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Produção Do Conhecimento Feminista PDF
Produção Do Conhecimento Feminista PDF
PROMOÇÃO:
São Luís
2010
Rede Feminista Norte e Nordeste de Estudos e Pesquisas sobre
Mulher e Gênero – Redor
....3 p.;
ISSN – 2175-9855
2 GÊNERO E EDUCAÇÃO
2.1 Apresentação
3 GÊNERO E GERAÇÃO
3.1 Apresentação
4.1 Apresentação
5 GÊNERO E VIOLÊNCIA
5.1 Apresentação
DO SONHO AO PESADELO: o tráfico de mulheres para fim de
comercialização sexual no Brasil
Adriana Lima Bispo
Daywyanny da Silva Ataíde
Rosiane de Jesus Santos Felix
7.1 Apresentação
8.1 Apresentação
9 FEMINISMO E POLÍTICA
9.1 Apresentação
REFLEXÕES ACERCA DO PODER, DO PATRIARCADO E DA
CIDADANIA DAS MULHERES
Ana Alice Costa
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GT 1 – GÊNERO E EDUCAÇÃO
COORDENAÇÃO: Profª. Dra. Lígia Pereira Santos – GEPEM/UFPA
APRESENTAÇÃO
33
ETIQUETA, POSTURA E “BOM-TRATO”: a educação da mulher
ludovicense na segunda metade do século XIX
*
Camila Ferreira Santos Silva
**
Fernanda Lopes Rodrigues
***
Diomar das Graças Motta
INTRODUÇÃO
*
Licenciada em Historia e aluna do Mestrado em Educação/UFMA
**
Licenciada em Pedagogia e aluna do Mestrado em Educação/UFMA
***
Professora do Departamento de Educação II e do Mestrado em Educação da UFMA.
36
A partir das relações de gênero é possível compreender que a exclusão
das mulheres é uma construção social, ou seja, foram elaboradas e
colocadas em prática na sociedade através de vários mecanismos entre
os quais podemos citar: a educação, a política, a religião, a família, de
forma a hierarquizar, inferiorizar e excluir as mulheres a partir de sua
condição biológica.
Transformar a escola em um espaço de luta por direitos para a
mulher tem estado na agenda do movimento feminista há anos.
Contudo, mesmo com as conquistas alcançadas, esse movimento defronta-
se com uma luta diária para que esses direitos sejam reconhecidos e
respeitados.
Retomamos nesse texto um período histórico marcado pela
demanda social por educação feminina, que levou à entrada de mulheres na
escola, tanto como alunas como professoras.
Ao longo do século XIX, a conjuntura social trouxe diversas
modificações no modo de viver da sociedade brasileira. A consolidação do
capitalismo, o processo de urbanização da sociedade, a ascensão da
burguesia e o surgimento de uma nova mentalidade decorrente dessa
conjuntura, se refletiram na concepção de educação e, em especial, a
feminina. Situação que figurava diferenciações na vivência da vida pública e
privada, colocando os papéis sociais dos membros da família como um
problema para a educação. Contexto no qual a família passa a ser vista de
forma idealizada, onde “um sólido ambiente familiar, o lar acolhedor, filhos
educados e a esposa dedicada ao marido, às crianças e desobrigada de
qualquer trabalho produtivo representavam o ideal de retidão e probidade, um
tesouro social indispensável.” (D'INCAO, 2007, p. 223).
Quando na segunda metade do século XIX inicia-se a entrada maciça de
mulheres na escola para exercer a função do magistério soam críticas quanto
à suposta entrega insana da educação das crianças às pessoas com
“cérebros menos desenvolvidos por falta de uso.” (LOURO, 2007).
Entretanto, havia argumentos que apontavam que a mulher era ideal para o
trabalho com as crianças, pois essa atividade se assemelhava à exercida nos
lares, tornando a escola uma extensão da casa.
A educação da mulher seria feita, portanto, para além dela, já que sua
justificativa não se encontrava em seus próprios anseios ou
necessidades, mas em sua função social de educadora dos filhos ou, na
linguagem republicana, na função de formadora dos futuros cidadão
_____________________________________________________________
1
Compreendemos relações de gênero, na perspectiva de Ferreira (2007, p. 25), como “mecanismos que
explicam a opressão das mulheres e de como esta opressão reflete na vida, nos corpos, na mente
interferindo diretamente no cotidiano de mulheres e homens, reproduzindo-se em muitas situações que
passam a ser consideradas como verdade, como correto, como determinantes nos comportamentos
sociais e a partir deles passam a considerar a mulher como inferior”. Com isso, apreende-se que gênero é
uma categoria histórica que trata da construção social do masculino e do feminino. Nesse estudo,
abordamos apenas a questão do feminino.
37
(LOURO, 2007, p. 447).
Se por um lado, a educação feminina não poderia ser concebida
sem uma sólida formação cristã, por outro, alguns seguidores das idéias
cientificistas e positivistas alegavam uma educação que, ligada à função
materna, também afastasse crenças tradicionais, incorporando as novidades
das ciências. Contudo, o fio condutor dessa educação continuava
sendo as antigas concepções que definiam o que era “ser mulher”. Com isso,
acatava-se que a mulher deveria ser mais instruída do que educada,
prevalecendo questões morais.
Mesmo que essas sejam as principais concepções, não podemos
generalizar as questões referentes à educação da mulher, já que foram
múltiplas as determinações nas formas de conceber essa educação.
No século XIX, ressalta Muller (1999), que movimentos como as
campanhas abolicionista e republicana, ao atualizarem os ideais de liberdade
e igualdade, abriram um campo fértil para a defesa da educação da mulher e
de sua participação mais ativa na sociedade. Contudo, os liberais clássicos
não advogavam em defesa de uma educação voltada para a emancipação da
mulher, mas para um melhor preparo para o desempenho de suas funções
enquanto “mãe e esposa”.
Como se vê, o acesso à educação, mesmo que em mínimas
condições, não foi uma conquista fácil para as mulheres. A primeira lei de
instrução pública do Brasil, de 1827, estabelecia a criação de escolas de
primeiras letras - único nível em que as mulheres poderiam chegar - em todas
as cidades, vilarejos e lugares mais populosos do Império, mas como é de
praxe, o fato da educação não ser colocada como um problema nacional de
primeiro grau dificultava a concretização dessa prescrição legal. Ressalta-se
que o texto da Lei justificava a educação da mulher a partir da maternidade, já
que
As mulheres carecem tanto mais de instrução, porquanto são elas que
dão a primeira educação aos seus filhos. São elas que fazem os homens
bons e maus; são as origens das grandes desordens, como dos grandes
bens; os homens moldam suas condutas aos sentimentos delas (BRASIL,
1927 apud LOURO, 2007, p. 447).
Situação que não era favorável nem mesmo para as mulheres da
elite, cuja instrução se dava com vistas à qualificação para um bom
casamento, sendo esse, por vezes, apenas um acordo político. Condição em
que
[...] a mulher de elite, mesmo com certo grau de instrução, estava restrita à
esfera do privado, pois a ela não se destinava a esfera pública do mundo
econômico, político, social e cultural. A mulher não era considerada
cidadã política” (FALCI, 2007, p. 251).
As mulheres que “fizeram história” foram silenciadas ou
apagadas da história da educação, a exemplo da professora Maria Firmina
38
dos Reis. No texto exposto por Mário Meireles (2008), onde cita os grandes
nomes que lançaram o Maranhão à Atenas Brasileira, a única mulher que
merece registro é Paula Duarte, mesmo estando o nome dessa mulher “entre
os menores”, como adverte o autor.
As primeiras Escolas Normais, abertas para ambos os sexos,
faziam a distinção entre meninos e meninas nos espaços físicos, já que os
alunos ficavam em classes separadas por sexo. Esses estabelecimentos
surgiram como alternativa para a instrução feminina diante da necessidade
de mão-de-obra para a expansão da escola elementar. Voltada,
principalmente, para as jovens de parcos recursos, a Escola Normal era o
espaço que lhes destinava a uma profissão.
A inserção feminina no magistério se deu como resposta às demandas do
projeto liberal republicano de universalizar a escolaridade, a força da
religião na modelagem de corpos e almas e o indiscutível e controverso
poder atribuído às mulheres no ambiente escolar, que teve sua gênese
logo após a República, em finais do século XIX e se solidificou nas
décadas seguintes (ALMEIDA, 2004, p. 63).
A pretensão de formar homens e mulheres para o magistério
entrava em conflito com os relatórios que indicavam haver um maior número
de mulheres ingressantes e se formando nesses cursos, o que caracteriza o
processo de feminização do magistério.
A partir de então passam a ser associadas ao magistério características
tidas como 'tipicamente femininas': paciência, minuciosidade,
afetividade, doação. Características que, por sua vez, vão se articular à
tradição religiosa da atividade docente, reforçando ainda a idéia de que a
docência deve ser percebida mais como um “sacerdócio” do que como
uma profissão. Tudo foi muito conveniente para que se constituísse a
imagem das professoras como 'trabalhadoras dóceis, dedicadas e
pouco reivindicadoras' o que serviria para lhes dificultar a discussão de
questões ligadas a salário, carreira, condições de trabalho etc. (LOURO,
2007, p. 450).
Diante dessa situação, citemos que o magistério foi para as
mulheres do século XIX, uma oportunidade de trabalho, mesmo quando era
visto como “um valioso estágio para o casamento e a maternidade”.
A entrada das mulheres na escola e no mercado de trabalho se
intensifica a partir do século XX, mas suas características iniciais tornam essa
entrada eivada de desigualdade quanto às possibilidades escolares e pela
não miscibilidade das profissões.
Interessa-nos nesse texto, ponderar sobre a educação da mulher
da elite ludovicense entre os limites e as possibilidades da conjuntura
ideológica, social e política marcada pela misoginia, cuja educação se
limitava a ser uma extensão da formação para a maternidade e o papel de
esposa, traduzindo-se em uma educação voltada para refinamento dos
39
modos de comportamento.
SOBRE A “ARTE DE BEM CIVILIZAR-SE”: a educação feminina
ludovicense na segunda metade do século XIX.
O Estado do Maranhão, segundo Meireles (2008), teve um amplo
enriquecimento material e aprimoramento intelectual com a instituição da
Companhia Geral do Comércio do Grão-Pará e Maranhão (1755-1778) e viu
surgir no século XIX uma elite latifundiária e uma nobreza rural que
concederia à província uma posição de primeiro plano no cenário nacional.
Riqueza construída sobre os ombros do negro escravo, que seria abalada
quando da abolição da escravidão que “[...] fez desmoronar, de um golpe, o
edifício de nossa economia, e tão ruinosamente, que não podemos restaurá-
lo até hoje.” (MEIRELES, 2008, p. 248).
São Luís cresceu consideravelmente no século XIX em
decorrência da entrada de africanos escravizados, transferência de famílias
do interior para a capital, especialmente na época da Balaiada, devido à
insegurança que se alastrou ainda mais nas áreas rurais, mais carentes dos
aparatos de policiamento e justiça que a capital, além do natural crescimento
vegetativo. Com esse crescimento urbano, homens e mulheres tiveram que
se adaptar à vida na cidade, que em vários aspectos diferenciava-se da vida
rural, principalmente no que diz respeito à sociabilidade destes.
Com o crescimento das cidades e a alta influência dos modelos
europeus tornou-se cada vez mais necessário a mudança na
aparência, principalmente da elite, através da moda, acarretada pela
concorrência entre as famílias, que de todas as maneiras objetivava mostrar o
seu alto poder aquisitivo, por meio do consumo de bens e o requinte das
maneiras, instrumentos que davam respeitabilidade à elite (MELLO; SOUZA,
1987).
A corte do Rio de Janeiro era a irradiadora dos modelos
socioculturais vindos da Europa, arrogando-se o papel de informar os
“melhores hábitos” de civilidade, aliado à importação dos bens culturais
reificados nos produtos europeus, principalmente franceses e ingleses. Era
também onde se concentravam um maior número de nobres, haja vista a
proximidade e a convivência com a Corte Imperial, levando à disseminação
dos manuais de etiqueta e bom tom para serem consumidos pela elite
(SCHWARCZ, 1998). Esses modelos chegavam a diversas províncias e o
Maranhão era uma dessas que os incorporavam.
A transferência desses modelos para São Luís pode ser
visualizada a partir da literatura da época, dos artigos dos jornais locais, das
revistas e dos anúncios veiculados na imprensa. Estes eram alguns
mecanismos por onde perpassavam os efeitos e imagens da civilização e dos
símbolos a serem consumidos pelos ludovicenses, especialmente a elite.
Como explica Schwarcz (2002, p. 201), “[...] a civilização leva sempre à
restrição dos costumes, e não ao objeto oposto, e a dificuldade está em evitar
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o gesto natural, conter as manifestações imediatas”. Isso significa impor
modelos de conduta e etiqueta à sociedade, disciplinando e regulando as
manifestações dos sentimentos e desejos. Os manuais de etiqueta do século
XIX ensinavam desde os hábitos à mesa, passando pela arte de
cumprimentar, cortejar, comer, beber, vestir-se, dançar e falar em público.
O vocabulário da elite ludovicense também sofreu alterações
após a explosão da cultura francesa pelo mundo. Em jornais e revistas
apareciam comumente palavras, poesias e frases em francês. A Biblioteca
Pública possuía um grande acervo de livros em francês e inglês vindos
diretamente da Europa, o que indica que nesse período havia
leitores que possuíam conhecimento suficiente de tais línguas.
Nos jornais e revistas haviam também artigos completos em
francês e artigos que tratavam da importância de Paris para a intelectualidade
e para a civilização, como é o caso da Revista Elegante, onde Paris aparece
como “capital sagrada, superior, soberba e coração do mundo”. Assim como a
Revista Elegante a maioria dos jornais tratava do exemplo de Paris como
modelo de civilização de onde partiam todas as noções de elegância e bom-
tom. Essa civilização pregada pela França “[...] constitui um contraconceito
geral a outro estágio da sociedade, a barbárie” (ELIAS, 1994, p. 62).
D'Incao (2007) pontua que, qualquer tipo de expressões de
relações sociais que não fossem consideradas civilizadas, na perspectiva
européia, era combatida pela imprensa e proibida por leis. As políticas de
saneamento e de higienização das cidades e das pessoas que faziam à
cidade concretizaram a busca por esse ideal. Na tentativa de europeizar São
Luis, o genocídio cultural e físico dos negros escravizado ou não, como
também dos indígenas, era uma estratégia de manutenção de uma nação
européia no continente americano. Sonho que não se realizou, mas que
deixou suas marcas no imaginário coletivo brasileiro.
Nas escolas de São Luís, especialmente as particulares, aos
rapazes e moças eram ensinados os modos de comportar-se em todas as
ocasiões de suas vidas sociais. Dunshee de Abranches (1992) aponta que
essas escolas prepararam gerações de moças bem educadas e contrárias
aos costumes “grosseiros” do período colonial. Essa fineza das mulheres era
notada em certos salões, onde luxo e a elegância consorciavam-se com as
mais requintadas exibições artísticas vindas da Europa ou mesmo locais.
Com isso, podemos referendar o exposto por Fagundes (2007),
para quem a educação, como um ato político, assume um compromisso com
a formação da identidade feminina, com a modelagem das personalidades,
onde se é determinado o que é certo e o que é errado, o que é permitido e o
que é proibido, em suma, o que é ser mulher em determinado
período histórico. Se considerarmos que a identidade feminina seja o
resultado da interação entre a consciência de pertencer ao sexo feminino e as
conseqüências sociais concretizadas nas relações sociais de gênero,
41
podemos inferir que a educação, nesse contexto, estar a reproduzir um
conceito de ser mulher, pois “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”, na
perspectiva de Simone de Beauvoir.
Assim,
Para as filhas dos grupos privilegiados, o ensino da leitura, da escrita e
das noções básicas de matemática era geralmente complementado pelo
aprendizado do piano e do francês que, na maior parte dos casos, era
ministrado e suas próprias casas por professoras particulares, ou em
escolas religiosas. As habilidades com a agulha, os bordados, as rendas,
as habilidades culinárias, bem como as habilidades de mando das criadas
e serviçais, também faziam parte da educação das moças; acrescida de
elementos que pudessem torná-las não apenas uma companhia mais
agradável ao marido, mas também uma mulher capaz de bem representá-
lo socialmente (LOURO, 2007, p. 446).
Para D'Incao (2007), a instrução da mulher burguesa servia,
ainda, para a nova função das mulheres casadas, ao contribuir para o projeto
familiar de mobilidade social através de suas posturas nos salões como
anfitriãs e na vida cotidiana. Assim, pode-se dizer, conforme essa autora, que
os homens eram dependentes das imagens que suas mulheres podiam
traduzir para as demais pessoas, constituindo-se, logo, em um capital
simbólico.
As mulheres da elite foram elogiadas por estrangeiros que
visitaram a cidade de São Luís, destacando seu comportamento refinado.
Alcide d'Orbigny, que esteve na cidade em 1832, destacou a existência de
inúmeras casas francesas e inglesas e fez elogios à classe social dominante:
A população branca do Maranhão é, verdadeiramente, notável, pela
elegância, de seus modos e sua educação esmerada. Não só a riqueza da
região, o desejo de imitar os costumes europeus [...] mas também, e
principalmente, a liberdade, a boa educação, a polidez e a douçura das
maranhenses, contribuíram para tornar aquela cidade um dos lugares do
Brasil onde é mais agradável a permanência. Quase todas educadas, as
jovens maranhenses levam consigo, o gosto pelo trabalho e pela ordem e
hábitos de reserva e discrição [...] Quanto aos jovens, quase todos
mandados a bons colégios da França e da Inglaterra (D'ORBIGNY,1832,
apud CALDEIRA, 1991, p. 27).
As representações do feminino na sociedade brasileira,
conservadora e patriarcalista do século XIX, estavam relacionadas ao espaço
privado, ou seja, ao ambiente doméstico. Já o homem pertencia ao espaço
público, ao ambiente de trabalho e de intelecto. Essa sociedade de
características patriarcais, onde o homem era o mandatário, o centro da
família, também era o principal irradiador da imagem feminina, tornando a
“mulher uma criatura tão diferente dele quanto possível. Ele, o sexo forte, ela
o fraco; ele o nobre, ela o belo” (FREYRE, 2002, p. 805).
42
Na segunda metade do século XIX em São Luís as idéias
estereotipadas sobre as mulheres, presentes em jornais da época,
especialmente nos de caráter religioso, recreativo e literário, e os dedicados
ao público feminino, apresentavam as mulheres como seres amáveis,
frágeis, inferiores, submissas, sendo essas características “naturais” ao sexo
feminino. Essa deveria confinar-se no espaço privado, no lar, pois era
entendida como símbolo da fragilidade que deveria ser protegida do mundo
exterior, da vida pública. O público era o espaço da política e da economia e
as mulheres eram totalmente retiradas desses espaços considerados
inadequados a elas, tais como: bancos, eleições, muitas vezes bibliotecas,
grandes mercados, etc., ficando confinadas somente à casa.
Essas características eram balizadas pelas análises filosóficas,
tais como o positivismo, e científicas da época. Muitos estudos científicos do
século XIX afirmavam a inferioridade da mulher, comparando-a com uma
criança que deveria estar sempre aos cuidados de um pai, marido ou irmão.
Tudo isso levava mais ainda à submissão da mulher perante o homem,
disfarçada pela veneração à mulher sexo frágil, doce, enfim, ao “belo sexo”.
O lar, as atividades domésticas, enfim, o cuidar da casa, do marido e dos
filhos era o espaço freqüentado pelas mulheres, principalmente as ricas.
Vivendo sempre à sombra do marido, as mulheres tinham uma vida pública
restrita às missas e festas da Igreja e seus contatos eram somente com filhos,
empregados, escravos e, ainda, com o confessor. O seu papel era o de parir e
criar os filhos, sem liberdade alguma de exercer sua sexualidade, pois era
considerada assexuada. Essa “possibilidade do ócio entre as mulheres de
elite incentivou a absorção das novelas românticas e sentimentais
consumidas entre um bordado e outro, receitas de doces e confidências entre
amigas” (D'INCAO, 2000, p. 229). Enquanto isso, o homem tinha total
liberdade, ação política e social, representando a ciência, a força, o gosto pela
leitura e com isso garantindo a continuidade do poder patriarcal da sociedade.
Se por um lado, o século XIX reforçou e aperfeiçoou a idealização
da mulher-mãe, da mulher submissa, também foi o período marcado pela
saída de muitas mulheres das camadas médias do espaço restrito do lar,
alcançando o mercado de trabalho em profissões liberais, níveis de estudo
mais avançados, inclusive no ensino superior, além da luta pelos direitos civis
e políticos, especialmente o direito de voto (HALMER, 1993).
As transformações que aconteceram no cenário urbano
ludovicense e o aparecimento de teatros, clubes para festas, confeitarias,
praças, além do melhoramento das festas religiosas que já aconteciam na
cidade, propiciaram o aparecimento da mulher na vida pública.
Para freqüentar esses saraus, jantares, bailes e, até mesmo as missas,
as moças tinham que saber de que forma iriam portar-se à mesa, sentar-se, vestir-se
e dançar adequadamente nestas ocasiões. Para isso, a educação dessas mulheres
era essencial, pois para freqüentarem esses novos espaços de sociabilidade teriam
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que ter um mínimo de instrução escolar, além das chamadas prendas sociais que
poderiam ser obtidas tanto no espaço doméstico como no escolar. A educação era
“um complemento da formação feminina, isto é, uma espécie de acréscimo aos dotes
e prendas já adquiridos pela mulher” (BERNARDES, 1988, p. 27), pois além de
bordar, cozinhar e comandar a casa a mulher teria também que entender, ainda que
de forma superficial, de história, aritmética, geografia e francês, língua que estava em
voga no século XIX.
Nas escolas femininas, “As meninas internas participavam de
refeições, como se fossem banquetes de cerimônia, para que se
habituassem 'a estar bem à mesa e saber como se deveriam servir as
pessoas de distinção'” (ABRANCHES, 1992, p. 97). O autor dá como exemplo
dessa prática a escola Nossa Senhora da Glória, criada em 1844 por dona
Martinha Abranches, que servirá de modelo para tantas outras escolas
particulares dedicadas às moças, o que mostra a grande preocupação da
elite ludovicense em adequar-se as formas de etiqueta utilizadas nos países
europeus.
Essas exigências de comportamento e educação eram feitas nos
próprios convites de bailes, de teatro e de outros espaços onde a elite
ludovicense mostrava todo o seu requinte. Como por exemplo, no baile
oferecido pela Sociedade Empreendedora
BAILE CAMPESTRE
Que principiará depois das 7 horas. Advertindo que os bilhetes para a
dança, só serão conferido às pessoas, que a par de uma boa educação,
tenham na sociedade uma posição que estejam em harmonia com o
melindre indispensável a uma associação de baile (PUBLICADOR
MARANHENSE, 25/09/1871).
Exigência que servia tanto para homens quanto para as
mulheres, porém a exigência de uma boa educação, delicadeza nos gesto e
elegância eram características preciosas para a reputação de uma mulher da
elite, que supunha estar a par das novidades de etiqueta chegadas da
Europa.
Todas as fases da mulher eram marcadas por controle e
disciplina. Na infância a mulher era moldada tanto pela família quanto pela
escola, esta última em menor proporção devido ao pequeno número de
mulheres nas escolas, onde trataria de assimilar os tais comportamentos
femininos e suas atribuições enquanto filha, esposa e finalmente mãe.
Quando casada deveria ser prendada e dotada de um comportamento fino e
doce, tornando-se um bibelô a quem o marido poderia exibir a sociedade. Na
maternidade, fase sagrada da mulher em que era comparada a Maria, mãe de
Jesus, tinha a obrigação de passar a melhor educação aos filhos, tanto a
educação moral quanto a espiritual.
O desenvolvimento do estado foi fundamental para a conquista
do título de Atenas Brasileira, já no segundo Reinado. Título dado aos
44
homens brancos da elite que puderam ter uma formação qualificada na
Europa, enquanto suas conterrâneas estudavam sozinhas, recebiam as
instruções básicas em casa por uma mestra particular ou adentravam escolas
cuja qualidade era questionada.
Assim, na segunda metade do século XIX, cresceram as oportunidades
educacionais para as mulheres, com o aumento das escolas para
meninas e a criação das Escolas Normais, embora muitas jovens ainda
continuassem a receber, por muitos anos, uma instrução sumária em
casa ou em escolas particulares, algumas orientadas por religiosos e
outras dirigidas por estrangeiras (FAGUNDES, 2005, p. 52).
Atendimento que, no entanto, não era suficiente para a demanda
colocada. Telles (2007) resgata que, em meados do século XIX, São Luis era
culturalmente dominada por latinistas e helenistas de valor, mas a situação do
ensino era precária. Segundo essa autora, ao considerarmos o número de
alunos de aulas públicas e particulares na Província em 1857, havia 1849
meninos e 347 meninas cursando o primário e uns 200 alunos no secundário.
Como se observa, as oportunidades de estudo para as moças eram mínimas.
O conteúdo ensinado nas escolas maranhenses era baseado nas
necessidades da elite dominante, que por sua vez inspirava-se na cultura
européia. A Europa nesse momento vivenciava a industrialização, o trabalho
assalariado, em que o trabalhador necessitava de conhecimento para inserir-
se no mercado de trabalho, e suas características eram totalmente citadinas.
O ensino primário, portanto, também visava atender esse público trabalhador.
