,
buscam a “afirmação e a defesa dos direitos do sujeito, da sua liberdade e da
igualdade” não estando atrelado a nenhum modelo de sociedade nem a
nenhum partido político”. Touraine (2003, p. 117)
O crescimento das organizações da sociedade civil terá um papel
chave no próximo milênio, no conjunto das relações entre o Estado e a
sociedade, é o que nos afirma Offe (1998).
A atuação de mulheres nas Ongs é expressiva. A aceitação deste
contingente é compreendida a partir de características próprias da “natureza”
feminina, como a sensibilidade, cooperação, cuidado com o social e
doméstico, exercendo profissões como assistentes sociais, pedagogas, além
de ser a maioria nos trabalhos de voluntariado.
Encontramos ONGs, que desde a sua formação atuam homens e
mulheres, são as organizações mistas, perfil central deste trabalho.
Em se tratando da feminilização do trabalho social, Sarmiento
(2004) afirma que, a presença feminina nas atividades e entidades do terceiro
setor é indiscutivelmente grande principalmente em áreas da saúde,
assistência social, capacitação e profissionalização. Pois, para a autora,
820
[...] as mulheres possuem uma relação muito forte com a parte
assistencial. Antes a mulher era muito presa por uma educação
patriarcal e sua oportunidade para ir no espaço público era por
meio de trabalhos de caridade nas igrejas. Muitas entidades,
ONGs e pequenas associações de mulheres começam a falar
agora a linguagem de direitos humanos, políticas públicas. Elas
passam a atuar mais na sociedade por meio destas associações.
Isso mexe na relação patriarcal. (SARMIENTO, p.6).

O mesmo pensa Luís Carlos Merege, coordenador do Centro de


Estudos do Terceiro Setor da Fundação Getúlio Vargas, para quem as
mulheres possuem uma formação, que facilita muitas ingressarem no terceiro
setor. Muitas são psicólogas, assistentes sociais ou ligadas a áreas da saúde.
Além disso, as lideranças surgem muitas vezes na própria comunidade, já
que as mulheres se destacam pela sensibilidade. (Samiento; idem).
Apesar da mulher se encontrar como maioria no terceiro setor da
economia. Encontramos ONGs em que a presença, tanto de homens quanto
de mulheres, é marcante. Algumas vezes atuando na mesma função, outras
estabelecendo uma relação de gênero hierarquizada. Porém, os estudos
sobre essas organizações ainda não se voltaram para discutir a relação de
gênero internamente, como se fossem entidades assexuadas, sem classe e
sem raça, como frisam Costa (1998) e Haraway (2004). Como exemplo,
podemos citar o trabalho de Fischer (2006) que busca traçar o perfil de
gestores sociais em duas instituições não governamentais de Salvador,
porém não analisa a categoria de gênero, de raça e classe, indicando que a
autora não as vê como importante para a compreenção da gestão social
implementada. Também Teodósio (2004), ao traçar a gestão de três ONGs
em São Paulo, não dá relevância às três categorias acima citadas. O que
efetivamente deixa nestes trabalhos lacunas de análises interpretativas.
Analisar ONGs sem dar conta da categoria gênero, incorre em
retomar os estudos androcêntricos desenvolvidos pela sociologia do
trabalho, criticados pelos estudos feministas. Podemos citar os trabalhos de
Souza-Lobo (1991) e Pena (1981) ao discutirem a existência de sexo na
classe operária, visibilizando a relação de gênero. Para Lobo (1991, p. 152):
As pesquisas tem evidenciado as assimetrias entre qualificação
masculina e feminina, promoção masculina e feminina, salários
masculinos e femininos. Tudo indica que essas relações se inter
sustentam. Ou seja, nem as práticas produtivas determinam as trajetórias
da força de trabalho masculina, nem as práticas reprodutivas determinam
com exclusividade as trajetórias da força de trabalho feminina, mas essas
trajetórias são resultado de múltiplas práticas construídas social e
historicamente através de modos de vida, representações e estratégias
de sobrevivência.
821
As pesquisas feministas passaram ter seu eixo de reflexão ”a
busca dos significados das representações do feminino e do masculino, as
construções culturais e históricas das relações de gênero” (Souza-Lobo,
1991; p. 187).
A presença de homens em espaços sócio, histórico e
culturalmente reservados às mulheres, incorre em um elemento importante
para se entender como “um mercado de trabalho sexualmente segregado faz
parte do processo de construção do gênero” (Jean Scott). Não pode ser
pensado a partir de elementos essencialistas, fixos, e muito menos analisar a
identidade de gênero como sendo construída inicialmente pela fisiologia
corporal, o sexo, mas buscar a retirada de qualquer elemento biológico na
constituição do “ser” mulher e do “ser” homem. (Nicholson, 2000).
Mesmo a cultura ao educar as mulheres, a partir da reprodução,
para desenvolver com mais propriedade trabalhos sociais, isso não implica
dizer que os homens não possam, ou não tenham competência para atuarem
nessa área. Evidentemente o modo de produção capitalista e o Estado
trazem no seu bojo a reestruturação de papeis ou a reestruturação de
identidades, rearranjando a sociedade e os indivíduos para que possam
suprir as demandas por eles requeridas. Podemos pensar nessa perspectiva,
o desenvolvimento de trabalhos sociais na contemporaneidade por homens.
A presença de homens em alguns perfis de ONGs, significa
pensar na possibilidade de desnaturalização do que se chama feminilização
do trabalho (Souza-Lobo; Idem). Como nos aponta Curado (2008) não se
pode negar que o trabalho na esfera do social traz elementos como afeto,
cuidado, altruísmo, envolvimento emocional, mas definir como
características presente no universo feminino, construídos a partir dos
atributos reprodutivos da mulher, é essencializar algo que a antropologia
feminista já mostrou ser conseqüência de elementos sócio, cultural, histórico
e simbólico, portanto possível de transformação.
Estudar a relação de gênero com a presença dos homens no
trabalho social pode nos ajudar a desnaturalizar esse tipo de atividade, bem
como discutir formas identitárias fixas e cristalizadas. Isso proque, como
apontado pela antropologia feminista, o gênero incorre em um processo de
construção socio cultural que diferencia homens e mulheres a partir dos
aspectos fisiológicos visivéis, mas que ao mesmo tempo não inside em
identidades individuais e consistentes.

822
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824
A DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO E SEUS REBATIMENTOS PARA O
ACESSO DAS MULHERES AOS DIREITOS PREVIDENCIÁRIOS

Amanda Kelly Belo da Silva


Lenilze Cristina da Silva Dias
Durante esta pesquisa, foi possível perceber que as
desigualdades de gênero – dos papéis construídos social e historicamente
para homens e mulheres mediante as diferenças biológicas – e suas
configurações existentes até os dias atuais, trazem sérios rebatimentos para
a emancipação da mulher, bem como à sua ocupação nos espaços de
trabalho e o seu acesso aos direitos da previdência social.
A divisão do trabalho utilizando o critério do sexo direciona
prioritariamente as mulheres para a esfera da vida privada e as
responsabilizam pela reprodução social, seja por meio do trabalho doméstico
ou por atividades extensivas ao mesmo, ainda que sejam efetuadas fora do
lar. Tais atividades, por não serem diretamente produtivas, são invisibilizadas
na sua importância para a garantia da produção social (esfera da
valorização).
No entanto, é importante ressaltar que os trabalhos referentes a
esfera do lar, considerados de responsabilidade específica das mulheres
como citado anteriormente, contribuem para a reprodução do capital por meio
da reprodução social e portanto, da força de trabalho indispensável à
manutenção deste sistema.
É importante destacar também que a reestruturação produtiva
que vem ocorrendo desde a década de 1970 até os dias atuais, devido a
exaustão do antigo modelo de produção, implicou no surgimento de formas
flexíveis do uso da força de trabalho, em uma enorme desregulamentação
dos direitos trabalhistas, e no crescimento da informalidade. Nesse contexto,
as mulheres foram as mais atingidas por essa flexibilização e
desregulamentação.
Na verdade, a precariedade sempre esteve associada ao
trabalho feminino, no entanto, com a reestruturação e flexibilização do
trabalho, essa precariedade se acirra, aumentando as desigualdades entre
homens e mulheres no que se refere à condição de trabalho e emprego, tendo
fortes efeitos no acesso destas aos direitos previdenciários.
Iniciamos então nossa pesquisa, trazendo um breve resgate
histórico sobre a previdência social brasileira, ressaltando a importância
desta na vida das mulheres de nosso país, objetivando a prevenção e
proteção contra os riscos sociais advindos do mundo do trabalho e de
algumas situações da vida. Apreendemos que a busca por estes direitos na
_____________________________________________________________

1
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio Grande
do Norte – UFRN. E-mail: amandakellyuf@hotmail.com
2
Graduanda do Curso de Serviço Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN.
E-mail: cristinadias24@yahoo.com.br

825
sociedade capitalista, não se configura como um fim em si mesmo, devido às
limitações inerentes a este sistema, mas como um meio para o alcance de
novas relações sociais e de produção, pautadas sobre as bases de uma
emancipação humana.
Discorrendo sobre as relações de gênero e patriarcado, e as
conseqüências destas relações que colocam a mulher em uma situação de
subalternidade, dominação e exploração em relação ao homem, para a
inserção desta nos espaços de trabalho. Posteriormente discorremos sobre a
divisão sexual do trabalho na contemporaneidade, inserida nos moldes da
reestruturação produtiva do capitalismo ocorrida a partir da década de 1970,
fazendo uma relação entre esta divisão sexual do trabalho e o acesso das
mulheres aos benefícios da previdência social.
Delineamos assim a pesquisa prioritariamente através de
consultas bibliográficas, documentais além da aplicação de questionários
com 14 mulheres atendidas pelo Centro de Referência Especializado da
Assistência Social - CREAS como instrumento de coleta de dados referente a
temática acima exposta, objetivando a realização de uma pesquisa empírica.
A escolha desta instituição para a realização de nossa pesquisa
em loco se deu devido ao fato de esta ser um local de atendimento a mulheres
com seus direitos violados representando assim um espaço rico para a
aplicação de nossos questionários.
BREVE RESGATE HISTÓRICO SOBRE A PREVIDÊNCIA SOCIAL
A Previdência Social na configuração que conhecemos hoje é
fruto de um processo histórico, que caminhou em consonância com as
mudanças no conceito e papel do Estado. É possível observar que com o
desenvolvimento da humanidade os indivíduos passaram a se preocupar
cada vez mais com a sua proteção contra riscos e necessidades sociais,
passando a desenvolver técnicas de proteção. No Brasil, inicialmente com a
solidariedade social, posteriormente com a incorporação desta proteção
como responsabilidade pública.
As hipóteses sobre o surgimento dos sistemas estatais de proteção social
se apóiam em relações de causalidade e, dentre elas, destaca-se a que
aponta a industrialização e a urbanização como responsáveis pela
generalização dos riscos sociais como acidentes de trabalho,
desemprego, doenças, velhice e morte, sem que as redes primárias de
proteção social, família e comunidade e associações de mútuos possam
atendê-los (ARAÚJO, 2004, p. 88).
Dessa forma, são criadas as primeiras medidas de proteção
social pública. Inicialmente como instituições voltadas para categorias
específicas que só beneficiavam algumas profissões mais influentes e
reivindicatórias à época, como as Caixas de Aposentadoria e Pensões em
1923, institucionalizadas pelo Decreto 4.682 conhecido como a Lei Eloy
Chaves, que com o passar dos anos, foi sendo expandida e passou a abarcar
outras categorias.
826
Nesse contexto, a Lei Eloy Chaves não traz diferenças
significativas quanto aos benefícios de homens e mulheres, mas também não
as exclui. As mulheres trabalhadoras passaram a ser regulamentadas pela
mesma legislação previdenciária que regia o trabalho masculino. O que não
contemplava suas especificidades, da mesma forma que não reconhecia a
opressão a que esta é submetida nos espaços de trabalho.
A previdência passou por diversas reformas, que optaram por
fundi-la aumentando o controle do Estado sobre os/as trabalhadores (as),
como a transformação de todas as caixas de aposentadorias e pensões em
institutos no período entre 1933 e 1960; e a unificação das instituições
previdenciárias em 1966 dando forma ao Instituto Nacional de Previdência
Social (INPS).
Ou fragmentá-la quando necessário, para uma forma mais eficaz
de controle de gestão. Como aconteceu em 1977 quando a base organizativa
da previdência foi descentralizada em três grandes entidades: o Instituto
Nacional de Previdência Social – INPS, o Instituto Nacional de Assistência
Médica da Previdência Social – INAMPS e o Instituto de Administração
Financeira da Previdência Social – IAPAS, melhorando segundo Araújo
(2004), o controle administrativo e permitindo uma melhor coordenação na
prestação de serviço aos usuários.
Nesse ínterim é importante perceber que a década de 1960 foi de
grande importância para as mulheres brasileiras. Tornou-se esta um período
de efervescência do movimento feminista, com grande aprofundamento de
reivindicações na década de 1970, questionando as desigualdades de
oportunidades e acesso entre homens e mulheres e o poder exercido pelos
homens em vários níveis sociais. A partir desse período e devido à
organização civil das mulheres a legislação trabalhista passou a enfatizar o
trabalho feminino e a previdência direcionou-se para a regulamentação
dessas conquistas.
Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, em um
contexto de redemocratização do estado, a previdência social passou a
integrar a seguridade social, juntamente com a saúde e assistência social. O
conceito de seguridade abrange a definição de seguro social, que limita o
acesso aos direitos a uma contribuição e a de assistência que busca a
universalização desses direitos. A previdência mais especificamente vincula-
se a uma lógica de seguro social, na qual a contribuição é que garante o
acesso.
Dessa forma, a previdência social brasileira visa a garantir
direitos elencados no artigo 201 da Constituição Federal. Exerce a cobertura
de determinados riscos e situações sociais (doença, morte, invalidez, idade
avançada, maternidade, desemprego, reclusão e necessidade de amparo à
família) aos indivíduos contribuintes e suas famílias, por meio da concessão
de benefícios e serviços, cobertos pelo Regime Geral da Previdência Social.
A previdência, nesse sentido de cobertura dos riscos sociais,
827
considerando as peculiaridades da mulher, devido a sua inserção nos espaços
públicos de trabalho e reivindicação por direitos, incluiu em seu sistema uma
legislação voltada para as suas necessidades, algumas ligadas a maternidade
e outras devido às relações construídas pela própria sociedade que relegaram
historicamente a mulher para uma situação de subalternidade e opressão, que
para uma relativa transformação necessitam ser incluídas na legislação
brasileira.
Direitos como, o salário maternidade que se tornou benefício
previdenciário em 1974, garantindo descanso remunerado antes e após o
parto, a inclusão da empregada doméstica entre os segurados obrigatórios da
previdência em 1972, a diferenciação de aposentadoria para homens e
mulheres assegurada na Constituição Federal de 1988, e as possibilidades de
contribuição como segurada facultativa, pelas donas de casa a partir de 1991 e
em 2001 com uma alíquota reduzida de 20 para 11%, nos despertam para a
regulação previdenciária da mulher considerando as suas especificidades,
regulamentando espaços de trabalho mais ocupados por mulheres, devido as
suas responsabilidades com o trabalho de reprodução social, e historicamente
com menos acesso a direitos.
Paralelo a isso, com o advento do neoliberalismo no Brasil, mais
precisamente na década de 1990, e a crise no avanço da proteção social, a
previdência passou por novas reformas que, adequando-se aos ajustes
necessários ao desenvolvimento neoliberal, visando o corte de gastos
públicos, restringiram direitos sociais conquistados.
Embora a previdência tenha incluído a mulher desde seus
primórdios e muitos direitos tenham sido conquistados ao longo da história, o
princípio da igualdade entre homens e mulheres ainda está distante de ser
aplicado ao mercado e às relações de trabalho. A divisão do trabalho utilizando
o critério do sexo se constitui uma barreira para a igualdade de acesso e
permanência na previdência.
GÊNERO E A DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO
Desenvolvendo um breve resgate histórico dessas relações, é
importante ressaltar que gênero é o termo utilizado na contemporaneidade
para se definir, discutir e questionar a construção histórica, social e cultural
dos papéis, do “ser homem” e do “ser mulher”, sendo possível perceber que,
historicamente, foi construída uma diferenciação entre esses papéis
masculinos e femininos.
Cada feminista enfatiza determinado aspecto do gênero, havendo um
campo, ainda que limitado, de consenso: o gênero é a construção social
do masculino e do feminino (SAFFIOTI, 2004, p. 45).
As mulheres, nessas relações de gênero, possuem uma posição
de subalternidade em relação aos homens que pode ser visualizada na
_____________________________________________________________

3
As disposições da Lei Eloy Chaves, regulamentavam a proteção de homens e mulheres. Foram criadas
para os empregados das estradas de ferro sem grandes distinções relativas ao gênero;

828
exclusão ou no acesso desigual a oportunidades.
Algumas feministas não se sentido contempladas apenas pelo
termo analítico gênero – que compreende também relações igualitárias –
trouxeram ainda para a pauta de discussão o conceito de Patriarcado, termo
que vem da palavra pai ou de chefe da família, no intuito de desvelar as
relações de poder e dominação do homem sobre a mulher com base material,
lhes renegando a uma interação subordinada no convívio social abrangendo
não apenas a família, mas a sociedade como um todo.
Para os estudiosos das diferenciações de gênero, a propriedade
privada fortalece e perpetua as estruturas familiares que se formam sob a
ideologia patriarcal de opressão feminina. Nela ocorre a privatização do
trabalho socialmente considerado feminino, destinando-o a realização na
esfera do lar.
Dessa forma, o capitalismo – modo de produção ao qual estamos
inseridos – mescla-se ao patriarcado, e tira proveito dele, uma vez que
destina as mulheres ao desempenho de funções importantes para a sua
manutenção.
O trabalho da mulher no interior do lar, ou seja, na esfera de
reprodução da vida social e humana, é invisibilizado no que se refere a sua
importância e desconsiderado como produtor de riquezas. Isso ocorre,
devido a este ser um trabalho que se desenvolve fora dos contornos do
mercado, que de acordo com Nobre e Farias (2003), não produz valores de
troca, portanto é um trabalho não mercantil.
No entanto, produz valor de uso, exigindo da mulher um grande
dispêndio de tempo e esforço físico para desempenhar tarefas concernentes
à alimentação, vestimenta, segurança social, cuidados, dentre outros, que
consideramos representar um esforço reprodutivo extremamente necessário
para a subsistência da sociedade capitalista.
O capitalismo possibilita também a inserção da mulher no setor
de produção de riquezas, direcionando-as prioritariamente para trabalhos
considerados de natureza feminina, ou seja, trabalhos que necessitam das
habilidades atribuídas primordialmente as mulheres, considerando seu
trabalho inferior ao do homem e com características específicas que
remontam a desigualdade de oportunidade entre os diversos trabalhos como:
a relação entre as atividades do trabalho produtivo e o trabalho de reprodução
_____________________________________________________________

4
A proposta neoliberal foi ganhando terreno no mundo a partir da década de 1970 com a crise do
capitalismo e do Estado de Bem Estar que vigorou nos países capitalistas desenvolvidos. O mundo passou
por uma profunda recessão e as idéias neoliberais ganharam terreno como uma das saídas para essa
crise, em conjunto com a reorganização da produção. No entanto, devido a muitas resistências da classe
trabalhadora organizada esta ideologia só passou a ser implementada no Brasil a partir da década de
1990, com a instauração de uma desesperança na eficácia do Estado. A ideologia neoliberal centra-se em
manter um Estado forte no controle do dinheiro, mas fraco nos gastos sociais e nas intervenções no
mercado. Traz dessa forma a exigência de diversos ajustes estruturais objetivando restringir gastos com o
social e o trabalho. Para um maior aprofundamento sobre a discussão ver Pós-neoliberalismo: As políticas
sociais e o Estado democrático, Emir Sader e Pablo Gentile (org.), 1995.
829
social.
Quem está na esfera pública tem necessidades privadas. São as
mulheres, no modelo capitalista de duas esferas dicotomizadas, as
responsáveis pela satisfação dessas necessidades. Portanto, estando ou
não no mercado de trabalho e na atividade política, as tarefas domésticas
continuam sendo, basicamente, de sua responsabilidade (Ávila, 2005, p.
76).
É importante observar que essa divisão do trabalho baseada no
sexo possui origens anteriores ao sistema capitalista, e passa a ter novas
configurações quando inserida nesse modo de produção. É um fenômeno
histórico e social, que se transforma e reestrutura de acordo com a sociedade,
o tempo o qual faz parte, e os interesses que o envolvem.

A DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO E SEUS REBATIMENTOS PARA O


ACESSO DAS MULHERES À PREVIDÊNCIA SOCIAL
Para analisarmos a divisão sexual do trabalho na
contemporaneidade e seus rebatimentos no acesso das mulheres aos
direitos previdenciários, se faz extremamente necessário considerarmos os
efeitos da chamada "flexibilização" ou "acumulação flexível" para as relações
de trabalho e a organização da produção.
De acordo com Antunes (2007), foi o quadro crítico que se
instalou a partir dos anos 1970, que expressou uma crise no padrão de
acumulação taylorista/fordista e por conseguinte uma crise estrutural do
capitalismo que se estende até os dias atuais, que ocasionou um amplo
processo de reestruturação neste modo de produção, visando a manutenção
de sua dominação societal. Assim, uma série de transformações foram
implementadas como alternativa a esta crise estrutural, como nos mostra
Antunes adiante.
O capital deflagrou, então, várias transformações no próprio processo
produtivo, por meio da constituição das formas de acumulação flexível, do
downsizing, das formas de gestão organizacional, do avanço tecnológico,
dos modelos alternativos ao binômio taylorismo/fordismo, onde se
destaca espacialmente o “toyotismo” ou o modelo japonês (ANTUNES,
2007, p. 47).
Essa flexibilização trouxe a exigência de uma mão de obra super
qualificada, multifuncional, polivalente, capaz de realizar diversas tarefas ao
mesmo tempo, dentre outras exigências. No entanto o que é necessário para
_____________________________________________________________

5
Ressaltamos que a busca por estes direitos na sociedade capitalista não deve se configura como um fim
em si mesmo, devido às limitações inerentes a este sistema, mas como um meio para o alcance de novas
relações sociais e de produção, pautadas sobre as bases de uma emancipação humana.
6
Utilizamos desta divisão entre público e privado por compreendermos que esta divisão auxilia no
entendimento da discussão de gênero, embora compreendamos que ela em muitos, se configura como
universal e a-histórica;
830
nós observarmos aqui, é o lado obscuro que essa flexibilização trouxe.
As mudanças geradas no interior do processo produtivo se
caracterizaram essencialmente por uma intensificação da exploração da
força de trabalho de homens e mulheres, uma vez que flexibiliza a compra e a
venda desta força de trabalho. As mutações ocorridas resultaram em uma
enorme desregulamentação dos direitos trabalhistas e previdenciários, uma
vez que estes dependem de uma relação de trabalho formal, regulamentado
pelas leis vigentes no país (com uma intensa modificação dessas relações de
assalariamento, devido a flexibilização na compra da força de trabalho).
Resultaram também em uma maior fragmentação no interior da classe
trabalhadora e na precarização e terceirização do trabalho.
Outra característica dessa reestruturação que é a substituição da
mão de obra formal pelo trabalho informal, devido a onda de desemprego
resultante do crescimento tecnológico e da diminuição de mão de obra nas
empresas, que passam a buscar cada vez menores vínculos de
trabalhadores em sua empresa.
Nesse contexto, as mulheres são as mais atingidas por essa
desregulamentação e informalização do mundo do trabalho. Na verdade, a
precariedade sempre esteve associada ao trabalho feminino. Os trabalhos
mais voltados para as mulheres historicamente sempre tiveram um caráter de
maior desvalorização e desregulamentação.
Um importante fator a destacar é que na década de 1990 e no
início dos anos 2000 aconteceu um considerável crescimento da atividade
feminina. De acordo com o IBGE, citado por Hirata (2008), as taxas de
atividade feminina aumentaram de 47% para 50,3% o que significou que mais
da metade da população feminina, estava trabalhando ou procurando
emprego em 2002.
No entanto, como citamos anteriormente, sempre direcionadas a
trabalhos mais precarizados. É válido ressaltar também que isso ocorre de
forma bipolarizada, por um lado, existe uma pequena elite de mulheres
ocupando postos extremamente qualificados e valorizados. De outro,
mulheres que ocupam postos informais, precários quanto as relações e
condições de trabalho, desvalorizados representando estas a grande
maioria.
O acirramento desta situação é fruto da reestruturação produtiva.
Onde a precarização pode ser descrita tanto em relação às novas formas de
emprego criadas, quanto em relação às condições de trabalho em função do
enfraquecimento ou perda de direitos sociais, de prevenção e de reparação
dos riscos. De acordo com Hirata (2008, p. 66) “No que tange à ocupação da
mão-de-obra brasileira na década de 1990, os dados das Pnads sinalizam
para a persistência dos já conhecidos padrões diferenciados de inserção
feminina e masculina segundo setores ou grupos de atividades econômicas.”
O principal setor responsável pela inserção da mão-de-obra
feminina na contemporaneidade é o setor de serviços, com maior
831
concentração na educação, saúde, serviços sociais, serviços domésticos e
outros serviços coletivos. Uma considerável parcela destes situados em
situações de informalidade e precariedade extrema.
De fato, nos períodos mais recentes, observou-se além do
crescimento de formas mais flexíveis de contratação de trabalho, a queda dos
níveis de geração de emprego e renda formais, o que leva as/os
trabalhadoras (es) a se refugiarem em atividades ou empregos informais,
sendo possível afirmar que, no Brasil, é significativa a presença de mulheres
nesse setor, no qual trabalham sem proteção trabalhista, sem carteira
assinada, com tempo prolongado, executando as atividades nas ruas ou a
domicílio. É um trabalho sem regulamentação e, portanto sem direitos
trabalhistas e previdenciários.
Dessa forma apreendemos que o fato da mão de obra feminina
inserir-se nos espaços de trabalho principalmente no setor de serviços, esta
participa do setor da produção capitalista prioritariamente através de uma
relação de terceirização, trabalho autônomo e precário. Apreendemos
também que devido a grande ausência de um trabalho formal, muitas
mulheres refugiam-se em trabalhos assalariados que situam-se na
ilegalidade, ou seja, sem carteira de trabalho assalariada e sem vínculo
empregatício. Esses fatores prejudicam o acesso destas aos benefícios da
previdência social.
No entanto o acesso não é o único entrave para a mulher relativo
aos direitos da previdência social. A própria legislação previdenciária quando
regulamenta o trabalho feminino, e as desigualdades deste, fruto das
construções históricas discorridas anteriormente (a divisão do trabalho
baseado no sexo), o faz sob uma perspectiva da subalternidade deste.
Devido o aprofundamento das lutas do movimento feminista e de
mulheres, muitas reivindicações destas foram abarcadas pela legislação
previdenciária, no entanto não segundo uma perspectiva da classe
trabalhadora, mas sim sob a perspectiva da ideologia dominante. Mantendo
sempre as preocupações com a manutenção dos privilégios desta classe e
com a retenção nos gastos com o social e o trabalho Consideramos como
ganhos neste âmbito a regulamentação do benefício salário maternidade que
se tornou benefício previdenciário em 1974, que prevê de 4 a 6 meses de
descanso remunerado a mulher no período de gestação e parto. Como
também a conquista da diferenciação na aposentadoria entre homens e
mulheres assegurada na Constituição Federal de 1988, no que se refere a
idade e ao tempo de serviço. A luta pela manutenção dessa diferenciação
refere-se hoje à compreensão da intensificação do trabalho da mulher
causada pela dupla jornada de trabalho desenvolvida por esta, trabalho
público e privado.
A inclusão da empregada doméstica entre os segurados
obrigatórios da previdência em 1972 é outro ganho que pode ser citado, uma
vez que de acordo com Hirata (2008), este trabalho é realizado em 90% dos
832
casos por mulheres. No entanto esta é uma segurada obrigatória diferente
das demais. É apenas em 2001 que as empregadas domésticas passam a ter
direito a receber o Fundo de Garantia Por Tempo de Serviço – FGTS e
também ter acesso ao Segura Desemprego, mas o fazem ainda apenas se o
empregador fizer a opção por esta contribuição, o que se percebe fortemente
e que na maioria dos casos isso não ocorre.
Discutindo sobre a situação das “donas de casa”
compreendemos que estas podem contribuir para a previdência desde 1991,
como seguradas facultativas, ou seja no mesmo patamar que estudantes e
desempregados. Em abril de 2007 é promulgada uma Emenda Constitucional
que regulamenta que a alíquota de contribuição passe de 20 para 11 %. Para
as “donas de casa”
Mediante o exposto apreendemos algumas formas sob as quais a
divisão sexual do trabalho na sociedade capitalista afeta o acesso e direitos
das mulheres relativo a previdência social brasileira.
Resultados da Pesquisa Empírica
No sentido de desvendar a realidade desejada, buscando a
obtenção de dados mais consubstanciais para embasar nossos
argumentos, realizamos uma pesquisa empírica objetivando desvendar
especificidades da inserção desigual da mulher nos espaços de trabalho,
fator acirrado na contemporaneidade pela reestruturação produtiva e seus
rebatimentos para o acesso destas aos benefícios da previdência Social.
Utilizamos para tanto a aplicação de questionários, formado pela combinação
de perguntas fechadas – perguntas com alternativas de respostas fixas e
preestabelecidas – e abertas – perguntas que levam ao entrevistado a
responder com frases ou orações – com um grupo de 14 mulheres atendidas
pelo Centro de Referência Especializado da Assistência Social - CREAS, no
município de Parnamirim, situado na Grande Natal, selecionadas de forma
espontânea.
Do total de mulheres entrevistadas 50% delas encontravam-se
empregadas, o que revela uma forte participação da mulher no trabalho
remunerado. A pesquisa nos revelou que 55,55 % das mulheres que
possuíam um trabalho remunerado, situavam-se no setor formal de trabalho,
assegurando dessa forma, os direitos previdenciários e do trabalho. Das
mulheres que entrevistamos possuidoras de um trabalho remunerado, 44,45
% situavam-se no setor da informalidade.
Das mulheres inseridas no mercado de trabalho formal,
percebemos que as principais funções desempenhadas por elas
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7
Esse binômio fordismo/taylorismo é entendido como o processo de trabalho que se consolidou e perdurou
forte até meados da década de 1970. Possuía como elementos básicos a produção em massa e
homogênea; o emprego também em massa e concentrado em grandes fábricas, através do controle dos
tempos e movimentos dos operários pelo cronômetro Taylorista, com produção em série, caracterizada
pela fragmentação das funções operárias.

833
concentravam-se em torno de profissões como, professora, enfermeira,
recepcionista e vendedora de loja. Se nos detivermos nessas profissões para
análise, poderemos afirmar que consecutivamente elas são profissões que
se vinculam a atividades, que ressaltam prioritariamente (não unicamente)
qualidades femininas desenvolvidas no interior do próprio lar.
Dentre as que estavam inseridas no mercado de trabalho informal
as atividades desenvolvidas concentraram-se no trabalho doméstico e no
setor da estética (cabeleireiras). Analisa Boschetti (2006), que em 1990 o
maior índice de trabalhadores sem carteira assinada encontrava-se entre a
população com baixo rendimento, acontecendo o inverso entre os
trabalhadores com salários mais elevados.
Dessa forma é possível perceber que parte das mulheres, com
condições de vida mais pobres e trabalhos e remunerações mais precárias,
com grande necessidade de proteção social, estavam excluídas desses
direitos devido ao trabalho não ser regulamentado.
A previdência estabelece como lógica de acesso aos direitos
previdenciários à necessidade de efetivação de uma contribuição. Em nossa
pesquisa descobrimos que 71,42 % das mulheres não contribuem para a
previdência. Desse percentual, 22,22 % por estarem desempregadas, 33,33
% por serem “dona de casa”,e não possuírem renda para contribuir como
seguradas facultativas.
Na nossa pesquisa descobrimos que 71,42 % das mulheres não
contribuem para a previdência. Desse percentual, 22,22 % por estarem
desempregadas, 33,33 % por serem “dona de casa”, seu trabalho em casa
não ser considerado um trabalho economicamente ativo, e não terem
possibilidade de contribuir como seguradas facultativas. Das entrevistadas
11,11 % trabalham como autônomas, no entanto, não contribuem
individualmente para a previdência. Delas 33,33 % trabalham como
empregadas, no entanto no mercado informal (nesta situação se
concentraram 100% das empregadas domésticas entrevistadas.
Através da aplicação dos questionários, perguntamos as
mulheres entrevistadas se conheciam os benefícios concedidos pela
previdência, e descobrimos que 57,14 delas declararam conhecer alguns
benefícios, enquanto outras 42,86 % afirmaram não conhecer nenhum deles.
Dessa forma, através da realização desta pesquisa empírica,
compreendemos a importância dos direitos previdenciários para a proteção
da vida e do trabalho da mulher. A previdência, passou a abarcar direitos
conquistados pelas mulheres vinculados ao trabalho, em suas lutas por
igualdade entre os sexos, sem desconsiderar as especificidades destas.
Mesmo sob uma perspectiva utilitária ao capital esses direitos alcançam na
contemporaneidade um grande contingente de mulheres inseridas no
trabalho formal e contribuintes da previdência.
Percebemos também que a forte precarização do trabalho
feminino, seguido dos grandes níveis de informalidade e os encargos da
834
mulher com o trabalho de reprodução social, trouxe uma série de
especificidades para a inserção da mulher na previdência.
Estas especificidades propiciaram a existência de um grande
número de mulheres sem possibilidades efetivas de contribuição à
previdência e que, portanto não tem acesso à esses direitos e ainda mulheres
que desconhecem a existência e o objetivo desses benefícios.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pesquisar essa temática possibilitou-nos desvendar a posição de
subalternidade da mulher em relação ao homem, historicamente construída,
e sua desigual ocupação nos espaços de trabalho na sociedade capitalista
contemporânea, bem como os rebatimentos dessas relações para o acesso
das mulheres aos direitos previdenciários.
É importante considerar que muitas conquistas foram alcançadas
pelas mulheres referentes ao mercado de trabalho e aos benefícios da
previdência como foram citados ao longo desta pesquisa. A luta dos
movimentos de mulheres, por igualdade de inserção nos espaços públicos e
justiça nas relações de trabalho, provocou uma maior visibilidade sobre a
questão fazendo com que as reivindicações expostas fossem abarcadas pela
Lei.
No entanto, tivemos a oportunidade de constatar que, embora
muitos direitos tenham sido conquistados ao longo da história, o princípio da
igualdade ainda está distante de ser aplicado ao mercado, às relações de
trabalho entre homens e mulheres, e ao acesso à direitos. A
divisão sexual do trabalho continua se constituindo uma barreira para a
construção de relações de igualdade e autonomia para as mulheres.
No âmbito da produção e reprodução social, foi possível ainda
observar que a globalização e a reestruturação produtiva agravam ainda
mais a situação de subalternidade das trabalhadoras, implicando na perda de
direitos trabalhistas e previdenciários. Percebemos que esses dados são
agravados ainda quando existem variáveis como a classe social, a
escolaridade, o estado civil, a raça e a aparência.
Entendemos ainda que o fato dos serviços do lar serem, devido
as construções históricas, primordialmente de responsabilidade das
mulheres trazem sérias desvantagens para estas que ou não se inserem no
setor do trabalho produtivo, ou o fazem desdobrando-se entre o trabalho do
lar e o trabalho fora deste.
Consideramos que muitos avanços ainda são necessários para
uma inserção da mulher nos espaços de trabalho e de direitos de uma forma
mais igualitária, e ressaltamos que a busca por direitos em uma sociedade
capitalista possui as suas limitações características, assim este não se
_____________________________________________________________

8
Consideramos que embora muitos avanços tenham ocorrido no que se refere a divisão entre os gêneros
do trabalho privado, esta relação ainda não acontece de forma igualitária, ficando preferencialmente como
obrigação da mulher os serviços referentes a esfera da vida privada, ocasionando a intensificação do
trabalho desta.
835
configura como o fim de nossos objetivos, devido a apreensão de que as
desigualdades precisam ser eliminadas em sua essência.
Entendemos que a história continua e muitos avanços ainda
serão alcançados pelas mulheres, bem como pela sociedade no todo. Diante
do que foi exposto, permanece uma grande motivação para a continuidade
deste estudo e consciência da importância do aprofundamento das temáticas
trabalhadas. De forma o estudo aqui iniciado fornece apenas um
direcionamento para o começo desse processo.

836
REFERÊNCIAS
ABREU, Alice Rangel de Paiva. JORGE, Ângela Filgueiras. SORG, Bila.
Desigualdade de Gênero e Raça: O informal no Brasil em 1990. São Paulo:
Estudos Feministas, 1994.
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e negação do trabalho. 9ª Ed. São Paulo: Cortez, 2007.
ÁVILA, Maria Betania. FERREIRA, Verônica. SILVA, Carmem. Mulher e
Trabalho. Recife: SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia, 2005.
ÁVILA, Maria Betânia. FERREIRA, Verônica. Reflexões feministas sobre
informalidade e trabalho doméstico. Recife: SOS Corpo – Instituto
Feminista para a Democracia, 2008.
HIRATA, Helena. Nova divisão sexual do trabalho? Tradução: Wanda
Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2002.
HIRATA, Helena. SEGNINI, Liliana (Orgs). Organização, trabalho e gênero.
São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2008.
KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. Tradução de Célia Neves e Alderico
Toríbio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
LIMA, Rita de Lourdes. A Dimensão do Poder nas Relações de Gênero. IN:
COSTA, Anita A. A. O Poder em Debate. Recife: Unipress Gráfica e Editora do
NE LTDA, 2002.
NOBRE, Miriam. FARIA, Nalu. A Produção do Viver. Ensaios de economia
feminista. São Paulo: Sempreviva Organização Feminista, 2003.
MARX, Karl. O Capital. Crítica da economia política. Tradução de Regis
Barbosa, Flávio R. Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
SAFFIOTI, Helieth I. B. Gênero, Patriarcado,Violência. São Paulo: Perseu
Abramo, 2004.

837
A PARTICIPAÇÃO DA MULHER RURAL NA POLÍTICA DE RECURSOS
HÍDRICOS: a perspectiva ambiental

Michelli Barbosa do Nascimento


Izaura Rufino Fischer
A discussão sobre a ausência das mulheres no processo de
gestão da água e a carência de estudos sobre a temática de gênero para
subsidiar o debate referente à inclusão da mulher na política de recursos
hídricos tem se tornado cada vez mais importante e urgente. Com isso, o
debate sobre o meio ambiente com fatores relacionados à conservação
ambiental dos ecossistemas em geral tem sido de grande valia, pois é neste
cenário que as mulheres, particularmente as rurais, são convocadas a discutir
as necessidades práticas dos recursos naturais, associando a problemática
de gênero. Este estudo, portanto, aborda a questão de gênero centrado no
objetivo de estudar a participação da mulher rural na política de recursos
hídricos com enfoque na perspectiva ambiental. Pretende-se, com tal
iniciativa, apontar empecilhos referentes à conservação do ambiente e a
desigualdade de gênero posta na gestão dos recursos naturais.
Segundo Fischer (2006), apesar de se ter uma base de atividades
tradicionalmente femininas, na política de recursos hídricos ainda não se
desenhou o lugar político das mulheres na distribuição da água. Neste
aspecto elas ainda são excluídas do espaço público e limitadas ao espaço
privado, o que dificulta a tão discutida igualdade para todos nos campos
político, social e econômico.
Por outro lado a política de água para o Semi-árido, que se arrasta
do século XX, vem sendo implantada, na atualidade, no manto da
sustentabilidade e da democracia que supostamente abre espaços à
participação das mulheres. A política criada a partir da Constituição Brasileira
de 1934 vem substituir as regras arcaicas reguladoras dos recursos hídricos
visando disciplinar principalmente o uso da água. Tal política volta a sofrer
reajustes alinhados às determinações da Constituição de 1988 cuja tônica é
atender os interesses da sociedade, principalmente no que se refere ao
consumo doméstico notoriamente administrado pelas mulheres.
A mulher, principalmente a trabalhadora rural, tem um papel
fundamental na conservação do meio ambiente, pois devido ao processo de
socialização internalizado, ela tende a desenvolver práticas cotidianas de
convívio mais pacífico com a natureza. É fundamental afirmar, portanto, que
os fatos impõem como obrigação ética à presença feminina nos fóruns,
autarquias e organismos nacionais e internacionais que discutem e formulam
políticas e ações correlatas à questão ambiental, notadamente da água. A
ausência das mulheres dos espaços de poder não pode ser vista como um
processo natural. A exclusão de gênero foi socialmente construída, cabe
agora sua breve desconstrução.
Com isso, acompanhando os movimentos que reclamam um
839
novo mundo, o movimento feminista aposta em colocar as reivindicações e
questões concretas da emancipação das mulheres, partindo do princípio de
que esta globalização é neoliberal, mas também é sexista e que a opressão
das mulheres é uma das bases em que assenta o neoliberalismo (PINTO,
2004).
GÊNERO E A QUESTÃO AMBIENTAL NA PERSPECTIVA DOS
RECURSOS HÍDRICOS
No decorrer da história da humanidade, as mulheres têm
desenvolvido uma relação diferenciada com a natureza em comparação aos
homens. Neste contexto, analisa-se a pré-disposição das mulheres em
proteger o meio ambiente e a relação existente entre a exploração e
dominação da natureza e a dominação e subordinação das mulheres nas
relações de gênero. Não esquecendo que há uma atuação e uma relação
direta entre o meio ambiente e o ser humano, tornando-se, com isso, visível a
total dependência deste ao meio ambiente.
A preocupação com o meio ambiente tem aumentado no decorrer
dos anos, pois já não é mais possível esconder a relação existente entre as
catástrofes naturais e a destruição e poluição do meio ambiente.
A crise ambiental está gerando problemas de caráter alarmante, os quais,
além de comprometer a qualidade de vida, em muitos casos, danificam o
meio ambiente de forma irreversível, colocando em risco a vida no planeta
para as gerações atuais e futuras (CAVALCANTI, 1997).
Segundo Cavalcanti (1987) os problemas ambientais não devem
ser entendidos isoladamente, visto que são sistêmicos, interligados e
interdependentes. O capitalismo, centrado na exploração de recursos
naturais e seres humanos tem contribuído decisivamente para o
aprofundamento da destruição ambiental. Como já afirmava Engels: “não
devemos vangloriar-nos demais com as vitórias humanas sobre a natureza,
pois para cada uma destas vitórias, a natureza vinga-se às nossas custas”
(ENGELS, 1972: 452).
A partir do momento em que o homem vai se desenvolvendo cria-
se nele o desejo de modificar a natureza para se tirar dela o sustento. E no
manto dessa prerrogativa natural soma o proveito econômico, que ampara-se
numa política de desenvolvimento, onde a exploração ambiental está
associada ao consumismo e conseqüentemente ao lucro, usado em nome da
garantia da vida no planeta.
No manto de tal generalização muitas atividades humanas na
relação com a natureza passam a ser apontadas como causadoras imediatas
dos problemas ambientais manifestados. Muitos dos desastres “naturais”
são, muitas vezes provocados pelo homem que busca o lucro, atribuindo,
principalmente, aos mais pobres na terra. Isto é, o meio ambiente é visto
como sendo a fonte de matérias-primas escassas e de energia, bem como o
receptor dos desejos da produção e do consumo (CAVALCANTI, 1997).
E isso não se dá de forma diferente com a produção material
840
suscitada pelo homem em relação aos ciclos naturais. Segundo Cavalcanti
(1997) o maior ciclo na face da terra é o hídrico. Regionalmente, a
interferência pela sociedade no ciclo hídrico é bastante considerável. Rios
são desviados para irrigação, de modo que nunca chegam ao mar; níveis de
água subterrânea estão baixando em muitas áreas devido à sua utilização
excessiva; ou seja, parece que a ordem atual é de incentivos para explorar e
destruir o meio ambiente.
Para Marx a relação homem/natureza era orgânica e os
transcendiam na medida em que, na prática, a natureza se estendia dos
próprios órgãos do corpo dos seres humanos. Ele sempre tratou a natureza
como algo que entrou na história do homem através da produção, como uma
extensão do corpo humano (FOSTER, 2005). Com isso, a natureza assume
um papel importantíssimo na vida do homem, onde este, com seu trabalho
extrai seu meio de vida e, segundo Luckacks, humaniza a natureza e a ele
mesmo. É neste cenário, portanto, de dependência humana e de
humanização da natureza que se compreende uma contínua relação que se
dá entre o homem e a natureza.
Marx afirma que (2005, p.107):
A natureza é o corpo inorgânico do homem, quer dizer, a natureza
enquanto não é o corpo humano. O homem vive da natureza, isto é, a
natureza é o seu corpo, e ele precisa manter um diálogo contínuo com ele
se não quiser morrer. Dizer que a vida física e mental do homem está
ligada à natureza significa simplesmente que a natureza está ligada a si
mesma, pois o homem é parte da natureza”.
Porém, apesar da interligação existente entre o homem e a
natureza, pode-se assegurar que no geral esta permuta é interrompida no uso
dos recursos naturais. Pois ainda que a natureza seja essencial para o
suprimento e desenvolvimento humano, e, por isso, todos têm direito a ela,
isso não ocorre, igualmente, no cotidiano de todos os cidadãos. A mulher,
principalmente a rural, mesmo tendo um papel fundamental na história da
humanidade não tem o mesmo acesso aos recursos naturais. (FISCHER;
MELO, 2006).
Na atualidade, o problema da condição feminina está sempre na
ordem do dia, onde a todo o momento se fala e se discute o papel da mulher
na sociedade, na família, no trabalho, etc, e, em todas essas relações, a
mulher aparece numa situação de inferioridade em relação ao homem. Tal
opressão e submissão das mulheres surgiram muito antes do capitalismo,
podendo ser verificado historicamente desde que os povos deixaram de ser
nômades e utilizaram a divisão social do trabalho como forma de
organização. As mulheres permaneceram mais ligadas ao lar e aos filhos,
enquanto os homens se ocupavam prioritariamente com as caçadas, por
serem, naturalmente dotados de maior força física.
A inferioridade física da mulher contribuiu para o não
reconhecimento de sua participação no processo produtivo. Ela permaneceu
841
subsumida à função de reprodutora e como não exercia as mesmas
atividades que o homem, este deixou de ver na mulher um semelhante. O
homem torna-se, no período escravista, por exemplo, proprietário de terras e
de escravos e se apropria também da mulher abrindo, progressivamente,
espaços para o patriarcado (FARIA; NOBRE, 1997).
O patriarcado tornou-se uma situação em que a dominação
econômica e familiar era exercida normalmente por uma pessoa, de acordo
com determinadas regras fixas. É identificado como uma ramificação do
patrimônio, que reproduz o poder masculino e assegura a condição de
dominação/submissão entre homens e mulheres através da cultura
hereditária.
No modo de produção feudal, a mulher é considerada
propriedade do homem. Quando a propriedade passa a ser transmitida por
herança, por sucessão, a mulher pode ser herdeira, mas seus bens são
administrados por um tutor e, quando casa, a responsabilidade é do marido.
Se for esposa de um proprietário torna-se instrumento de transmissão da
propriedade, com a função de gerar herdeiros. Se for agricultora, gera filhos
que serão braços para produzir e defender as terras do senhor. Pode-se
perceber então que a dominação da mulher está vinculada à questão sexual,
e a questão econômica. A mulher pobre é reprodutora da força de trabalho. A
escrava multiplica os escravos para os donos. A camponesa feudal gerava
servos para o senhor. Assim como a proletária gera os operários que
produzirão as riquezas do capitalista. O corpo da mulher, portanto tem um
enorme potencial de poder e de riqueza e, por isso, deve ser controlado pelas
classes dominantes. Portanto, a mulher precisava ser dominada e excluída
de todas as decisões (SECRETARIA NACIONAL DO MST).
Com a participação masculina na reprodução, era necessário
saber quais os filhos que pertenciam a determinado homem para garantir a
sucessão da herança. Inicia-se, desta forma, o controle sobre o corpo da
mulher e o fato de mantê-la no âmbito do lar e cuidando da prole e de um
relacionamento monogâmico que facilitava tal processo.
O desconhecimento, portanto, de si mesmas, dos seus corpos, e
até mesmo a perda dos saberes ancestrais estão permeados por
determinações culturais manifestados em mecanismos que expressam as
relações de poder perpassadas nas diferentes esferas da vivência das
mulheres. A ausência desse saber faz com que todo um esquema de sujeição
possa ser desenvolvido e internalizado, através do processo de socialização,
adquirindo características que irão configurar o tradicional conceito do ser
mulher (FERREIRA, 1999).
Com o advento do capitalismo e o uso indiscriminado dos
recursos naturais, por sua vez, as diferenças de gênero foram intensificadas,
na contradição de abrir espaços para a participação das mulheres no
mercado de trabalho e o questionamento sobre seus direitos na sociedade.
Inicialmente, as mulheres foram, estrategicamente,
842
encarregadas do trabalho doméstico, cuidando da casa, das crianças, dos
velhos e doentes, além de “servirem” ao marido, sendo endeusadas como
“rainhas do lar”. O trabalho doméstico, gratuito é denominado como trabalho
não produtivo e a submissão social da mulher serve para manter um salário
masculino mais baixo, pois ele não necessitava pagar pelos serviços
domésticos.
Simone de Beauvoir (BEAUVOIR, 1968) denunciou em seu livro
O Segundo Sexo a exclusão das mulheres do espaço público em função da
naturalização do papel feminino na reprodução. Desta forma, a mulher passa
a ter uma vida quase inconsciente, enquanto que aos homens são reservados
todos os benefícios da “civilização”. Esta “naturalização” da tarefa feminina
na reprodução e na vida doméstica, bem como a responsabilidade pela
alimentação e saúde da família, acabou aproximando a mulher das tarefas
humanas mais próximas da natureza. Em muitas culturas as mulheres rurais,
por exemplo, são as responsáveis pela manutenção da biodiversidade. Elas
produzem, reproduzem, consomem e conservam a biodiversidade na
agricultura (MIES; SHIVA, 1995: 234). Portanto, a tendência é que, para as
mulheres, o equilíbrio do meio ambiente venha a se apresentar como um fator
fundamental para a qualidade de vida da família, concebendo, assim, a
natureza como fonte de vida que precisa ser preservada. Enquanto isto, na
visão capitalista patriarcal, a natureza não passa de um mero objeto de
exploração, dominação e poder.
Os filósofos adeptos à ecologia profunda afirmam que, se os
homens estivessem mais próximos às tarefas domésticas e de reprodução,
haveria um ganho na qualidade de vida e, conseqüentemente, na proteção
ambiental, uma vez que eles teriam uma percepção real da unidade e
interdependência dos seres humanos com o meio ambiente. As mulheres já
fazem isto, porque a elas foi deixada a tarefa do cuidado pela manutenção da
vida (CAPRA, 1996).
Diante desse quadro, observa-se que o Estado, por outro lado,
tem se baseado em valores patriarcais e por isso não tem atendido as
mulheres no que diz respeito a políticas públicas. A formulação das políticas
públicas pode ser vista como um processo que se constrói a partir de um
diálogo entre a sociedade e o Estado, através de seus diversos poderes, os
grupos de interesse e de pressão manifestados através de movimentos
sociais. O papel do Estado, portanto, tende a ser o sujeito personificado na
dinâmica social, encarregado de produzir bens e serviços de interesse
coletivo ou outorgando direitos a outros segmentos sociais.
Contraditoriamente a esse papel é o exemplo que se dá com
relação aos direitos cidadãos que regem a distribuição dos recursos hídricos
que são por vezes desrespeitados e as mulheres são as principais vítimas do
processo. Estas sempre lutaram pelo acesso ao direito já existente na
sociedade, e a política de recursos hídricos é mais um exemplo em que a sua
inclusão vem se dar de forma tardia. Os direitos referentes á água estão
843
moralmente direcionado ao masculino, assim como o gerenciamento desses
recursos e o poder de decisões estão a cargo dos homens. As mulheres são,
portanto, consumidoras e gestoras da água na esfera privada do lar, mas que
conforme os princípios morais parecem apresentar inabilidade em lidar com o
espaço onde a política da água é discutida, planejada e executada.
Com isso, acompanhando os movimentos que reclamam um
novo mundo, o movimento feminista aposta em colocar as reivindicações e
questões concretas da emancipação das mulheres, partindo do princípio de
que esta globalização é neoliberal, mas também é sexista e que a opressão
das mulheres é uma das bases em que assenta o neoliberalismo (PINTO,
2004). Por todo o mundo, milhares de organizações reclamam a igualdade de
direitos, o direito ao trabalho, a educação, a saúde, ao voto e em todas as
esferas de decisão.
O Feminismo, portanto, ultrapassa muito a mera reivindicação
feminina, não existe para resolver este ou aquele problema. Ele assume,
hoje, um papel central, na luta contra o neoliberalismo, porque, indo às
origens da discriminação da mulher, mostra como a luta contra o patriarcado
não está desligada da luta contra o capitalismo. Por outro lado assiste-se ao
regresso de valores patriarcais retrógrados e tradicionalistas que afrontaram
as conquistas das mulheres rurais e urbanas nos últimos anos.
Tradicionalmente, as mulheres rurais desempenham atividades
na roça, na educação dos filhos, em casa, sempre acumulando funções e
acompanhando os homens com igualdade de trabalho e responsabilidades.
No entanto, nos momentos de tomada de decisão, quando é preciso alguma
autonomia de pensamento, essas mulheres não comparecem em
termos de igualdade de condições com os homens: recuos femininos são
notados quando, por exemplo, em reuniões ou assembléias, os homens
também participam.
É fundamental afirmar, portanto, que os fatos impõem como
obrigação ética à presença feminina nos fóruns, autarquias e organismos
nacionais e internacionais que discutem e formulam políticas e ações
correlatas à questão ambiental, notadamente da água. A ausência das
mulheres dos espaços de poder não pode ser vista como um processo
natural. A exclusão de gênero foi socialmente construída, cabe agora sua
breve desconstrução.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A ideologia de lucratividade dos recursos naturais, gestada sob a
ótica do modelo capitalista neoliberal, tem impactado diretamente na vida das
mulheres, principalmente as rurais - as principais responsáveis pelas
atividades reprodutivas, que incluem o uso e a gestão da água para o
consumo humano doméstico. Há, por isso, uma necessidade de uma
incorporação da perspectiva de Gênero no sentido de um maior envolvimento
de representantes do grupo feminino na tomada de decisões relacionadas ao
uso da água. É fundamental o reconhecimento de que elas são peças-chave
844
no trato da água para a saúde (água potável e saneamento), alimentação e
equilíbrio ambiental dos ecossistemas.
Diante disso, as mulheres são vistas, em alguns momentos,
como provedoras e usuárias da água e guardiãs do meio em que vivem. Em
outros se enfatiza o importante papel desempenhado por elas nas regiões
afetadas pela desertificação e/ou por secas, particularmente nas áreas rurais
de países em desenvolvimento, e a importância de assegurar a participação
integral de ambos, homens e mulheres, em todos os níveis, em programas de
combate à desertificação e mitigação dos efeitos das secas.
No que se refere à saúde e à agricultura, há um importante papel das
mulheres na produção, no armazenamento e na preparação de alimentos e
no aprimoramento do valor nutricional deste.
A busca do equilíbrio de Gênero na participação representativa só
não é mais evidente quando se observa a composição da mesa decisória do
Conselho Nacional de Recursos Hídricos, e provavelmente dos Conselhos
Estaduais de Recursos Hídricos, das Secretarias de Recursos Hídricos, de
órgãos gestores de recursos hídricos e até de Comitês de Bacias, onde a
maioria dos participantes, gerentes e tomadores de decisões é composta por
homens. É preciso, portanto, incentivar a reversão deste quadro, já que são
elas as que cuidam de variadas questões relativas à água, como a indústria
caseira ou a saúde da família.
Todas essas questões confirmam a situação de exclusão e
desigualdade que vive as mulheres. Desse modo, amplos são os desafios
para se dar continuidade à construção de uma estratégia de contraposição à
ordem estabelecida de mercantilização dos recursos hídricos e mais, é
fundamental visibilizar os impactos que essa questão traz para a vida das
mulheres rurais e as possibilidades de uma ação política das mesmas para a
transformação dessa realidade. Um cenário, portanto, onde uma nova
realidade ainda não se estabeleceu, sendo ainda necessária à menção deste
tema nos documentos mundiais.

845
REFERÊNCIAS
CAVALCANTI, Clóvis. Compreensão econômica e social da preservação
ambiental. In: Ciência e trópico. Recife: Instituto Joaquim Nabuco de
Pesquisas Sociais, v. 6, n. 2, jul-dez, 1978.
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públicas. São Paulo: Cortez: Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 1997.
______. Celso Furtado e o mito do desenvolvimento econômico. In: Ciência e
trópico. Recife: Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, n. 104,
2001.
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referências conceptuais e de política. In: Ciência e trópico. Recife: Instituto
Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, n. 144, 2002.
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ambiental: a realidade da trabalhadora rural. In: Feminismo: políticas
públicas, desenvolvimento e meio ambiente. Recife: FUNDAJ / UFRPE, 22 a
24 nov., 2006.
FISCHER, Izaura Rufino. A relação de gênero na política de recursos hídricos
no semi-árido nordestino. In: Feminismo: políticas públicas,
desenvolvimento e meio ambiente.Recife: FUNDAJ / UFRPE, 22 a 24 nov.,
2006.
______. O Protagonismo da mulher rural no contexto da dominação.
Recife: Massangana, 2007.
PINTO, Helena; Faz sentido ser feminista, 2004. Disponível em:
www.udp.pt/textos/comuna4/serfem.htm. Acesso em: 07 de jan. 2008.

847
MULHERES AGENTES PENITENCIÁRIAS: breve estudo sobre a presença
feminina na área de segurança das Unidades Prisionais de São Luís.
Sheila Cristina Rocha Coelho
A presença feminina na área de segurança, seja como agente
penitenciário ou como policial militar ainda é recente, visto que ingresso nas
policias militares ocorreu a partir da década de 1970, ampliando-se no início
da década de 1980. Esta inserção feminina visava à realização de um
trabalho de policiamento preventivo, principalmente no trato com crianças,
adolescentes e mulheres autores de infração.
Entretanto, o trabalho que ora apresentamos não trata das
mulheres policias, mas, especificamente, da incorporação da mulher em
outro espaço que tem como objetivo manter a ordem e a segurança – os
Estabelecimentos Prisionais.
É importante frisar que agente penitenciário e policial militar são
carreiras diferentes. O policial militar e civil atua diretamente na segurança e
repressão do crime de toda natureza, mas igualmente são consideradas
profissões de risco.
No Brasil, segundo dados estatísticos do Sistema Integrado de
Informação Penitenciária – InfoPen, do Departamento Penitenciário Nacional
existem 1.134 estabelecimentos penais, nos quais atuam cerca de 20.000
Agentes Penitenciários dentre homens e mulheres. No Estado do Maranhão,
segundo dados da Secretaria de Segurança Cidadã, atuam 415 agentes
penitenciários em 12 instituições penais da capital e do interior, dos quais 94
são mulheres.
Este artigo faz parte da pesquisa, em andamento, sobre a
educação formal de mulheres no ambiente prisional e de reflexões acerca de
um trabalho de formação realizado com agentes penitenciários no qual pude
perceber que a presença feminina ainda é bem inferior em relação à
corporação de agentes masculinos.
Primeiramente trataremos sobre a profissão de agente
penitenciário, a origem, a legislação vigente e as dificuldades relativas ao
cumprimento das funções a ele atribuídas. Em seguida discorreremos sobre
a presença feminina na área de segurança, a partir de entrevistas realizadas
com 05 agentes penitenciárias que atuam em presídios masculinos e
femininos e das informações coletadas durante a realização de 07 encontros
de formação continuada durante o ano de 2006 com 210 agentes
penitenciários.

_____________________________________________________________

1
Mestranda em Educação – UFMA - rochascc@uol.com.br

849
Desse modo, pretende-se contribuir para as discussões sobre a
incorporação da mulher em profissões que socialmente foram ocupadas por
homens devido a estereótipos criados sobre a identidade feminina,
evidenciando como vem sendo a atuação das agentes femininas, das
expectativas em torno dessa presença em uma instituição penal, observando
as relações de gênero presentes neste espaço.
A PROFISSÃO: ser agente penitenciário/a O/a Agente Penitenciário,
segundo o artigo 76 da Lei Nº. 7.210/84 de Execução Penal - LEP integra o
quadro do pessoal penitenciário de assessoramento do estabelecimento
penal. Dentre as atribuições do/a Agente Penitenciário incluem-se atividades
práticas ou rotineiras, tais como: apoio aos técnicos e ao preso/a.
A figura do agente penitenciário aparece na LEP, mas
fundamenta-se no surgimento da prisão, como instituição destinada a exercer
o poder de punir os indivíduos que cometem delitos.
Para Foucault (1987) a prisão é menos recente do que se pensa,
e não decorre do nascimento dos códigos penais. Ela existe desde a
antiguidade, época em que a prisão tinha um caráter essencialmente de
custódia do preso, a fim de manter sua integridade física até o julgamento,
condenação e aplicação da pena de suplicio do corpo – a prisão custódia.
Mesmo antes de usar denominação e a forma – prisão já
funcionava modelos de detenção penal nos quais os indivíduos eram
repartidos e fixados espacialmente, de forma a melhor poderem ser
observados, controlados e treinados.
Então, que novidade representou o surgimento da prisão? Para
os reformadores juristas do século XVIII, a do sentido de justiça social,
imagem que a burguesia, classe dominante pretendeu instaurar .
Conforme Foucault (1987), a prisão voltou-se à correção de
apenados, quando da utilização do castelo de Bridwell para corrigir
pequenos delinqüentes, marcando, por conseguinte, a passagem da “prisão-
custódia” para a “prisão-pena”.
Essa reforma no poder de punir é explicada por Foucault (1987)
como conseqüência do processo de humanização da pena que até o fim do
século XVIII e início do século XIX centrava-se no suplício do corpo e
instaurando uma nova moral do ato de punir não mais pelo suplício do corpo,
e prevê uma outra política no poder de punir fazendo da...
punição e da repressão uma função coextensiva à sociedade não punir
menos, mas punir melhor; punir talvez com uma severidade atenuada,
mas para punir com mais universalidade e necessidade; inserir mais
profundamente ” ( Foucault, 1987, p 70).

Assim, a prisão se constitui na sociedade como aparelho técnico


850
disciplinar que deve produzir indivíduos dóceis e úteis. “É dócil um corpo que
pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e
aperfeiçoado” (Foucault, 1987, p. 118). Nesse sentido, durante os séculos,
o sistema penitenciário manteve em sua essência a função de manter a
vigilância e disciplina de presos/as.
A disciplina nas prisões é responsabilidade do agente/a e é
produzida mediante a coação educativa total sobre o condenado/a, onde há o
treinamento do comportamento pelo emprego do tempo.
Nas Unidades Prisionais o/a agente é responsável pelo apoio aos
presos/as e apoio às diversas atividades desenvolvidas no interior da prisão.
Ele conduz o/a detento/a aos diversos setores e atendimentos técnicos
(departamento jurídico, interno ou externo, departamento social, psicologia,
educação, enfermaria, controle de preso/as, segurança e inspetoria).
No que se refere ao apoio aos presos/as cabe ao/a agente de um
estabelecimento penal atender as necessidades e direitos do recluso/a, o que
não pode ser confundido com “favores” ou privilégios, pois o tratamento penal
exige desse/a servidor/a o cumprimento de normas que determinam à
conduta em relação ao preso/a.
Por serem instituições fechadas (GOFFMAN, 2007), a prisão em
seu caráter total é simbolizada pela barreira à relação social com o mundo
externo e por proibições à saída que muitas vezes estão incluídas no
esquema físico ( muros altos, grades, fossos, arames e cerca elétrica).
Ao/a agente penitenciário cabe o total controle pelo permanente e
eficaz encarceramento do indivíduo preso/a. Por esse motivo ele é tido,
muitas vezes, como a principal barreira física para o alcance das
necessidades e objetivos do preso – a sua liberdade.
O/a agente penitenciário nesse ambiente é aquele/a que passa a
maior parte do tempo com o/a preso/a e é praticamente a única ligação que
ele/a estabelece com o mundo exterior. Nesse sentido, a conduta em
relação ao/a detento/a deve respeitar os princípios fundamentais
estabelecidos pela Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), no
que se refere a assegurar ao preso/a o respeito à sua individualidade,
integridade física e dignidade pessoal e, pelas Regras Mínimas de
Tratamento do Preso (1994) do Conselho Nacional de Política Criminal e
Penitenciária (CNPCP) que no artigo 50 estabelece: “o pessoal penitenciário
deverá cumprir suas funções, de maneira que inspire respeito e exerça
influência benéfica ao preso”.
Assim, a conduta em relação ao/a preso/a exige o
desenvolvimento de um trabalho voltado às garantias dos direitos humanos
do/a detento/a em seu processo de reeducação.
851
Tal processo previsto no tratamento penal é aquele o qual visa a
reeducação e reinserção do preso/a conforme o que determina a Lei
Execuções Penais - LEP nº. 7.210, de 11 de julho de 1984 em seu artigo 1º “a
execução penal tem por objetivo efetivar as disposições da sentença ou
decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração
social do condenado e do internado”.
A LEP regulamenta como deve ser executada a pena privativa de
liberdade e restrição de direitos e preconiza os conceitos fundamentais da
justa reparação e o caráter de reabilitação na aplicação da pena.
Vale observar que no seu cotidiano, o/ a agente depara-se com
situações de conflito que exigem o restabelecimento da disciplina muitas
vezes por meio da coerção física. Por vezes ele/ é obrigado/a assumir ao
mesmo a postura de carrasco/a, de educador/a e de redentor/a, pois o Estado
delega essa dupla função. Ao mesmo tempo em que presta socorro médico,
fornece alimentação e garante a integridade física, também exerce poder e
autoridade.
A relação entre internos e equipe dirigente de uma instituição
penal é de dominação e carregados de estereótipos. “A equipe dirigente
muitas vezes vê os internos como amargos, reservados e não merecedores
de confiança; Os internados vêem os dirigentes como condescendentes,
arbitrários, mesquinhos” (GOFFMAN, 2007, p.19). Por sua vez os dirigentes
se sentem superiores; e os internados tendem a se sentirem inferiores,
fracos, censuráveis e culpados.
Desse modo, todo controle estabelecido por normas rígidas para
manter a ordem e a disciplina é atribuída ao agente penitenciário. O preso/a
reconhece nesse profissional, dentre todos os demais que compõem a
equipe dirigente, aquele que representa a extensão da sociedade punitiva e
do seu encarceramento.
Nos relatos dos próprios agentes – homens e mulheres, o/a
preso/a tem uma visão negativa dele, pois o associa a prisão, às barreiras e
aos limites impostos ao mundo exterior.
O que por parte desses/as profissionais constituem uma
dificuldade no exercício da profissão e torna a tarefa mais árdua da função: a
necessidade de conciliar os interesses de segurança, controle da
massa carcerária que uma instituição penal exige e a finalidade reeducativa
da pena prevista na Lei de Execuções Penais.
No exercício dessa função os/as agentes penitenciários
ressentem-se do desprestigio social da sua profissão junto à sociedade. “As
pessoas quando sabem onde trabalhamos, dizem: você trabalha com os
marginais? Querem saber como é o ambiente, se sentimos medo, enfim não
852
gosto de dizer que sou agente penitenciário” afirma uma agente. Eles/as
sentem-se pouco valorizados, porque se ressentem da falta de preparação
em cursos mais voltados para trabalhar com a ressocialização e
desrespeitados, principalmente quando apontados como “culpados” por
fugas e rebeliões.
No Estado do Maranhão a forma de seleção dos agentes é feita
por meio de concurso público, embora isso não represente a resolução de
todas as reivindicações da categoria. Os profissionais que vem sendo
selecionados mudou um pouco o perfil da categoria. A maioria dos aprovados
é composta de jovens, graduados nas mais diversas áreas do conhecimento,
e, portanto, intelectualmente mais capacitados para o exercício da função,
contudo, as mulheres representam 22,65% do total de agente atuantes nas
Unidades Prisionais.
A PRESENÇA FEMININA NA ÁREA DE SEGURANÇA DAS INSTITUIÇÕES
PENAIS
3.1. profissões masculinas e femininas?
Segundo Perrot (2005, p. 251), as mulheres sempre trabalharam.
Elas nem sempre exerceram “profissões”. O trabalho maternal e doméstico
inscreve-se como uma atividade própria à natureza feminina. Para Perrot
(2005, p. 252),
O modelo de mulher que auxilia, cuja dominação quase biológica [...]
mulher que cuida e consola, realiza-se nas profissões de enfermeira, de
assistente social ou de professora primaria. Crianças, idosos, doentes e
pobres constituem os interlocutores privilegiados de uma mulher
dedicada às tarefas caritativas e de socorro, a partir de então,
organizadas no trabalho social.

Desse modo, algumas profissões exaltam as “qualidades inatas”


das mulheres, se consolidando no mercado de trabalho profissões no qual a
presença feminina é maioria - enfermagem, pedagogia e psicologia.
As profissões “boas para uma mulher” (PERROT, 2005) devido a
estereótipos criados sobre a personalidade feminina – a sensibilidade, a
doçura, a indulgência e a submissão frágil – são aquelas cujo atributo
supremo exigido é a feminilidade.
Por outro lado, as “carreiras masculinas” dominadas por homens
estão ligadas a sua personalidade – vigor, força, raciocínio lógico-matemático
a força e o vigor.
A presença da mulher no mercado de trabalho torna-se uma
necessidade e sua participação na população economicamente ativa no final
do século XIX fortalece os movimentos sociais por direitos iguais.
853
As mudanças ocorridas nas relações entre os sexos e a conquista
da mulher por espaço no mercado de trabalho começou de fato com as
Grandes Guerras do século XX. Com a ausência dos homens as mulheres
passaram a assumir os negócios da família e a posição dos homens como
provedores da família. Com o fim das referidas guerras e o avanço do
capitalismo, possibilitou o deslocamento do trabalho produtivo da mulher do
lar para o espaço público.
Segundo Samara (1997) nos anos 60, movimentos sociais
reivindicatórios ganharam força, dentre eles o feminismo. A vasta produção
dos anos 60/70 abriu a possibilidade de um tratamento relacional científico do
gênero, não mais como reverso do masculino, rompendo com arquétipos e
estereótipos sobre a feminilidade e identidade das mulheres.
Os estudos sobre gênero como categoria relacional nos anos
1980 constituiu um avanço do movimento feminista e conferiu-lhe
legitimidade acadêmica. Para Joan Scott (1995, p.75),
o termo “gênero” torna-se uma forma de indicar “construções culturais” –
a criação inteiramente social de idéias sobre papéis adequados a
homens e mulheres. Trata-se de uma forma de referir às origens
exclusivamente sociais das identidades subjetivas de homens e

mulheres [...] gênero tornou-se uma palavra particularmente útil, pois


oferece um meio de distinguir a prática sexual dos papéis sexuais
atribuído às mulheres e aos homens.

A diferença entre homens e mulheres passou a ser vista mais


como uma questão política que biológica e as mulheres partiram para o
mercado de trabalho, contudo apesar dos determinantes sócio culturais não
serem tão rígidos como no começo do século XX, a presença da mulher em
algumas instituições sociais é uma barreira a ser transposta.
Segundo, Soares (2005) as questões decorrentes da presença
feminina nas polícias, ainda são poucos abordadas nos trabalhos científicos,
assim como a formação e construção de gênero. O que se observa é o
predomínio de uma metodologia quantitativa, numa espécie de mapeamento
da presença da mulher na corporação das polícias.
Por conseguinte, não encontramos estudos que focalizassem e
analisassem o modo como as mulheres se constituíram agentes
penitenciárias, mas encontramos no trabalho de pesquisa de Soares(2005)
junto a policiais militares homens e mulher do Estado do Rio de Janeiro o fato
de que a crença na presença das mulheres como operadoras de segurança,
teriam um papel saneador, humanizador, intermediando conflitos e
minimização das mortes, aproximando-a mais da população por meio de um
policiamento menos ostensivo e mais preventivo, como: trabalho assistencial
junto a crianças, adolescentes e idosos, policiamento de trânsito,
854
policiamento em aeroportos, rodoviária e portos; trabalhos comunitários e
assistências em geral, revista de mulheres detentas e visitantes do sexo
feminino em estabelecimentos penais, serviços internos burocrático, e
atendimento em delegacias de mulheres.
A pesquisa realizada pela autora constatou que há uma
unanimidade entre homens e mulheres de que as mulheres policiais não
devem atuar no confronto direto com infratores. Da mesma forma ao
entrevistar mulheres agentes penitenciárias, a mesma opinião foi emitida.
No ano de 2006 durante os encontros de formação com mais de
200 agentes entre homens e mulheres ouvimos muitos relatos de
situações de conflito entre agentes e detentos. São evidentes os riscos
inerentes à profissão e estes se refletem na saúde e na segurança, mas não
podem ser extintos por que fazem parte da própria da função. Podemos
perceber que o convívio com a massa carcerária interfere em aspectos
psicossociais da vida do/a. Por exemplo, o agente por vezes utiliza
expressões verbais dos detentos, sentem-se inseguros, pois têm medo de
represálias dentro e fora dos muros da prisão.
Na prática, essas interferências podem ser minimizadas ou
preventivamente tratadas numa perspectiva da Medicina e Segurança do
Trabalho, com um acompanhamento psicológico permanente, inclusive
previsto como direito dos profissionais que atuam nas penitenciárias.
De maneira geral o/a agente penitenciário deve atuar na
minimização dos riscos e danos surgidos na situação de confinamento, no
que diz respeito a ele quanto ao/a preso/a, devendo usar de estratégias de
prevenção da violência no cumprimento da pena, assim como participar da
elaboração e implementação de projetos de reinserção social do preso/a.
A mulher agente penitenciária
Segundo dados da Secretaria de Segurança Cidadã, as mulheres
correspondem a 22, 65% do total de agentes penitenciários, sendo que quase
metade atua na Penitenciária Feminina de São Luís ou na área administrativa
das demais unidades. Ao serem questionadas sobre por que escolheram a
profissão, as agentes femininas responderam que não foi propriamente uma
escolha, mas as condições de vida e as dificuldades de oferta de emprego
foram os fatores que as fizeram optar por ela.
No cotidiano da prisão a servidora se depara com situações
complexas, marcada por uma série de discursos e práticas não articuladas
entre si e até contraditórios entre aquilo que é esperado de uma função e o
trabalho real. Sua prática é fundamentada muito mais em conhecimentos que
são adquiridos no dia-a-dia da prisão, com os agentes mais experientes e
faltam-lhe elementos teóricos e práticos que permitam contribuir para a
855
segurança e reinserção social das pessoas presas.
De maneira geral todas elas reclamam da falta de condições de
trabalho e a carência de recursos materiais e da ausência de formação para o
exercício da função que envolve conhecer os limites legais de sua ação e os
direitos e deveres tanto da população penitenciária como os seus próprios.
Por questões relacionadas à sua falta de formação e/ou à
carência de estímulos materiais, sociais e intelectuais, o imaginário de sua
função acaba, com freqüência, limitando-se a uma rotina que envolve a
disciplina, sendo relatado por elas que há poucas condições para cumprir a
assistência educacional, material, jurídica previstos pela LEP no intuito de
possibilitar a reinserção social do/a detento/a.
Quando nos referimos a formação vale destacar que um dos objetivos de
estabelecer uma política de formação permanente para os/as agentes é
romper com a idéia de que a administração penitenciária deve está voltada
somente para manter o sujeito bem encarcerado, assegurando que não vai
fugir, orientando quase exclusivamente para questões de segurança. É
importante lembrar que no Brasil não temos prisão perpetua e que o sujeito
vai sair um dia. Portanto é preciso dá maior visibilidade aos programas de
ressocialização pelo estudo e trabalho colocando como prioridade
permanente da atuação dos/as servidores/as.
A presença da mulher nos estabelecimentos penais é previsto
na Regras Mínimas para Tratamento do Preso, art.52 que diz que nos
estabelecimentos prisionais para a mulher, o responsável pela vigilância e
custódia será do sexo feminino. Dessa maneira, nos parece que a lei restringe
o espaço de atuação da mulher somente as penitenciárias femininas.
Os estereótipos sexuais desempenham um papel importante
nesse fato, pois é a partir da idéia sobre as atitudes e os comportamentos
femininos que se define que as mulheres devem “cuidar” de outras mulheres.
O estereótipo define que mulheres são mais sensíveis e de que os homens
são mais preparados para resolver situações de conflito.
Registramos relatos de mulheres agentes penitenciárias de que
a presença da agente no presídio masculino é vista com muito cuidado pelos
superiores pois há o temor que sua “sensibilidade” deixe de observar alguma
“artimanha” dos presos.
Por outro lado, a presença masculina nas penitenciárias
masculinas por vezes tem ocasionado casos de abusos e outros tipos de
violência, justificando e reforçando de que se deve fazer distinção de gênero
na seleção do pessoal de vigilância e custódia das penitenciárias.
PARA NÃO CONCLUIR
Ao trazer para estudo a presença de agentes femininas nas
856
penitenciárias não chegamos a abordar a extensa problemática da categoria
analítica da divisão sexual do trabalho, mas tentamos mostrar a existência
das relações sociais de poder estabelecido entre os sexos: dominação,
subordinação e hierarquização, nas instituições penais nas quais as
mulheres agentes penitenciárias são minoria, restringindo-se legalmente as
prisões de mulheres, embora a sua presença também se efetive nas prisões
masculinas na função burocrática de revista de visitantes femininas.
É importante considerar que o ambiente prisional é carregado de
relações de poder que se reproduzem não somente em relação ao/a preso/a,
mas nas relações superior e subordinado da equipe dirigente homens e
mulheres.
Destaca-se, como um marcante dado a situação de
vulnerabilidade dos agentes de ambos os sexos envolvidos na execução
penal, que se expressa de diversas formas, segundo o setor institucional que
integrem, sua origem social e características subjetivas. No âmbito particular
dos estabelecimentos penais, essa situação de vulnerabilidade compreende
a discriminação da sociedade em relação ao trabalho com infratores de toda a
espécie e a desvalorização da sua atuação no âmbito da gestão do sistema
prisional.

857
REFERÊNCIAS
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influência em todas as esferas, da política à comunicação. Forbes Brasil, São
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Civilização Brasileira, 2005.

859
GT 8 – FEMINISMO E POLÍTICA
Coordenação: Profª. Drª. Mary Ferreira
Política e Feminismo no Norte e Nordeste

A proposta deste Grupo de Trabalho é estimular estudos e


pesquisas neste campo a fim de dar visibilidade a uma problemática que
envolve a participação política das mulheres e sua relação com os
movimentos feministas. Considerados movimentos orgânicos que tem como
princípio a transformação da realidade social tendo as mulheres como sujeito,
os movimentos feminista emergem no Brasil em meados da década de
sessenta embalados pelas mudanças e acontecimentos que proliferam
principalmente nos países europeus e nos Estados Unidos que repercutiu de
forma muito presente na America Latina e Caribe entre os quais o Brasil.
Responsáveis por mudanças em diferentes instâncias da
sociedade esses movimentos tiveram um papel importante ao trazer a público
questões do mundo do privado, questionando o patriarcado e estabelecendo
novas categorias de análises para pensar a opressão das mulheres, além da
relação capital e trabalho.
O feminismo enquanto movimento social nos permitiu desnudar
as nuances de uma opressão camuflada, disfarçada em discursos que se
sustentam em teoria conservadoras, pois fazem parte de uma visão patriarcal
presente, incorporada nas práticas sociais no qual o homem se projeta e se
mantêm senhor absoluto das decisões e dos destinos das mulheres.
A preocupação de tornar as questões de gênero como questões
feministas tem sido um dos horizontes no qual as pesquisadoras feministas
integradas a Redor se preocupam. Essa preocupação é parte de um pensar
inquieto, inconformado com uma realizada que se quer ver transformada.
Os trabalhos apresentados neste Grupo de Trabalho retratam
formas de desvendar uma realidade que se mantêm em algumas
situações, quase inalterada, como bem enfatiza Ana Alice nas suas reflexões
sobre poder e patriarcado. A trazer a discussão sobre como compreender
essas duas categorias Ana Alice nos ilumina com suas explicações para que
se compreenda as inquietações dos autores como Luiz Eduardo e Sandra,
Deyse, Keila e Ticiana, Mary Ferreira, Tiago, Murilo, Denise e Jamilye que
descrevem as dificuldades políticas das mulheres no Pará e no Maranhão.
Esses autores apresentam dados eleitores que demonstram o quão tem sido
difícil a trajetória das mulheres para ser reconhecidas como sujeito políticos.
Nesta mesma perspectiva se enquadra o trabalho de Luzia Álvares que faz
uma discussão profunda sobre os ativismos político de deputadas paraenses
e os condicionantes do voto dessas parlamentares. O trabalho de Luzia
Álvares explica a partir do Pará como se dá a inserção das mulheres na
política e as imbricações que refletem nas escolhas partidárias, considerado
em muitas situações determinantes para garantir a eleição dos deputados e
das deputadas.
863
A preocupação com o protagonismo juvenil está presente nos
textos de Celecina Sales e de Simone Gomes que refletem a perspectiva das
jovens feministas, cujas ansiedades se assemelham as feministas mais
experientes ou com mais tempo no movimento, suas reflexões abrem
caminhos para compreender as formas como as jovens feministas articulam
sua ação política e interagem no mundo virtual, considerado hoje um espaço
de interação importante que reflete novas formas de sociabilidade.
Por fim ainda são apresentados os trabalhos Camila Lima,
Yasmim Rodrigues e o de Luciana Silva que discutem a questão do Estado, a
ação dos movimentos feminista e as políticas públicas. São discussões que
emergem na preocupação das jovens pesquisadoras feministas em discutir a
forma como a ação dos movimentos feminista interage na sociedade e traz
para o contexto do Estado as demandas das mulheres.
A discussão sobre espaço público reflete uma preocupação dos
estudos de gênero, haja vista a dificuldade das mulheres de se inserir neste
mundo considerado dos homens. No texto de Yasmim o movimento feminista
emerge como um movimento que irá dar voz as mulheres e o espaço público
passa a ser um caminho para o reconhecimento da mulher como sujeito
político.

Mary Ferreira
Coordenadora do Grupo de Trabalho Feminismo e Política da REDOR

864
REFLEXÕES ACERCA DO PODER, DO PATRIARCADO E DA
CIDADANIA DAS MULHERES,
Ana Alice Alcantara Costa

Em um artigo, que foi publicado em 1997, dizia que o grande


desafio das mulheres para o milênio e o novo século que chegava, era a
mudança nas relações de poder entre homens e mulheres, isto é, nas
relações assimétricas de gênero. Sabemos que a revolução vivenciada
especialmente pelas mulheres ao longo do século XX deixou marcas
profundas na sociedade, modificando e transformando os papeis de gênero
nas diferentes culturas.
Se compararmos os dados de participação feminina nos
diversos setores da sociedade brasileira entre o inicio e o final do século XX
veremos concretamente o quanto foi profunda essa transformação. Hoje
somos mais de 35% do mercado de trabalho, já somos quase 51% do
eleitorado do país, somos maioria entre os estudantes, conseguimos
conquistar a igualdade legal e ocupar espaços até então exclusivos do mundo
masculino.
Apesar de todo este avanço, seguimos ocupando as funções
subalternas e pior remuneradas, recebemos salários inferiores aos dos
homens para a mesma função, somos preteridas nas promoções, não
conseguimos ultrapassar o 12% do total de cargos eletivos, seguimos sendo
vítimas da violência sexual e doméstica, do assedio moral e sexual nos locais
de trabalho. Além de traficadas, estupradas e até mesmo
assassinadas,seguimos morrendo de partos sem assistência adequada e por
abortos clandestinos. Nossos corpos são modelados/mutilados pela pressão
dos meios de comunicação, da indústria farmacêutica e de cosméticos, dos
_____________________________________________________________

* Uma primeira versão desse texto foi escrito durante meu estagio pos-doutoral no Instituto Universitário de
Estudios la Mujer da Universidad Autonoma de Madrid, com bolsa de estudos proporcionada pela CAPES.
Registro também meus agradecimentos ao Instituto Universitário de Investigaciones Feministas da
Universidad Complutense de Madrid pelo apoio e disponibilidade.
1
Professora Associada do Departamento de Ciência Política da UFBA, pesquisadora do Neim e atual
coordenadora do Programa de Pós-graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e
Feminismo - PPGNEIM
2
Costa. Ana Alice. O feminismo acabou? O feminismo no Brasil: Trajetórias e perspectivas para o próximo
milênio.. Bahia - Análise e Dados. Salvador: , v.7, n.2, p.30 - 35, 1997
3
“As pessoas carentes de poder são aquelas que carecem de autoridade ou poder ainda que em um
sentido de mediação, aquelas pessoas sobre as quais se exercem o poder sem que elas o exerçam; os
indivíduos carentes de poder se situam de tal modo que devem aceitar ordens e rara vez tem direito a dá-
las. A carência de poder designa também concomitantemente, uma posição na divisão de trabalho e na
posição social que deixa ás pessoas poucas oportunidades para desenvolver e usar suas capacidades.
Quem carece de poder tem pouca ou nenhuma autonomia no trabalho, dispõe de poucas oportunidades
para a criatividade e quase não utiliza critérios próprios no trabalho, não tem conhecimentos técnicos, nem
autoridade, se expressa com dificuldade especialmente em âmbitos públicos ou burocráticos, e não impõe
respeito” (YOUNG, 2000:99).

865
novos padrões estéticos e da ideologia da feminilidade. Na família seguimos
sob a tutela dos maridos, noivos, pais irmãos ou do homem mais próximo.
Enfim... seguimos subalternas.
Apesar das muitas conquistas, entre elas a igualdade formal
nas leis, seguimos excluídas do poder. Historicamente essa tem sido a
posição das mulheres, em geral temos estado do outro lado do poder, na
subalternidade, somos “pessoas carentes de poder”(2000:99). A maioria das
mulheres ainda não pode decidir sobre suas próprias vidas, não se
constituem enquanto sujeito histórico e político, não exerceram ou exercem o
poder, seguem oprimidas vivenciando as mais diversas formas de opressão.
Opressão aqui entendida na perspectiva apresentada por Iris Marion Young,
como um condicionante social que define o conceito de injustiça social.
Segundo essa autora:
“A opressão consiste em processos institucionais sistemáticos que
impedem a uma pessoa aprender e usar habilidades satisfatórias e
expansivas em meios socialmente conhecidos, ou processos sociais
institucionalizados que anulam a capacidade das pessoas para atuar e
comunicar-se com outras pessoas ou para expressar seus sentimentos e
perspectivas sobre a vida social em contextos onde outras pessoas
podem escutá-las. As condições sociais da opressão geralmente incluem
a privação de bens materiais ou sua incorreta distribuição”(2000: 68).

As pequenas parcelas de poder, os pequenos poderes que


nos tocam e que nos permitem romper em alguns momentos com a
supremacia masculina, são poderes tremendamente desiguais
(Costa.1998:19).
“A situação de subordinação da mulher se resume em uma situação de
não-poder como coletivo: onde quer que estejam situadas ou o que quer
que façam, as mulheres estarão sempre em uma situação de inferioridade
em relação aos homens pelo fato de serem mulheres. Isso não quer dizer
que não há mulheres poderosas, importantes, mas o são a título

individual: não é por isso que o coletivo “mulheres” deixe de ser visto como
um coletivo sem-poder. Mais ainda, o não-poder, a submissão, são
considerados tradicionalmente encantos que definem a 'feminilidade' (o
poder da mulher não resulta nada erótico)” (Petit. 1996:11-12).

Entender a relação das mulheres com o poder é o objetivo


desse trabalho. A partir da contribuição de alguns estudos buscaremos ver
como as mulheres, no contexto das relações de gênero, vivenciam,
reproduzem, contestam ou subvertem o poder. Para tal, entendemos o poder
como algo mais do que um conjunto de aparelhos e instituições que garantem
a sujeição dos indivíduos ao Estado ou meramente um sistema de dominação
exercido por uma classe sobre a outra ou até mesmo como uma certa
866
capacidade que alguém possua. Entendemos o poder como o resultado de
práticas educativas, culturais, das relações econômicas e/ou sexuais
(Foucault. 1998:113). Isso não significa dizer que neste trabalho estaremos
analisando especificamente, como o poder, nas suas várias manifestações,
atinge as mulheres. Esta certamente é uma tarefa a ser atendida por outros
artigos que compõem esta coleção.
O Poder
Conforme vimos anteriormente, ao nos referirmos à violência,
exploração, exclusão, discriminação, pressão, assédio, opressão,
subordinação e por ai vai, estamos tratando de poder, de exercício do poder.
Max Weber, um dos grandes estudiosos das relações de dominação definia o
poder de uma forma bem simples. Para ele, o poder era simplesmente “... a
probabilidade de impor a própria vontade, dentro de uma relação social,
mesmo que contra toda a resistência...” (1992: 43). Mais adiante, nesta
mesma obra, este autor explicita melhor seu conceito ao afirmar que o poder é
a “... possibilidade de que um indivíduo, ou um grupo de indivíduos, realize
sua vontade própria numa ação comunitária, até mesmo contra a resistência
de outros que participam da ação” (1992: 211).
Quando esse poder conta com a possibilidade de ser
obedecido/acatado, Weber o identifica como dominação, “... a probabilidade
de encontrar obediência a um mandado de determinado conteúdo entre
pessoas dadas...” (1992: 43). Essa obediência é assegurada por diversos
contextos sociais que vão desde a crença na existência de uma espécie de
dom especial por parte do detentor individual do poder (o poder do indivíduo),
de uma maneira puramente íntima, sentimental, religiosa etc. até a crença na
justeza do conjunto das instituições legais ou consensuais do mundo
moderno, isto é, “... na crença da legalidade das ordenações instituídas e dos
direitos de mando dos chamados por essas ordenações a exercer a
autoridade”(1992:172). Como podemos observar, Weber pensa o poder e a
dominação como conceitos abstratos, uma espécie de conceito puro que
poderia ser aplicado a realidades e contextos sociais distintos. Para ele, o ator
e a ação social, as relações sociais e os indivíduos interatuando são o ponto
de partida para suas análises, o que interessa são as subjetividades dos
atores, suas vontades (1992:18).
Podemos a grosso modo afirmar que para Weber o poder se manifesta
através de 4 níveis:
1. o poder amorfo (que poderíamos identificar como um poder puro) que
se manifesta nas relações perfeitamente assimétricas (quem manda
não deve obediência) não necessita explicar/justificar);
2. os submetidos reconhecem a legitimidade da autoridade, aceitam-na
como se fosse inevitável;
867
3. a relação acontece no campo dos interesses, influências e
mediações;
4. a subordinação se da de forma inconsciente, isto é, o subordinado não
se da conta dessa relação.
Seguindo essa mesma linha conceitual desenvolvida por Weber, John
Kenneth Galbraith ao iniciar sua “Anatomia do Poder” busca concretizar esse
conceito apresentando algumas indagações a respeito do poder:
“... como se impõe à vontade, como se obtém a equiescência dos outros?
É a ameaça de castigo físico, a promessa de recompensa, o exercício da
persuasão ou alguma outra força mais profunda que induz à pessoa ou
pessoas submetidas ao exercício do poder a abandonar suas próprias
preferências e aceitar as dos outros?” (1985:21).

Na tentativa de responder a estas indagações Galbraith identifica três tipos de


instrumentos de poder que se combinam em proporções diversas para impor-
se. Na verdade funcionam como uma espécie de tipologia do poder:
 poder condigno (semelhante ao coercitivo) – obtém a submissão
através da ameaça “suficientemente desagradável ou penosa”
(1985:22), “... ameaça o individuo com algo suficientemente doloroso
no terreno físico ou emocional para que renuncie a realizar sua própria
vontade ou preferência” (23). A submissão é garantida através da
promessa ou realidade do castigo (35);

868
869
Hannah Arendt vai mais além nessa perspectiva ao afirmar que

“... o poder é sempre um poder potencial e não uma negociável,


mensurada e confiável entidade como a força. Enquanto que está é a
qualidade natural de um indivíduo visto em seu isolamento, o poder surge
entre os homens quando atuam juntos e desaparece no momento em que
se dispersam” (Arendt.1993:223).

Analisar assim o poder de uma forma abstrata, parece-nos


que ele é algo neutro, que qualquer indivíduo que atenda as condições, ou
como diria Galbraith, que detenha os “instrumentos do poder”, estaria apto a
exercê-lo ou na perspectiva de Weber, aquele indivíduo que possuísse essa
espécie de capacidade inerente. Se buscarmos apreendê-lo em suas reais
manifestações poderemos descobrir que o acesso a estes “instrumentos”
estão demarcados pela classe social ao qual se pertence, pela etnia, pela
geração e em especial, pelo gênero que perpassa todos estes
condicionantes, e é exatamente o que nos interessa nesse estudo. Isto
porque queremos ver como nessa dinâmica, ou “dialética do poder” nas
palavras de Galbaith, as mulheres estão invariavelmente na subordinação.
Se retornarmos aos conceitos até aqui trabalhados e os vamos relacionando
a cada passo com as condições historicamente vivenciadas pelas mulheres,
constataremos claramente essa subalternidade.

No entanto, acreditamos que o conceito de poder de Foucault,


pese não tratar especificamente das relações de gênero, atende de melhor
forma a complexidade das relações de poder em que homens e mulheres
estão envolvidos, relações que pressupõem um contexto maior e mais
imbricado de relações sociais. Para ele o poder se constitui e funciona a partir
de outros poderes e por isso se encontra estreitamente ligado às relações
familiares, sexuais, produtivas e reprodutivas, o que ele chama de micro
poderes. O poder é multiforme, não se apresenta só sob a forma de proibição

ou castigo, não se realiza apenas através das instituições, das classes e


_____________________________________________________________

4
Como exemplo dessa dinâmica do poder Galbraith se refere ao poder dos homens sobre as mulheres:
“Algo no exercício da autoridade masculina deve ser atribuído ao maior acesso do homem ao poder
condigno, a utilização pelo marido de sua maior força física para impor sua vontade a uma esposa
fisicamente mais débil e suficientemente equiescente. Ninguém duvida da eficácia freqüente do poder
compensatório na forma de vestidos, jóias, carros, hotéis, diversão e participação nas cerimônias sociais
(...). Mesmo com pouca reflexão, fica evidente que o poder masculino e a submissão feminina se
fundamentam muito mais na crença de que esta submissão pertence a uma ordem natural das coisas. Os
homens podiam amar, honrar e mimar, durante muito tempo se aceitou que as mulheres deveriam amar,
honrar e obedecer. Parte disso era fruto de uma educação especifica (...) que se ensinavam as artes
domésticas as mulheres, mas não aos homens, com a implicação de isto era relevante para uma
submissão normal a vontade masculina”. (1985:48)
5
Na perspectiva marxista, o poder só existe enquanto poder de uma classe, o individuo é mero
instrumento de uma classe e exerce o poder em nome e em função dos interesses dessa classe.

870
grupos políticos, o poder não está nunca na exterioridade, mas sim cruza os
corpos e os produz e reproduz (Foucault. 1980).

Ao contrario de Weber, para Foucault a análise do poder não


deve ir pelo lado da subjetividade dos indivíduos que detenham o poder, suas
vontades não são importantes. O que interessa é a microfísica do poder, as
práticas e os dispositivos tecnológicos de dominação. Apesar de que a noção
de Weber implica também uma relação desigual de forças nas situações de
dominação - a exemplo das existentes na classe, nos estamentos e nos
partidos - estas aparecem e atuam cada uma em sua própria esfera e de
forma geralmente independente. Já para Foucault o poder é uma relação, se
existe poder existe relação e o que caracterizaria essa relação é a
assimetria, a desigualdade.

Nesse sentido, podemos dizer que o poder não é um


fenômeno de dominação massiva e homogênea de um indivíduo sobre os
outros, de uma classe sobre as outras, o poder tem que ser analisado como
algo que funciona em cadeia, nunca está localizado em um lugar
determinado, não está controlado por mecanismos de dominação globais e
universais.

Pensar, portanto a condição de não-poder das mulheres é


pensá-lo em um contexto mais amplo de relações sociais em que mulheres e
homens estão envolvidos em uma imbricada relação definida por contextos
culturais e políticos mais amplos, ou como diz Scott ao definir o conceito de
relações de gênero como o instrumento adequado para entender a condição
de desigualdade das mulheres:

“... tratar do sujeito individual tanto quanto da organização social e articular


a natureza das suas inter-relações, pois ambos têm uma importância
crucial para compreender como funciona o gênero e como se dá a
mudança. Enfim, precisamos substituir a noção de que o poder social é
unificado, coerente e centralizado por alguma coisa que esteja próxima do
conceito foucaultiano de poder, entendido como constelações dispersas
de relações desiguais constituídas pelo discurso nos 'campos de forças'.
No seio desses processos e estruturas, tem espaço para um conceito de
realização humana como um esforço (pelo menos parcialmente racional)
de construir uma identidade, uma vida, um conjunto de relações, uma
sociedade dentro de certos limites e com a linguagem – conceitual – que
ao mesmo tempo coloque os limites e contenha a possibilidade de
negação, de resistência e reinterpretação, o jogo de invenção metafórica e
de imaginação”(1992:14)

A teoria feminista e os “porquês” da subordinação


871
Desde suas origens, o feminismo enquanto movimento sócio-
político e pensamento teórico, tem buscado entender e explicar essa situação
de subordinação das mulheres ao longo do processo histórico da
humanidade. Durante muito tempo, uma das principais preocupações do
feminismo foi explicar a origem dessa opressão.

Em um primeiro momento foi a teoria marxista que forneceu os


instrumentos teórico-metodológicos básicos (longe de vertentes
biologizantes) para esse entendimento, ao identificar essa opressão com a
perspectiva de classe, isto é, como fruto das relações de produção, do
desenvolvimento das forças produtivas. Porém, a perspectiva marxista não
conseguia dar conta das várias implicações da subordinação feminina,
materializada, por exemplo, na divisão sexual do trabalho. A crítica
apresentada por Eisenstein explicita melhor esta questão. Segundo esta
autora:

“... para Marx os problemas das mulheres são resultado de sua posição
como meros instrumentos para a reprodução e daí que virá a solução da
revolução socialista (...) A mulher é considerada somente como uma
vítima a mais, indistinguível do proletariado em geral, da perniciosa
divisão classista do trabalho. Nem a divisão sexual do trabalho, nem a
definição sexual dos papeis, propósitos , atividades etc., tinham uma
existência diferenciada para Marx, que tinha pouca ou nenhuma idéia de
que a reprodução biológica da mulher ou as funções da maternidade eram
fundamentais para a criação de uma divisão sexual do trabalho dentro da
família. Marx percebia a exploração de homens e mulheres como
derivada da mesma raiz e considerava que sua opressão podia ser
entendida nos mesmos termos estruturais. A consciência revolucionária
se limitava à compreensão da relação de classe da exploração” (1980:20).

Nesse processo de construção de uma explicação sobre a


subordinação feminina, feministas identificadas como radicais, lançam mão
dos conceitos de poder e dominação patriarcal desenvolvidos por Weber, na
elaboração da teoria feminista do patriarcado. Segundo Kate Millet, uma das
primeiras teóricas dessa vertente, o patriarcado é uma instituição revestida
de aspectos ideológicos fundamentados na divisão sexual, nos mitos, na
religião, na educação, isto é, na cultura. É uma política sexual exercida
fundamentalmente de forma coletiva pelos homens sobre o coletivo de
_____________________________________________________________

6
Sobre a critica feminista a perspectiva marxista ver:
EISENSTEIN, Zillah (org) Patriarcado capitalista e feminismo socialista. México: Siglo Veintiuno, 1980
LARGUIA, Isabel. Contra el trabajo invisible de la mujer. In: La liberación de la mujer. Año Cero. Buenos
Aires: Granica, 1975;
WEINBAUM, Batya. El curioso noviazgo entre feminismo y socialismo. Madrid: Siglo Vientiuno, 1978;
COSTA: Ana Alice. As donas no poder. Mulher e política na Bahia. Salvador: NEIM-UFBa/Assembléia
Legislativa da Bahia.

872
mulheres. O patriarcado se constitui na base da força e da violência sexual
exercida contra as mulheres, na qual a violação é seu mecanismo principal de
domínio (1975).

Na elaboração da teoria do patriarcado em suas primeiras


vertentes, outras teóricas se destacaram: Sulamith Firestone que vê na
função reprodutiva a base da opressão feminina (1970:9); Julieth Mitchell que
além da capacidade reprodutiva da mulher identifica a “necessidade” que o
homem tem de garantir sua descendência como fatores da opressão feminina
(1975); Catherine Mackinnon vê “na expropriação organizada da sexualidade
feminina” (1982) a base da sua opressão, dentre outras.

Em geral, as feministas radicais definiam o patriarcado como


um sistema sexual de poder, como a organização hierárquica masculina da
sociedade que se perpetua através do matrimonio, da família e da divisão
sexual do trabalho, ao qual estão sujeitas todas as mulheres, independente
de sua condição de classe, raça e geração. Uma dominação que atinge
matizes e graus diferenciados em função dos contextos socioculturais e
históricos (Costa: 1998:30).

Esse empenho por parte de algumas teóricas feministas em


identificar as causas da opressão feminina sofrerá a partir dos anos 90,
importantes críticas, a exemplo das apontadas por Michèle Barrett e Anne
Phillips, ao recapitularem as bases do feminismo moderno. . Segundo estas
autoras:

“As feministas se diferenciavam substancialmente (e com ferocidade) no


que poderia ser esta causa: o controle masculino da fertilidade da mulher,
um sistema patriarcal de herança, a necessidade do capitalismo em
dispor de mão de obra dócil, mas em realidade não colocavam em dúvida
a própria noção de causa (...) Também era importante à suposição
compartida por todas as feministas, de que a causa buscada estava no
âmbito da estrutura social. Tal estrutura se podia afirmar como
patriarcado, como um sistema econômico explorador ou como relação
estrutural entre o lar e o local de trabalho, mas estas questões eram
formuladas a partir do ponto de vista da estrutura social” (2002:16).

Ainda nos anos 70 a inícios dos anos 80, as feministas


_____________________________________________________________

7
“O trabalho, é para o marxismo, como a sexualidade é para o feminismo. São socialmente construídos
enquanto construtores, universais como atividades historicamente específicas, construídas ao mesmo
tempo de matéria e espírito. Assim como a apropriação organizada do trabalho de alguns em beneficio de
outros define uma classe (trabalhadores), a expropriação organizada da sexualidade de uns para o uso de
outros define o sexo para as mulheres. A heterossexualidade é sua estrutura: Gênero e família são suas
formas cristalizadas, papéis dos sexos são suas qualidades generalizadas para a pessoa social; a
reprodução é uma conseqüência: o controle é seu problema”(MACKINNON:1982:516)

873
divididas entre liberais, socialistas e radicais buscavam respostas para essa
questão considerada central. As liberais colocavam sua ênfase na força dos
preconceitos, na tradição cultural que persistiam em estabelecer diferentes
funções para mulheres e homens. As feministas socialistas apontavam o
sistema que se beneficiava dessa opressão, dando ênfase na exploração em
detrimento dos preconceitos sexistas, mais na estrutura social do que nos
indivíduos, mais nos benefícios materiais que o capitalismo obteria com essa
opressão. Já as feministas radicais partindo de questões ligadas à
sexualidade e à violência masculina, à reprodução, direcionavam seu foco
para o homem e não para o capital, o homem seria “... um fator relativamente
inocente da opressão capitalista” (Barrett e Phillips.2002:17).

Segundo Barrett e Phillips esse eixo centrado na opressão por


parte das teóricas feministas se deslocara a partir dos anos 80 com a
incorporação de novas problemáticas por parte do movimento. As autoras
tratam de forma mais detalhada as três problemáticas apontadas de forma
reduzida a seguir:

 a crítica das mulheres negras contra as premissas racistas e


etnocêntricas das feministas brancas;

 as mudanças na perspectiva da distinção entre sexo e gênero a partir


da contribuição dos estudos psicanalíticos da diferença e das
identidades sexuais, a experiência da maternidade como base de
concepções alternativas de moralidade, a influência das vertentes
mais essencialistas do feminismo;

 a apropriação e o desenvolvimento por parte das feministas dos


conceitos pós-estruturalistas e pós-modernos.

Apesar do relativo abandono dos estudos sobre as


causas/origem da opressão feminina, a preocupação entre as teóricas
feministas para com as questões da opressão/subordinação em suas
diversas manifestações se manteve. Estes estudos têm no conceito de
patriarcado seu referencial teórico-metodológico principal, com alguns
ajustes que se fizeram necessários a partir da incorporação de novas
contribuições analíticas.

Como vimos anteriormente, as feministas radicais


identificavam o patriarcado como um sistema sexual de poder, como uma
organização hierárquica masculina de poder que atingia, invariavelmente
todas as mulheres.

Esse era o enfoque comum a todas as vertentes e que implica


874
a idéia de um conceito universal de patriarcado. Tal perspectiva tem merecido
a crítica e até mesmo o rechaço por outras vertentes do feminismo, em
especial aquelas ligadas aos pensamentos pós-estruturalistas e pós-
modernas, por considerá-la a - histórica e ver as mulheres de forma
homogênea ( o sujeito universal mulher).

Drude Dahlerup assume claramente esta perspectiva


universalista do conceito de patriarcado e refuta estas críticas ao afirmar que:

“... um conceito universal do patriarcado não supõe que todas as


sociedades sejam e sempre foram patriarcais. Ao contrário, é um conceito
universal que cobre todas as sociedades onde existe a dominação
masculina. Em segundo lugar, um conceito universal de patriarcado indica
que, nós estudiosas, em nossas pesquisas, estamos tentando
compreender alguns elementos comuns a todas as sociedades de
dominação masculina” (1996:115).

Não podemos esquecer que ao estabelecer-se um conceito


não significa que ele responda somente por realidades homogêneas. No que
se refere ao conceito de patriarcado a perspectiva é que ele seja um
instrumento analítico de realidades distintas, culturas diversificadas e
processos históricos específicos que atinge as mulheres de formas e graus
diferenciados, mas que ao final, todas, independente de como ela se
manifesta, vivenciam um sistema de dominação construído a partir de um
andocentrismo, vivenciam simplesmente pelo fato de serem mulheres.

Assim, do mesmo modo que as mulheres brasileiras estão


sujeitas a um sistema de dominação masculino, as mulheres islâmicas, por
exemplo, também o estão, apesar de apresentarem realidades de vida
completamente distintas. O mesmo acontece se nos prendemos somente a
realidade brasileira, veremos que essa dominação atinge todas as mulheres
salvaguardando suas diferenças de raça/etnia e classe e até mesmo região.

Em uma sociedade patriarcal as relações de gênero podem


variar de acordo com as características pessoais, culturais, geracionais e
mesmo pelo espaço político. Nesse sentido, o patriarcado não atinge de igual
maneira e intensidade a todas as mulheres, e não significa também que todos
os homens, invariavelmente, se beneficiam desse sistema.

A diferença fundamental no conceito de patriarcado utilizado


_____________________________________________________________

8
“Resultou difícil incorporar o terceiro eixo da desigualdade nos modelos estruturais da sociedade,
organizados em torno dos sistemas sexo e classe; as dificuldades já de por si espinhosa de elaborar uma
analise dos 'sistemas duais' desembocaram no reconhecimento tardio de que não tinham tomado em
conta a diferença e a desvantagem étnicas” (BARRETT e FHILLIPS. 2002:18).

875
hoje pela maioria das feministas em relação ao feminismo radical dos anos
70, é a necessidade de pensá-lo integrado a estrutura sócio-econômica de
qualquer sociedade. A opressão das mulheres é fruto de uma integração de
um sistema de poder patriarcal, capitalista e racista, como diria Saffiotti, uma
espécie de simbiose dessas três estruturas. Para ela, o patriarcado é:

“... um dos esquemas de dominação-exploração componentes de uma


simbiose da qual participam também o modo de produção e o racismo
(...). Pode, por conseguinte, ser utilizado para designar outra concepção
de relações de gênero (simbiose patriarcado-racismo-capitalismo),
diferente das resultantes das posturas dualistas como as de Weber
(1964) e Rubin(1975)” (1992:194).

Mesmo nas sociedades industriais mais avançadas esse sistema de dominação se


mantém através das crenças, dos valores, dos estereótipos de feminilidade, da
divisão sexual do trabalho. Segundo Linda MacDowell, cinco estruturas
analiticamente separadas (salvaguardando as diferenças de raça/etnia, classe e
geração) mantém o sistema de dominação patriarcal nestas sociedades, nas quais
os homens seguem dominando e explorando as mulheres:

 na produção doméstica – os homens se apropriam do valor do


trabalho doméstico não remunerado realizado pela mulher no âmbito
familiar;

 nas relações patriarcais no trabalho remunerado – onde às mulheres


estão relegadas às funções com salários inferiores e diferenciados;

 nas relações patriarcais no plano do Estado – os homens dominam as


instituições e elaboram uma legislação claramente desvantajosa para
as mulheres;

 na violência machista – os homens controlam o corpo feminino;

 nas relações patriarcais existentes nas instituições culturais –os


homens dominam a produção e a forma como os distintos meios de
comunicação e manifestação cultural representam a mulher
(MacDowell.2000:33)

É a existência desse sistema de dominação que define que


mesmo nas sociedades ditas mais avançadas, onde as mulheres
conquistaram a igualdade formal/legal, permaneçam excluídas das
estruturas de decisão, continuam sendo vítimas das mais diversas formas de
opressão e violência.
876
Segundo Marcela Lagarde, mesmo quando ideológica ou
formalmente se afirme a igualdade entre homens e mulheres, os homens
seguem tendo o direito e dever de estabelecer normas, dirigir, controlar e
estabelecer sanções às mulheres na medida em que controlam os aparelhos
legais de elaboração, implementação e fiscalização das leis. A dominação
patriarcal mantém as mulheres em uma condição de medo e coerção
permanente em todos os contextos das relações sociais:

“No mundo patriarcal a mulher tem medo dos homens em todos os


âmbitos e em qualquer das relações sociais em que estejam envolvidas
com eles: nas públicas, nas privadas, na intimidade ou inclusive quando
não vivenciam relações diretas entre ambos. Na verdade as mulheres
têm medo dos poderes danosos dos homens e de sua capacidade
opressiva, mas sentem medo também dos homens em abstrato e de cada
homem em si mesmo (...). Sem importar condição social ou ideologias, a
memória de gênero de todas as mulheres está saturada de imagens,
relatos e experiências de uso de poderes lesivos sobre seus congêneres
e sobre elas mesmas e de medo”(Lagarde:1997:71).

Esse poder dos homens se realiza nas dimensões sociais e pessoais a partir
da capacidade de dar e tirar bens, status, prestígio, valor, espaço social,
referência de sentido e até mesmo sentido a vida da maioria das mulheres. O
uso destes poderes junto com a ameaça e a chantagem, quando não a
própria violência sexual e doméstica, são recursos constantes para manter as
mulheres sob controle e garantir-lhes a obediência, são recursos políticos de
domínio patriarcal sobre as mulheres. (Lagarde:1997:71).

Nessa perspectiva apresentada por Lagarde, podemos identificar claramente


os três tipos de instrumentos de poder apresentados por Galbraith, conforme
vimos anteriormente, o poder condigno (coercitivo), o compensatório e o
condicionado. Através de um jogo de dominação e controle os homens
exercem seus poderes sobre as mulheres, que em função do medo, da
possibilidade de violência, da ameaça de perda sobre posições e condições
por elas valoradas, isto é, dentro de um jogo de interesses, ou mesmo por
força de todo um conjunto de ideologias sexuais, as mulheres se submetem
ou simplesmente acatam esse poder. Por outro lado esse jogo de poder se
desenvolve em uma perspectiva relacional em um campo de força
assimétrico, como diria Foucault.

Um outro campo de dominação apresentado por Lagarde como de


_____________________________________________________________

9
Os homens constroem as normas e elas devem cumpri-las. Constituídos em juízes, podem avaliar seus
atos, suas condutas, seus pensamentos e suas obras, estão em possibilidade de descriminá-las,
considerá-las culpáveis, castigá-las e até perdoá-las. Eles as julgam através da crítica social e pessoal,
publica e privada, e podem coagi-las através das leis, até do erotismo e do amor, a supressão dos bens ou a
violência” (LAGARDE.1997:70-71).

877
“inferioridade patriarcal”é o impedimento de auto-representação das
mulheres ou que enquanto gênero as mulheres tenham uma representação
própria. Essa representação das mulheres considerada redundante ou
desnecessária, pois elas são “... representadas simbólica, jurídica e
politicamente pelos homens, invisibilizadas em suas necessidades e na sua
condição de sujeitos sociais” Por outro lado, os homens, por sua condição de
gênero têm o poder/capacidade de auto-representar-se, de falar em nome
próprio ou da coletividade (humanidade), de reivindicar seus interesses e
necessidades legitimados como de interesse geral. Os homens falam, atuam
e decidem também em nome das mulheres, enquanto representantes
universais de ambos os gêneros, são os legítimos porta-vozes do povo, da
cidadania, da humanidade (Lagarde.1997:72-73). As mulheres
invariavelmente permanecem invisíveis.

No campo do poder político e das representações formais essa invisibilidade


se manifesta através da exclusão feminina das esferas institucionais de
decisão e poder e da própria construção de cidadania como veremos a seguir.

As mulheres e o político

O feminismo que ressurge nos anos 60, comumente identificado como a


“segunda onda do feminismo” vai romper com os limites do conceito de
político até então identificado pela teoria política com o âmbito da esfera
pública e das relações sociais que aí acontecem, isto é, no campo da política,
entendida aqui como o uso limitado do poder social.

Baseada na concepção de Hannah Arendt da política como


participação ativa na vida pública, Young vê política como a expressão mais
nobre da vida humana, por ser a mais livre e original. Para ela,

“A política enquanto vida pública coletiva implica que as pessoas se


distanciem de suas necessidades e sofrimentos particulares para criar
um universo público no qual, cada um aparece ante os demais em sua
_____________________________________________________________

10
“ As ideologias sexuais se definem como sistema de crenças que explicam como e porque se diferenciam
os homens e as mulheres; sobre essa base específica de direitos, responsabilidades, restrições e
recompensas diferentes ( e inevitavelmente desiguais) para cada sexo; e justificam reações negativas ante
os inconformismos. As ideologias sexuais se baseiam praticamente sempre em princípios religiosos (Deus
disse...) e/ou concepções referentes as diferenças entre os sexos biologicamente inerentes, 'naturais'”
(SALTZMAN. 1992:44)
11
Sobre a questão da invisibilidade da mulher nas várias instancias da vida social ver entre outros:
Costa, Ana Alice. Op. Cit. 1998
SARDA, Amparo Moreno. En torno al androcentrismo en la história. Cuadernos inacabados. El
arquétipo viril protagonista de la história. Exercícios de lecturas no andocentricas. Barcelona: La
Sal. 1987;
SCOTT, Joan Wallach. El problema de la invisibilidad. In. ESCANDÓN, C.R. (org). Género e História.
México: Instituto Mora/UAM. 1992. p.38-65
878
especificidade. Unidos no público, os indivíduos criam e recriam,
mediante palavras e fatos contingentes, as leis e instituições que
estruturam a vida coletiva, regulam seus conflitos e desacordos
recorrentes e tecem as narrativas da sua história”(2001:693).

Ao afirmar que “o pessoal é político”, o feminismo trás para o


espaço da discussão política as questões até então vistas e tratadas como
específicas do privado, quebrando a dicotomia público-privado base de todo
o pensamento liberal sobre as especificidades da política e do poder político.

Para o pensamento liberal, o conceito de público diz respeito ao Estado e


suas instituições, a economia e tudo mais identificado com o político. Já o
privado se relaciona com a vida doméstica, familiar e sexual, identificado com
o pessoal, alheio à política.