Enquanto isso, o Maranhão vivenciava o “colonialismo”, o trabalho escravo,
que, no entender das elites, não necessitava de técnicas de aprimoramento
dos serviços, e suas características eram totalmente rurais. Sendo assim, o
modelo do ensino europeu, muito mais avançado, não correspondia à
realidade do Maranhão e matérias como latim, francês, inglês, que eram
aplicadas nas escolas objetivavam principalmente atingir o público da elite,
para a exibição de erudição ou mesmo servindo para os filhos de famílias
abastadas que iriam terminar os estudos no exterior.
No final do século XIX a instrução era obrigatória e o ensino livre.
Foram tentadas algumas saídas para que o número de alunos matriculados
aumentasse, a exemplo da criação de aulas noturnas e de uma escola
normal, por iniciativa da Sociedade 11 de Agosto, criada em 1870. Porém, o
curso normal não prosperou restando somente as aulas noturnas.
Ainda segundo Elizabeth Abrantes, o quadro da organização
escolar do Maranhão no final do século XIX encerrava-se com uma grande
defasagem no número de meninos e meninas entre 6 e 14 anos existentes na
Província e aqueles matriculados nas escolas elementares. No ensino
secundário, o abismo social era muito maior. Diversas medidas foram
tomadas para a inserção das crianças nas escolas, cujas matrículas eram
reduzidas. Porém, o incentivo para a educação masculina era muito maior do
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que a educação feminina. À mulher restava uma educação doméstica, sendo
que uma instrução mais elevada, incluindo conhecimentos da literatura,
história e ciência, poderia ser obtida nas escolas particulares, portanto, para
as mulheres da elite.
A escola secundária também foi alvo do governo provincial. O
Liceu Maranhense foi fundado em 14 de fevereiro de 1839, com o objetivo de
reunir as aulas régias avulsas que existiam em outras cadeiras, possuindo um
currículo de caráter literário. Este foi o primeiro colégio público para o ensino
secundário, embora somente masculino. Os alunos do Liceu eram
preparados para seguir carreiras de nível superior.
Na segunda metade do século XIX aumentaram na capital o
número de escolas secundárias particulares, incluindo as escolas para
mulheres, aumentando também a proporção de alunas matriculadas nestas
escolas. As filhas de famílias abastadas poderiam escolher entre diversos
colégios com educação voltada para o sexo feminino, tais como: N. S. da
Glória, N. S. de Nazaré, N. S. da Soledade, Santa Isabel, Sagrada Família,
Santa Ana (ABRANTES, 2002).
As jovens que possuíam recursos para pagar essas escolas
obteriam uma educação um pouco mais elevada do que a oferecida pelo
poder público, embora a preocupação desse ensino fosse com a aquisição
das chamadas 'prendas de salão' e estivesse aquém da educação oferecida
aos homens.
O ensino oferecido a essas mulheres bem como a mentalidade
vigente que não aceitava uma educação para seguir uma carreira
profissional, com exceção do magistério, fazia com que não pudessem
sequer aspirar ingressar no ensino superior, tal como os homens após o
ensino secundário. Quanto às meninas pobres, restava basicamente o
ensino de primeiras letras em instituições como recolhimentos e asilos
(ABRANTES, 2002).
Neste sentido, a partir dos últimos anos do século XIX houve o
aumento relativo no número de vagas para mulheres, a ampliação das
disciplinas e, ainda, o direito delas estudarem em salas juntamente com
homens, embora os conteúdos ainda objetivassem limitar as possibilidades
de crescimento intelectual que levassem uma possível independência
profissional.
Conteúdos estes que eram mantidos pelo discurso que ganhava
terreno na época, de que a mulher não necessitava de instrução escolar, pois
“As mulheres deveriam ser mais educadas do que instruídas” (LOURO, 2007,
p. 446), dando-se ênfase somente a formação moral, ao caráter e ao
comportamento da mulher, ou seja, aos homens se instruía para desenvolver
a inteligência e às mulheres se educava para desenvolver o caráter.
_____________________________________________________________
2
“A chamada família patriarcal brasileira, comandada pelo pai detentor de enorme poder sobre seus
dependentes, agregados e escravos, habitava a casa-grande e dominava a senzala”. (PRIORE, 2007, p.
223)
46
A razão para o incentivo a um baixo nível de escolarização para
as mulheres se dava, algumas vezes, pelo fato de que a mesma adquiriria um
aspecto “masculinizante” por meio do estudo excessivo e perderia a sua
“essência”.
Como se vê, a trajetória da educação feminina é um símbolo de
resistência e de luta, onde as mulheres saíram de uma educação superficial,
no lar e para o lar, passando por uma tímida inserção nas escolas
públicas mistas do século XIX e um acesso cheio de obstáculos docência do
ensino superior, para, atualmente, representarem a maioria dos discentes em
todos os níveis.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na segunda metade do século XIX, a população ludovicense
deparou-se com um cenário de modificações na infra-estrutura, tais como os
investimentos públicos e privados nos setores de transporte, limpeza,
iluminação, abastecimento de água, instalação de bancos, bibliotecas,
gabinete de leitura, buscando com isso tornar-se uma cidade mais higiênica,
confortável e salubre aos olhos da elite. Além disso, teve-se a ampliação dos
espaços de sociabilidade, saraus, bailes, festas entre outros espaços,
mudando a vivência dos homens e mulheres nesse novo cenário.
A educação na escola e no lar foram os maiores responsáveis
pela adequação dos comportamentos da elite ludovicense com os do
estrangeiro. As escolas, principalmente as particulares, focavam o ensino
feminino no comportamento refinado, na etiqueta. E a família, reafirmava
esse tipo de educação dentro do lar, pois os afazeres domésticos tais como,
cozinhar, costurar, bordar, etc., estavam sempre direcionados às mulheres,
tratando da adequação aos modelos importados da Europa definindo formas
de se portar diante do mundo e das pessoas enquanto mulher. Nesse sentido,
essa adequação definia não apenas a identidade da mulher da elite diante do
homem, mas também dessa mulher diante da pobre, da negra, da indígena e
daquelas que professavam outro tipo de religião.
Pudemos observar neste trabalho, que o discurso civilizatório
estava presente em todas estas mudanças que estavam ocorrendo no
comportamento dos ludovicenses. A elite, principal alvo e também promotora
dessas mudanças, tinha a preocupação em tornar a cidade e os seus modos
“civilizados” e “modernos” dentro dos padrões da época, mesmo que
mantendo entraves a esse ideal civilizatório, como a escravidão.
Com isso, a educação cumpre a função de
manutenção/reprodução de posturas ideológicas que negavam os direitos da
mulher. Essa realidade ainda continuaria por muito tempo, sendo contestado
com vigor na década de 1960 pelos movimentos femininos. Contudo muito
ainda há por fazer e espaços por se conquistar.
A educação pode e deve ser um espaço de contra-ideologia,
empreendendo esforços para que a mulher seja respeitada em seus direitos e
tratada com dignidade.
47
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50
O RECOLHIMENTO DO SANTO NOME DE JESUS: casando ou
educando mulheres para o trabalho
Ivani Almeida Teles da Silva
INTRODUÇÃO
Apropriando-me da idéia de Escavon (1999, p.131) de que a
historiografia é um conjunto de escritos sobre determinado tema, a partir de
um ponto de vista histórico, portanto uma posição historiográfica implica em
uma concepção filosófica da história por onde se constitui e como se constitui
o conhecimento histórico, podemos afirmar que a produção historiográfica
vem passando por um revisionismo das perspectivas anteriores por se
reconhecer que longe de incluir determinadas temáticas e atores sociais, a
produção historiográfica em busca de interpretações totalizadoras e
generalizantes não conseguiu dar conta dos muitos questionamentos e
transformações que atores e atrizes sociais imprimiram no real, nas relações
sociais no decorrer do tempo.
Partindo desse principio de que os fatos históricos podem ser
revisitados a partir de novas metodologias, concepções teóricas e novos
questionamentos e que nenhuma forma de olhar, como afirma Almeida
(2005), pode ser considerada definitiva e nenhuma explicação, por mais
abrangente e genial que possa parecer, dará conta da integralidade daquilo
que se deseja explicar, revisitamos os documentos da Santa Casa de
Misericórdia da Bahia para pensar como o recolhimento de mulheres do
Santo Nome de Jesus, como espaço educacional contribui para formação de
um ideal de mulher desejado pela sociedade da época.
Ao mesmo tempo em que revela que os estudos sobre recolhimentos
de mulheres, principalmente na Bahia, ainda são incipientes e pouco
estudados como um caminho para entendermos como esses espaços foram
utilizados para pensar as mulheres.
O SANTO NOME DE JESUS
Em 1618 incorporando o compromisso que estava em vigor na
Misericórdia de Lisboa, era previsto a possibilidade de um recolhimento de
donzelas, o Provedor João de Mattos Aguiar, ao falecer, em 26 de maio de
1700, determinou através do seu testamento a fundação de um Recolhimento
de Mulheres donzelas na cidade de Salvador, deixando para tanto, como
testamentária e principal herdeira de seus bens a Irmandade da Santa Casa
de Misericórdia da Bahia.
A esta construção foi destinado, além de outros bens, a quantia
de 40:615$300. Cabendo a Santa Casa a escolha do local e a “eleição da
qualidade das mulheres, e a forma e a ordem do recolhimento; 135:470$280
para dotes das internas por ocasião do casamento; 6;400$00 para
esmolas”(Costa,2001,p.180). A Irmandade da Santa Casa, como tal,
endereçou uma suplica ao Rei D.João VI, para consentir na fundação do
51
recolhimento, e conceder-lhes igualmente não só a mesma proteção, como
gozo dos privilégios outorgados ao da Santa Casa de Lisboa.
Em 2 de abril de 1704, obteve a mesma deferimento do Rei
D.João VI para que se fundasse o recolhimento, contanto que nunca
mudasse de natureza e fosse instituído em um lugar que não prejudicasse o
bem público, assim como deveria apresentar proporções para receber um
número de recolhidas, cuja doação de João de Matos de Aguiar comportasse.
Acrescentando, ainda, que o dito recolhimento deveria servir não apenas as
mulheres honradas, mas também as casadas, cujos maridos, tendo de
ausentar-se da cidade, precisassem deixar as suas mulheres.
Em 1 de junho de 1716, decidiu a Mesa dar a Instituição o nome
de Recolhimento do Santo Nome de Jesus, inaugurando-o em 29 de junho do
mesmo ano, o prédio, era “insigne pelo instituto e pela grandeza/.../é de três
sobrados, e em todos tem muitas instancias, celas, dormitórios, e janelas com
dilatadas vistas para o mar. Por baixo lhe ficam as oficinas grandiosas”,
Damázio,. Para dirigi-lo foi determinado que a regente fosse
mulher branca, cristão-velha, de idade, de boa reputação e posição social
adequada e poderia ser recrutada entre as recolhidas. Além delas, as mestras
e porteiras poderiam ser as moradoras do recolhimento ou contratadas pela
casa para preencher os cargos caso não houvesse recolhidas que
satisfizesse os critérios impostos pela Instituição.
É interessante notar que ao aceitar o pedido de D. João VI de dar abrigo às
mulheres cujos maridos tivessem que se ausentar a Santa Casa destoou do
compromisso de Lisboa que previa uma clientela “órphã, que não tenha maior
idade que 20 annos, nem menos que 12, por ser este de maior perigo” .
A entrada de mulheres tão jovens em recolhimentos ou conventos
revela a preocupação da sociedade colonial na guarda da mulher como
garantia da manutenção da sua honra e fidelidade, atributos que deveriam ser
caros ao gênero feminino. Segundo Russel – Wood (1981) as mulheres
portuguesas eram as mais guardadas da Europa. Sendo as mulheres
virtuosas liberadas para sair de casa apenas três vezes durante toda a vida:
para o batismo, o casamento e o enterro. Tal mentalidade também se
estabeleceria em seu império ultramar. Na Bahia colonial, segundo o mesmo
autor, as mulheres brancas só saiam de casa para ir à missa aos domingos .
Para tanto zelo, não era a toa que os conventos e mais tarde
recolhimentos fossem um lugar tradicional de reclusão das mulheres da
colônia, inicialmente das filhas das famílias brancas, de melhores condições.
Para além do zelo, estes espaços também devem ser vistos como espaços de
_____________________________________________________________
3
Esse artigo faz parte dos meus estudos de mestrado e continuação da minha monografia de
especialização: Representação da Civilidade Feminina Bahia no século XIX: A Revolta das Recolhidas do
Santo Nome de Jesus em 1858, apresentada no NEIM - Núcleo de Estudos Interdisciplinares Sobre as
Mulheres, em 2006.
52
formação da mulher.
Se inicialmente, a formação da mulher ficou a cargo da família,
especificamente da mãe que deveria ensinar a essa menina os
requisitos necessários para o desempenho da função de mãe e esposa. Mas
tarde, a partir do século XVIII, e na Bahia no XVII, com o Convento do
Desterro, os conventos e recolhimentos tornaram-se as instituições
apropriadas para a “educação feminina”. Segundo Algranti (1993, p.25), com
o objetivo de prover uma vida virtuosa a algumas mulheres, os colonos
solicitavam constantemente a Coroa autorização para erguerem capelas,
ermidas, ou recolhimentos com fins assistenciais ou religiosos, pois viam
nesses espaços, local para educação moral e religiosa de suas filhas até
tomarem algum estado, de acordo com o desejo dos pais de terem uma boa
religiosa formada e dedicada a Deus ou uma mulher virtuosa para casar.
E nesse sentido o Recolhimento do Santo Nome cumpre uma dupla função:
dar possibilidades de um grupo de mulheres brancas socialmente
remediadas ou pobres de casar, dando para tanto as condições necessária
para que pudessem ser vistas como mulheres recolhidas serem brancas, em
respeito ao pedido do seu idealizador, em idade de casar. As beneficiadas, em
primeiro lugar, deveriam ser as mulheres provenientes da roda, por serem
verdadeiras filhas da Casa e para darem lugar a outras órfãs. Em segundo
lugar, todas as filhas dos irmãos da Irmandade, menos abastados, mediante
apresentação de petição. E em terceiro lugar, as enjeitadas que foram
alimentadas pelas rendas da Casa, procedendo, também, de petições. Vale
ressaltar que para inclusão de porcionistas no recolhimento, que além das
mulheres casadas, poderiam ser viúvas ou jovens solteiras, era cobrado pela
Irmandade um fiador que assegurasse as despesas das mesmas e das suas
virtudes.
Todavia se o critério de honradas pobres foi estabelecido como
condição indispensável para a entrada dessas recolhidas nesse espaço de
reclusão das mulheres. A cor, durante a existência do recolhimento, não
permaneceu como critério irrevogável.
Nascimento (1992, p.123) destaca, ainda, que ao longo do tempo
a cor não se constituiu impedimento para que mulheres miscigenadas e até
filhas de libertos fossem recolhidas no estabelecimento. Mas os critérios de
_____________________________________________________________
4
Segundo deixa subentendido Russel-Wood (1981), Maria José (1992) e Kátia Matoso (1992) era uma
prática utilizada como forma de garantir a fidelidade das suas mulheres.
5
DAMAZIO, Antonio Joaquim. Tombamento dos bens imóvies da Santa Casa da Misericórdia da Bahia.
Typographia de Camile de Lelis Masson.1862.p.172
6
Segundo Montaner (2000) Cristã – velha ou cristã pura, é uma denominação dada aos cristãos nascidos,
ou seja, em oposição ao cristão – novo (judeus convertidos ao cristianismo). Muito usado em Portugal,
Espanha e Brasil. É, para ele, um conceito ideológico que pretendia designar uma maioria. Embora não
conferisse nenhum tipo de privilégio estamental,era condição social prestigiosa.
7
Segundo os Acordos as mestras eram professoras de primeiras letras ou que ensinava alguma atividade
às recolhidas, com fazer flores. E a porteira era responsável pela guarda das saídas da Casa.
53
pobres e honradas eram condições essenciais para que uma jovem fosse
recebida no Recolhimento do Santo Nome de Jesus.
Ressaltamos que neste caso o recolhimento não deixa tão claro
nos seus regimentos às condições de entrada dessas mulheres mestiças.
Entretanto nos poucos registros sobre a cor das meninas, encontramos
referência como a da recolhida exposta Laurina Joaquina de Santa Isabel,
parda e duas expostas cabras de nomes Florentina e Aurelia.
Em relação às africanas livres, a casa teve a preocupação de
estabelecer nos estatutos de 1776 “que nenhuma mulher forra, que esteja por
serva no recolhimento poderá ter dentro dela escrava alguma sua própria
para os seus particulares serviços, e menos outra alguma forra com atestado
de encostada, e quando as tinham, as deitarão fora dentro de tempo de um
mês” .
Nesse aspecto o Recolhimento do Santo Nome diferenciou-se,
ao que parece do Recolhimento de Misericórdia do Rio de Janeiro que
o
estabelecia no parágrafo 2 . “Em nenhum caso, com nenhum pretexto, serão
admitidas neste recolhimento pardas, ou mulatas, por se temer a desunião e
discórdias que podem resultar de não haver igualdade nas pessoas [...]”
(AlGRANTI, 1993, p.125).
Comparando o Estatuto do Recolhimento do Santo Nome com o
Estatuto do Recolhimento do Rio de Janeiro, supomos que o Santo Nome
apesar de aceitar essas mulheres infligiram a elas condições de
permanências diferenciadas. Até porque os seus objetivos eram muitos
claros: atender a mulheres brancas, como havia determinado o seu fundador
João de Matos Aguiar.
DAS DIFICULDADES DE CASAR A FORMAÇÃO PARA O TRABALHO:
algumas reflexões
Do final do século XVIII até a segunda metade do século XIX a
Instituição assistiu uma série de situações que levaram ao questionamento a
sua condição de formador do caráter feminino. A primeira tentativa de conter
os “abusos” estabelecidos no recolhimento foi tratada no estatuto de 1776
_____________________________________________________________
8
ASCMB, Relatório 1858, pág. 6
9
Sobre essa posição, cabe ressaltar, que trabalharei com as idéias de autores como Algrant (1993) Araújo
(2000) e Dias (1996) que abordam seus temas a partir da perspectiva de empoderamento das mulheres.
Ou seja, que nesses espaços normatizadores, as mulheres reinventaram,construíram estratégias de vida
onde demonstravam domínio ou subversão da ordem. Dias (1996), por exemplo, em seu artigo sobre as
mulheres do bandeirismo paulista mostra que, embora com uma imagem ortodoxa, em especial pela
indumentária que sugeria submissão e timidez, elas foram ativas e tiveram um papel econômico
fundamental, até mesmo como comerciantes. Já Algranti (1993), em seu estudo sobre recolhidas, afirmou
que guiadas por homens, sujeitas a um bispo, a um provincial, nos conventos mistos, as mulheres tiveram
que buscar muitas vezes na indisciplina, um caminho próprio para a vida contemplativa feminina. Portanto
é essa idéia de uma mulher que muitas vezes usa os elementos do opressor para impor ou construir seus
espaços que iremos trabalhar nesse texto.
10
Estado, significa que essa mulher ocuparia alguma condição nessa sociedade: casada ou religiosa.
54
que agrupou uma série de regras para a condução das recolhidas que iam
das proibições à fala nas grades, comer nos refeitórios, as funções na
cozinha. Observa-se que esse primeiro registro era mais geral. Sendo
publicado outro em 1806 que dava conta de situações mais especificas como
o ensino das meninas, que deveria ser contemplado com ensino de costura,
renda, leitura, escrita. O cuidado com as recolhidas menores “tendo todo
desvelo, não consentindo, que andem por sua, outra parte, perturbando a
comunidade nos dias de serviço, não devem estar ociosas”. A observância
das orações mentais, lições espirituais, ação de graças. Do consentimento
das visitas, apenas permitido pela Mesa. Das punições que passavam pela
perda do desjejum e prisões, em caso de, por exemplo, fazer aceno a alguém.
Das vestimentas, que não deveriam ostentar luxo, uma vez que deveriam
respeitar uma as outras. Essa última determinação da Mesa revela uma
preocupação com as diferenças sociais que se estabeleciam entre as
recolhidas. Uma vez que os órfãos poderiam ser sumamente pobres, mas as
porcionistas poderiam pertencer a extratos sociais mais abastados.
Contudo esse cuidado da Mesa em minimizar os possíveis escândalos e
diferenças entre as recolhidas com regras mais rígidas e mais claras, não
impediu que em 1828 a Mesa suspendesse do exercício de regente D.
Emerciana Joaquina de St André e sua Irmã mestra Inácia Joaquina de
Santa'Anna por ter permitido erros e excessos das recolhidas[18], dando
proteção a algumas delas. Ou em 1831, quando fora despedida por
insubordinação e falta de cumprimento de suas obrigações D. Maria de
Jesus. Ou em 1832, quando chega ao conhecimento da Mesa o
racionamento das rações que algumas recolhidas impunham as menores,
deixando-as ainda mal vestidas e quase nuas. No mesmo ano a regente
encontrou Joanna Maria a conversar com Justiniano Francisco Boticudo no
ralo da Portaria. Em 1833 até mesmo fugas foram registradas pela Mesa, que
segundo a qual fora facilitada pela:
Participação da regente, da qual se reconhecerem culpadas Joana
Batista Tavares, Isabel Francisco Villas Boas e Maria Isabel Tavares, que
fossem despedidas na forma da lei e que a Claudina do Sacramento fosse
18
asperamente reprimida pela regente .
Em 1840 a atual regente pede para sair por não “ter força moral
necessária para continuar a reger visto que a desobediência, intrigas de
algumas recolhidas, apesar de muito castigadas, continua, sendo levado ao
_____________________________________________________________
11
Segundo Russel-Wood (1981) “a roda dos expostos era um aparelho instalado em determinada
instituição assistencial, a fim de receber, anonimamente, as crianças enjeitadas pelos pais e cria-las, tendo
por fundamento a caridade cristã. No Brasil, coube a Santa Casa a Instituição da roda.”.
ASCMB Livro de Registro 93, p.36.
12
Segundo Fonseca (2000) cabra poderia ser um indivíduo liberto, com uma ascendência escrava
relativamente próxima. Para Ele, essa classificação pode representar que a condição de liberto dos pais
determinou o padrão de classificação dos filhos.
14
Idem, p. 217
15 A
ASCMB, Livro de Registro 86 , cap 3
55
conhecimento público” .
Diante de um contexto de tamanho afrontamento as ordens
estabelecidas, a Mesa promoveu várias intervenções nos estatutos a fim de
dar ao mesmo, mais rigor no controle das recolhidas, como o “envio de três
em três meses a relação nominal da conduta das recolhidas, informações
mensais sobre a conduta e adiantamento das discípulas, notando as faltas
que fazem” . Assim como procurou a Mesa ocupar o tempo e preparar melhor
as recolhidas, recomendando as lições da moral cristã e toda assiduidade no
trabalho diário. Se já em 1817, a Mesa já sinalizava a
necessidade da aplicação das meninas em coisas úteis, gomar e fazer
cintura, a exemplo de outros conventos, a partir dos anos subseqüentes
haveria um real esforço da Mesa na promoção dessas atividades e de outras
como em 1846, onde a Mesa estuda a viabilidade de atender ao pedido de
João Batista Obese, “da mesma cidade acerca da concessão pretendida por
este, de dez meninas recolhidas desta Santa Casa para aprenderem a arte de
florista no estabelecimento do dito Obese” . Em 1848 o uso das mulheres do
recolhimento para enfermeiras do Hospital da Caridade, como em outros que
deva ser exercido por mulheres, e existam vagas, ou se hajam de criarem-se
diferentes repartições da Santa Casa “. Em 1854, envio de recolhidas para
trabalharem na fábrica de Valença e em1855 a possibilidade de regerem a
Casa dos expostos.
É importante notar que esse emprego de mulheres em atividades
pela Santa Casa de Misericórdia, também procurava dar uma solução não só
a quantidade de pessoas ociosas da Casa, as constantes desobediências,
uma vez que estariam ocupadas, mas também as suas dificuldades
financeiras de manutenção dessas mulheres . 23
16
ASCMB, 86 A, Estatuto de 1806.
56
de grande número de donzelas existentes no Recolhimento segundo o
compromisso não se podia conservar sendo maior de vinte anos. Convinha
se procurassem arranjos para algumas de maior idade, que ali se achavam, e
podiam ser aplicadas para servirem como criadas em casa de famílias ou nos
conventos, como servas”.
No Recolhimento do Santo Nome de Jesus, a condição de serva
era destinada às mulheres de cor, como deixa claro o Estatuto de 1806: “As
servas da comunidade, assim chamadas, ou seja, forras ou capturas, são
obrigadas ao serviço de toda a comunidade. Visto que com esse destino são
aceitas, e a casa lhes presta todo o subsídio” .
O que nos leva a supor, a decisão da Mesa se destinar algumas
das recolhidas para desempenhar determinadas funções ou cogitada para
determinadas ocupações foi influenciada pela sua condição de cor,
demonstrando a mentalidade da época que não dissociava a cor do indivíduo
da ocupação que ele poderia exercer. Impondo, portanto a essas mulheres
marcadas pelo “incidente da cor”, a adequação não só a sua condição social,
mas, sobretudo a sua condição étnica. Essa idéia pode ser fundamentada
quando consideramos, segundo Matta (1999, p. 38) que mesmo a classe
dirigente, havendo necessidade de trabalho braçal, não diferenciar
trabalhadores livres pobres e escravos, existia uma tendência dos
trabalhadores livres pobres, brancos, a valorizar os ofícios mecânicos ligados
ao avanço tecnológico, serviços comerciais e escritório que exigiam mais
preparo em oposição às atividades mecânicas tradicionais ou as ocupações
que solicitavam maior esforço físico e por isso estarem
associados à condição de cativo.