Ao utilizar essa bandeira de luta o movimento feminista chama


a atenção das mulheres sobre o caráter político da sua opressão, vivenciada
de forma isolada e individualizada no mundo do privado, identificadas como
meramente pessoais. Essa bandeira, para Carole Pateman,

“... chamou a atenção das mulheres sobre a maneira como somos levadas
a contemplar a vida social em termos pessoais, como se tratasse de uma
questão de capacidade ou de sorte individual (...) As feministas fizeram
finca-pé em mostrar como as circunstâncias pessoais estão estruturadas
por fatores públicos, por leis sobre a violação e o aborto, pelo status de
'esposa', por políticas relativas ao cuidado das crianças, pela definição de
subsídios próprios do estado de bem estar e pela divisão sexual do
trabalho no lar e fora dele. Portanto, os problemas 'pessoais' só podem
ser resolvidos através dos meios e das ações políticas” (1996:47)

Esta separação entre a vida privada das mulheres e o mundo público dos
homens está na base do liberalismo patriarcal desde sua origem. Foi Locke
no Segundo Tratado o primeiro teórico político a fundamentar essa separação
_____________________________________________________________

10
“ As ideologias sexuais se definem como sistema de crenças que explicam como e porque se diferenciam
os homens e as mulheres; sobre essa base específica de direitos, responsabilidades, restrições e
recompensas diferentes ( e inevitavelmente desiguais) para cada sexo; e justificam reações negativas ante
os inconformismos. As ideologias sexuais se baseiam praticamente sempre em princípios religiosos (Deus
disse...) e/ou concepções referentes as diferenças entre os sexos biologicamente inerentes, 'naturais'”
(SALTZMAN. 1992:44)
11
Sobre a questão da invisibilidade da mulher nas várias instancias da vida social ver entre outros:
Costa, Ana Alice. Op. Cit. 1998
SARDA, Amparo Moreno. En torno al androcentrismo en la história. Cuadernos inacabados. El
arquétipo viril protagonista de la história. Exercícios de lecturas no andocentricas. Barcelona: La
Sal. 1987;
SCOTT, Joan Wallach. El problema de la invisibilidad. In. ESCANDÓN, C.R. (org). Género e História.
México: Instituto Mora/UAM. 1992. p.38-65

879
ao afirmar que o poder político só pode ser exercido sobre indivíduos adultos,
livre e iguais e com seu consentimento. Esse poder político não deve ser
confundido com o poder exercido pelo pai sobre os filhos na esfera privada e
familiar (Pateman.1996:34).

O liberalismo, como doutrina política, ressalta a importância do indivíduo, a


defesa das liberdades individuais, a garantia da livre iniciativa econômica
sem a intervenção do Estado e, sobretudo, o direito à propriedade privada. O
indivíduo se define como proprietário, a propriedade passa a ser uma espécie
de extensão do indivíduo. Os homens são livres porque são proprietários.
Para as mulheres, mesmo que proprietárias, continuam fechadas as portas
do mundo público. Essas são as bases gerais das teorias do contrato social
desenvolvidas por Jonh Locke e Jean Jacques Rousseau que explicam
hipoteticamente a origem do poder político e da sociedade civil.

Para Locke, os homens através de um ato racional e livre concordam em criar


a sociedade e nela o estado, renunciando ao estado natural de completa
liberdade. Porém o mesmo não acontece com as mulheres, já excluído desse
pacto em função de um pacto anterior, o contrato conjugal estabelecido com o
homem, o marido, para a procriação, a ajuda mutua e a preservação do
patrimônio, no qual a mulher fica submetida ao homem. Através do controle
da propriedade e do contrato conjugal, o homem compra a obediência dos
filhos e mantém a mulher subjugada. Na qualidade de despossuída, a mulher
esta sujeita ao poder despótico do homem. Para Locke existe o poder político
“... quando os homens têm propriedade a sua disposição, e o despótico, sobre
os que não possuem qualquer propriedade”(1979:103).

Já para Rousseau, as bases igualitárias e democráticas que propõe para a


sociedade civil construída a partir da Vontade Geral, criada através do
contrato social, não se aplicam à família, ali o que prevalece é o poder do mais
forte. No Discurso sobre a economia política, Rousseau afirma que “Por ser o
pai fisicamente mais forte que seus filhos (...) o poder paterno aparece com
razão estabelecido pela natureza”. Uma afirmação no mínimo contraditória
com o que afirma no Discurso sobre a origem e os fundamentos da
desigualdade entre os homens, de que a “... desigualdade física não implica
em desigualdade moral ou do poder”(1978:251).

A sociedade civil, erigida com base nas teorias contratualistas é patriarcal,


autoritária e excludente. Essa será a fundamentação ideológica inicial no
_____________________________________________________________

12
Em outra obra, YOUNG, apresenta de uma forma mais abrangente o conceito de política como “...todos
os aspectos da organização institucional, a ação publica, as práticas e os hábitos sociais, e os significados
culturais, na medida em que estão potencialmente sujeitos a avaliação e tomada de decisões coletivas.
Nesse sentido inclusivo, a política compreende, naturalmente, as iniciativas e ações do governo e o
Estado, e em principio pode também compreender regras, praticas e ações que aconteçam em qualquer
outro contexto institucional.” (2000:62)

880
processo de formação do estado nacional e a constituição dos chamados
direitos individuais e a garantia da igualdade formal. Uma igualdade que
desde seus primórdios, mesmo no campo formal, manteve as mulheres
alijadas. Segundo Pateman, a sociedade civil patriarcal esta dividida em duas
esferas, mas a história do contrato social somente trata de uma delas, a
pública, a da liberdade civil. A outra, a privada, “não é vista como
politicamente relevante” (1993:18). Para esta autora,

“O contrato social é uma história de liberdade; o contrato sexual é uma


história de sujeição. O contrato original cria ambas, a liberdade e a
dominação. A liberdade do homem e a sujeição da mulher derivam
contrato original e o sentido da liberdade civil não pode ser compreendido
sem a metade perdida da história, que revela como o direito patriarcal dos
homens sobre as mulheres é criado pelo contrato. A liberdade civil não é
universal – é um atributo masculino e depende do direito
patriarcal”(Pateman:1993:17).

O modelo de cidadania derivada dessa perspectiva liberal, construída como


categoria universal, é essencialmente masculina, constituída com base na
exclusão feminina a partir da definição da esfera privada como o lugar da
mulher, o lugar da diferença, da paixão, do instinto, da irracionalidade, da
reprodução, enfim, como o lugar da natureza, das necessidades (Costa.
1996:64). Esse modelo de cidadania vai constituir-se na verdade em uma
barreira impeditiva ao acesso das mulheres às esferas de decisão formais do
chamado mundo público, um modelo tão restritivo que ainda hoje, apesar de
todas as legislações igualitárias e todas as transformações ocorridas na vida
das mulheres, estas continuam sendo minorias no executivo, no legislativo e
no judiciário, não só no Brasil.

Uma cidadania que pressupõe a existência de indivíduos livres, autônomos


com capacidade para participar nas decisões políticas de um modo geral, não
considera a condição de opressão à qual estão submetidas as mulheres e
que vai determinar sua forma de participação e inserção política, já que na
prática, resulta para as mulheres: 1) sua condição de gênero oprimido impede
e obstaculiza o exercício pleno da cidadania; 2) sua vulnerabilidade física, no
medo da violência sexual e a possibilidade de serem espancadas no lar, são
_____________________________________________________________

13
“A liberdade natural do homem consiste em estar livre de qualquer poder superior, e não sob a vontade ou
a autoridade legislativa do homem, tendo somente a lei da natureza como regra. A liberdade do homem na
sociedade não deve ficar sob qualquer outro poder legislativo senão o que se estabelece por
consentimento na comunidade, nem sob o domínio de qualquer vontade ou restrição de qualquer lei senão
o que esse poder legislativo promulgar de acordo com o crédito que lhe concedem (...) a liberdade dos
homens sob governo importa em ter regra permanente pela qual viva, comum a todos os membros dessa
sociedade e feita pelo poder legislativo nela erigido: liberdade de seguir a minha própria vontade em tudo
quanto a regra não prescreve, não ficando sujeita à vontade inconstante, incerta e arbitrária de qualquer
homem; como a liberdade de natureza consiste em não estar sob qualquer restrição que não a lei da
natureza”(LOCKE, 1979:43).

881
obstáculos ao seu envolvimento em atividades públicas e as excluí do
exercício dos direitos civis; por não disporem de ingresso financeiro próprio,
estão submetidas à vontade e às ameaças do marido; 4) a ideologia da
feminilidade é contraditória com a racionalidade do mundo político; 5) a dupla
jornada de trabalho lhes deixa com menor disponibilidade para participar da
vida política na qualidade de cidadã (Suzan James Apud Costa:1998:71-72).

A cidadania liberal e a crítica feminista

O conceito de cidadania é uma herança da Grécia antiga, que foi sofrendo


modificações no decorrer da história. Nas sociedades liberais modernas este
conceito integra três sentidos: como status, posição, do qual faz parte um
conjunto de direitos e deveres; como identidade que pressupõe o
pertencimento, vínculo a uma comunidade política definida pela
nacionalidade e a existência de um território determinado; e como prática
exercida através da representação e participação política.

Marshall, um dos principais teóricos do estado de bem-estar social, elaborou


em 1949 um conceito de cidadania, vigente até hoje e que inclusive é o
modelo utilizado integralmente na elaboração da Constituição brasileira de
1988, constituído por um conjunto de direitos que determinam como cada
cidadão deve ser tratado como membro igual e pleno de uma sociedade. A
cidadania plena de uma sociedade envolve três tipos de direitos: civis,
políticos e sociais, aos quais o autor denomina partes ou elementos:

“O elemento civil se compõe dos direitos necessários para a liberdade


individual: liberdade pessoal, de expressão, de pensamento e religioso,
direito a propriedade e a realizar contratos válidos e direito a justiça (...)
Por elemento político entendo o direito de participar no exercício do poder
político como membro de um corpo investido de autoridade política, ou
como eleitor de seus membros (...) O elemento social abarca todo o
espectro, desde o direito a segurança e a um mínimo de bem-estar
econômico ao de compartir plenamente a herança social e viver a vida de
um ser civilizado conforme o padrões predominantes na
sociedade”(Marshall.1998:23)

Esses três elementos coincidiram com três fazes do


desenvolvimento histórico da cidadania. Os direitos civis se consolidaram no
século XVIII, os políticos no século XIX e os sociais no século XX. Este último
indicaria o ponto culminante desse desenvolvimento histórico. Segundo
Marshall, desde a Revolução Francesa vem se produzindo um progresso no
que se refere ao acesso das distintas classes sociais aos diferentes direitos.
Para ele, “... o sistema de classes seria aceitável sempre que reconhecesse a
igualdade de cidadania”(Marshall.1998:21).
882
Esse esquema do Marshall só pode ser aplicado para os
homens, em especial os europeus. As mulheres só tiveram acesso a estes
direitos, muito tempo depois que os homens. A cidadania civil para muitas
mulheres só foi obtida algum tempo depois de terem conquistado a cidadania
política. Esse é o caso do Brasil, onde as mulheres conquistaram a cidadania
política em 1932 com a lei do sufrágio universal, mas a cidadania civil só foi
garantida com a Constituição Federal de 1988 que garantiu a igualdade
(formal) entre os homens e mulheres, acabou com a idéia do homem como o
cabeça do casal e proibiu todas as restrições de acesso das mulheres nas
diversas instâncias da vida social.

Por outro lado, essa idéia de cidadania plena e universal se


apresenta como uma utopia para a maioria das mulheres e de outras
minorias, exatamente por não contemplar as diferenças de gênero e
raça/etnia.

A luta contra as discriminações das mulheres em matéria de


direitos políticos tem sido uma das ênfases do movimento feminista, desde
seu surgimento quando ainda lutava pelo acesso das mulheres a educação e
a conquista dos direitos civis mais elementares. Só recentemente a teoria
política, a partir da contribuição das feministas, tem se preocupado em
superar o dilema igualdade/diferença dando ênfase a uma cidadania
democrática que reconheça a diversidade e o pluralismo.

Nesse sentido merece destaque a contribuição de Carole


Pateman, Chantal Mouffe, Marion Iris Young, Anne Philips, Mary G. Dietz,
Célia Amorós, Cristina Molina Petit, entre outras, na tentativa de construção
de modelos alternativos de cidadania, que contemplem as diferenças e
pluralidades entre os sujeitos políticos e garanta de fato o acesso das
mulheres ao poder.

Essa contribuição feminista aos estudos da cidadania, dada sua


complexidade, é uma abordagem a ser tratada em um trabalho posterior.

883
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886
MULHERES NA POLÍTICA:
AS FILHAS HERDEIRAS E A FORÇA DO NOME DA FAMÍLIA
Gloria Rabay - Nipam / UFPB

No emaranhado de articulações que constitui a política, a família tem,


sem dúvida, especialmente no nordeste brasileiro, um papel considerável no
esteio do poder tradicional, sendo um dos componentes característicos da
forma de fazer política, especialmente no que diz respeito ao poder local. A
“herança política”, ou seja, a transmissão desse capital simbólico para
postulantes a cargos públicos eletivos já foi bastante estudado no Brasil.
Nesses trabalhos o “continuísmo” no campo político foi visto como uma
afirmação das tradições oligárquicas.
O fato de fazer sucessor, garantindo a longevidade de determinadas
linhagens políticas, era considerado uma espécie de ação patrimonial,
oposta aos critérios democráticos capazes de incorporar os riscos e as
contingências de uma eventual ruptura ou rotatividade nos espaços de
poder. (BARREIRA, 2008, p.100).

Considerando a herança como o processo de transmissão de um


patrimônio de uma geração a outra, ou de uma pessoa a outra, não
necessariamente em virtude da morte do proprietário e nem apenas
composta de bens materiais, as práticas de transmissão de herança podem
dizer muito a respeito da cultura e da forma como o poder é distribuído na
sociedade, assim, da mesma maneira que, na sociedade, as formas de
transmissão de herança têm sofrido transformações ao longo da história.
Cada vez mais, em se tratando de capital político, não é tanto a
propriedade do objeto a ser herdado que está em disputa, já que, em geral,
não se trata de algo concreto, mas do direito sobre o capital simbólico a ser
herdado. Bourdieu (2004, p.187) assinala que “o capital político é uma forma
de capital simbólico, crédito firmado na crença e no reconhecimento” da
legitimidade para agir na política. O capital político é formado por capital
cultural, capital social (redes de relações estabelecidas) e capital econômico,
estando desigualmente distribuído na sociedade entre os simples eleitores e
os líderes, que são reconhecidos como representantes dos diversos
segmentos sociais. (MIGUEL, 2003, p. 121).
Esse capital “que se adquire nos aparelhos de sindicatos e partidos
transmite-se através de redes de relações familiares que levam à constituição
_____________________________________________________________

1
Iraê Heusi de Lucena Nóbrega, nascida em 01/07/1958, casada, dois filhos, publicitária, filha do falecido
senador Humberto Lucena. Estreou na política em 1998, pelo PMDB, conquistando uma cadeira na
Assembléia Legislativa da Paraíba, com 20.622 votos. Em 2002 e 2006, conquistou 20.370 e 22.641 votos
respectivamente, reelegendo-se deputada estadual.

887
de verdadeiras dinastias políticas” (BOURDIEU, 1996b, p.30). No entanto, o
direito de ser o herdeiro não é líquido e certo para os descendentes ou
parentes próximos. O capital político e social a ser transmitido precisa ser
conquistado pelo herdeiro.
No Brasil, durante todo o período colonial e o império, existiam sérias
restrições ao direito de herança das mulheres. Mesmo no século XX, até
1962, quando foi instituído o Estatuto da Mulher Casada, Lei 4.121, vigorava o
Código Civil de 1916, que determinava que a mulher, mesmo empresária ou
trabalhadora, não podia, sem autorização do marido, aceitar ou repudiar
herança ou legado; nem exercer profissão ou aceitar mandato (CORTÊS,
2003). De maneira que, até recentemente, apenas os filhos varões herdavam
o patrimônio da família sem que se gerasse debate a respeito desse direito,
fosse patrimônio de natureza material ou não.
Com as transformações sociais ocorridas nas últimas décadas, as
mulheres passaram a disputar o direito à herança, em geral, material. Mas há
motivos para se acreditar que ainda são poucos os investimentos familiares
na preparação das mulheres para o êxito do “empreendimento de sucessão”
(BOURDIEU, 1997), no âmbito político. Assim, com raras exceções, é através
de suas próprias iniciativas que as mulheres surgem como herdeiras de
legados políticos. Uma vez que mesmo em suas famílias, em geral, não se
espera, nem se preparam as mulheres para assumirem a liderança política do
grupo, é depois de um longo processo de convivência e “treinamento”
informal que as mulheres surgem como possibilidades para os processos
eleitorais, muitas vezes enfrentando resistências internas.
Para Bourdieu (1997, p. 10), a identificação com o pai, e com o seu
“projeto”, constitui, sem dúvida, uma das condições necessárias para a boa
transmissão da herança. Desta forma, foi preciso que as transformações
sociais afetassem também a psique feminina para que as mulheres
pudessem criar mecanismos de identificação com o pai político e adquirissem
o status de herdeira.
[...] Não cheguei a participar do movimento estudantil [...] comecei mesmo a
me envolver com a política foi com meu pai, ouvindo suas conversas... no
trabalho diário, nas vindas aqui ao estado... Nunca houve divergências
entre nós. Ele sempre foi o meu mestre e meu herói. (Iraê Lucena –
deputada estadual, PB).

“Aproveitar experiências”, “ouvir conversas” no cotidiano e outras


marcas discursivas remetem a um longo e lento processo de socialização
familiar que ajudou a formar o gosto pela política e transmitiu disposições que
possibilitaram as herdeiras desejarem a herança, se identificando com o
projeto político familiar. Projeto que,
[...] estando inscrito nas disposições herdadas, transmite-se

888
inconscientemente na sua maneira de ser, e também, explicitamente, por
ações educativas orientadas para a perpetuação da linhagem. Herdar é
substituir essas disposições imanentes, perpetuar esse conatus, aceitar
fazer-se instrumento dócil desse “projeto de reprodução” (BOURDIEU,
1997, p.09).

O modelo oligárquico de base familiar, que projeta familiares para o


campo político é, sem dúvida, dominado pela figura masculina; é o patriarca o
líder político, ainda que já se encontrem nos esquemas políticos familiares
brasileiros, figuras femininas de prestígio e poder, mesmo que sob estruturas
patriarcais. De maneira que o instrumento do projeto familiar pode ser
representado pela mãe, sendo nela que se constituem o esteio e identificação
para a vida pública. Uma das entrevistadas tem na mãe política um modelo
para a vida pública.
Vilma, minha mãe, é uma pessoa que atira as pessoas para a vida, ela

orienta, é uma pessoa muito experiente, e isso foi fundamental para mim,
aproveitar essas experiências. [...] E Vilma é um bom referencial, ela tinha
uma experiência administrativa na prefeitura era conhecedora de toda
problemática social e econômica, não somente da cidade, mas da região e
ela prestou uma assessoria muito competente [...] Ela é a maior influência,
e eu faço questão de dizer isto. (Olenka Maranhão – deputada estadual,
PB).

É importante assinalar que esse trabalho é parte da tese de Doutorado


“Mulheres na Política e Autonomia” (RABAY, 2008), quando procurou-se
(re)construir as trajetórias de mulheres na política, buscando apreender,
como afirma Gaulejac (2000, p.141), as articulações, as influências
recíprocas entre os diferentes registros que determinam sua história, através
dos relatos biográficos de mulheres que participam do campo político
partidário na Paraíba e que já vivenciaram um processo eleitoral com
chances de êxito.
Os quinze (15) relatos autobiográficos que serviram de base para as
análises foram realizados com mulheres que participaram de processos
eleitorais na Paraíba, entre 1998 e 2006, sendo que todas as mulheres que se
elegeram no estado para a Assembléia Legislativa e Câmara Federal no
período foram entrevistadas. Apesar de trazer como referencial os dados de
todas as entrevistadas, e também compreender a “herança” das esposas,
para esse texto especificamente, o foco foi dado aos discursos das “filhas
_____________________________________________________________

2
Nascida em 03/01/1970, foi eleita prefeita de Cacimba de Dentro - PB, aos 22 anos, em 1992. Sobrinha de
José Maranhão, ex-governador da Paraíba, reeleito em 1998, ano em que Olenka alcançou 43.738 votos,
pelo PMDB, a maior performance eleitoral, na história do estado, até então. Reelegeu-se deputada
estadual em 2002, com 33.740 votos e, em 2006, com 28.669 votos.
3
Os relatos autobiográficos referidos farão parte de uma publicação (no prelo) em co-autoria com a
professora doutora Maria Eulina Pessoa deZ Carvalho, do Centro de Educação da UFPB.

889
herdeiras” e só esse tipo de legado será analisado.
A partir de Bourdieu (2004a, pp. 190-194), podemos inferir alguns tipos,
ou espécies, de capital político para tentar uma classificação. Para o autor, o
político deve sua autoridade no campo específico à força de mobilização que
ele detém “quer a título pessoal, quer por delegação”. Desta forma, pode-se
falar em: a) capital pessoal de notável, produto da reconversão de um
capital acumulado em outros domínios, e, em particular, em profissões que,
como as profissões liberais, permitem tempo livre e supõem um certo capital
cultural, ou no caso dos advogados, um domínio profissional da eloqüência;
b) capital pessoal heróico, produto de uma ação inaugural, realizada em
situação de crise, no vazio e no silêncio deixados pelas instituições, [...] se
fundamenta e se legitima ela própria, retrospectivamente, pela confirmação
conferida pelo seu próprio sucesso [...] e c) capital delegado (de uma
autoridade política) “como o do sacerdote, do professor e, mais geralmente,
do funcionário, produto da transferência limitada e provisória (apesar de
renovável, por vezes vitaliciamente) de um capital detido e controlado pela
instituição e só por ela [...]” (BOURDIEU, 2004, p. 191).
Pinheiro (2007, p. 87), a partir da classificação de Bourdieu, adotou
outra tipologia que desagrega os tipos propostos por Bourdieu, para analisar
o tipo de capital político que as mulheres levam para a Câmara dos
Deputados, chegando, assim, a uma tipologia que abarca quatro
possibilidades de capital político: a) capital familiar – delegado das famílias
que têm tradição política; b) capital oriundo da participação em movimentos
sociais; c) capital delegado da ocupação de cargos públicos/políticos em
função de um saber técnico especializado, e d) capital convertido de outros
campos que não o político.
Mesmo utilizando as categorias criadas por Pinheiro, que têm
considerável proximidade com o que se observa nesse estudo, não é fácil
categorizar a espécie de capital político com o qual as mulheres entram no
campo. Parece que qualquer tentativa é limitante e reduz a realidade. Ainda
assim, arriscando uma redução, observa-se que a maioria (11) entre as
quinze entrevistadas acumulou capital político para a primeira candidatura
através da rede de parentesco. Entre elas, três (03) são filhas de político
influentes.
Mas, além do “capital familiar”, dez (10) das mulheres com vínculos de
parentesco com políticos também tinham “capital delegado” da ocupação de
cargos públicos. Entre as parentas, apenas Olenka Maranhão não havia
ocupado algum cargo importante antes de se lançar pela primeira vez em um
pleito eleitoral, aos vinte e dois (22) anos. Oito (08) haviam sido primeira-
dama, das quais apenas três não ocuparam cargos públicos. A respeito delas,
pode-se afirmar que a força e a influência no papel de esposa do político foi
marcante.
890
Quanto ao capital oriundo da participação em movimentos sociais ou
convertido de outros campos, que não o político, só foi encontrado em
mulheres sem vínculos familiares políticos. Três delas se referiram ao
movimento estudantil como um local de formação política, embora não tenha
sido esse espaço o imediatamente ocupado antes da primeira candidatura.
Duas se referiram ao movimento sindical, e uma, a atuação no rádio. Apenas
para duas das entrevistadas, o partido foi um local importante para a
conquista de capital político, tendo sido, nesse grupo, as únicas que se
mantiveram no mesmo partido durante toda a trajetória política.
Nascidas em famílias de nível cultural, número de membros e classes
sociais diversas, a origem familiar permite poucas conclusões a respeito da
influência da herança familiar no destino político das mulheres. Ela só é clara
nos casos de Olenka Maranhão e Iraê Lucena, ainda que nas outras
trajetórias haja “coincidência” entre as mais pobres e a ausência de legados
familiares concretos.
Pouco menos da metade (sete) das entrevistadas herdaram, de suas
famílias de origem, algum capital monetário, político e/ou sócio cultural
passível de contribuir para a construção de uma rede de contatos e
articulações facilitadoras para o sucesso eleitoral. Além disso, nem todas as
heranças procedentes das famílias de origem contribuíram diretamente para
a constituição do capital político. As mulheres herdaram um patrimônio
bastante diverso, tanto no que se refere ao seu tamanho, quanto à sua
qualidade.
Utilizando a categoria proprietário para discutir a classe social da
família de origem das políticas, vê-se que cinco mulheres, pertenciam a
famílias de proprietários (pequenas indústrias ou comércio e propriedade
rural). No entanto, a categoria, nesse estudo, não é elucidativa porque, nos
casos citados, o que era revertido em capital econômico para suas famílias,
advindo desta propriedade, parece, pelas narrativas, insignificante ou apenas
suficiente para um padrão de vida simples, em cidades de pequeno e médio
porte no interior do nordeste. Ressaltamos, no entanto o caso de Socorro
Marques que, apesar de sua mãe ser uma proprietária de terras empobrecida
no sertão paraibano era fundadora da cidade e certamente influenciou no
primeiro pleito eleitoral para a prefeitura da cidade onde Socorro Marques
iniciou sua carreira política
Entre as cinco entrevistadas que podem ser classificadas como
pertencentes à classe média (funcionários públicos, profissionais liberais,
políticos profissionais), a família de origem de três delas não possuíam
história de participação política partidária, entretanto receberam de suas
famílias incentivo e estrutura para viverem em ambiente de considerável
cultura letrada, herdando capital social e cultural, portanto, uma rede de
articulação que facilitou sua entrada na política. O legado familiar teve
891
influência política direta na carreira de apenas duas das entrevistadas, Iraê
Lucena e Olenka Maranhão, já que as duas são filhas de políticos.
Entre as seis nascidas em famílias mais humildes pode-se dizer que
não houve qualquer tipo de herança política, social ou cultural direta que
contribuísse para uma inserção política partidária, salvo se considerarmos
que as difíceis condições de vida, na infância, serviram como lastro para a
vida política. Mesmo nesta hipótese, apenas uma refere-se às condições em
que viveu como parte do processo que a fez entrar na política.
Como eu não tinha obrigação para voltar para casa, não gostava de voltar
para casa – porque casa de pobre ninguém gosta de voltar, o que meu pai
ganhava como alfaiate mal dava para a alimentação, não tinha que o fazer,
não tinha televisão, não tinha rádio, o almoço era ruim – e eu tinha muita
ânsia por leitura, passei a freqüentar assiduamente a biblioteca de
Jaguaribe (bairro de classe média baixa), minha fonte de inspiração. Foi lá
que eu peguei o hábito da leitura. E por isso eu aprendi a escrever bem [...].
Aprendi com eles (líderes do movimento estudantil) que as pessoas iam
melhorar de vida se pudessem partir para uma luta. Dessa forma, eu achei
melhor entrar numa luta do que ficar apática. (Aracilba Rocha – candidata a
deputada federal em 1998, PB).

Até no caso de uma das entrevistadas, cujo pai foi vereador de sua
cidade natal, por três vezes, e cabo eleitoral do dono do engenho onde
trabalhava, não é possível atribuir, ao legado paterno, qualquer sucesso
eleitoral, uma vez que o último mandato do pai foi em 1965, e a entrevistada
declarou que seu envolvimento na política iniciou em 1982, quando, já
casada, se envolveu na campanha do marido para prefeito da cidade de
Santa Rita-PB. Além disso, sua primeira candidatura para o executivo
municipal aconteceu em 1992, depois de ter assumido a Secretaria do Bem-
Estar Social, durante o mandato de prefeito do cônjuge. Embora aluda, com
freqüência, aos ensinamentos do pai na política, para demonstrar que seu
aprendizado teve início ainda criança “[...] Foi essa política que eu aprendi
com meu pai”, não se pode assegurar uma herança paterna concreta e
influente.
Nesse caso, consideramos que a influência do esposo e de sua família
supera e anula o legado paterno na construção de sua trajetória política. já
que o legado paterno se deu mais no âmbito do aprendizado do que em forma
de prestígio e voto, de maneira que foi o casamento com um membro de uma
família política poderosa que decidiu sua carreira parlamentar. Ou seja, foi
como esposa que se deu o percurso até o palanque e não como filha.
_____________________________________________________________

4
Maria do Socorro Marques Dantas, nascida em 19/03/1934, oito filhos, economista, ex-prefeita de Vista
Serrana (por dois mandatos de 1993 a 1996). Em 1998, conquistou uma vaga na Assembléia Legislativa,
pelo PSDB, com 13.932 votos. Em 2002, tentou a recondução, mas não obteve sucesso. Foi secretária
adjunta de Acompanhamento de Gestão no estado da Paraíba. Em 2006, foi reeleita para a Assembléia
Legislativa da Paraíba, pelo PPS.

892
A força do nome
No pensamento mágico, ou no popular, em muitas culturas, os nomes
pessoais são carregados de uma “energia” capaz de influenciar o destino e a
personalidade de seu possuidor. Offroy (2004/2005, p.120) assinala que ante
tais crenças, a atitude positivista foi de suprema ignorância e desprezo, de
maneira que o pensamento científico, em geral, vai tratar o nome e o prenome
apenas como um identificador, tal qual um número em um cadastro. No
entanto, segundo Offroy, essas idéias sobre o nome dado devem ser
pensadas como uma metáfora de certa realidade, pois,
o prenome vai inscrever o indivíduo no Livro de sua comunidade e na sua
história, vai inseri-lo na cadeia das gerações. O prenome que nos é
atribuído quando nascemos vai exprimir a posição que deveremos ocupar,
o lugar que nos é fixado pelo grupo social e familiar, o destino que é

sonhado para nós pelo desejo parental. (OFFROY, 2004/2005, p.120)

Em muitas culturas, o prenome sinaliza o destino social, pois designa o


herdeiro que vai herdar o patrimônio, o ofício, o status paterno e defender o
prestígio da linhagem. Esse “prenome emblemático”, “nome do ancestral e
símbolo da perpetuação da linhagem, coloca aquele que o recebe em
herança como depositário do projeto familiar”, ao tempo que revela esse
projeto. (OFFROY, 2004/2005, p.123).
O projeto familiar revelado na transmissão do prenome tende a
perpetuar a reprodução de uma ordem, simbolizando o desejo de
perpetuação do próprio grupo, o que não significa que o destinatário atenda
passivamente aos apelos parentais ou que eles não sejam subvertidos por
outros componentes do grupo. Pois a “herança”, provinda da família de
origem, pode significar concorrência dentro do núcleo familiar nas disputas
por cargos eletivos já que, pela lógica do patriarcalismo, os varões têm
prioridade na sucessão e representação política familiar. Entre as mulheres
entrevistadas, apenas três são herdeiras de patrimônios políticos da família
de origem e todas tiveram irmãos do sexo masculino, mas nenhuma relata
disputas fraternas em virtude do patrimônio político eleitoral: Socorro
Marques, Iraê Lucena e Olenca Maranhão. O que elas fizeram para, no
interior de suas famílias, conquistar esse espaço tradicionalmente reservado
aos homens? Como se mostraram mais viáveis para o projeto político
familiar? Ou, que transformações ocorreram no espaço político a ser
“herdado” que facilitou o acesso delas?
Iraê Lucena pertence a uma família cuja tradição tem formado homens
para o poder político no estado da Paraíba, desde o século XIX. Seu bisavô,
Solon de Lucena, foi presidente da Paraíba em 1916. O fato de seu irmão ter
recebido o mesmo nome do pai, Humberto Lucena, parece explicitar o desejo
de perpetuação através do herdeiro varão. “Costumo afirmar que meu irmão,
893
Humberto, herdou de meu pai o nome e eu o gosto pela política, que está no
sangue”.
No entanto, foi Iraê Lucena quem conquistou o direito de herdar o
legado político do pai. Ela descreve um percurso, cheio de resistências e
adiamentos, na busca de um espaço político consentido pelo pai/senador.
Para conquistar a aprovação do pai, Iraê precisou demonstrar, com afinco,
seu interesse e aptidão. Foram necessários anos de aprendizado, prestando
assessoria eleitoral e parlamentar, enquanto seu irmão nunca demonstrou
grande interesse pela carreira do pai, apesar do projeto embutido em seu
nome.
Na época das campanhas toda a família participava, mas era eu quem
viajava e o acompanhava pelo interior. Nessa convivência diária, comecei a
respirar política. Fiquei uns quatro ou cinco anos trabalhando com ele na
Câmara dos Deputados. [...] Participava de todas as reuniões políticas com
ele [...]. Se eu não mostrasse o meu interesse e ficasse esperando por ele...
Posso até dizer que forcei a barra [...]. Eu via assim, a responsabilidade que
teria pela frente em não deixar o seu trabalho parar. Quero dar
continuidade, agora mais do que nunca, ao trabalho dele. Não posso
desmerecer essa confiança que depositaram em meu nome. (Iraê Lucena).

A mesma intenção familiar provavelmente esteve presente ao batizar o


irmão de Olenka Maranhão, com o prenome do avô: Benjamim Maranhão,
político já falecido, ancestral de renome importante na trajetória política
familiar e paraibana. Essa nomeação, certamente, fez parte do legado
transmitido e compôs a trajetória que tornou também Benjamin, o neto,
político.
O nome familiar foi importante, não nego que isso é importante, se você
está respaldada com um nome familiar isso conta muito. Até porque minha
família a vida inteira fez política em Araruna, no Curimataú, em Cacimba de
Dentro, a cidade onde eu fui prefeita, e aquelas pessoas mais idosas
sempre faziam referência, com muito carinho, com muita saudade, ao meu
avô, Benjamim Maranhão, que foi prefeito lá, em Cacimba de Dentro. Foi o
primeiro prefeito e isso, para as pessoas de mais idade, era um referencial
muito bom. (Olenka Maranhão, entrevista em 1999).

O sistema político brasileiro caracteriza-se pela oligarquia de base


familiar, representada e reproduzida pelos seus membros masculinos. O fato
de as mulheres disputarem o poder político e se tornarem herdeiras políticas,
mesmo em famílias com varões disponíveis para a política, é recente e
demonstra as transformações ocorridas, não apenas no âmbito familiar e no
campo político, mas em toda a sociedade.
Porem, como ressalta Bourdieu (1997, p. 09), o grande desafio para um
herdeiro é permanecer: criar sua marca e consolidar seu espaço, algo que,
894
em última instância, só ele mesmo pode realizar. Iraê Lucena sabia que sua
sobrevivência no parlamento implicava em, gradativamente, ir “matando” o
pai, apagando sua influência, mostrando a todos que construiu seu próprio
patrimônio. Seu sucesso é “um assassinato do pai realizado com a injunção
do pai, uma superação do pai destinada a conservá-lo, a conservar seu
projeto de 'superação', que, como tal, está na ordem, na ordem das
sucessões” (BOURDIEU, 1997, p. 09).
Espero desenvolver um trabalho firmando o meu nome, já que teremos
outras eleições pela frente e, nas próximas, não poderá ser “em nome do
pai”. Acredito que vai depender do meu trabalho e de minha atuação na
Assembléia. (Iraê Lucena, entrevista em 1998).

Socorro Marques relata sua entrada na disputa política partidária como


um sacrifício solicitado pela mãe, fundadora da cidade, o que, na conjuntura
empobrecida da região, talvez nem um dos outros quatorze “herdeiros”, seus
irmãos, se dispusesse a fazê-lo. A convocação de Socorro Marques de fato se
deu pela “ausência ou impedimento de um homem mais apto, com mais
prestígio e mais confiável” (COSTA, 1998, p. 228). Mas isso não pode ser
considerado desabonador de sua indicação, já que, em princípio, toda
indicação política escolhe o mais prestigiado e capaz de conquistar votos, o
que esteja disponível e seja confiável ao projeto político em jogo. Socorro
Marques se coloca como a mais apta, prestigiada, confiável e, ainda, a única,
entre os “herdeiros”, disposta a realizar o desejo da mãe. Com um currículo
invejável, formada em Economia e já tendo exercido cargos importantes na
gestão pública estadual, Socorro Marques se candidatou, pela primeira vez, à
prefeitura de sua cidade em 1982. Desde então, tem forte influência política
no município e arredores, havendo criado e elegido “herdeiros” e gozado de
autoridade e prestígio em todo o estado.
Minha mãe ainda era viva e pediu muito para que eu fosse e desse um jeito
na cidade, porque lá já tinham passado uns seis prefeitos, inclusive alguns
parentes da gente, mas homens que não tinham muita iniciativa
administrativa e a cidade parecia mais uma senzala do que uma cidade.

Saí do ar condicionado, dos seminários hospedada em hotéis cinco


estrelas [...] quando eu entrei naquela cidade, naquela estrada de barro, me
deu uma angústia [...] Eu disse: 'mamãe, eu não quero vir para aqui não, a
educação aqui tá muito retrógrada, meus filhos já estão tão bem
encaminhados.... '

Eu voltei (para a capital) ainda na dúvida se voltaria ou não para lá, mas eu
tive tanta pena da minha mãe, já idosa, praticamente só naquela mesma
casa onde nós nos criamos, já que todos os irmãos saíram de lá para poder
sobreviver. Porque numa cidadezinha pequena não tem como, né? Ela
tinha vergonha, porque a cidade sempre atrasadinha, sem nada, não saia
do canto. Os prefeitos, ninguém sabe o que eles faziam, que não dava nada

895
certo. Ela tinha tanto desejo de ver aquela cidadezinha crescer! No
caminho de volta, dentro do ônibus, vim escrevendo, planejando o que
deveria fazer já como prefeita. Eu pensei: 'são só quatro anos... e se a coisa
pesar demais eu passo para o vice-prefeito'. Mas eu tive muita pena da
situação do povo e vi que eu tinha o que oferecer para a cidade, pela minha
experiência, e talvez só tivesse eu com coragem de voltar pra ali. (Socorro
Marques, deputada estadual, PB,1999).

A narrativa de Socorro Marques delineia a dificuldade de se enquadrar


os atores sociais em qualquer classificação, já que não se pode atribuir seu
sucesso eleitoral apenas ao legado deixado por sua mãe, uma matriarca
idosa e empobrecida, na pequena cidade de Desterro de Malta.
Olenka Maranhão, sobrinha do governador José Maranhão (mandatos
1995-2002 / 2009 - ...), tem na mãe (Vilma Maranhão) um modelo de mulher e
política. Separada do pai de Olenka, desde quando esta tinha doze anos, a
mãe conciliava o trabalho político no interior com a orientação, à distância, da
filha e do filho caçula, sem, segundo Olenka, discriminações de gênero.
Desta maneira, Olenka também relata uma trajetória sem conflitos fraternos
por um lugar de destaque no seio da família, apesar de seu irmão também ser
político.
Tenho um irmão que é prefeito de Araruna. [...] Sempre tivemos a mesma
educação – a educação que era dada a mim era a mesma que era dada ao
meu irmão. [...]. (Olenka Maranhão).

Olenka Maranhão não admite a imagem de quem recebeu um lugar na


política por simples transferência de patrimônio simbólico, fazendo questão
de narrar sua trajetória de esforço e conquistas. Diante da sugestão de que o
tio, ex-governador e senador, que não tem filhos, teria lhe adotado como
sucessora, Olenka reage rechaçando a imagem de herdeira política,
ressaltando o seu próprio trabalho junto às comunidades interioranas
carentes, embora, em seu discurso, aponte as “vantagens” da herança
familiar.
Eu não posso negar minha admiração, minha ligação com José Maranhão,
[...] ele teve um papel muito importante em minha vida, esteve presente em
todo momento da minha vida. Minha família é uma família pequena, mas
muito unida. Eu não me sinto herdeira, sei que tenho que trabalhar muito
_____________________________________________________________

5
Humberto Lucena nasceu em João Pessoa, em 1928. Seu avô, Solon Barbosa de Lucena, foi presidente
da Paraíba em 1916 e de 1920 a 1924. No pleito de 1950, Humberto elegeu-se deputado estadual na
Paraíba, pelo Partido Social Democrático (PSD). Reeleito em 1954. Em 1958, elegeu-se deputado federal
pela mesma legenda, tendo sido reconduzido à Câmara dos Deputados por mais três vezes. Com a
extinção dos partidos políticos pelo Ato Institucional nº 2, (27-10-65) e instauração do bipartidarismo, filiou-
se ao MDB. No pleito de novembro de 1978, foi eleito senador, tornando-se Líder do MDB e da Minoria em
1979. Em 1979, na reformulação partidária, ingressou no PMDB. Faleceu em 1998, no exercício de seu
terceiro mandato de senador da República. (<http://www.senado.gov.br/comunica/museu/lucena.htm>.
Acesso em: 26/jul. 2007)

896
para construir meu espaço. Acho que esta questão de política ninguém
herda, existem grandes políticos que não conseguiram passar prestígio
para seus familiares. Então, acho que cada um deve construir seu espaço
consciente disto. [...] Não existe esta história de herança política, cada um
tem que fazer seu papel e fazer bem. Claro que ter familiares na política
influencia, influencia muito. (Olenka Maranhão).

Fica claro, no discurso de algumas mulheres na política, a percepção


das “contradições da herança”, das dificuldades de extrair do legado apenas
os aspectos positivos, já que, em muitos momentos, “ser herdeira” se
constitui como um valor desabonador de seu merecimento ao lugar público e
pode ser usado pelos adversários dessa forma. Assim, é necessário
reafirmar, sempre que possível, as próprias qualidades e potencialidades
além da trajetória realizada.
Da mesma forma que a trajetória é, por vezes, narrada como algo
construído desde a mais tenra infância, sendo quase inerente a essas
mulheres, há também, no discurso das entrevistadas, a invenção de uma
hereditariedade biológica, sanguínea, que, segundo seus depoimentos,
determinam a aptidão para a política. Nesses casos, a noção da importância
da família, para a construção do patrimônio político, atua como uma espécie
de “ordem genética”, que legitima a atuação de muitas mulheres na política,
lembrando uma “vocação” prévia, por vezes mais legítima que a influência
direta do político ao qual se faz a ligação mais imediata, esposo ou pai.
A referência a essa “ordem genética” está presente na fala de Iraê
Lucena, “[...] eu (herdei) o gosto pela política, que está no sangue”; na
insistência de Estefânia Maroja, deputada estadual nos mandatos iniciados
em 1994 e 1998, em ressaltar o aprendizado com o pai, ausente da cena
política desde os anos 1960; na fala de Olenka Maranhão que é, segundo seu
slogan de campanha, “Maranhão até no sangue”, ao relembrar a herança
longínqua do seu avô, ou a marca familiar: “Minha família todinha é política,
desde o meu avô que era líder regional”, e também na trajetória narrada por
Zarinha (Rosário Gadelha), que, casada, na ocasião de sua candidatura,
1998, com o prefeito de sua cidade, faz questão de frisar que também “traz no
sangue” o gosto pela política, uma vez que, na família de sua mãe, muitos já
fizeram carreira política com sucesso.
A família por parte da minha mãe era Gadelha, era da política: minha mãe é
prima legítima de Marcondes Gadelha. Costumam dizer: você trazer no
sangue! E, na verdade, eu vim de uma família de políticos: meus avós eram
políticos tradicionais de Souza e, depois, foi puxando para os meninos.
(Zarinha, deputada estadual, PB, entrevista em 1999)

Há também os casos em que, não havendo familiares para a


“transmissão genética”, as entrevistadas dizem acreditar que “nascem” com
esse “dom”. “Eu acho que eu nasci política, sabe?” (D. Dida, deputada
897
estadual, PB, entrevista em 1999) Parece que elas precisam justificar o gosto
pela política como algo que independe de uma escolha, e, mesmo quando há
escolha, é preciso saber se existe o “dom” para que se obtenha sucesso.
Segundo a deputada Estefânia Maroja,“ se você tem carisma para a política,
vale a pena! Mas se não tem... Ou você tem o dom de fazer a política ou...
você pode até fazer. Mas tem dificuldade.”
Iraê Lucena é, entre as filhas herdeiras, a que mais se reconhece como
tal. Enquanto Socorro Marques não menciona nenhuma influência da mãe
para seu sucesso eleitoral, e Olenka Maranhão não gosta da imagem de
herdeira, Iraê fala com orgulho do legado deixado pelo pai.
Eu, durante a campanha, observei como meu pai era respeitado e querido
pelo povo. Uma frase dele que ficou gravada na minha mente foi: 'Quando
eu, um dia, faltar a vocês (a família), o único patrimônio que deixarei será o
meu nome.' E hoje, vejo que patrimônio ele nos deixou! (Iraê Lucena) (grifo
meu).

Quando Iraê Lucena anuncia que, nas próximas eleições, “não poderá
ser 'em nome do pai'”, ou quando Olenka reluta em admitir a existência da
herança, mesmo anunciando em seu material de propaganda que é
“Maranhão até no sangue”, talvez seja porque ambas saibam que o capital
político herdado, o projeto familiar, nesse campo, não pode sobreviver com
“herdeiros sem história”. Para Bourdieu (1996, p. 27), o herdeiro sem história
é aquele que se contenta em herdar porque, dada a natureza da sua herança
e de sua inteligência, não tem nada mais a fazer do que isso ou para isso,
sendo esses os herdeiros que são herdados pela herança. Ao se disporem a
construir a própria história, as herdeiras na política herdam a herança, sem
serem simplesmente herdadas por ela.
Se os constrangimentos, por parte dos parentes, para que os filhos
varões assumam a herança do líder político familiar podem ser freqüentes e
mais reconhecidos, no que se referem às mulheres, filhas de políticos, os
constrangimentos não são tão claros. Com mais freqüência assumem uma
feição emocional, um compromisso assumido em nome do “amor” pelo outro,
ou é mesmo um desafio conquistar a legitimidade de reivindicar a herança.
Na maioria dos casos, a opção pela carreira política é narrada pelas
filhas herdeiras como uma preferência pessoal e, em geral, são apontados
motivos no âmbito da individualidade (gosto, personalidade, vocação etc.)
como responsáveis pela opção com relação à vida política, embora se
reconheça uma disposição forjada no habitus familiar.
_____________________________________________________________

6
Fundada em 1963, Desterro de Malta mudou o nome para Vista Serrana, em 1991. Situada no sertão
paraibano, tem, hoje, pouco mais de 3.000 habitantes. Disponível em
<http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/paraiba/vistaserrana.pdf> .Acesso em: 03.mar.2008.

898
Eu não fui criada para ser política, não existe isto, foi questão de decisão
pessoal. [...] Esse apoio, essa estrutura política da minha família, contou
para mim, mas existe muito mérito próprio nessa questão. Fazer política é
uma opção minha. A convivência e o envolvimento que eu tenho desde
cedo com a política fez despertar esse desejo, mas é uma opção pessoal,
como é para qualquer cidadão optar pela profissão de médico, advogado...
(Olenka Maranhão) (grifo meu).

[...] Meu pai costumava dizer que não era de fazer política em família.
Sabendo disso, mesmo assim, eu vinha cavando o meu espaço. Ele sabia
que eu me interessava muito por política e que, dos quatro filhos, era a que
mais gostava [...] Cavar o meu espaço era mostrar ao meu pai, e a todos
aqueles que o rodeavam, o meu interesse pela política – porque quem não
é visto, não é lembrado. (Iraê Lucena).

O conceito de habitus, criado por Bourdieu, diz respeito a um sistema


de disposições permanentes encarnadas no indivíduo, “socialmente
constituídas que, enquanto estruturas estruturadas e estruturantes,
constituem o princípio gerador e unificador do conjunto de práticas e das
ideologias características de um grupo de agentes” (BOURDIEU, 2004a,
p.191). Para Bourdieu a noção de habitus foi criada como uma maneira de
escapar da alternativa “estruturalismo sem sujeito e da filosofia do sujeito”. O
autor insistiu nas “capacidades geradoras das disposições”, deixando claro
que se trata de disposições adquiridas, socialmente constituídas, pois essa
capacidade criadora “não é a de um sujeito transcendental como na tradição
idealista, mas a de um agente ativo” (BOURDIEU, 2004c, p. 22 e 25).
O conceito funciona no nível prático “como categorias de percepção e
apreciação, ou como princípios de classificação e simultaneamente como
princípios organizadores da ação.” (ibdem, 26).
Sendo produto da incorporação da necessidade objetiva, o habitus,
necessidade tornada virtude, produz estratégias que, embora não sejam
produto de uma aspiração consciente de fins explicitamente colocados a
partir de um conhecimento adequado das condições objetivas, nem de uma
determinação mecânica de causas, mostram-se objetivamente ajustadas à
situação. (BOURDIEU, 2004c, p. 23).

As práticas e ideologias poderão atualizar-se em ocasiões favoráveis


que propiciem aos agentes uma posição no interior de um campo, uma vez
que as disposições se constituem como produtos incorporados de uma
socialização passada, porém “[...] não é uma resposta simples e mecânica a
um estímulo, mas uma maneira de ver, sentir ou agir que se ajusta com
_____________________________________________________________

7
Localizada no agreste paraibano, na microrregião do Curimataú Oriental faz fronteira com o Rio Grande
do Norte. De acordo como o IBGE, Araruna tinha, em 2006, uma população estimada em 17. 456
habitantes. Sua área territorial é de 246 km². < http://www.ararunapb.com/site/ > . Acesso em: 2/ago.2008

899
flexibilidade às diferentes situações encontradas.” (LAHIRE, 2004, p.30).
É certo que o projeto parental pode esconder formas de
constrangimento que forçam os herdeiros a assumirem o legado familiar. Na
narrativa de Socorro Marques, realizar o desejo da mãe implicava em
renunciar certos confortos que sua posição social lhe garantia. Mas a
compaixão pela mãe fê-la “instrumento dócil” ao projeto materno. Já os
depoimentos das “herdeiras” políticas, Olenka Maranhão e Iraê Lucena,
sugerem que, de um modo geral, no caso das mulheres, as preferências
pessoais não se opõem a esses possíveis constrangimentos. As disposições
alimentadas pela influência do habitus político parental, antes de se tornarem
constrangimento, tornam-se desafios a serem vencidos.
Para elas, ao nível manifesto, as disposições criadas no ambiente
familiar não se transformaram clara e “naturalmente” em obrigações. Pelo
contrário, embora na atualidade as mulheres recebam formalmente as
mesmas oportunidades educacionais que os homens, no campo da política
elas precisam mostrar algo a mais para herdar essa herança. Iraê Lucena
teve que “cavar o espaço”, “mostrar a todos o seu interesse”. Associar a
disposição herdada ao “gosto pela política” e à opção pessoal, longe de
parecer às mulheres uma obrigação familiar, tem, para elas, sabor de
conquista.
O desejo e a realização de inclinações pessoais para a política são
expressos nos depoimentos das mulheres e, apesar das contradições nessas
trajetórias, indicam que pode haver acordo entre o exercício da subjetividade
própria e possíveis imperativos de ordem social, familiar e política, já que para
as mulheres o gosto pela política não é o “amor fati” que propõe Bourdieu
(1988, p.177), que escapa à consciência e leva o sujeito a amar seu destino
social. No entanto, não sendo obra de pura coerção, as disposições familiares
não permitem alegar seu contrário, ou seja, que seja fruto de autêntica
liberdade.
Oriundas de famílias com tradição política, a escolha pelo campo não
pode ser pensada de maneira totalmente livre das engenharias que
reproduzem as posições sociais a partir da tendência dos sujeitos a adotarem
práticas (mesmo de forma inconsciente) consoantes com seu pertencimento,
ou, como afirma Bourdieu, (1997, p.7) da tendência a “perseverar no ser, a
perpetuar a posição social que nele reside”. Mas, como é necessário que o
“herdeiro aceite herdar a herança” e todas as regras para instituir-se herdeiro,
nem todo filho/a ou esposa de político torna-se política. Como bem lembra a
deputada paraibana Francisca Motta:
Existem muitas mulheres no Nordeste que entram na política em nome da
família ou de um homem político, mas existem muitas que o marido
desaparece e acaba tudo, não fica mais nada. As que entram no lugar do
marido são porque elas já ajudavam, já participavam do processo. Nem
todas as mulheres de prefeitos continuaram o trabalho, algumas
aprenderam, outras não. (Francisca Motta,1999).

900
Referências
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cenários eleitorais. Fortaleza, CE: Universidade Federal do Ceará/ CNPq-
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902
Ativismo político e voto entre os condicionantes da carreira política
de mulheres: estudo de caso no Pará
Maria Luzia Miranda Álvares
GEPEM/IFCH/UFPA

RESUMO
A competitividade das mulheres paraenses no período de 1945 a
2002 é examinada neste texto nas duas instâncias parlamentares: a
estadual e a federal. Apresenta quatro perfis de mulheres que, de certa
forma, ajudaram a garantir o quociente eleitoral dos partidos aos quais se
filiaram, com os votos alcançados em sua trajetória de competição. O
estudo demonstra que a trajetória pessoal (política, profissional ou familiar),
com ênfase, principalmente, no ativismo político e no voto nominal, tem
peso significativo na composição das listas partidárias para a disputa
eleitoral.
Introdução
O formato e a evolução do subsistema partidário paraense podem ser
avaliados em estudos sobre dois ciclos eleitorais da história política do
Estado – 1945-1962 e 1985-1998 – emergindo disputas entre os grupos
hegemônicos que se formaram nesses períodos tomando consistência em
termos do número e da força dos partidos constituídos em nível eleitoral e
parlamentar. Nesse cenário político, o registro da presença das mulheres
paraenses é quase inexistente, o que motivou Álvares (1990; 1998) a
recompor o padrão de inserção de gênero neste desenho, tendo em vista a
necessária avaliação sobre a circulação das mulheres elegíveis na
representação parlamentar, convivendo no jogo político local desde 1945.
Neste sentido, este artigo focaliza uma revisão sobre a candidatura
das primeiras parlamentares paraenses e eleitas naqueles ciclos referidos.
Para isso, a distribuição dos dados configura quadros comparativos de
evolução do número e do percentual de candidatas e eleitas nos parlamentos
brasileiros desde 1945 E do cenário paraense, tem-se quatro perfis de
mulheres cujo percentual de votos é significativo na trajetória política aos
seus respectivos partidos. Para demonstrar essa contribuição, avalia-se a
contribuição de seus votos pessoais aos partidos pelos quais concorrem,
demonstrando-se o diferencial pelo padrão de carreira apresentado e o
incentivo à captação de votos no mercado eleitoral, com a indicação nominal

_____________________________________________________________

1
Texto extraído e reelaborado do Capítulo 4 da tese de doutorado “Mulheres na Competição Eleitoral:
Seleção de Candidaturas e o Padrão de Carreira Política no Brasil”, ago. 2004/IUPERJ, orientação de Jairo
Nicolau.
2
Tupiassu, 1962; 1969; 1974; Veiga (1999) toma como base analítica as seguintes variáveis: participação
eleitoral, fragmentação eleitoral e parlamentar, volatilidade eleitoral, tamanho dos partidos em nível
eleitoral. Tupiassu constrói o cenário das eleições estaduais evidenciando o jogo de poder entre as
lideranças do período.

903
à lista favorecendo-se, em alguns casos, do desempenho da candidata na
competição pelos votos ao partido, num demonstrativo do cálculo da força
dos votos nominais.
As mulheres paraenses em três ciclos eleitorais: fase da criação
e formação dos partidos (1945-1962)
Este ciclo representa a fase da criação e formação de partidos
nacionais, contabilizando 14 siglas partidárias. As disputas, tanto para o
executivo quanto para o legislativo, estavam polarizadas entre dois grupos
hegemônicos – o Partido Social Democrático (PSD) e a Coligação
Democrática Paraense (CDP), esta com aliança feita entre seis partidos
menores (UDN, PSP, PTB, PST, PL e PRP). Reorganizando-se nas
subseqüentes eleições majoritárias (1955 e 1960), o PSD coligou-se com o
PTB sempre que o interesse em garantir a posição eleitoral se fez necessário.
Os dados relativos às candidaturas deste período estão agregados
em gênero neutro, dificultando o levantamento do percentual de mulheres
candidatas. O número de filiados, também é uma informação não disponível.
Em vista disso, para o registro do número de mulheres eleitas, os estudos de
Álvares (2000) são esclarecedores quanto à presença feminina na
representação parlamentar paraense do período.

O número de cadeiras à Câmara de Deputados (CD) regulava entre 9


a 10 assentos, enquanto a Assembléia Legislativa (AL) detinha 36 a 37
cadeiras, registrando-se, nos dois primeiros períodos, a eleição de uma
mulher.

No período da nacionalização dos partidos, em 1945, e nos anos


subseqüentes, as mulheres integradas ao PSD, no Pará, eram indicadas para
concorrer aos cargos parlamentares pelos chefes partidários, ressaltando-se
que uma parte significativa estava agregada às atividades políticas como
força auxiliar do partido. Para o recrutamento de candidaturas, havia uma
conexão com uma associação feminina, que atuava no alistamento eleitoral,
formada de professoras do magistério público estadual e de esposas dos
chefes políticos. Desta agremiação, saíam as candidatas prospectivas do
partido, sendo que a patronagem exercia alto controle sobre aquelas que
estavam ocupando uma cadeira parlamentar e dispostas a continuar a
carreira política. Porém, nem sempre lhes era dada uma chance de reeleição,
salvo se deixassem o partido e se candidatassem por outra legenda, como foi
o caso de Rosa Pereira.

As mulheres que àquela altura se candidatavam indicadas pelo chefe


político, e se elegiam, apresentavam um padrão de carreira entre as
professoras que tinham liderança no magistério público estadual. Embora o
movimento sufragista nacional pressionasse os núcleos estaduais para
904
garantir candidaturas de mulheres, há equivoco ao deduzir que isto se
dava apenas pela motivação pessoal de concorrer pela causa feminista, uma
vez que tal interesse era mesclado pelo jogo dos chefes partidários. Há,
também, entre as mulheres, a clara desinformação sobre “feminismo” – que
no Pará era sinônimo de subversão ao ser comparado ao comportamento das
sufragistas inglesas as quais, no ativismo pelo direito do voto, exigindo
cidadania, faziam passeatas e greves nas ruas de Londres.
Em 1947, Rosa Rebelo Pereira, indicada pelo PSD, elegeu-se a
primeira deputada estadual paraense, reelegendo-se para um novo mandato
em 1950 e, em 1953, transferiu-se para o PTB por intrigas com o chefe
partidário local do PSD, Magalhães Barata. Nos anos seguintes, não há
qualquer evidência de candidaturas femininas para este cargo. As normas
eleitorais em relação ao alistamento e voto das mulheres mantêm cláusulas
seletivas às que tivessem emprego ou renda. E como o mercado de trabalho
era restrito, também era baixa a demanda feminina, salvo para o magistério
público. Os partidos, por sua vez, mantinham pouca desenvoltura entre as
candidaturas de mulheres pelo pouco tempo destas numa área, até então, de
exclusividade dos homens. Daí o reconhecimento da maior experiência
masculina e a indicação destes através do beneplácito dos chefes políticos
num sistema de patronagem, que também alcançava as mulheres. Além
disso, era a cultura dos costumes impondo comportamentos sociais e
políticos distintos entre os dois gêneros. As líderes femininas instigam o
reconhecimento da condição de eleitora e de elegível em “lobbies” estaduais
pressionados pela Federação Brasileira pelo Progresso Feminino - FPBF-
obrigando o alistamento das mulheres em todo o Brasil.
O pouco tempo entre o exercício do voto da mulher e a implantação do
Estado Novo (1932 -1937) deixou o sabor de um estágio inacabado na
política, para as mulheres que se faziam eleitoras de forma incompleta. O
novo quadro político-eleitoral de 1945 se descortinando como um período
auspicioso de redemocratização, mesmo com as regras seletivas para as
mulheres se alistarem, deixava um clima promissor para algumas “ousadas”
_____________________________________________________________

3
As siglas partidárias: PSD; PSP; UDN; PTB; PR; PRP; PRT; PSB; PST; PPS; PCB, até 1947, depois foi
cassado; PDC; PL.
4
Os dados das parlamentares eleitas no Pará são parte do acervo do projeto de pesquisa “Cidadania,
Participação Política e Gênero: Pará , 1932-1998”, coordenado por Álvares (de 1996 a 2000) e utilizados
em Trabalhos de Conclusão de Curso (monografias dos alunos do Curso de Ciências Sociais/UFPA) e
artigos etc.
5
Até 1962, não há registro de mulher eleita para a instância federal, o que só ocorreu somente em 1978,
conforme será visto mais tarde.
6
A Legião Feminina Magalhães Barata conforme Álvares (1990) .
7
Tabak e Toscano (1982, p. 95) apontam a criação, pelas mulheres, dos Comitês pró-candidaturas
encontrados em todos os partidos, “eram mistos ou exclusivamente femininos e cuidavam de recrutar
novas eleitoras, resolver os problemas surgidos nas juntas eleitorais, realizavam comícios, distribuíam
toda espécie de propaganda, organizavam campanhas de finanças e, sobretudo, traziam as
reivindicações dos bairros até os candidatos”. Estas tarefas são as mesmas das mulheres da Legião
Feminina Magalhães Barata, no Pará desse período.

905
avançarem em busca de um cargo eletivo. No meio do caminho, entretanto,
outras intercorrências, como o golpe de 1964, criaram instabilidade política e
fratura no assédio partidário inicial, confirmando-se, neste período, um
parlamento estadual e federal com uma presença feminina insignificante.
Candidatas e eleitas no período militar, no Pará – 1966- 1982
Com a extinção dos partidos (out.1965) e a formação do
bipartidarismo, as novas agremiações herdaram o espólio político de líderes
do quadro anterior, com a ARENA organizando suas bases entre os adeptos
da Coligação Democrática Paraense (CDP) e o Movimento Democrático
Brasileiro (MDB), agregando a maioria das lideranças do PSD.
A partir de 1974, o quadro político paraense evidencia a presença de
mulheres parlamentares eleitas à Assembléia Legislativa. Para uma idéia do
tamanho da bancada, do número e percentual de candidaturas dos partidos
paraenses, nas duas casas e, também, o lugar ocupado pelas mulheres
eleitas, a Tabela 1 é sugestiva.

_____________________________________________________________

8
Álvares (1990) recuperou a trajetória da Legião Feminina Magalhães Barata (1935-1959) e fez as ligações
entre as candidatas e o partido do Interventor, conexão vantajosa para o então PSD, cujo chefe era
Magalhães Barata, que recrutava as candidatas do magistério público estadual. Cf. também Álvares, 1999,
p. 105-135, que analisa as forças auxiliares criadas pelo PSD e pela Coligação Democrática Paraense,
envolvendo tanto as mulheres quanto os demais segmentos profissionais e estudantis da sociedade
paraense.
9
A Professora Rosa Rebelo Pereira foi indicada candidata à eleição de 1947,pelo chefe do partido,
Magalhães Barata. Seu pedido para a reeleição, não foi aceito, criando-se conflito com a sua saída do
partido ingressando no PTB. Por esse fato foi considerada traidora e seu nome enxovalhado entre os
partidários do PSD. A primeira vereadora eleita no Pará, Professora Francisca do Céu Ribeiro Souza,
também indicada por Barata como candidata do PSD, ao apresentar-se para a reeleição, não foi aceita
com alegação da indicação de outro candidato para o cargo. Cf. Álvares, 1999.
10
O estudo de Álvares (1990) identifica o formato de seleção imposto por Magalhães Barata a todos os
correligionários dele.
11
Entre as primeiras mulheres candidatas e eleitas no Pará aos cargos parlamentares do legislativo
municipal e estadual nenhuma foi identificada entre as sufragistas dos anos 1930. A liderança deste
movimento, Elmira Lima, que criou e dirigiu o Departamento Paraense pelo Progresso Feminino, em 1931,
participara de outra Liga Feminina, a “Lauro Sodré” (1912) , e em 1950 se aproxima do PSD e da campanha
eleitoral de Magalhães Barata ao governo estadual, sem, contudo, ser candidata. Os dados referentes às
Ligas partidárias, conflitos políticos do período, cf. Álvares, 1990.

906
Tabela 1. – Distribuição de candidatos pelo tamanho da bancada,
ano, cargo e sexo - Pará – 1966 a 1982

Fonte: Dados extraídos do TRE-PA ; LEEX /IUPERJ ; Álvares, 1998.

A informação sobre candidaturas, neste período, está no registro


agregado em gênero neutro. Para extração dos nomes das concorrentes da
lista geral de candidatos para este estudo, em 1974, 1978 e 1982, foi feito o
levantamento nas Atas Eleitorais do TRE/PA, do número de eleitas e da
relação de candidatas não-eleitas e cujos partidos não alcançaram o
quociente eleitoral no período. O resultado dessa operação demonstrou que
havia um número incipiente de candidaturas femininas aos dois cargos
parlamentares, assim como mulheres exitosas nesses cargos, registro
personalizado a seguir.
As aspirantes à Câmara de Deputados, em 1978, foram: Lúcia Daltro
de Viveiros, pelo MDB, eleita com 48.826 votos (e a primeira paraense a
ocupar esse cargo); e Cremilda de Moura Teixeira, pela ARENA, que ficou na
suplência alcançando 13.352 votos.
Da Assembléia Legislativa, em 1970, embora não fosse possível
extrair o número de candidatas, há registro de uma mulher eleita, Ester
Soares Rossy, pela ARENA. Em 1974, apresentaram-se três candidatas,
sendo: duas da ARENA – Maria de Nazaré Barbosa (eleita com 5.720 votos) e
Ester Rossy (suplência, com 2.969 votos); e uma do MDB – Vera Lúcia
Albuquerque, eleita com 3.772 votos. Em 1978, registraram-se quatro
candidatas: três da ARENA – Maria de Nazaré Barbosa (reeleita com 18.994
_____________________________________________________________

12
Cf. Tupiassu, 1969. Este trabalho é o único desenho que se tem sobre a desintegração das forças
pessedistas e baratistas do período e a formação do novo núcleo de poder no Pará centrado em Jarbas
Passarinho e nas lideranças formadas a partir de 1964, inclusive o esboço de um perfil das principais
figuras que controlaram a política no Estado, neste período.

907
votos), Terezinha Sussuarana (eleita com 7.024 votos), Angélica
Oliveira Barbosa (suplência, com 654 votos); e uma do MDB – Vera Lúcia
Albuquerque (suplência com 3.943 votos). Em 1982, sete mulheres
candidatam-se à Assembléia Legislativa: Anazilda Sequeira (PT); Jaciara
Aragão e Maria Emidia (PTB); Maria Zenaide Martins, Terezinha Sussuarana,
Maria Brito Maia e Maria de Nazaré Barbosa (PMDB). Esta última sendo eleita
para o terceiro mandato, com 33.818 votos. Para a Câmara de Deputados,
foram candidatas nesse ano: Lúcia Viveiros, agora no PDS, eleita com 69.384
votos; Ermelinda Garcia, do PT (1.238 votos) e Odete Garcia, do PTB (216
votos).
A Tabela 2 demonstra o avanço das mulheres paraenses eleitas nos
dois parlamentos, no período do bipartidarismo (ARENA e MDB) e em 1982,
quando as leis eleitorais de 1979 extinguiram este sistema e possibilitaram a
criação de cinco partidos novos – PDS, PMDB, PT, PDT e PTB.

Tabela 2 - Distribuição de eleitos/as por sexo, tamanho da bancada,


ano e cargo - Pará – 1966 – 1982

Fonte: Dados extraídos das Atas da Assembléia Legislativa do Estado do Pará; LEEX/ IUPERJ; Álvares (1996-2000)

A incidência da garantia de assentos ocupados por homens não é


mera coincidência, pois há mais candidatos do que mulheres candidatas.
Entretanto, as rupturas desse absolutismo provocou um crescendo, a partir
de 1974, da competição feminina aos cargos à AL e, em 1978, para a CD. Se o
êxito foi incipiente, contornou, entretanto, décadas de ausências desse
gênero da competição eleitoral. No período do bipartidarismo, os partidos em
_____________________________________________________________

13
O perfil dessas mulheres será apresentado oportunamente, com mais detalhes.

908
disputa (ARENA e MDB) apresentam e elegem suas candidatas. Com
a retomada do multipartidarismo, em 1982, sete mulheres concorrem à AL,
mas somente uma é eleita: Maria de Nazaré Barbosa, agora no PMDB. Trata-
se de uma figura que já vem de outras eleições, concorrendo pela ARENA,
sendo conhecida do eleitorado. Ocorre o mesmo na CD, com a eleição de
Lucia Daltro de Viveiros, antes do MDB e em 1982, no PDS. Ambas já haviam
constituído um eleitorado próprio.
Comparativamente, o quadro brasileiro das candidaturas femininas
aos cargos parlamentares, no período de 1945 a 1982, evidenciado na Tabela
4.4, acompanha a evolução instável ocorrida no Pará.

Tabela 3 - Evolução do número e do percentual de candidatas e eleitas à CD e AL - Brasil – 1946-1982

Fonte: Tabela composta a partir de dados do TSE; do LEEX/IUPERJ, e de Nicolau (on line 2002), no agregado,
daí sendo extraído o percentual de candidatos. Para as candidatas: Toscano, 1976; Tabak & Toscano (1982);
Avelar (2002).
¹As eleições ocorreram somente no plano estadual.
² Os dados não estavam disponíveis.
³ O percentual das eleitas é igual à divisão entre o nº de eleitas/ nº de candidaturas femininas;
e o percentual de candidatas, do N de candidatas/ N de candidatos.

Utilizando as informações subjacentes em dados documentais, é


possível concluir que – além dos cenários, em que a participação eleitoral
teve o predomínio oligárquico de grupos partidários (1945-1962) e das regras
eleitorais restritivas que condicionaram as candidaturas de mulheres àquelas
que exerciam profissões lucrativas – há também os condicionantes
socioculturais que definiram o campo da política formal aos homens e ao tipo
909
de jogo político, marcado por situações litigantes, entre os grupos que
aspiravam ao comando local. Por outro lado, neste mesmo quadro, podem
ser verificados resquícios do tempo em que as fraturas constitucionais do
período militar mantiveram o plebiscito eleitoral e a formação de um sistema
bipartidário, embora ferindo os princípios democráticos pela exacerbação da
violência política contra os opositores ao regime. Essa situação, que levou à
cassação de mandatos dos parlamentares acusados de subversão à ordem
política implantada em 1964, favoreceu a candidatura de esposas e irmãs que
tiveram seus maridos e parentes nessa condição. Tabak & Toscano (1982)
registram que das 13 candidatas à CD, nas eleições de 1965-66, das quais
saíram 6 eleitas, “cinco foram apresentadas pelo MDB e destas, somente
uma tinha eleitorado próprio, pois há 15 anos vinha tendo seu mandato
renovado. As 4 deputadas que ingressaram na Câmara Federal com apoio no
eleitorado de seus respectivos cônjuges, tiveram por sua vez os mandatos
cassados em 1969”.
Em 1982, com a distensão política, a criação de novos partidos e a
efervescência dos movimentos de mulheres agregadas aos partidos de
oposição, houve aumento significativo de candidaturas femininas aos cargos
eletivos parlamentares, prevalecendo a demanda maior para as ALs. Quanto
às eleitas, o número não foi correspondente, pois das 58 que competiam à
CD, somente 8 (13,8%) se elegeram. E das 134 que concorreram às ALs,
apenas 28 foram exitosas (20,9%). Se comparado aos percentuais do
período militar, houve uma grande ampliação do quadro de candidatas e
eleitas.
A Década da Mulher – 1975/1985 – se de um lado não expressou um
padrão de crescimento de candidaturas conforme se expandiam os grupos
feministas e movimentos de mulheres em nível nacional, de outro, serviu de
estímulo à demanda maior de mulheres aos cargos parlamentares; sem
esquecer que, neste período, houve além da reformulação das leis
partidárias, a criação de novos partidos e os eflúvios da redemocratização –
ponto decisório nos rumos do país em 1985.
A abertura política e as paraenses no ativismo político e eleitoral: 1986-
1994
A elite política paraense que emergiu das eleições de 1982, marcada
pelo confronto dos blocos no poder - PMDB e PDS – revela um
comportamento adesista e não mais excludente como o que se verificava
entre os blocos baratista e antibaratista no período 1946-1962.
Remanescentes das eleições do executivo estadual – onde as forças
polarizadas se mantinham entre a oposição liderada por Jader Barbalho
_____________________________________________________________

14
Cf. Tabak & Toscano, 1982, p. 68. Situação semelhante também ocorreu em Taiwan, conforme relato de
Bey-Ling Sha (1998). Cf. Álvares, 2004.
910
(MDB) e membros da ação militar de 1964 encabeçados por Alacid Nunes e
Jarbas Passarinho (ARENA), passam a racionalizar as adesões intragrupos
afastando o insulamento propício às derrotas para ambos. As eleições de
1982 favoreceram a presença de outros partidos formados desde as
mudanças em 1979 com o multipartidarismo formalmente implantado, em
nível eleitoral e parlamentar, conduzindo a representação da Assembléia
Legislativa e da Câmara de Deputados. O PMDB (ex-MDB) elegeu 20
deputados estaduais e 8 federais; e o PDS (ex-ARENA) 19 e 7,
respectivamente.
A avaliação da fragmentação multipartidária, nestas duas casas de
representação, no período estudado, demonstra que, apesar de muitas siglas
criadas, o partido que realmente contou no período de 1986 a 1994 e
apresentou força eleitoral e representação, tanto na Assembléia Legislativa
quanto na Câmara de Deputados, foi o PMDB (ex-MDB), embora tenha
sofrido perdas em 1990.
Diante de tal contexto e seguindo os objetivos deste estudo, cabe
perguntar: quais os partidos que ofereceram mais candidaturas femininas e
elegeram mais mulheres? Sem esta equação é difícil reconhecer o nível de
inclusão possibilitado pela política partidária no cenário paraense.
O quadro estabelecido nesse período importante da política brasileira,
quando a redemocratização e o engajamento das mulheres nos movimentos
sociais e no ativismo político é moto continuo, parece dar uma nova cor à
participação eleitoral. No caso do Pará, se expressa através do aumento
significativo de candidaturas femininas, embora não na mesma proporção
entre eleitas, como mostra a Tabela 4.
Tabela 4 – Distribuição de candidaturas e eleitos/as
Assembléia Legislativa e Câmara de Deputados - Pará –1986-1994

Fonte: T R E /PA – Dados Estatísticos. Assembléia Legislativa do Estado do Pará; LEEX; e Álvares (1996-2000) ¹O
percentual das eleitas foi extraído da divisão entre o N de eleitas pelo N de candidaturas femininas. E o percentual de
candidatas, do Nº abs. de candidatas dividido pelo N de candidatos. ² No Boletim do T R E -1990, o registro total de
candidaturas é 108. Nos dados do LEEX, o registro é de 133.

_____________________________________________________________

15
Cf. Veiga, 1999, p. 112-15.
16
A Lei nº 6767 de 20/12/1979 alterou a Lei Orgânica dos Partidos Políticos de 1971, formulando o
quadro partidário em seis novos partidos – o PMDB, o PDS, PT, PTB, PP e PDT.

911
No período mencionado, houve maior demanda das mulheres para as
cadeiras da Assembléia Legislativa e a Câmara de Deputados apresentou
baixa e instável procura. Em 1986, das 6 (10,3%) candidatas que
concorreram a uma das 17 cadeiras, nenhuma atingiu o quociente eleitoral
para eleger-se, sendo que, em 1994, três ocuparam esses assentos.
Levando em conta o número de candidatas competindo (9) o percentual é
expressivo posto que o cargo provoca o deslocamento das mulheres de sua
base familiar para outro Estado.
Neste ciclo, se comparado aos percentuais de mulheres candidatas
do período anterior, há maior concorrência. Este fenômeno está ligado ao
crescimento dos movimentos de mulheres, a partir do final dos anos 70, em
todo o Brasil e no Pará provocado pelos grupos feministas identitários
(prostitutas – GEMPAC; domésticas – MOPROM), grupos feministas
governamentais (Conselho Municipal da Condição Feminina - CMCF) e a
grupos feministas dos núcleos de base partidários (Centro de Estudos,
Debates e Participação da Mulher – CEDEPAM, União de Mulheres de Belém
–UMB e Movimento de Mulheres do Campo e da Cidade – MMCC). Essa
junção de forças transformou as lideranças destas entidades – as quais
mantinham vínculo com os movimentos nacionais pela anistia e contra a
exploração e o conflito no campo, aos direitos humanos, contra a violência
doméstica etc. – na espinha dorsal dos partidos de oposição como o PC do B,
o PT, o PSB e o MDB (quando este se opunha ao regime militar). O trabalho de
recrutamento político para os movimentos sociais nascentes conferiu
_____________________________________________________________

17
Nas eleições subseqüentes – 1998 e 2002 – não houve mais esta performance feminina no Pará para as
cadeiras à CD. Sobre a questão do deslocamento, há estudo de Ana Alice Costa (1998) que aponta para
uma demanda maior das mulheres aos cargos do legislativo municipal onde estas não têm que se afastar
do espaço doméstico.
18
Cf. Hellmann, 1995; Alvarez & Dagnino & Escobar, 2000; Pinto, 1992. Segundo Sonia Alvarez , 2000, p.
383-423, estes grupos de mulheres se articularam durante as décadas de 1960-1970, sendo a maioria
fundadora da segunda onda do feminismo latino-americano. Reagindo às políticas estatais neoliberais
opressivas engajando-se em organizações clandestinas de esquerda e nos partidos legais de oposição,
concentradas no ativismo das mulheres operárias e pobres, dos grupos de mulheres comunitárias, lutas de
sobrevivência, sindicatos e movimentos pelos direitos humanos, trabalhando junto às mulheres dos
setores populares. Estes grupos ficaram conhecidos como movimento de mulheres. Há detalhes mais
aprofundados do descentramento do movimento feminista latino-americano. Salvo uma referência a
ONGs feministas articuladas em rede e incluindo nesta os partidos políticos, não há referência ao formato
destes grupos que chamo “grupo de feministas de núcleo partidário”. Delgado & Soares (1995), entretanto,
se referem a eles.
19
A categorização é desta autora. Considerei grupos dos núcleos de base partidários os movimentos de
mulheres do CEDEPAM (do PMDB, então agregador dos partidos de oposição aos militares em 1981),
MMCC (PT) e a UMB (PC do B) porque na reorganização dos partidos, os movimentos de mulheres ficaram
polarizados entre as várias propostas surgidas. A perspectiva feminista era a mesma, mas a polarização se
dava nas questões gerais em que cada um pensava a reconstrução da democracia liberal. Algumas
militantes feministas são filiadas aos partidos e, segundo Delgado & Soares (1995, p. 85): “... muitas
mulheres deixaram seus grupos feministas ou passaram a privilegiar a atuação nos partidos. A partir de
então viu-se uma nova militante nos partidos políticos, as feministas, e, nestes espaços o tema “mulher”
tornou-se alvo de debate, item obrigatório dos programas e plataformas eleitorais dos partidos
progressistas”.

912
respeitabilidade às demandas das mulheres nos bairros urbanos, na zona
rural, nos sindicatos e nas fábricas. Mas sobre o ativismo político das
mulheres feministas dos núcleos de base partidários, é preciso esclarecer
que ele se alargava em tempo de campanha eleitoral, como se observa do
depoimento de Luzia Alves, liderança rural do MMCC: “....a gente trabalhou
muito na campanha do Humberto Cunha. É geralmente assim, quando surge
um companheiro que a gente sabe que trabalha, se interessa pelo nosso
problema, a gente trabalha”.
Há outros depoimentos de mulheres desse grupo que negam a
atividade eleitoral do movimento. Isabel Tavares da Cunha diz que o MMCC é
não-feminista, não-partidário e tem como diretriz a luta pela justiça social: “Na
verdade, nós não temos um trabalho feminista, nós temos um trabalho mais
de cunho social e até mesmo político. (...) Algumas mulheres do MMCC são
militantes do PT, outras são do PSB, outras do PMDB e tem simpatizantes do
PDT. (...) Nós somos um movimento autônomo e quem se ligar a partido se
liga sem que o movimento seja comprometido com programas partidários,
mesmo porque estes programas não contêm mais as questões feministas”.
Este depoimento é do inicio da década de 1990, época em que os
movimentos de mulheres se negavam a considerar que realizavam também
atividade eleitoral como parte de sua militância. Em todo caso, o movimento
de mulheres crescia no Pará, como também nos demais Estados; alguns
integrados aos núcleos de base do partido embora ainda fosse incipiente o
número de mulheres líderes que se candidatavam.
No cenário nacional, a efervescência dos movimentos de mulheres
também não se vincula à demanda por candidaturas nas duas casas
parlamentares. A Tabela 5 mostra o crescimento das candidaturas femininas
nesse período, em termos de Brasil, que não se diferencia proporcionalmente
do quadro paraense.

Tabela 5 – Distribuição de candidaturas e eleitos /as


Assembléia Legislativa e Câmara de Deputados - Brasil –1986-1994

Fonte: Tabela composta a partir de dados do LEEX/ IUPERJ, e de Nicolau (on line 1982- 2002), sem a configuração de
gênero, daí sendo extraído o percentual de candidatas; TSE; Toscano, 1976; Tabak & Toscano (1982); Avelar (2002).
¹O percentual das eleitas é igual à divisão entre o nº de eleitas pelo nº de candidaturas femininas x 100.; e o percentual
de candidatas, ao N abs. de candidatas dividido pelo nº de candidatos x 100. ²Os dados não estavam disponíveis para
as candidaturas à Assembléia Legislativa desse ano.

913
Em 1986, a bancada da Câmara de Deputados detinha a incumbência
de elaborar a nova Constituição. Desde 1985, os grupos organizados de
mulheres encaminharam propostas de mudança sobre a situação feminina,
reivindicando melhores condições de vida e melhores oportunidades para o
desempenho das suas atividades, entre outras demandas. Elas participaram
dos debates da Constituinte (1986), opinando sobre os pontos que queriam
modificar, reivindicando um novo enfoque sobre os direitos sociais das
mulheres. Nesse sentido, apresentaram propostas encampadas por um
comitê de feministas, incorporadas ao texto da Constituição de 1988. Sobre a
cidadania eleitoral com a demanda pela igualdade de acesso ao processo
decisório, apesar dos debates entre esses grupos, não houve avanços. Silvia
Pimentel, a coordenadora do comitê assessor, levantou algumas hipóteses a
respeito da baixa presença das mulheres na competição eleitoral:
organização incipiente das mulheres e da falta de apoio político-eleitoral; falta
de experiência política (prática específica deste “agir”); insensibilidade do
eleitorado à contribuição da mulher no legislativo; dificuldades no
entrosamento entre o partido e as mulheres e insensibilidade destes para
superação do problema; discriminação contra a mulher candidata; falta de
recursos financeiros para a campanha. Mesmo assim, representando 5,3%
(1986), 5,8% (1990) e 6,2% (1994), as mulheres eleitas à CD constituíram
discreto crescimento entre os diversos partidos e Estados da Federação.
Quanto às candidatas: quem eram e em que partidos militavam?
Quantos votos teriam recebido as que competiram? Para uma primeira
avaliação, a Tabela 6 registra dados referentes aos partidos que mais
candidataram mulheres no período 1986-1994, no Pará, sendo utilizada a

_____________________________________________________________

20
Pergunta-se qual o motivo de tão poucas destas mulheres e as lideranças dos movimentos pleitearem
candidatura nos partidos de esquerda se, conforme seus relatos, elas conseguiam agregar mais de mil
mulheres em seus encontros e congressos? Leila Mourão, aquela altura do CEDEPAM (depois ela se
integra à UMB) , informa que num encontro de mulheres, no Pará, em 1981, havia 800 a 1200 mulheres
presentes. Cf. Duarte, 1993. Sobre o ressurgimento dos movimentos de mulheres e sua relação com os
partidos, no Pará Cf. Duarte, 1993.
21
Entrevista concedida a Juliete Duarte, em 1992.
22
Isabel Tavares da Cunha, presidente do MMCC, foi candidata pelo PT à Assembléia Legislativa, em 1994,
mas não se elegeu (1% dos votos do partido). Faleceu em setembro de 2002. Entrevista concedida a
Juliete Duarte, em 1992.

914
variável bloco ideológico.
Tabela 6 – Distribuição das candidatas por ano, partido e bloco ideológico - CD e AL - Pará -1986 - 1994

Fonte: T R E /PA – Dados Estatísticos; Álvares (1996-2000); Raiol da Costa, 1999.

Os partidos que neste período mais candidataram mulheres foram: o


PT, o PMDB, o PP e o PSB. Quanto aos blocos ideológicos, a Direita
candidatou mais mulheres, distribuídas entre as 12 siglas partidárias
_____________________________________________________________

23
Silvia Pimentel tem dois textos importantes que tratam destas questões e analisa os textos
constitucionais brasileiros em nível comparado. Cf. Pimentel, 1988, p. 65-102; e Pimentel, 1985.
24
Os percentuais encontrados são resultado da extração do N de eleitas pela bancada. Para as ALs
encontrou-se 3,3% (1986), 5,5% (1990) e 3,1% (1994).

915
agregadas a este bloco. Foram ao todo 20 candidatas na disputa para
a Câmara de Deputados e 56 para a Assembléia Legislativa em três períodos
eleitorais estaduais. O PC do B que mantinha um movimento integrado de
mulheres, a União de Mulheres de Belém, com atividades regulares entre os
grupos identitários, não fugiu à média dos demais partidos, ao indicar
candidatas.
No geral, confere o indicativo do maior número de mulheres
pleiteando um lugar parlamentar no local de moradia (AL) e com custos
menores de campanha, além do quociente eleitoral menor exigido para atingir
o número de votos necessários para eleger-se. Mas outras variáveis se
interpõem, como a representatividade local da concorrente e a campanha
eleitoral deflagrada.
Quanto aos votos obtidos por estas candidatas, é possível visibilizar o
interesse do eleitorado e, também, medir o grau de popularidade delas entre
este selecionador heterogêneo. O Quadro 1 registra a indicação nominal das
mulheres que competiram neste período, o partido e o número de votos que
tiveram nos dois âmbitos parlamentares.

916
Quadro 1 – Distribuição nominal de candidatas por ano, partido e votos – Pará 1986-1994

Fonte: T R E/PA – Dados Estatísticos; TSE; Álvares (1996-2000); Raiol da Costa, 1999.
(Fórmula para extrair o iFcand em relação ao Npart: Ncand ÷Npart x 100) * Candidatas eleitas

Uma avaliação sobre o processo de seleção de candidaturas não


deve deixar de medir o peso dos votos de cada candidato sobre o total de
votos que os partidos obtiveram ao competir, independente do sexo do
competidor. Nesta situação se definem, na maioria das vezes, as

917
candidaturas prospectivas, dando a visão geral da racionalidade
partidária na hora da indicação /seleção dos demandantes de cargos, pelas
lideranças.
A comparação entre a votação obtida pelas mulheres em dada eleição
e a dos partidos que as candidataram expressaria uma equação diferencial
interessante sobre quem ganha e quem perde no jogo político na hora em que
as circunstâncias colocarem de frente os dois selecionadores (selectorate) –
o dirigente partidário e o eleitorado. Nesse caso, tanto as regras da política
eleitoral avançariam para estrangular as demandas femininas pelo cargo
eletivo quanto a cultura sexista teria peso, visto que a sociedade (que
condiciona o eleitorado) mantêm reservas sobre a prática política feminina.
Num survey realizado nas eleições de 1994, em Belém (PA), sobre
comportamento eleitoral - embora 86,3% dos/as entrevistados/as
afirmassem não haver diferença no sexo do candidato na hora de votar e
35,5% considerassem que a administração feminina melhoraria os
problemas do país – 78,0% informaram não saber o ano em que a mulher
conquistou o direito do voto e 53,5% nunca tinham votado em mulher.

Os recursos políticos de algumas candidatas e as bases do avanço


eleitoral na disputa pelos cargos parlamentares
Até aqui foram considerados os indicadores políticos que poderiam
estar respondendo pela baixa demanda e oferta de candidaturas femininas
aos cargos parlamentares, no período de 1986-1994. No âmbito partidário, a
avaliação sobre o desempenho das candidaturas mostrou que: o nível de
votos nominais dados às aspirantes ao cargo eletivo orientou-se entre os
percentuais médio e fraco, se considerada a densidade da força partidária,
responsável pelo êxito ou derrota da candidata; os partidos de direita foram os
que mais candidataram mulheres, embora poucas fossem eleitas; as
candidatas dos partidos de esquerda foram as que contribuíram com mais
_____________________________________________________________

23
A pesquisa foi realizada no dia da eleição de 1994 para o projeto “ Mulheres e Processos Eleitorais no
Pará: 1986-1994” (Fundação Ford/REDOR/GEPEM) em seções eleitorais de 10 bairros de Belém , com
729 entrevistados, sendo 52,95% mulheres e 46,91% homens. Cf. Álvares, M.L.M. Relatório de Pesquisa:
Comportamento Eleitoral em 1994, UFPA, 1994

918
votos nominais para os partidos pelos quais competiram; a decisão do
voto do eleitorado selecionou à CD candidatas do centro e da esquerda, e,
dos três blocos, à AL (ver Tabela 7).
Tabela 7 – Distribuição das mulheres eleitas por ano, partido,
bloco ideológico e cargo - Pará – 1986 - 1994

Fonte: T R E /PA –Dados Estatísticos; Álvares (1996-2000); Raiol da Costa, 1999.


Na tabela, estão referidos apenas os partidos que elegeram candidatas.

Os recursos pessoais das candidatas podem render algumas


explicações para a presença delas em mais de um pleito eleitoral e por
partidos diferentes, considerando também a variável motivação pessoal que
interfere no jogo eleitoral pelo alcance de novas bases partidárias. Neste
sentido, quatro casos ilustram esta abordagem e mostram o diferencial entre
candidaturas com forte persistência na arena partidária, ou seja, com
potencial prospectivo; e aquelas eventuais e, portanto, com baixa
identificação partidária e resistentes à atração pelo eleitorado. Os perfis
ilustrativos são de Maria de Nazaré Barbosa (ARENA e PMDB); Lúcia Daltro
de Viveiros (MDB e PDS); Socorro Gomes (PC do B) e Elcione Barbalho
(PMDB). Essas quatro mulheres criaram uma trajetória anterior aos pleitos
eleitorais e aproveitaram isso nas campanhas políticas, candidatando-se
seguidas vezes: duas no período 1970-80; e duas despontam na década de
1990.
919
&&&&&&&&&&&&&
O nome de Maria de Nazaré Barbosa encontra-se nos registros de
candidaturas partidárias desde o período militar, quando o bipartidarismo
regulava as eleições no país. Ela nasceu em outubro de 1942, no município
de Nova Timboteua (PA). Após concluir os estudos secundários, dedicou-se à
área do comércio, atividade que a obrigava a constantes visitas aos
municípios vizinhos na região onde morava e, pela liderança que exercia
nesses locais, surgiu seu interesse em entrar na política. Em 1966,
candidatou-se pela ARENA a uma cadeira na Câmara Municipal de Capitão
Poço (PA), sendo eleita e exercendo o mandato de quatro anos na localidade.
Em 1974 reinicia sua trajetória política candidatando-se pelo mesmo partido
para a Assembléia Legislativa do Estado, elegendo-se com uma boa votação
dos municípios de Capitão Poço, Ourém, Bonito, Nova Timboteua, Santa
Maria do Pará, Irituia, São Miguel do Guamá, Peixe Boi, São Domingos do
Capim e Paragominas. Sua atuação parlamentar se deu nas Comissões
Estaduais de Educação e Saúde e Assistência Social. Em 1978, conquista
seu segundo mandato, sendo eleita com 18.991 votos, obtidos nas regiões
Guajarina, Bragantina e do Salgado. Nessa 9ª Legislatura suas atividades
ligaram-se a funções da Mesa Diretora da Câmara onde ocupou a 1ª
Secretaria e, algumas vezes, dirigiu os trabalhos legislativos. Nos registros,
embora esparsos sobre essa deputada, há indicação de que ela se
candidatou e se elegeu pelo PMDB, em mais duas eleições: a de 1982,
quando recebeu 33.818 votos; e a de 1986, em que teve 18.556 votos. Em
1990, Maria de Nazaré Barbosa concorreu por este partido a uma cadeira na
Câmara de Deputados, mas recebeu uma fraquíssima votação (4.475 votos)
se comparado aos 60 mil recebidos pela concorrente do PC do B, Socorro
Gomes. Depois desse período, não há registro, na publicação bibliográfica da
Assembléia Legislativa, de que ela tenha participado de qualquer outra
atividade política.
O padrão de carreira apresentado por Maria de Nazaré difere do perfil
920
apresentado pelas outras três candidatas. Sua projeção na vida
pública se dá por suas atividades profissionais no comércio, nas zonas rurais
paraenses, onde passa a agregar eleitores quando inicia a trajetória política.
Não apresenta ativismo anterior em movimentos sociais ou movimento
estudantil, ou de mulheres, mas cria sua liderança na categoria ocupação, no
contato com os comerciantes das localidades onde circula. E dessa inserção
local como vereadora na cidade de Capitão Poço, ousa vôos mais altos no
legislativo estadual, através de um partido que ditava as regras no período
bipartidário. E consegue permanecer em evidência durante quatro mandatos.
Entretanto, a partir de 1986, com a redemocratização, a candidata perde
votos, apesar de permanecer no mesmo partido onde quatro anos antes
recebera uma expressiva votação. Esse declínio se dá em razão da demanda
com exigência de maior coeficiente eleitoral e de um padrão de campanha
mais agressivo nos distritos onde ela capta votos, mas que, àquela altura,
estavam sendo divididos entre outros competidores.
Os dados da Tabela 8 mostram a contribuição de Maria de Nazaré
Barbosa aos partidos ARENA e PMDB, no período 1974 a 1990.
Tabela 8 – Cálculo da força dos votos nominais de Maria de Nazaré Barbosa - PA – 1974- 1990

Fonte: Nicolau, 1982-2002; Tupiassu, 1975; Quadro 1


¹O percentual de N part. utilizou-se do cálculo do N Part Pará dos anos em foco.
²Os dados relativos ao ano de 1974 foram extraídos de Tupiassu, 1975.
³Dados extraídos da Ata de Apuração do T R E / 1978.
_____________________________________________________________

26
Estes dados de Maria de Nazaré Barbosa foram levantados da Biografia dos Deputados. 9ª Legislatura -
1979-1983. Assessoria de Divulgação e Relações Públicas. Belém, Pará, 1980.

921
&&&&&&&

Lúcia Daltro de Viveiros foi a primeira mulher paraense a ocupar


uma vaga na CD, eleita em 1978, pelo MDB. Nascida em Belém (1935),
formou-se em engenharia civil (1959). Exerceu cargos de assessoria da
COAP e no DNER desde 1951. Fundou e presidiu um núcleo da Legião da
Boa Vontade (LBV) no Pará, em 1954, criando programa de rádio para
promover a instituição. Em 1965, fundou a organização Oposição da Mulher
Paraense por uma Vida Melhor. Em 1968, se formou em arquitetura pela
UFPA, especializando-se em urbanismo, arquitetura de interiores, pintura e
decoração. Foi professora da Escola de Arquitetura do Pará. Na década de
1970, concentrou suas atividades na luta pela defesa dos direitos da mulher,
criando um programa de rádio para a divulgação de suas idéias - A Voz da
Mulher Paraense (extinto em 1987), implementado nas duas rádios mais
importantes do Estado – a PRC-5 e a Rádio Marajoara. Em 1975, fundou a
LEMPA – Legião da Mulher Paraense – instituição filantrópica de ajuda às
mulheres, crianças e idosos, doentes e carentes, de modo geral, promovendo
assistência social e jurídica. Criou um outro programa na Rádio Guajará –
Presença da mulher – e fundou a Frente Nacional de Assistência ao Povo.
Esse foi o cenário preparado por Lúcia Viveiros para candidatar-se, em 1978,
a uma vaga na Câmara de Deputados pela legenda do MDB, elegendo-se
com uma significativa votação (48.826 votos). Tomou posse em 1979, sendo
membro de várias comissões parlamentares como a do Interior e a de
Comunicação. Ao final desse ano, com a extinção do bipartidarismo, ela
deixou o MDB para filiar-se ao PP. Na CD, foi a terceira suplente da mesa
diretora dos trabalhos, e “a primeira mulher na história do Parlamento
brasileiro a presidir algumas vezes a Câmara durante o período de 1981-
1983”. Quando o PP incorporou-se ao PMDB, em fevereiro de 1982, a
parlamentar afastou-se, ingressando no PDS, sendo reeleita para o cargo
que ocupava na CD, em novembro de 1982, recebendo a maior votação do
922
Estado: 69.384 votos. Assumiu o novo mandato em fevereiro de 1983
tornando-se coordenadora do movimento feminino do partido. Sua atuação
neste segundo período parlamentar foi marcada pela apresentação de
projetos e proposições em favor da mulher, como a criação do Ministério da
Mulher e da Criança; projeto obrigando a criação de creches nas instalações
do Banco Nacional de Habitação (BNH); projeto para que a mulher e o homem
fossem considerados chefes da sociedade conjugal; criação de escolas
agrícolas no ensino médio estadual e nacional; e gratuidade nos transportes
urbanos para pessoas com mais de 60 anos. Ao pleito de 1986, já filiada ao
PFL, Lúcia Viveiros tentou a reeleição, mas os votos alcançados lhe deram
apenas uma suplência. Deixou a Câmara ao término de seu mandato, em
1987. Em 1990, ela tentou uma vaga na AL pelo PDS, partido ao qual retorna,
tendo um inexpressivo número de votos, 1.931 votos. Nesse período, ela
ainda exercia atividades na Legião da Mulher Paraense (LEMPA), atuação
questionada pelos movimentos de mulheres que, nesse tempo, estavam
pleiteando os direitos a uma política pública eficiente para a mulher e,
portando, repudiando o proselitismo sobre esse gênero. Desse modo, o
padrão de carreira desta candidata circulou entre o status profissional e o
ativismo político. E até onde a situação mantinha um nível de informação
assistencial à mulher, Viveiros conservou uma votação eficiente que lhe
garantiu o mandato parlamentar. Com a reconfiguração das discussões sobre
os direitos da mulher, quando se criou uma nova ideologia sobre o feminismo
propagado a partir dos anos 90, a ex-parlamentar foi perdendo espaço entre
um eleitorado cativo que a mantivera por duas legislaturas. Foi esquecida a
sua atuação parlamentar em favor da mulher, num tempo e num espaço em
que tratar do assunto ainda era tabu no parlamento nacional que só
dispunha, em 1978, de 4 mulheres e, em 1982, de 8, com as cadeiras
maciçamente ocupadas pelos homens.
A presença de Lúcia Viveiros na competição partidária foi marcada pela troca
de partido, devido a conflitos pessoais entre as lideranças, segundo sua
própria afirmativa em entrevista. A Tabela 9 demonstra a contribuição dos
923
votos nominais da deputada aos partidos em que se filiou, ao longo de sua
trajetória política.
Tabela 9 – Cálculo da força dos votos nominais de Lucia Viveiros –
PA – 1978- 1990

Fonte: Nicolau, 1982-2002; Tupiassu, 1975; Quadro 1.


¹Dados extraídos da Ata de Apuração do T R E/1978

&&&&&&&&

Maria do Socorro Gomes Rodrigues (ou Socorro Gomes) é natural


do Estado do Tocantins, da cidade de Cristalândia, nascida em janeiro de
1952. Iniciou sua militância política no movimento estudantil, em Goiânia, na
década de 1960, como membro da União Metropolitana de Estudantes
Secundaristas (UMES) e União Brasileira de Estudantes Secundaristas
(UBES), sendo, em 1966, diretora da entidade nacional. Em 1968, ingressou
na Ação Popular (AP), uma organização de esquerda que vivia na
clandestinidade e, posteriormente, Socorro incorporou-se ao PC do B que,
em 1972, era também clandestino. Em 1979, participou dos movimentos pela
anistia, dos comitês e atos públicos pela libertação dos presos políticos e por
esse ativismo, sobretudo no nordeste, chegou ao Norte, radicando-se no

_____________________________________________________________

27
Há um episódio vivido por Lucia Viveiros que mostra o seu enfrentamento à cultura sexista da CD. Certo
dia ela adentra o Congresso Nacional vestida com um terninho em calça comprida. Houve conflito à sua
entrada, com o protocolo do Congresso querendo barrá-la alegando que ela “não estava vestida
condignamente para uma mulher”. Houve discussão no plenário. Mas ela não se intimidou e conseguiu
transformar o episodio em mais uma conquista feminina. A mídia acompanhou em comentários às vezes
favoráveis outras vezes de censura, a postura “ousada” da deputada paraense.
28
Alguns dados de Lucia Viveiros foram extraídos de Abreu & Beloch & Lattman-Weltman & Lamarão
(orgs.), 2001. Outras informações são de uma entrevista da Deputada concedida a Álvares (1986).

924
Pará. Foi professora e líder sindical na área da Gleba CIDAPAR
(Companhia de Desenvolvimento Agropecuário Industrial e Mineral do
Estado do Pará), em Vizeu, onde também se incorporou à luta pela reforma
agrária. Fundou, em 1962, com algumas colegas de partido, a União de
Mulheres de Belém (UMB). Em 1983, tornou-se vice-presidente do
Movimento Nacional de Entidades Emancipacionistas de Mulheres. De 1985
a 1988, teve atuação destacada em vários movimentos sociais e de
mulheres, participando da direção executiva da Federação dos Centros
Comunitários do Pará (FECAMPA), sendo vice-presidente da Confederação
Nacional das Associações de Moradores da Região Norte (CONAM) e da
executiva do Conselho Municipal do Direito da Mulher, em Belém. Em 1986,
candidatou-se, mas, não se elegeu para uma vaga na Assembléia Legislativa,
segundo ela, por estratégia do partido, que tinha como objetivo eleger o
candidato Paulo Fonteles (que viria a ser assassinado no ano seguinte). Em
1988, candidatou-se e elegeu-se pelo PC do B à Câmara Municipal de Belém
tornando-se membro de várias Comissões Legislativas (Meio Ambiente,
Defesa do Consumidor), além de ter participado da elaboração da Lei
Orgânica Municipal. Em 1990, candidata-se à CD, sendo a parlamentar mais
votada no Estado, com 60.317 votos. Assumiu a cadeira após renunciar ao
mandato de vereadora, em janeiro de 1991. Participou como titular de muitas
Comissões parlamentares, nessa legislatura, como a de Defesa do
Consumidor, Meio Ambiente, Projeto Calha Norte, CPIs sobre violência no
campo, sobre exploração e prostituição infanto-juvenil. Ausentou-se de
votações sobre cujos temas não concordava e/ ou nem seu partido era
favorável, como o projeto de criação do IPMF, FSE e o fim do voto obrigatório.
Participou das sessões de discussão e votou pelo impeachment de Fernando
Collor. Em 1992, Socorro Gomes foi indicada candidata à prefeitura de
Belém, num acordo com os partidos coligados com o PC do B (PPS, PSDB,
PSB e PDT), após a renúncia do então candidato dessa aliança, Almir
Gabriel, sendo derrotada. Retornou, então, ao exercício de seu mandato na
925
CD. Nas eleições de 1994, seu partido indicou-a para concorrer e ela
se reelegeu deputada federal. Fez parte de varias comissões parlamentares
que antes já havia assumido, além de votar emendas constitucionais
propiciadas pelas discussões do momento (fim do monopólio estatal das
telecomunicações etc.). Em 1997, tornou-se vice-líder do seu partido na CD e
em outubro do ano seguinte disputou o terceiro mandato, mas não conseguiu
a reeleição ficando na suplência. Em 2002, candidatou-se novamente, mas
também não se reelegeu permanecendo suplente, sendo indicada, pelo
governo Lula para a direção da Delegacia Regional do Trabalho –PA.
O padrão de carreira de Socorro Gomes privilegiou o ativismo político,
no meio estudantil e no movimento social e de mulheres. Esses recursos
favoreceram a candidata num período em que havia uma maior tensão
movimentando o discurso dos partidos de esquerda contra a direita. Porém, à
medida que o PC do B ia fazendo coligações com os partidos de centro, ela
perdia votos entre o eleitorado (municipal e estadual) que a sufragou em três
eleições consecutivas. Nas duas últimas eleições, não conseguiu alcançar o
coeficiente eleitoral para eleger-se, ficando na suplência que a favoreceu em
1996 para ocupar uma cadeira na CD. Contudo, permaneceu como a líder de
contribuição em votos para o seu partido, no Pará. A Tabela 10 demonstra os
recursos acumulados na carreira política da candidata, desde 1986,
seguindo-se daí o registro nas demais eleições e a extração da força nominal
dos seus votos para o PC do B. Certamente a maior motivação do partido para
a indicação desta líder em todas as eleições em que a mesma concorreu é o
desempenho eleitoral que ela apresentou até agora.

926
Tabela 10 – Cálculo da força dos votos nominais de Socorro Gomes
PA – 1986- 2002

Fonte: Dados Eleitorais Nicolau, 1982-2002. Quadro 1

&&&&&&&&&

Elcione Terezinha Zahluth Barbalho é belemense, nascida em


outubro de 1944, e formada em Pedagogia pela UFPA (1968). Por esta
formação, ocupou vários cargos no serviço público como inspetora de
educação na Secretaria de Educação do Pará e em escolas particulares
como a da Johnson & Johnson do Brasil. Diplomada em administração
escolar (UFPA-1971), dirigiu esse setor no Serviço Social da Indústria (SESI)
em Belém, de 1971 a 1975. Filiou-se ao PMDB em 1981. Em 1982 tornou-se a
primeira–dama do Estado, por ser esposa do então governador Jader
Barbalho. Suas atividades profissionais de 1983 a 1987 giraram entre a
Coordenação Estadual da Legião Brasileira de Assistência e outros
programas que a posição política condicionava a sua investidura: presidência
da Ação Social Integrada do Governo, presidência de conselhos estaduais
(deficientes, de entorpecentes, projeto de alimentação do menor). Como a
família detinha uma organização de mídia (jornal, rádio e televisão), tornou-se
parte da direção administrativa da mesma, a partir do final dos anos 80. De
1991 a 1995, retornou à antiga posição de primeira-dama, por eleição do
marido ao cargo de governador, e à atuação na Ação Social Integrada e
demais programas assistenciais oferecidos para a população carente. Em
1994, candidatou-se à CD na legenda do PMDB, sendo a candidata mais
votada do Estado, com 153.780 votos. No cargo, integrou-se em várias
comissões parlamentares, como a de Seguridade Social e Família e Direitos
Humanos. Em 1996, licenciou-se do cargo para concorrer à Prefeitura de
Belém, sendo derrotada, reassumindo a cadeira na CD. Em 1998, foi indicada
para a reeleição e venceu o pleito como a mais votada do PMDB e a segunda
_____________________________________________________________

29
Alguns dados de Socorro Gomes foram extraídos de Abreu & Beloch & Lattman-Weltman & Lamarão
(orgs.), 2001; outras informações foram extraídas de entrevistas concedidas pela deputada à Álvares, em
2000 e 2002.

927
em todo o Estado. Em 2002, seu partido indicou-a para concorrer a uma
cadeira no Senado, mas sua votação não atingiu o coeficiente necessário
para eleger-se. Em 2004, concorreu a uma vaga na Câmara de Vereadores
de Belém, elegendo-se com um percentual significativos de votos. Em 2006
candidatou-se e elegeu-se para a Câmara de Deputados onde
presentemente exerce mandato.
A situação de Elcione Barbalho teve um diferencial significativo das
outras três candidatas. Sua carreira política esteve colada à projeção familiar,
com uma trajetória em que o ativismo político não se deu através do
movimento estudantil ou movimentos sociais ou de mulheres, mas prendeu-
se à sua condição de primeira-dama, e aos cargos públicos que assumiu,
durante a gestão do marido à frente do governo do Estado, por dois períodos.
Mas seu mérito próprio também deve ser contabilizado no desempenho
dessas atividades em função do status político, conseguindo traduzir-se em
captação de votos, proporcionando-lhe estabilidade política em quatro
períodos consecutivos. Apesar de não ter alcançado o coeficiente eleitoral
para o cargo senatorial, sua votação favoreceu o partido. Na Tabela 11 um
demonstrativo da força dos votos nominais de Elcione Barbalho ao PMDB,
nas três eleições em que concorreu para um assento na CD e à senatoria.
Tabela 11 – Cálculo da força dos votos nominais de Elcione Barbalho
PA – 1994- 2002

Fonte: Fonte: Dados de Nicolau, 1982-2002 ; Quadro 4.1.


¹A formula aplicada é igual ao N do PMDB ao senado c/ 2 candidatos concorrendo e recebendo
um total de 1.060.102, pq o 2º recebeu 97.606 votos. O total de N para este cargo foi de
4.735.579. A divisão dos votos nominais de Elcione pelos votos do partido, resultou em 90,8%
de desempenho que, num nível total de N ao senado, foi de 20,3%.

Os comitês de alistamento, o ativismo político e o espaço parlamentar :


a experiência das mulheres paraenses nos partidos

O direito do voto feminino e a formação dos partidos nacionais criaram


cenários convergentes para a competição eleitoral. O ciclo iniciado em 1945
devolveu aos/as brasileiros/as as credenciais da cidadania eleitoral
suprimida com o Estado Novo, em 1937. No Pará, as mulheres iniciam
carreira política em frentes de ativismo dos comitês de alistamento eleitoral
partidário (1934-1935), incorporado nas práticas da Legião Feminina
Magalhães Barata, assemelhadas aos Comitês pró-candidaturas,
928
percebidos em outros Estados, recrutando eleitores, fazendo comícios e
resolvendo os problemas usuais nas juntas eleitorais. E com isso, as
“legionárias” transformavam-se em fonte de reivindicação para a população
contatada nos bairros e na zona rural. A formação de lideranças, entre as
ativistas recrutadas do magistério público estadual, transforma-as em eixos
de conexão e em candidatas prospectivas para a competição eleitoral no
PSD, que detém a hegemonia política do período. A presença parlamentar
feminina neste ciclo é fraca e se dá somente em nível estadual e através do
partido do governo. Não há entre elas qualquer representante das sufragistas
do período anterior, conforme o imperativo do lobby nacional.
O ciclo eleitoral iniciado com o governo militar (1964) é bipartidário.
Somente na década de 1970, as paraenses vão filiar-se à ARENA e ao MDB e
concorrer aos cargos para a AL e CD. Os recursos políticos das mulheres que
se elegem se acham entre o ativismo com proselitismo filantrópico e em favor
da mulher e o de “voz diferente” em oposição ao regime. Neste período,
apesar de ser fraca a candidatura de mulheres, tem maior dinâmica do que no
anterior, com a abertura política e a criação de novos partidos a partir de 1982.
Em 1978, elege-se a primeira paraense à CD, pelo MDB. A AL permanece
como o foco principal da demanda feminina, distribuída entre os dois partidos
existentes e, depois, entre os derivados do bipartidarismo (1982).
A comparação entre as candidaturas no Pará e o quadro nacional se
equivale em percentuais instáveis para as mulheres e forte presença
masculina no primeiro ciclo. No período militar, há um franco declínio, até
1982, quando as mulheres entram na competição em maior demanda para os
cargos dos parlamentos estaduais, com o número de eleitas atingindo 20,9%
em todo o país. O Pará contribui com 2,6%.
O ciclo chamado de “abertura política” (a partir de 1986) não só
animou o mercado eleitoral na demanda por mulheres, como estas se
achavam conectadas em outro tipo de ativismo político pleiteando justiça
social, ao avaliarem as necessidades nacionais por políticas públicas, sendo
a “questão social” e a “questão da mulher” os estandartes dos movimentos
sociais que explodiam no país todo. Há incremento nas candidaturas e na
eleição de mulheres, com os percentuais de presença feminina nos cargos
parlamentares avançando de forma discreta, mas crescente, com o
predomínio das demandas por cargos nas ALs. A distribuição das
candidaturas por blocos ideológicos acha-se em maiores percentuais nos
partidos de direita (53,6%), com os de esquerda demonstrando avanço (25%)
e os de centro mais abaixo (21,4%). Contudo, é neste último onde há mais
mulheres exitosas, ao elegerem 62,5% das que se candidatam, ficando os
_____________________________________________________________

30
Alguns dados de Elcione Barbalho foram extraídos de Abreu & Beloch & Lattman-Weltman & Lamarão
(orgs.), 2001; e completados através de informações extraídas de uma entrevista concedida pela deputada
a uma seção de um site local.

929
dedireita com 25% e os de esquerda com 12,5% dos resultados da
competição feminina.
Os níveis da competição eleitoral nos períodos estudados apontam
para o avanço gradual do percentual de candidaturas e eleição de mulheres,
apesar da precária difusão da cultura política e dos baixos incentivos para
este avanço. Evidenciam, também, a importância do ativismo político em
eixos diferenciados e a emergência dos movimentos de mulheres que se
agregaram aos núcleos de base dos partidos. Outro fator importante é o papel
partidário de algumas competidoras com desempenho eficaz para a captação
de votos para os seus partidos, permanecendo nas listas até ao
esvaziamento de sua força competitiva (demonstrada pelo baixo percentual
de votos conseguidos em dada eleição e o gradual distanciamento dos
mandatos), em demanda para diversos cargos eletivos. O padrão de carreira
política que apresentam e os incentivos à captação de votos no mercado
eleitoral se tornam um diferencial entre as candidatas. A indicação nominal à
lista partidária valeu-se, em alguns casos, do desempenho do/a candidato/a
na competição pelos votos ao partido.
Conclui-se considerando que este recorte temporal expressou a
hipótese cada vez mais presente nos estudos sobre a competição eleitoral
feminina demonstrativa de ampliação do número de mulheres pleiteando
candidaturas e sendo eleitas, apresentando forte tendência a concentrarem
recursos políticos pessoais agregando o êxito profissional, político e familiar.

930
Referências Bibliográficas

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lutas. um estudo sobre a participação política e partidária das
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Bezerra Neto, José Maia & Guzmán, Décio de Alencar. (orgs.). Terra
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Diversidades. Os estudos sobre gênero no Norte e Nordeste. Belém,
GEPEM/CFCH/UFPA; REDOR-N/NE, 1999.
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IUPERJ, 2004 (digitada).
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Cultura e Política nos movimentos sociais latino-americanos. Belo
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Salvador: NEIM/UFBA – Assembléia Legislativa da Bahia, 1998.
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Carvalho, Nanci Valadares de (Org.). A Condição Feminina. São
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2. BIOGRAFIA dos Deputados. 9ª Legislatura -1979-1983. Assessoria
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3. DADOS ESTATÍSTICOS, – Eleições Federais, Estadual e Municipal.
1950, Departamento de Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, Brasil.
4. RELATÓRIO do projeto “Mulheres e Processos Eleitorais no Pará:
1986-1994. Relatório de Pesquisa: Comportamento Eleitoral em
1994, UFPA, 1994
5. RELATÓRIOS do projeto de pesquisa “Cidadania, Participação
Política e Gênero: Pará , 1932-1998”.

932
TRAJETÓRIAS POLÍTICAS DE CANDIDATAS AO CARGO DE
VEREADORAS DA CÂMARA MUNICIPAL DE BELÉM.

Luiz Eduardo Santos do Nascimento – GEPEM/UFPA


nascimento96@yahoo.com.br
Sandra Pereira Palheta – GEPEM/UFPA
sandrapalhetta@yahoo.cm.br
No cenário político atual é visível o déficit da participação feminina
apesar dos avanços conquistados pelos movimentos feministas. As políticas
afirmativas como a lei de cotas, é um exemplo mas apesar dessa demanda de
candidaturas femininas, as mulheres ainda estão muito aquém do esperado e
o resultado disso é uma baixa representatividade feminina nos espaços de
decisão política.
Em seu estudo sobre a situação das mulheres com baixo nível de
educação e fora da cidadania eleitoral, John Stuart Mill (1869), ainda no
século XIX, defende a participação das mulheres nos espaços de poder e
tomada de decisão por entender que a democracia não deve excluir parcelas
significativas da população. Segundo o autor, incorporar setores populares
ao contexto político do país é indispensável para a preservação da liberdade
dos interesses da Classe Média.
Com o advento da democracia dois conceitos importantes surgem: a
participação política e a representação parlamentar, que é o modo pela qual o
povo delega a um representante o poder de decisão política, ou seja, o direito
de representá-lo.
Porém esse modelo de democracia liberal exclui parcela da
população e uma delas é a mulher por ser avaliada somente por sua condição
biológica, na função materna (Beauvoir, 1949). Essa situação fez com que as
mulheres ficassem historicamente relegadas à esfera privada e subordinada
à condição do chamado “segundo sexo”.
Essa subordinação que relega mulher a esfera privada tem sido
_____________________________________________________________

1
Este texto foi desenvolvido como trabalho de classe da disciplina Estágio Supervisionado em Ciência
Política, no Curso de Ciências Sociais, primeiro semestre de 2009. Houve inserção no projeto de pesquisa:
Os movimentos de mulheres e feministas e sua atuação no avanço das carreiras feministas nos
espaços de poder político, do GEPEM (Grupo de Estudos e Pesquisa Eneida de Moraes sobre Mulher e
Relações de Gênero) como formalização do referido estágio junto à faculdade de Ciências
Sociais/IFCH/UFPA. As atividades de pesquisa para a complementação do processo ao qual nos
inserimos, ainda está em andamento. Uma primeira versão foi apresentada no simpósio “Mulheres e
movimentos: participação e Representação Política nas democracias contemporâneas”, em 28/08/2009,
promovido pelo GEPEM/UFPA.
2
Alunos da Graduação do Curso de Ciências Sociais e bolsistas do Grupo de Estudos e Pesquisas
“Eneida de Moraes” Sobre Mulher e Relações de Gênero – GEPEM.