Russel Wood (1981, p.243) por sua vez, especifica que apesar de
grande parte da população da Bahia viver em nível de subsistência, no século
XVIII, muitos brancos preferiam viver na pobreza a dedicar-se aos trabalhos
manuais, que consideravam dignos apenas dos escravos. Mattoso (1992,
p.535) salienta que não era comum a todas as mulheres trabalharem,
podendo haver gradação na ocupação do mercado de trabalho entre elas, de
acordo com a cor. Mulheres brancas poderiam trabalhar como professoras
primárias a partir de 1830, como diretoras de asilos ou abrigos e como
enfermeiras de hospitais ou casas de caridade. Nas classes médias não eram
raras as que se dedicavam a trabalhos de bordado ou costura, ou preparo do
_____________________________________________________________
17
Segundo o Livro de Acordos de 1832 as indisciplinas iam desde as conversas nas janelas, o
afrontamento das regentes, venda de rações e até mesmo um caso entre as recolhidas como consta na Ata
de 1798.
18
ASCMB Livro de Registro 88 A, p.272.
19
Id.,, sessão de 11 de fevereiro de 1840.
20
ASCMB, 86 A
21
ASCMB Livro de registro, 89 A, pág.182.
22
ASCMB Livro de registro, 90 A.
57
petisco, sobretudo doces, vendidos pelas ganhadeiras. Negras e mulatas
livres, além desses trabalhos artesanais, poderiam ser lavadeiras,
passadeiras e engomadeiras.
Reis (2000, p.173) afirma que, não obstante, Lino Coutinho,
homem nobilitado, ter em suas Cartas para a educação de Cora, em 1858,
sugerindo a mesma aprender as prendas domésticas, o fazia por
compreender que a mesma deveria ter algum meio de se sustentar caso
caísse em miséria e pobreza, mas salienta a autora que os afazeres
domésticos eram mal vistos e tidos como trabalho degradante.
Em 1858 havia no recolhimento 104 recolhidas, sendo 50
brancas, 33 pardas, 16 cabras e 5 pretas e levando em consideração as
discussões de Russel Wood (1981), Matta (1999), Mattoso (1992) e Adriana
Reis (2000), supõe-se a Casa ter levado em consideração a cor dessas
mulheres para colocá-las em determinadas funções ou até mesmo pela
dificuldade de casá-las. Segundo Russel Wood (1981, p. 244):
Frequentemente, as esposas ou amantes eram de cor. Certamente estas
tinham mais probabilidades de serem abandonadas do que as brancas.
Havia várias razões para isso. A escassez de mulheres brancas, as
tornavam muito solicitadas, e elas tinham possibilidade de casar com
pessoas que oferecessem maior segurança e estabilidade, por exemplo,
um negociante ou funcionário público. Quanto mais escura, mais provável
era que a mulher fosse abandonada pelo marido ou amante. Sugeriu-se
que uma negra pudesse casar-se com um homem brando de classe
baixa, totalmente inadequada, por motivos sócio-raciais 'para clarear a
raça'. Não se pode haver dúvida de que na Bahia colonial a aceitação
social dependia do grau de alvura da pele. Uma mulata clara podia fazer
um bom casamento com um ferreiro, sapateiro ou pedreiro. A leve
mancha racial da moça harmonizaria com a baixa condição social do
marido branco. Quanto maior o grau de diferenciação racial, maior a
tensão no casamento misto. A relação normal seria substituída por uma
relação senhor – escrava. A negra seria amante, cozinheira e empregada
do homem branco, mas nunca a outra parte da sociedade conjugal.
E a dificuldade de casar as mulheres do recolhimento pode
também não está apenas associado à cor de algumas delas, mas as idades,
como podemos supor ao analisar alguns documentos. Em 1848 escreveu a
Mesa da Misericórdia:
_____________________________________________________________
23
Em vários momentos das atas e dos livros de registros, em diferentes períodos, houve discussões sobre
a dificuldade de manutenção do recolhimento, bem como a dotação dessas recolhidas. Primeiro pela
dificuldade de dispor dos bens deixados por João de Mattos e segundo por, em muitos momentos, esse
espólio não ser suficiente para a manutenção de assistência a essas mulheres. Russel-Wood (1981)
salienta ainda, que não fora apenas o recolhimento uma das atividades da Santa Casa de difícil
manutenção, mas também assistências aos doentes e presos.
24
ASCMB Livro de Registro, 86 A.
58
Que segundo o compromisso da Irmandade as recolhidas deveriam
despedir-se ao chegarem aos 20 anos [...] Todavia sucessivamente
povoado [...] chegando a ter 178 recolhidas [...] Sendo que das recolhidas
que saem para casar-se ou faleceu, atualmente encontram-se 123, 8 de
10 anos, 77 de 20 anos, 33 de 30 anos e 2 até 40 anos [...] promover a
saída daquelas,que já por sua idade,estivessem livres do perigo do
mundo,oferecendo a quantia de um dote para sua manutenção[...].
Em 1853 de 104 recolhidas a mesa registrou apenas 7
casamentos. O registro de tão poucas cerimônias maritais pode ser
entendido pela ideologia da época que, “naturalizava” o casamento aos 12
anos, como deixa subentendido Matoso (1995) e Reis (2000) quando
afirmam que uma mulher acima de 20 anos, nessa sociedade, não reunia os
atributos físicos necessários para a construção do seu papel de mãe, já que o
vigor físico era um atributo associado ao bom desempenho da reprodução.
Ou seja, quanto mais jovem fosse à mulher, melhor seria como reprodutora.
Essa mentalidade da época nos leva a supor, que este fator, tornou-se uma
das dificuldades da Mesa para casar mulheres mais velhas, obrigando a
direção da Santa Casa a encontrar uma outra condição de sobrevivência para
essas recolhidas, uma vez que o tão almejado “estado de casada” para elas
tornava-se mais difícil devido o fator idade.
Em 1858 diante do excessivo número de recolhidas, da
desobediência que se estabelecia no recolhimento, das críticas externas a
esse espaço enquanto formador, e das próprias mudanças que ocorreram no
século XIX a respeito de como as mulheres deveriam ser educadas para
serem úteis a sociedade.
Ou seja, o século XIX foi um momento em que as mulheres
estavam sujeitas aos outros discursos que reivindicavam uma maior
“libertação da mulher”, uma maior sociabilidade, influenciados pelas idéias de
civilidade, que estavam presentes nos teatros, bailes, romances e jornais,
dificultando a realização dos ideais católicos sobre a mulher e a família.
E nesse momento é relevante pensarmos que o durante os
séculos XVII ao XIX o discurso do controle social, que havia sido enfatizado
no século XVI, principalmente sob a influência de Erasmo de Roterdã, com a
noção de civilidade como controle e codificação dos comportamentos do
outro toma corpo em uma concepção onde se estabelecia que:
Todos os movimentos, todas as posturas corporais, a
própria roupa podem ser objeto de uma leitura semelhante.
Os gestos são signos e podem organizar-se numa
linguagem, expõe a interpretação e permitem um
reconhecimento moral e psicológico e social da pessoa.
Não há intimidade que não revelem. (DUBY, 1991, p.172).
E se para Duby (1991, p.172) o corpo diz tudo sobre o homem
profundo, devendo ser possível formar ou reformar suas suposições íntimas
59
regulamentando corretamente as manifestações do corpo. Revel (apud
DUBY, 1991, p.171) afirma que a idéia de um comportamento que poderia ser
construído, levou os educadores europeus e com eles a opinião pública, a
começar a acreditar que era possível reunir certo número de conselhos e
observações para serem seguidos em cada ocasião específica da vida social,
o que resultaria em um comportamento civilizado. A civilidade pretendia
transmitir um código válido para tudo e que todos pudessem adquirir
qualidades e maneiras.
E se inicialmente esse discurso do controle social, através de
normas que pudessem ser apreendidas em espaços específicos de
educação, escolas e instituições, era para a criança, considerado o vir a ser
da sociedade, isso não impediu que a mulher fosse introduzida como objeto
desse discurso. A mulher jovem, a adulta, a casada, todas deveriam ter
consciência do seu papel na sociedade. O comportamento feminino tinha
representar aquilo que a sociedade esperava. O sentar, o falar, o vestir, o
andar, o que fazer o que ler como olhar, que postura apresentar tudo isso era
indicado como reveladores do seu ser, portanto deveria ser adequadamente
usado e educado.
Rousseau (apud BUCHENAU 2007, p.1) em Educação para
Emílio apresenta Sofia, a menina que se tornaria a mulher perfeita como
esposa de Emílio se não esquecesse que as meninas deveriam ser
acostumadas cedo à restrição. Uma lição mais importante para as mulheres é
aprender sobre seus deveres, e, além disso, amar esses deveres, os deveres
incluem tarefas domésticas, mas não necessariamente ler ou escrever numa
idade muito prematura. A natureza doméstica da educação de mulheres
enfatiza o papel de mãe e dona de casa. Além disso, o único dever que uma
mulher tem é ser esposa.
Apesar de ser um homem das luzes, Rousseau, segundo
Buchenau (2007), apresenta idéias conservadoras para a educação das
meninas e mulheres. A mulher era o indivíduo que deveria ser conduzido,
limitado, educado, explicado: “os professores ensinam-na, limitam-na,
educam-na, explicam para ela”.
É interessante observar que após a Revolução Francesa houve
uma caminhada para a laicização do ensino. Se antes, as mulheres tinham os
conventos e recolhimentos como formadores do sexo feminino. A partir do
século XIX existiriam as primeiras escolas para raparigas, “com a finalidade
de ir mais longe que o ensino doméstico no quais as religiosas eram acusadas
de circunscrever as raparigas, para lhes ensinar igualmente ensinamentos
teóricos”. Mas o modelo feminino matinha-se: contribuir para a felicidade de
uma casa, independente da classe social. Ou seja, o ideal de mulher no lar
_____________________________________________________________
25
No livro de registro,em 1840,a Mesa Administrativa da Santa Casa de Misericórdia se referia as enjeitas
pardas ou negras, como mulheres marcadas pelo incidente da cor.
60
não fora abandonado.
Nesse sentido a manutenção dessa idealização de mulher
passava pela limitação do acesso da mesma a determinadas leituras, do
reforço da educação moral “O ensino comporta três ordens: cursos gerais,
cursos específicos de comércio, trabalho prático em oficinas: além de
receberem uma educação moral”. Elisa Lemonnier (apud PERROT 1992,
p.20) pretende fazer delas boas mães de família, com hábitos de dignidade
pessoal, de estima e de respeito por se próprias.
Entretanto se algumas leituras não eram recomendadas às
mulheres. Durante os séculos XIX e XX, segundo Roquette (1997) um novo
gênero literário dedicado às boas maneiras e comportamentos toma força na
Europa, beneficiado de uma maior alfabetização e o desenvolvimento da
imprensa: os manuais de boa conduta e etiqueta. Esses manuais tinham
como objetivo estabelecer regras e modelos de sociabilidade. Ao mesmo
tempo em que demonstrava as quais elites pertenciam o indivíduo e que tipo
de comportamento não se poderia ter. “Comportamento nobre e cortês passa
a ser comparado aos modos camponês, rudes, e a postura oposta à deste é
recomendada e ensinada a adultos e crianças” (ROQUETE
,1997, p.16).
As regras iam das mais gerais da vida social cotidiana: o
guardanapo substitui o lenço durante as refeições; o garfo deixava, aos
poucos, de ser utilizado exclusivamente para se tomar sopa [...] e fazia às
vezes das mãos no manuseio dos alimentos. E eram direcionadas a grupos
específicos:
Paras as mulheres os conselhos são diretos (...) não fica bem esticar a
conversação. É melhor ser simples, breve, evitar frases longas e palavras
difícies. Contar piada, prática tão comum já nas reuniões da época, e
também objeto de reflexão: não deve contar a mesma piada mais do que
três vezes, em uma mesma reunião, e muito menos rir antes dos demais
(ROQUETE, 1997, p.15).
Ao mesmo tempo em que estabelece as diferenças que deveriam
separar o mundo dos homens do mundo das mulheres. Exemplo disso
encontra-se o cônego Roquette que cria Reofilo e Eugenia estabelecendo
que para o primeiro ficasse a polidez e urbanidade, a distinção da fala
inteligente e correta, para as mulheres um falar suave, um ar reservado; a
atitude deveria ser modesta e silenciosa; Se o homem deveria ter a atitude
cerceada, o controle sobre as mulheres deveria ser mais rigoroso: “Se
calarem, cala-te também [...] Se te divertires, não mostre senão uma alegria
moderada; se estiveres aborrecida, dissimula e não dês a conhecer”
(ROQUETTE, 1997, p.26).
_____________________________________________________________
26
ASCMB Livro de Registro, 90 A, p.179.
61
Observa-se, portanto que a civilidade que desponta, inicialmente
na Europa, propõe “o mais absoluto controle das emoções e sentimentos,
além de estabelecer, regular a propriedade de cada sexo.” (ROQUETTE,
1997, p.27). A civilidade pressupõe conter as manifestações espontâneas,
não contemplando a existência social do indivíduo que dá expressão a
impulsos e emoções livremente.
Nesse sentido o controle sobre a mulher tem uma atenção
especial no discurso da civilidade. Se pensarmos que esta sociedade
civilizada estabelece uma função para a mulher: ser esposa, ser
mãe. Por isso era mister um controle sobre feminino, que como foi
demonstrado poderia ser estabelecido desde do controle do corpo, das suas
expressões, a sua forma de pensar.
E a Bahia, no século XIX, foi palco dos debates sobre os padrões
de civilidades que se pretendia a uma sociedade que vivenciava as
transformações trazidas, primeiramente pela vinda da Família Real para o
Brasil, com seus novos gostos e comportamentos, onde a mulher brasileira
era vista como descuidada. A coroa portuguesa provocou uma série de
mudanças nos hábitos sociais das principais cidades do Brasil Colonial:
Recife, Rio de Janeiro e Salvador assistiram os requintes dos eventos
propiciados por e em nome de uma corte acostumadas com bailes, festas e
eventos de toda ordem e que contribuirá para construir a dama da corte
brasileira atualizada nas modas francesas e nas etiquetas para posar com
polidez nos bailes. Mas tarde, a partir de 1822, a busca de uma identidade
para o novo império que se formava, reforçou a representação das noções de
civilização ligadas à França. Saber ler, francês, tocar piano, dançar eram
qualidades para um bom casamento, pelo menos para as mulheres da elite.
Ao mesmo tempo em que incorporava as novas idéias da medicina ligadas a
noções de higienização. Reis (2000, p.116) afirma que se antes as mulheres
tinham o direito ao desalinho, a liberdade no espaço doméstico, agora
deveriam seguir regras de asseio apropriadas para o lar, comer moderação,
amamentar, manter a simplicidade no vestir, e ser ilustradas para educar os
seus filhos.
Observar – se, que o discurso por uma mulher mais ilustrada, a
partir de 1822, aconteceu em um período onde as idéias dos pensadores das
luzes que haviam se estabelecido na Europa desde 1762,
principalmente com Rousseau, começaram a chegar ao Brasil, somente no
início do século XIX, coincidindo e mesmo influenciando o momento político
de liberdade da colônia, aumentando as aspirações educativas dos filhos da
elite, onde a mulher teria um papel preponderante na educação desses novos
homens. Aliado ao discurso médico da higienização, não poderia ser
esquecido os preceitos religiosos que estabelecia a “delimitação do espaço
_____________________________________________________________
27
Escreveu no século XVI a Civilidade Pueril.
62
socialmente aceitável para a mulher, como pessoa honrada e mãe de família
e mãe de família dedicada, a busca da garantia de seu futuro como cidadãs
úteis e mesmo o exercício da caridade cristã” (REIS, 2000, p.96).
Todavia, Reis (2000) deixa subentendido que mesmo havendo
um discurso uniforme do que deveria ser a educação e papel da mulher na
sociedade: esposa, cuidadora do lar e mãe. Havia uma diferenciação entre os
espaços e condutas que deveriam ser destinados à mulher da elite e as
menos abastadas ou pobres, cujo maior medo era a possibilidade dessas
últimas tornarem-se mulheres perdidas ou desonradas. Daí o controle maior
sobre esse tipo de mulher. Essa idéia justificaria a preocupação da Irmandade
da Santa Casa de Misericórdia com os acontecimentos que se estabelecia no
Recolhimento do Santo Nome de Jesus e que precipitou o apoio da Mesa
Administrativa da Santa Casa a vinda das Irmãs de Caridade para o
recolhimento, concretizando o desejando do seu defensor D.Romualdo
Seixas.
Segundo Reis (2000, p.105) as Irmãs de Caridade vieram
exercer:
Funções em hospitais, casas de caridade e colégios de educação. Nos
hospitais, elas tratavam dos enfermos, dos velhos, dos alienados e das
crianças expostas. As de caridade prestavam socorros gratuitos,
inicialmente em seu domicilio. Recebiam meninas para o trabalho em
comum; as de mais tenra idade iam para as escolas, asilos ou creches,
onde também eram acolhidas as órfãs de pai e mãe. Nas casa de
educação ensinavam religião, literatura, pronúncia, escrita, as línguas
portuguesa e francesa, composição literária, contabilidade, geografia
geral e especial, regras de civilidade, música e o trabalho doméstico:
costuram bordadas, marcas etc.
É interessante notar que, para além da riqueza do currículo
proposto pelas Irmãs, como argumenta Reis (2000), as Irmãs de caridade, ao
contrário, dos conventos e recolhimentos, muito criticados na época, trazia
uma nova proposta que incluiu a relevância do aprendizado da doutrina
católica, associado às regras de civilidade, estabelecendo um meio termo
entre educação laica e religiosa.
As Irmãs de Caridade, segundo Reis (2000, p.108) ao adicionar
regras de civilidade ao aprendizado sobre os sacramentos, trouxe a
educação humanista cristã, que patrocinou uma educação leiga juntamente
com a religiosa e estavam empenhadas em estabelecer uma educação
_____________________________________________________________
28
J. I. Roquette, cônego português, foi autor do código de bom-tom identificado publicado em 1845 que, (já
em sexta edição em 1900) procurava normatizar os rituais do Brasil Imperial e se tornou leitura obrigatória
para aqueles que almejavam ser bem sucedidos na sociedade. Relançado em 1984, este manual
introduziu regras de como comportar-se em festas, eventos da sociedade, artes de bem viver, inspirado em
manuais franceses.
63
feminina que entremeasse a educação moral cristã e a profana. E ao divulgar
noções de civilidade e regras de higiene, reafirmaram o objetivo da Igreja e da
sociedade de formar os “movimentos, ações decentemente reguladas na
praxe do mundo”. Nesse sentido as Irmãs de Caridade buscavam ressaltar,
com insistência, a “natureza” caridosa da mulher, delegando a ela a função da
assistência social, atendendo aos pobres, doentes e crianças órfãs.
No Recolhimento do Santo Nome de Jesus, as Irmãs de Caridade
objetivaram empreender essa proposta educacional cuja qual já havia posto
em prática em alguns espaços na cidade de Salvador como o Colégio
Coração de Jesus. Procurando as mesmas associar as demandas da Mesa
Administrativa de uma formação moral, religiosa a uma educação que
tornasse essas mulheres úteis a sociedade. Todavia essa concepção
educacional também passava por uma idéia do que deveria ser mérito ou não
de algumas mulheres.
Em 1854, com a formação da Associação das Senhoras de
Caridade na Bahia, deixou bastante claro o que caberia a um grupo
privilegiado de mulheres:
Em 1855, a confraria das Senhoras de Caridade abriu a Casa da
Providencia, na Baixa dos Sapateiros, dirigida por quatro Irmãs de
Caridade que vieram da França especialmente para ali servi. Em uma
sala de trabalho, recebiam, gratuitamente, meninas pobres livres e
escravas pertencentes as senhoras da Confraria,para ensinar-lhes a ler e
a escrever,de 8 as 11 da manhã,e de 1 as 5 da tarde.As Irmãs
visitavam,seus domicílios,os pobres e doentes e recebiam os enfermos...
É importante ressaltar que as senhoras de caridade não exerciam essa
pratica... Elas apenas administravam. (REIS, 2000, p.110).
Assim como no início da fundação das Filhas de Caridade na
França. Não eram as damas da Caridade quem servia aos pobres, eram as
suas criadas. Assim podemos entender porque as mulheres do Recolhimento
do Santo Nome de Jesus estavam aptas para determinadas funções,
segundo a visão das Irmãs de Caridade, ao contrário, de outras mulheres em
condições sociais privilegiadas.
Podemos notar que esse Recolhimento de mulheres foi durante o
século XIX um importante espaço de formação para determinados grupos de
mulheres, atendia a uma lógica da sociedade local que via nesse espaço um
local de formal moral para as mulheres tidas como ideais para casar, assim
como estabeleceu uma relação de formação “para o trabalho” para aquelas
mulheres cujo ideal de casamento não fosse alcançado. Tais formações
passam por uma concepção do que deveria ser o feminino no século XIX,
assim como das atividades que poderiam exercer a partir da sua condição
econômica e de cor.
Visualizar essas formações e como essas mulheres se
adaptaram ou não a essas formações nos leva a compreensão de como os
64
gêneros são construídos no percurso histórico. E como os diferentes
discursos não construídos em torno dos indivíduos procurando moldar, a
partir das relações estabelecidas, um ideal de masculinos ou femininos que
atendam ou se adequem a determinado contexto social. O que
nos levar a refletir como os papeis de gêneros que se estabelecem hoje, não
são construídos em um momento histórico apenas presente, mas atravessam
o tempo, muita vezes sedimentando os esteriótipos e reforçando os lugares
que mulheres e homens podem ou devem ocupar.
Por outro lado, os estudos sobre os recolhimentos, como espaço
de formação, como foi o caso do Santo Nome, demonstra como o resgate do
estudo desses locais nos possibilita entender a trajetória das mulheres
durante o período colonial e imperial, uma vez que a invisibilidade dos
estudos sobre as mulheres nesses períodos ainda se esbarram na idéia de
ausência de fontes que possibilitem a visibilidade dessas atrizes sociais.
65
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Livros de Registros de Correspondência 86 A
Livros de Registros de Correspondência 89 A
Livros de Registros de Correspondência 90 A
Livros de Registros de Correspondência 93 A ( 1856 a 1861)
Carta da Superiora francesa (27/ 04 /1858)
Relatório de João Mauricio Wanderley 31 de março de 1858
68
MARY WOLLSTONECRAFT CONTRA JEAN-JACQUES ROUSSEAU: em
Defesa de um Feminismo Iluminista
INTRODUÇÃO
Ao falarmos do Iluminismo tanto podemos nos referir a um movimento
histórico dos meados do século XVIII quanto a uma crítica racional atemporal,
em contraposição à primeira acepção, que perdura até os nossos dias como
exame das interações sociais e como denúncia de todos os processos que
mascaram as desigualdades com vista a materializar o ideal de emancipação
humana que se apresenta como uma teleologia “que progride
cumulativamente em direção a um objetivo ainda não atingido” (SCOTT,
2002, p.23). O horizonte utópico, da última perspectiva, por certo, abre-se
como uma possibilidade realizável na qual o empenho político se mostra
“interessado na deliberação moral e na relação entre normas morais e
normas legais, e desse modo, sua teoria política é principalmente uma teoria
constitucional do projeto, na qual os participantes são pensados como
cidadãos iguais” (CHAMBERS, 2008, p.291).
Ao falarmos, inicialmente, sobre o duplo significado do
Iluminismo é bom que nos remetamos a uma distinção conceitual feita, com
muita precisão, por Sérgio Rouanet (1988), a saber: o que é Ilustração e o que
é Iluminismo. Assim, se o segundo termo, como pensamento, ultrapassa as
barreiras do tempo e do espaço, o primeiro está circunscrito no âmbito
histórico-cultural. Para sermos mais didáticos podemos utilizar a linguagem
matemática da teoria dos conjuntos, para afirmar que o Iluminismo contém a
Ilustração e não o contrário; a Ilustração é um subconjunto do Iluminismo.
Dessa sorte, como bem nos esclarece Ernst Cassirer (1992), a força pulsante
desse movimento histórico-cultural chamado Ilustração só poderia ser
captada no interior daquele momento.
Entretanto, nada nos impede de caracterizá-lo historicamente,
guardadas os contornos específicos das principais culturas nacionais da
época (França, Inglaterra, Alemanha, Itália), como uma aglutinação
heterogênea de intelectuais inquietos e engajados politicamente, que
exerceram uma grande influência na constituição de uma nova moral e na
construção do ideal de cidadania moderna, através dos seus escritos
literários disseminados cada vez mais a um público letrado. Vale ressaltar que
o complexo arcabouço de idéias plurais decorre de um contexto histórico-
cultural diverso e incerto. Por conseguinte, tal atmosfera, como descrevem
Giulio de Martino e Marina Bruzzese (1996, p.185), emana do fato que
[...] os países europeus estavam lacerados pelas diferenças religiosas, a
influência das igrejas sobre a monarquia e sobre suas políticas era forte,
69
ou igual aos encargos dos privilégios feudais e eclesiásticos sobre as
economias dos Estados; um sentimento difuso de inquietude social e falta
de referentes flutuava em um mundo em transformação e em busca de
novos ideais. Ademais, a Europa era sacudida por continuas guerras de
sucessão que enfrentavam as principais dinastias.