933
gradualmente enfrentada pela crítica dos movimentos feministas e de
mulheres ao lutarem pela emancipação de direitos e a inserção feminina na
esfera publica. A mulher conquistou seu espaço em numero significativo no
mercado de trabalho e em atividades culturais, mas a sua ausência em
espaços da política ainda é muito marcante em nossa sociedade. “E essa
marginalização reflete a sub-representação feminina, como o exemplo mais
flagrante da sub-representação de vários grupos sociais”. (VARIKAS, 1996)
Nessa perspectiva, foram impostas, pela permanente critica
feminista, medidas drásticas, afim de que essa participação seja ampliada
visando atender os novos percursos para a implementação do ideal
democrático para garantir a presença desse gênero em plena igualdade com
os homens. Entre essas medidas mais recentes, as ações afirmativas ou
discriminação positiva levou a criação de leis eleitorais para garantir a
presença das mulheres na competição eleitoral como as cotas partidárias
prevendo o aumento do número de parlamentares que mesmo assim se
mantém sub-representadas.
Os resultados de uma pesquisa empírica nas eleições de 2008,
no Pará e as metodologias aplicadas
Este texto revela parte de um estudo que está sendo desenvolvido
sobre a presença das mulheres no âmbito do parlamento municipal no Pará ,
tomando-se as eleições municipais de 2008 para demonstrar o nível de
participação e o perfil de algumas candidatas aos cargos legislativos na
cidade de Belém.
Entende-se a importância do município como Keurbay (2005) que diz
sobre isso: “O Brasil tem hoje 5.563 municípios dos quais 1.363 foram criados
a partir de 1989 graças as regras flexíveis estabelecidos pelo artigo
18, § 4º, da constituição de 1988 definidas para preservar a “continuidade e
unidade histórico cultural do ambiente urbano, obedecidos os requisitos
previstos em lei complementar estadual e mediante a consulta previa as
populações diretamente envolvidas” o resultado visível do aumento do
numero de municípios na ultima década é o fato de 90% deles terem menos
de 50 mil habitantes e de 80% de sua despesas serem cobertas por
transferência institucionais.
Segundo a pesquisadora da UFBA Ana Alice Costa (1998) que trata da
carência de produção nessa área, “O município representa um valioso
espaço para o estudo da participação política da mulher. Todavia tem sido
pequena a produção teórica nesse espaço do exercício do poder formal.”
Devido a abrangência da atuação das Câmaras Municipais após a
constituição de 1988, nas últimas décadas, a competição entre as elites
políticas locais para o controle do poder executivo e legislativo tem sido muito
acirrada em algumas unidades territoriais brasileiras gerando a necessidade
934
de novos estudos que consigam atualizar o debate sobre esse assunto.
Levando em consideração que a maioria dos estudos é dedicada a entender a
construção e o funcionamento do poder executivo e legislativo na esfera
estadual e federal, vê-se que ainda há muito a se avaliar sobre a
operacionalização das eleições municipais e o padrão de competição que
ocorre na esfera local.
Por isso, torna-se necessário a produção de estudos reveladores que
consigam evidenciar as características, o perfil e as diferenças e similitudes
das eleições que ocorrem na esfera municipal com as ouras esferas de
competição política. Entende-se, com isso, a importância dos estudos sobre a
trajetória política de mulheres que se candidatam na esfera municipal. Avaliar
quem são essas mulheres que se integram na carreira partidária em busca de
um cargo no legislativo municipal norteou esta pesquisa e empreendeu a
captura de dados empíricos que facilitassem assegurar o reconhecimento de
um percurso nesse campo de embate publico e político das mulheres
paraenses.
A escolha de nosso campo de levantamento de dados deu-se,
primeiramente, na extração do número de candidaturas femininas nas
eleições municipais de 2008 no Pará, extraindo-se desse núcleo mais amplo,
as concorrentes do município de Belém. O interesse era criar uma rede de
contatos para ampliar ainda mais o nosso campo de integrantes de
depoentes, pois o problema que se colocava era criar expectativas num perfil
mais específico sobre quem eram as mulheres que participavam dessas
eleições. As técnicas metodológicas nos levaram, primeiramente, a uma
candidata de nosso conhecimento e através dela esperávamos criar uma
rede de conhecimentos para chegarmos a outras. Contudo essa estratégia
mostrou-se inviável devido ao fato de nossas interlocutoras na maioria das
vezes indicarem candidatas do mesmo partido, que não trariam um resultado
diversificado. Então optamos em ir aos partidos na tentativa de conseguir
contatos, o que nem sempre era possível devidos estes manterem sigilos
acerca dos dados pessoais de seus filiados. Ainda assim foi possível saber de
uma reunião do Núcleo de Mulheres desse partido ao qual nos dirigimos para
uma primeira entrevista.
Outras estratégias nos levaram a novas interlocutoras. A técnica da
utilização de questionários foi uma das técnicas para extrair subsídios da
trajetória das mulheres no momento da competição eleitoral. Em vários locais
conseguimos o contato e a permissão de abordagem com as nossas
interlocutoras, quer nas suas residências, quer na Câmara Municipal de
Belém.
O questionário aplicado foi organizado pela equipe do GEPEM.
Divide-se em quatros seções. A seção “A” trata da identificação da depoente,
a seção “B” da Trajetória Política, a seção “C” trajetória nos Movimentos de
935
Mulheres e seção “D” Trajetória nos Partidos Políticos. No caso da
abordagem sobre a trajetória política, leva-se em consideração aspectos
como a trajetória familiar, a profissional e a política o que significa a atuação
vivenciada em entidades da sociedade civil organizada (partidos,
movimentos sociais, entidades classistas e etc.). Houve priorização de
valorizarmos o item referente à trajetória dessas mulheres nos Movimentos
de Mulheres, pois, para a equipe do GEPEM que está procurando avaliar a
responsabilidade desses movimentos no processo de escolha e indicação de
associadas era um fator de supra importância para perceber o nível do
empoderamento das mulheres a ponto de chegaram a buscar espaço nos
meios de decisão política da sociedade.
Para preservar a identidade de nossas interlocutoras, resolvemos
identificá-las como o termo “Candidata” e enumerá-las a partir do número 1.
Esta técnica garantiria a descrição do perfil de nossas entrevistadas e criar
um demonstrativo em duas tabelas onde sistematizamos os dados colhidos
nos questionários aplicados.
As falas das candidatas e a formação de um perfil político
Nossa primeira interlocutora, Candidata 1, possui mais de 60 anos de
idade, pós-graduada em Sociologia pela Universidade Federal do Pará,
natural do Estado de Goiás, divorciada, mãe de três filhos, funcionaria
publica aposentada, com uma renda de 2 (dois) a 4 (quatro) salários mínimos.
E sua principal ocupação, atualmente, e dentro do partido e se considerando
média conhecida dentro do seu circulo de atividades.
Iniciou sua carreira política fundando um grêmio estudantil em sua
terra natal. Ajudou a fundar, na década de 1980, a União de Mulheres de
Castanhal bem como a Federação Metropolitana dos Centros e Associações
de Moradores e atualmente integra o Sindicato dos Sociólogos do Estado do
Pará. Dentro do Movimento de Mulheres destaca a sua participação atual
dentro da União Brasileira de Mulheres, fundada em 1987 em São Paulo, mas
com representação no Estado do Pará. Movimento este que agrega na sua
maioria mulheres profissional urbana (trabalhadoras, lideres comunitárias). É
filiada ao PC do B, faz parte do mesmo, pois se identifica com a ideologia do
partido e pela compreensão da estar filiada a um partido que represente a
classe operaria. Ocupa a Secretária Estadual da Questão da Mulher dentro
do partido e se candidatou as Eleições Municipais 2008 a um cargo
proporcional na Câmara Municipal de Belém por entender que se tratava de
uma tarefa partidária. Enquanto aspirante ao cargo concorreu às eleições
municipais de 2008 e obteve 777 votos, não se elegendo.
A Candidata 2 possui mais de 50 anos de idade, na escolaridade tem
duas graduações de nível superior, sendo uma em Ciências Contábeis e
outra em Licenciatura em Letras. É natural da cidade do Tocantins vindo a
morar em São João do Araguaia no Pará aos 3 (três) anos de idade. Solteira e
936
sem filhos é bancária e coordenadora regional do Programa de Inclusão
Digital sendo esta sua principal ocupação, com renda de 6 (seis) a 8 (oito)
salários mínimos. Integra o Fórum de Mulheres da Amazônia Paraense e da
Articulação Nacional de Mulheres Brasileiras bem como o Sindicato dos
Bancários da qual esteve a frente do mesmo por muitos anos. É filiada ao
Partido dos Trabalhadores desde 1987 do qual se aproximou através de
amigos e parentes e se identifica com o mesmo pelo programa e objetivos.
Ofereceu sua candidatura para as eleições em 2008 do qual era aspirante ao
cargo de vereadora. Os movimentos do qual integra como o de Mulheres bem
como o sindicato do qual participa incentivaram a sua candidatura, porém
este se encontrava dividido por haver outro candidato representando os
bancários. Obteve 791 votos não sendo eleita.
O perfil da Candidata 3 revela que ela é separada, possui mais de 3
(três) filhos, tem mais de 50 anos. Natural do Estado de Goiás e vive em
Belém desde 1965. Possui ensino superior completo com Bacharelado em
Farmácia, sendo sua principal ocupação a de sindicalista, tendo como renda
salários entre 2 (dois) a 4 (quatro) mínimos. Teve na sua trajetória política
efetiva participação no Movimento de Mulheres do Campo e da Cidade –
MMCC, em associações comunitárias de bairro (Marambaia) e atualmente
dirige o Sindicato dos Trabalhadores no Serviço Publico Federal no Estado do
Pará. Esteve presente no MMCC durante muito tempo, contudo hoje
se encontra afastada não sabendo informar sobre a situação atual do
movimento. Filiou-se a primeira vez a um partido político em 1985 – Partido
dos Trabalhadores – e em 2003 ao PSOL. Sua aproximação com o PT foi
através de parentes e o motivo da mudança foi devido a ideologia do novo
partido lhe interessar mais. Ocupou, tanto no PT como atualmente no PSOL,
o cargo de tesouraria. Com relação à candidatura, revela que foi indicada pela
corrente política que integra dentro do partido. Obteve 821 votos não
logrando uma vaga na CMB.
A Candidata 4 possui ensino médio completo, encontra-se na faixa
etária de idade entre 40-50 anos. É divorciada, paraense da capital. Possui
mais de 3 (três filhos). Era gerente de vendas, mas atualmente tem como
ocupação principal a de assessora parlamentar. Em termos de trajetória
política iniciou-se no Centro Estudantil do Colégio Augusto Montenegro.
Participa da Associação de Mulheres de Outeiro e do Movimento AGAPE de
Restauração – Rede de Mulheres (movimento religioso). Movimento este que
se sustenta com os recursos da igreja (AGAPE) e congrega, na sua maioria,
donas de casa. Iniciou sua trajetória partidária em 1986, no antigo PFL,
através de serviços partidários (cabo eleitoral, bandeirola, panfletagem e
etc.). Trocou de partido, indo para o PSDB, na ocasião acompanhando seu
“padrinho”, partidário, depois se afastou do mesmo e hoje se encontra filiada
ao PRB a convite do Presidente regional do partido. Ofereceu sua
candidatura ao partido e recebeu apoio das entidades de mulheres. Alcançou
937
257 votos e não se elegeu.
A quinta interlocutora, Candidata 5, é casada sem filhos, pós-
graduada em Comunicação Social. Sua principal ocupação é a de
parlamentar, onde possui uma media salarial acima de 10 (dez) salários
mínimos. Encontra-se entre os 30-40 anos de idade. Na adolescência
integrou um movimento de jovens católicos e participou do sindicato dos
radialistas por conta da profissão. Também é membro do Corpo de Oficiais da
Policia Militar do Estado do Pará. E nunca fez parte de nenhuma
associação ou movimento de mulheres. Filiou-se a um partido político, pela
primeira vez, em 2002, na ocasião ao PSB, a convite do líder do partido.
Trocou de legenda a convite de outra liderança partidária. Desfiliou-se
voltando à vida de caserna, quando se sentiu perseguida politicamente,
somente retornando integrada ao PMDB e a convite de liderança do partido.
Foi candidata a reeleição a câmara de vereadores alcançando 5.891 votos,
sendo reeleita.
A Candidata 6, é piauiense e reside no Pará desde 1980. Solteira,
mãe de 3 (três) filhos, possui o ensino o 1º grau incompleto. Encontra-se na
faixa etária entre 40-50 anos. Com uma renda familiar em torno de 2 (dois) a 4
(quatro) salários mínimos sua ocupação atual é guia turística, já havendo
trabalhado como recepcionista de hotel. Em sua trajetória política destaca a
sua participação no PSDB Mulher, citando também participação em
Pastorais, em conselhos de segurança publica, associação comunitária de
bairro (Tapanã). Está filiada a um partido político desde aproximadamente o
ano de 2003, ao qual se aproximou através das reuniões de comunidade e se
identificou com a ideologia do partido. Dentro do partido integra a executiva
municipal. Foi candidata na ultima eleição municipal a convite da presidência
municipal do PSDB, alcançando 203 votos e não se elegendo.
A Candidata 7, natural do Estado do Paraná, possui Mestrado em
Lingüística pela Universidade Federal do Pará – UFPA. Sua ocupação
anterior era da docência na universidade, sendo atual vereadora. Está na
faixa etária 40-50 anos de idade. Possui como renda uma media acima de 10
(dez) salários mínimos. Na sua trajetória política não menciona participação
em nenhum setor da sociedade civil organizada (associação classista,
estudantis, sindicatos, movimentos sociais). Menciona sua filiação ao PDT
em 2003 através de um parente e por possuir afinidade com a ideologia do
partido. É membro partidário nato, participando das decisões da executiva em
nível municípal. Menciona também em relação ao movimento de mulheres do
PDT que“é ainda insignificante”. Ofereceu sua candidatura como aspirante a

938
vereadora. Alcançou 6.049 votos sendo eleita.
Os dois quadros abaixo são demonstrativo do que foi relatado acima,
evidenciando a trajetória das entrevistas em movimentos sociais e em
partidos políticos.
Quadro 1 - Trajetória Política em Movimentos Sociais

Fonte: questionários de pesquisa com candidatas/2008

Através de uma leitura ainda parcial do quadro acima podemos


verificar que a maioria de nossas entrevistadas possui além do conhecimento
de causas sociais participação em movimentos sociais de alguma natureza.
O maior destaque para o movimento de mulheres, movimentos de igreja e
sindicatos. As Candidatas 5 e 7, são as únicas a não integrarem ou nunca
terem se envolvido com movimento de mulheres. Observa-se que as nossas
interlocutoras têm visibilidade social e liderança suficientes dentro dos seus
círculos de atividades (familiar/profissional/político).
Tabela 2 – Trajetória nos Partidos Políticos

Fonte: questionários de pesquisa com candidatas/2008


_____________________________________________________________

3
Outros partidos mencionados como sendo de filiação anterior aos atuais foram: PFL (atual
DEMOCRATAS), PTB, PT e PSDB.

939
Seguindo a linha de raciocínio do quadro anterior, verifica-se que as
interlocutoras na sua maioria possuem mais de 20 (vinte) anos de militância
ou filiação a algum partido, sendo apenas 3 (três) com filiação já nesse
século. Ainda se tratando de filiação ressaltamos que a maioria (quatro) já
esteve filiada a outro partido diferente do atual.
Nossas interlocutoras, com exceção de uma, todas integram as
executivas (municipal pelo menos) de seus partidos. Esse dado evidencia
que se trata de mulheres com liderança e reconhecimento dentro dos
partidos. Liderança esta que na sua maioria é oriunda dos movimentos
sociais que integram ou das atividades desenvolvida dentro do partido.
Das nossas interlocutoras, todas mencionaram conhecer os estatutos
de seus respectivos partidos e que o mesmo menciona registros de setores
que agreguem a participação das mulheres no partido e com exceção de
uma, todas ofereceram suas candidaturas ao cargo legislativo municipal na
Cidade de Belém.
Considerações Finais
Com base no que já foi dito e na análise dos resultados parciais
obtidos em nossa pesquisa, demonstram que o ingresso de algumas
mulheres na política partidária, os resultados apontam que o envolvimento
de algumas candidatas com o movimento de mulheres somente duas
conseguiram ocupar as 35 cadeiras da CMB, embora não sejam oriundas
dos movimentos de mulheres. Esses dados revelam que a participação social
e política dessas mulheres na política formal não implica em ganhos aos
cargos legislativos. Não é possível detectar que seja devido ao baixo
empodramento das mulheres, mas a outros aspectos que não detectáveis por
ora, salvo o desinteresse do eleitorado em sufragar os seus nomes.

940
REFERÊNCIAS
1. ALVARES, M.L.M. Mulheres na Competição Eleitoral. Seleção de
candidaturas e padrão de carreira política no Brasil. Tese de
doutorado, IUPERJ, 2004.
2. ALVES, José Eustáquio de Denis Alves. Eleições: A presença da
mulher na política. São Paulo: Anita Garibaldi. ANO XXI, n. 56, p. 12-
17, dez. 2008.
3. BOURDOKAN, Adla. Trajetorias de Carreiras e Arenas Políticas. 5º
Encontro ACP. FAFICH/UFMG-Belo Horizonte, MG.
4. DOWNS, Anthony. Uma teoria econômica da democracia.
Tradução Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos. – São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo. 1999. (Clássicos; 15) p. 25-55.
5. DUVERGER, Maurice. Ciência Política: teoria e método. Ed. Zahar,
Rj. 1950
6. OLSON, Mancur. A lógica da Ação Coletiva: os benefícios públicos e
uma teoria dos grupos sociais. Tradução Fabio Fernandez. – São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999. – (Clássicos; 16).
7. PINTO, Céli, Mulher e política no Brasil os impasses do
feminismo, enquanto movimento social, face as regras do jogo
da democracia representativa. Revistas de estudos feministas. Rio
de janeiro: CIEC/ECO UFRJ, n. Especial, 2º semestre, 1994.
8. RABAY, Glória e CARVALHO, Maria Eulina Pessoa de. Mulher e
participação política: aprendizagem, empoderamento e
exercício do poder. In: Os Poderes e os Saberes das Mulheres: a
construção do gênero. Org. Mary Ferreira, Maria Luzia Miranda
Álvares, Eunice Ferreira dos Santos. – São Luís: EDUFMA/Núcleo
Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas Mulher, Cidadania e Relações
de Gênero; Salvador: REDOR, 2001.
9. SARTORI, Giovanni. Partidos e sistemas partidários. Rio de
Janeiro: Ed. Zahar; Brasília: EdUNB, 1982.
10. SCHUMPETER, Joseph A. Capitalismo, Socialismo e Democracia
Capitulo XXI: A Doutrina Clássica da Democracia. Ed. Zahar, Rio
de Janeiro. p. 313-376.

941
Mulheres e Participação Política nas Eleições Municipais de
2008: Microrregião Parauapebas

Deyse Soares da Silva Teixeira


Keyla Rejane Avelar Araújo
Ticiana Amaral Lima

INTRODUÇÃO
O estudo da participação política da mulher tem levantado grande
interesse de muitos pesquisadores nas diversas ciências, em especial nas
Ciências Sociais e Humanas. Esse fato deve-se, principalmente, ao evidente
aumento da participação da mulher na sociedade, em especial nas esferas de
poder decisório político (esferas deliberativas), geralmente, associado como
conseqüência das mudanças sociais advindas e das demandas dos
movimentos sociais, principalmente do movimento feminista.
Em vista disso, este artigo objetiva analisar, mostrando resultados
parciais da participação da mulher nas eleições municipais de 2008 na
Microrregião Parauapebas-PA, além de traçar perfil das candidatas e eleitas
por grau de instrução, ocupação, faixa etária, partido e situação.
Este estudo integra o plano de atividades do Projeto de Pesquisa “Os
movimentos de mulheres e feministas e sua atuação no avanço das carreiras
feministas nos espaços de poder político” – CNPq/SPM, pertencente à Linha
de Pesquisa “Mulheres e Participação Política” do Grupo de Estudos e
Pesquisas “Eneida de Moraes” Sobre Mulher e Relações de Gênero –
GEPEM/UFPA. A escolha da área para estudo deu-se pelo fato da
microrregião possuir o segundo maior PIB do Pará, visto que a primeira
colocada no PIB_ranking do estado, a Microrregião Metropolitana de Belém,
já está sendo estudada pelos demais bolsistas do GEPEM.
Analisaremos, a partir de dados estatísticos disponíveis no acervo do
GEPEM, cuja fonte foi extraída do sitio do TSE (Tribunal Superior Eleitoral),
as fichas cadastrais das candidatas e eleitas por sexo, grau de instrução,
ocupação, faixa etária, partido e situação. Os dados sobre PIBs municipais
foram coletados no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística de Belém/PA
(IBGE), o que nos ajudou a optar pelo estudo da Microrregião Parauapebas.
Trata-se de uma pesquisa exploratória e descritiva, onde os dados
nos ajudaram a estabelecer prioridades para futuros estudos e pesquisas
complementares, além de nos possibilitar descrever e analisar o fenômeno
através do método de análise estatística descritiva.
1. Mulheres, Voto e Participação Política
Marco inicial das conquistas femininas à participação política e porta
de entrada para vida pública das mulheres foi o direito do voto, assegurado,
inicialmente, para as brasileiras, para mulheres casadas, desde que tivessem
943
a autorização dos maridos e solteiras ou viúvas, desde que tivessem renda
própria. Tal fato ocorreu em 24 de fevereiro de 1932 – Decreto do Código
Eleitoral nº 21.076/1932. Em 1934, a Assembléia Nacional Constituinte
reafirmou o direito assegurado no Código Eleitoral - art. 109, eliminando
algumas restrições e tornando o voto obrigatório apenas àquelas mulheres
que exercessem funções remuneradas em cargos públicos.
A Constituição de 1946 generalizou o direito ao voto, mantendo
algumas poucas restrições: analfabetos (homens e mulheres), estrangeiros,
pessoas privadas dos direitos políticos, e aos praças de pré, salvo os
aspirantes a oficial, os suboficiais, os subtenentes, os sargentos e os alunos
das escolas militares de ensino superior. Somente na Constituição de 1988 foi
instituída a obrigatoriedade plena do voto às mulheres e homens, tendo
somente restringido a candidatura de analfabetos homens e mulheres.
Mesmo que a Constituição de 1988 tendo assegurada à participação
política feminina como eleitora e elegível, isso não garantiu o maior
percentual de mulheres nas esferas de poder decisório político (esferas
deliberativas), isto porque, segundo Ana Alice COSTA (1998, p. 84):

A mudança nas leis não é suficiente, por si só, para promover uma
mudança nos comportamentos, na estrutura social. Com o sufrágio
universal, as mulheres permanecem submetidas à estrutura patriarcal
da sociedade. (...) a cidadania conquistada foi uma cidadania de
segunda categoria, estruturada à imagem masculina.

Para garantir o mínimo de participação feminina nas esferas


deliberativas, fez-se necessário a implantação de políticas afirmativas, a Lei
de Cotas, que iniciou com 20% de candidaturas femininas por partido e
atualmente (Lei 9.504/1997, encontrando-se no Senado para reformas)
correspondem a 30% de mulheres candidatas. Porém esse percentual não é
totalmente cumprido, isso pelo fato de não haver sanções aos partidos
descumpridores e por inúmeras “brechas” na lei, como por exemplos, a não
explicitação da palavra “obrigatoriedade” e a coligação de partidos com a
soma do percentual de mulheres por coligação, onde os partidos sem
candidatas unem-se a outros com candidatas e totalizam a porcentagem
exigida por lei.
Essa sub-representação feminina nas esferas deliberativas de poder
dá-se por inúmeros motivos, tendo como mais relevante nessa discussão o
fato de a mulher, historicamente, ter sido relegada à esfera privada e o
homem a esfera pública. Como podemos perceber na afirmação de COSTA
(1998, p. 47) ao relatar que: “A guerra e a política, em todas as sociedades,
_____________________________________________________________

1
Cabe informar que no IBGE/Belém/PA somente coletamos dados de PIB_2006 por Municípios, tendo
posteriormente realizado contagem por Mesorregião e Microrregião, além do PIB-ranking_2006,
informações disponíveis no Banco de Dados do GEPEM.

944
são atividades tipicamente masculinas, nas quais as mulheres somente
participam de forma secundária e complementar”.
Com as mudanças sociais e no sistema produtivo, a mulher
evidenciou sua presença no mercado de trabalho, onde já participava,
ampliando seu papel na sociedade, mas ainda numa estrutura patriarcal.
Com a “saída” do espaço doméstico a mulher além de ampliar seu papel, deu
início a uma mudança de mentalidade enquanto ser social, achando-se como
“grupo” com problemas estruturais próprios e capaz de unir-se enquanto
grupo para reivindicar igualdade de gênero no espaço público.
2. Microrregião Parauapebas
A Microrregião Parauapebas - localizada na Mesorregião Sudeste
Paraense, Estado do Pará, Região Norte – é composta por cinco
Municípios: Água Azul do Norte, Canaã dos Carajás, Curionópolis, Eldorado
dos Carajás e Parauapebas. Esses municípios originaram-se,
principalmente, em torno da exploração de minério e outros produtos
extrativistas, tais como madeira; além da criação de gado leiteiro e para corte.
A emancipação política dessas cidades foi um processo conquistado
gradativamente como conseqüência do crescimento econômico e
populacional das mesmas, tendo como principal influência a implantação de
grandes projetos com a intervenção direta e indireta da Companhia Vale do
Rio Doce, atual VALE.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
em 2006 o Produto Interno Bruto - PIB da Microrregião Parauapebas era de
4.089,747 milhões de reais, o segundo maior PIB a nível de Microrregião no
Pará. A contagem populacional realizada em 2007 contabilizou 232.036 mil
habitantes, distribuídos em 23.058 Km2 de território. A seguir podemos
visualizar quadro com os dados gerais por município que totalizam a
microrregião.

Dados Gerais da Microrregião por Municípios

Fonte: Banco de Dados_GEPEM (coletados no sitio do IBGE) -


(Disponível em: http://www.ibge.gov.br. Acesso em: 07 Ag. 2009.

945
3. As Eleições Municipais na Microrregião Parauapebas
3.1 Candidaturas na Microrregião Parauapebas
O total de candidaturas na Microrregião Parauapebas nas Eleições
Municipais de 2008 foi de 539, sendo 403 masculinas e 136 femininas, o que
equivale a 75% de candidaturas masculinas e 25% femininas, como

946
podemos visualizar no gráfico abaixo. Do total de candidaturas
contabilizadas, 52 candidaturas, somente para vereador (as) eram inaptas,
restando 487 candidaturas aptas. Neste total incluem-se também as
candidaturas para Vice-Prefeitos que não analisaremos neste trabalho, vale
ressaltar que para o referido cargo não houve nenhuma candidatura
feminina.

3.2 As Candidaturas das Mulheres no Executivo e no Legislativo


No Executivo, as candidaturas a Prefeitos (as) totalizaram 22 candidaturas,
sendo 21 masculinas no geral e 01 feminina no município de Parauapebas, o
que equivale a 95% de candidaturas masculinas e 5% femininas.
No legislativo, as candidaturas para Vereadores (as) totalizaram-se 495
candidaturas, sendo 360 masculinas e 135 femininas, o que equivale a 73%
de candidaturas masculinas e 27% femininas. As candidaturas inaptas
totalizaram-se 52 candidaturas, sendo 34 masculinas e 18 femininas, o que
equivale a 65% de candidaturas inaptas masculinas e 35% femininas.
Diminuindo as candidaturas inaptas restam 443 candidaturas, sendo 326
masculinas e 117 femininas, o que equivale a 74% de candidaturas
masculinas e 26% femininas.
Mediante os dados apresentados acerca das candidaturas na Microrregião,
947
pode-se perceber a disparidade entre as candidaturas femininas e
masculinas em todos os municípios. Tal disparidade está historicamente
presente no cenário político–social. RABAY; CARVALHO, (2001, p. 125),
comentam esse fato:
As mulheres, enquanto grupo em posição de desigualdade estrutural,
não têm as mesmas condições de acesso às arenas políticas e aos
canais de poder que os homens, devido aos limites impostos pelo seu
papel social. Por sua vez as arenas políticas e canais de poder
(construídos por homens) são instituições corporativas de representação
de interesses, com normas próprias de recrutamento e treinamento
político.

Essa desigualdade de acesso ao poder político vem sendo historicamente


justificada pela imposição da divisão natural/sexual do trabalho, onde para as
mulheres tem-se relegado o papel de subalternidade no contexto privado e no
público, mesmo depois de sua inserção na esfera pública, onde continua
reproduzindo esse papel feminino socialmente imposto, evidenciando o jogo
político de poder e a representação de interesse onde a modernização serve
para mascarar o conservadorismo das relações patriarcais que ainda se
mantêm no cenário político-social. Ana Alice COSTA (1998, p.76) deixa clara
essa perspectiva ao afirmar: “Ao ingressar na esfera pública, a maioria das
mulheres desenvolve atividades análogas às que realiza na esfera
doméstica. (...) tarefas que, em geral, representam uma projeção social do
trabalho doméstico...”
Mary Ferreira em seu artigo “Mulher e Política no Maranhão” (2001, p.108),
também afirma essa desigualdade ao relatar que:
No Brasil embora as mulheres participem ativamente das campanhas,
estejam na organização dos partidos políticos, (nos bastidores) nos
espaços políticos de um modo geral, esta participação é ainda muito
tímida e pouco estimulada pelos seus pares. Isto vai se refletir nos
números, que evidenciam uma exclusão política não mais justificada no
chamado mundo moderno.

Ainda de acordo com FERREIRA (2001) isso se justifica, pela estereotipia da


mulher como um ser fraco, sensível, delicado, doce e sempre submisso,
despreparado para a política, pois a idéia que se tem é de que o perfil do
político deva ser a de um individuo racional, frio, inteligente, dominador e
personalidade forte de modo que tenha capacidade de liderança – esse perfil
é sempre atribuído ao homem. Todo esse discurso justifica a exclusão das
_____________________________________________________________

2
Em anexo podemos visualizar quadro geral das candidaturas a Prefeitos (a) por Sexo e por Município que
totalizam a Microrregião (Quadro 1).
3
Em anexo podemos visualizar quadro geral de candidaturas a vereadores(as) por sexo, situação,
faixa etária e por municípios que totalizam a microrregião (Quadro 2 e Quadro 3).

948
mulheres da política, como se fosse algo natural ou biologicamente
condicionado.
3.3 Perfis das Candidatas da Microrregião Parauapebas
O maior número de candidaturas a Prefeitos (a) ocorreu na faixa etária de 45 a
59 anos de idade, com total de 12 candidaturas, sendo 11 masculinas e 01
feminina. A única candidata a Prefeita da Microrregião, Ana Isabel Mesquita
de Oliveira, tem 57 anos de idade, pertence ao PMDB - maior partido do país
em numero de filiados - possui ensino superior completo e já ocupava um
cargo público no Poder Legislativo como deputada federal.
Quanto às Vereadoras, pode-se dizer que as candidatas da Microrregião, em
sua maior parte, pertencem ao PMBD (17 candidatas) e PT (16 candidatas),
na faixa etária que vai dos 35 a 44 anos de idade; possuem Ensino Médio
Completo e declararam como ocupação Comerciante (22% do total).
Das 114 candidatas, 04 estavam tentando a reeleição ao legislativo de suas
cidades, como Vereadoras. Interessante porque elas indicam como
ocupação o trabalho legislativo e não outra atividade de seu espaço social. Se
houver um estudo mais detalhado das trajetórias de vida destas mulheres da
microrregião é possivel encontrar subsídios que desmontem certas
assertivas de que o “mundo da política” não as recebe. Sem dúvida estão
passando por um processo de identificação com as demais atividades que
realizam, embora não se possa negar a existência ainda de uma estrutura de
patriarcado como objeto de permanência/manutenção do poder naquela
microrregião. Pois, segundo COSTA (1998) as mulheres quando inseridas no
meio político para concorrerem às eleições, geralmente, representam
interesses privados de seus grupos familiares, maridos, pais, parentes
homens, etc, que por alguma impossibilidade não podem concorrer às
eleições e lançam as candidaturas de seus pares femininos, mantendo a
imagem masculina sempre associada à feminina, ou seja, as candidatas
mulheres que seguem esse padrão não têm autonomia na sua candidatura,
ficando sempre à sombra da figura masculina que já possui um espaço na
esfera de poder e por esse fato acabam mantendo o poder através da mulher,
mesmo que não lancem a própria candidatura. Entretanto responder ao
questionamento levantado, só será possível na próxima etapa de nossa
pesquisa, onde realizaremos entrevistas com as candidatas e eleitas na
Microrregião Parauapebas.
3.4 As Eleitas
A Microrregião Parauapebas tem 45 cadeiras nas suas Câmaras Municipais
(09 cadeiras nos municípios: Água Azul do Norte, Canaã dos Carajás,

_____________________________________________________________

4
Em anexo podemos visualizar quadro geral com perfil das eleitas na Microrregião Parauapebas (Quadro
4).

949
Curionópolis e Eldorado dos Carajás e 11 cadeiras em Parauapebas).
O resultado das eleições foi algo pouco representativo para a inserção
significativa das mulheres na política local. Foram 06 candidatas eleitas,
equivalente a 13,33% das cadeiras ocupadas por elas, em contrapartida ao
número de candidatos eleitos que chegou a 39, o que equivale a 86,67% das
cadeiras disponíveis nas Câmaras Municipais da Microrregião Parauapebas.
Canaã dos Carajás, com 29 candidatas teve 01 eleita; Curionópolis com 20
candidatas teve 03 eleitas; Parauapebas, com 43 candidatas teve 02 eleitas,
os municípios de Água Azul do Norte com 15 candidatas e Eldorado dos
Carajás com 28 candidatas não tiveram nenhuma eleita. Por que essa pouca
expressividade política feminina na microrregião?
Das 06 candidatas eleitas 03 pertencem ao partido PMDB, com uma
candidata em cada município. O restante pertence ao PP, PSDB e PRTB, o
grau de instrução dessas candidatas fica no Ensino Médio Completo (50%) e
Ensino Superior Completo (50%). No que diz respeito à Faixa Etária, 49% das
eleitas estão entre 40 a 49 anos de idade.
Mas fato interessante é que ao observarmos a ocupação dessas candidatas
constatamos que duas foram reeleitas, a candidata de Canaã dos Carajás,
Tatiane Oliveira Silva Gaspar - PMDB e a candidata de Parauapebas, Percília
Rosa Martins – PRTB. 5 Considerações Finais
Perante o cenário político (parcial) apresentado das Eleições
Municipais de 2008 na Microrregião Parauapebas, vê-se constatado a sub-
representatividade feminina evidenciada pela análise dos dados utilizados.
Hipóteses acerca desse cenário podem ser lançadas, estando vinculadas ao
“fator maior” patriarcalista social local em que vivemos, tais como a suposição
das candidaturas terem sido estabelecidas apenas com finalidade de
preencher a cota dos 30% de representatividade feminina nessa microrregião
e o nível de conscientização de gênero das mulheres na microrregião,
enquanto grupo socialmente excluído das esferas de poder e como
lideranças que possam lutar pela igualdade de gênero e mudança real de
mentalidade da reprodução patriarcal, sendo outro fator relevante na sub-
representação dessas mulheres, pois, segundo COSTA (1998, 88), isso se
deve ao fato de as mulheres “...na esfera pública ainda não conseguiram
romper as determinações do mundo doméstico...”, e “...não participam
diretamente do jogo de poder, mas relacionam-se com ele através dos
homens aos quais se encontram vinculadas(,,,)” (PASSOS, 2001, p. 23)
Entretanto, para se chegar a uma conclusão precisa do porque há tanta
disparidade no número de candidaturas e eleitas, entre homens e mulheres, é
necessário também uma análise histórica mais abrangente dos partidos, da
participação política feminina e da trajetória de vida dessas candidatas
(através de entrevistas), para assim percebermos que:
950
• Como se deu a inserção dessas mulheres no espaço público, na
política local;
• Se essas mulheres estão passando por um processo de reavaliação
de identidade ou se estão apenas defendendo interesses pessoais (como o
fato de manter a família no poder). Esse fator é citado pela autora Ana Alice
Costa (1998), um dos referenciais teóricos analisados.
• É importante também analisarmos, em que nível se dá a questão do
patriarcado na sociedade e na cultura do local pesquisado e como é sentido
ou em que nível é reproduzido pelas próprias mulheres;
• Se essas mulheres ao entrarem na vida pública continuam
reproduzindo os papéis socialmente atribuídos as mulheres, como por
exemplo, mãe e esposa. Desse modo tratando e defendendo assuntos
ligados à assistência social, tais como saúde e qualidade de ensino. Esses
vão ser nossos próximos objetos de investigação para continuidade dessa
pesquisa, com intuito de saber qual a influência do contexto sócio-cultural na
inserção política feminina, pois segundo BEAUVOIR (1967, p. 09) “Ninguém
nasce mulher: torna-se mulher”

951
Referências Bibliográficas

1. ÁLVARES, Maria Luzia Miranda; FERREIRA, Mary; SANTOS, Eunice


Ferreira dos (Organizadoras). Os Poderes e os Saberes das Mulheres: A
Construção do Gênero. São Luís: EDUFMA/Núcleo Interdisciplinar de
Estudos e Pesquisas Mulher, Cidadania e Relações de Gênero; Salvador:
REDOR, 2001.

2. BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo II. A Experiência Vivida.


São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1967.

3. CARVALHO, Maria Eulina Pessoa de; RABAY, Glória. Mulher e


participação política: aprendizagem, empoderamento e exercício do poder.
In: ÁLVARES, Maria Luzia Miranda; FERREIRA, Mary; SANTOS, Eunice
Ferreira dos (Organizadoras). Os Poderes e os Saberes das Mulheres: A
Construção do Gênero. São Luís: EDUFMA/Núcleo Interdisciplinar de
Estudos e Pesquisas Mulher, Cidadania e Relações de Gênero; Salvador:
REDOR, 2001. P. 123 – 144.

4. COSTA, Ana Alice Alcântara. As Donas no Poder. Mulher e Política


na Bahia. Salvador: NEIM/UFBA – Assembléia Legislativa da Bahia, 1998.

5. FERREIRA, Mary. Mulher e política no Maranhão. In: ÁLVARES,


Maria Luzia Miranda; FERREIRA, Mary; SANTOS, Eunice Ferreira dos
(Organizadoras). Os Poderes e os Saberes das Mulheres: A Construção
do Gênero. São Luís: EDUFMA/Núcleo Interdisciplinar de Estudos e
Pesquisas Mulher, Cidadania e Relações de Gênero; Salvador: REDOR,
2001. P. 103 – 122.

6. PASSOS, Elizete Silva. As políticas e os saberes: a construção do


gênero nas universidades do Norte e Nordeste e as repercussões nos
campos social e político. In: ÁLVARES, Maria Luzia Miranda; FERREIRA,
Mary; SANTOS, Eunice Ferreira dos (Organizadoras). Os Poderes e os
Saberes das Mulheres: A Construção do Gênero. São Luís:
EDUFMA/Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas Mulher, Cidadania
e Relações de Gênero; Salvador: REDOR, 2001. P. 21 – 40.

953
Anexos
Quadro 1 – Demonstrativo das candidaturas a Prefeitos(a) por sexo e por municípios que totalizam a Microrregião

Fonte: Banco de Dados GEPEM_2009 (Dados do TSE)

954
Quadro 2 – Demonstrativo das candidaturas a Vereadores(as) por sexo,
situação e por municípios que totalizam a Microrregião

Fonte: Banco de Dados GEPEM_2009 (Dados do TSE)

955
Quadro 3 – Demonstrativo das candidaturas a Vereadores(as) por sexo,
faixa etária e por municípios que totalizam a Microrregião.

Fonte: Banco de Dados GEPEM_2009 (Dados do TSE)

956
Quadro 4 – Perfil das Eleitas na Microrregião Paraupebas.

Fonte: Banco de Dados GEPEM_2009 (Dados do TSE)

957
AÇÃO POLÍTICA DAS/OS VEREADORAS/ES DE IMPERATRIZ NO
MARANHÃO

Mary Ferreira

Estudo sobre a ação das mulheres vereadoras nos legislativos.


Descrevem-se indicadores de participação política das mulheres no
parlamento. Aborda-se sobre a situação política das mulheres no
Município de Imperatriz-Maranhão. A pesquisa envolveu cinco
vereadores, duas vereadoras e uma ex-vereadora. Os dados
apresentados demonstram os muitos equívocos para com a presença
feminina nos espaços de poder. Parte desses equívocos está na
dificuldade e ausência de debate nos partidos políticos no Brasil, no
Maranhão e em especial no Município de Imperatriz que não criam
alternativas para favorecer a presença das mulheres no debates e
atividades partidárias. Isso foi percebido na fala de todos os entrevistados
que reconhece a necessidade de maior apoio, definição de políticas
partidárias que favoreçam a participação das mulheres. A pesquisa
aponta ainda a dificuldades dos/as vereadores de compreender o debate
das relações de gênero no espaço público e a lógica dos papéis sociais
previamente estabelecidos para cada sexo, no espaço de poder da
câmara.

Palavras-Chave: Mulheres-Vereadoras; Mulheres – Poder; Legislativo


Municipal – Relações de Gênero; Vereadoras maranhenses.

1 Introdução

A pesquisa Ação política das/os vereadoras/es e demandas populares


às câmaras municipais no Maranhão tem como objetivo “estudar as relações
políticas, as relações partidárias e/ou as relações de gênero no poder
municipal no Maranhão analisando a ação política das/os vereadoras/es
maranhenses e as demandas populares estabelecendo nexos entre ação
política, democratização do estado e transformação das relações sociais”. As
_____________________________________________________________

1
Professora Adjunta da Universidade Federal do Maranhão. Mestra em Políticas Públicas – UFMA.
Doutora em Sociologia UNESP/FCLAr. Pesquisadora do CNPq. Coordenadora da REDOR.

Esta pesquisa foi aprovada pelo Consepe sob o processo nº se encontra em andamento. Teve apoio da
FAPEMA no financiamento de uma bolsa de iniciação científica em nome da estudante de serviço social
Conceição Amorim que levantou os dados referentes ao Município de Imperatriz.

959
preocupações da pesquisa se inserem na necessidade de refletir a condição
das mulheres na sociedade brasileira e em especial na sociedade
maranhense considerando a sua situação política e sub-representação nos
espaços de poder.

A proposta deste artigo é apresentar dados levantados no Município


de Imperatriz - MA um dos focos da pesquisa. O ponto de partida são estudos
bibliográficos para aprofundamento teórico da temática, onde se constata a
necessidade real de estudos sobre a relação de gênero neste campo de
conhecimento. Percebemos pelas leituras que esse é um tema ainda pouco
estudado no Brasil e, em especial no Maranhão. Essa realidade é confirmada
em pesquisas realizada nos grandes sites da Internet. Constatamos ser este o
único projeto de pesquisa em andamento no Maranhão e nenhum registro de
estudos concluídos, em torno das Ações Políticas das Câmaras de
Vereadores/a no Brasil foi detectado. Em Imperatriz constatamos que
inexistem estudos realizados neste campo, esse, portanto será um estudo
pioneiro abordando essa temática na Cidade.

Dessa forma, estudar a participação das mulheres nos espaços de


poder, analisar a ação das vereadoras e demandas da sociedade atendidas,
ou não, se constitui um estudo de grande relevância haja vista a necessidade
de pensar este campo como um campo de ação e de poder capaz de
promover mudanças sociais. O legislativo como espaço de decisão política
têm um papel importante na articulação dos projetos e demandas da
sociedade e em se tratando de projetos de interesse das mulheres, esta
instituição pode garantir mudanças substanciais.

É esperado pelo conjunto da sociedade que o legislativo municipal


seja um espaço que garanta a partir dos anseios da população formulação de
leis e controle das ações do Executivo, aprovando recursos para
implementação de políticas públicas, de forma a viabilizar solução de
problemas e medidas capazes de superar os dilemas da sociedade.

Compreender os meandros deste espaço de poder e decisão política


nos remete a estudar mais sistematicamente as particularidades deste, a
partir do comportamento, da movimentação política partidária e das relações
de gênero estabelecidas neste espaço.

Segundo estudos de Lima Junior o legislativo representa

o resultado final do funcionamento do sistema eleitoral e partidário, cujo


960
objetivo é formar a representação do povo. Como tal, ele tem sido
analisado a partir de sua composição partidária, das mudanças que
ocorrem ao longo do tempo e de seu papel político nas relações com o
Poder Executivo (LIMA JUNIOR, 1999, p.28).

A abrangência destas análises no contexto geral de


representação do legislativo municipal nos remete a compreender de forma
mais peculiar as ações das mulheres neste espaço de poder, fragilizado e
dominado por diversas forças políticas, partidárias, econômicas, sociais e
culturais.

Neste estudo realizado de janeiro de 2008 a abril de 2009


apresentamos reflexões teóricas construídas a partir de instrumentos de
pesquisa aplicados entre vereadores/as, ex-vereadoras cuja análise e
observação cuidadosa da realidade política de Imperatriz e dos
acontecimentos, apontam mudanças na estrutura administrativa do Município
com a criação recente da Secretaria Municipal da Mulher, coordenada por
uma ex-vereadora, reconhecida pelo intenso trabalho dedicado às causas
femininas.

Na construção metodológica da pesquisa foram adotados diversos


métodos considerando tanto a necessidade de aprofundamento do tema,
quanto a necessidade de confrontar dados e instigar o debate em torno da
problemática da pesquisa. O enfoque qualitativo norteou as análises, isto
porque esse tipo de enfoque está fundamentado mais em processos
indutivos na medida em que exploram, descrevem consequentemente
geram perspectivas teóricas que permitem esclarecer fatos e fenômenos.

Sua forma de análise vai do particular para o geral segundo Sampiere;


Collado; Lucio (2006, p. 11-15).

A pesquisa qualitativa dá profundidade aos dados, a dispersão, a riqueza


interpretativa, a contextualização do ambiente, os detalhes e as
experiências únicas. Também oferece um ponto de vista recente, natural e
holístico dos fenômenos, assim como flexibilidade.

Dos enfoques qualitativos foram utilizados os métodos de pesquisa


participantes e pesquisa ação, haja vista a necessidade de instigar o debate
em torno da participação das vereadoras e dos movimentos sociais
geradores de políticas públicas considerados como
961
[...] mecanismos utilizados pelo Estado democrático frente às questões
sociais. Permitem democratizar as ações do Estado respondendo de
forma mais imediata aos anseios dos grupos excluídos garantindo
assim a promoção da igualdade, da equidade e da justiça social
propiciando condições para que a população se aproprie de direitos
melhorando os padrões de qualidade de vida para todos/todas
(FERREIRA, 2007).

Após várias visitas a Câmara de Vereadores/as de Imperatriz, foram


realizadas entrevistas com cinco vereadores/as, duas ex-vereadoras e uma
suplente do atual mandato que preferiu responder os questionários sozinha,
uma ex-vereadora que trouxe muitos elementos novos ao estudo em virtude
de ter sido vereadora por dois mandatos, foi candidata a deputadas estadual
e candidata a vice-governadora pelo PSDB nas eleições de 2006.

O trabalho de entrevista e observação foi complementado com


levantamento de fontes bibliográficas cedidas pela secretaria da Câmara
Municipal que permitiram montar o quadro 1 com a relação de todas as
mulheres que passaram na Câmara Municipal de Imperatriz.

A perspectiva teórica que norteou as análises está fundamentada nas


leituras de Costa (1998, 2002) Ferreira (2002, 2006, 2008), Álvares (1999,
2001) que nos permitem compreender as dificuldades das mulheres de
ascender na política e explicam a permanência das relações desiguais na
política.

Na estrutura do texto apresentamos uma discussão preliminar


abordando sobre a emergência dos estudos de gênero e política e dados
sobre representação feminina no poder em várias instâncias em seguida
abordamos os resultados e discussões quando apresentamos as entrevistas
e observação dos fatos a partir da construções de dois quadros de análises:
Quadro Demonstrativo de Participação da Mulher na Câmara de Vereadores
de Imperatriz de 1948 a 2008 e Quadro Demonstrativo Sobre Perfil Partidário
e Projetos Apresentados pelos Vereadores/as de Imperatriz.

MULHER E POLITICA: elementos para pensar a sub-representação política


das mulheres
_____________________________________________________________

2
Questionário elaborado como roteiro para as entrevistas dos/as vereadoras/es. As questões levantadas
no questionário dizem respeito a dados pessoais, familiares, filiação partidária, motivações que levaram as
vereadoras a entrar na política, sua compreensão sobre o poder as dificuldades que encontra no exercício
do legislativo.

962
Parte dos estudos sobre mulher e política no Brasil tem nos últimos
anos dado ênfase aos desdobramentos da Plataforma de Ação de Pequim
que definiu em 1995 como uma das prioridades a garantia da mulher no
exercício do poder e nas tomadas de decisões. A plataforma, aprovada no
Congresso Mundial de Mulheres apontou medidas concretas que deveriam
ser adotadas pelos governos, setor privado, instituições acadêmicas e
organizações não-governamentais para que as mulheres passassem a ter
maior acesso e participação nas diferentes instâncias de poder e na tomada
de decisões. (FERREIRA, 2006, ÁLVARES, 2005, COSTA, 2002).

Estudo divulgado em 2007/2008 pela União Interparlamentar ao


analisar a presença e participação das mulheres nos legislativos contata-se
que a Argentina está entre os 10 países com maior participação de mulheres
no Legislativo. Nessa análise a União Interparlamentar avaliou a situação em
187 países e aponta uma tendência de crescimento na presença de mulheres
nas Casas Legislativas de diversas partes do mundo. Vejamos os dados:

Ruanda aparece em 1º lugar, com 48,8% de participação feminina na Câmara de


Deputados. Em seguida vêm os países nórdicos: Suécia (45,3%), Noruega (37,9%),
Finlândia (37,5%) e Dinamarca (36,9%). Depois estão Holanda (36,7%), Cuba
(36%), Espanha (36%), Costa Rica (35,1%), Argentina (35%) e Moçambique
(34,8%), que completam a lista dos 10 países com maior número de legisladoras.
(INTER PARLIAMENTARY UNION, 2009).

Ao constatar os avanços ocorridos na Argentina que surpreende pelos


dados de presença das mulheres no poder construído a partir de um reforma
política que vem garantindo paridade e igualdade nas disputas do poder,
observa-se que no Brasil poucos esforços tem sido feito neste sentido é o pior
índice dos países da América Latina. É o 107º lugar na lista, bem atrás de
Países como, Suriname (26º), Peru (55º), Venezuela (59º), Bolívia (63º),
Equador (66º), Chile (70º), Colômbia (86º), Uruguai (92º) e Paraguai (99º). Ao
analisar e explicar mudanças ocorridas em países como Argentina que há dez
anos tinha dados próximos ao Brasil (em torno de 12%) o Instituto e algumas
estudiosas computam tais mudanças à introdução de políticas de cotas
mínimas para candidatas, a exemplo do que ocorreu na Argentina, na Bolívia
e na Venezuela. Para pesquisadoras como Ferreira (2006) o problema no
Brasil está na forma como as cotas foram adotadas. Não foi criado nenhum
mecanismo de punição aos partidos que não cumprem e não promove
nenhuma ação efetiva para tornar as cotas uma legislação passível de ser
cumprida.
_____________________________________________________________

3
A Câmara Municipal e o próprio município de Imperatriz foram oficialmente instalados em 25 de setembro
de 1858.

963
Os estudos desenvolvidos pela União Interparlamentar aponta uma
tendência de crescimento da participação feminina nos legislativos em
diversos países, os dados levantados em 2005, dez anos após a deliberação
da Conferência Mundial de Mulheres, era que de cinco parlamentares eleitos,
uma era mulher. Alguns países superaram, a exemplo de Ruanda cujos
indicadores recentes apontam 56% de mulheres assumindo as cadeiras do
parlamento. Os dados, porém, apontam o contraditório dessa divisão quando
observamos a situação de países como Egito com apenas 1,8%, Irã com
2,8%, Haiti com 4,1%, Albânia (antiga República comunista) com apenas
7,1% e o Brasil com apenas 9,0%.

Os dados desnudam uma realidade que desafia os governos


democráticos e os movimentos de mulheres uma vez que apenas 23 dos 153
países que compõem o globo conseguiram alcançar a cota mínima de 30%
das cadeiras em 20 Câmaras de Deputados. Os relatórios da IPU e estudos
recentes de várias pesquisadoras reconhecem que ainda falta muito para se
atingir a paridade perseguida pelos movimentos feministas que há mais de
três séculos lutam pela paridade e igualdade entre os gêneros na política.

A situação dos países da América Latina, excluindo-se a Argentina


que transformou radicalmente os índices de exclusão das mulheres na
política nos últimos 15 anos, apresentam índices menores do que a média
mundial, que é de 16,6% de mulheres legisladoras. No Chile esse índice é de
15%; no Uruguai, 12,5%; no Paraguai, 12,1%; e no Brasil, 9,0%.(INTER
PARLIAMENTARY UNION, 2009). O índice brasileiro é surpreendente
quando se analisa as mudanças ocorridas no campo da política tendo em
vista a eleição de um sindicalista identificado com os movimentos sociais em
2002. O mandato do presidente Lula, ampliou os organismos de políticas para
as mulheres, porém nos legislativos as mudanças foram pequenas e a Lei das
Cotas não conseguiu surtir o efeito desejado.

Ao analisar o atual contexto sobre o empoderamento das mulheres


pela via do processo eleitoral consideramos que tem se mantido inalterado,
ou seja, o número de mulheres que assumem cargos de poder e decisão no
País é irrisório quando comparado aos homens. As mudanças em termos
numéricos foram de 7,8% em 1995 para 9,0% em 2008, embora os avanços
na construção de políticas e de estruturas implementadoras de políticas seja
o responsável pela criação a aprovação de leis, planos e projetos de ação que
vem alterando gradativamente a vida das brasileiras.

A Situação Política das Mulheres em Imperatriz


964
No Maranhão a situação da Mulher na política apresenta algumas
particularidades. É um Estado que tem a presença de mulheres ainda no
século XIX exercendo o poder. Mulheres como Maria Firmina, Ana Jansen, D.
Noca, Dalva Bacelar, são exemplos de que o poder no Maranhão tem
representações femininas muito fortes e reconhecidas enfatiza Ferreira
(2006).

Segundo essa autora o poder das mulheres no Maranhão, não se resume a

eleição da ex-governadora Roseana Sarney em 1994, “desde 1934 o


Maranhão já contava com duas deputadas eleitas: Hildenê Castelo Branco e
a professora Zuleide Bogéa” (FERREIRA, 2001, p.113).

Nos anos subseqüentes segundo Ferreira (2001, p.120) o número de


deputadas aumentou consideravelmente: em 1990 eram três parlamentares,
em 1994 aumentou para quatro, em 1998 o número ampliou para 11
deputadas e na última eleição em 2006 o número de deputadas diminuiu para
sete deputadas. (FERREIRA, 2008).

O Maranhão possui 217 municípios, entre eles se destaca


Imperatriz como o segundo Município mais importante do Estado em termos
de densidade populacional e em termos políticos, haja vista ser uma Região
estratégica haja vista sua localização geográfica (divisa com o Estado de
Tocantins e em virtude o mesmo está na rota do Grande Projeto Carajás.

Imperatriz por força de seu desempenho nos setores de agricultura,


pecuária, extrativismo vegetal, comércio, indústria e serviços, ocupa a
posição de segundo maior centro econômico, político, cultural e
populacional do Estado e o principal da região que aglutina o sudoeste do
Maranhão, norte do Tocantins e sul do Pará. (AMORIM, 2009).

É um município que segundo Amorim (2009) tem passagens políticas


importantes a exemplo das lembranças da década de 1970 quando em pleno
período da ditadura militar, a região viveu diretamente a resistência dos
revolucionários do Partido Comunista do Brasil, que atuavam na Guerrilha do
Araguaia. Neste período Imperatriz era conhecida como um ponto de apoio
para se chegar a região de Xambióa, argumento para que fosse instalado
naquele período pelo Exército o “50º BIS, para atuar no combate a Guerrilha
passando Imperatriz a ser uma das Áreas de Segurança Nacional, com um
nível de repressão política bem acentuado” (AMORIM, 2009).
965
É uma Cidade cheia de contrastes, contradições e pobreza, dominada
até 2000 por grupos oligárquico ligados a Sarney, atual presidente do Senado
e Edson Lobão, atual ministro das Minas e Energia do Governo Lula. Em 2000
o município elege um representante do Partido dos Trabalhadores e dois
anos depois elege Terezinha Fernandes como deputada Federal também do

Partido dos Trabalhadores, embora tenham empreendido algumas


mudanças estruturais no Município, porém não conseguiram continuar no
poder, passando o município novamente para a administração de aliados de
Sarney.

No atual contexto Imperatriz é administrado pelo PSDB, quando


elegeu em 2008 Sebastião Torres Madeira com expressiva votação, nesta
ocasião a Câmara Municipal de Imperatriz elegeu 11 homens e 2 mulheres.

Ao analisar mais detalhadamente a presença de vereadoras na


Câmara Municipal de Imperatriz observamos a partir do Quadro I abaixo
relacionado que de 1948 a 2008, foram eleitos 159 vereadores e apenas 23
vereadoras. O que por se só já demonstra uma desigualdade numérica
bastante significativa. No quadro analisado observamos ainda que somente
no atual milênio houve um aumento de vereadoras. Nas eleições de 2000
foram eleitas 4 vereadoras e em 2004 foram eleitas 3 vereadoras. Antes
dessa data apenas 1 vereadora no máximo 2 se elegiam em cada legislatura.
Observamos também que durante esse período, ou seja, em 56 anos apenas
uma mulher conseguiu ser eleita presidente da Câmara: vereadora Alvina
Vieira Fortaleza na legislatura de 1975-1977.

Quadro Demonstrativo de Participação da Mulher na Câmara de


Vereadores de Imperatriz de 1948 a 2008

966
Inclui até as eleições de 2008 – para o Pleito atual

Vereadoras/es de Imperatriz: perfil, visões sobre poder, democracia e


relações de gênero
Foram entrevistados cinco vereadores, duas vereadoras e uma ex-
vereadora. Ao analisar o perfil dos mesmos observamos que todas as três
vereadoras entrevistadas têm curso superior. Dos cinco vereadores
entrevistados três tem curso superior e dois concluíram o 2º Grau. Todos
as/os vereadores são casados, dois são evangélicos. O acesso na política se
deu na maior parte das vezes por militância partidária, sindical e religiosa. A
maior parte dos entrevistados está em partidos considerados de direita (DEM,
PMN, PV) e centro direitos (PSDB).
Das questões abordadas a maior parte das/os vereadoras/es
responderam as perguntas de forma objetiva e tecendo algumas análises
sobre a questão social que envolve a discussão sobre as relações de gênero,
e como o partido tem atuado para dar visibilidade as mesmas, sobre as cotas

967
para as mulheres na política, sobre a visão que tem sobre o poder e
democracia e sobre o que pensam sobre a participação da mulher nos
espaços de poder.
A preocupação nítida em deixar claro que aceitam naturalmente as
mulheres naquele espaço de poder, considerando a sua importância para a
sociedade, foi enfatizada por todos/as as/os entrevistadas/os. As falas, no
entanto, deixam transparecer visões preconceituosas, tanto no que se refere
a visão dos vereadores como das vereadoras:
a participação da mulher é importante, mas vejo o poder como um todo,
não olho a particularidade, temos três legisladoras que atuam cada uma
na sua especificidade. Todas fazem um bom trabalho, tiveram um bom
desempenho dentro da sua especialidade, há algumas que fazem o papel
de assistência social para que sejam eleitas/os. Eu sempre vejo as
pessoas falando mal das mulheres no trânsito, eu digo, infelizmente elas
não boas no trânsito, mas podem ser boas em outras coisas, mas aqui no
parlamento não há esse preconceito. (Vereador/a 1)

eu tenho orgulho, me esforço em tudo, porém precisamos de mulheres


preparadas, estudadas, conhecedoras das leis que envolvem o
parlamento, fosse independente e soubessem agir no tempo e na hora sem
medo do executivo é o que parece, a participação seria mais produtiva, pois
é nela que está o verdadeiro amor, sentimento, emoção, compromisso
porque vive o dia-a-dia), principalmente se fossem mulheres mais
preparadas e com as classes sociais, aquelas menos favorecidas da sorte.
(Vereador/a 2).

Observamos que a fala do vereador (1) está pautada nos velhos


preconceitos e tabus de que mulher não dirige bem, entretanto estudos já
comprovaram que essa afirmação é equivocada, dada as estatísticas que a
todo o momento demonstram que em termos proporcionais os homens
comentem mais infrações e acidentes de trânsito no trânsito que as mulheres.
Em se tratando do/a vereador/a (2) mesmo na convivência com o poder
não consegue compreender a dimensão daquele espaço e a forma como este
se articula para mantê-la subjugada a um discurso que reforça os processos
de exclusão milenar. Ao acreditar que para as mulheres participar é
necessário o partido fazer a formação política, deixa transparecer a
concepção de que para a mulher ocupar este espaço precisa estar
capacitada, qualificada com cursos específicos de formação política,
reforçando como sugerem Ferreira (2006) e Costa (1998), visões de que as
mulheres não estão preparadas para o exercício parlamentar. A política
nunca foi um lugar apenas de letrados e intelectuais, a proporção dos
vereadores com curso superior é menor que as veradoras em grande parte
968
dos legislativos, inclusive de Imperatriz, isso demonstra que a questão não é
qualificação, preparo. O problema é muito mais complexo, passa, sobretudo,
pela compreensão do modelo patriarcal que centrado na figura do Pai, tem
determinado que os destinos das mulheres é ser tuteladas e suas decisões
passam pela chancela dos pais, maridos, detentores de seus corpos e
mentes.
A preocupação de enaltecer o papel da mulher foi reforçada por todos
os/as vereadores/as entrevistados. Nos contatos feitos para responder o
questionário quando informados sobre a pesquisa, se preocuparam em
externar antecipadamente sua posição de aceitação prévia da mulher na
política, da importância delas na vida dos homens, de que assim como em
todos os momentos da vida do homem “não é possível viver sem as
mulheres”, na política também não, as reações acerca da pesquisa expressa
de forma preocupante a exagerada necessidade de se colocarem de imediato
a favor das mulheres, com frases carregadas de preconceitos e melindres,
“nem precisa fazer pesquisa aqui nesta casa quem manda são as mulheres”
ou “as mulheres são tudo de bom, não é possível viver sem elas inclusive na
política”, “as mulheres precisam se preparar melhor para ocuparem esta
casa”.
A visão dos vereadores de imperatriz sobre o exercício do poder em
alguns momentos difere e em outros convergem com a leitura que as
vereadoras têm sobre o poder. Para o vereador Joel Costa Gomes poder “é a
capacidade de fazer, de determinar, de mudar, em alguns casos. O poder está
ligado a quem tem voz de comando, a quem tem dinheiro”. Na concepção da
vereadora Raimunda Angélica Silva “quando o legislativo é consciente das
suas obrigações, o poder fica de lado, o poder estraga um pouco a
administração, ele tem de ser exercido na plenitude dos direitos do povo e
quando o gestor reconhece esse ponto de vista, ele vai longe”. Para a
vereadora Mary Campo de Pinho, porém, o poder “é conhecer a necessidade
do povo, trabalhar por ele e para ele, sem se amedrontar com a força daquele
“outro” poder que é força vinda do poder aquisitivo, que no fim manda e
desmanda, de fato esta é a verdade nossa no Brasil do dia-a-dia”
Outro vereador que manifestou seu ponto de vista foi José Nival Coelho
Milhomem que considera que o poder deve ser “em beneficio da comunidade,
objetivos e poder proporciona condições de ser útil à sociedade e sentir na
pele o que o povo sente, o maior orgulho é ver obras feitas e o povo
usufruindo”.
A visão sobre o poder de certa forma está relacionada com o poder
do capital “manda quem tem dinheiro” por outro está a associada a
capacidade de determinar, de mudar de transformar a realidade, muito
próximo das visões e discussões foucaultianas que considera o poder como
algo que
969
deve ser compreendido apenas como algo que se adquire, compartilha,
ou como algo que se guarda ou se deixa escapar. O poder é exercido a
partir de inúmeros pontos e em meio a relações desiguais e móveis entre
as quais os espaços formais de exercício de poder, no qual se inclui, por
exemplo, o legislativo, onde é possível perceber as mulheres exercendo o
poder, mesmo que muitas vezes de forma silenciosa (FERREIRA, 2009).

Ao abordar as dificuldades no exercício parlamentar os vereadores


foram unânimes ao reconhecer os limites deste poder, dada à falta de
autonomia deste poder em relação ao executivo, ou ainda como enfatiza o
vereador Joel Gomes Costa da dificuldade de:
fazer o povo entender que o vereador não é um assistente social,
entender que não há um balcão de negócios para comprar a dignidade
das pessoas, e não falo de pessoas carentes, mas em especial no
campo religioso com falsa história de que é para ajudar na obra de Deus,
e não tem consciência de que isso é crime.

Outras dificuldades foram apontadas pela ex-vereadora por três


mandatos, Maria da Conceição Formiga Medeiros, atual coordenadora da
Coordenadoria Municipal da Mulher, criada recentemente na gestão do
Prefeito Sebastião Madeira, eleito em 2008. Medeiros reconhece que a
política é um espaço muito difícil de atuação das mulheres uma vez que:
o mandato exigi muito mais competência das mulheres do que dos
homens, eles se sentem mais a vontade, e se apropriam dos debates com
maior segurança mesmo em assuntos que eles não tem domínio eles se
manifestam expressando segurança, quando pra nós mulheres isso é
mais difícil, por exemplo, enquanto nas sessões nós tínhamos que ficar
atenta aos debates para melhor compreender o que estava se discutindo,
alguns vereadores mesmo não tendo a domínio do assunto preferia
ignorar o debate e de forma arrogante ficavam lendo o jornal. Para nós
mulheres esse tipo de postura é muito mais difícil, a gente se sente na
obrigação de prestar o máximo de atenção possível, para podermos
participar de forma mais segura. (Ex-Vereadora Conceição Formiga,
2008).

A vereadora enfatiza ainda que para que as mulheres sejam


respeitadas na política “ela precisa ser muito competente, e para se destacar
na atuação parlamentar ela tem que ser muito qualificada para fazer a
diferença”. (Ex-Vereadora Conceição Formiga, 2008).
As dificuldades do exercício do mandato parlamentar nas câmaras de
vereadoras não são diferentes dos mandatos das assembléias legislativas
estudadas por Ferreira (2006) quando Conceição Formiga é enfática ao dizer:
eu sentia, que eu não era consultada na hora de tomar uma decisão
política mesmo da administração interna da câmara, eles costumavam

970
Estas assertivas têm sido de certa maneira reforçadas por visões
romantizadas da atuação das mulheres. Isso é percebido tanto na fala da
vereadora Mary Pinho, quando enfatiza que “é na mulher que está o
verdadeiro amor, sentimento, emoção, compromisso, porque vive o dia-a-
dia”, quanto na fala do vereador Manasses Santos, que ao analisar a
participação da mulher na Câmara considera “muito salutar, até porque as
vereadoras são muito atuantes e nos dão muita força quando estamos numa
situação meio delicada, então faltam mais mulheres para nos fazer
companhia aqui”, ou seja, as vereadoras são vistas apenas para fazer
companhia aos vereadores.
Dos vereadores/as entrevistados/as na atual legislatura, nenhum
enfatizou a importância das mulheres como responsáveis por trazer para o
debate as questões de gênero, e o combate às desigualdades, haja vista que
em Imperatriz é visível os índices cada vez maiores de violência contra as
mulheres. Há clareza por parte de grande parte dos entrevistados sobre o
papel político de um/a vereador/a, porém a questão de gênero e a
necessidade de construção da igualdade e paridade não parecem ser
compreendidas pelos parlamentares.
Conclusões
A ação das mulheres no mundo público pensado a partir de suas
mobilizações em diversos movimentos sociais: moradia, pela saúde, na luta
contra a violência, na luta pela terra para citar alguns movimentos de grande
apelo da sociedade imperatrizense demonstram o quão de desafios esperam
as vereadoras e como ainda são equivocados os estudos que não
consideram a participação as mulheres nos diversos movimentos sociais
como participação política. São esses movimentos que em Imperatriz é
representado por diversas organizações entre as quais citamos: Pastoral da
Mulher, Clube de Mães, Centro de Promoção da Cidadania e Defesa dos
Direitos Humanos Padre Josimo, Sindicatos dos Trabalhadores dos
Estabelecimentos de Ensino de Imperatriz – STEEI, Associação das Donas
de Casa de Imperatriz, Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, Sindicato
dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais, Associação de Artesãos de
Imperatriz os responsáveis pela ação efetiva na luta constante por melhoria
da sociedade.
Dessas organizações destacamos o Centro de Promoção da Cidadania
e Defesa dos Direitos Humanos que tem feito um trabalho ininterrupto na
reivindicação de direitos da mulher. Embora estes movimentos tenham feito
denúncias, eventos para tornar a questão da mulher uma questão política,
muitos desafios ainda se apresentam, entre eles o de tornar a política um
espaço acessível às mulheres.
Os dados apresentados e as visões dos vereadores e das poucas
vereadoras demonstram os muitos equívocos para com a presença feminina
971
nos espaços de poder. Parte desses equívocos está na dificuldade e
ausência de debate nos partidos políticos no Brasil, no Maranhão e em
especial no Município de Imperatriz que não criam alternativas para favorecer
a presença das mulheres no debates e atividades partidárias. Isso foi
percebido na fala de todos os entrevistados que reconhece a necessidade de
maior apoio, definição de políticas partidárias que favoreçam a participação
das mulheres. Os vereadores entrevistados ressaltam a importância dos
departamentos de mulheres no partido como caminho de fortalecimento das
mulheres na política partidária, mais no geral a compreensão da ausência das
mulheres nas instâncias de decisão é visto como se elas tivessem medo,
vergonha, e por não terem formação política, quando o certo é que todos
esses mecanismos foram forjados para afastá-las.
As cotas vista como uma forma de construção gradativa da paridade de
participação dos gêneros na política, não tem surtido o efeito desejado. Os
resultados apresentados demonstram que da forma como foi pensada não
atende as expectativas das mulheres. A maioria dos entrevistados
reconhecem a necessidade dos seus partidos investirem mais na
participação das mulheres e no fortalecimento de organismos internos no
partido que favoreçam sua participação em departamentos, femininos.
Houve um consenso entre os vereadores/as entrevistados/as do
reconhecimento e importância da mulher no parlamento local, entretanto
esse consenso é recheado de contradições, pois embora afirmem que as
relações se dão no mais alto nível de companheirismo e reconhecimento do
papel das colegas, no entanto, as sessões na câmara não refletem o discurso
dos mesmos, considerando inclusive que já houve agressão física e moral de
vereador contra vereadora. Porém os casos não foram apurados ou punidos
pela mesa diretora. Por outro lado as atuais vereadoras entrevistadas, não
reconhecem qualquer tipo de descriminação contra a atuação e participação
no parlamento. Para as mesmas falta força de vontade das mulheres de
participar da política, inclusive uma é contra a lei das cotas e a considera
discriminatória.
Os vereadores e vereadoras até agora contatados para as entrevistas
demonstraram muito pouco conhecimento quanto ao debate das relações de
gênero no espaço público, sempre de maneira solícita, se esmeram em
elogios as mulheres, se colocam absolutamente favorável a participação da
mulher na política, no entanto a questão do “estar preparada” da
necessidade das mulheres precisarem “se capacitar” parte até mesmo dos
vereadores com graus de escolaridades inferiores aos das mulheres que
hoje tem mandato na câmara, é como se a aceitação da mulher neste espaço
de poder, passe, obrigatoriamente por um curso de “saber fazer política” pois
este não é o campo natural de atuação da mulher, apesar delas serem “muito
bem vindas” por todos que foram convidados a participarem da pesquisa.
972
È muito acentuada a lógica dos papéis sociais previamente
estabelecidas para cada sexo, no espaço de poder da câmara, mulheres e
homens tem grande dificuldade de perceberem esta lógica.
Existe um sentimento de impotência por parte dos que foram ouvidos,
quanto às demandas sociais, tanto homens e mulheres externam a angústia
de serem procurados em seus gabinetes para atender solicitações pessoais,
doações de todos os tipos, que desqualifica a atuação do parlamento
municipal.
Uma das etapas da pesquisa é compreender como se dão as
demandas sociais encaminhadas as Câmaras de Vereadoras pelos
movimentos organizados de mulheres. Nessa parte ainda serão consultados
os Grupo para analisar como se dão as demandas e como estas são
atendidas ou não pelos parlamentares.

973
Referências
COSTA, Ana Alice. As donas do poder; mulher e política na Bahia.
Salvador: Núcleo de Estudos Interdisciplinar sobre Mulher, UFBA,
1998.248p.
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976
Demonstrativo Quantitativo da Situação
das Cotas Partidárias nas Eleições
Municipais do
Pará
Thiago Paiva Sales
GEPEM/UFPA

977
Demonstrativo Quantitativo da Situação das Cotas Partidárias nas
Eleições Municipais do Pará.
Thiago Paiva Sales*

O objetivo do trabalho é verificar como os partidos políticos estão se


comportando em decorrência da obrigatoriedade referente à lei de cotas, (Lei
Federal n. 9504/97) que estabelece a reserva mínima de trinta por cento e no
máximo de setenta por cento de candidaturas para ambos os sexos,
avaliando dentro desse contexto a competição eleitoral e verificando se existe
de fato uma igualdade de forças no processo eleitoral. Nesse sentido a
abordagem referente ao comportamento dos partidos políticos é de
significativa importância para avaliar se há de fato o respeito a tal lei e como
os partidos se adaptaram com tal obrigação.
Tendo como base de observação as eleições municipais ocorridas em
2008 no Estado do Pará percebe-se que ainda a candidatura de mulheres
para a tentativa de conquista dos espaços de poder e decisão no processo de
competição eleitoral é muito desigual:
Quadro 1

FONTE: TSE (TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL) 22 DE JUN. 2009

979
ELEIÇÃO MUNICIPAL DE ANANINDEUA (RESULTADO_ VEREADOR_ 2008)

ELEIÇÃO MUNICIPAL DE BELÉM (RESULTADO_ VEREADOR_ 2008)

ELEIÇÃO MUNICIPAL DE MARITUBA (RESULTADO_ VEREADOR_ 2008)

ELEIÇÃO MUNICIPAL DE SANTA ISABEL DO PARÁ/ (RESULTADO_VEREADOR_2008)

FONTE TSE (Tribunal Superior Eleitoral) 10 de Agosto de 2009

980
Demonstro, nas tabelas, apenas alguns dados que comprovam como o
domínio masculino na política é intenso e desigual. Também fica claro o
não cumprimento da lei de cotas (9504/97) nas eleições, pois segundo o
TRE-PA (Tribunal Regional Eleitoral do Pará) A Câmara Municipal de
Belém é composta por 35 Vereadores (Resolução. - TSE nº 21.803/2004)
no qual cada partido poderá registrar até 53 candidatos à Câmara
Municipal de Belém (cento e cinquenta por cento do número de vagas a
preencher). Portanto, segundo os cálculos de TRE-PA:
 35X150%=52,5=53 ( Candidaturas)
 53X30%=15,9=16 (Lei nº 9.504/97, art. 10)
Das 53 candidaturas ficariam reservadas 16 vagas para o sistema de lei de
cotas. Sendo apenas utilizado tal mecanismo somente para partidos sem
coligações. Quando há partidos coligados há uma mudança nos cálculos.
Segundo TRE-PA “Cada coligação poderá registrar até 70 candidatos à
Câmara Municipal de Belém (o dobro do número de vagas a preencher)”:
 2X35=70 ( Candidaturas )
 70X30%=21 (Lei nº 9.504/97, art. 10)
Das 70 candidaturas ficariam reservadas 21 vagas para o sistema de lei de
cotas. Ficando evidente no seguinte estudo o não cumprimento da lei, pois
em Belém, nas as eleições municipais ocorridas em 2008, o PTN (PARTIDO
TRABALISTA NACIONAL) apresentou duas candidaturas sendo tais
candidaturas somente masculinas, dessa forma, desrespeitando a
obrigatoriedade presente na lei de cotas.
Cabendo fazer as seguintes indagações: existe uma solução real
para inclusão dessas mulheres na vida política, ou seja, que elas deixem de
ocupar somente os espaços de deliberação dos partidos e passem realmente
a assumir os espaços de poder e decisão via processo eleitoral? Qual é a
posição dos partidos políticos para reduzir esse nível de desigualdade? E o
sistema eleitoral brasileiro também é um fator decisivo para manutenção
dessa estrutura?
Para tentar mudar esse quadro a Secretaria Especial de Políticas para
Mulheres formulou o que ela própria chama, de uma mini-reforma eleitoral,
tentando promover e fortalecer a participação igualitária das mulheres na vida
política na tentativa de democratizar o processo eleitoral. Diante de tais
medidas vamos destacar duas delas que tentam reafirma a participação da
mulher: “reservar do Fundo Partidário cinco por cento do total na criação de
programas para a difusão de participação políticas de mulheres e caso o
partido não respeite na eleição subseqüente aumentará mais 2,5%
totalizando 7,5% reservado a elaboração de tais programas; a outra medida
esta ligada diretamente a lei de cotas, pois cada partido ou coligação
981
preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e máximo de 70% (setenta
por cento) para candidaturas para ambos os sexos” (MIGUEL, Sônia
Malheiros, Subsecretaria de Articulação Institucional da Secretaria de
Políticas para as Mulheres-SEPM-). A questão levantada sobre o
comportamento dos partidos é extremamente relevante dentro da discussão,
pois hoje existem vinte e sete partidos políticos registrados no TSE (tribunal
superior eleitoral) dos quais a Secretária de Políticas para as Mulheres afirma
em seus estudos que somente cinco partidos incluíram em seus estatutos
uma cota mínima para a representação das mulheres em cargos de direção
do partido ou em suas listas de candidaturas. Sendo esses os seguintes
partidos: PT, PDT, PPS, PP e PV.
O PT (Partido dos Trabalhadores) coloca entre as exigências para a
eleição dos delegados e das direções em todos os níveis que “no mínimo 30%
(trinta por cento) dos integrantes das direções partidárias deverão ser
mulheres” (Artigo 22, V). O PDT (Partido Democrático Trabalhista) assegura
no Artigo 26 de seus estatutos que todos os seus órgãos dirigentes e as
nominatas de candidatos a cargos eletivos devem incluir um mínimo de 30%
de mulheres. No art. 83 do Título VI, “Das disposições gerais e transitórias”, já
flexibiliza a redação anterior e diminuí a porcentagem: “De acordo com as
prioridades inscritas no Programa do Partido e as condições locais serão
incluídos, em todas as listas para disputa de mandatos legislativos e
de direção partidária (...) garantindo sempre um mínimo de vinte por cento
(20%) para as mulheres”. O PPS (Partido Popular Socialista) coloca entre as
diretrizes básicas da estrutura e funcionamento do partido que a “eleição para
preenchimento de todos os órgãos dirigentes e cargos do Partido assegurar a
cota por sexo, de no mínimo 30% (trinta por cento) e no máximo 70% (setenta
por cento), para a composição das direções partidárias em todos os níveis
(Art. 14, II)”. PP (Partido Progressista) PP assegura, conforme o Art. 116 de
seus Estatutos, que na formação das chapas partidárias para as eleições
proporcionais cada Movimento tem o direito de indicar candidatos em número
correspondente a no mínimo 20% (vinte por cento) de lugares a que o partido
tenha direito. O PV (Partido Verde) não assegura proporcionalidade para a
executiva nacional, mas afirma no Art. 19, § 1º de seus estatutos que “Todos
os órgãos do partido deverão ser formados com a participação de ambos os
sexos”. A última questão a ser levantada é como o próprio sistema eleitoral
brasileiro pode contribuir para manter esse quadro de desigualdade entre
homens e mulheres dentro do processo de competição eleitoral que resulta
na dominação dos homens nos espaços de poder e dominação, pois de uma
maneira bem resumida o nosso sistema eleitoral de lista aberta faz com que
essa competição tenha um caráter mais personalizado resultando nesse
processo extremamente desigual.
Apesar das conquistas das últimas duas décadas, as mulheres
permanecem, em sua maioria, afastadas dos palanques, pois as mulheres
982
representam apenas 8,9% do total de deputados e federais e senadores
(Levantamento feito pela Secretaria Especial de Políticas para Mulheres da
Presidência da República). Portanto, o objetivo do estudo é tentar mostrar
esse nível de desigualdade na sociedade e buscar a formação de novos
valores e atitudes em relação à autonomia e o empoderamento das mulheres.

983
REFERÊNCIAS

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Representação Política nas Democracias Contemporâneas, Belém
(PA), 27/08/2008, GEPEM/IFCH/UFPA

985
FINANCIAMENTO DE CAMPANHA DAS CANDIDATAS AOS CARGOS
DE VEREADORAS NO MUNICÍPIO DE BELÉM NAS ELEIÇÕES DE
2008.
Murilo Cristo Figueira
GEPEM/UFPA
RESUMO
O presente estudo descreve e analisa o processo de financiamentos
públicos e privados de campanhas, no município de Belém do Pará, nas
eleições de 2008, para a Câmara dos vereadores. Explora como ocorre esse
procedimento entre as mulheres candidatas, com base em dados coletados
do TSE e do acervo do GEPEM/UFPA. Diante de alguns avanços teóricos
sobre esse estatuto do financiamento de campanha, verifica-se que se trata
de um processo em construção e experimentos a respeito de qual deles será
a melhor para o nosso país. E nesse teor, procura-se observar como a mulher
candidata se organiza para arrecadar fundos financeiramente. O sistema
político brasileiro em construção sistemática principalmente por sua
redemocratização recente apresenta ainda figuras que representam o
coronelismo e o patrimonialismo ainda em cidades do interior e capitais das
regiões norte-nordeste. Então, o financiamento de campanhas políticas é um
item ainda controverso e se constitui num dos fatores que está dificultando
ainda mais as mulheres na participação política de fato. Trata-se de um
processo com base principalmente na troca de favores, relações pessoais,
sendo, para muitos, a única forma de se fazer política no Brasil. Essa forma de
troca de favores já pode ser observada no processo de financiar campanhas.
Este trabalho espera fazer uma breve especificação desses procedimentos
na situação das mulheres paraenses que competiram nas eleições de 2008,
em Belém/Pará.
PALAVRAS CHAVES: financiamento público e privado, partidos políticos,
demonstrações de receitas de financiamento do TSE, candidaturas
femininas.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho está em construção, pois pesquisas sobre
financiamento de campanha política no país é bastante rara, e também
devido as sempre e constantes atualizações dos dados do TSE. O estudo
buscará também apoio em exames bibliográficos e documentais, visando
colher resultados que propiciem uma análise empírico-descritiva e depois
analítica.
Primeiro será abordado um breve entendimento do financiamento
_____________________________________________________________

1
Graduando do Curso de Ciências Sociais/IFCH/UFPA. Bolsista do GEPEM/UFPA.

987
publico e privado no País, os princípios do financiamento, e a lei que
regulamenta hoje o financiamento no país, lei n° 9.096/95. E discussões
referentes à importância do financiamento de campanhas políticas nas
democracias modernas.
E debates acerca do financiamento de campanha política no país
atualmente. E a cerca das candidaturas femininas para cargos legislativos. E
fatores que dificultam as candidaturas femininas para cargos legislativos
(proporcional) nos municípios. E um demonstrativo dos resultados do
financiamento privado e público no município de Belém.
1. Financiamento Público E Privado No Brasil
O financiamento público no Brasil surge em 1971 com o fundo
partidário, e com a lei orgânica dos partidos políticos. Esta lei se refere à
criação interna dos partidos e continha normas sobre as finanças e
contabilidade dos partidos. E já aparece além do financiamento público
provinientes do fundo partidários recursos de doações privadas. Com a
constituição de 1988 se introduz o direito ao fundo partidário e o direito ao
acesso aos meios de comunicação para todos os partidos políticos
cadastrados no TSE.
1.1 Princípios Do Financiamento De Partidos
 Os partidos deverão prestar, anualmente e de forma pública, contas
de suas finanças;
 Os filiados deverão contribuir financeiramente aos seus partidos;
 Os aportes públicos aos partidos deverão respeitar o princípio da
igualdade e compensação das oportunidades e refletir a importância de uma
eleição e o rsultado eleitoral obtido pelos diferentes partidos;
 Os subsídios públicos deverão ser concedidos levando em conta as
doações que os partidos recebem;
 As doações efetuadas aos partidos deverão ser publicadas a partir de
certo montante mínimo que, se possível, não deve ser muito elevado.
A lei n° 9.096/95 acabou instituindo duas classes de partidos com
direito ao fundo partidário, finciamento público. A primeira composta por
aqueles que possuem funcionamento parlamentar, no qual estão as
organizações partidárias que obtiveram, nas eleições para a câmara dos
deputados federais com no mínimo de cinco por cento dos votos validos,
distribuido por no mínimo um terço dos Estados com pelo menosdois por
cento do total de cada um deles. Na segunda classe estão os partidos que
possuem registro no TSE, Tribunal Superior Eleitoral. No qual é estabelecido
por lei, que todos os partidos que tenha seus estatutos registrados no TSE
têm direito a um por cento do total do fundo partidário, e dividido em partes
988
iguais. O percentual restante, os noventa e nove por cento do total será
distribuido na proporção dos obtidos na última eleição geral para a câmara
dos deputados federais.
No que concerne a prestação de contas à justiça eleitoral busca,
principalmente, estabelecer mecanismos que possam evitar o abuso do
poder econômico nos processos eleitorais. Por causa desse requisito
constitucional, os partidos políticos ficam obrigados a prestar contas das
doações financeiras recebidas e de todos os gastos realizados nos processos
eleitorais, porém na prática esse requisito acaba ficando prejudicado em
decorrência de dois problemas básicos: a) a carência de aparelhamento
estrutural da justiça eleitoral, que não dispõe de mecanismos técnicos
adequados para fiscalizar as contas dos partidos; e b) a diversidadede
contribuições, muitas das quais não aparecem na contabilidade apresentada
pelos partidos. Um exemplo de contribuição não declarada é a prática
conhecida como “caixa dois”.
O Brasil utiliza um sistema misto de financiamento de campanhas:
parte dos recursos vem do orçamento da União, parte de doações privadas.
Os recursos orçamentários chegam às campanhas por dois caminhos. O
primeiro é o Fundo Partidário. Os recursos do Fundo (113 milhões de reais em
2004) têm sido fundamentais para viabilizar a estrutura dos partidos.
Hoje os/as candidatos/as podem gastar recursos próprios para fazer
as campanhas ou podem receber apoio de empresas ou de pessoas físicas.
Caso utilizem recursos próprios o único limite é o valor definido como teto pelo
partido antes das eleições. Para os cidadãos e as empresas a legislação
estabelece limite para as doações. Um indivíduo pode doar até 10% dos
rendimentos brutos auferidos no ano anterior à eleição; uma empresa até 2%
do faturamento bruto do ano anterior à eleição.
2. Financiamento e as Democracias Modernas
A tendência na maioria das democracias é adotar um sistema misto
para financiamento das campanhas. Pois nas democracias modernas o
financiamento de campanha eleitoral é influenciado e influi, de maneira direta,
não só nos efeitos eleitorais, mas pode representar em maior ou menor grau.
Formas com as quais uma sociedade, através de suas estruturas legais,
decidiu cumprir algum papel, seja o de buscar alguma conciliação de
interesses, redução de assimetrias e igualdade de condições competitivas,
ou o de provocar efeitos inversos, que tenham nos privilégios e na
manutenção do status quo seus maiores objetivos, sejam eles claros ou
velados.
O desenvolvimento da democracia não só as formas de vocalização
de preferências eleitorais vieram sendo enriquecidas, como os custos de
campanha também vieram sendo incrementados. Já que a complexidade das
989
campanhas eleitorais, entre outros fatores, pelos custos agregados
necessários para que um candidato possa construir plataforma eleitoral
realmente competitiva.
As atividades eleitorais já são em há algumas décadas, um jogo que
envolve todos os aspectos inerentes ao exercício eleitoral, mas, também, em
larga medida, uma competição que também se disputa nos campos da
organização empresarial, da comunicação de massa, da logística e, em
última análise, no campo da disponibilidade de recursos financeiros.
Portanto, as eleições modernas requerem um aparato de recursos
que se organizam em torno dos objetivos competitivos dos candidatos e tais
recursos, naturalmente, demandam capital para serem adquiridos, geridos e
focados para os interesses estabelecidos.
3. Debates Acerca do Financiamento no Brasil
Diante dos debates sobre qual é o melhor tipo de financiamento de
campanha para partidos políticos, se o público ou privado, para o sistema
político brasileiro. Na entrevista de Fátima Anastacia ao PNUD, defende que
“O controle público de gastos Partidários é essencial”, pois para ela isso
combaterá de forma muito ainda no Brasil, e grande responsavel pelos
inumeros escândalos políticos, que é o “caixa dois”. Fátima Anastasia em
entrevista diz que não é contra o financiamento de campanha com dinheiro
público, mas que deve-se ter um controle atravês de mecanismos no qual o
TSE seja orgão fiscalizador, para se obter todas transações financeiras dos
partidos não somente em períodos eleitorais, e sim todos os dias. E Fátima
utiliza o exemplo norte americano, em que existe um site sobre prestações de
contas das doações de pessoas jurídicas e físicas.
Fátima Anastasia em entrevista comenta que os parlamentares
contrários à proposta do financiamento público, ao argumentarem que isso
seja dinheiro disperdiçado em vez de investir o dinheiro em políticas sociais
como educação, saúde e etc. Ela diz que nosso sistema político de ter
o fundo partidário, já é uma maneira de termos a vigência do financiamento
público. Acerca do financiamento privado Anastasia diz que o velho
argumento liberal de que todos os cidadãos devem participar da política é
valido também para o financiamento das campanhas partidárias, o que se
deve é atribuir um valor máximo para a contribuição de cada pessoa ou
empresa.
Diante do artigo, Karla Correa diz que “tudo começa no
financiamento” no qual ela afirma que a generalização das práticas ilicitas nas
campanhas eleitorais é o primeiro passo para a corrupção no país. Até
mesmo porque as procedências do dinheiro de um candidato para
campanha, muita vezes indica as trocas de favores, a chamada cultura
política brasileira. E numa pesquisa sobre finaciamento campanha política,
990
em 2005, dos 3,5 mil empresários ouvidos em pesquisa da ONG
Transparência Brasil sobre corrupção, 52,7 % citaram a contribuição
financeira em campanhas eleitorais como caminho certeiro para se obter
vantagens na administração pública. Na radiografia revelada pelo estudo
dessa ONG, os setores da economia mais dependentes de regulamentação
governamental ou de contratos com o governo aparecem como os principais
contribuidores em campanhas políticas. Candidatos à Presidência da
República, por exemplo, recebem mais recursos do setor financeiro e da
indústria pesada, como os de petroquímica e aço. Os interesses na definição
dos marcos regulatórios setoriais, concessão de subsídios, obras de grandes
dimensões e na condução da política econômica explicam a preferência.
Instituições financeiras dão prioridade a candidatos ao Senado, Casa que
supervisiona o Banco Central e autoriza empréstimos para entidades do setor
público. As empreiteiras se voltam para as campanhas de governadores,
detentores dos recursos públicos para obras
As contribuições chamadas legais feitas no TSE, dá uma sensação de
“compra”, mostrando assim a desconfiança publica, que muita vezes faz
inúmeras empresas a se incluir em esquemas ilegais de financiamento, o
“caixa-dois”, gerando assim inúmeros escândalos políticos, como ocorreu
recentemente em torno de empreiteiras da construção civil, como a empresa
Camargo Côrrea. E isso fez voltar a tona discussões em torno de
financiamentos para partidos políticos em tempo de eleições. E se fez valer
um projeto de lei no Senado relatada pelo Senador José Eduardo Dutra e
aprovada por unanimidade pela comissão. A proposta de lei proíbe a doação
de recursos financeiros por partes de pessoas jurídicas, físicas e também de
recursos próprios, sendo o financiamento público de campanha exclusivo
para os partidos políticos. Por cada eleitor seriam destinados R$ 7 para o
financiamento das campanhas. Se esse sistema fosse adotado nas eleições
passadas, por exemplo, considerando-se o eleitorado de 115 milhões de
pessoas, o valor destinado à campanha teria sido de R$ 805 milhões. O
dinheiro será distribuído aos diretórios nacionais dos partidos, observando-se
o seguinte critério: 1% em parcelas iguais para todos os partidos políticos
existentes e 99% para os partidos com representação na Câmara dos
Deputados, proporcionalmente ao número de integrantes das bancadas.
Pesquisas mostram que a população brasileira como um todo não
sabe identificar qual seja o melhor tipo de financiamento para os partidos
políticos. O povo brasileiro em sua maioria é contra o financiamento privado
devido principalmente aos casos de corrupção e favorecimento de empresas
principalmentes empreiteiras da construção civil. Mas observa-se também
que diante de uma reforma política no qual existirá somente financiamneto
público de campanha, a grande maioria não sabe ou não tem argumentos.
Como é mostrado na pesquisa de opnião pública nacional feita em 2007 pelo
CNT, Confederação Nacional de Transportes:
991
REFORMA POLÍTICA

5. Discussões acerca das Candidaturas Femininas para Cargos


Legislativos

As candidaturas femininas têm inumeros obstáculos, entre eles a


figura do dirigente partidário, que geralmente é constituida de poder
masculino. Assim é de se esperar que os partidos possuam suas próprias
formas de se organizarem. Formando estruturas de um poder, mostrando
como resultados duas forças antagônicas; as crenças e as necessidades
práticas. Duverger (1970) ressalta que as consequências das direções do
partido que está na presença da maioria dos grupos sociais atuais,
apresentam duplo caráter: uma aparência democrática, porém apresentando
uma realidade oligáquica. Assim a democracia só tem o carater de
legitimidade e as eleições partidárias como carater de legitimação tradicional.
Os princípios democráticos exigem eleições de dirigentes em todos os
escalões. Mas assim organizado de acordo sempre em principios
democráticos, um partido não está armado para a luta política de fato.

Maurice Duverger observa-se que os partidos políticos tem uma


espécie de conservação democrática, pois os procesos autocráticos e
oligárquicos desenvolvem-se na ignorância dos estatutos e processos
indiretos, neste caso, a democracia seria uma técnica de camuflagem, na
qual, os objetivos estabelecem um poder autocrático por de trás de fórmulas e
de fachadas democrática. E isso e observado em vários partidos políticos no
Brasil: os chefes aparentes e reais, observados mais ainda no âmbito
992
regional-local, e isso não é diferente no município de Belém, devido
principalmente a figuras que representam o coronelismo, nesse caso chefes
reais, e evidenciam o patriarcalismo muito presente ainda em cidades do
interior e até em capitais das regiões norte-nordeste.

Quanto às candidaturas femininas têm vários obstáculos, entre eles


uma dificuldade de ser uma chefe real dentro do partido, pois percebe-se o
sufrágio indireto na maioria dos partidos políticos é um meio de pôr de lado a
democracia fingindo aplica-lá. Com o sufrágio indireto, os partidos limitam
seus estatutos e liberdades de escolhas, no intuito de fortalecer a
centralização, e geralmente homens são os detentores dessa centralização.
E isso tem como consequência a má distribuição dos recursos financeiros de
campanhas, no qual é distribuido geralmente de maneira desigual. Sendo um
dos inúmeros fatores que prejudicam as candidaturas femininas, no que
concerne o financiamento de campanha,.influenciando no resultado final das
eleições.

No livro da Ana Alice Costa “As donas do poder” (1998) ela evidencia
que os partidos nos municípios principalmente não criam as condições para a
participação feminina e até mesmo dificultam a atuação das mulheres no
partido, uma vez que geralmente os partidos que atuam nos municípios não
possuem uma política de integração dos seus filiados. E as mulheres que
conseguem romper os bloqueios impostos pelos partidos e desenvolvem
uma militância partidária buscam criar dentro das estruturas do partido,
integrações femininas e de formação política orientada pelas mulheres, como
os chamados departamentos femininos. Essas agencias não têm a mesma
desenvoltura de direitos que os ouros departamentos. O departamento
trabalhista, por exemplo, tem o direito de indicar candidatos, enquanto em
alguns estatutos não há registro de que o departamento feminino tenha essa
função e se vê obrigado a enviar abaixo-assinado à direção nacional.

Nos municípios, o poder local, os compromissos políticos familiares


mantêm as mulheres submetidas a essas práticas e, na maioria das vezes,
desconhecendo seus deveres em relação a condição de gênero.
Sobressaem os condicionantes sócio-culturais resultantes da dominação
patriarcal mantida secularmente sob as mulheres submetidas a práticas
discriminatórias nas organizações partidárias como na sociedade em geral. E
é isso que seja talvez uma das explicações para o baixo ou nenhum
financiamento para mulheres em campanhas regionais.

4. Fatores que Dificultam as Candidaturas Femininas em Análise para


Cargos Legislativos Municipais

Acerca das eleições municipais em nosso país para cargos de vereadores


e vereadoras, de cunho majoritário, observa-se que as candidaturas
993
femininas, geralmente de esquerda arrecadam menos dinheiro, mas isso não
é observado nas eleições de 2008 para cargos legislativos em Belém. E
candidaturas para cargos legislativos tendem a ter um custo menor em
ralação a cargos para o executivo. Pois o candidato/a tende a atingir somente
uma parcela do eleitorado. E principalmente devido às candidaturas serem
bastante personalizadas, neste caso, vários “tipos” de candidaturas.

Fatores que dificultam as candidaturas femininas para cargos de


vereadores: primeiro, as eleições legislativas, devido o sistema eleitoral
vigente no Brasil, de representação proporcional de lista aberta, incentivar
táticas individualistas de campanha. Sob tais regras as candidatas devem
competir tanto contra suas colegas de partido como contra os candidatos e
candidatas dos partidos adversários. Assim, as candidatas têm de fazer uma
construção de uma base “personalizada”, para poder arrecadar e empregar
recursos. Segundo fator, consiste que quanto mais acirrada é a eleição para
garantir o cargo de vereador (a), isso obriga os candidatos (as) a gastarem
ainda mais. Outro fator: linha programática da maioria dos partidos políticos
no Brasil é homogênea, não sendo um diferencial na campanha com bases
nesses “programas”.

5. Demonstração do Financiamento no Município De Belém

Nas eleições em Belém para cargos de vereador(a) em 2008,


observa-se na demonstração Total declarados de candidatos/as a câmara
Total arrecadado pelos candidatos e candidatas é de R$ 1.815.489,91, sendo
que as candidatas arrecadaram um total de R$ 315.622,89, ou 17,38 %. O
estudo sobre quatro candidatas demonstrou o seguinte: Milene Risuenho do
PT com R$ 40.490,00; Wanessa Corrêa Vasconcelos do PMDB com R$
36.490,00; Nilda Maria Paula Nunes do PSDB com R$ 35.346,00; e Salma
Nassar Tavares Silva do PTB com R$ 27.485,00, totalizando R$ 139.811,00,
sendo 44,29% do total arrecadado das candidaturas femininas.

Das receitas das candidaturas femininas (financiamento privado):


Recursos próprios R$ 75.605,00; Doações de pessoas físicas R$ 177.009,98
Doações de pessoas jurídicas R$ 3.750,00. Financiamento público: Comitês
(recursos de outros candidatos) R$ 34.906,86; Fundo partidário R$ 3750,00,
foi observado que somente os partidos: PSDB, DEM, PTB e PV entregaram
algum recurso do fundo partidário. E 72 das 98 candidatas aptas, receberam
algum tipo de financiamento. As duas candidatas que se elegeram tiveram
receitas acima de R$ 10.000,00. E a maior parte das candidatas recebeu na
faixa entre R$ 1.000 e R$ 5.000.

Nos recursos divididos entre os partidos:

994
Quadro 1 – demonstrativo do financiamento entre
candidatas e candidatos – 2008/Belém/PA

Fonte: Dados GEPEM, 2008

Diante desses dados é possível compreender que o financiamento


tanto público quanto privado é uma das inúmeras dificuldades que as
mulheres encontram para poder obter recursos para suas candidaturas, e
isso fica mais evidenciado com os números demonstrados do quadro 1
acima, de que o arrecadado pelas candidaturas femininas a média dos
partidos foi de 8,09 %. Sendo que de acordo com os dados do TSE somente
quatro partidos passaram recursos do fundo partidário, financiamento
público, demonstrando que além de muitos partidos não respeitarem as cotas
de 30%, no qual as mulheres tem direito, as candidaturas femininas têm
995
dificuldades ainda maiores, e uma delas é a arrecadação de receitas tanto
pública como privada. O financiamento de campanhas políticas é uma das
inúmeras variáveis para observar como as mulheres estão afastadas na sua
participação na competição eleitoral a cargos legislativos no País. E isso é
observado no município de Belém.
6. Considerações Finais
Apesar da crescente participação feminina nos partidos políticos,
estes ainda se mostram como organizações essencialmente masculinas,
estruturados e orientados segundo esse modelo sendo que as principais
instâncias de decisão política ainda têm baixa presença das mulheres. Em
nosso país, os partidos políticos absorveram ideologia patriarcal e se tornam
os principais instrumentos que mantêm as mulheres com déficit da
representação política. A síndrome do patriarcalismo ainda está muito
presente em regiões como a norte-nordeste. Uma relação cultural construida
dessa que os neoinstitucinalistas históricos chamam de path-dependency,
termo que significa dependência do passado, influencia o processo eleitoral
baseado, principalmente no sexismo, no racismo, na troca de favores, nas
relações pessoais, sendo a forma de se fazer política no Brasil. Isso leva a
conseqüências no processo de financiamento público e privado nas
campanhas políticas para candidaturas femininas, principalmente para
cargos no legislativo, em que a demonstração quantitativa da arrecadação de
receitas no município de Belém, atravês dos dados do TSE ( essa pesquisa
continua em processo de construção pois os dados do TSE estão sendo
atualiazados a todo momento), nos mostra que as candidatas são muito
dependentes de doações de pessoas físicas e na maioria das vezes usam
seus recursos pessoais . É quase nula e na maioria das vezes nenhuma a
contribuição dos partidos às suas campanhas. Sendo assim o financiamento
para candidatas em comparação as candidaturas masculinas é mais um
impecilho que mantem as mulheres afastadas dos espaços de decisão
política.

996
7. Bibliografia

1. ALVES, Airvaldo Natal Stela. Arrecadação, Gastos Eleitorais e


Prestação de Contas. Paraná Eleitoral, n° 19, jul/1994.
2. BRASIL. Lei 9.095, de 19 de setembro de 1995. Dispõe sobre os
Partidos Políticos,
3. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília:
Senado Federal, 1988.
4. CAMPOS, Mauro. “Financiamento de Campanhas Eleitorais e
Accountability na América do Sul: Argentina, Brasil e Uruguai em
perspectiva comparada”. Trabalho apresentado no Fórum
IUPERJ/UFMG, “Democracia e Desenvolvimento na América
Latina”. Novembro de 2004. Mimeo.
5. CORREIA,

997
Movimentos Feministas e Partidos Políticos: Uma Análise Transversal
e Histórica de Candidaturas Femininas
Ana Luiza Coelho Araújo da Silva Ferreira
GEPEM/UFPA
Introdução
A participação política das mulheres ainda é uma conquista recente no
cenário brasileiro. O direito ao voto foi o primeiro direito eleitoral conquistado
por algumas mulheres em 1932, diz-se algumas, pois para votar era
necessário agregar algumas características impostas para esta participação
feminina, inscritas no novo Código Eleitoral incorporado à Constituição de
1891 e aprovado em 1934.
Esta luta se constituiu através do movimento feminista sempre
presente na busca pelo espaço das mulheres e o empoderamento destas. O
olhar para a situação das mulheres se dava para uma perspectiva que as
considerava pouco objetivas e mais relacionadas à natureza, em relação ao
homem tido por sua objetividade e relacionado à cultura (cf.. Ortner, 19 )
sempre apareceram distantes do cenário político, o que não quer dizer que
estavam de fato. O simbólico que ronda a imagem feminina ainda persiste no
que diz respeito a muitas esferas da sociedade e ainda mais com relação à
participação política.
Tomando uma variável importante que se configurou como elemento
de controle e de disseminação da cultura anti-patriarcal ao longo dos anos –
os movimentos de mulheres e feministas – o GEPEM/UFPA formulou um
projeto de pesquisa aprovado pelo CNPq com a finalidade de observar qual
era a representatividade desses atores sociais para as conquistas das
mulheres na esfera da participação política.
Com resultados parciais, este trabalho apresenta alguns dados dessa
pesquisa que evidenciam a relação entre o formato de atribuições dos
movimentos de mulheres no Pará, em relação à formação de lideranças e
conseqüente carreira político-partidária das suas associadas. Tomando-se
como elemento-base às direções dos movimentos de mulheres, chegou-se a
22 mulheres entrevistadas desses movimentos dos diversos municípios
paraenses, no ano de 2007. Como base teórica para esse assunto específico,
foram determinantes as contribuições de Avelar (2004), Álvares (2004), Costa
(1998) dentre outros que puderam auxiliar na compreensão deste processo
de democracia e participação política para prosseguir com os estudos sobre a
questão de mulher e política.
Dessa forma, buscamos entender como se dá o processo de
participação política feminina e como atuam junto às candidaturas os
movimentos de mulheres travando uma discussão sobre a questão das cotas,
visando compreender este fato através de um olhar histórico.
Democracia e Participação Política
999
A democracia deve ser vista como um “processo de organização do
sistema político com engrenagens que favorecem a participação do cidadão
na polis” (Álvares (2004:10). Este sistema tem seus cidadãos formados pelo
direito à igualdade e à liberdade de participação política, mais enfática na
democracia contemporânea, ao trazer uma discussão sobre os direitos
humanos e a própria diferença de participação entre os homens e mulheres.
É neste contexto que se deve entender o que é participação política,
para então seguirmos com as discussões sobre gênero. Assim, para Avelar
(2004) a idéia de participação política está relacionada à idéia de soberania
popular, o que significa que é “instrumento de legitimação e fortalecimento
das instituições democráticas e de ampliação dos direitos de cidadania”.
Neste sentido, a participação política é a ação de indivíduos na tentativa de
intervir no processo político.
Avelar (2004) sistematiza três grandes canais de participação:
“O canal eleitoral, que abrange todo tipo de participação eleitoral e
partidária, conforme as regras constitucionais e do sistema eleitoral
adotado em cada país; os canais coorporativos que são instancias
intermediarias de organização de categorias e associações de classe para
defender seus interesses no âmbito fechado dos governos e do sistema
eleitoral; e o canal organizacional, que consiste em formas não
institucionalizadas de organização coletiva como os movimentos sociais, as
subculturas políticas etc.”. (Avelar, 2004:225)

Dessa forma, os cidadãos participam da política nos modos


convencional e não convencional. Os movimentos sociais fazem parte da
atuação do canal organizacional, articulando-se através de seus militantes
para causas da estrutura social. Atualmente a discussão sobre a teoria de
gênero ganha um avanço na democracia através da abertura de espaços,
ainda restritos, às mulheres, a participação através dos movimentos sociais e
de mulheres possibilitando que esta discussão ganhe vida no cenário político
brasileiro e mundial.
O processo de participação da mulher na democracia dos antigos
gregos fazia uma avaliação que se refere à cidadania, sobre isso Álvares
(2004) coloca:
“E o que é ser cidadão, nestas ênfases da democracia? As regras de
aceitação na polis grega para a ação na esfera pública era a liberdade e a
igualdade diferenciada da esfera privada e o acesso à organização da
cidade como sujeito político grego. O significado da dicotomia entre o
público e o privado, de extração da antiguidade clássica, toma uma
dimensão paradigmática ao definir os espaços de circulação dos gêneros e
os papéis que circunscrevem as práticas de homens e mulheres”. (Álvares,
2004:13)
1000
A discussão do público e do privado é também argumento de Ana Alice
Costa (1998) que refere as mulheres historicamente relegadas à esfera
privada, dessa forma, não tinham acesso ao nível das decisões tomadas nas
estruturas de poder. A autora citando Susan James (1992) evidencia a
concepção de cidadania que não considera a condição de opressão a qual
estão as mulheres e coloca que na prática existem algumas conclusões
dessa não participação feminina nas esferas de poder: “1) sua condição de
gênero oprimido as impede e obstaculiza o exercício pleno da cidadania; 2)
sua vulnerabilidade física, no medo da violência sexual e a possibilidade de
serem golpeadas no lar, obstaculiza o seu envolvimento nas atividades
públicas e as exclui do exercício dos direitos civis; 3) ao não dispor de
ingresso monetário próprio, estão submetidas às vontades e às ameaças do
marido; 4) a ideologia da feminilidade, à qual estão submetidas, é
contraditória com a racionalidade da vida política” – fazendo referencia a idéia
de que a mulher esta mais próxima a natureza” – e “5) a dupla jornada de
trabalho lhes deixa com menor disponibilidade para dedicar-se a vida
política”. (Costa, 1998:72)
Dessa forma, a democracia mesmo com os princípios de igualdade e
liberdade de todos os cidadãos não se desvincula a imagem da mulher de
reprodutora e com maior responsabilidade pela vida privada. Costa (1998)
cita pesquisas realizadas no Chile e no Peru onde os resultados sobre as
políticas feitas por mulheres demonstram que estas trabalham mais questões
voltadas para o gênero feminino e coloca que:
“Essas especificidades da atuação feminina na política representam a
simples manifestação dos efeitos da estrutura patriarcal à qual estão
submetidas as mulheres e que forjam culturalmente a 'ideologia da
feminilidade'. Uma ideologia que determina a maternidade como o elemento
constitutivo da identidade cultural e da personalidade feminina”. (Costa,
1998:80)

Neste sentido, a autora coloca que a primeira forma de cidadania


conquistada pelas mulheres na sociedade patriarcal vem através de sua
capacidade como reprodutoras, fato este que concede às mulheres a maioria
dos direitos civis. Sendo assim, “a atuação política das mulheres é um reflexo
de sua condição social”. (Costa, 1998).
A inserção das mulheres nos movimentos sociais começa a partir do
seu papel como mãe de família e dona de casa, “é o exercício do seu papel de
gênero que as levará a assumir lutas políticas e a ocupar espaços públicos na
defesa de suas reivindicações” (Costa, 1998).
No Brasil, a luta pelos direitos políticos das mulheres iniciou na
primeira metade do século XIX, tendo seu ápice no século XX, na conquista
do voto, em 1932 e na década de 70, organizado em movimentos de oposição
ao governo militar.
1001
Discutir a participação política e a democracia, afirmando que estão
ligadas diretamente, é também compreender que este processo é um meio de
empoderamento da mulher. A questão do empoderamento perpassa pela
discussão do poder. Na participação política e na democracia se busca o
poder sobre as relações e as organizações estruturantes na sociedade. A
relação de gênero, tanto histórica, quanto na sociedade atual, se compõem
de uma relação de disputa pelo poder, onde os movimentos de mulheres
buscam igualdade numa sociedade machista e patriarcal. Neste sentido, para
SCHUMPETER (1942) a democracia é um sistema onde os indivíduos
entram em competição pelo voto do eleitorado e, com a vitória, adquirem o
poder de tomar decisões.
Carvalho e Rabay (2001) citando Rowlands (1997) evidenciam que “o
poder condiciona a experiência das mulheres num duplo sentido: é fonte de
opressão em seu abuso e fonte de emancipação em seu uso”.
“Entender e participar das relações de poder e das práticas políticas
vigentes buscando as transformações conduzentes à igualdade e equidade
de gênero requer o empoderamento individual e coletivo das mulheres: o
desenvolvimento da auto-suficiência e o exercício da força coletiva”.
(Carvalho e Rabay, 2001: 131)

O processo de empoderamento “é definido como um processo de


aquisição de controle sobre a própria vida, de desenvolvimento de
habilidades de fazer coisas e definir suas próprias agendas de mudança
social, de organizar-se coletivamente e colocar demandas ao Estado”
(Carvalho e Rabay, 2001). Neste caso das mulheres o empoderamento é
conseqüência desta luta de gênero, onde estas mulheres poderão decidir
sobre as estruturas sociais através da participação política.
Voto, candidatura e o sistema de cotas
Na primeira metade do século XIX já havia demonstrações da luta
sufragista pelos direitos políticos. No Brasil se disseminava a idéia do sufrágio
que ocorria pelo mundo. O novo regime democrático representativo exigia um
novo desenho dos sistemas eleitoral e político.
As cotas para mulheres foi uma estratégia dos movimentos feministas
para permitir a participação destas em âmbitos parlamentares. O direito ao
voto, apesar de uma vitória da sociedade, garantia pouco às mulheres, pois
não as permitia se não através dos movimentos sociais, a adentrar os
espaços de poder. Dessa forma, seria preciso a candidatura.
“No sistema de cotas, a demanda esperava influir diretamente sobre a
representação partidária (elegibilidade) e a discussão era pelo aumento do
número de mulheres nas Câmaras Legislativas (alargamento da polis). Mas
não ficaria só nisso as ações afirmativas tornaram-se o dispositivo para criar
o empoderamento”. (Álvares, 2004:42)

1002
Esse sistema – de cotas – torna a mulher elegível, mas não significa
que atue de modo a mudar o sistema partidário e cultural. No entanto, apesar
dos argumentos contra a presença da mulher a introdução da política de
cotas partidárias fez com que as mulheres pudessem adentrar no campo
político de modo a estar na mesma esfera de poder que os homens.
“Como se observa, as ações feministas da 'igualdade de oportunidades'
para a 'igualdade de resultados' definiu-se por uma ação direta para o
reequilíbrio da participação política das mulheres, agora mais diretamente
conjugada ao formato estabelecido pelas instituições políticas
democráticas na redistribuição de direitos para garantir a paridade -
aumento do número de mulheres na representação política e no
compartilhamento nas decisões e implementações de políticas”. (Álvares,
2004:44)

As cotas não significam somente que as mulheres se tornam


elegíveis, mas que o sistema partidário deve ser reestruturado e repensado
para o recrutamento de homens e mulheres. No Brasil se promulgou o
sufrágio universal pelo Código Eleitoral de 1932, todavia, as clausulas
seletivas do voto feminino só foram afastadas definitivamente através do
Código Eleitoral de 1965.
Em 1995 a “Plataforma de Ação de Beijing comprometeu-se com a
demanda crescente por inclusão e empoderamento das mulheres em cargo
político com base na convicção de que: 'O empoderamento das mulheres e
sua plena participação na base da igualdade em todas as esferas da
sociedade, incluindo a participação no processo de tomada de decisão e
acesso ao poder, é fundamental para a realização da igualdade,
desenvolvimento e paz'”. (Álvares, 2004:57)
No entanto somente em 1995 a então deputada Marta Suplicy
conseguiu implementar a lei de cotas – lei 9.504 – com inicialmente 20% das
vagas para as mulheres. Passando em 1997 a 30% das vagas. Neste
contexto, os partidos devem recrutar e candidatar mulheres, porém caso as
cotas não sejam cumpridas os partidos não sofrem sanções. Atualmente
segundo informações obtidas através da Secretária Especial de Políticas
para as Mulheres a lei passa por reformulações no Senado de modo tornar
obrigatório o cumprimento desta cota, visto que, os partidos que mais elegem
no Brasil não a cumprem.
Para este trabalho foram realizadas 22 entrevistas com
representantes dos movimentos de mulheres para entender a relação destes
movimentos e a atuação junto às candidaturas de suas associadas, bem
como, perceber o perfil destas candidatas. Durante as entrevistas foi possível
verificar as dificuldades pelas quais passam as mulheres para suas
candidaturas, e em suas respostas verifica-se que a questão da dupla jornada
feminina ainda está vinculada ao simbólico da imagem da mulher.
1003
Como desvincular os movimentos sociais do sistema partidário?
Como já observado não basta apenas votar é necessário que as mulheres
também se tornem elegíveis e para isso é necessário que estejam filiadas a
algum partido político.
“Foi, porém, com o ressurgir do movimento
feminista na década de 70 no Brasil e sua
crescente mobilização por demandas
especificas que os partidos foram forçados a
reconhecer a importância do eleitorado feminino
e a necessidade de incorporar as mulheres a
suas fileiras, sob o risco de ficarem à margem do
processo político em curso”. (Costa, 1998:184)

Apesar deste reconhecimento os partidos pouco fizeram para recrutar


mulheres para que pudessem sair candidatas, dificultando ainda mais o
acesso destas, tendo como exigência a filiação os partidos poderiam
controlar a participação política feminina. Nesta pesquisa que apresento é
possível perceber os movimentos de mulheres presentes no que diz respeito
a atividades partidárias como as candidaturas de homens e mulheres.
Resultado demonstrado no gráfico abaixo:
Apesar de serem chamados para a campanha política os movimentos
colocam que somente em épocas de eleição os partidos se fazem presentes,
fora deste período não os procuram com a mesma freqüência, como
demonstra o gráfico abaixo.