Decerto, a complexidade de idéias transformadoras, a que nos
referimos, pode ser sintetizada em três eixos (MARTINO; BRUZZESSE,
1996, p.186), a saber:
1. Desenvolvimento de uma vida religiosa, além da polarização
entre Reforma Protestante e Reforma Católica, que ocasionou a
evolução do sentimento e pensamento místico em três correntes
filosófico-religiosas, a saber: teísmo, deísmo e ateímos radical.
_____________________________________________________________
29
Doutorando em Estudos Interdisciplinares Sobre a Mulher, Gênero e Feminismo, com enfoque nas
questões filosóficas e éticas; Mestre em Educação e Graduado em Filosofia pela Universidade Federal da
Bahia; Pesquisador Associado do Núcleo de Estudos Interdisciplinares Sobre a Mulher (NEIM/UFBA)
70
história dos séculos posteriores” (MARTINO; BRUZZESSE, 1996, p.187) e,
também, momento em que as mulheres letradas de classes abastadas
reivindicaram uma identidade, uma diferença e uma especificidade enquanto
parte do gênero humano, bem como uma igualdade de direitos universais
para as mulheres cidadãs entre cidadãos (MARTINO; BRUZZESSE, 1996,
p.187). Decorre daí o surgimento do feminismo, filha ignorada e
marginalizada da ilustração; isso porque muitos não reconhecem as suas
origens ou se o fazem a tratam como decorrente de um matrimonio mal
sucedido entre racionalismo e denúncia dos mecanismos de opressão.
O feminismo pode, então, ser concebido como uma doutrina
social favorável à mulher e que foi tratada como algo secundário “no cenário
político 'maior', mas também algo maior do que uma explicação que dependa
de fatores – quer sociais, quer econômicos – precedentes e externos à
política, ou então de razões com as quais os próprios políticos justificam suas
ações” (SCOTT, 2002, p.25). Na verdade, o feminismo surge como “sintoma
das contradições dos discursos políticos [liberais] [...], contradições para as
quais o feminismo apelava, ao mesmo tempo em que a desafiava” (SCOTT,
2002, p.25).
É sob esse aspecto que Joan Scott (2002; 2005) reflete sobre o
movimento feminista, nascente no século XVIII, como aquele que oferece
paradoxos, diferentemente de dilemas que não podem ser resolvidos. Como
paradoxo, pensa-se em algo que importuna a tendência de polarização entre
isso ou aquilo e que, por conseguinte, absorve as tensões “que desafia a
ortodoxia prevalente, que é contrária a opiniões preconcebidas.”
(SCOTT, 2005, p. 14). De acordo com Joan Scott (2002, p.38)
As feministas [ilustradas] não apenas apontavam as incoerências;
tentavam também corrigi-las, demonstrando que elas também eram
indivíduos, de conformidade com os parâmetros de individualidade de
sua época, fato reconhecido por vários textos da própria legislação civil.
Não podiam, porém, evitar (ou resolver) o problema de sua presumida
diferença sexual. As feministas discutiam ao mesmo tempo a relevância e
a irrelevância de seu sexo, a identidade de todos os indivíduos e a
diferença das mulheres. Recusavam reconhecerem-se mulheres nos
termos ditados pela sociedade e, ao mesmo tempo, elaboravam seu
discurso em nome das mulheres que inegavelmente eram. As
ambigüidades da noção republicana de individuo (sua definição universal
e corporificação masculina) eram assim discutidas e postas a nu nos
debates feministas.
O que posteriormente se configurou, na história do feminismo
ulterior, como um dilema ou como uma necessidade em optar entre a
igualdade e a diferença, só pode ser diluído como um falso dilema,
historicamente para nós, se considerarmos os termos de tal binômio como
algo inter-relacionado no período. Ademais, longe de levarmos a cabo tais
71
discussões, é bom esclarecermos que objetivamos com esse ensaio
centrarmos no debate travado entre Mary Wollstonecraft e Jean-Jacques
Rousseau.
Focalizaremos, inicialmente, as nossas discussões sobre o conceito
de estado de natureza formulado por Rousseau, uma vez que nele
encontramos o fundamento antropológico e político que projeta socialmente
homens e mulheres de forma diferenciada através de um plano educativo.
Vale aqui alguns questionamentos: Se existe um estado de natureza, ao
menos como uma formulação abstrata, ele é unívoco? Se assim o for, em que
medida podemos falar de destinos teleológicos diferenciados? Há possíveis
quebras lógicas no pensamento rousseaniano? Como elas são resolvidas?
Quais as contribuições críticas de Mary Wollstonecraft? Comecemos, então,
pela compreensão do conceito que anunciamos.
30
“Por importante que seja, para bem julgar o estado natural do homem, considerá-lo desde sua origem e
examiná-lo, por assim dizer, no primeiro embrião da espécie, não seguirei sua organização através de seus
desenvolvimentos sucessivos [...] Não poderei formular sobre esse assunto senão conjecturas vagas e
quase imaginarias [...] assim, sem ter recorrido aos conhecimentos naturais que temos sobre esse ponto e
sem levar em consideração as mudanças que se deram na conformação tanto interior quanto exterior do
homem, à medida que aplicava seus membros a novos usos e se nutria com novos alimentos, eu o suporei
conformado em todos os tempos como o vejo hoje: andando sobre dois pés, utilizando suas mãos como o
fazemos com as nossas, levando seu olhar a toda natureza e medindo com os olhos a vasta extensão do
céu.” (Discurso Sobre a Desigualdade, p.57).
31
Não só estudiosas feministas como também alguns comentadores, cujos estudos são referência para a
análise do pensamento rousseauniano, a exemplo de Starobinski em um prólogo da obra de Rousseau em
língua francesa, estabelecem dois sentidos para o de estado de natureza: o estado de natureza qualificado
como de estado de natureza puro e o estado de natureza histórico, também chamado de pré-social. Ao
longo de nossa explanação clarificaremos tais distinções.
75
homem civil (FORTES, 1989).
Por certo, logo que as dificuldades se impuseram à humanidade,
limitada inicialmente às dádivas da natureza, os indivíduos isolados reagiram
com criatividade para transpor vários obstáculos — acesso à alimentação,
concorrência dos animais e ferocidade dos que ameaçavam a sua vida —
com o fim de garantirem sua sobrevivência (Discurso Sobre a Desigualdade,
Segunda Parte, p.88).
As mudanças climáticas também contribuíram para uma
modificação na maneira de viver dos povos distribuídos ao longo do globo
terrestre: os povos mais próximos à costa marítima inventaram os anzóis e
aprenderam a pescar; aqueles mais voltados ao continente construíram
arcos e flechas e se tornaram guerreiros; por fim, os habitantes das regiões
frias aprenderam a se defender das baixas temperaturas e a conservar os
alimentos (Discurso Sobre a Desigualdade, Segunda Parte).
Por conseguinte, as interações do gênero humano com o meio e
com os outros seres conduziram a espécie a perceber relações que
acabaram por produzir “[...] uma certa espécie de reflexão, ou melhor, uma
prudência maquinal, que lhe indicava as preocupações mais necessárias à
sua segurança”. (Discurso Sobre a Desigualdade, Segunda Parte, p. 90).
Concomitantemente, fundou-se um conhecimento de si e dos outros seres,
daí emergindo a consciência do ser indivíduo e o orgulho no coração humano.
Por fim, nessa etapa, a alteridade ou reconhecimento do outro
como semelhante, decorre do olhar que o indivíduo lança sobre os demais
seres. Rousseau, de maneira “singela e tímida”, nos diz que o macho da
espécie humana, em suas observações, concluiu que a fêmea da
mesma espécie tinha em conformidade as mesmas maneiras de pensar e de
sentir.
Embora seus semelhantes não fossem para ele o que são para nós e não
tivesse mais comércio com eles do que com os outros animais, não foram
esquecidos nas suas observações. As conformidades, que o tempo pôde
fazê-lo perceber entre eles, sua fêmea e sua própria pessoa, levaram-no
a ajuizar aquelas que não percebia e, vendo que todos se comportavam
como teria feito em circunstâncias idênticas, concluiu que suas maneiras
de pensar e de sentir eram inteiramente conformes à sua [...]. (Discurso
Sobre a Igualdade, Segunda Parte, p.89).
Vemos, assim, que o reconhecimento da alteridade modifica a
situação anterior da ausência de vínculos e cria as condições para a sua
instauração:
Ensinando-lhe a experiência ser o amor ao bem-estar o único móvel das
ações humanas, encontrou-se em situação de distinguir as situações
raras em que o interesse comum poderia fazê-lo contar com a assistência
de seus semelhantes e aquelas, mais raras ainda, em que a concorrência
devia fazer com que desconfiasse deles. No primeiro caso, unia-se a eles
76
em bandos ou, quando muito, em qualquer tipo de associação livre, que
não obrigava ninguém, e só durava quanto a necessidade passageira que
a reunia. No segundo caso, cada um procurava obter vantagens do
melhor modo, seja abertamente, se acreditava poder agir assim, seja por
habilidade e sutileza, caso se sentisse mais fraco. (Discurso Sobre a
Desigualdade, Segunda Parte, p. 89).
Destes vínculos grosseiros e fugazes, e também do esclarecimento
do espírito, surge um aprimoramento técnico que acabou por resultar na
criação da habitação, expressão de uma primeira revolução, graças a qual os
indivíduos começaram a compartilha um espaço e vivenciar vínculos
duradouros, bem como a formar sentimentos de estima e de preferência. Este
estágio, restrito ao estado de natureza histórico, é um estágio transitório e
intermediário da humanidade, onde ele não é plenamente mais um ser
selvagem, nem um ser social.
[...] esse estado é a verdadeira juventude do mundo e que todos os
progressos ulteriores foram, aparentemente, outros tantos passos para a
perfeição do indivíduo e, efetivamente, para a decrepitude da espécie.
(Discurso Sobre a Desigualdade, Segunda Parte, p.93).
Como vimos até agora, o significado de Homem natural (inclua-se
aqui homens e mulheres) no estado de natureza, em seu estágio pré-
social, ao longo do Discurso Sobre a Desigualdade, não apresenta
ontologicamente desigualdades entre os dois sexos. Como já pontuamos, a
existência de desigualdades naturais são nulas, pois na verdade as
desigualdades se estabelecem em relações assimétricas.
Sobressai-se, também, que é neste período feliz da humanidade,
precisamente na constituição da família como primeira forma de organização
social, que Rousseau reconhece que a subordinação das mulheres pelos
homens, ou melhor, que a “desigualdade” entre homens e mulheres começa
por meio de uma divisão sexual do trabalho. Diz-nos este filósofo:
Os primeiros progressos do coração resultaram de uma situação nova
que reunia numa habitação comum os maridos e as mulheres, os pais e os
filhos. O hábito de viver junto fez com que nascessem os mais doces
sentimentos que são conhecidos do homem, como o amor conjugal, o
amor paterno. Cada família tornou-se uma pequena sociedade, ainda
mais unida por serem a afeição recíproca e a liberdade os únicos liames e,
então, se estabeleceu a primeira diferença no modo de viver dos dois
sexos, que até ai nenhuma apresentava. As mulheres tornaram-se
sedentárias e acostumaram-se a tomar conta da cabana e dos filhos,
_____________________________________________________________
32
“Estendi-me desse modo sobre a suposição dessa condição primitiva porque, devendo destruir antigos
erros e preconceitos inveterados, achei que devia pulverizá-los até a raiz e mostrar, no quadro do
verdadeiro estado de natureza, como a desigualdade, mesmo natural, está longe de ter nesse estado tanta
realidade e influencia quanto pretendem nossos escritores.” (Discurso Sobre a Igualdade, Primeira Parte,
p.82).
77
enquanto os homens iam procurar a subsistência comum. Os dois sexos
começaram, assim, por uma via um pouco mais suave, a perder alguma
coisa de sua ferocidade e de seu vigor. (Discurso Sobre a Desigualdade,
Segunda Parte, p. 90-91, grifo nosso).
Não fiquemos, pois, a pensar que a divisão sexual do trabalho foi
criticada por Rousseau ao longo da sua obra. Com o fim de não sermos
imprecisos em nossa análise, enfatizamos que Rousseau, no
desenvolvimento de seu discurso, nos fala que muitas diferenças que
distinguem os seres humanos e são tomadas como naturais, são unicamente
obra do hábito e dos modos de vida que se adotam em sociedade. No
estabelecimento destas diferenças a educação tem também um papel
determinante. Apesar do trecho em questão ser longo, vale a pena registrá-lo.
É fácil de ver, com efeito, que entre as diferenças que distinguem os
homens, inúmeras, consideradas naturais, são unicamente obra do
hábito e dos vários gêneros de vida que os homens adotam em
sociedade. Assim, um temperamento robusto ou delicado, a força ou a
fraqueza, que dele derivam, resultam mais freqüentemente da maneira
dura ou afeminada pela qual foi educado do que a constituição primitiva
dos corpos. A mesma coisa acontece com as forças do espírito; a
educação não só estabelece diferença entre os espíritos cultos e os que
não o são, como também aumenta a que existe entre os primeiros na
proporção da cultura, pois, quando um gigante e um anão andam pelo
mesmo caminho, cada passo, que um e outro dêem, trará uma vantagem
a mais para o gigante. Ora, se se fizer uma comparação entre a
diversidade prodigiosa de educação e de gêneros de vida que reina nas
várias ordens do estado civil, e a simplicidade e uniformidade da vida
animal e selvagem, na qual todos se alimentam com os mesmos
alimentos, vivem da mesma maneira e fazem exatamente as mesmas
coisas, compreender-se-á quanto deve a diferença de homem para
homem sem ser menor no estado de natureza do que no estado de
sociedade e quanto aumenta a desigualdade natural na espécie humana
por causa da desigualdade de instituição. (Discurso Sobre a
Desigualdade, Primeira Parte, p. 82, grifos nossos).
Por certo, a denúncia rousseauniana — que reivindicava uma
razão que não operasse só na mente dos indivíduos, mas também que
operasse no seio da sociedade como práxis libertadora — não teve como
preocupação problematizar a sujeição das mulheres pelos homens; nem
mesmo constatar que as diferenças de papéis e de posições sociais entre os
sexos se deviam a forma como homens e mulheres foram educados e não à
natureza específica do seu ser. Nas palavras do próprio filósofo, como vimos
_____________________________________________________________
33
Para uma melhor compreensão deste período intermediário, ver as seguintes obras de Rousseau:
Discurso Sobre a Desigualdade Entre os Homens, p.91-93 e o Discurso Sobre a Origem das Línguas.
78
no trecho citado, ele não quis levar em consideração que as diferenças de
papéis e de posições sociais que distingue os sexos “são unicamente obra do
hábito e dos vários gêneros de vida que os homens adotam em sociedade”. E
mais, que o “temperamento robusto ou delicado, a força ou a fraqueza, que
dele derivam, resultam mais freqüentemente da maneira dura ou afeminada
pela qual foi educado do que a constituição primitiva dos corpos”.
As inquietações rousseaunianas, notoriamente, se dirigiam ao
plano político. Assim, o interesse de fundamentar as bases legítimas para a
passagem da liberdade natural à liberdade civil, expresso nas palavras
iniciais do Contrato Social, foi o seu quinhão. Dado que no estado
de natureza, antes do surgimento da sociedade civil, todos os homens eram
iguais entre si, parecia mais importante para Rousseau buscar os motivos
que levaram o ser humano a se assenhorear do seu semelhante e encerrá-los
em grilhões, do que discutir sobre as garantias dos direitos políticos das
mulheres e da sua pretensa liberdade.
Na verdade a razão rousseauniana não combateu a razão
patriarcal, pelo contrário a reforçou ideologicamente ao ocultá-la; ao
transparecer que a divisão dos papéis entre os sexos foi resultado de um
consenso, conseqüência de um acordo harmonioso que se deu por um
contrato conjugal tendo em vista o estabelecimento da família (RODRIGUES,
2005). Aliás, é no seio da família que a complementaridade dos sexos, por
meio do matrimônio, que a sociedade adquiriria perfeição moral e o equilíbrio
da organização social alicerçada na divisão entre o público e o privado. Por
isso, Rosa Cobo (1995), Marie Blanche Tahon (1999) e Carole Pateman
(1993) ressaltam que a naturalização da divisão sexual do trabalho tinha
motivos intencionais e de necessidade política.
As quebras lógicas do pensamento rousseauniano, no Discurso
Sobre a Desigualdade Entre os Homens, apresentadas por Rosa Cobo
(1995, p.91), dão margem a pensarmos que as atribuições naturais
destinadas a homens e mulheres assinalam que estas naturezas se originam
em estágios diferenciados do estado de natureza, que fundam o suporte para
_____________________________________________________________
34
O Emílio como um exemplo do homem natural deve conservar as suas qualidades originárias estando em
sociedade, o que justifica uma educação que proporcione a autonomia e a liberdade.
35
Seyla Benhabib (1987), em consonância com Carol Gilligan (1982), entende que justiça e direito, cuidado
e responsabilidade não são orientações bipolares ou dicotômicas, mas aspectos compatíveis no âmbito da
moralidade; o “[...] problema é que o núcleo sustentável das idéias de reciprocidade e equidade é com isso
identificado com as perspectivas do outro generalizado desimpedido e desencarnado.” (BENHABIB, 1987,
p. 99). É interessante notar que Seyla Benhabib (1987) demonstra no seu artigo a possibilidade do
feminismo incorporar os aspectos normativos da teoria da ética comunicativa de Habermas. Esta autora
nos chama a atenção para o fato que ao estabelecer uma distinção entre o outro concreto e o outro
generalizado ela não a faz em termos prescritivos, mas em termos críticos, expressando os seus objetivos
do seguinte modo: “Não é meu objetivo prescrever uma teoria moral e política consoante com o conceito de
'outro concreto'. Porque, de fato, o reconhecimento da dignidade e valor do outro generalizado é uma
condição necessária, embora não suficiente para definir a opinião moral nas sociedades modernas.”
(BENHABIB, 1987, p.103).
79
o espaço público e para o espaço privado.
Acertadamente, Rosa Cobo (1995) nos diz que no estado de
natureza puro estará o homem e no começo posterior a mulher. Um lapso na
análise de Cobo (1995), entretanto, é não deixar explícito, imediatamente,
que o homem embora esteja situado no estado puro de natureza, tomado aqui
no aspecto descritivo que representa o espaço de autonomia, de liberdade e
também de irracionalidade — transpõe esse estágio para ascender ao
espaço social. Nesta passagem para o estado civil se dão modificações na
conduta do homem, na qual a substituição das ações motivadas
pelo instinto dará lugar aos princípios racionais. Sendo assim, parece que a
mulher, ao longo do processo histórico da humanidade, ficou petrificada,
caudatária da espontaneidade dos instintos e da sensibilidade em detrimento
da racionalidade, à esfera da reprodução ao invés da esfera da produção.
Como nos mostra Íris Young (1987, p. 68), “o público cívico da cidadania” se
opõe às “dimensões públicas e privadas da vida humana, que corresponde a
uma oposição entre razão, de um lado, e o corpo, afetividade e desejo, do
outro. Ainda conforme, Íris Young (1987, p. 68):
Os [sic] feministas mostraram que a exclusão teórica das mulheres do
público universalista não é mero acaso ou aberração. O ideal do público
cívico exibe uma vontade de unificar, e exige a exclusão de aspectos da
existência humana que ameaçam dispersar a unidade fraternal de formas
retas e verticais, especialmente exclusão das mulheres [sic]. Dado que o
homem como cidadão exprime o ponto de vista universal e imparcial da
razão, alguém tem que cuidar de seus desejos e sentimentos particulares.
Seyla Benhabib (1987) também se ocupou em criticar o ponto de
vista moral do “outro generalizado” existente na ficção do “estado natural” das
teorias do contrato, e aqui reside também as nossas análises quanto ao
aspecto normativo e ético do estado puro de natureza. Para a cientista
política, a perspectiva moral do “eu generalizado” demonstra uma concepção
errada de autonomia e de universalidade moral, sem reciprocidade. Segundo
a autora, o ponto de vista do “outro generalizado” leva tanto a uma
privatização da experiência das mulheres quanto a uma exclusão
destas mesmas experiências nas considerações morais.
Quanto à educação rousseauniana, é no Emílio (2004) que
Rousseau discute, primeiramente, o desenvolvimento e a educação
necessários para a formação moral de um cidadão ideal, diga-se, do Emílio.
Para que este possa distinguir entre o bem e o mal, já que essa é uma das
prerrogativas para se viver em uma sociedade justa, é preciso que ele
aprimore a razão, a fim de que ela lhe proporcione os critérios apropriados de
avaliação e julgamento. O aprimoramento dos sentidos e da razão seria,
portanto, arma indispensável contra a corrupção da consciência moral inata.
Por certo, haveremos de perceber que ele não propõe uma educação moral a
rigor para o Emílio, mas sim uma educação para a liberdade ou, dito de outra
80
forma, uma educação para a autonomia moral.
Em contraposição à educação do Emílio, notamos que à sua
futura esposa, Sofia, destina-se não uma educação para a autonomia e para
a liberdade, mas uma educação débil, de caráter instrumental, favorável a
“natureza feminina”, porém, que aprisiona Sofia ao seu corpo e define o seu
ser, suas ações e seus sentimentos à esfera privada e à procriação. Diz-nos
Rousseau (2004, p. 516):
Em tudo que depende do sexo, a mulher e o homem têm diferenças; a
dificuldade de compará-los provém da dificuldade de determinar na
constituição de um e de outro o que é do sexo e o que não é. Pela
anatomia comparada, e até pela simples observação, vemos entre eles
diferenças gerais que parecem não estar ligadas ao sexo; no entanto
estão ligadas a ele, mas através de laços que não temos condições de
perceber. Não sabemos até onde esses laços podem estender-se. A única
coisa que sabemos com certeza é que tudo o que têm de diferente
pertencem ao sexo.
E ainda acrescenta:
Naquilo que têm em comum [espécie] eles [Emílio e Sofia] são iguais; no
que têm de diferente não são comparáveis. Uma mulher perfeita e um
homem perfeito não devem parecer-se pelo espírito mais do que pelo
rosto, e perfeição é suscetível de mais ou de menos. (ROUSSEAU, 2004,
p. 516).
Por meio das citações acima e de considerações explícitas de
Rousseau ao sexo masculino, no Livro V do Emílio, podemos afirmar que a
sexualidade feminina é o destino e a via de sua inferioridade. De modo veraz,
o que prevalece na mulher é o sexo, “[...] o macho é macho em certos
instantes [ato sexual], a fêmea é fêmea por toda a vida”. (ROUSSEAU, 2004,
p.521). A mulher é sempre imanência e o homem sempre é transcendência.
Vale ressaltar que esta idéia de natureza (imanência, coisa em si) e cultura
(transcendência), nascente da ideologia naturalista burguesa do século XVIII,
vai tomando contornos até culminar com a diferença estabelecida por Kant
_____________________________________________________________
36
“Para la mayoria de los filósofos ilustrados, el que la mujer carezca de razón y sólo tenga uma razón
inferior depende de uma tranqüilizadora evidencia, pero que, no obstante, aspira a apoyarse em los
hechos. Entre estos hechos, el que más a menudo se repite es el de que no haya mujeres capaces de
invención, que están excluídas de la genialidade, aun cuando puedan acceder a la literatura y a
determinadas ciencias.” (CRAMPE-CASNABET, 1991, p. 89).
37
Esta condição de objeto é perfeitamente perceptível nas obras filosóficas, uma vez que é o homem-
filósofo que estabelece o duplo discurso do homem sobre o homem e do homem sobre a mulher. A partir
destes discursos unilaterais, vinculados pela escrita e mascarados pela perspectiva da neutralidade, que
se enxertam processos ideológicos cuja finalidade nada mais é do que justificar a posição do outro que lhe
é exterior. Aliás, é considerando o outro como exterior que o coisificamos para apreendê-lo e interpretá-lo
(cf. BEAUVOIR [2000]; CRAMPE-CASNABET, 1991).
81
entre o reino da Natureza — onde opera as leis puramente mecânicas — e o
reino da Humanidade — onde opera a liberdade ou causa final e interna.
Aliás, no que se refere à mulher, o corpo feminino é invocado
como elemento natural que não se pode decompor e atestando uma
diferença primária — a biológica — que, ideologicamente, legitima a
impossibilidade de uma igualdade entre os sexos. Também, posto que as
diferenças físicas entre um sexo e outro nas relações sexuais — um deve ser
ativo e o outro passivo, como nos diz Rousseau no Emílio — são transpostas
para o plano da moralidade, não seria incorreto estendermos tal
compreensão no nível epistemológico, já que todas as diferenças estão
ligadas ao sexo.
No campo epistemológico, o entendimento ativo masculino
informa e organiza a passividade da sensibilidade feminina
(CRAMPE-CASNABET, 1991). Em tudo vemos, portanto, que a mulher não
passa de um objeto, uma vez que ser sujeito, como nos diz Marilena Chauí
(1985, p. 36), “[...] é construir-se como capaz de autonomia numa relação tal
que as coisas e os demais não se ofereçam como determinadores do que
somos ou fazemos, mas como o campo no qual o que somos e fazemos”. Os
resultados de tal assimetria, numa relação hierárquica de desigualdade, são
nefastos:
Em sociedades como as nossas, marcadas pelo selo da racionalidade
instrumental a sensibilidade é considerada como uma preparação, uma
antecipação ou forma menor do pensamento racional (quando não uma
ausência do pensamento). Numa perspectiva empirista, a sensibilidade
prepara o terreno para as elaborações teóricas abstratas; numa
perspectiva intelectualista, costuma ser o lugar privilegiado do erro (pois
os sentidos sempre nos enganam); numa perspectiva criticista (de tipo
kantiano), é apenas a primeira organização sintética dos dados da
experiência e, do ponto de vista moral, um embaraço para a ética da
liberdade, pois a marca da sensibilidade é o sentimento com conteúdos
particulares que não conseguem atingir a universalidade formal das
máximas livres; numa perspectiva dialética, é o momento do para-si
alienado, contato imediato e abstrato com o real como pura exterioridade
carente de espírito, pois este se efetua apenas por mediações reflexivas e
interiores. (CHAUÍ, 1985, p.44).
82
MARY WOLLSTONECRAFT : a irreconciliável tensão entre o feminismo e a
ilustração
Em se tratando dos ideais Iluministas de igualdade e liberdade ,
esses foram retomados na Inglaterra, em favor da emancipação feminina,
por Mary Wollstonecraft através da obra Vindication of the rights of women
publicada um ano depois de Olympe de Gouges ter escrito, na França, a
Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadania em 1791.
Essa eminente personalidade feminina foi educadora e escritora
britânica, considerada como a “pioneira”, ou melhor, uma das pioneiras do
feminismo moderno e que fez de sua trajetória de vida uma ponte para as
suas reflexões. Focaliza, sobretudo, sobre os aspectos educativos para os
quais encontrou fundamento no pensamento pedagógico de Locke e de
Rousseau, pensadores com os quais que irá discordar após certo
amadurecimento intelectual. Ao analisar os seus escritos percebemos que o
seu interesse pela educação, assim como todo o pensamento feminista
liberal, tenta romper com a opressão/subordinação das mulheres, a partir da
compreensão que essa opressão/subordinação perpassa
[...] desde o ponto de vista de sua socialização em uma variedade limitada
de funções e suposições, e como forma em que a tradição cultural, que
persistia em estabelecer uma grande diferença entre a mulher e o
homem, impunha o exercício das ditas funções. (BARRETT; PHILLIPS,
2002, p.14)
87
simbolicamente subordinada, lhe parece a Mary Wollstonecraft uma
prisão de que a liberasse e não uma possível fonte de significados e
modos de ser no mundo. Esta é a causa de sua dureza com as 'mulheres
em geral', que 'hão adquirido todas as loucuras e os vícios da civilização e
hão desejado de colher seus úteis frutos. Descreve inclusive o corpo
feminino, em sua correspondência privada e em sua novela Mary, como
um peso que se deseja sentir de maneira especialmente pesada,
compreensivelmente, duramente na gravidez, com sua conseguinte
limitação de energia. Delineia-se nela a 'dura oposição ilustrada entre
razão e corpo', e não mais a temperada e serena, entre razão e
sentimento. Completamente situada dentro do paradigma moderno da
igualdade e de unidade dos sexos, Mary Wollstonecraft recolhe até o
fundo seu significado liberador para as mulheres porém, para fazê-lo, se
vê obrigada a desfazer-se simbolicamente de uma diferença feminina que
não pode propor como valor, porque tem sido sistematicamente
desvalorizada por uma tradição andocêntrica e misógina.
88
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91
O CORPO FEMININO NA OBRA DE PEDRO AMÉRICO: tessituras de
gênero e vivência artístisca
Márcia Silva Costa
Profª Drª Ligia Pereira dos Santos
INTRODUÇÃO
_____________________________________________________________
38
Bolsista da Extensão da Universidade Estadual da Paraíba
39
O artista plástico Pedro Américo de Figueiredo e Melo nascido a 29 de abril de 1843 no município
paraibano de Areia. Aos 9 anos de idade, foi conhecido e admirado como artista. Partiu com a expedição
científica do Museu Nacional em março de 1853, com o naturalista francês Brunet, pelo o interior do
Nordeste brasileiro por vinte meses, como desenhista da equipe. Brunet encaminhou ao Presidente da
Província uma carta e dois desenhos do artista e, em dezembro de 1854, com onze anos de idade, estava
matriculado no Colégio Pedro II custeado pelo Imperador no Rio de Janeiro. No ano de 1856, aos 13 anos
de idade, iniciou o curso de Arte na Academia Imperial de Belas Artes dominando o curso em apenas dois
anos. Em 1858, aos 15 anos de idade, Pedro Américo requereu ao Imperador a concessão de uma bolsa
para estudos de aperfeiçoamento na Europa. Em abril de 1859, o Imperador, concedeu-lhe e estudou até
1864, na Academia de Belas Artes de Paris, no Instituto de Física de Ganot e na Universidade de Sorbonne.
Em 1868 recebe o grau de Doutor em Ciências Naturais, aprovado com distinção, recebendo o “grau de
adjunto na Universidade de Bruxelas”. Foi eleito em 1889, Deputado Federal pela Paraíba e durante sua
atuação na Câmera Federal, desenvolveu projetos de criação de galerias de artes, universidades e
teatros. Fez telas de grande destaque como: o Cristo Morto, o Cristo Ressuscitado e o Cristo Vivo. Faleceu
em Florença a 7 de outubro de 1905, aos 62 anos de idade. Seu corpo foi embalsamado e remetido ao Rio
de Janeiro. Só em 28 de abril 1906 foi concedida, pelo governo brasileiro, a autorização para que seus
despojos mortais fossem levados para a Areia/PB, onde está sepultado.
93
Sexo é associado à genitália masculina ou feminina, e, o critério base para
marcar os indivíduos numa categoria de nascimento, enquanto que gênero a
construção social do que ser masculino e feminino, para marcar os indivíduos
numa categoria histórico-cultural.
Ao longo da história, os corpos têm sido alvo de injustiças sociais
de ordens variadas. As mulheres são marcadas pelo culto ao belo e ao santo
enquanto que os homens igualmente oprimidos, devido o sentimento de
culpa masculina em relação aos malefícios do patriarcado na sociedade,
necessitam provar ser valente, forte, insensível, entre outros perfis.
A corporeidade masculina, tal como vivenciada no Ocidente,
fundamenta valores e, em si própria, constitui um valor social, mantendo-se e
reproduzindo-se, dada sua importância inegável nos processos sociais
diversos. Conforme a tradição, a masculinidade hegemônica ocidental
provocou o surgimento de cultos do que comumente é definido como a
verdadeira masculinidade. Marcada pela excessiva valorização da virilidade,
do sentido do dever, do sacrificar-se pelo bem da sociedade, do ideal de
guerreiro, este culto da masculinidade fez nascer modelos masculinos como
Silvester Stalone e Jean Claude Van Dame.
Postulamos quão importante estudarmos como a corporeidade
nas relações de gênero é tecida cotidianamente, discutindo sobre o
significado da produção artística, aprofundando discussões sobre o conceito
de masculinidade e feminilidade com alunos e as alunas de uma escola
pública, considerando as construções de gênero e sua articulação com o
feminismo.
Destruir os estereótipos e reparar os danos causados a
corporeidade configura-se como um desdobramento dos estudos de gênero
decorrentes dos avanços históricos do movimento feminista. A proposta
feminista tem aí suas origens, a busca contínua na promoção da eqüidade de
gênero.
Importa desvendar os mecanismos que mascaram, através da
história, tratamentos iniquânimes entre os gêneros nas produções artísticas
que, por terem sido naturalizadas, tornam-se difíceis e, às vezes, quase
impossíveis de serem identificadas como preconceitos e estereótipos.
Vislumbrando a possibilidade de construir novas versões e sentido sobre a
corporeidade na educação se constitui tarefa inadiável refletir sobre a arte e
suas ligações com os padrões sexistas no espaço escolar num processo de
promoção de diálogo com discentes e docentes.
Tendo como suporte teórico a perspectiva pós-crítica,
dialogamos com diversos teóricos tais como: Pierre Bourdieu (2003), Michel
Foucault (1988), Anthony Giddens( 2001), Joan Scott (1995), Franco
Cambi(1999), Elizabeth Banditer(1993), Aminatta Forna(1999), Christian
Laville (1999) e Paulo Freire (1996).
94
História e arte: Comprendendo Os Elos Da Corporeidade
Fazer um recuo na história nos permite enredar no “universo
forjado pelos homens”, uma história de caçadores, guerreiros, vencedores,
aristocratas cujas interpretações privilegiam um passado feito de um sistema
de masculinidades e feminilidades, um lugar onde as mulheres vivem à
sombra de um mundo dominado pelo gênero masculino.
A força particular da sociodicéia masculina lhe vem do fato de ela
acumular e condensar duas operações:ela legitima uma relação de
dominação inscrevendo-a em uma natureza biológica que é, por sua vez,
ela própria uma construção social naturalizada (BOURDIEU, 2003, p. 33).
O surgimento da divisão do trabalho e educativa entre homens e
mulheres configura-se como marco inicial da segregação sexual
que fixou como “estilo de vida” à supremacia masculina instituindo o domínio
do homem sobre a mulher, delimitando papéis sexuais, sociais,
competências, instituindo produção artística, voltada para o domínio da
natureza.
Ao longo da história, a consolidação do sexo masculino como
uma espécie de chefatura do gênero humano progrediu. Assim, as mulheres
ficaram incumbidas de tarefas domésticas como: tecer, cuidar das plantações
e fazer cestos enquanto os homens ficaram responsáveis por caçar,
domesticar animais, construir habitações, proteger e defender a tribo, num
processo de inculcação cultural.
A cultura de uma sociedade engloba tanto os aspectos intangíveis – as
crenças, as idéias e os valores que constituem o teor da cultura – como
aspectos tangíveis – os objetos, os símbolos ou a tecnologia que
representam esse conteúdo ( GIDDENS, 2001, p.22).
A Antigüidade clássica como objeto de reflexão leva ao
aprofundamento do fosso entre a formação cultural das elites e das massas e,
da conseqüente construção simbólica da masculinização da história da
humanidade. O mundo clássico pode aparecer tanto como inspirador da luta
pela liberdade, pela igualdade, pela instituição do direito romano, base de
nosso sistema jurídico, como pode, mais comumente, servir para justificar o
status quo patriarcal e opressivo das sociedades. À elite assimilada ao
Ocidente, a Grécia antiga pode significar pureza étnica, justificativa para a
escravidão e superioridade artística estética e cultural ariana.
Enquanto seres humanos, somos corpóreos – isto é todos, possuímos um
corpo. Mas o corpo não é algo que nos limitemos a ter, nem algo
puramente físico que existe separado da sociedade. Os nossos corpos
são profundamente afetados pelas nossas experiências sociais, bem
como pelas normas e valores dos grupos a que pertencemos. (GIDDENS,
2001, p.146).
A supremacia do gênero masculino foi ratificada na cultura e vida
social através da construção e/ou reprodução de uma mentalidade coletiva. A
95
história da Antigüidade (período que se estendeu desde a invenção da escrita
até à queda do Império Romano do Ocidente) surge, então,
como elo constante da realidade atual com suas origens ideológicas
confirmando que as identidades masculina e feminina são construções sócio
historicamente construídas. E consequentemente a construção arbitrária de
papéis sociais tendo por pressuposto as diferenças biológicas.
[...] toda a ordem natural e social, é uma construção arbitrária do biológico,
e particularmente do corpo, masculino e feminino, de seus usos e de suas
funções, sobretudo na reprodução biológica, que dá um fundamento
aparentemente natural à visão androcêntrica da divisão de trabalho
sexual e da divisão sexual do trabalho e, a partir daí, de todo o cosmos
(BOURDIEU, 2003, p. 33).
Os resquícios históricos e culturais das civilizações Greco-
romanos nos permitem compreender o modelo de masculinidade arraigada
na sociedade contemporânea. Os modelos interpretativos correntes são
normativos, como se houvesse uma única cultura (aquela da elite masculina),
cujos preceitos seriam forjados pela aristocracia e aceitos por
camponeses/as, escravos/as, comprovando a superioridade de poucos/as e
a inferioridade de muitos/as.
A força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela dispensa
justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem
necessidade de se enunciar em discursos que visem a legitimá-la. A
ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a
ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça: é a divisão do
trabalho, distribuição bastante estrita das atividades atribuídas a cada um
dos dois sexos, de seu local, seu momento, seus instrumentos; é a
estrutura do espaço, opondo o lugar de assembléia ou de mercado,
reservados aos homens, e a casa, reservada às mulheres; ( BOURDIEU,
2003, p. 18).
Esta postura justifica o modelo da superioridade racial pela
repulsa aos bárbaros, desponta como forma de cultura européia, da elite
exploradora, dissociada da africana e oriental, implantando superioridade e
suposta primazia do modelo de masculinidade hegemônica - branca,
heterossexual, dominante - justificando a dominação de gênero masculino
sobre o gênero feminino.
O gênero se torna, aliás, uma maneira de indicar as construções sociais: a
criação inteiramente social das idéias sobre os papéis próprios aos
homens e às mulheres. É uma maneira de se referir às origens
exclusivamente sociais das identidades subjetivas dos homens e das
mulheres. O gênero é, segundo essa definição, uma categoria imposta
sobre o corpo sexuado (SCOTT, 1995, p. 73).
Na Grécia, o objetivo da vida feminina consistia na mulher ser boa
mãe e esposa, ou seja, a mulher servia de suporte à vida do homem. A
96
educação masculina era regida pela Paidéia, que significava simplesmente
"criação de meninos".
A Paidéia era o legado deixado de uma geração para outra na
sociedade, pois seu objetivo não era ensinar ofícios, mas a formação
aristocrática do homem individual, instruídos para cuidarem não só da mente
como também do corpo, ou seja, educar o menino para ser homem e
cidadão e a menina para o espaço doméstico e privado. Os homens da
nobreza ocupavam a função de mestres, que era considerada atividade
superior as atividades manuais executadas por mulheres.
A transmissão cultural representa a base da ação educativa que
tinha por escopo a formação social, política, cultural e educativa do cidadão
regido pelos princípios do bom e do belo. È neste momento histórico que
surge a pedagogia “saber autônomo, sistemático, rigoroso” (CAMBI, 1999, p.
87). Logo, a educação passa a ser “oferecida” nas escolas que, inicialmente
eram intinerantes (sofistas) e depois tornou-se estatal, onde o mestre era o
pedagogo que semelhantemente a um pai, só ensinava o que era bom e justo,
repreendendo e castigando quando necessário. A noção da Paidéia assinala
uma forma primitiva da passagem explícita da dimensão do ser masculino,
apenas homem, para uma compreensão universalmente generalizável; ser
macho configura-se como um aspecto da humanidade e o ser masculino um
conceito relacional com relação ao ser feminino, ou seja, o homem passa a se
considerar como sendo o exemplar mais bem acabado do humanidade “o
homem (vir) se vê como universal (homo). Ele se considera o
representante mais perfeito da humanidade, o critério de referência”.
(BADINTER, 1993,p.7). Assim, surge a
[...] 'formação de uma humanidade superior' nutrida de cultura e de
civilização, que atribui ao homem sobretudo uma identidade cultural e
histórica.Ela não parte do indivíduo, mas da idéia. Acima do homem-
rebanho, e do homem pretensamente autônomo, está o homem como
idéia, ou seja, como imagem universal e exemplar da espécie nutrida de
história e capaz de realizar os princípios da vida contemplativa (CAMBI,
1999, p. 86-87).
A segregação entre os sexos permeava toda a sociedade deste
período, inclusive, as artes que destacavam as atividades sociais de
entretenimento como os Jogos Olímpicos aos quais o povo grego atribuíam
máxima importância, entretanto, a participação das mulheres era proibida,
seja como esportistas, seja como espectadoras.
A divisão entre os sexos parece estar “na ordem das coisas”, como se diz
por vezes para falar do que é normal, natural, a ponto de ser inevitável: ela
está presente, ao mesmo tempo, em estado objetivando as coisas ( na
casa, por exemplo, cujas partes são todas “sexuadas”), em todo o mundo
social e, em estado incorporado, nos corpos e nos habitus dos agentes
funcionando como sistemas de percpção, de pensamento e de ação (
97
BOURDIEU, 2003, p. 17).
Contudo, esse panorama de iniqüidade total entre os sexos não
predominava em todas as cidades gregas. Na cidade de Esparta era
oferecida educação quase igualitária para homens e mulheres.
Em Esparta, a educação fisica era a base educacional, assim as
mulheres em cumprimento a esses ditames, ao completarem sete anos de
idade, eram enviadas aos quartéis para serem educadas, objetivando dotá-
las de um corpo forte e saudável para gerar filhos sadios e vigorosos e serem
treinados para a guerra.
A diferença consistia que elas não dormiam nos quartéis, à noite
elas regressavam para dormir em casa. Isto, porque era no lar onde
recebiam da mãe aulas de educação sexual e quando ocorria a primeira
menstruação, começavam a receber aulas práticas de sexo, com
a finalidade de gerarem bons cidadãos para o Estado.
Recebiam também uma educação mais avançada que a dos
homens já que seriam elas que trabalhariam e cuidariam da casa, seriam os
“chefes de família” enquanto seus maridos estivessem servindo ao exército.
Ao atingir a maturidade entre 19 e 20 anos, elas podiam pedir a autorização
do Estado para contrair o matrimônio, que só era concediada após passarem
por um teste que comprovasse sua fertilidade.
O teste consistia em engravidar de um escravo (cuja finalidade
era só reprodutiva), ou seja, tanto o escravo quanto a criança advinda do
teste não seriam reconhecidos como membros da família. Durante esta fase o
escravo era muito bem tratado e alimentado para ser executado aos 30 anos.
Ao adquirir a autorização para casar, a mulher espartana podia ter qualquer
homem que desejasse, (mesmo sendo casada), já que seus maridos ficavam
até os 60 anos de idade servindo ao exército nos quartéis.
Muitos filhos era sinal de vitalidade e força em Esparta, assim,
quanto mais filhos a mulher tivesse, mais atraente ela seria, podendo
engravidar de qualquer esparciata, mas o filho desta seria considerado filho
do seu marido. As mulheres que não conseguissem engravidar, não recebiam
a autorização e eram mandadas de volta aos quartéis para, assim como os
homens, servirem ao exército espartano.
Os homens esparciatas recebiam uma educação militar,
aprendiam as artes da guerra e desporto, sendo mandados para o exército
aos sete anos de idade; aos doze deveriam ser abandonados em penhascos
sozinhos, nus (para criarem resistência ao frio), e sem comida (para
aprenderem a caçar e pescar).
a virilidade é lida no corpo aberto. As cicatrizes do guerreiro testemunham
os ferimentos e o sangue vertido, que provam o valor do homem e do
cidadão. A dor é antes de tudo assunto de mulheres [...] o homem deve
desprezá-la, sob pena de se ver desvirilizado e de ser rebaixado ao nível
da condição feminina (BADINTER, 1993, p. 70)
98
Em Roma a prescrição social estabelecida baseava-se na
hierarquia e diferenciação entre os sexos movida pelo consenso e submissão
dos inferiores aos superiores, argumento básico da família Romana
caracterizada como uma pequena tirania onde o paterfamilias exercia sobre
os filhos e filhas poder de vida e de morte, e a mulher (matrona) tinha por
dever servir ao marido, administrar o lar, os escravos, fiar, tecer e cuidar da
prole, contudo as mulheres romanas gozavam de maior autonomia que as
mulheres gregas, as que pertenciam as classes mais altas eram “rainhas” no
seu reino doméstico.
Os conhecimentos/saberes culturais da Antiguidade foram
alicerçados numa filosofia antropocêntrica de sentido racionalista que
inspirou as duas características fundamentais deste período: por um lado a
dimensão humana e o interesse pela representação do homem e, por outro, a
tendência para o idealismo traduzido na adoção de cânones ou regras fixas
(análogas às leis da natureza) que definiam sistemas de proporções e de
relações formais desde a arquitetura à escultura, ou seja em todas as
produções artísticas e culturais.
A cultura refere-se aos modos de vida dos membros de uma sociedade,
ou de grupos pertencentes a essa sociedade; inclui o modo como se
vestem, as suas formas de casamento e de família, os seus padrões de
trabalho, cerimônias religiosas e atividades de lazer. [...] o que une as
sociedades é o fato de os seus membros se organizarem em relações
sociais estruturadas segundo uma única cultura. As culturas não podem
existir sem sociedades. Mas, do mesmo modo, nenhuma sociedade pode
existir sem cultura (GIDDENS, 2001, p. 22).
Adentrando à história posamos no período denominado Idade
Média onde a cultura era marcada pela consolidação e expansão da fé cristã
pelo Império Romano, com a Igreja Católica tendo um poder extremamente
grande que controlava a vida e a mentalidade das pessoas. Na época
medieval a maioria das idéias e dos conceitos era elaborada pelos
eclesiásticos. Os homens possuíam uma visão dicotômica acerca da mulher,
ou seja, ao mesmo tempo em que ela era tida como a culpada pelo “Pecado
Original”, associada a imagem de Eva, a Virgem Maria, era
associada à mulher exemplo de virtude e maternidade perfeita.
Esta concepção da mulher, construída através dos séculos,
assegurou e permitiu a manutenção dos homens no poder, fornecendo uma
segurança baseada na distância do clero celibatário, legitimando uma
suposta santidade feminina, sufocando qualquer tentativa de subversão da
ordem estabelecida pelos homens. Outro aspecto relevante na instauração
de valores da Idade Média foi a de pudor e pureza em contraposição ao sexo
sempre associado ao pecado, como extensão desta visão ocorre um
enclausuramento de discursos da sexualidade e da arte. Tudo que fosse
ligado ao sexo deveria ser banido, interdito, proibido.
99
Denominar o sexo será, a partir desse momento, mais difícil e custoso.
Como se, para dominá-lo no plano real, tivesse sido necessário, primeiro,
reduzi-lo ao nível da linguagem, controlar sua livre circulação no discurso,
bani-lo das coisas ditas e extinguir as palavras que o tornam presente de
maneira demasiado sensível. Dir-se-ia mesmo que essas interdições
temiam chamá-lo pelo nome. ( FOUCAULT,1988, p. 21).
Durante a Idade Média a mulher, apesar de trabalhar tanto quanto
o homem estava sempre em grau de inferioridade. A própria etimologia da
palavra feminina confirmava essa fraqueza original: segundo eles, femina,
em latim, reunia em sua formação as palavras fide e minus, o que quer dizer
menos fé. O modelo de conduta instaurou a pudicícia como princípio moral e
religioso aos quais seres humanos deveriam seguir, dessa maneira, a arte
deveria ter apenas cunho religioso.
A vida das mulheres medievais não era fácil. De acordo com a
classe social a que pertenciam suas funções variavam. Nas classes mais
altas, as mulheres tomavam conhecimento em política, economia e até em
disputas territoriais. As mulheres dos senhores feudais eram responsáveis
pela organização do castelo; supervisionavam tudo, desde a cozinha até a
confecção de vestimentas. Elas tinham que saber como preservar alimentos
e coordenavam os/as empregados/as. Além disso, tinham que defender o
castelo na ausência de seu marido.
As camponesas trabalhavam junto com seus maridos nas terras
dos senhores feudais e, ainda tinham que cuidar dos afazeres domésticos. As
mulheres não tinham muitas opções: ou se casavam, ou iam para os
conventos. Entretanto, o convento era para uma minoria da alta classe que
tinha condições financeiras de pagar uma taxa bastante alta objetivando ser
freira. A maioria porém, estava destinada ao casamento e a uma vida
submissa ao marido. As meninas eram educadas somente para este fim:
serem boas esposas. O casamento era arranjado pelo pai quando sua filha
ainda era criança. A mulher era como uma propriedade, usada para obter
vantagens, os casamentos geralmente visavam o aumento de terras.
O mundo social constrói o corpo como realidade sexuada e como
depositário de princípios de visão e divisão sexualizantes. Esse programa
social de percepção incorporada aplica-se a todas as coisas do mundo e,
antes de tudo, ao próprio corpo, em sua realidade biológica: é ele que
constrói a diferença entre os sexos biológicos, conformando-a aos
princípios de uma visão mítica do mundo, enraizada na relação arbitrária
de dominação dos homens sobre as mulheres...( BOURDIEU, 2003, p.
18-20).
A estabilidade no casamento foi uma conquista que remonta às
idéias cristãs da Idade Média, permitindo que a mulher fosse vista legalmente
não mais como inferior ao marido, mas como um membro essencial para a
família. A instauração do casamento monogâmico trouxe benefício não só
100
para a mulher, mas para filhos/as que ganharam à proteção de um lar estável.
A mensagem cristã permeia todo o campo social, vê-se neste momento uma
produção artistica marcada profundamente pelo culto a santidade de anjos e
santos/as, que infuenciará profundamente a arte ocidental.
A principal inovação medieval realizada no campo do ensino e do
conhecimento foi a criação das universidades e a Escolástica, movimento
que reunia as idéias de Tomás de Aquino. Representou uma tentativa de
conciliar fé e razão com base no pensamento de Aristóteles, ou seja, a paidéia
cristã fundindo assim elementos da filosofia pagã de uma educação rigorista
e antiintelectual com a doutrina religiosa católica.