Fonte: Banco de Dados GEPEM, 2007.

Dessa forma, “o sistema de cotas, uma demanda do movimento feminista


internacional, tem por objetivos oferecer ao gênero feminino em
desvantagem um instrumento capaz de igualar as oportunidades de
participação social, o qual constituiu uma realidade em muitos dos partidos
europeus”. (Costa, 1998:186)
Neste sentido, foi possível observar através das respostas das
entrevistadas que 55% dos movimentos são chamados para compor cotas
partidárias, o número relativamente alto de movimentos que não são
1004
chamados está relacionado ao fato de que não estão incluídos como grupos
auxiliares dos partidos, de modo a não constarem nos estatutos.

Fonte: Banco de Dados GEPEM, 2007.

Apesar da implantação do sistema de cotas Costa (1998) coloca que este é


apenas um sistema formal, porém é necessário muito mais do que isso para

Fonte: Banco de Dados GEPEM, 2007.

1005
que se quebrem as barreiras machistas e patriarcais. Metade (50%) das
entrevistas disseram já haver candidaturas nos movimentos, tornando-se
importante perceber como agem os movimentos junto as suas associadas
nestes casos.

Fonte: Banco de Dados GEPEM, 2007.

Na história da política partidária brasileira, os partidos de esquerda sempre


ofereceram maiores possibilidades às mulheres. Nesta pesquisa 15 das 22
mulheres entrevistadas são do PT, além disso, a maioria das associadas é de
partidos de esquerda – segundo responderam as entrevistadas.
A maioria das associadas se candidatou aos cargos de vereadoras,
isso se explica por ser a maioria lideranças locais. Os partidos ainda têm uma
atuação de dificultar a entrada das mulheres.
“...os partidos não criam as condições para a participação feminina, chegando, em muitos casos, até
mesmo a dificultar essa atuação”. (Costa, 1998:196)

Fonte: Banco de Dados GEPEM, 2007.


1006
No caso desta pesquisa 13% são mulheres líderes políticas em seus lugares
e/ou nomes conhecidos na profissão.

Fonte: Banco de Dados GEPEM, 2007.

Costa (1998) diz que “muitas mulheres que conseguiram romper os


bloqueios impostos pelos partidos e desenvolvem uma militância partidária
buscam criar, dentro desta estrutura instâncias de recrutamento, de
integração feminina e de formação política orientada para as mulheres. Essas
instâncias são os departamentos femininos”. Os movimentos de mulheres
agem como estimuladores de candidaturas juntamente com os partidos
políticos num debate sobre a participação feminina e sua inclusão na política.
“No Brasil, o partido constitui-se em um dos principais instrumentos da
ideologia patriarcal que mantém as mulheres afastadas da participação
política formal, na medida em que, além de dificultar as candidaturas
femininas aos cargos eletivos de maior prestigio, não cria mecanismos de

1007
absorção dessa parcela significativa do eleitorado”. (Costa, 1998:202)

Em 36% dos partidos, estimular as associadas a concorrer é muito


importante.

Fonte: Banco de Dados GEPEM, 2007.

Além de estimular as candidaturas das associadas os movimentos


avaliam suas chances de vitória. Com uma resposta afirmativa da vitória
desta candidata os movimentos organizam sua campanha através de
eventos para arrecadação de recursos, assim como, solicitam junto aos
partidos apoio financeiro e outros como veremos nos gráficos a seguir.
Em 32% dos casos é muito importante para o movimento avaliar a
provável chance de vitória das candidatas. Em 41% das respostas os
movimentos organizam uma proposta de campanha, 23% organizam meios
para arrecadar fundos e 49% organizam formas de organização de
campanha.

Fonte: Banco de Dados GEPEM, 2007.

1008
Fonte: Banco de Dados GEPEM, 2007.

Fonte: Banco de Dados GEPEM, 2007.

Com relação às associadas que se candidataram e foram eleitas 13%


continuam a participar do movimento. Neste contexto, evidencia-se a
presença do movimento de mulheres na trajetória política destas de modo
servir de base.

1009
Fonte: Banco de Dados GEPEM, 2007.

Considerações Finais
Para Mary Ferreira (2001) “as primeiras organizações de mulheres no
Brasil surgiram após 1850, quando as mesmas lutavam pelo direito à
instrução e ao voto”. Estas organizações, os movimentos feministas,
ganharam força com o direito da mulher ao voto, conquista sua.
“A partir da conquista do voto, as mulheres iniciaram um longo caminho para
adentrarem o mundo publico. A participação das mulheres no parlamento
tem sido marcada por grandes dificuldades. A visão do feminino visto como
algo frágil, sensível, delicado, emotivo e submisso se contrapunha a visão
do masculino considerado racional, frio, inteligente, forte e dominador,
portanto mais preparado para a política”. (Mary Ferreira, 2001:106)

Os movimentos feministas não lutavam somente pelos direitos de um


gênero, lutavam antes de tudo pela igualdade e o não-preconceito, contra um
mundo desigual e patriarcal. O movimento feminista faz uma contra-história,
ao denunciar os locais e espaços onde as mulheres não aparecem mesmo
estando presentes em todas as épocas. A primeira divisão entre os gêneros
se da na família, refletindo no social, sendo que “a primeira divisão do trabalho
na família se dá através do ato sexual e de procriação. A apontam como uma
divisão 'natural', como se o trabalho doméstico fosse algo inerente à condição
feminina, como se fosse um fato da 'natureza' e não como o resultado das
relações sociais de produção. Essa premissa de uma divisão natural do
trabalho é uma contradição com o próprio materialismo histórico, que define o
homem, sua consciência, suas aspirações, enfim, sua vida, como o resultado
do processo de produção de bens materiais, já que é a forma de produzir que
determina a vida do homem e não somente sua natureza” (Costa, 1998:22)

1010
Dessa forma, observa-se que os movimentos sempre estiveram junto
às lutas das mulheres, não se pode desvincular esta luta do contexto
partidário, pois a maior conquista das mulheres está na questão do
empoderamento e esta discussão sobre o poder está relacionada aos cargos
parlamentares, pois somente através destes se torna possível exercer a
participação política para modificação na estrutura social.
Todavia o ingresso das mulheres no âmbito de poder não significa
ainda uma vitória completa, ainda há muitas limitações, como coloca
Carvalho e Rabay:
“A conquista do voto não resultou ainda no ingresso massivo das mulheres
na política. Por sua vez, o ingresso de algumas mulheres na política não
significa que tenham abraçado a causa feminina, isto é, a luta por igualdade
e equidade de gênero”. (Carvalho e Rabay, 2001:129)

Assim, a luta continua nos movimentos de mulheres para que os


partidos possam cumprir as cotas estabelecidas. E no incentivo de
associadas que possam se candidatar para que na tentativa de garantir a
continuidade desta luta.

1011
Referências

1. ALVARES, M.L.M. Mulheres na Competição Eleitoral. Seleção de


Candidaturas e Padrão de Carreira Política no Brasil. Tese de
Doutorado. IUPERJ, 2004.
2. AVELAR, Lúcia e CINTRA, Antonio Octavio (Organizadores).
Sistema Político Brasileiro: Uma Introdução. Ed. UNESP.
3. CARVALHO, Maria Eulina Pessoa de; RABAY, Glória. Mulher e
participação política: aprendizagem, empoderamento e exercício do
poder. In: ÁLVARES, Maria Luzia Miranda; FERREIRA, Mary;
SANTOS, Eunice Ferreira dos (Organizadoras). Os Poderes e os
Saberes das Mulheres: A Construção do Gênero. São Luís:
EDUFMA/Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas Mulher,
Cidadania e Relações de Gênero; Salvador: REDOR, 2001. P. 123 –
144.
4. COSTA, Ana Alice Alcântara. As Donas do Poder. Mulher e Política no
Bahia. Coleção Bahianas; Núcleos de Estudos Interdisciplinares
sobre a Mulher FFCH/UFBA, 1998.
5. FERREIRA, Mary. Mulher e política no Maranhão. In: ÁLVARES,
Maria Luzia Miranda; FERREIRA, Mary; SANTOS, Eunice Ferreira
dos (Organizadoras). Os Poderes e os Saberes das Mulheres: A
Construção do Gênero. São Luís: EDUFMA/Núcleo Interdisciplinar
de Estudos e Pesquisas Mulher, Cidadania e Relações de Gênero;
Salvador: REDOR, 2001. P. 103 – 122.
6. SCHUMPETER, Joseph A. Capitalismo, Socialismo e Democracia
Capitulo XXI: A Doutrina Clássica da Democracia. Ed. Zahar, Rio
de Janeiro. 1942. p. 313-376.

1013
JUVENTUDE, POLÍTICA E EXCLUSÃO SOCIAL: UMA ANÁLISE A
PARTIR DE JOVENS FEMINISTAS NO RIO DE JANEIRO

Simone da Silva Ribeiro Gomes

O presente trabalho tem como objetivo apresentar a pesquisa de


mestrado que desenvolvo no Programa de Pós Graduação em Psicologia
Social, na UERJ, desde 2008. A mesma versa sobre jovens mulheres, no
Estado do Rio de Janeiro, militantes de movimentos feministas, discutindo
criticamente a exclusão social, através do uso da metodologia das histórias
de vida de quatro jovens entre 24 e 29 anos.
O cenário é de um novo feminismo no Brasil, no qual jovens
mulheres vêm reinvidicando seu reconhecimento como um grupo com
especificidades dentro do movimento. Para tal, é preciso levar em
consideração o significado social e político de uma determinada cultura
jovem, atentar para as formas criativas de lidar e resistir à ordem dominante,
entendendo que as mesmas possam ser expressas pela participação política
(Freire Filho, 2007).
Tendo em vista as considerações de Pasini e Pontes (2007) que
afirmam que: “[..] as mulheres jovens sofrem subalternidades não só pelas
opressões de gênero, orientação sexual, classe, raça e etnia, mas ainda pela
posição em que se encontram nas lutas de poder características das relações
entre as gerações. Em nossa sociedade, as jovens e os jovens estão em um
lugar de preparação para o que se espera de suas vidas adultas, mas ainda
de formas diferenciadas pela perspectiva de gênero” (PASINI e PONTES,
2008, p.16).

JUSTIFICATIVA
Tendo atuado como psicóloga e atuante dos direitos humanos
desde a graduação, ainda me sinto distante das dificuldades enfrentadas
pelos sujeitos da minha pesquisa. Trabalhei durante três anos em um projeto
denominado JovEMovimento, cujo objetivo era engajar jovens de
comunidades populares de quatro regiões do Brasil em atividades de
prevenção de violência e monitoramento de políticas públicas. No Rio de
Janeiro, um grupo de jovens de cinco favelas ( Rocinha; Complexo do
Alemão; Nova Holanda, Santa Marta e Vila Aliança), se reuniam com o
objetivo de definir atividades que envolvessem o monitoramento de políticas
de prevenção de violência.
Apesar de não lidarem com temáticas de gênero diretamente, por
_____________________________________________________________

1
Segundo dados da pesquisa do IPP – Instituto Pereira Passos (2008): A cidade do Rio de Janeiro na
PNAD: Condições de vida, educação, renda e ocupação entre 2001 e 2006.
2
Os movimentos sociais anteriores a decada de 80 tinham o foco na crítica marxista aos meios de
produção, logo, os sujeitos seriam os “explorados” pelo sistema capitalista, com o foco no proletariado.
1015
se tratarem de atividades que buscavam fomentar o ativismo juvenil para a
violência de uma forma geral, esse ponto definiu meu interesse. Estabeleci
meu recorte de forma a circunscrever as atividades de ativismo às jovens
engajadas na política, em ações focadas em questões feministas e de
gênero. Foi a partir dessas idéias e de minhas investigações que escolhi
como sujeitos as jovens militantes do movimento feminista.
As características demográficas da juventude no Rio de Janeiro
demonstram que os jovens são uma parcela significativa da população, já que
as tendências demográficas demonstram que o município continua sendo
composto, eminentemente, por pessoas de até 30 anos. Entre os anos de
2001 e 2006, o maior contingente populacional carioca era representado por
jovens entre 20 e 24 anos.Entretando, ressalto a colocação de Pasini e
Pontes (2008) sobre a arbitrariedade e relatividade social das classificações
de juventude, já que:
[...] é importante ressaltar que essa marcação se dá muito mais por uma
demanda coletiva – o reconhecimento de que estrutural e
hegemonicamente há certos grupos etários que são mais atingidos por
estas construções sociais-do que por uma possibilidade de determinação
individual sobre a condição juvenil (PASINI; PONTES, 2008, p.56-57).
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Guattari (1986) a respeito dos novos movimentos sociais,
menciona que os mesmos não possuem novos na nomenclatura
simplesmente devido ao fato de terem surgido recentemente, mas sim, por
estruturarem seus objetivos e formas de intervenção política a partir das
questões relativas à autonomia. Sobre a inovação no campo político: “A
problemática desses novos movimentos sociais é a de um deslocamento de
finalidades da produção e da vida social em direção a questões mais
próximas da vida existencial dos indivíduos, um processo de
singularização”(GUATTARI, 1986, p.40.
Segundo Santos (1996), a palavra opressão teria se tornado um
mote entoado por todos, e os protagonistas das ações se oporiam as
diferentes “constelações de poder” que constituem as práticas sociais. A partir
da década de 80, as novas demandas de militância começam a se articular e
obter espaços para causas comuns. Isso se deveu principalmente aos novos
sujeitos em cena, mulheres e ecologistas, que marcaram sua diferença dos
movimentos cujo foco residia apenas nas contradições e injustiças das
classes sociais.
O que se observou então, foi uma crescente chamada de atenção
para comportamentos como o machismo enquanto forma de opressão. Esse
extravasaria as relações de produção, logo, não poderia ter sua explicação
reduzida a uma consequência da luta de classes.
[...] as assimetrias das relações sociais são a outra face da alienação e do
desequilíbrio interior dos indivíduos; e finalmente, essas formas de
opressão não atingem especificamente uma classe social e sim grupos

1016
sociais transclassisistas ou mesmo a sociedade no seu todo (SANTOS,
1996, p.258).
A sociologia feminista teria sido a responsável por criticar a
primazia da opressão de classes sobre as demais, buscando demonstrar
suas muitas faces, uma das quais é a sofrida pelas mulheres através da
discriminação sexual. “Ao privilegiar a opressão de classe, o marxismo
secundarizou e, no fundo, ocultou a opressão sexual e, nessa medida, o seu
projeto emancipatório ficou irremediavelmente truncado” (SANTOS, 1996,
p.41). É nesse sentido que ganha força o objeto de pesquisa
dessa dissertação, no escopo de um movimento recente (menos de 30 anos),
teriam sido reveladas opressões que diriam respeito ao universo feminino,
para além de questões sócio-econômicas.
Para Boaventura Santos (1999), outra novidade residiria “no
alargamento da política para além do marco liberal da distinção entre Estado
e sociedade civil” (SANTOS, 1996, p.263). Isso posto, a politização do social,
cultural e pessoal abriria novas possibilidades de exercício da cidadania e
revelaria as limitações da cidadania liberal ou social, inscritas no Estado.
A década de 90 assiste à mudança de referências dos sujeitos
históricos predeterminados, homogêneos em termos de inserção de
demandas e modos de vida, para “[...] pobres e os excluídos, apartados
socialmente pela nova estruturação do mercado de trabalho. A grande tarefa
política será incluí-los” (GOHN, 2008, p.35) Nesse sentido, a cidadania
coletiva ganha destaque como categoria a partir do advento da Constituição
Federativa de 1988. A participação política e o exercício da cidadania coletiva
teriam sido legitimados, exigindo uma qualificação no seu cumprimento, não
bastando mais somente reivindicar, pressionar ou demandar.
Dentro dos movimentos sociais que visam dar conta da temática
proposta neste estudo, utilizaremos a abordagem proposta por Gohn (2008),
que trata de uma corrente culturalista-identitária. Os movimentos abordados
nesse capítulo se encaixariam nessa última linha, pois deram espaço para
atores (mulheres, jovens, índios e negros) outrora invisíveis na esfera
pública. Estes atores trouxeram novas clivagens de gênero, classe social,
idade e etnia que tornariam a identidade aspecto organizador.
Passando para o feminismo, é importante que suas nuances
sejam considerados, tanto no Brasil, quanto no Rio de Janeiro. Todavia, a
pesquisa visa apenas contextualizar a história da qual começam a fazer parte
as jovens feministas. Para Sarti (2001) as experiências retratadas como
feminismos são, evidentemente, plurais e polissêmicas, dependendo do
ângulo a partir do qual se olhe. Como Pinto (2003) afirma:
[...] (o feminismo) tem sido por natureza um movimento fragmentado, com
múltiplas manifestações, objetivos e pretensões diversas. Sua história,
desde os primeiros momentos, mas principalmente após os anos 1960,
quando de sua grande vaga, foi pautada por esta multiplicidade, em que
os momentos unitários fora efêmeros e com objetivos muito específicos
1017
(PINTO, 2003, p.9).
Apesar disso, Pinto (2003) aponta que um dos aspectos da
realidade brasileira que são transversais nas lutas femininas, é a presença de
mulheres das classes médias e populares desde a década de 30. O período
entre 1975 a 1985 ficou conhecido como a década da mulher, com a
emergência de diversos movimentos, que assumiam as características
formatadas por seus contextos específicos e o Brasil, e o Rio de Janeiro,
especificamente, não foram exceções.
A formatação brasileira, com seu contexto de autoritarismo
político, e a forma adquirida pelo movimento, revelam que, embora
influenciado pelas experiências européias e norte-americana, sua atuação
nos anos 1970 foi significativamente marcada pela contestação à ordem
política instituída pela ditadura militar em 1964. Nesse período, uma parte
expressiva dos grupos encontravam-se articulados a organizações de
influência marxista, clandestinas à época, comprometidas com a oposição à
ditadura militar, imprimindo ao movimento características próprias. O período
contou com dificuldades adicionais:
O feminismo brasileiro nasceu e se desenvolveu em um dificílimo
paradoxo: ao mesmo tempo que teve de administrar as tensões entre uma
perspectiva autonomista e sua profunda ligação com a luta contra a
ditadura militar no Brasil, foi visto pelos integrantes desta mesma luta
como um sério desvio pequeno-burguês (PINTO, 2003, p.45)
A cidade do Rio de Janeiro foi palco, assim como São Paulo, em
1972, dos primeiros grupos feministas de reflexão, informais, com reuniões
entre mulheres que se conheciam previamente, com laços de amizade, ou
afinidades políticas e intelectuais. (PINTO, 2003). Já em Março de 1979,
aconteceu o 1º Encontro Nacional de Mulheres, organizado pelo Centro da
Mulher Brasileira, que teve seu embrião em reuniões na casa da feminista
Ingrid Stein e foi a principal referência no cenário carioca entre os anos de
1975 e 1979 (Teixeira, 1991).
Na década de 80 houve a atomização do movimento, quando no
III Congresso da Mulher Paulista, em 1981, há a recusa da formação de uma
Federação de Mulheres. Dai em diante, há espaço para um feminismo mais
amplo e diverso, com a atuação em grupos menores preocupados com
questões específicas e concretas da realidade feminina. A cisão do
movimento nacional ocorre quando já se constituia como uma força política e
social consolidada.
Essa fragmentação, como demonstrada por Schumaher (2005)
falaria do resultado de um debate político sobre a polarização entre luta geral
e luta específica dos anos 70 que resultou, no início da década de 1980, em
inúmeros grupos de mulheres espalhados pelo país, num amplo leque de
movimentos feministas. Nesse momento, a cisão diria respeito a uma
ampliação, com o surgimento de grupos acrescida da incorporação de novos
segmentos e realidades, como os grupos de mulheres negras, lésbicas,
1018
trabalhadoras urbanas e rurais, entre outras.
Essa inclusão de outros grupos não ocorreu sem críticas, alguns
movimentos afirmaram, na época, que: ao alegar a prioridade de combater o
autoritarismo e as desigualdades existentes na sociedade brasileira, algumas
organizações teriam relegado a um plano secundário a problemática
feminista. Ao mesmo tempo, os diferentes grupos feministas alastraram-se
pelo país, com uma penetração em associações profissionais, partidos e
sindicatos, legitimando a mulher como sujeito social particular. A respeito
dessa cisão, Pinto (2003) afirma:
A questão política parecia dominar o feminismo em 1982, quando das primeiras
eleições gerais no país (exceto para presidente da república). Com o processo de
redemocratização mais avançado surgia uma nova divisão entre as feministas: de um
lado ficaram as que lutavam pela institucionalização do movimento e por uma
aproximação da esfera estatal e, de outro, as autonomistas, que viam nessa
aproximação um sinal de cooptação (PINTO, 2003, p. 68).
Teixeira (1991) aponta para a criação do Forum Feminista do Rio
de Janeiro, em 1987, quando dessa desarticulação e atomização da maioria
dos grupos: “dai em diante os movimentos de aglutinação e vitalização do
movimento feminista passaram a ser os encontros nacionais” (TEIXEIRA,
1991, p.37). Já a década de 90 teria contado com o diferencial de uma maior
participação da classe operária, que, embora ainda atuasse nas
mobilizações, encontrava-se organizada de forma inédita, pois haveria o
interesse adicional de participação na sociedade de consumo. A coexistência
de lutas sindicais com lutas contra as múltiplas discriminações (negros,
homossexuais e mulheres) seria acompanhada de um sentimento
generalizado de ausência de resultados.
As decorrências nos movimentos feministas brasileiros, é que os
mesmos esvaziaram-se de uma forma geral, principalmente os formados em
torno da bandeira da opressão feminina. Sendo assim, ganharam força os
cuja atuação era mais especializada, com uma perspectiva mais técnica e
profissional. Disso decorre a buca de muitos grupos pela organização em
ONGs, de forma a influenciar as políticas públicas em áreas específicas,
utilizando-se dos canais institucionais (SARTI, 2001).
Pinto (2003) não vê o movimento de crescimento das ONGs e
consequente institucionalização da militância como um fenômeno que
esvarizaria o movimento social em questão. A autora afirma que o terceiro
setor seria o responsável, a partir da década de 90, pela continuação da
existência do feminismo no Brasil, “tanto na ponta de lança da defesa das dos
interesses das mulheres no campo da política como na articulação de redes
nacionais de mulheres”(PINTO, 2003, p.98).
Tratando agora do conceito de exclusão, sem pretender esgotá-
lo, a mesma começou a se destacar como temática no Brasil, substituindo a
noção de marginalidade, a partir da década de 80. Oliveira (1997) chama
atenção para uma necessária “decantação terminológica” do conceito, que a
1019
partir da sua incorporação ao discurso do senso comum, já é usado para falar
das mais díspares realidades sociais. Diferença também marcada por
Maiolino (2008) quando afirma que, atualmente, a exclusão abarcaria uma
ampla gama de problemas. “Fala-se de exclusão e há uma autorização
praticamente consensual para que aí estejam inseridas, de forma
amalgamada, exclusões cultural, espacial, social e econômica” (MAIOLINO,
2008, p.108).
Castel (1997) menciona que a abrangência dos que “suscitaram
formas específicas de tomada de consciência” é grande, logo, questiona se
seria necessário antes recompor o panorama da questão social para definir
uma problemática nova para questionamentos contemporâneos inéditos. O
grande grupo considerado socialmente excluído teria em comum um modo
particular de dissociação do vínculo social, característica do quadro francês,
que o autor conceitua como desfiliação.
Essa nova terminologia se daria, pois, na França (e podemos
estender ao Brasil também) a exclusão tem sido relacionada a uma camada
muito heterogênea de pessoas; não se trata de uma situação estanque, como
o termo pretende definir. Além disso, sua demarcação seria equivocada, na
medida em que nos faz centrar as análises nas margens de um problema
originado em outros espaços. Em contrapartida, a desfiliação levaria em
consideração a trajetória do sujeito, que, ao contrário do que é percebido pelo
senso comum, não está fora da sociedade, não foi “cortado” do social. O
termo levaria em conta o processo, segundo o autor:
[...] passar da exclusão à vulnerabilidade que precede a exclusão, e até
mais, ao foco mesmo da vida social, no espaço de trabalho, onde são
produzidas políticas que desencadeiam esta espécie de onda de choque
que por intermédio da flexibilização e da precarização do trabalho, que, no
final das contas, levam à “exclusão” (CASTEL, 1997, p 5).
Em 1998, na obra “As metamorfoses da questão social”, ele
menciona que para que a noção de exclusão social pudesse ser utilizada,
“seria necessário que ela correspondesse a situações caracterizadas por
uma localização geográfica precisa, pela coerência mais ou menos relativa
de uma cultura ou de uma subcultura e, mais frequentemente, por uma base
étnica” (CASTEL, 1998, p.26).
É importante então, pensarmos em análises que levem em
consideração outros fatores, além dos aspectos sócio-econômicos. Além de
diferentes fatores, são múltiplos também os significados dos
processos de exclusão, que são expostos por Denise Jodelet da seguinte
forma :
[...] exclusão induz sempre uma organização específica de relações
interpessoais ou intergrupos, de alguma forma material ou simbólica,
através da qual ela se traduz: no caso da segregação, através de um
afastamento, da manutenção de uma distância topológica; no caso da
marginalização, através da manutenção do indivíduo à parte de um grupo,

1020
de uma instituição ou do corpo social; no caso da discriminação, através
do fechamento do acesso a certos bens ou recursos, certos papéis ou
status, ou através de um fechamento diferencial ou negativo. Decorrendo
de um estado estrutural ou conjuntural da organização social, ela
inaugurará um tipo específico de relação social (JODELET, 1999, p. 53).
Na mesma linha de Castel (1997), Martins (2003) também discute
criticamente a abrangência e banalização do termo “exclusão social”. Para o
autor, nossa sociedade precisa ser considerada como contraditória em sua
totalidade e compreender essa contradição torna-se essencial a essa
discussão, afinal, o entendimento da origem e circunscrição do fenômeno é
essencial para observar seus “modos de manifestação, os desastres sociais
a que se associa, seu lugar na dinâmica social” (MARTINS, 2003, p.13).
O autor também afirma que o conceito pressuporia uma
sociedade acabada, cujo resultado final não é por inteiro acessível a todos,
sendo excluídos aqueles que não a acessariam por inteiro. A sociedade,
todavia, está em processo contínuo de desestruturação e re-estruturação, ou
seja, não haveria exclusões consumadas. “A vivência real da exclusão é
constituída por uma multiplicidade de dolorosas experiências cotidianas de
privações, de limitações, de anulações, e também, de inclusões
enganadoras” (MARTINS, 2003, p.21).
Martins (1997), afirma que uma mudança da nomenclatura da
palavra “pobreza” para “exclusão”, seria a responsável por uma ocultação do
processo que leva pessoas a serem consideradas excluídas. Já Paugam
(2003) pensa em uma relação entre a desqualificação social e os efeitos do
estigma no conjunto da sociedade. Central no pensamento do autor é pensar
o descrédito dos que não participam da vida econômica e social de forma
plena, suas identidades e sentimentos subjetivos acerca das situações que
esses sujeitos enfrentam nas suas experiências e nas relações travadas com
os outros.
O questionamento de Alain Touraine (1989) sobre a política nas
sociedades latinoamericanas, é o que move essa discussão no âmbito dessa
dissertação: “Como chamar para o afrontamento de classses quando uma
parte da população pobre é mais excluída que explorada e quando as classes
médias, importantes em toda parte, conclamam a uma participação ampla
mais que à violência política?” (TOURAINE, 1989, p.16-17).
Isso posto, o grau de dificuldade de inserção em atividades
políticas aumentaria em sociedades com reduzido nível de participação
econômica, caso agravado pela exclusão. Dessa forma, o embrião de
situações revolucionárias se daria por uma constante mistura de “todos os
níveis da experiência, a presença simultânea da pobreza e da experiência da
exclusão” (TOURAINE, 1989, p.270). O autor afirma:
Não é o papel dos pobres como trabalhadores, como cidadãos ou como
membros de uma comunidade que dá a este tema a importância que tem;
não é o que eles fazem, mas o que sofrem; não é o que possuem, mas
1021
aquilo de que são privados; não é, pois, a sua identificação com uma
classe ou com uma nação que dá força ao seu protesto, mas sim, a sua
miséria, a exclusão e a repressão que eles sofrem é que dão ao seu
protesto um valor fundamental. Porque é quando os problemas da vida
privada e os da vida pública se unem da forma mais intensa para dar
origem a um protesto cujo único objetivo é a defesa da vida (TOURAINE,
1989, p.276).
Se, em grande parte, são organizações políticas e profissionais
que realizam a integração dos sujeitos, que dizem o que esses devem ou não
fazer para não ferir ou desorganizar a sociedade a que pertencem, “a
participação ativa no funcionamento de grupos sociais organizados é,
portanto, uma condição para integrarem-se” (PAUGAM, 2003, p.275). Castel
destaca que esse déficit de cidadania, e o respectivo sentimento de injustiça
vivenciado por jovens, é ainda mais grave se considerarmos que estamos em
presença de uma sociedade que clama pela igualdade de direitos e chances.
A juventude também sofreria com um processo que “cristaliza nas margens
as rachaduras do centro” e responsabiliza pelas “disfunções aqueles que são
justamente suas maiores vítimas” (CASTEL, 2008, p. 59-60).
No que tange a metdologia, as histórias de vida, partindo da
história oral, tem como efeito principal o ato de “sublinhar a presença do
sujeito na história” (RODRIGUES, 2004, p.25), e foi nesse sentido que
vislumbramos o maior interesse de ouvir a trajetória de vida dos sujeitos da
pesquisa. O nexo entre uma metodologia que afirma a vitalidade da
identidade é algo de suma importância, quando se considera a temática da
militância feminista, cuja afirmação identitária é parte constituinte da própria
centralidade do movimento.
Abramo (2008) afirma que, enquanto alguns grupos não buscam
na identidade juvenil a constituição de uma posição e atuação social e
política, embora sejam compostos principalmente por jovens, outros, como
os grupos feministas, tornam a afirmação da identidade diferencial seu mote
de luta. No caso específico desse trabalho, o objetivo das histórias de vida é
focar a atenção sobre os sujeitos, investigando as diversas dimensões de
suas vidas (lazer, família, lugar de trabalho, grupos de referência), seus
projetos e valores que orientaram suas escolhas ao longo das trajetórias de
militância.
SEGUINDO OS PASSOS DA MÃE: a história de Maria
Maria foi entrevistada numa sexta-feira, no começo de 2009. Na
troca de emails que antecedeu o nosso encontro, ela pedia que nos
encontrássemos na mesma semana, já que estava a caminho do Fórum
Social Mundial. Percebo que há uma atmosfera de familiaridade no ambiente
onde se desenrola a entrevista, um escritório no Rio de Janeiro, local onde ela
trabalha. Maria circula com desenvoltura, e também não faz questão de
privacidade no nosso encontro: uma menina senta ao seu lado durante toda a
entrevista e as portas permanecem abertas. Descubro posteriormente que
1022
essa menina é sua irmã. Sua mãe, fundadora da ONG na qual milita, está no
outro cômodo desse escritório, onde funciona a ONG CAMTRA – Casa da
Mulher Trabalhadora.
Maria nasceu no Nordeste, em Fortaleza, no ano de 1984. De
origem pobre, frisa que viveu e vive uma vida simples, estudou, já no Rio de
Janeiro, em escolas públicas durante todo o período que antecedeu sua
graduação. Se a entrevistada não pode ser considerada em uma situação
excludente quando considerada sua situação atual, é imprescindível que
situemos seu passado e também especulemos a respeito de uma possível
relação entre sua atividade de militância com uma relativa ascenção social.
A entrevistada morou com ambos os pais, até o final do
casamento destes, enquanto era pequena, na cidade de Fortaleza e
posteriormente em Brasília, até o começo da sua adolescência, quando veio
para o Rio de Janeiro. Na cidade, passou por vários lugares, começando por
Campo Grande, São Cristovão até, enfim, se estabelecer no Centro. Morou
com sua mãe e irmãs até os 23 anos, quando se casou e, atualmente,
continua residindo no mesmo bairro.
O lema do movimento feminista da década de 60, “o social é
político” me parece apropriado para a história de vida contada por Maria. No
decorrer da entrevista, percebo uma não-divisão de suas atividades diárias
com as atividades do movimento feminista, a começar pelo fato de vir
trabalhando, nos últimos 10 anos (ou seja, desde os 14 anos de idade) na
ONG fundada por sua mãe.
Seus pais, ex-militantes do MR-8 Movimento Revolucionário 8 de
Outubro, se conheceram no movimento social e mais tarde vieram a se
separar. Sua mãe se envolveu com outros militantes da causa social
posteriormente, e teve duas outras filhas, de quem Maria cuidou desde muito
pequena. Segundo ela: “E ai depois minha mãe se separou de novo, ai grande
parte do tempo também eu fui responsável por cuidar das minhas irmãs, a
minha mãe sempre tentava ter alguém, mas nunca dava pra ser assim
certinho. Às vezes não tinha”.
Suas memórias do tempo de infância não são muito detalhadas,
os depoimentos não se detêm muito sobre esse aspecto, priorizando a vida
profissional. Sua trajetória, como ela mesma define, é muito ligada à
trajetória da sua mãe, “assim, a minha trajetória tem muito a ver com a
trajetória da minha mãe, então sempre foi à gente e as minhas irmãs quando
nasceram, então tava muito ligada a isso”, algo que a entrevistada deixa claro
em diversos momentos.
[...] acho que minha trajetória tem muito a ver com a trajetória aqui dentro
então eu como pessoa, como mulher, aprendi muita coisa..muita coisa
que eu sei assim eu me sinto sobre determinadas coisas [..] segura pra
falar [..] contribuir pro despertar que eu acho que tem uma grande barreira
que a gente encontra hoje no feminismo que é a naturalização. Tanto a
naturalização das desigualdades quanto a naturalização de que “as

1023
mulheres já conquistaram tudo”, já tudo dado, não é pra querer mais nada.
Então você conseguir de alguma forma, discutir, levar outras pessoas a
pensarem um pouquinho sobre a sua condição, né..que eu acho que tem
muito a ver com a sua condição na sociedade, se perceber e perceber as
coisas que falam pra você, como te olham, assim e tentam te faixar o
tempo todo, tem muito a ver com isso, assim, tentar ganhar pessoas.”
Suas relações pessoais, quando indagada, revelam a
centralidade da ONG na qual sua mãe é fundadora, e em que trabalha há 10
anos, na sua vida. Podemos inferir, a partir desse ponto, que Maria não teve
muitas escolhas no sentido de conhecer outras realidades. No entanto ela
não se mostra acrítica em relaçao ao movimento social e político, na medida
em que demonstra consciencia que as questões de militância acabam sendo
confundidas com as questões pessoais, por isso busca afastar conflitos, mas
não a “mistura” com a militância.
“Nas questões de trabalho, de movimentos sociais, as minhas
relações são mais as que trabalham na CAMTRA, ou que já trabalharam. E os
outros que você encontra sempre, mas às vezes fica mais restrito, ta tendo
um evento, ai a gente sai, não tipo..marcar de fazer alguma coisa. Eu vejo que
sou diferente de outras pessoas até do movimento, [..] acho que de alguma
forma é saudável. [...] na questão dos movimentos tem muito
desentendimento, então às vezes a pessoa é sua amiga hoje e por questões
políticas..até acaba. Então eu tento não misturar.”
Ao mesmo tempo em que Maria observa a militância dos seus
pais, é também cobrada por seu pai, mesmo morando longe: “Eu tinha uma
cobrança [...], meus dois pais sempre foram militantes e ai principalmente
meu pai, acho que meu pai, talvez por não me ver, na verdade ele
só me vê nas férias, sempre tinha um tipo..de ficar catucando...” que que você
vai fazer? Vai participar de alguma coisa?”.
Sua trajetória, como ela observa, se inicia com a observação da
mobilização em prol de uma causa no ensino fundamental com “uma
movimentação em prol de alguma coisa..uma mobilização ”. Já na faculdade,
ela começa a frequentar o movimento estudantil, mas sua vivência no
movimento feminista a impede de aprofundar suas relações com as questões
trazidas pelo novo ambiente: “como eu já participava do movimento
feminista..e [..] nisso eu tenho um pouco de preconceito, talvez, e como já
tivemos vários momentos juntos com movimento de partido..e por não gostar
de determinadas práticas, eu sempre tentei ficar mais distante.”. Apesar
disso, ela se envolve no começo, “assim eu participava de algumas reuniões”
e “eu cheguei a ir numas mobilizações que teve pra tirar o diretor”
Apesar do envolvimento de ambos os pais com a militância (o pai
milita atualmente em um partido político de esquerda em Belém – PA), a
apropriação da política em sua vida aparece de forma gradual. Ela considera
que, no início, não tinha a devida consciência do que seria, algo que só veio a
adquirir posteriormente:
1024
E ai assim, eu não sei, eu não me via muito participando do movimento
partidário assim .. .então quando eu vim pra CAMTRA eu fui descobrindo
outras formas de participação. [..] De quão diferente era o trabalho e do
que eu estava me envolvendo mas às coisas foram acontecendo e eu fui
ao mesmo tempo ganhando mais consciência e mais formação.
Surge o interesse em “passar para a frente” os conhecimentos adquiridos, e a
questão geracional aparece, de uma forma aparentemente sem conflito, já
que é incentivada por sua mãe a levar para a frente o projeto de fundar uma
área jovem na organização. Essa experiência parece diferenciar a
organizaçao na qual Maria é engajada de tantas outras, onde as jovens são
olhadas com desconfiança por não terem a legitimidade de anos de militância
que o movimento exigiria.
E ai começou a ter alguns seminários e algumas jovens foram se
aproximando da CAMTRA também assim..e a gente começou a participar
de formação, assim. E ai na época [...]a gente chamava de núcleo de
adolescentes e agora chamamos de núcleo de jovens..a gente começou a
questionar um pouco..a indagar um pouco “ah, gostei muito de muitas
informações aqui que são legais..e que a gente passa pra outras
mulheres, mas as jovens não sabem disso” Foi muito tipo assim “minhas
amigas não tem acesso as informações que a gente tem aqui”. Então a
gente começou a se questionar e questionar dentro da instituição
também.
A gente começou a pensar o que a gente pode fazer pra ta..ai a gente teve
a idéia de fazer um seminário..e ai tinha acabado de ter tido um seminário
de formação de 1 semana pra equipe que tava trabalhando no Saara e a
gente falou “a gente quer fazer um igual pras jovens, pras nossas amigas,
pra ter essas informações”. E ai a Eleutéria, que é a fundadora falava
muito assim : “tá, vocês vão fazer o seminário e aí..?”E eu lembro que na
época a gente ficou muito revoltada” como assim e aí?”“ A gente quer
fazer um seminário e você tá questionando?”Mas muito de instigar a
gente sobre e o depois, né. Não basta a gente dar informação e cada um
volta pra casa, mas na época que pra gente,eu lembro que foi muito
conflitante. E ai a gente pensou..e no último dia do seminário a gente
pensou..”a gente conversa um pouco com elas pra ver o que acha..”E
nesse primeiro seminário as jovens que participaram foram nossas
amigas, conhecidas..que a gente achou que seria legal estar, como
também algumas outras jovens de comunidades que a CAMTRA já tinha
contato, que eventualmente participavam no Saara de algumas
atividades que a gente chamava de “ação”, que as vezes vinha muitas
voluntárias.
O espaço dinâmico de atuação do núcleo iniciado por Maria
também é objeto de sua fala. Os espaços utilizados para a militância são
_____________________________________________________________

3
Nome trocado para manter a privacidade da entrevistada.
1025
pensados, dentre outros fatores, segundo os atores existentes e a
capacidade de levar a mensagem adiante.
E aí como a gente foi trabalhando só com Instituto de Educação, com o
tempo a gente foi percebendo que a gente tinha jovens ... que a proposta
do núcleo era o protagonismo das jovens, de não ter hierarquia, que não
vai ser o adulto que vai falar e tal..e aí a gente foi percebendo que a gente
falava em escola de formação de professores, então a gente às vezes
discutia coisas com elas pra vida delas, mas que pra sala de aula talvez
elas não levassem aquilo. Era uma coisa distante, porque a formação que
é passada pra elas de professoras.”
A discussão do feminismo é somada à questão das
desigualdades sociais, e a atividade de militância de Maria pode também ser
encarada como uma tentativa de despertar nos outros a vontade de política.
Tentar a transformação [..] a gente tenta também..tem o foco no
feminismo, mas tenta aliar com uma discussão maior, a questão da
desigualdade de classe, a desigualdade social..uma transformação
maior. Então a gente tenta um pouco despertar..trazer discussões nesse
sentido..acho que é isso, a gente acha que contribuindo de alguma forma
elas participem de processos mais coletivos, mesmo que não fiquem
participando da CAMTRA, do movimento feminista, mas que sigam, sei lá
de repente no movimento estudantil, mas vai ter uma outra postura, outra
visão com relação a situação das mulheres, um pouco isso.”
“Tem alguns avanços, principalmente da questão racial..nesse momento
ta crescendo a aliança entre a questão feminista e a questão econômica.

1026
1027
REFERÊNCIAS
ANDREWS, Molly. Breaking Down Barriers: Feminism, Politics and
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1030
Jovens Mulheres Feministas: Novas articulações?

Celecina de Maria Veras Sales


Doutora em Educação
Profa. da Universidade Federal do Ceará
Pesquisadora NEGIF/UFC
celecinavs@gmail.com

1. Introdução
Estudar a participação das jovens no Movimento Feminista remete a
compreensão do papel político das jovens e das novas formas de mobilização
que na atualidade as organizações sociais estão construindo. Embora as
mulheres jovens sempre estivessem presentes em associações e
movimentos diversos, somente nos últimos anos elas começam a ter
visibilidade. No Brasil vive-se um momento ímpar em relação a questão de
gênero e juventude, o Estado criou uma Secretaria de Juventude e uma
Secretaria de Mulheres, realizou Conferências de Política para Mulheres, o
que resulta em ações específicas com recorte de gênero e juventude.
A nossa pesquisa foi realizada com movimentos sociais do Brasil e de
Portugal, e, para este trabalho, fizemos o recorte do movimento feminista,
precisamente através da Marcha de Mundial de Mulheres- MMM. O caminho
da pesquisa inicia com o mapeamento de movimentos sociais que tem
setores/comissões de gênero e juventude. Com relação a jovens feministas,
começamos a desenhar a cartografia, para tanto, utilizamos Internet por ser
um recurso útil, dinâmico, para pesquisa. Realizamos um levantamento do
histórico, das lutas e estruturas de cada movimento, fizemos contato através
de correio eletronico e comunicação por telefone. As novas tecnologias foram
meios de comunicação, pontes de linguagem (LEVY, 2004) com as
entrevistadas.
A investigação sobre a participação de mulheres jovens no
Movimento Feminista e em outros movimentos tem o sentido de entender o
que mobiliza essas jovens a desenvolver práticas coletivas e qual o significado
político e social dessas práticas.
O ativismo das jovens visibilizado no Fórum Social Mundial e na
Marcha Mundial de Mulheres abre novas possibilidades para ações coletivas,
potencializa formas de fazer política através de ações de esfera pública. A
política de conjunto expressa no Fórum e na Marcha cria espaços de conexão
e agrega organizações e movimentos.
Os primeiros de grupos de jovens feministas emergem no início do
século XXI, reapresentando lutas feministas históricas sob o olhar geracional.
As questões e demandas das jovens já nascem articuladas a outros
movimentos e lutas mais gerais, isso de certa forma pode permitir que sejam
criadas possibilidades de produzir e inventar novos desejos, novas
associações no campo da luta pelos direitos das mulheres.
1031
Essa articulação é facilitada pelas novas tecnologias de informação e
comunicação, pois em rede cada participante tem trânsito, proximidade e
torna-se criadora e receptora ativa de informação. A participação de uma
nova geração política coloca questões fundamentais para a organização do
Movimento Feminista: O que mobiliza o ativismo político das jovens? Que
campos de possíveis estão sendo inventados por essas ativistas? Como o
Movimento tem se tornado um pólo de resistência para diversas gerações?
2. O Movimento Feminista e as Mulheres Jovens
Desde as primeiras décadas do século XX o Movimento Feminista luta
pela igualdade de direitos entre mulheres e homens, em termos políticos e
sociais, introduziu novos aspectos na luta política, abordando temas
importantes como sexualidade, família, trabalho doméstico. Ao agir contra as
práticas de poder, critica paradigmas, valores, normas, desafiando regimes
de verdade que instituem o mundo e suas significações.
No seu percurso, o feminismo demarca mudanças e rupturas com
valores instituídos e, segundo Bandeira (2000), pode ser retratado em três
períodos. O primeiro se inicia ainda no século XIX (1850-1950), o segundo de
1960 a 1980 e o terceiro de 1990 se estendendo até o presente. Cada
periodização tem suas próprias características, conforme Bandeira:
1º Ato: A mulher como sujeito irrepresentável - a construção
histórica da emancipação feminina pelas mulheres pioneiras; 2º Ato: A
conquista de territórios e de espaços plurais: la nouvelle vague do
feminismo como movimento social e a emergência dos estudos de
º
gênero; e 3 Ato: A consolidação da categoria de gênero nos diversos
espaços e as indagações sobre o feminismo prospectivo diante das
novas demandas e lutas sociais (2000, p. 17).
O feminismo tem sido historicamente um espaço de ação política, de
inovação de estrutura de participação. Se na sua gênese o Movimento
Feminista é caracterizado pelo sufragismo e luta pelo direito a educação, em
momento seguinte parte para rupturas de cunho cultural e moral que irão
atribuir a imagem de movimento radical, é somente na sua fase mais recente
que o Movimento faz uma política de articulação.
No período de estruturação e expansão do Movimento Feminista
(1960-1980), surgem diversos jornais feministas trazendo para a sociedade
discussões importantes sobre violência, sexualidade e direitos das mulheres.
As feministas acadêmicas produziram estudos sobre a mulher com o objetivo
de denunciar a invisibilidade ou ausência das mulheres em diversos campos.
Os estudos feministas, até então concentrados nas mulheres, se expandem
com diferentes perspectivas analíticas, de modo que posteriormente vão ser
substituídos pela discussão de gênero.
A problemática de gênero colocada pelos feminismos mudou formas
de pensar, trouxe contribuições e questionamentos importantes, como diz
Louro (1977), passa-se a analisar a construção social e cultural do feminino e
do masculino. Scott (1995) destaca o caráter relacional das definições de
1032
feminino-masculino e transforma gênero em uma categoria de análise. Para a
autora, gênero refere-se às relações sociais baseadas nas diferenças que
distinguem os sexos, é uma forma primária de relações significantes de
poder.
Na concepção de Butler (2003) “se tornou impossível separar a noção
de 'gênero' das interseções políticas e culturais em que invariavelmente ela é
produzida e mantida” (2003, p.20). Sua abordagem traz críticas ao binarismo,
ao essencialismo, à unidade da categoria mulher, a base natural para a
constituição do gênero e se permite pensar em termos de pluralidades e
diversidades. Para a autora, os estudos sobre o gênero durante longo tempo
viram a heterossexualidade como uma realidade dada, natural, sem
questionamento, ligada ao sexo biológico, enquanto gênero era concebido
como construto.
As explicações teóricas sobre gênero durante essas últimas décadas
compreendem uma multiplicidade de percepções que servem de referência
para se perceber os vínculos entre o que é local, interno, micro e universal,
externo, macro.
A importância da militância política é inegável quando se trata da
expansão da discussão de gênero para diversos espaços de ação política
como sindicatos, associações, como também na sua inserção em
movimentos que tratam de questões fundamentais para democratização do
país, como foi o movimento pela anistia.
Outro aspecto importante que denota o papel articulador do
Movimento Feminista é quando o mesmo incorpora questões específicas de
diversos grupos de mulheres, como as lésbicas, negras e mais recentemente,
as mulheres jovens.
A dinâmica e a atualidade das reivindicações do movimento feminista
se fortalece pela construção de redes sociais, que tornam-se pontos de
resistência. As redes permitem que diversos movimentos sociais interajam e
criem um novo tipo de articulação, que tem como princípio a formação de
estruturas rizomáticas capazes de ampliar contatos, veicular informações
com rapidez e encaminhar lutas comuns.
No caso das jovens feministas percebe-se que as mesmas estão
conectadas as redes, principalmente as virtuais. A luta das jovens feministas
contempla o encontro entre as questões de gênero e juventude, e por isso
suas ações, seus discursos e as paisagens que ocupam, conseguem reunir
grupos, associações e outros movimentos para traçar um território, e, como
dizem Deleuze e Guattari (1997), há um lugar no território onde as forças se
reúnem, e é nesse lugar que os movimentos em redes, em manifestações
públicas, protestos, trazem uma questão tão importante a todos, o “comum”
(PELBART, 2002).
O Movimento Feminista, neste início de século, faz a política de
conjunto em mobilizações de esfera pública (SCHERER-WARER, 2006)
como, por exemplo, a Marcha Mundial de Mulheres.
1033
A visibilidade e a repercussão da Marcha pode ser observada através
da sua presença em 159 países, com cerca de 600 grupos participantes.
Funciona com comitês, grupos de trabalho e uma coordenação local, em
cada país formada por grupos feministas afiliados.
A Marcha Mundial de Mulheres é um exemplo de espaço de conexão
que agrega diversos movimentos e, no Brasil, sua coordenação reflete essa
multiplicidade quando na sua composição reúne grupos feministas, setores
ou comissões de mulheres do movimento sindical do campo e da cidade, do
movimento popular e do movimento de moradia. Essa articulação é facilitada
pelas novas tecnologias de informação e comunicação, pois em rede cada
participante tem trânsito, proximidade e torna-se um criador e receptor ativo
de informação.
No Brasil a Marcha é um espaço que estimula a criação de grupos de
jovens feministas, onde estas ativistas podem traçar seus percursos, compor
seus mapas, demarcar seus territórios. A presença das jovens feministas na
Marcha, marca seus espaços, aqui espaço tem o sentido de lugar praticado,
cruzamento de móveis (CERTEAU, 1999). Nesse sentido mobilizações como
a Marcha e o Fórum Social incentivam a repensar as ações coletivas.
O Fórum Social Mundial (FSM) é uma tentativa de colocar os
problemas políticos, económicos e sociais em uma escala global, sem reduzir
os movimentos a uma frente com um único programa, mas fazer emergir lutas
coletivas que fortaleçam suas táticas ofensivas e organização.
(www.forumsocialmundial.org.br).
Desde a sua primeira versão, em 2001, o FSM teve também o sentido
de interação, de desenvolver uma agenda comum, mas respeitando o
diverso, o diferente, além de restabeler os sonhos com o tema de reflexão
“Um Outro Mundo é Possível”.
A multiplicidade e pluralidade tornam-se então a mola-mestra do
Fórum Social Mundial, aglutinam grupos, movimentos sociais e ONGs.
O Acampamento Intercontinental da Juventude, dentro do Fórum
Social é um espaço coletivo onde a diversidade se expressa através dos
pensamentos políticos, do gênero, cor/etnia, orientação sexual,
indumentária, bandeiras, e representações partidárias.
Os protestos da juventude durante o Fórum no início do século XXI,
contra a globalização, nos remete aos anos de 1960, lembrando de um marco
do papel político da juventude, e das mulheres, mas também nos conduz ao
mundo virtual, apresentando novas táticas utilizadas na comunicação via
internet, apontando assim como as mulheres jovens se apropriam de novas
tecnologias para organizar-se em redes e para recriar os recursos a favor de
ações afirmativas.
3. As Jovens Feministas e as Novas Formas de Comunicação
As redes como espaços públicos possibilitam formas de interação
política, social, mas também tornam-se um espaço de atuação cidadã,
militante, consumidor, produtor, distribuidor (MACHADO, J., 2005). A rede
1034
das jovens feministas denominada “Articulação Brasileira de Jovens
Feministas” anuncia seu caráter democrático e diverso quando se declara
suprapartidária, anti-capitalista, anti-racista, anti-patriarcal, anti-lesbofóbico,
não sexista, não adultocêntrica, não confessional, não hierárquico e não
governamental. Sua estrutura inovadora articula mulheres jovens de diversas
organizações e movimentos: negras, lésbicas, indígenas, quilombolas,
rurais, da periferia, sindicalistas e de populações tradicionais e provenientes
de diferentes regiões do Brasil.
Esses formatos de organização e mobilização mostram que, tanto ao
nível local como global, os movimentos sociais estão presentes nas diversas
realidades, mas com uma nova estética. Para CALLE (2007) existe um novo
ciclo de mobilização, com uma renovação profunda do sentido das ações
coletivas, e isso é visível na linguagem, nos símbolos, discursos, propostas,
nas ações, nas ferramentas de comunicação e até mesmo nas novas
estruturas.
Ao analisar os impactos dos movimentos sociais Calle (2007) observa
que os movimentos são construtores de novas culturas políticas e de
socialização para seus ativistas. E, através das redes e campanhas
internacionais, os movimentos globais estão tendo um papel importante na
alteração do mundo de referência das pessoas quando propõem por
exemplo, um consumo alternativo ou uma linguagem não sexista.
As redes sociais são sistemas organizacionais com capacidade de
reunir indivíduos e instituições, em torno de objetivos e/ou temáticas comuns.
Alguns movimentos juvenis têm se caracterizado por se afirmar sob
outro domínio. A rede pode ser um espaço propício para articular novas
formas de organização, pois cria possibilidades de abertura para articulação
de saberes e partilha de interesses e informações.
Na rede, os movimentos aprendem uma nova linguagem, uma outra
forma de comunicar-se, criam canais de interação, expandem vínculos
sociais. Como diz Pinheiro, “as redes trazem com elas o sonho de democracia
plena onde tudo se conecta e qualquer um pode ser o nó em algum momento,
seja na emissão ou na recepção” (2007, p:19), mas, esse modelo de
comunicação de muitos para muitos, como afirma Castells, tem diferentes
formas de usos e propósitos, assim como, “diferentes alcances da variação
social e contextual dos seus utilizadores” (2002, p.476).
Os movimentos sociais em rede utilizam a internet como ferramenta
para disseminar informação, divulgar suas ações, comunicados, denúncias,
para promover campanhas, mobilizar coletivos, mas também para se
conectar com outras redes e movimentos internacionais que, de outra forma
seria muito difícil acontecer. Embora Castells coloque que os movimentos
sociais estão cada vez mais integrados em redes e também com formas de
organização e intervenção menos centralizadas.
O uso das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) tem
redimensionado o sentido de tempo e espaço. As novas mídias, a
1035
apropriação de novas tecnologias, tem de certa forma democratizado alguns
meios de comunicação, e isso permite divulgação, criação e produção de
idéias e trabalhos individuais e coletivos. Através desses meios as
associações se conectam em circuito e de forma rizomática rompem as
fronteiras da sua comunidade, da sua cidade.
Ao romper fronteiras as jovens persistem na busca de espaços de
interação, e a Internet com seus recursos cria possibilidades de
comunicação, informação através do blog, por exemplo ou de formação de
“comunidades virtuais”. Nestes espaços, o encontro das pessoas ocorre a
partir de interesses comuns, quando tem oportunidade de participar,
conforme a comunidade, de discussões sobre os mais variados temas, tudo
feito através da comunicação por meio eletrônico.
O blog é um site com enfoque em um determinado tema que permite a
atualização rápida de notícias, comentários, que são organizados de forma
cronológica inversa, combina imagens, textos e links. O Blog “Diálogo Jovem”
é uma agência de notícia que veicula informações sobre eventos, idéias das
jovens feministas, vinculado a Articulação Brasileira de Jovens Feministas.
As denominadas “comunidades virtuais” oferecem aos seus
participantes um lugar, independente da geografia, um espaço virtual que se
“concretiza” de qualquer computador com Internet, que por sua vez, permite o
uso ágil do tempo, pois a comunicação é rápida e ainda, de baixo custo.
Apropriadas desse espaço, as jovens conseguem manter uma comunicação
diversa e percorrer uma multiplicidade de temas.
Ao percorrer as comunidades relacionadas ao feminismo,
encontramos no Brasil grande número delas, e percebemos, pelas
fotografias, que essas comunidades são formadas essencialmente por
jovens, destacando-se a quantidade de membros das mesmas. Para
reforçar a afirmação, selecionamos sete comunidades: Jovens Feministas
que possui 1.195 membros, Feminismo e feminista 12.089 membros, Prática
Feminista 3.459 membros, Feminismo 3.741 membros, Feminismo e
Libertação 1.349 membros, Feminismo não é sexismo 1.229, Feminismo
para mudar o mundo 1.080 membros.
Esses novos espaços têm viabilizado a comunicação entre
movimentos, grupos, pessoas, pois a partir deles se desenvolvem teias de
relações, redes de discussões, lugar para compartilhar experiências,
conhecimentos, emoções, sensações.
Essa noção de comunidade virtual não se aplica a comunidade com
sentido de solidariedade, do “tipo ideal” de Weber (1987), mas também não
exclui o pertencimento e a relação entre seus participantes.
Recupero (2001) problematiza o conceito sociológico clássico de
comunidade em Weber, Tönies, e Durkheim e a concepção de comunidade
virtual. A autora trabalha as mudanças do sentido de comunidade na
sociedade moderna e evidencia os fatores para mudança do sentido de
comunidade que ocorrem na prática no decorrer da história, identificados por
1036
diversos autores, como o advento da urbanização, industrialização e o
individualismo cultivado nas cidades modernas.
Sobre a comunidade virtual e sua influência na vida real Recupero
(2001) afirma em seus estudos que:
(…) grande parte dos laços sociais forjados no ciberespaço sejam
transpostos para a vida offline das pessoas. No entanto, esses laços
continuam a ser mantidos prioritariamente no local onde foram forjados:
na comunidade virtual. E mesmo assim, alguns destes laços podem
nunca passar para o plano offline, devido à distância geográfica. O que
nos interessa, e que cremos que é importante, é não somente analisar
como se formam esses laços on-line, mas também em que medida
afectam a vida offline das pessoas. A comunidade virtual pode ser
estendida ao espaço concreto, mas continuará tendo seu virtual
settlement no ciberespaço. E continuará como um espaço social onde as
pessoas poderão reunir-se para formar novos laços sociais (p.7).
A proliferação da internet propicia um novo sentido de encontro, ela se
torna convidativa para as jovens pela sua facilidade de comunicação, pelo
fascínio de romper barreiras e fronteiras, e ainda por se sentir acolhida em
uma comunidade por identificação de idéias, estilo, credos.
A comunidade virtual compartilha informações, e, de certa forma, se
coloca entre o espaço real e o virtual, seus formatos permitem encontros
presenciais ou não. As listas de discussão, por exemplo são ferramentas que
viabilizam a troca de mensagens via e-mail entre todos os membros do grupo.
Esse grupo tem suas normas de acesso, a entrada no grupo requer um
cadastramento, a aceitação do moderador. A comunicação tem flexibilidade
em vários aspectos, inclusive no tempo, pois para receber as informações
não é necessário que os participantes estejam conectados ao mesmo tempo.
Tem ainda a opção de bate-papo, mas só ocorre com adesão de cada
membro.
Além da lista de discussão tem o fórum de discussão, a árvore, sites
de relacionamento como orkut, MSN, MySpace, redes para criar amizades e
manter relacionamentos com grande adesão de jovens. A internet é uma
ferramenta para mobilizar protestos, articular reuniões e festas. Como por
exemplo, no convite a seguir:
Dia 12 de outubro vai rolar a terceira edição da festa "SOMOS TODAS
PECADORAS". Em breve informaremos todos os detalhes!
AGUARDE!!!! Saudações Feministas,
Jovens Feministas de São Paulo e Associação Frida Kahlo
(http://jovensfeministasdesp.blogspot.com/).
O acesso e domínio das novas ferramentas de comunicação estimula
a articulação das jovens feministas a desenvolver atividades diversas, como,
por exemplo, três Seminários Virtuais de discussão. O primeiro seminário
teve como tema: “Existe um projeto feminista para a transformação social?
(22 de outubro a 5 de novembro de 2007), o segundo: “Existe um projeto
1037
feminista para a transformação social? Interculturalidade e Feminismos” (11 a
17 de agosto de 2008) e o III Seminário Virtual REPEM para Jovens
Feministas:” Existe um projeto feminista para a transformação social?
Jovens, diversidades e projeto feminista. Encontros e Desencontros”
(17 e 26 de julho de 2009).
A divulgação de eventos torna-se muita mais rápida e a convocação
mais eficiente. O I Encontro Nacional das Jovens Feministas ocorrido em
2009 no Ceará mostra como é possível veicular informação em todo país.
Como podemos perceber, as jovens feministas estão rompendo
fronteiras, ocupando diferentes espaços, mantendo interlocução com
organizações governamentais e não governamentais, interagindo em dois
campos: gênero e juventude.
4. Significado Político do Ativismo das Jovens Feministas
O que mobiliza o ativismo político, ou a militância política, são
principalmente, dois fatores. Por um lado, as situações cotidianas que mexem
diretamente com a vida, o intolerável que atravessa a sociedade e se
concretiza na experiência da exclusão, da exploração, opressão, divisão,
preconceito, discriminação, injustiça, desigualdade social. Por outro lado é a
crença no poder do coletivo, como disse a entrevistada:
“Eu acredito que a opressão das mulheres e as desigualdades da
sociedade não são processos individuais, mas uma forma de organização
da sociedade que está toda errada. Por isso eu não acho que a solução
pode ser uma solução individual, tem que ter um processo coletivo, tem
que ter um movimento, sujeito coletivo, um sujeito histórico, pra fazer com
que todas as mudanças que nós queremos aconteçam. E eu acho que a
construção de um movimento social, pra ser mais forte, maior, e conseguir
atingir os objetivos, deve ser muito coletiva e bastante horizontal. As
praticas coletivas são um caminho pra fortalecer essa idéia de sujeito
coletivo. Ao mesmo tempo em que quando a gente constrói os processos
de maneira coletiva, a gente se fortalece como grupo, mas também como
indivíduos, e no caso do feminismo, eu acho que as práticas coletivas são
fundamentais pra gente conseguir construir uma prática feminista em
nossas próprias vidas... ” (Entrevistada da MMM – BR).
Essa percepção é um ponto de partida na busca de espaços de
passagem, ela suscita questões fundamentais para intervir, para pensar o
novo, romper com determinados discursos que naturalizam a miséria, a
violência, a dominação, mas tudo isso não seria no plano individual, e sim, em
um projeto coletivo.
Ao perguntar sobre o significado político e social de sua participação,
as respostas por diversos caminhos apresentam um discurso sobre a
potência do coletivo que converge para um mesmo desejo – construir uma
nova sociedade. “Não sei se o meu pequeno contributo ajuda a melhorar
coisa alguma. As estruturas que quero derrubar são demasiado poderosas.
Sozinha não consigo”. (Entrevistada da MMM - PT).
1038
O Movimento Feminista representa, para as ativistas, espaços de
construção de desejos, de recusa a exclusão, desigualdades, espaço onde
conseguem expandir-se, podem agir, lutar e produzir realidades novas,
modos de relação consigo e com o outro e de sentir-se parte da
transformação social.
Mesmos os sonhos pessoais fazem conexão com suas lutas, e, como
diz Deleuze (1997), nunca se deseja algo sozinho, o desejo é sempre em um
conjunto, portanto estudar é algo que vem associado a outras questões, pois
desejar tem o sentido de construção, de construir um conjunto. As
entrevistadas ao mencionar o desejo de ter uma pós-graduação, autonomia,
ou um trabalho que lhes dêem prazer, além de condições financeiras, esses
projetos não estão dissociados das lutas nas quais acreditam.
Nos sonhos, denominados nas próprias entrevistas como sonhos
coletivos, reaparece a transformação social, o desejo de uma sociedade
diferente da atual e, como militantes, se sentem parte da construção dessa
mudança. “Quero continuar sempre a ter esperança numa sociedade
(portuguesa/transnacional) mais justa e solidária” (Entrevistada da MMM –
PT).
Para finalizar trazemos a luta pelo direito à felicidade dos militantes,
expresso nos desejos e sonhos de uma das entrevistadas.
“Eu realmente quero contribuir pra mudar o mundo, porque eu não vejo
como ser totalmente feliz em um mundo capitalista e machista; e eu quero
construir minha autonomia pessoal, que passa por ter relações
igualitárias com amigos e companheiros, passa por ter liberdade, mas
acho que passa muito também por superar algumas contradições”
(Entrevistada da MMM- BR).
O desejo de que fala Deleuze, não é necessariamente falta, o desejo
pode ser força, fuga, ele é relacionado a uma forma de ser e uma forma de
sociabilidade.
5. Breves Considerações
A participação das mulheres jovens não está apenas no movimento
feminista, mas em outros movimentos sociais. Ao pesquisar sobre essa
participação, pudemos verificar que as mulheres jovens ativistas dos
movimentos ainda não estão suficientemente envolvidas em ações voltadas
para as questões de gênero, e isso é retratado no nível de envolvimento,
apontado por militantes, ainda como muito tímido. A participação das
mulheres jovens se caracteriza principalmente pelo ativismo político, ainda é
uma minoria que chega a liderar os movimentos.
Uma situação que nos chamou atenção na pesquisa é que os
movimentos têm trabalhado separadamente as questões ligadas a gênero e
juventude. Dessa forma, as mulheres militantes, quando jovens, ou estão
voltadas para lutas específicas da juventude ou das mulheres. Essa questão
é importante porque a juventude não pode ser vista como una, homogênea,
universal, da mesma forma, as mulheres tem questões singulares com
1039
relação a classe, etnia, geração. Nos próprios movimentos sociais onde
predominam homens, há dificuldades de participação das mulheres e isso se
agrava quando elas são jovens,
As mudanças ocorridas com relação aos direitos das mulheres no
século passado caminham lentamente nos movimentos sociais, mas novos
formatos, novas mobilizações estão surgindo para revitalizar os movimentos
sociais.
No movimento feminista as jovens tiveram como ponto de partida a
Marcha Mundial de Mulheres. Mesmo com todas as dificuldades impostas
pela geração, pela cor, pelo sexo, pela orientação sexual, por ser do campo
ou da periferia das cidades, há um crescimento de grupos de mulheres jovens
trazendo questões como violência, discriminação, sexualidade, e tem havido
uma interface com o tema juventude. No site da Articulação Brasileira de
Jovens Feministas escrevem que “as mulheres jovens possuem
especificidades que devem ser visibilizadas nos movimentos feministas e de
juventudes” (http://dialogoj.wordpress.com/2008/03/20/jovens-feministas-
sim-com-muito-orgulho/).
Essas questões no interior dos movimentos possibilitam a ampliação
de limites, questionam as estruturas de poder dos movimentos, os saberes
constituídos e desenham novos espaços e áreas de atuação. É inegável
reconhecer a participação da juventude e o crescimento do número de
mulheres na direção dos movimentos.