As relações econômicas na Europa sofreram profundas
alterações no momento em que nos aventuramos pelo oceano Atlântico,
procurando atingir as fabulosas fontes do comércio oriental. Para conseguir
tal desafio surge aperfeiçoamento da bússola e do astrolábio, instrumentos
trazidos do Oriente pelo europeu. A caravela, permitiu percorrer grandes
distâncias marítimas. As ciências exatas e naturais desenvolveram-se
possibilitando descobertas e a comprovação de teorias fundamentais à
evolução científica. A Igreja Católica passou neste período por um processo
de transformação, que originou a Reforma Protestante.
No século XVI toda transformação política, econômica e social
influiu no comportamento humano da época. O modo de pensar e as formas
estéticas dos gregos e dos romanos como modelos a serem seguidos são
retomadas pelos artistas e cientistas. As necessidades do ser humano do
início da Idade Moderna em interesses terrenos, por meio da glorificação do
homem e do natural em oposição ao divino e ao extraterreno, impulsionam à
supervalorização do homem – antropocentrismo- em contraste com a
supervalorização de Deus, característica do teocentrismo medieval.
Neste período o importante era a capacidade de usar a razão
para descobrir e conhecer o humano no mundo cheio de desafios e
interrogações. Na arte e literatura tal atitude é manifestada à medida que se
prende à rigidez formal dos modelos clássicos abordando sentimentos na sua
forma mais universal possível.
A iniciante Modernidade, nada mais é do que a ruptura histórica
que justifica a separação de duas épocas. A ruptura que traz consigo a Idade
Moderna é marcada pelo divórcio entre razão e fé.
A Idade Moderna se destaca por ter sido um período de transição
por excelência e, como uma época de revolução social cuja base consiste na
substituição do modo de produção feudal pelo modo de produção capitalista.
O modelo ideológico e cultural introuduzirá a laicização e emancipação de
mentalidades, buscando formar “um indivíduo mundanizado,
nutrido de fé laica e aberto para o cálculo racional da ação e suas
conseqüências” (CAMBI, 1999, p. 198).
O Renascimento se associa ao Humanismo constituindo-se um
101
movimento cultural considerado como marco inicial da Idade Moderna.
Podem ser apontados como valores e ideais defendidos pelo Renascimento o
Antropocentrismo, o Hedonismo, o Racionalismo, o Otimismo e o
Individualismo, bem como um tratamento leigo dado a obras religiosas, surge
a valorização do abstrato, expresso pelo matemático, além também de
algumas noções artísticas como proporção e profundidade, e, finalmente, a
introdução de novas técnicas artísticas.
Apesar das inovações de pensamento advindas com a
Modernidade, a dualidade entre os sexos permanece na mentalidade social,
a coerção em torno da sexualidade e do sexo continuam, só que de forma
sutil, instaura-se novas regras de decência, ou seja, maneiras/modos de ser
social, pode e deve-se falar em sexo, entretanto o discurso deve ser
meticulosamente prudente.
A interdição de certas palavras, a decência das expressões, todas as
censuras do vocabulário poderiam muito bem ser apenas dispositivos
secundários com relação a essa grande sujeição: maneiras de torná-las
moralmente aceitável e tecnicamente útil (FOUCAULT, 1988, p. 24).
Note-se que o discurso passou a ser a chave mestra do controle
social determinando a supremacia do homem através da illusio viril
(BOURDIEU, 2003), conferindo uma idéia de masculinidade fabricada que
precisa constantemente ser posta a prova por meio de testes de
masculinidade.
Não podemos esquecer que no final do século XVIII a sociedade
contemporânea assistiu ao desenvolvimento da ciência e das novas
descobertas biológicas que asseguram que a diferença entre homens e
mulheres não é de grau/hierarquia social, mas sim de natureza biológica. O
imaginário social será dominado pela idéia dicotômica “não só os sexos são
diferentes, como o são em cada aspecto do corpo e da alma,
portanto física e moralmente. É o triunfo do dimorfismo radical”
(BADINTER,1993, p.9)
As diferenças sexuais e biológicas preconizou o lar como espaço
privilegiado da mulher. A educação dos filhos/filhas também passa a ser de
responsabilidade da mulher, surge à maternidade com um status especial.
A divisão entre o mundo privado e o público pôs fim às aspirações políticas
das mulheres da classe alta. Em vez de aspirar ao engajamento ativo nas
tomadas de decisões, a mulher se tornou “a mão que balança o berço” e
“o poder por trás do trono”. E os homens estimulavam as mulheres a
encontrar satisfação nessa nova esfera de influência, confirmando o
poder desse papel exclusivamente feminino. Convencidas do inimitável
papel de mães, as mulheres foram, e ainda são, desencorajadas de aderir
aos domínios externos masculinos, onde se encontram os verdadeiros
ganhos políticos, sociais e econômicos ( FORNA, 1999, p. 49).
È neste período da modernidade que surge o termo Nova Ordem
102
Mundial representando um conceito sócio-econômico-político que tem sido
aplicado de forma abrangente, dependendo do contexto histórico do mundo
pós Guerra Fria. De um modo geral, pode ser definido como a designação que
pretende compreender uma radical alteração, e o surgimento de um novo
equilíbrio, nas relações de gênero.
Assim, na contemporaneidade tornou-se lugar comum falar sobre
as mudanças nas relações entre homens e mulheres, devido ao acelerado
processo de transformações socioculturais, como atestam estudos
realizados em 1960 e 1970.
A partir da década de 1980, o movimento feminista integra na sua
luta o reconhecimento e a defesa da diferença. Ao lado da igualdade de
acesso ao poder, propõe o valor da diferença pela busca de uma "ética", de
uma busca ou reconhecimento de outro "modo" ou "estilo" de exercer o poder
e de estabelecer relações solidárias, de construir um perfil político específico.
A presença feminina torna-se maciça em todos os movimentos de luta, quer
sejam eles sociais e/ou políticos, garantindo assim a continuidade dos
movimentos por elas liberados.
As identidades femininas e masculinas se constroem, articulando
criativamente e/ou contraditoriamente a relação entre igualdade e diferença.
A novidade presente nos movimentos feministas dos anos setenta e oitenta
com a postulação do direito a diferença promove a inserção do "diálogo pro
gênero" no contexto internacional e na linguagem política da chamada "pós-
modernidade".
O feminismo do século XX, na predominância deste novo
horizonte cultural postula diferenças, na perspectiva de pensar/interpretar as
diferentes formas de articulação entre, masculinidades e feminilidades.
Ensinar inexiste sem aprender e vice-versa e foi aprendendo socialmente
que, historicamente, mulheres e homens descobriram que era possível
ensinar. Foi assim, socialmente aprendendo, que ao longo dos tempos
mulheres e homens perceberam que era possível – depois, preciso –
trabalhar maneiras, caminhos, métodos de ensinar (FREIRE, 1996, p.
24).
Desenvolver trabalhos voltados à corporeidade passa a ser
uma questão fundamental. Em nossa perspectiva, a escolha da arte de Pedro
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Tela que pintara em comemoração à Proclamação da Independência encomendada ao pintor em 1886,
pelo Governo do Estado de São Paulo, sendo entregue somente em 1888 após exposição em Florença.
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A residência de Pedro Américo representa um precioso patrimônio cultural, onde abriga um acervo do
artista, pois contêm várias réplicas de suas telas, a tela original do “Cristo Morto”, o retrato de Pedro
Américo pintado por seu irmão, a sua mala de viagem. E expostos numa vitrine podemos encontrar
também: pincéis, um velho esquadro, um álbum de caricaturas, fotos da família, uma palmatória que
pertenceu a sua mãe, os livros escrito por ele – Holocausto, O Foragido e Na Cidade Eterna - além de um
crucifixo e de um vidro contendo um pedaço de jornal que foram retirados da sua urna mortuária.
103
Américo como alvo de nossas ações não é nem o ponto de partida, nem o de
chegada. Trata-se de um desdobramento e um avanço a partir do movimento
feminista e das inúmeras lições aprendidas e problematizadas no espaço
escolar.
106
REFERÊNCIAS
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EM CENA: empoderamento de mulheres diretoras
Maria das Dores Cardoso Frazão
Diomar das Graças Motta
INTRODUÇÃO
A fim de se atingir o processo de empoderamento de mulheres
diretoras, partiu-se do seguinte questionamento: como se constitui a mulher
diretora que se empodera? Na ocasião, tivemos como objetivos: conhecer o
cotidiano das diretoras, no contexto da escola; identificar a relação entre os
saberes das mulheres diretoras e o processo de empoderamento;
compreender sua territorialidade.
Inicialmente, realizou-se uma busca do significado do conceito de
empoderamento em quatro dicionários da Língua Portuguesa: SANTOS
(2001), AULETE (2004), HOUAISS (2004), AURÉLIO (2004); nenhum deles
contém este termo. Também, o computador, no sistema XP desconhece esta
palavra.
Assim, o conceito de empoderamento trabalhado foi o proposto
por León (2000), no sentido de autoconhecimento; quando as pessoas
controlam sua própria vida; adquirem habilidade de fazer coisas e definir sua
própria agenda. Em síntese, o termo implica mudança radical.
A construção do empoderamento das mulheres diretoras foi
analisada a partir de três eixos: o empoderamento social, o político e o
psicológico. Esta perspectiva está presente em Friedmann (1996) quando
explica que o eixo social refere-se ao acesso a certas bases de produção
doméstica, como informação, conhecimento e técnicas, participação em
organizações sociais e recursos financeiros.
Já o eixo político relaciona-se ao poder da voz e da ação coletiva.
Enquanto que o psicológico decorre da consciência individual de força e
manifesta-se na autoconfiança. (FRIEDMANN, 1996).
Paralelamente, León (2000) nos alerta para a necessidade de
pensarmos o empoderamento como processo não linear, ou seja, sem início,
meio e fim indefinido de maneira igual para todas as mulheres. Porque o
empoderamento é diferente para cada sujeito, segundo seu contexto e
história.
Por esta razão busca-se identificar o empoderamento de nossos
_____________________________________________________________
42
Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação, Mulheres e Relações de Gênero – GEMGe,
Mestra em Educação pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Maranhão – UFMA e
Supervisora Escolar, da Secretaria de Estado da Educação do Maranhão.
43
, Professora Doutora do Departamento de Educação II, do Curso de Pedagogia, da UFMA e dos
Programas de Mestrado em Educação e do Mestrado em Saúde Materno Infantil, ambos da Universidade
Federal do Maranhão - UFMA Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação, Mulheres
e Relações de Gênero – GEMGe, ligado a Linha de Pesquisa Instituições Escolares, Saberes e Práticas
Educativas, do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Maranhão.
109
sujeitos com a reconstrução das suas trajetórias profissionais conforme a
orientação de Bourdieu (2005, p.189), ao explicar a trajetória “como série de
posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo
grupo) num espaço que é ele próprio um devir, estando sujeito a incessantes
transformações”. Nessa reconstrução, foram utilizados instrumentos como
entrevistas, observações e depoimentos, procurando conhecer essas
transformações.
Procederam-se entrevistas com as diretoras; foram colhidos dois
depoimentos, de diferentes sujeitos, das escolas de nosso estudo, tendo
como foco a percepção de seu trabalho e o seu poder. Ao lado da revisão da
literatura, procurou-se situar o empoderamento nos estudos feministas e no
território educacional. Sendo assim, este texto traz apenas reflexões sobre a
questão do empoderamento.
De acordo com Blackburn (1997, p. 338), “uma relação é reflexiva
num domínio se todos os objetos do domínio têm essa relação com eles
mesmos”. Nessa dimensão de reflexividade, procurou-se estabelecer
afinidade entre o conceito de empoderamento e o conceito de feminismo que
ajudou bastante a pensar as questões das mulheres.
É importante ressaltar que algumas dessas questões, a partir de
1993, em Viena, na Conferência dos Direitos Humanos, mulheres de
diferentes continentes fizeram reivindicações, devido ao que se
considerava, até então, como “direitos específicos de mulheres” foram
reconhecidos como direitos humanos. E um direito humano é a reivindicação
de se ser capaz e dispor da permissão de praticar uma ação humana,
(TABAK, 2002), o que constitui elemento imprescindível no processo de
empoderamento.
Pensando semelhantemente, para Deleuze e Guatarri (1992)
todos os conceitos têm necessidade de personagens que contribuam para
sua definição. Nesse sentido, eles exemplificam, questionando o que
significaria “amigo” entre os gregos. Portanto, estas considerações permitem
estabelecer, neste texto, a relação entre o conceito de empoderamento, no
âmbito das objetividades e subjetividades, que marcam a história das
mulheres, e têm contribuído para a sua construção.
Nessa perspectiva, será encaminhada a presente reflexão.
Inicialmente, com breve percurso histórico do movimento feminista e, em
seguida, sua contribuição servirá para ampliar as noções sobre o conceito de
empoderamento, inclusive no território educacional.
EMPODERAMENTO NOS ESTUDOS FEMINISTAS
A compreensão do movimento feminista requer situá-lo no
contexto onde se configurou, pois o feminismo congrega uma pluralidade de
manifestações concretizadas dentro de limites e possibilidades, dados pela
referência a mulheres em contextos políticos, sociais, culturais e históricos
específicos.
110
Afinal, o que é o feminismo? Ele pode ser definido, segundo
Barrett (1996, p. 304), “como a defesa de direitos iguais para mulheres e
homens, acompanhada do compromisso de melhorar a posição das
mulheres na sociedade”.
Embora se reconheça que o movimento feminista no Brasil seja
específico, é preciso notar algumas características desse movimento na
Europa e nos Estados Unidos que influenciaram nosso feminismo.
Na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, a tradição feminista mais
antiga é a do feminismo democrático, liberal, dirigido à obtenção
de direitos e oportunidades iguais para as mulheres. Para tanto, no século
XIX, parte desse trabalho se concentrou na remoção de barreiras
educacionais e profissionais. Este período foi marcado pela militância por
direitos iguais, tendo como exemplo, a luta pelo direito de voto, no início do
século XX. (BARRETT, 1996).
A partir da década de 60, do século passado, as sociedades
ocidentais têm observado a ascensão e queda de movimentos feministas de
cunho mais radical; movimentos que afirmam estar a opressão das mulheres
enraizada em processos psíquicos e culturais profundos. Estes movimentos
exigem mudanças nos objetivos feministas, focalizando a luta pelo controle
das mulheres sobre seus próprios corpos, especialmente, na questão do
direito da mulher de escolher a respeito do aborto. Este momento está
fundamentado nas idéias do socialismo utópico, anarquismo e marxismo.
(BARRETT, 1996).
Na tentativa de exercício mais historiográfico e exploratório,
Bandeira (2000) propõe uma tripla periodização do movimento feminista.
Inicialmente, o período de 1850 a 1950, isto é, os cem anos que
compreenderam as primeiras organizações das mulheres pioneiras,
conhecidas como igualitaristas e sufragistas, que lutaram pelo acesso à
instrução e pelo direito ao voto. Nas fábricas, reivindicações atravessaram o
século XIX, chegaram ao século XX e serviram de base à instalação e
expansão do movimento feminista no Brasil, a partir dos anos sessenta e
setenta.
O segundo momento, que compreende os anos de 1960 a 1980, é
o período contemporâneo do movimento feminista. É um período de
mudanças sociais e culturais, com a conquista de novos territórios de luta, de
visibilidade das mulheres, do reconhecimento e legitimidade social em
relação às lutas feministas e emergência do feminismo heterogêneo e plural.
Tomam relevo as configurações dos espaços institucionais e acadêmicos
conquistados e ganham fôlego as diversidades e tensões dentro
do próprio movimento feminista. Além disso, surgem os primeiros estudos
que utilizam a categoria gênero.
O terceiro período centraliza-se nos anos noventa, com o resgate
da importância da reflexão que o pensamento feminista provocou, sobretudo,
111
as mudanças nas formas de produção do conhecimento e de representação
da realidade que interferem na construção da teoria social, nas relações inter
e intrasubjetivas e nas relações entre indivíduo e sociedade.
De acordo com Bandeira (2000, p. 17):
[...] o movimento feminista, sobretudo a partir de meados do século XIX,
foi o portador das vozes dissonantes da matriz hegemônica que recobriu
e predominou desde o mundo grego até a modernidade, ao resgatar a
condição de exclusão e de inferioridade da mulher, não apenas como
categoria estatística e sócio-econômica, mas da condição de sujeito
sócio-histórico e cidadão. Assumiu várias etiquetas e rótulos; apesar de
reprimido e condenado, adquiriu múltiplos significados no decorrer do
tempo, atravessando e atravessado por diferentes ideologias, por
variados segmentos sociais de mulheres, revestiu-se de diversas formas
e, ainda, atua com especificidades.
Diante das especificidades do movimento feminista brasileiro,
recortamos a história desse movimento, a partir dos estudos de Pinto (2003).
De acordo com a autora, no Brasil, a primeira fase do feminismo teve como
foco a luta das mulheres pelos direitos políticos, mediante a participação
eleitoral, como candidatas e eleitoras. Esta luta esteve associada ao nome de
Bertha Lutz.
Pinto (2003) identifica algumas vertentes do movimento
feminista, nas primeiras décadas do século XX. A primeira delas é liderada
por Bertha Maria Júlia Lutz (1894-1976), que tem como questão central a
incorporação da mulher como sujeito portador de direitos
políticos. Os limites dessa vertente não definen a posição de exclusão da
mulher como decorrência da posição de poder do homem. Além disso, a luta
por inclusão não se apresenta como alteração das relações de gênero, mas
complementar para o bom andamento da sociedade, isto é, sem alterar a
posição do homem, as mulheres deveriam lutar para serem incluídas como
cidadãs.
A segunda vertente chamada de feminismo difuso expressa-se
nas múltiplas manifestações da imprensa feminista alternativa. É formada em
sua grande maioria por mulheres profissionais, escritoras e jornalistas. Em
sua luta, defende a educação da mulher e aborda sobre a dominação dos
homens e o interesse deles em deixar a mulher fora do mundo público.
A terceira manifesta-se, inicialmente, no movimento anarquista e
em seguida, no Partido Comunista. Esta vertente é formada por mulheres
trabalhadoras e intelectuais militantes dos movimentos de esquerda, que
defendem a liberação da mulher de forma radical; contém, na maioria das
vezes, a questão da exploração do trabalho como central, articulando as
teses feministas aos ideários anarquistas e comunistas, tendo como principal
representante Maria Lacerda de Moura.
De acordo com Pinto (2003), o feminismo brasileiro nasceu e se
112
desenvolveu em um difícil paradoxo: ao mesmo tempo que precisou
administrar as tensões entre uma perspectiva autonomista e sua profunda
ligação com a luta contra a ditadura militar no Brasil, foi visto pelos
movimentos integrantes desta mesma luta, como um sério desvio pequeno-
burguês.
Pinto (2003), também, acredita que a relação do feminismo com o
campo político, a partir de 1979, deve ser analisada sob três perspectivas
complementares: a conquista de espaços no plano institucional, por meio de
conselhos da condição da mulher e delegacias da mulher, nos cargos eletivos
e as formas alternativas de participação política.
A partir de então, o movimento feminista com sua inserção na
academia elege como temáticas a questão da violência de gênero; o tema da
saúde da mulher; o aborto e o da sexualidade.
Discute-se que o movimento feminista não é um movimento
popular, nem no sentido de classe, nem no sentido de seu raio de ação. Por
outro lado, a dificuldade de entrar na estrutura das universidades levou ao
aparecimento, em muitas delas, de núcleos de estudo sobre mulher.
No início do século XXI, o movimento feminista reconfigura-se a
partir da dissociação do pensamento feminista. Além disso, o feminismo
diversifica-se por meio do aparecimento de um grande número de
Organizações Não Governamentais – ONGs -voltadas para a questão das
mulheres, algumas delas trabalhando na perspectiva de promover o
empoderamento junto às mulheres. (PINTO, 2003).
Quem, também, reconhece as contribuições do movimento
feminista é Touraine (2007, p.19):
O movimento feminista transformou profundamente a condição das
mulheres em diversos países e permanece mobilizado lá onde a
dominação masculina ainda conserva sua força. É cada vez mais raro
que o reconhecimento de suas conquistas de suas lutas a favor da
liberdade e da igualdade não seja reconhecido. Entre os cidadãos dos
países ocidentais, somente um pequeno número rejeita as conquistas e
as idéias do feminismo. O sucesso deste é tão complexo que muitas
jovens mulheres consideram evidentes as liberdades que o movimento
lhes permitiu conquistar.
Desta forma, situamos o empoderamento nos estudos
feministas, questionando o seu significado, visto que não está presente na
língua portuguesa. Constatamos que sua etimologia é inglesa, conforme
_____________________________________________________________
44
Scott (1991) explica que a categoria gênero foi utilizada na década de 1970, para analisar as diferenças
entre os sexos e, em seguida, estendida à questão das diferenças dentro da diferença, argumentando que
as diferenças fundamentais da experiência tornaram impossível reivindicar uma identidade isolada. A
diferença dentro das diferenças fez surgir um debate sobre o modo e a conveniência de se articular o
gênero como uma categoria de análise.
113
aludimos a seguir em três obras:
a) Dicionário Oxford (1996):
1 authorize, licence (autorizar, permitir)
2 giver power to; make able, empowerment a (dar poder a, tornar
possível).
b) Merriam-Webster: (2004)
1 to give offcial authority or legal Power to (dar autoridade oficial a
ou poder legar)
2 enable (habilitar, permitir, autorizar)
3 to promote the self – actualization or influence of (promover a
auto-atualização ou influência de).
c) Dicionário Americano Heritage (2004) exemplifica “we want to
empower ordinarycitizens” (nós queremos empoderar cidadãos comuns).
Diante disso, o uso do termo inglês desvia do seu sentido original,
pois empoderamento implica conquista, avanço e superação por parte
daquela ou daquele que se empodera e não uma simples doação ou
transferência por benevolência, como denota o significado de empowerment,
que transforma o sujeito em objeto passivo.
León (2000) afirma que o conceito empowerment e
empoderamento não são criações recentes. Conforme o Oxford English
Dictionary, a palavra aparece em textos da segunda metade do século XVII.
Para esta estudiosa, empoderar-se significa que as pessoas adquirem
controle sobre suas vidas e definem suas agendas.
Ela, também, aponta que o empoderamento é utilizado para
transformação social, segundo a concepção feminista de mundo. Logo, este
conceito indica uma alteração radical dos processos e estruturas que
reproduzem a posição subordinada das mulheres na sociedade.
Assim, ela esclarece que o uso do termo empoderamento pelo
movimento feminista, tem suas raízes na importância adquirida pela idéia de
poder, tanto pelos movimentos sociais, como pela teoria das ciências sociais
nas últimas décadas do século XX. Na década de 60, deste século, o discurso
radical do movimento por direitos civis para população afro-americana nos
Estados Unidos identificou a busca do poder negro como estratégia de
reivindicação. Na década seguinte, a ciência social crítica e o movimento de
mulheres, particularmente, o movimento feminista retomam e desenvolvem
esse conceito.
_____________________________________________________________
45
Em 1980, uma ampla corrente analítica começou a reunir evidências sobre a qual se baseia muito da
força contemporânea do conceito de “empoderamento”. Costuma-se denominar essa corrente de escola
do “desenvolvimento alternativo”. Ao mesmo tempo, o conceito de participação iniciou um longo período de
influência sobre o pensamento e a prática do desenvolvimento. Eles acrescentam que o empoderamento é
mais facilmente exposto que posto em prática, e grande parte da literatura que acompanha a prática carece
do rigor necessário para um conceito tão complexo que será utilizado operacionalmente. Oakley e Clayton
(2003)
114
Ainda de acordo com León (2000), a ciência social crítica baseou
suas análises nos trabalhos de António Gramsci, Michel Foucault e Paulo
Freire. Para os dois primeiros, o poder é uma relação social; em Paulo Freire,
a discussão central de seu trabalho é a transformação da consciência.
O feminismo, na década de 1960 apropria-se do conceito de
empoderamento relacionado ao movimento Mulher e Desenvolvimento tendo
como representantes Carolyn Moser e Kate Young. Elas tinham como
preocupação a incorporação da perspectiva de gênero no planejamento para
desenvolvimento. Nesse debate, há como reivindicações a transformação
das relações de gênero e das estruturas de subordinação.
A utilização do termo pelo movimento de mulheres iniciou em
1985, com a terceira Conferência Mundial da Mulher, em Nairóbi, por Gita Sen
e Karen Gow. O texto produzido por elas pedia transformações das estruturas
de subordinação da mulher e mudanças radicais na sociedade. Assim, o
conceito de empoderamento aparece como uma estratégia impulsionada
pelo Movimento de Mulheres do Sul, com a finalidade de avançar nas
mudanças de suas vidas e gerar um processo de transformação das
estruturas sociais (LEÓN, 2000).
Mas é na década de 1970 que a discussão sobre o uso do termo
empoderamento repercutiu na América Latina acompanhado da visibilidade
do Movimento Feminista. Para este movimento, a obtenção da transformação
da consciência das mulheres ocorre por meio do empoderamento.
No cerne das discussões sobre empoderamento está o conceito
de poder, o que, segundo Foucault (1979, p. 183), devemos atentar:
[...] O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como
algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca
está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou bem.
O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos
não só circulam, mas estão sempre na posição de exercer este poder e de
sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são
sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder não se aplica
aos indivíduos, passa por eles.
A relação das mulheres com o poder pode ser fonte de opressão
em seu abuso e fonte de emancipação em seu uso. Nesse sentido, as
relações de poder podem significar dominação, desafio e resistência às
fontes existentes ou servir para obter controle sobre elas. (LEÓN, 2000).
Sob o olhar de Rabay e Carvalho (2001), o conceito de
_____________________________________________________________
46
De acordo com Haesbaert (2005) território tem a ver com poder, porém, não apenas ao tradicional poder
político, mas contempla, também, o poder no sentido mais concreto, de dominação, quanto ao poder no
sentido mais simbólico, de apropriação. Em Santos (2008), por território entende-se a extensão apropriada
e usada. Mas o sentido da palavra territorialidade como sinônimo de pertencimento tem caráter
sentimental de exclusividade e limite que ultrapassa a raça humana e prescinde da existência de Estado.
115
empoderamento é essencialmente educativo por se manifestar na
capacidade de agir de forma individual e na organização coletiva. Diante
disso, o aprendizado sobre a cultura do poder, ou seja, suas relações,
processos, formas e estruturas, por meio da capacidade de objetivar e
reconhecer a realidade de modo crítico é condição para transformação da
realidade e para a liberação de indivíduos e grupos daquilo que diminui sua
participação social, intelectual e política.
EMPODERAMENTO NO TERRITÓRIO EDUCACIONAL
No território educacional, Paulo Freire (1987), embora não tenha
utilizado o termo empoderamento, seu trabalho como educador foi pautado
nessa perspectiva. Portanto, os fundamentos de sua práxis são importantes
para entender a dinâmica da aprendizagem transformadora e libertadora.
Além disso, Freire chama atenção para os processos mediante os quais os
excluídos se liberam das estruturas que limitam sua participação social,
intelectual e política.
Empoderamento, em Paulo Freire, segue a lógica de que uma
pessoa empoderada é aquela que realiza por si mesma, as ações
transformadoras que a levam a evoluir e se fortalecer. Além disso, verifica-se
que o conceito deriva da idéia de libertação do oprimido; conquista da
liberdade pelas pessoas que têm estado subordinadas a uma
posição de dependência econômica ou física e de qualquer outra natureza.
Destarte, o empoderamento difere da simples construção de habilidades e
competências. Pelo contrário, a educação pelo empoderamento difere do
conhecimento formal tanto pela sua ênfase nos grupos, quanto pelo foco na
transformação cultural.
Assim, podemos destacar pessoas que lutaram em prol da
educação como forma de libertação e transformação. A exemplo, Nísia
Floresta Brasileira Augusta, nascida no Rio Grande do Norte, em 1810. Esta
mulher militou com audácia pela política emancipatória para todas as
pessoas e, em especial para as mulheres. Ainda, na primeira metade do
século XX, ela denunciou a opressão vivida pelas mulheres.
Nísia defendia a educação como caminho para emancipação
feminina. Além do que, foi contrária a idéia de que os homens são superiores
por serem racionais e as mulheres afetivas e denunciou que as chamadas
fraquezas do sexo feminino são resultantes da injustiça masculina. A audácia
_____________________________________________________________
47
Condição é o estado material no qual se encontram as mulheres: sua pobreza, salário baixo, desnutrição,
falta de acesso a saúde pública e a tecnologia moderna; educação e capacitação; e sua excessiva carga de
trabalho. (Costa, s/d)
48
De acordo com Certeau (1994) muitas práticas cotidianas são do tipo de tática e uma grande parte das
maneiras de fazer são vitórias do fraco sobre o mais forte. Essas perfomances operacionais dependem de
saberes muito antigos. Portanto, as táticas são manifestações da indissociabilidade entre inteligência e
combate.
116
de Nísia se revelava também nos profundos questionamentos acerca de que
modo as mulheres poderiam desenvolver sua condição se a sociedade só
exigia que ela se enfeitasse para agradar aos outros. (PASSOS, 2000).
A educação das mulheres no Brasil, desde primórdios do século
XIX, estava organizada ao redor da dicotomia européia entre a instrução e a
educação. Aos homens instruía-se para desenvolver o intelecto, às mulheres
educava-se para formar o caráter. Desconsiderava-se o desenvolvimento
intelectual das meninas como benefício de si mesmo, tampouco como meio
de realização da personalidade individual.
A educação da mulher, à época de Nísia Floresta (1810-1885),
apresentava como propósito primordial, conservar a pureza em
sua conotação sexual e assegurar um comportamento correto perante a
sociedade.
A esta realidade Floresta (1989, p. 111) se opôs dizendo: [..] “no
Brasil, não se poderá educar bem a mocidade enquanto o sistema de nossa
educação quer doméstica, quer pública, não for radicalmente reformado”. A
posição emancipatória de Nísia resultou de sua experiência e, como diz
Young-Eisendrath (1993), a experiência pessoal é originalmente e sempre
uma experiência compartilhada.
Daí, os estudos feministas diferirem dos demais, sobretudo,
porque se opõem à autoridade das formas masculinas nas culturas que
tentaram convencer de que os homens, individualmente, foram visionários e
não receberam contribuições de suas amantes, esposas, filhos (as),
empregados (as) e outras pessoas para seus sistemas de conhecimento.
Nísia Floresta acreditava e defendia que a mulher se tornaria
emancipada através da educação, pois só desta forma teríamos condições
para enfrentar as adversidades e como assegura Passos (2000, p. 63-64):
[...] Nísia viveu as conseqüências de um país patriarcal e analfabeto,
criticava a política educacional elitista e discriminadora que facultava a
abertura de escolas para o sexo masculino e limitava para o feminino,
também o currículo diferenciado e a restrição da mulher ao ensino
secundário. Fundou um colégio para as moças no Rio de Janeiro,
escandalizando os brasileiros no período imperial. Ela, assim como a
maioria das feministas do período, acreditava que só pela instrução, as
mulheres poderiam aspirar à independência e dignidade pessoal.
As mulheres, desde que temos notícias pela historiografia,
sempre sofreram uma variedade de limitações impostas, sobretudo, por sua
condição que intensificaram seu processo de exclusão. Desse modo, é
inegável que cada uma de nós recorre a uma espécie de poder. Algumas de
forma intencional, outras não. Nesse sentido, o empoderamento deve ser
pensado, também, como resultado de táticas dos excluídos.
117
PALAVRAS FINAIS
Por que as mulheres buscam a ampliação do seu poder só pode
ser respondida quando analisarmos as experiências desenvolvidas por
mulheres nos diferentes espaços sociais e tempos. Além disso, a resposta a
esta questão tem vários caminhos explicativos; um deles é busca pela
igualdade, mas igualdade que reconheça suas diferenças, na perspectiva de
Badinter (2005), pois a igualdade alimenta-se do mesmo e não do diferente.
Assim, precisamos ter cuidado para não supervalorizarmos a diferença e
relativizarmos a igualdade porque a diferença entre os sexos é uma
realidade, no entanto, ela não predestina os papéis e às funções.
Esta mesma autora ao analisar o feminismo na França, a partir da
década de 1980, observou que com todas as conquistas deste movimento, as
mulheres continuaram com uma dupla jornada de trabalho e a inexplicável
inércia dos homens.
Falar sobre empoderamento das mulheres, também, implica,
abandonarmos as imagens de mulheres como eternas vítimas que
impregnam nossa memória. Badinter (2005) também alerta sobre isso.
Segundo ela, falar da supermulher não dá boas manchetes;
quando se fala das proezas das desportistas, das jornalistas de alto nível e de
todas as outras mulheres que fazem seu caminho em territórios doados aos
homens, como dizem alguns/algumas, territórios masculinos, perturba-se a
ideologia dominante. Sendo assim, prefere-se ignorá-las e reservar a
atenção para o tema da eterna opressão masculina.
Portanto, baseando-se na visão da referida autora, construiu-se
aqui uma relação com baixo número de pesquisas sobre empoderamento a
nível de programas de pós-graduação, no Brasil, disponíveis no
Portal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior –
CAPES; O portal dispõe de apenas cinco dissertações e quatro teses que
datam do ano 2000 a 2006, nenhuma ligada a programas de pós-graduação
em educação.
A busca foi realizada entre os dias 1º a 8 de fevereiro de 2008.
Destarte, reconhece-se que estudar e discutir sobre o poder das mulheres
incomoda a ideologia dominante. E, embora hoje seja menos comum negar o
acesso de mulheres a territórios dantes eminentemente masculinos,
renovam-se as estratégias colocando as mulheres como eternas vítimas. Isto
porque quiçá seja mais difícil reconhecer que as mulheres têm poder e
querem ampliá-lo para fazer jus aos seus direitos.
118
REFERÊNCIAS
120
A UNIVERSIDADE VISTA PELAS MULHERES: interpretações sobre o
processo de construção da identidade universitária
122
que chamamos de evasão.
Partimos da idéia que a universidade tem de ser capaz de
possibilitar ao discente horizonte teórico e profissional aplicável no dia a dia, o
que envolve a tomada de decisões, como salientam Minogue (1981) e
Antunes (2001). Por este motivo, a aprendizagem universitária está
alicerçada em três eixos de integração (ensino, pesquisa e extensão),
contribuindo para múltiplas possibilidades de aprendizagem. É
neste sentido que este trabalho se preocupa com o processo de construção
da identidade universitária, analisando a compreensão ampliada sobre o
ensino-aprendizagem no ensino superior.
Neste sentido, tomamos como sujeitos de interpretação sobre as
formas de identidade universitária, discentes do curso de ciências sociais,
que por algum motivo interromperam seus estudos na universidade. As
informantes têm diferentes trajetórias acadêmicas. Na maioria dos casos,
trancaram ou simplesmente deixaram de freqüentar o curso, seja por não
conseguir conciliar estudo e trabalho, outra graduação, por não se identificar
com as disciplinas, professores e/ou colegas de sala, como podemos ver a
seguir:
_____________________________________________________________
49
Para preservar a identidade das interlocutoras, seus nomes foram trocados para exposição dos dados da
pesquisa.
50
Refere-se ao ano de ingresso no Curso de Ciências Sociais.
123
Das 14 entrevistadas, 12 afirmaram cursar ou ter cursado outra
graduação. Conciliar duas graduações significa ter ingressado nas
instituições no mesmo ano ou em momento diferentes na mesma instituição,
como o caso de Tatiana e Luana que cursaram respectivamente graduação
em Engenharia de Alimentos e Ciência da Computação na UFPA, desistiram
do primeiro curso para poder se matricular em Ciências Sociais. Elas
disseram que saíram de seus antigos cursos por falta de afinidade com as
disciplinas e perspectivas profissionais.
Entendemos que a identidade universitária apóia-se nas
atividades que a universidade oferece e principalmente no uso que os
discentes fazem, por isso ela envolve ser conhecedor e participante daquilo
que a instituição pode oferecer. Neste sentido, quando os alunos apontam o
desejo de continuar na universidade, eles lamentam o fato de não poderem se
dedicar às outras atividades, desistindo do curso até o quatro semestre.
Fazer parte da universidade é uma questão de identidade para
poder participar, como mostraram Nogueira e Barbosa (2009) ao estudar as
discentes de pedagogia na UFPA. A identidade universitária não ocorre
apenas através da freqüência nas disciplinas ou na participação em projetos
de ensino, pesquisa e extensão, mas se relaciona também à maneira como
as relações sociais são tecidas diariamente com os colegas de turma, com as
formas de estudar, com os professores, como podemos ver no relato de
Vanessa ao dizer porque deixou o curso: “Não foi como eu imaginava, eu
queria uma vida acadêmica mais ativa, queria participar de tudo, mas
infelizmente por me sentir pior que todos, tentei me fechar em dúvidas, em
vontade de fazer outras coisas que me deixaram fora dessa vida que eu
sonhava. Espero que eu consiga futuramente ter uma vida melhor e mais
ativa na universidade, neste ou em outro curso.”
A UNIVERSIDADE VIVIDA POR ELAS E OS SIGNIFICADOS DA
EVASÃO
Considerando que interpretar quais significados estão envolvidos
quando tratamos de identidade universitária e evasão, atentamos para a
questão a partir da fala das alunas (GEERTZ, 2006). Entre os motivos para
afastar-se do curso, podemos agrupá-los por temas que dizem respeito a
questões institucionais e pessoais, como poderemos ver:
Quadro 2: Motivos para afastamento do curso
124
Fonte: Pesquisa de campo, 2009.
125
Observando os motivos para afastamento, chama atenção a
questão da identificação (ou não) com o curso, a necessidade de conciliar
atividades (em geral, duas graduações ou estudo com trabalho). Neste
sentido, o afastamento do curso não significa desligamento total; ao contrário,
quando perguntadas sobre sua experiência de evadidas, as discentes
demonstram a vontade de voltar ao curso. A questão institucional é apontada
por uma delas, quando precisou sair de Marabá, estado do Pará, onde
passou no vestibular, e vir para Belém.
Quando associamos gênero e trajetória universitária,
percebemos que passar em mais de uma universidade, ter ou não filhos na
maioria dos casos, ter que trabalhar para se sustentar ajudam a compreender
diferentes modos que a mulher vem conquistando meios para se posicionar
na universidade, em comparação aos primeiros trabalhos de gênero.
Ao tomar como análise os estudos sobre mulheres, Heilborn
(1992) argumenta que a categoria de gênero indica a distinção entre as
características culturais usadas para identificar homens e mulheres e que por
este motivo diferenciam-se entre os grupos sociais. A categoria de gênero
configura-se como campo de investigação antropológico, utilizado,
particularmente, por autoras ligadas ao feminismo. A autora destaca que o
ponto de partida para análises de gênero consiste no estudo do outro, no que
diz respeito ao exame das representações e práticas sociais de determinado
grupo social em seus termos culturais. Desse modo, a avaliação do lugar que
a mulher ocupa na sociedade opera-se principalmente mediante seu
movimento de construção da identidade social.
Ao estudar as proposições que demarcam o conceito de gênero,
Saffioti (1994) constata que esta categoria é uma construção social. As
diferenças existentes entre homens e mulheres devem ser entendidas como
“fruto de uma convivência social mediada pela cultura” (SAFFIOTI, 1994;
271-272). O gênero é concebido como relação entre os sujeitos construídos
pela sociedade e que diferem de acordo com o período histórico em que se
encontram.
Viezzer (1989) alega que a categoria analítica de gênero
representa um instrumento da teoria feminista e compreende a relação de
pessoas de gênero. As teorias feministas formulam o conceito de gênero
como categoria de análise.
Este conceito reafirma a historicidade das relações de gênero, a
sua importância enquanto pressuposto estruturante da experiência dos
sujeitos e das relações que estabelecem. A perspectiva de gênero, em geral,
_____________________________________________________________
51
Segundo HEILBORN (19992), a categoria de gênero nos estudos antropológicos veio da gramática, e
tem por objetivo designar indivíduos de sexos diferentes, ou coisas relacionadas a homens e mulheres.
126
investiga o modo como se dá o processo de percepção social dos
posicionamentos de gênero e suas imbricações com a dominação e o poder.
Com base nessa reflexão, o entendimento da trajetória
acadêmica das mulheres em questão também não pode deixar de considerar
as dimensões de gênero. Sobre isso, vale dizer que das 14 entrevistadas,
apenas uma disse ter deixado o curso por dificuldade de conciliar estudos,
trabalho e família. As outras treze não são casadas e não têm filhos, mas
falam igualmente da dificuldade de conciliar estudos com trabalho, por terem
que conciliar com outra graduação.
Neste caso, é importante destacar que a universidade
proporciona inserção de mulheres no espaço público, o que não se restringe
ao campo das ciências humanas. As opções por prestar mais de um
vestibular aparecem no desejo de ter um curso superior, ingressar no
mercado de trabalho e trilhar uma carreira. Além disso, estar na universidade
pode significar um processo de empoderamento, na medida em que elas
lançam mão de um processo de escolhas.
À GUISA DE CONCLUSÃO
Assim, a construção da identidade universitária relaciona-se não
apenas com as experiências que vivenciam na universidade, mas também
com a vida fora dela, pois manter-se na universidade movimenta um leque de
possibilidades e escolhas que fazem ao privilegiar, num
determinado momento, um curso e não outro. No caso das mulheres deste
estudo, o favorecimento do processo de empoderamento é imperativo para
possibilitar a inclusão social nas universidades e, também, na sociedade
como um todo, pois interromper os estudos num curso de graduação significa
valorizar outros fatores em um processo de escolhas, decisões e dedicação a
outra graduação, assim como conciliar estudos, com trabalho e família.
Outros fatores podem emergir com os modelos familiares, a crítica da
inserção no ensino fundamental e médio, a ausência de uma monitoria para
calouros.
Como nota prévia para novos desdobramentos, esta síntese
considera dados que esperamos multiplicar para que a análise ganhe
consistência. A esta altura (nosso estudo começou em 2008), podemos
esboçar a hipótese que a transição para a universidade não é monolítica ou
monocrômica, isto é, parece haver tipos de inserção que envolvem
mediações, velocidades, resultados, interpretações diferentes. Neste
contexto, o conceito de identidade universitária ajuda como um conjunto que
abre a vista para olhares de gênero no contexto que também é marcado pela
transição de cada jovem para a vida adulta.
127
REFERÊNCIAS
129
TODAS EM NOME DA PAZ: Minha Experiência no Combate à Homofobia na
Escola
“Ninguém vive bem sua sexualidade numa sociedade tão restritiva, tão
hipócrita e falseadora de valores; uma sociedade que viveu a experiência
trágica da interdição do corpo com repercussões políticas e ideológicas
indiscutíveis; uma sociedade que nasceu negando o corpo...É preciso
viver relativamente bem a sexualidade. Não podemos assumir com
êxito pelo menos relativo, a paternidade, a maternidade, o professorado,
a política,sem que estejamos mais ou menos em paz com a sexualidade.”
(Paulo Freire).
Os PCN´s sugerem que seja feito um trabalho ordenado e
sistematizado de Orientação Sexual dentro do espaço escolar: promoção da
saúde das crianças e adolescentes; ações preventivas às doenças
sexualmente transmissíveis, a infecção pelo vírus da AIDS e uma reflexão
acerca da temática da sexualidade. Nas práticas escolares, contudo, o tema
sobre sexualidade vem sendo debatido, porém em situações pontuais, onde
já estão cristalizados os preconceitos contra as diversidades, principalmente
a diversidade sexual. Foi pensando nesta diversidade que, de forma
individual, começamos efetivamente em 1999 a levar esta discussão para as
escolas por onde passávamos.
Porém, pensando no grande mestre o sociólogo baiano Gey
Espinheira, falecido em março de 2009, que sempre nos dizia: “a história de
que temos que fazer nossa parte igualmente à parábola do beija-flor é uma
farsa. Pois se o beija-flor tentasse apagar o fogo levando água no bico,
obviamente ele teria que chegar muito perto do fogo, onde certamente
morreria queimado em virtude das faíscas. O que apaga incêndio é pó
químico, é tecnologia de ponta”.
Partindo deste princípio, ficamos a pensar: qual seria a tecnologia
de ponta necessária para instaurarmos uma educação que promova o
respeito ao ser humano? Pensamos na efetivação das políticas
educacionais. Fazendo uma retrospectiva da política do governo atual que
vem investindo através de suas secretarias em políticas a equidade de
gênero e de respeito à diversidade sexual, concluímos que ainda falta muito
para alcançarmos uma sociedade mais fraterna.
Na busca de caminhos mais consistentes e que garantam a
participação ativa de mais autores é que utilizamos de uma estratégia, talvez
que não se encaixa nos “padrões” requisitados pelas universidades, com
suas metodologias de pesquisa. A pesquisa é ótima para coletar dados onde
ao serem interpretados proporcionarão respostas para problemas propostos.
131
Mas é urgente que pensemos numa outra possibilidade que os/as
pesquisadores/as estejam dentro do ambiente escolar, não como
observadores/as, ou ainda de vez em quando fazendo algumas intervenções
que, nem sempre é de comum acordo com os/as professores/as que atuam
cotidianamente na unidade escolar. Ambiente escolar que possui todas as
suas impossibilidades e carências, que só são percebidas por quem convive
nele durante um período mínimo de quatro horas diariamente.
Obviamente sabemos que há inúmeras razões que determinam a
realização de uma pesquisa, podendo ser classificadas em dois grandes
grupos: razões de ordem intelectual e razões de ordem prática. As primeiras
decorrem do desejo de conhecer pela própria satisfação de conhecer. As
últimas decorrem do desejo de conhecer com vistas a fazer algo de maneira
mais eficiente ou eficaz. Mas será que com tantos casos de violência
ocorridos numa determinada realidade poderão esperar no mínimo dois anos
de estudos para que sejam combatidos? E quando efetivamente forem
combatidos, será que não aparecerão novos fatos, novas razões para os
mesmos problemas? Então será que as ações elaboradas para combater as
causas, farão o efeito esperado?
Todas em Nome da Paz é o nome “fantasia” de um projeto que
criamos em 2007 com o objetivo de minimizar a violência física e simbólica
vivenciada por indivíduos que são discriminados pelo fato de terem
relacionamentos homo-afetivos ou identidade de gênero não correspondente
ao sexo biológico. Outro foco do trabalho é o empoderamento das mulheres
através da informação, para que construam instrumentos de defesa na
garantia do direito de liberdade e acesso a espaços públicos. A necessidade
do projeto surgiu na semana pedagógica de 2007 da Escola
Municipal Comunitária de Canabrava, onde nós atuávamos na coordenação
pedagógica oficialmente no turno matutino e contribuíamos para o turno
noturno. Decidimos diagnosticar perante o corpo docente, direção e
representante de pais, quais as reais necessidades da comunidade escolar.
Professoras e responsáveis de alunos/as sinalizaram para a
violência simbólica e física que ocorriam dentro e fora do ambiente escolar.
Partindo para o estudo destas violências, observamos que as causas de
algumas das violências estavam associadas a fatores históricos que
perpassam na nossa sociedade em relação às representações sociais
vinculadas a pessoas de grupos específicos como: mulheres e
homossexuais. O conceito de representações sociais do qual me refiro está
relacionado aos significados que são produzidos e colocados em circulação
através das relações de poder. “Dessa forma, representar implica em
designar aquilo que conta como realidade numa determinada cultura e num
determinado tempo histórico, produzindo assim conhecimentos e verdades
em torno daquilo que se quer representar.”
Analisando o currículo oficial e cotidiano da escola, percebíamos
132
a ausência de indicadores que propusessem as discussões sobre gênero e
diversidade sexual. Aí surgiu a idéia de se fazer algo que não tivesse o caráter
de imposição para trabalhar as questões aqui apresentadas. A discussão
inicial do que poderia ser feito foi discutida com o corpo docente,
representantes de responsáveis, direção e vice-direção. Após uma longa
discussão, recolhemos as idéias de todas e fomos para casa onde pensamos
em um plano de ação que não afugentasse ninguém que participou daquele
momento.
No segundo encontro dissemos que faríamos um projeto que
trabalhasse o tema da paz uma vez por mês com os/as
responsáveis dos/as alunos/as, professores/as, funcionários/as, direção e
outros integrantes da comunidade. Iniciamos precisamente no mês de maio
com a oficina: A Figura da Mulher na Mídia. A cada encontro mensal,
avaliávamos a discussão e quais demandas teríamos para
implementar no próximo, objetivando proporcionar conhecimentos básicos
sobre os
temas sugeridos por todas participantes.
Assim, durante todo o ano de 2007 sistematicamente ocorreram
as oficinas sobre: Violência contra Mulheres, a Lei Maria da Penha, Violência
sexual contra Crianças e Adolescentes, A Figura da Mulher na Mídia, O papel
do/a Negro/a no Passado e no Presente, Auto-estima e Atuação Pró-ativa e
Intolerância Religiosa. A diversidade sexual, não foi contemplada com
atividades sistematizadas, em virtude do posicionamento de algumas
professoras que achavam que a escola tinha outras coisas mais urgentes
para resolver.
Os temas que não foram contemplados nos encontros,
trabalharam de forma particular em situações que cotidianamente surgiam e
que era requisitada a nossa interferência. Dois fatos ocorridos na escola
valem ser relatados para percebermos como as técnicas pedagógicas2 no
que se refere à educação e instrução dos prazeres estão presentes em
nossas práticas educacionais. Uma professora nos momentos do recreio
autorizava que alunos brincassem do lado de fora da sala e as alunas
brincassem dentro da sala de aula. Quando questionamos sobre tal
procedimento, a sua justificativa era de que estaria preservando a integridade
física das meninas em relação aos comportamentos dos meninos, cujas às
brincadeiras estariam abaixo da capacidade física de se relacionarem com os
meninos, pois estes estariam com bolas ou até mesmo com brincadeiras de
correr.
O fato citado demonstra como no dia-a-dia escolar podemos
_____________________________________________________________
57
Na perspectiva pós-estruturalista, conhecer e representar são processos inseparáveis. A representação
compreendida aqui como inserção, marca, traço, significante e não como processo mental – é a face
material, visível, palpável do conhecimento (SILVA, 1999, p.32)
133
educar desde muito cedo a criança considerar que certos
comportamentos são próprios do homem ou da mulher. Afirmando, através da
linguagem, que há uma regulação da sexualidade, impedindo a criança a
fazer, a experienciar, a viver. O corpo é convocado a abrigar uma técnica que
a principio não era sua, mas por agir de maneira repetitiva tornar-se-á uma
prática de si.
Segundo Michel Foucault, na obra História da Sexualidade I – A
vontade de saber (2006) justifica que prática de si é uma expressão que
designa que as ações do sujeito são percebidas por ele mesmo como criação
sua, quando na “verdade” essas condutas são conforme os valores e as
regras estabelecidas numa determinada pela sociedade. Em toda prática ou
atitude há um saber e o corpo é que servirá como base para os saberes
sobreviverem. É um saber que ao ser tomado como verdade torna-se parte do
corpo, mas que só ganha vida no campo da experiência, quando é tomado
como “verdade” e ao ser efetuado como prática própria, como uma prática de
si.