1040
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1987
www.ibase.br
www.polis.org.br
www. http//unesdoc.unesco.org
1041
Yasmim Aparecida Rodrigues

1 Introdução
A história das mulheres passou muito tempo desconfigurada no contexto
histórico social. Na percepção masculina as mulheres não tinham presença
significativa, não eram figuras marcantes e muito menos desempenhavam
funções importantes no meio social, menor ainda merecedora de qualquer
registro histórico social que pudesse registrar no tempo seus feitos, tais como
a figura masculina possuía.
A mulher em sua totalidade não tinha liberdade para nada, apenas ao que lhe
era proposto fazer pela figura masculina, o qual se refere a pai ou a marido em
sua maioria, não correspondia à mulher opinar, votar, expressar em público
entre muitas outras coisas que poderiam envergonhar a figura central, a
masculina. Ao esposo deviam total submissão, respeito, dedicação, não se
sabe se o motivo de tanta afeição seria por contextos do momento ou seria por
fator educacional familiar, a tradição. Contudo às mulheres não passavam
despercebidas do olhar de algum familiar do gênero masculino tão pouco do
social crítico.
Até meados do século XIX muitas mulheres resumiam-se no espaço da casa
o qual é tido como sendo um espaço privado, restrito designado
especialmente para a mulher e o público para o homem. A mulher desse
período dominava-se rainha do lar, pois cumpria com suas atividades
domésticas, os quais encontravam o ato de cuidar, limpar, cozinhar, educar as
filhas, ou melhor, transmitir aos filhos toda a tradição familiar. Entre o cuidado
doméstico cabia-lhe a função de saciar os anseios sexuais de seus
respectivos maridos, as mulheres solteiras e viúvas realizavam atividades
correspondentes as vossas condições encontradas no contexto social.
A figura masculina voltava-se para o âmbito do público, da exposição, o que
lhe era normal, já para a mulher não, somente a mulher pública que vem ser a
mulher que atua como uma sombra, ou seja, aquela que não tem nenhum
amparo da figura masculina, esta mulher dita pública transita sem ser citada
na história, por ser uma simples lavadeira, cozinheira, ou passadeira nas
casas de família burguesa.
A luta feminina dentre estes anos todos buscou encontrar um lugar para a
mulher no espaço público, lugar de reconhecimento da sua figura no social,
anteriormente esta se restringia ao privado. Contudo não se vê uma
inquietação em buscar compreender qual a definição real de espaço público e
privado na perspectiva feminina. A luta por afirmação de seu espaço, de sua
presença tomou o primeiro passo foi no século XIX, quando houve a
_____________________________________________________________

1
Acadêmica do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão – UFMA

1042
necessidade de substituição da pessoa masculina nas fábricas, indústrias e
também no social político, quando estes foram direcionados para a guerra
mundial.
Esse foi um ponto de partida que a mulher precisou para colocar-se em cena
na sua própria história. Muito tempo foi vista como ser frágil, não pensante,
em termos é verdade, pois quando são se tem motivos para se permanecer
lutando, em busca de conquista, torna-se tanto o homem quanto a mulher ser
fragilizado, até mesmo inútil e fora de cena na história.
Partindo dessa perspectiva histórica de lutas e conquista pela categoria
feminina que se buscou desenvolver este trabalho tomando como foco a
análise da definição desses espaços públicos e privados, o que nos remete a
algo muito mais abrangente que simples definições teóricas.
A invisibilidade e o silêncio das mulheres eram elementos determinantes na
constituição de muitas sociedades. Está reservado para elas o espaço dito
privado, ou seja, o confinamento em casa. Sua aparição e fala no público
segundo Perrot (2007) causava medo fora que é visto como ato indecente;
espaço designado aos homens, às mulheres não eram mais que uma
penumbra posta.
As relações entre os gêneros feminino e masculino começam a ter suas
primeiras coalizões em meados do século XVIII, no qual as mulheres estão
mais relevantes a ocupar o espaço dos homens, o público devido a ter uma
crescente parcela de mulheres da elite com um grau de conhecimento mais
aberto que outras. Produzindo assim em suas mentes pensamentos
relacionados com seu cotidiano, suas inquietações perante a sua posição
ocupada na sociedade, sua condição de indivíduo invisível em frente ao
homem.
A presença dessas mulheres burguesas nesses espaços masculinos foram
motivos de afronta a pessoa de respaldo familiar. Para a categoria masculina
a presença feminina no público sempre foi um problema, para eles quando
esta se faz presente em seu meio causa desordem, produz incômodo, e foi
isso que fizeram estas mulheres e continuam a fazer incomodar para bens
comuns a sua categoria.
2 Perspectiva de espaço público e privado
Na perspectiva de Perrot o público tem dois sentidos, primeiro recorre a
“esfera pública”, por posição à esfera política privada, que designa o conjunto,
jurídico ou consuetudinário dos direitos e deveres de uma cidadania, em outra
significância mais concreta o “espaço público”, é um espaço sexuado no qual
tanto homem quanto as mulheres ao mesmo tempo em que se encontram se
evitam e também anseiam por uma procura, que é constituída por interesses
de se promover uma relação de dualidade de corpo, ou seja, uma relação
amorosa tanto conflituosa, dinâmica e indiferente, porém bem presente, ou
1043
seja, a mulher nesse aspecto tem uma significância.
Perrot nos fala em Mulheres Públicas (2007), que os homens são os senhores
do privado em especial da família os quais ele próprio designa as mulheres o
que devem fazer no cotidiano. Aqui se percebe não há um espaço definido
para a mulher, no qual esta deveria ser a única a opinar, dar voz, já que é seu
espaço, isso não acontece nem no público e nem no privado, devido sempre
existir por trás de uma fala feminina ter um eco masculino de modo direto ou
indireto que a interfere.
Nem mesmo o corpo da mulher é um âmbito privado, sob ela o homem teve
domínio por um bom período de tempo por ser figura de segundo plano no ato
da história, isso em percepção masculina. Busca-se mostrar que a mulher
precisou primeiramente cortar o vínculo sexual com o sexo masculino para
depois iniciar sua luta em afirmação de seu espaço em ambas as categorias.
O público em outras pesquisas literárias refere-se a tudo aquilo que se faz
necessário ser mostrado, ou seja, que possui valor, independente de tempo
cronológico ou contexto social. O qual produz uma transcendência por parte
dos indivíduos. O privado diz respeito como são sendo digno de ser revelado,
posto em exposição, e sim necessário permanecer guardado, reservado.
Embora a história tenha representado, por longo tempo, a mulher sob o olhar
androcêntrico, temos assistido e participado de outro momento na história
onde as mulheres tomam o cenário e escrevem sobre si. Com isso,
materializa-se a desconstrução deste olhar que é segundo Bourdieu (2007)
um produto da história reproduzido pela educação a qual é elemento pilar do
surgimento feminista, ou seja, a educação das mulheres deu a elas a
oportunidade de enxergar a sociedade com um novo olhar social crítico.
Contudo, a partir do feminismo difunde-se que a pessoa mulher é um
indivíduo histórico e particular.
3 As mulheres e seus espaços
Posterior a educação feminina veio a tomar espaço também, o trabalho
feminino que aos poucos passou a ter sua importância, mesmo que somente
ao olhar feminino. Com a existência do movimento feminista o
reconhecimento de seus avanços sociais tornou-se mais estruturado,
causando a cisão da imagem de seres invisíveis posta pelos homens a estas.
O movimento feminista está relacionado com a quebra de espaços, ou seja, o
público é algo livre, porém o privado é relevante a algo que se encontra
encurralado, aprisionado, assim é com a existência do movimento. Promoveu
um rompimento entre esses respectivos setores.
Segundo Bourdieu (2005) a diferença biológica entre os sexos, ou seja, entre
o corpo feminino e masculino justifica naturalmente a posição social e de
trabalho que cada um deve assumir. Acredita-se que não é elemento
1044
suficiente para afirmar ou mesmo promover tal divisão dos gêneros e nem sua
posição nos âmbitos sociais. Caso fosse assim, a mulher não teria a
necessidade de por se em luta por afirmação de seu espaço, esta cumpriria
com seu dever de ser obediente e conformista na visão masculina, o que
deixou de ser a muito tempo.
No olhar de Michelle Perrot as mulheres sempre tiveram lugar mesmo,
trabalhando sem ser assalariadas, é pertinente saber que o salário
corresponde à menor parcela do trabalho desenvolvido, o que não foi tão
almejado pelas mulheres, mas sim o reconhecimento a afirmação de seus
espaços pelos sexos. Possuem reconhecimento de Perrot desde as mais
simples funções, como as camponesas, as donas de casa, a empregada
doméstica, as operárias, até o surgimento de novas profissões.
No século XIX as mulheres tornam-se figuras progressistas, em busca muitas
conquistas, o mercado de trabalho muito as atraia, profissões modestas,
porém de grande relevância na história. Os espaços que as mulheres da elite
passaram a presenciar correspondiam aos salões de chás, aos magazines e
a igreja. Com o tempo foram progredindo ao espaço masculino, no qual
causaram movimentação e certos entraves contra a presença da figura
feminina nesses espaços.
A partir dessa entrada da mulher nesses setores pelo meio do trabalho
propiciou o início do movimento de mulheres em busca de seus ideais
igualitários aos homens. Para falar do movimento feminista tem-se que
conhecer sua definição, o qual na perspectiva de Auad (2003) é um processo
de liberação de homens e mulheres, numa perspectiva dinâmica de crítica
global ao sistema dominante na sociedade, na economia, na política, na
cultura em geral. O feminismo tem com objetivo o compartilhar do poder entre
mulheres e homens e não a centralização por uma das partes.
A invisibilidade feminina no âmbito público é pertinente a não participação
desta, cuja é garantia marcante da presença do individuo. E a relação de
poder sustentada pelo androcentrismo que há entre a esfera pública e privada
tem tomado contrapartida o privado, fazendo com que este se-torna elemento
fundamental de sua existência. Na teoria e na prática ocorre o mesmo com os
gêneros.
O ser humano que vive na esfera privada, “não se dá a conhecer e,
portanto, é como se não existisse. O que quer que ele faça permanece
sem importância ou conseqüência para os outros, e o que tem importância
para ele é desprovido de interesse para ele.” (Arendt, 1975, p.68)

4 Feminismo: principais questões de luta


Não se deve associar feminismo a todas as mulheres, pois ainda há pessoas
que não sabem o que foi e continua ser este ato histórico, sua importância,
muitos tem como um ato revolucionário, de rebelião por parte das mulheres
1045
em relação à dominação masculina, que para este termo Bourdieu tem uma
crítica posta.
A dominação masculina, que constitui as mulheres como objetos
simbólicos, cujo ser (esse) é um ser-percebido, tem por efeito colocá-las
em permanente estado de insegurança corporal, ou melhor, de
dependência simbólica: elas existem primeiro pelo, e para, o olhar dos
outros, enquanto objetos receptivos, atraentes, disponíveis. Delas se
espera que sejam “femininas”, isto é, sorridentes, simpáticas, atenciosas,
submissas, discretas, contidas ou até mesmo apagadas. (Bourdieu, 2005,
p.82)

O termo feminismo é não muito conhecido em sua paternidade,


precisamente atribuem a Alexandre Dumas Filho, em 1872 de maneira bem
pejorativa, o feminismo era a doença dos homens suficientemente
“efeminados” para tomar partido das mulheres adúlteras, em vez de vingar a
própria honra. Em 1880, Hubertine Auclert, sufragista francesa, declara-se de
forma orgulhosa ser “feminista”. Com a mudança do contexto histórico foram
dando novas interpretações ao termo feminismo.
O feminismo na perspectiva de Perrot atua em movimentos súbitos, em onda,
e é intermitente, sincopado, mas ressurgente, porque não se baseia em
organizações estáveis capazes de capitalizá-los. É um movimento e não um
partido, mesmo tendo fases de frustrações, o qual não teve um local próprio
pra realização de suas reuniões, o que era feito na maioria em qualquer
espaço desocupado, dentro de algumas casas de mulheres que ingressavam
junto ao movimento.
Com o tempo as sociedades foram se estruturando e em passam a surgir às
associações pelo “direito ao sufrágio” entre outras associações direcionadas
para a sociedade européia que posteriormente foi tida como incentivo de
mudança, de luta. As principais ações do feminismo foram à utilização do
abaixo-assinado, manifestações que aos poucos foram se fortalecendo.
Nos anos 1971-1975, o Movimento de Libertação das Mulheres coloca as
mulheres na rua, de Berlim a Paris, e em todo mundo ocidental, até mesmo
em Tóquio. Desta forma conclui-se que se havia formado uma massa
feminista, a qual era conhecida e que não geravam mais medo as mulheres
em serem reprimidas. O feminismo só se propagou mediante até em sua
composição pessoas de personalidade forte, voltadas realmente a buscar por
seus direitos, são militantes que partiram da burguesia e até mesmo a
aristocracia, todas merecedoras reconhecimento por sua posição de
vencedora.
O movimento feminista iniciou com a mulher burguesa passando por mulher
operária, costureira, doméstica, professora, advogadas, intelectuais e
também mulheres religiosas entre tantas outras. Na segunda metade do
1046
século XX, mas precisamente as após 1970, o feminismo luta pela “liberação”
das mulheres e de modo conjunto pela igualdade na diferença. Onde as
mulheres não redescobrem, mas passam a conhecer verdadeiramente seu
corpo, o sexo, o prazer, a amizade e o amor, tidos anteriormente como
propriedade masculina; essa descoberta feminina remete ao surgimento de
uma relação entre mais intima entre as mulheres; o lesbianismo, o qual se
renova o pensamento do gênero.
As principais reivindicações feministas procedem primeiramente do direito ao
saber o qual não abrange à educação, mas à instrução, sendo que é a mais
antiga das reivindicações, a qual é acompanhada de um imenso esforço de
apropriação como a leitura, a escrita dando acesso à instrução. O direito ao
trabalho, ao salário, aos ofícios e as profissões comporta dimensões que são
ao mesmo tempo econômicos, jurídicas e simbólicas com diferenças sociais
evidentes. Ao contrário da classe burguesa, a popular necessita do salário
das mulheres, mesmo considerando como um “trocado”. O trabalho
assalariado desenvolvido pela mulher popular é um ato discriminatório e
também é tido como desconforto, e quebra do laço familiar, em síntese é uma
vergonha social.
Os direitos civis também fazem das reivindicações, pois aos maridos
centralizava todos os direitos da esposa, mulher casada, estas lutavam por
liberdade ao direito do divórcio, ao trabalho, igualdade em comunhão de
bens, pelo sobrenome entre outros direitos jurídicos.
Os direitos políticos encontram-se divididos em três principais facetas: o
sufrágio, a representação, o governo. O primeiro lugar a conceder o direito ao
voto feminino foi região da Finlândia no ano de 1901, e posteriormente em
outras regiões. A religião teve sua parcela de contribuição ao movimento,
contudo o feminismo protestante esteve de maneira mais ativa no ato do
sufrágio, em relação ao católico e latino estabelecidos.
Entre tantas reivindicações também é necessário incluir as voltadas para a
valorização do corpo feminino, o respeito, a liberdade destas em escolher de
ser ou não uma figura reprodutora. Pois estas estiveram voltadas por muito
tempo a satisfação do desejo masculino tanto dentro do âmbito familiar
quanto em relações externas. Estiveram prisioneiras a uma permanente
estética; impecável presença, mesmo que em termos simples, como no caso
das mulheres de baixo nível econômico.
5 Feminismo no Brasil
Em toda a historiografia brasileira não se tem registro da atuação de
grupos feministas organizados antes e nem ao longo do século XIX, contudo
existiu uma série de manifestações relacionadas. Já nas últimas décadas do
século xx, as mulheres brasileiras ampliaram seu acesso ao espaço público,
conquistaram posições na administração de governos, aumentaram a
1047
escolarização, qualificação profissional, realizaram descobertas nas diversas
áreas do conhecimento, dentre outras conquistas notáveis.
As feministas brasileiras permaneceram isoladas por muitos anos e
nunca se beneficiaram da participação plena na agitação de movimentos
sociais, como as dos Estados Unidos nos meados do século XIX. Como os
membros masculinos da elite brasileira, elas deram menos relevo a reformas
sociais.
O movimento feminista aparece no Brasil somente a partir de meados
dos anos 70, tendo como marco a publicação dos jornais Brasil Mulher em
1975 e Nós Mulheres em 1976. A afirmação da esfera pública e política pelas
mulheres, contudo, esteve sempre incorporada às lutas por uma cidadania
construída em uma perspectiva patriarcal, a partir da imagem masculina,
confirmando-as a uma cidadania de “segunda classe”, que as excluiu dos
espaços de decisão até bem recentemente. O lugar da mulher na participação
política ainda é um dos temas mais discutidos na sociedade atual; a
invisibilidade secular de sua presença no âmbito público político é explicada
através de suas práticas tradicionais como dona-de-casa, de modo que a
mulher sendo uma excelente rainha do lar, assim esta também correspondera
ao político.
Revela a história que a luta das feministas brasileiras vem desde o
final do século XIX; sendo divulgado por meios de comunicação como os
jornais da época editados muitas vezes por elas mesmas e por artigos que
escreviam.
As primeiras organizações feministas a princípio tinham um reconhecimento
limitado entre a elite que mais adiante seria de grande importância para a
evolução do movimento. O movimento era composto por mulheres das mais
distintas classes sociais, todavia tinham um objetivo em comum; a igualdade
entre os gêneros, que passaria de um simples objetivo a se tornar um
benefício para todas as mulheres, o que resultaria em um marco inesquecível
para a história da sociedade brasileira.
Os sinais do pensamento e das atividades feministas iam surgindo entre as
mulheres do Brasil em meio à primeira metade do século XIX, tendo como
principal destaque do período e uma das primeiras feministas brasileiras;
Nísia Floresta Brasileira Augusta nascida no Rio Grande do Norte em 1809.
Assim como Nísia Floresta, outras mulheres desempenharam papéis de
suma importância em organizações, porém havia mulheres que se
contentavam com a vida que estava destinada. As mulheres que não torciam
o braço para essa vida medíocre se juntavam em associações voluntárias em
exemplo tem-se a Campanha Abolicionista em que se viu a prontificação de
várias mulheres em busca de arrecadação de fundos, meios para que os
escravos adquirissem sua liberdade Luiza Regados foi uma abolicionista que
1048
muito contribuiu para com essas organizações.
Entre as primeiras organizações femininas fundadas nas diferentes cidades
brasileiras incluem-se a Sociedade da Libertação, a Sociedade Redentora,
estabelecida em São Paulo , em 10 de julho de 1870 , sob a inspiração de
Martim Francisco, Ave Libertas, sediada no Recife em 20 de Abril de 1884 e o
efêmero Clube José do Patrocínio no Rio.
O feminismo aos poucos vinha evoluindo e com ele o desenvolvimento da
imprensa feminina que foi mais uma conquista das mulheres no Brasil. Os
jornais serviram como meio de transição de idéias e informação entre as
classes letradas. As feministas consideraram a imprensa um meio importante
de difusão do saber; insistiram em que as mulheres lessem jornais para
conhecer mais quais eram seus direitos e obrigações como cidadã.
A partir da década de 1870 começam a surgir novos jornais fundados por
mulheres devido ao crescimento que estava ocorrendo em muitas cidades
brasileiras, onde melhor oferecia oportunidades educacionais; a princípio, as
editoras feministas ressaltaram a importância da educação para as mulheres,
de benefício tanto para elas quanto para o progresso do país.
Francisca Senhorinha da Motta Diniz dedicou O Sexo Feminino a três
princípios “a educação, instrução e a emancipação da mulher”. Ela acreditava
ser a mulher “dotada com as mesmas faculdades do homem, com a
inteligência e com a razão estava aberta a receber o cultivo das letras, das
artes e das ciências, para ser útil a pátria e a desempenhar a sua missão na
sociedade”.
Francisca Diniz argumentava em seu jornal que era mais lucro as moças
aprenderem a ler e a escrever em vez de aprenderem a costurar, lavar, passar
e a cuidar da casa, pois para ela as mulheres tinham um grande potencial a
ser conquistado; incentivava-as a buscarem a sua igualdade entre os
homens.
“Através do trabalho e da educação correta, as moças poderiam adquiri
meios de obter o necessário a subsistência e até fortuna tornando-se
independentes do homem”. (Ibid. Abril de1881. p.27,29).

A idéia essencial defendida por Francisca é de que a dependência


econômica determinava a subjugação feminina e de que uma educação
melhor poderia ajudar a elevar o status da mulher. Ela estava convencida de
que a sociedade não se regeneraria até que todas as mulheres tivessem uma
educação completa; afirmando que a fé do progresso estava no poder da
educação.
Outras editoras de jornais feministas, como Violante Atabalipa de
Bivar e Vellasco em O Domingo e Amélia Carolina da Silva Couto no Echo das
Damas, defendiam as mulheres brasileiras e seus direitos com muitos dos
1049
mesmos argumentos usados por Francisca Senhorinha da Motta Diniz no
jornal O Sexo Feminino. Para D. Violante, a profissão principal da mulher
ainda era “amar e agradar os homens”, ser esposa e mãe, porém, essa não
fosse sua única profissão.
A proporção de mulheres alfabetizadas no Rio de Janeiro em 1872 era de
29,3%, subiu para 43,8% em 1890. Com isso houve um aumento no número
de mulheres que passaram a editar e a escrever jornais, isso nos revela que a
cada dia iam progredindo na sociedade entre os séculos XIX e XX em virtude
da garra, ousadia, coragem de um pequeno grupo de mulheres não satisfeitas
com a vida que levavam, despertaram para a realidade e perceberam que
havia um desequilíbrio social.
Suas principais conquistas foram; ter o direito a educação, construção de
escolas só para moças, o ingresso na imprensa, o direito ao divórcio, a
oportunidade de ingressarem em curso superior e no mercado de trabalho
mesmo ganhando inferior aos homens já era uma honra, por último a
conquista do voto feminino e em mais adiante passará ter o direito de se
candidatar para a Assembléia.
Apesar de muitos obstáculos, algumas brasileiras seguiram a vanguarda da
Dra.Maria A.G.Estrella; em 1887, Rita Lobato Velho Lopes tornou-se a
primeira mulher a receber o grau de médica no Brasil, tornando-se um
exemplo para as demais, mostrando que só seria possível elas aspirarem à
independência e dignidade pessoal pela instrução.
No final do século XIX, algumas mulheres não mais queriam apenas respeito,
tratamento favorável dentro da família ou direito à educação, mesmo sendo
educação universitária, mas sim o desenvolvimento pleno de todas as suas
faculdades, dentro e fora do lar. O voto era o ponto crucial para as mulheres;
dele dependia sua elevação na sociedade e elas sabiam que com o progresso
haveria mudanças na sociedade brasileira.
De acordo com Pinto (2003), no Brasil, a primeira fase do feminismo teve
como foco a luta das mulheres pelos direitos políticos, mediante a
participação eleitoral, como candidatas e eleitoras. Esta luta esteve
associada ao nome de Bertha Lutz, que exerceu uma inegável liderança
durante a década de 1920 e se manteve ligada às causas da mulher até sua
morte, na década de 1970.
Ainda de acordo com Pinto (2003), existiram no Brasil diferentes vertentes do
movimento feminista nas primeiras décadas do século XX. A primeira delas é
a liderada por Bertha Lutz, que tem como questão central a incorporação da
mulher como sujeito portador de direitos políticos. Os limites dessa vertente:
não define a posição de exclusão da mulher como decorrência da posição de
poder do homem. Além disso, a luta pela inclusão não se apresenta como
alteração das relações de gênero, mas complementar para bom andamento
1050
da sociedade, isto é, sem alterar a posição do homem, as mulheres deveriam
lutar para serem incluídas como cidadãs.
A segunda vertente chamada de feminismo difuso se expressa nas múltiplas
manifestações da imprensa feminista alternativa. A terceira vertente se
manifesta, inicialmente, no movimento anarquista, e em seguida, no Partido
Comunista, todas estas vertentes tem participação de mulheres simples,
porém umas com um pouco mais de intelectualidade, mais em conjunto para
um bem comum.
Pinto (2003) acredita que a relação do feminismo com o campo político a partir
de 1979, deve ser analisada sob três perspectivas complementares: a
conquista de espaços no plano institucional, por meio de Conselhos da
Condição da Mulher; a presença nos cargos eletivos; e as formas alternativas
de participação política.
Na década de 1980, o feminismo brasileiro experimentou a
redemocratização. Com o processo de redemocratização surge a seguinte
divisão entre as feministas: de um lado estavam aquelas que lutavam pela
institucionalização do movimento e por uma aproximação com a esfera
estatal e, de outro, as autonomistas que viam nessa aproximação um sinal de
cooptação.
Percebe-se que o feminismo brasileiro foi propagando-se, buscando por
espaços e também por autonomia em todas as frentes políticas, rompendo
com a principal ideologia; rebelião feminista contra a dominação
androcêntrica.
6 Considerações
A história das mulheres passou muito tempo desconfigurada no
contexto histórico social. Na percepção masculina as mulheres não tinham
presença significativa, não eram figuras marcantes e muito menos
desempenhavam funções importantes no meio social, menor ainda
merecedora de qualquer registro histórico social que pudesse registrar no
tempo seus feitos, tais como a figura masculina possuía.
O parágrafo anterior que inicia esta análise, Noé remete a pensar que
realmente as mulheres nunca estiveram presentes na história, contudo em
todo trabalho vê-se que não é assim. Por muito motivos estas tem para
escrever sua própria história. O ponto principal exposto é a definição de
espaço pela figura da mulher, conclui-se que não há uma definição
estabelecida de espaço tanto para o homem quanto para mulher, ambos se
encontram em uma continua luta por afirmação de que podem desenvolver
respectivos papéis em diferentes espaços.
O que existe não é uma definição concreta de espaços mais um
simbolismo de elementos que propiciam a definição concreta dos âmbitos,
1051
classificando os em público do gênero masculino e o privado ao gênero
feminino. Este é precedente da forma linear de construção da família a qual
prediz posição e a condição dos indivíduos dos referidos sexos na sociedade.
Perrot (2007) em seu trabalho sobre Minha história das Mulheres fala que
afirma que foi feminismo que constituiu as mulheres como atrizes na cena
pública, que deu forma a suas aspirações, voz a seu desejo; este foi um
agente decisivo de igualdade e de liberdade, de democracia.

1052
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1053
MULHER E POLÍTICA: UM BREVE BALANÇO HISTORIOGRÁFICO NA
PRODUÇÃO DO SÉCULO XX.

Silvana Oliveira Souza

Introdução
A história da luta das mulheres pela equidade de gênero afirma que o
caminho em busca da emancipação da mulher passa pela conquista e
garantia de seus direitos civis, políticos e sociais, no âmbito da família, da
sociedade e na esfera pública e, no plano cultural e ideológico, pelo combate
aos preconceitos e discriminações a que são submetidas.
As ações das feministas, voltadas para conquistas de direitos políticos
para a mulher, intensificaram-se em torno de 1918, quando Berta Lutz e um
grupo de colaboradoras como Maria Lacerda de Moura criaram, no Rio de
Janeiro, uma organização chamada Liga para Emancipação Intelectual da
Mulher, que, posteriormente, passou a denominar-se Liga pelo Progresso
Feminino. Em 1919, o senador Justo Chermont apresentou projeto de lei
estendendo o direito de voto às mulheres, não conseguindo, porém, sua
aprovação. Em 1922, devido a novas estratégias de luta, a Federação das
Ligas pelo Progresso Feminino converteu-se na Federação Brasileira para o
Progresso Feminino, cujos objetivos eram: Promover a educação da mulher
para a elevação do nível de instrução feminina; obter garantias legislativas e
práticas para o trabalho feminino; orientação às mulheres na escolha de uma
profissão; estimular e tornar interessante as questões sociais e de alcance
público para participação feminina; assegurar os direitos políticos que a
Constituição confere as mulheres e preparar-las para o exercício desses
direitos e não esquecendo a proteção as mães e a infância (HAHNER, 1981).
Neste mesmo ano, organizou o I Congresso Internacional Feminista,
no Rio de Janeiro. Coube às mulheres do Rio Grande do Norte, o pioneirismo
na conquista do direito de voto, ainda em 1927, havendo, porém, um
retrocesso nas conquistas eleitorais femininas no ano seguinte. Apenas em
1932, com o Decreto nº 21.076, as mulheres tornaram-se eleitoras efetivas no
Brasil. Conquista que, para a grande população feminina representava um
desdobramento mais que justo e coerente com os ideários da Revolução de
1930 (HAHNER, 2003).
Uma característica historiográfica dos estudos que contemplam o
período de 1930-40 é o protagonismo dos homens na história. São eles que
fazem e detém o poder de fazer, sobretudo no que tange à legislação social,
assistencial, trabalhista, os homens aparecem como os principais agentes
das mulheres sociais e políticas. Entretanto é importante salientar que para a
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1
Formada em História pela Universidade do Estado da Bahia. Mestranda em Estudos Interdisciplinares
sobre Mulheres, Gênero e Feminismo pela Universidade Federal da Bahia (PPGNEIM). Atualmente
desenvolve pesquisa sobre a participação feminina na política com o apoio da Bolsa da FAPESB.

1055
história das mulheres, as décadas iniciais do século XX, período em que
Getúlio Vargas caminhava na política foram decisivas as lutas femininas por
direitos sociais e políticos, marcando um importante momento e uma
relevante etapa das reivindicações feministas (HAHNER, 2003).
No Estado Novo os líderes do novo regime acreditavam nos papéis
diferenciados de maneira profunda entre homens e mulheres, e por isso se
mostram hostis às demandas femininas por mais igualdade. Segundo Hahner
(2003), com o Estado Novo, a reação antifeminista teria ganhado força, e às
mulheres (e os homens também) foi negada a oportunidade de exercerem
seus direitos eleitorais, mas só para elas os setores do governo se
encontrariam fechados, visto que foram proibidas de ingressar no serviço
público, espaço de atuação que havia sido conquistado pelas mulheres no
início dos anos 30.
No que tange à luta das mulheres pela emancipação social e política,
a implantação do Estado Novo pôs fim ao movimento feminista dos anos 1920
e 1930. A luta das feministas, iniciada nos anos 20, havia sido coroada na
década seguinte com várias conquistas, como o direito ao voto em 1932,
ratificado na Constituição de 1934. Esse direito permitiu que as mulheres
fossem representadas na Câmara dos Deputados por Carlota Perreira de
Queiroz, eleita deputada federal em 1933, e por Bertha Lutz, candidata pela
legenda do Partido Autonomista do Distrito Federal, como representante da
Liga Eleitoral Independente, entidade por ela criada também em defesa dos
direitos da mulher, em 1932, obteve a primeira suplência e, em 1936, ocupou
uma cadeira na Câmara, em virtude da morte do titular, deputado Cândido
Pessoa (HAHNER, 2003).
A desigual participação dos sujeitos na história política do Brasil dos
anos trinta e quarenta reflete-se na historiografia. Os homens aparecem
movimentando a história, como os protagonistas da produção historiográfica
e como os objetos mais estudados no campo histórico e no biológico. Essa
atenção maior ao sexo masculino está presente na vasta produção biográfica
sobre Getúlio Vargas e nos estudos sobre a sua trajetória política, e na
considerável produção sobre o seu governo e nos estudos biográficos sobre
os homens públicos que participavam do poder. Segundo Levi (1996, p. 180),
“a repartição desigual do poder, por mais e mais coercitiva que seja sempre
deixa alguma margem de manobra para os dominados; estes podem então
impor aos dominadores mudanças nada desprezíveis”.
As mulheres permaneceram em luta, organizadas em suas
associações, buscando avançar em suas conquistas por direitos civis,
políticos, trabalhistas. Em 1937, porém, com o golpe de Estado que instalou a
ditadura no Brasil, Getúlio Vargas extinguiu os partidos políticos do país,
incluindo, nos dispositivos legais, as organizações civis nos termos da
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2
Ver GOMES (1989); MUNAKATA (1981); SILVA (1990); MARTINS (1998) e Revista Estudos Histórico
(1997), quanto ao aspecto biográfico.

1056
hipótese expressa de registro civil. Em conseqüência, foram dissolvidas
diversas associações civis, dentre as quais a Federação Pernambucana para
o Progresso Feminino, assim permanecendo até que passasse a existir sob
diferente denominação, dentro da finalidade que voltasse apenas ao aspecto
cultural e beneficente. As mulheres da classe média e da elite urbanas se
manteriam unidas e organizadas em associações, sob inspiração da Igreja
Católica ou diretamente tutelada por ela, lutando, sobretudo pela moralização
dos costumes, pelo fortalecimento da família e pela difusão dos princípios
éticos e valores católicos, a exemplo da Campanha Pró-Decência na Praia,
iniciada no Recife, em 1939 (FAUSTO, 1981).
Um dos problemas destacado por aqueles que estudam mulher e
política é a desigual presença e participação dessas personagens no cenário
nacional e, por conseqüência, a dificuldade enfrentada para a obtenção de
fontes de pesquisa que permitem conhecer e avaliar as experiências
femininas e políticas do passado. O Governo Provisório se autodefinia como
um poder passageiro na vida política do país, havendo de ser substituído
pelos legítimos representantes da nação – segundo determinasse a
Assembléia Nacional Constituinte. A revisão da legislação eleitoral e a
elaboração de um novo código eleitoral, compromisso assumido por Getúlio
Vargas, constituíram um dos atos políticos mais importantes do Governo
Provisório. O Decreto nº 21.076, de 24 de fevereiro de 1932, regulamentava o
alistamento e o processo eleitoral no país, nos âmbitos federal, estadual e
municipal, trazendo uma série de inovações, dentre as quais se destacava o
estabelecimento do sufrágio universal e secreto. Mais ainda, o novo código
ampliava o corpo político da nação, concedendo o direito de voto a todos os
brasileiros maiores de vinte e um anos, alfabetizados e sem distinção de
sexo. As mulheres brasileiras adquiriam assim, pela primeira vez e após
árdua luta, cidadania política, contribuindo para o aumento significativo do
número de votantes no país (TABAK & TOSCANO, 1982).
Para os historiadores (as) da política, os conceitos mais
imprecisos e importantes são o de poder e de política. Segundo Foucault
(1985), o poder deixou de ser concebido como algo localizável em um
determinado centro (por exemplo, no Estado), ou pertencente e detido por
alguns. Na concepção do autor, não há, de um lado, os possuidores do poder
e, do outro, os destituídos dele, uma vez que o poder é caracterizado como
exercício e, como tal, está em constante movimento. Com base nessa
concepção de poder, Soihet (1997), elabora um aparato teórico-metodológico
para a análise da relação mulher e poder. Apoiada no argumento de Arlete
Farge (1991) que preconiza ser necessário, na análise das relações de poder,
equacionar a idéia de dominação, concebendo-a como uma relação dialética,
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3
June E. Hahner. A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850-1937. A pesquisadora frisa que “a
história das mulheres desilude-nos da noção de que a história da mulher seja a mesma que a história dos
homens, e de que os pontos de mudança significativos na história exercem o mesmo impacto num sexo
como no outro” (1981, p. 15 e 21).
1057
Soihet a interpreta afirmando que a autora evita o binômio
dominação/subordinação como único terreno de confronto para colocar no
seu lugar os complexos contra-poderes femininos: poder maternal, social,
poder sobre outras mulheres e as subseqüentes compensações no jogo das
seduções e do reinado feminino.
No que tange ao conceito de política, para Scott (1992), a
palavra carrega diversos significados e ressonâncias. A autora identifica três
deles: o primeiro pode ser uma atividade dirigida para ou em governos ou
outras autoridades poderosas, atividade esta que envolve um apelo à
identidade coletiva, à mobilização de recursos, à avaliação estratégica e à
manobra tática; o segundo é também utilizado para referir-se às relações de
poder mais gerais e às estratégias visadas para mantê-las ou contestá-las; no
terceiro, a palavra política é aplicada ainda mais amplamente às práticas que
reproduzem ou desafiam o que, às vezes, é chamado de ideologia e que, por
isso, são encarados como naturais, normativas ou auto-evidentes. Para
Scott, o emprego da palavra, em qualquer sentido, tem múltiplas
ressonâncias, produzindo narrativas políticas.
Um dos estudos pioneiros sobre o tema mulher e política é o de June
Hahner, no final do século XIX e início do XX, “a mulher brasileira e suas lutas
sociais e políticas” (1981). A pesquisadora norte-americana que se dedicou
ao exame dos movimentos pelos direitos da mulher e do movimento
sufragista no Brasil, alerta para pontos importantes no seu estudo sobre
assuntos relacionados à mulher. Considera que a desatenção ou negligência
ao sexo feminino é motivada pela história tradicional e por aqueles que a
escrevem. Desde que a cultura na sociedade sempre foi transmitida pelos
homens, a seleção dos fatos e o registro histórico obedeceram,
conseqüentemente, a uma perspectiva masculina. E tudo o que se relaciona
às atividades do segundo sexo, sem falar no seu modo de pensar e agir, seria
considerado sem significado e até indigno de menção. Sua obra é apoiada
teoricamente no feminismo e na história social, a autora apreende na
imprensa feminista do século XIX a insatisfação das mulheres como o
tratamento não igualitário presente nas leis e nos costumes que regulavam a
sociedade brasileira, bem como as estratégias de participação criadas pelas
mulheres em dois momentos; o abolicionista e o sufragista. No sufragismo, a
injustiça e a desigualdade presentes nas leis e nos costumes que regulavam
a sociedade se transformaram em bandeira de luta das mulheres, mediante o
seu efetivo envolvimento.
Nos anos de 1990, a história política e das mulheres passaram
a compartilhar alguns pressupostos que as aproximam. No que tange à
história política, a renovação verificada nesse campo do saber supressão dos
objetos e temas tradicionais, como os partidos, as grandes figuras, as
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4
Sobre o assunto ver “Nova história política”, REMOND (1996) e FALCON (1997).

1058
instituições, mas quanto à forma de trabalhá-los, que está sendo enriquecida
por novas perspectivas de análises e abordagens.
No âmbito da história das mulheres, M. Perrot (1995, 1998) e J.
Scott (1990, 1992, 1994) são algumas das defensoras da ampliação do
campo de análise da relação das mulheres como o poder e com a política.
Esses estudos, embora partam de interpretações diferentes acerca do
feminismo na história e na historiografia, norteiam esta investigação.
As estratégias desenvolvidas pelas mulheres para a conquista
de direitos políticos ou da cidadania constituíram um dos principais eixos dos
estudos sobre a atuação feminina na vida pública e na participação política.
Na produção acadêmica, sobretudo a partir da década de 1980, observa-se a
utilização da vertente biográfica nos estudos. São vários os trabalhos
produzidos nessa perspectiva metodológica, dentre os quais o de Rachel
Soihet (1974); “Bertha Lutz e a Ascensão social da mulher”; Miriam Lifchitz M.
Leite (1984), “Outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura”; e ainda o
de Mônica R. Schpun (1997), “Carlota Pereira de Queiróz: uma mulher na
política”. Por intermédio das personagens, todas vinculadas ao feminismo e
que se destacaram na cena histórica pela luta e participação na política, as
autoras aproximam-se dos debates e dilemas enfrentados por essas
mulheres na conquista dos direitos políticos, nas organizações feministas e
no exercício do poder, já que algumas foram deputadas.
E é nesse contexto que as mulheres organizam-se em
associações, fazem pronunciamentos públicos, utilizando-se fartamente da
imprensa, buscam o apoio de lideranças nos diversos campos, constituindo
grupos de pressão visando garantir apoio de parlamentares e de outras
autoridades, da imprensa, da opinião pública. Apesar disso, em sua maioria,
buscam revestir o seu discurso de um tom moderado, na minha concepção,
por razões táticas. Pois, questões inovadoras para a época, não deixam de
ser focalizadas por Bertha, que se contrapõe à intocável divisão de esferas
entre mulheres e homens, ao enfatizar o exercício do trabalho extra-
doméstico, mesmo para as mulheres casadas, independentemente da
condição do marido.
Ao final da luta, as feministas tiveram suas reivindicações
concretizadas na Constituição de 1934. Nela foram incorporadas muitas das
sugestões de Bertha Lutz como membro da Comissão que elaborou o
anteprojeto. Através delas constata-se que a referida líder revela interesse
marcante pelos aspectos básicos da sociedade brasileira, ao mesmo tempo
em que se preocupou em propiciar às mulheres condições de se integrar nos
vários planos da vida nacional e internacional. Bertha Lutz foi a candidata
indicada para representar o movimento feminista na Câmara Legislativa
Federal, obtendo o apoio do Bispo de Niterói, aspecto expressivo das táticas
utilizadas, no sentido de buscar alianças entre os grupos que
tradicionalmente a elas se opunham e inúmeros eram os católicos adversos
ao feminismo. Nas eleições de 1933, apesar de receber 39.008 votos, Bertha
1059
Lutz ficou como suplente integrando a Câmara Federal em 1936, ao falecer o
deputado titular, destacando-se pela sua intensa e profícua atuação
(SOIHET, 1974).
Mas não apenas entre parlamentares manifestaram-se
acirradas manifestações de oposição à participação feminina. Na imprensa, a
situação não se afigurava mais favorável ao feminismo. Ao longo do tempo,
este vinha sendo objeto de caricaturas pejorativas em crônicas e charges,
nas quais se busca passar a mensagem do pavor e do cômico que
representaria a participação de mulheres em esferas consideradas próprias
dos homens. Uma das conseqüências seria a desordem familiar, mulheres
passariam todo o dia no escritório ou em assembléias, vendo-se os maridos
envolvidos nos cuidados com os filhos, atividade para a qual não
apresentariam quaisquer habilidades, daí decorrendo a péssima qualidade
da alimentação, não cumprimento de horários, o caos doméstico. Nesse
sentido, para muitos homens, as recentes conquistas femininas na política,
no direito, no trabalho, representavam uma ameaça. Mais que uma possível e
indesejada concorrência com o elemento masculino nos domínios agora
compartilhados, temiam que as novas ocupações as fizessem desinteressar-
se pelos assuntos domésticos. Tinham medo que a desestruturação da
família, célula base da sociedade, a desintegração do lar, a desmoralização
dos costumes, o abandono dos princípios éticos e religiosos católicos
(CHARTIER, 1995).
As próprias mulheres, porém, ao menos aquelas que buscam
as mudanças, as mais e as menos empolgadas com a luta e as conquistas da
mulher, com o seu direito ao voto e participação na política, afirmavam que as
mudanças não significavam uma ruptura brusca e completa com o passado,
com a forma de organização da vida social e com os valores tradicionais que
nortearam suas existências até então. Não viam incompatibilidade entre ter
uma casa, marido e filhos e exercer a cidadania política, materializada pelo
exercício do voto livre, ou atuar profissionalmente fora do lar.
Neste contexto de mudança da mentalidade e emancipação da mulher,
Miriam Moreira Leite trouxe à tona, em rica biografia, suas reflexões sobre os
diversos aspectos da condição feminina. Assinalou suas posições
avançadas, 21 em muitos aspectos similares àquelas das feministas da
década de 1960. Mostra-a como uma severa crítica da dupla moralidade
vigente, da hipocrisia reinante na organização da família com seu
complemento: a prostituição, preocupando-se com questões interditadas na
época como a. sexualidade e o corpo (MOREIRA LEITE, 1984).
Permaneceriam as mulheres sem poder dispor livremente de
sua sexualidade. Manter-se virgem, enquanto solteira e fiel quando casada,
era sinônimo de honra feminina; a qual se estendia a toda família,
constituindo-se num conceito sexualmente localizado, violência que se
constituiu em fonte de múltiplas outras violências. Enquanto aos homens
estimula-se o livre exercício da sexualidade, símbolo de virilidade, na mulher
1060
tal atitude é condenada, cabendo-lhe reprimir todos os desejos e impulsos
dessa natureza. Pois, mulheres solteiras que se deixassem desvirginar
perdiam o direito a qualquer consideração e, no caso de uma relação
ilegítima, não se sentiam os homens responsabilizados por sua atuação,
devendo àquelas arcar com o peso das conseqüências dos seus erros. Afinal,
a pureza, a candura e fragilidade eram virtudes fundamentais para a mulher,
constituindo-se o desconhecimento do corpo em signo de alto valor, em um
contexto em que a imagem da Virgem Maria era exemplar para as mulheres.
E, assim, mulheres abandonadas expunham suas vidas em práticas
abortivas toscas e apressadas, Outras suspeitas de arriscarem viver sua
sexualidade fora do casamento foram assassinadas em nome da "legítima
defesa da honra" (SOIHET, 1989). No que tange ao último aspecto,
reconheço a dificuldade, naquele momento, de mulheres dos segmentos
médios elevados assumirem uma postura dessa natureza, quanto a um
assunto considerado como tabu. Havia a questão política, pois consideravam
as outras demandas como prioritárias. E face às preocupações com a
aceitação do movimento pela opinião pública não ousaram sequer mencionar
tal questão.
Embora a conquista dos direitos formais, inscritos na
Constituição e nas leis, tenha a sua atualidade e a sua importância para a luta
das mulheres, fica claro que a superação das desigualdades entre os
espaços de homens e mulheres é uma questão política — e só com este
ponto de vista é que se pode, de fato, abrir novos caminhos. O discurso sobre
os direitos da mulher, sua integração à economia, é hoje generalizado. Resta
saber com que perspectiva isto vem se dando. Assim, definir o papel do
Estado e defender o modelo que queremos, é o tema central para a agenda
dos movimentos de mulheres. Retomando Brenner, a quebra da divisão por
gênero irá requerer a reorganização de como nós, mulheres e homens, nos
organizamos e realizamos as necessidades humanas (BRENNER, 1993).

Considerações
A partir desse balanço na produção historiográfica é que encontramos
argumentos que sinalizam tantas mulheres trilhando seu percurso,
construindo uma história, seja no espaço público ou privado, tornando-se
agentes de sua própria história, sujeitos dela. Afinal penetrar na esfera
pública era um velho anseio por longo tempo vedado às mulheres. Significava
uma conquista, possibilitando-lhes, segundo Hannah Arendt (2005), assumir
sua plena condição humana através da ação política, da qual por longo tempo
permaneceram violentamente excluídas. Passavam as mulheres a garantir
sua transcendência, pois o espaço público, afirma aquela filósofa, não pode
ser construído apenas para uma geração e planejado somente para os que
estão vivos: deve transcender a duração da vida dos homens mortais, aos
quais acrescentamos, também, a das mulheres mortais.
A atividade política é eminentemente um processo público
1061
porque atinge questões que afetam o interesse de um grupo e não apenas de
algumas pessoas em particular. Por outro lado, o campo político refere-se às
dimensões de espaço-tempo onde as atividades políticas ocorrem e à sua
acentuada mobilidade. Pode, portanto, existir mais de um campo político ao
mesmo tempo, conforme os limites estabelecidos pelos interesses e
envolvimento de seus participantes. É sob esta perspectiva que podemos
compreender as múltiplas possibilidades de participação das mulheres na
arena política
Em suas múltiplas possibilidades de participação pode ser
colocada em xeque a sub-representação feminina nos processos de tomada
de decisão. Embora não seja possível analisar os diversos processos sociais
que incidem sobre a exclusão das mulheres no campo político, é possível
observar que a luta das mulheres em busca de direitos tem contribuído para
aumentar o número de mulheres em cargos políticos, bem como em outras
conquistas no espaço público. A descentralização administrativa inaugurada
pela Constituição Federal, e a inclusão de instrumentos de gestão
participativa e de controle social, a institucionalização de conselhos gestores
de políticas públicas, a adoção de estratégias de ação afirmativa, são alguns
dos mecanismos que vem contribuindo para a ampliação da participação
feminina. Contudo, fica uma questão para reflexão: em que medida o
aumento da participação feminina será traduzido em políticas voltadas para a
redução das desigualdades de gênero ou para construção de relações
simétricas e não discriminatórias?

1062
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