A conduta da professora diante a criança está constituída de
valores e crenças a respeito da perpetuação da ordem de gênero, e essas
práticas não são apenas reforçadas pela escola, como também, e,
principalmente, pela família. A família, enquanto ambiente primário de
socialização da criança, possui também valores e crenças que se cruzam
com o que escola dissemina, a contestação ao que a escola discursa e faz, só
aconteceria caso a escola se posicionasse contrária à aquilo que a família
acredita.
E o que poderá acarretar para as alunas? Possivelmente as
alunas incorporariam uma inferiorização do papel da mulher, como também
absorção de rótulos sociais nas quais se distingue as atribuições
dos homens e das mulheres. Assim, ficará para a mulher desenvolver todas
as atividades realizadas no âmbito privado. Cabe à escola problematizar a
reprodução das diferenças, pois segundo Bourdieu (1999), a escola é uma
instituição importante para gerar transformação, inclusive no que se refere às
diferenças de gênero, isto é, criar espaços de discussão que diretamente
trate desses preconceitos, rótulos e atitudes discriminatórias.
Ao analisar a produção e reprodução do discurso, Foucault
identifica que há duas grandes forças imbricadas em seu processo de
institucionalização: “a vontade de verdade” e a “vontade de saber”. E que
estas duas forças arbitrárias necessitam existir para, sobretudo, exercer o
poder. O autor explica que com a divisão platônica de verdadeiro e falso, que
se arrastou ao longo dos séculos, onde o discurso verdadeiro era o do rei, da
igreja e de quem pronunciava a justiça, a verdade passou a habitar não no
que se faz, mas, no que se diz. Consequentemente, o discurso verdadeiro
passa a garantir um maior domínio, um maior poder.
De tal modo, a própria escola, enquanto espaço de circulação dos
134
mais diversos discursos, se constitui na produção e reprodução de falas e
informações que tentam controlar e conter os episódios que possivelmente
exprimam a diversidade. Tal postura tende a tornar o espaço escolar como
propriedade de quem fala, dando a este a possibilidade e capacidade de
manter a hegemonia, a heteronormatividade, ao sexismo, ao racismo e etc.,
disseminando valores cruciais para a crítica e recusa da igualdade, não só na
escola como também na sociedade.
Com a manutenção dos padrões apresentados no parágrafo
anterior, os indivíduos são “convidados” a estarem vigilantes de si mesmos; a
isolar-se daqueles que se comportam de maneira “irregular”; a serem
obedientes às determinações do discurso; a dizer e a fazer o que é “normal”.
O outro caso demonstra como os indivíduos vigiam uns aos
outros que não correspondem aos padrões heteronormativos. No ano 2007,
numa sala que estavam alunos e alunas de 6 anos e mais 2 professoras para
auxiliarem na organização dos adereços para desfilar, um aluno escolheu um
enfeite feito de papel na cor rosa com desenhos de flores e que
imediatamente, um dos seus colegas com extrema surpresa chamou a
professora e falou: - Pró... Fulano pegou o enfeite de menina. Isso pode? A
professora respondeu para o aluno que fez a escolha e disse: Menino você
não ta vendo que isto é coisa de mulher? Tem coisa para homem, porque você
não escolhe o que é para você? O aluno em questão perguntou a professora:
E qual é o meu? E ela respondeu: Você não sabe?! É o que tem carrinhos,
animais e o papel é azul.
Com este exemplo é possível verificar que o aluno quando
pergunta E qual é o meu? Ele não dispõe de um ideário que o classifica ou o
coloca especificamente em um lugar de menino ou menina, mas ele apenas
faz a sua escolha dentro daquilo que melhor lhe dá prazer ou lhe interessa,
demonstrando que ainda não possui a identidade sexual e de gênero
definida. Considerando o discurso do outro aluno (Pró... Fulano pegou o
enfeite de meninas. Isso pode?) é nítido que já está internalizando
identidades de gênero, onde inclusive questiona o comportamento ou
escolhas diferentes. Assim, se entendemos que gênero e sexualidade são
construções sociais, elas são, portanto, passíveis de mudanças.
Nesta situação dialogamos com as crianças, questionando os
padrões pré-estabelecidos de feminilidade e de masculinidade, para que a
reprodução das diferenças preconceituosas não seja incorporada desde as
primeiras etapas da construção das identidades. No final de 2007, em reunião
para avaliarmos como foram os projetos e decidirmos sobre quais projetos
_____________________________________________________________
58
Foucault, Michel. História da sexualidade – A vontade de saber. Vol. 1. Na escola, as técnicas
pedagógicas definiam tanto o ambiente escolar como as condutas dos alunos: “o espaço da sala, a forma
das mesas, o arranjo dos pátios de recreio, a distribuição dos dormitórios, (com ou sem separação, com ou
sem cortina) e os regulamentos elaborados para a vigilância do sono”, todas foram técnicas pedagógicas
com idéias de ensino para atuar eficientemente no que se refere à educação e instrução dos prazeres.
135
iríamos implementar na escola no ano de 2008, o projeto Todas em Nome da
Paz foi avaliado como positivo e que deveríamos continuá-lo. Uma mãe,
contudo, requisitou que tivesse mais atividades sobre a questão da
homossexualidade, justificando: “um aluno aqui, só porque tem
um jeitinho de mulher, os colegas e o pessoal da rua, discrimina. “E eu vi na
televisão que isto agora vai ser crime”. Uma professora diz que o mais
importante é trabalhar sobre a gravidez na adolescência. Outra professora diz
é muito complicado trabalhar sobre a diversidade sexual, porque todo mundo
sabe que isto não é normal.
Diante disso percebemos como é difícil a introdução de um
discurso diferente sobre a sexualidade, abrangendo inclusive a diversidade
sexual. Ao analisar este caso podemos observar que a escola é um lugar que
favorece a reprodução de estereótipos comportamentais, considerando que
muitos dos discursos dos/as professores/as e diretores/as, alinham-se a uma
cultura que tende se não necessariamente a apoiar, muitas vezes silenciar
discriminações. Abstendo-se, assim, a escola, a assumir um papel mais
agressivo em termos de formação de uma cidadania, pautada no
reconhecimento da diversidade, da denúncia, do combate e da
desconstrução de discriminações e relações de gêneros que sustentam
assimetrias e preconceitos.
Ao analisar os princípios de exclusão do discurso, Foucault
(2006c) esclarece que há procedimentos de interdição, rejeição e separação
no discurso e que se efetuam de maneira diferenciada. O autor explica que o
procedimento de interdição do discurso se traduz como um sistema de
dominação, de modo que “não se tem o direito de dizer tudo, não se pode falar
de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de
qualquer coisa”. Já o procedimento de separação do discurso está impresso
num sentido, sempre, de oposição, de criação do oposto, como a separação
daquilo que é objeto de desejo daquilo que não é, “é aquele cujo discurso não
pode circular como o dos outros: pode ocorrer que sua palavra seja
considerada nula e não seja acolhida”. E o procedimento de rejeição,
conseqüente ao da separação, logo trata de recusar o que não é razoável, o
que é visto como o que não tem sentido, o que é estranho, é aquela palavra
que é rejeitada tão logo proferida [...], de qualquer modo,
excluída”, e sendo rejeitado é levado a deixar de existir.
A fala da mãe foi o que nos fortaleceu para que de forma mais
incisiva implementássemos ações voltadas à promoção do reconhecimento
da diversidade sexual e ao enfrentamento do preconceito, da discriminação e
da violência em virtude de orientação sexual e identidade de gênero, não
deixando espaço para os discursos resistentes de algumas professoras
_____________________________________________________________
59
Foucault, Michel. História da Sexualidade – A vontade de saber. Vol. 1. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 2006a
136
anteriormente. Quando a representante dos responsáveis pressiona a escola
e seus colaboradores a reconhecerem a diversidade sexual existente no
tecido social, deixou muito claro qual deveria ser o papel desta instituição no
combate as desigualdades. No ambiente escolar, o discurso da sexualidade
ainda se encontra interditado, rejeitado e excluído da proposta de
reformulação das praticas pedagógicas, resultando na permanência de um
discurso científico baseado nos saberes médicos e psiquiátricos de
identificação das enfermidades e alterações; psicológicos de correção dos
desvios, como também, pelo discurso da pastoral cristã, que também
elaborou técnicas através do relato dos indivíduos para se obter os aspectos
singulares do sexo a partir das coisas que se falavam que se fazia ou não, que
se sentia ou não, produzindo, então discursos que se encarregam de ajustar
ou mudar os comportamentos do sujeito.
Quando se transmite uma educação para insensatez, reduz-se o
indivíduo à arte de agradar, infunde-lhe a hipocrisia criando uma espécie de
conformismo-“[...] uma uniformidade desprezível e enganosa”- que abafa a
sinceridade dos indivíduos. “[...] incessantemente seguem-se os usos e não o
próprio gênio. Não se ousa a aparecer o que se é [...]. É preciso ser
plenamente inteiro dono de si.
No ano 2008, foi possível desenvolver algumas atividades
significativas sobre diversidade sexual, onde observamos a multiplicidade no
tratamento da informação das diferentes gerações. No público adulto era
muito mais complexo discutir as questões relacionadas à homossexualidade
e a adoção do que com o público infanto-juvenil. O grupo de professores/as
avaliou que o fato de ter estudado sobre que a sexualidade engloba um
conjunto que vai além do corpo, abarcando a história, os costumes, as
relações afetivas e a cultura, ficou mais fácil discutir sobre a
homossexualidade na sala de aula e consequentemente com menos “pavor”
em elaborar atividades que discutam o preconceito a diversidade sexual.
A visibilidade sobre a existência da homofobia não mais
assustava as professoras na hora de “apagar incêndio”. Também começaram
a introduzir atividades anteriormente impensadas, como trabalhar com Medo
de quê? (Brasil, 2005) – Desenho animado, sem palavras, que focaliza o
processo de descoberta por um garoto de sua atração afetivasexual por
rapazes, e o impacto que isso traz às relações a sua volta. O vídeo é uma
produção em parceria de Ecos/Promundo/Papai/Salud y Gênero. O tema que
também demandou muita discussão foi o aborto em virtude da concepção
religiosa dos/as alunos/as do SEJA e dos responsáveis, que em sua maioria
era protestante.
_____________________________________________________________
60
FAGUNDES, Tereza C. P. Carvalho (org). Ensaios sobre educação, sexualidade e gênero – Salvador:
Helvécia, 2005. p.128
137
Nos grupos de trabalho de acordo com cada segmento foi
observada uma multiplicidade de experiências em relação aos conceitos
abordados durante as oficinas, variando de acordo a classe
social, formação institucional, geração e concepção religiosa. Uma atividade
que vale relatar é o jogo dos sete erros (numa folha de papel ofício contendo
três casais: um casal hetero, um casal homossexual masculino e um casal
homossexual feminino). Os/as alunos/as tinham que completar os desenhos.
Depois abríamos para a discussão sobre o desenho. Nos grupos de
educação infantil, a maioria dos/as alunos/as não externavam preconceitos
só percebiam os erros gráficos da proposta do jogo. Já no ensino fundamental
I, principalmente com os/as alunos/as do 4o e 5o ano de escolarização, na
hora de discutir sobre o desenho era externado todo o preconceito construído
numa sociedade sexista e heteronormativa.
O resultado mais significativo foi à comunidade compreender a necessidade
de reformular o projeto político pedagógico da escola, incluindo as questões
relacionadas a gênero, raça/etnia e sexualidade, pois assim
independentemente deste projeto estaria comprometida com a diversidade.
Ainda falando das oficinas, não só nós mediávamos, como também
convidávamos pessoas dos movimentos sociais e estudiosos para atuarem
como mediadores. Numa dessas mediações, uma pessoa do movimento
negro e também diretora da Escola Municipal Parque São Cristovão
Professor João Fernandes nos convidou para esta mesma tarefa na unidade
escolar.
Assim o primeiro encontro aconteceu logo na semana seguinte
com todos/as que atuam na escola. A nossa proposta inicialmente foi de
sensibilizar a comunidade para a temática visto que não pertencíamos à
aquele ambiente. Surpreendentemente extrapolamos o horário e todos/as
permaneceram concentrados/as ao que estava sendo proposto. Vários
docentes com vontade de saber mais, outros em silêncio, talvez se
questionando sobre “sei lá o quê” e alguns questionaram verbalmente sobre
se a questão da homossexualidade era genético ou questão de escolha do
indíviduo. Então respondemos que o X da questão não estaria em ser
genético ou não, mas sim o problema residia quando ignoramos a
diversidade sexual e culpabilizamos o sujeito, não permitindo a ele viver sua
sexualidade seja ela qual for e de maneira livre. E fizemos uma pergunta de
volta: e se fosse uma escolha? Será que ele não tem o direito à sua
subjetividade?
Assim durante o ano de 2008, na escola Parque São Cristovão...
poucas atividades foram implementadas, visto que os projetos já tinham sido
estabelecidos no início do ano. Porém o avanço mais significativo para nós,
aconteceu durante o mês de fevereiro na Jornada Pedagógica de 2009,
quando organizamos uma oficina para todos/as que trabalhavam na escola,
onde levamos um pessoa que é transexual para mediar todo o trabalho
138
proposto naquele encontro.
Surpreendentemente, uma pessoa que atua na escola como
servente foi quem mais demonstrou interesse sobre a temática em virtude de
possuir um filho homossexual. A recepção da direção, professores/as,
porteiros e outros tantos ali presentes, foi de respeito e percepção da figura de
uma pessoa que estava naquele momento desempenhando um papel de
formador sobre uma questão em que eles/as não tinham conhecimento. Na
festa de São João deste ano, na quadrilha junina foram formados pares para a
dança e um aluno do SEJA, assumidamente homossexual, dançou no lado
das alunas. Ao analisar o fato, pode-se pensar em avanços já que antes isto
talvez não fosse possível neste espaço escolar. Mas outra reflexão a se fazer
é que para festas, onde a figura do homossexual fica caricaturada isto foi
possível, porém será que em outros momentos não festivos isto será
possível? Será que ele (o aluno) poderá usar o banheiro de alunas sem os
questionamentos de alguns, será que ele poderá querer ser chamado pelo
seu nome social sem o desconforto das piadinhas.
Durante este ano em Salvador, houve o 1º Seminário
Internacional Enlaçando Sexualidades, promovido pelo Núcleo de Gênero e
Sexualidade da UNEB (Nugsex Diadorim). Assim sugerimos que quatro
docentes fizessem os relatos de casos vivenciados no ambiente escolar. Para
minha surpresa todas aceitaram. No sábado da semana que
terminou o evento aqui citado, fomos à escola para entregar os certificados
dos relatos de experiência e o grupo nos cobrou uma atuação mais
sistematizada na formação continuada da equipe. Isto demonstra que nós
professores/as estamos sim em busca da transformação da educação, mas,
precisamos de parcerias que nos proporcionem novos saberes que nos
conduzam a um novo olhar sobre velhas questões da sexualidade.
As falas de algumas professoras nos mostram isto: “... eu acho
que minha dificuldade em falar sobre sexualidade é porque não temos
informação, sobre o monte de coisa deste assunto....” e “se for preciso vou ter
que estudar bastante, me sinto mal falando dessas coisas, sabendo que não
_____________________________________________________________
61
“apagar incêndio” é uma expressão utilizada comumente pelas docentes na Escola Municipal
Comunitária de Canabrava como um problema difícil de se resolver.
62
Neste texto a palavra heteronormativa é proveniente do termo heteronormatividade (do grego hetero,
"diferente", e norma, "esquadro" em latim) é um termo usado para descrever situações nas quais variações
da orientação heterossexual são marginalizadas, ignoradas ou perseguidas por práticas sociais, crenças
ou políticas. Isto inclui a idéia de que os seres humanos recaem em duas categorias distintas e
complementares: macho e fêmea; que relações sexuais e maritais são normais somente entre pessoas de
sexos diferentes; e que cada sexo têm certos papéis naturais na vida. Assim, sexo físico, identidade de
gênero e papel social de gênero deveriam enquadrar qualquer pessoa dentro de normas integralmente
masculinas ou femininas, e a heteronormatividade é considerada como sendo a única orientação sexual
normal. As normas que este termo descreve ou critica podem ser abertas, encobertas ou implícitas.
Aqueles que identificam e criticam a heteronormatividade dizem que ela distorce o discurso ao estigmatizar
conceitos desviantes tanto de sexualidade quanto de gênero e tornam certos tipos de autoexpressão mais
difíceis.
139
tenho certeza...” Aos poucos a escola modifica seu discurso heteronormativo,
porém a equipe de professores/as está mais ávida a estudar as questões aqui
apresentadas e como também se instrumentalizarem para mudar suas
práticas pedagógicas, vislumbrando a mudança
efetiva do currículo cotidiano e oficial. Voltando à Escola Municipal
Comunitária de Canabrava, estamos atuando oficialmente no turno noturno,
continuamos fomentando o trabalho, porém por impossibilidades pessoais,
pouco estamos contribuindo com o diurno. Contudo, estamos sempre sendo
requisitadas para fornecer materiais, para conseguir mediadores e
principalmente à continuidade do trabalho com os/as alunos/as por parte de
algumas professoras. As oficinas com o público de pais, mães e responsáveis
continuam acontecendo sempre à noite ou aos sábados.
De tal modo, percebemos o protagonismo de algumas colegas em manter
viva a discussão da diversidade sexual, não sendo mais um projeto sobre a
responsabilidade de uma só pessoa. A necessidade de desconstruir
estereótipos está presente nas duas escolas, pois docentes, responsáveis
dos/as alunos/as, comunidade circunvizinha, direção, vicedireção requisitam
mais atividades para aprofundarmos as discussões e como também estão
todos/as comprometidos/as em reformular o projeto político pedagógico,
pois, justificam que só assim será possível a continuidade do trabalho
independente de gestão e dos profissionais que estejam atuando.
_____________________________________________________________
63
UNEB refere-se a sigla da Universidade Estadual da Bahia
140
REFERÊNCIAS
141
AS RELAÇÕES DE GÊNERO E A EDUCAÇÃO: um Mecanismo de Violência
Simbólica
Greissy Leoncio Reis Lemos
Universidade Federal da Bahia - UFBA
Greissy Leoncio Reis Lemos
Universidade Federal da Bahia - UFBA
1 INTRODUÇÃO
Toda organização social é constituída por homens e mulheres,
logo, é atravessada por relações de gênero que por sua vez, pressupõe
maneiras diferentes de socialização. Sem dúvida toda sociedade possui seus
ideais e modelos de masculinidade e feminilidade, convenções do que é ser
homem e do que é ser mulher em cada organização. Como dizia a célebre
Simone de Beaviour: “não se nasce mulher, torna – se mulher”. Ao afirma que
não nascemos, mas nos tornamos mulher, Simone rompe com todo o
discurso de naturalização do ser feminino. Dessa forma, este tornar-se
mulher, passa por vários e complexos processos, um exemplo muito claro de
um desses processos pode ser percebido desde a gravidez, por exemplo,
onde há toda uma curiosidade em saber o sexo da criança, pois o fato de ser
menina ou menino desencadeará toda uma gama de atitudes e expectativas
diferenciadas, tanto no plano material quanto no plano simbólico afetivo.
Dessa maneira o fato de pertencer a uma organização social
específica, pressupõe uma determinada socialização, pautada em normas e
valores, padrões comportamentais diferenciados para cada sexo, já que o
fato ser mulher ou homem implicará em maneiras diferenciadas e desiguais
de se comportar no mundo, logo de se socializar. Nessa perspectiva, a
situação da mulher é de desvantagem em relação ao sujeito masculino, já que
em nossa sociedade a socialização feminina é desenvolvida a partir de uma
ótica patriarcal que vê a mulher como um ser inferior ao homem e, por isso
deve permanecer numa posição de submissão. Nessa perspectiva, a
educação torna-se uma ferramenta primordial e estratégica na tentativa de
manter a mulher em uma situação de subjugação e subserviência, ao sujeito
dominante, “homem”.
Dessa forma, ao analisarmos a história, percebemos que a
mulher foi (continua sendo) aprisionada a um modelo de feminilidade que
pressupunha a sua permanência no espaço privado, o que a impedia de
participar na vida pública, tornando-a apenas expectadora dos grandes
acontecimentos históricos. Entretanto, algumas mulheres inconformadas
com tal violência, não se submetiam, e burlavam esse sistema arbitrário de
poder masculino de diversas maneiras, como participando de guerras
disfarçadas de homens, fazendo motins, etc.
_____________________________________________________________
1
UNEB refere-se a sigla da Universidade Estadual da Bahia
143
Alguns teóricos discutiram sobre a origem dessa sujeição da
mulher ao homem, um dos que mais se destacaram foi Frederic Engels, com
seu livro “A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Para
Engels (1985), o surgimento da propriedade privada foi a derrocada final para
o sexo feminino, significou a sua escravidão ao sexo masculino. A partir desse
momento a mulher passou, junto com os bens materiais, os filhos e os
escravos, a ser mais uma propriedade do patriarca, sua função agora seria a
de serví-lo e ser submissa, dedicando-se somente ao lar e ao seu senhor.
Esse quadro de exploração e submissão da mulher, irá se repetir
ao longo da história e das sociedades, no mundo antigo, em sociedades como
a ateniense, por exemplo, a mulher assim como os escravos e as crianças,
era desprezada de qualquer direito e não era considerada cidadã. Além disso,
os sábios da época como Platão e Aristóteles afirmavam e legitimaram a
suposta inferioridade feminina, mesmo que houvesse exceções de mulheres
sábias, estudiosas, que entendiam de política, em nada adiantava para que
esta identidade inferior de gênero fosse atribuída de maneira geral às
mulheres daqueles períodos. (MELO, 2001).
Na Idade Média não foi diferente, apesar da difusão do
Cristianismo e de seus princípios de igualdade e justiça, amor e misericórdia,
negando as diferenças entre pobres e ricos, senhores e servos
homens e mulheres, na prática esses valores foram distorcidos e
manipulados em função da conveniência de uma sociedade masculina. De
acordo o historiador Movin Perry (1999, apud MELO,2001,p.24):
A 'sociedade feudal era um mundo predominantemente masculino' no
qual o ideal cristão estereotipado, matricêntrico nos seus primórdios, vai
gradativamente assumindo caráter patriarcal, a estrutura do poder
abafando o discurso do amor e misericórdia, os oprimidos merecendo
somente promessas para a outra vida. A Igreja termina por aderir ao
patriarcalismo, tomando-se repressora no que tange à sexualidade, à
emoção, à mulher.
Posteriormente, entre os séculos XIV e XVIII na Europa, houve a
chamada “caça às bruxas”, centrada na sexualidade feminina ao lado do
fortalecimento do culto à Virgem Maria como modelo de mulher e mãe,
exaltado pela Igreja. Nesse período de “caça às bruxas”, as mulheres foram
vítimas das mais insanas atrocidades, muitas foram condenadas à fogueira,
ao enforcamento, etc., tudo isso, fruto da ignorância e do poder arbitrário de
uma sociedade maniqueísta e patriarcal. Um exemplo chocante de tamanha
violência nesse período, foi a perseguição empreendida às chamadas
cirurgiãs, que eram consideradas insubordinadas, vistas como ameaça ao
incipiente poder médico masculino, da época. Assim, o saber feminino fica
sufocado pelo “poder do saber” masculino. (MELO, 2001, p. 25).
Ao avançar um pouco mais na história, conquistas serão
presenciadas, a partir do final do século XVIII, com a invenção da máquina a
144
vapor, a fabricação em série de bens de consumo. O desabrochar da
economia capitalista e a transformação das relações de produção, gera a
Revolução Industrial e o capitalismo Industrial, influenciando nas formas de
relações entre os gêneros.
No que se refere à religião, o protestantismo se expande com
força negando os valores católicos, libertando os indivíduos do complexo de
culpa por angariarem riquezas aqui na terra. No entanto quanto à situação da
mulher, não apresentava diferença alguma, pois a nova religião
mantinha o mesmo puritanismo e a repressão sexual da fé medieval. Em
relação à participação da mulher na esfera do trabalho, ocorrem algumas
mudanças, esta agora é inserida nesse novo contexto social como
trabalhadora, mas deve se manter dócil , assim como na idade medieval,
aceitando as investidas do novo sistema de produção e estrutura social,
perpetuando ainda, valores dessa sociedade através da educação dos filhos.
“Nessas circunstancias um novo modelo de feminilidade se impunha: o culto
da domesticidade, o pedestal feminino a criação do instinto maternal.”
(MELO, 2001 p. 27).
Ainda no século XVIII as mulheres também participam da
Revolução Francesa que ia de encontro aos princípios do catolicismo,
pautando-se agora em novas verdades: a razão a liberdade e a igualdade.
Quanto à igualdade de direitos esta era proclamada para todos os homens,
somente para estes, pois a declaração dos direitos do homem, excluía as
mulheres, assumindo, dessa forma uma posição semelhante à Igreja Católica
– intolerante, conservadora e dogmática – que, aliás, eles tanto criticavam.
Assim, os intelectuais do iluminismo permanecem embasando a suposta
inferioridade das mulheres, baseando-se agora em razões naturais para
justificar a desigualdade entre homens e mulheres, nesta nova sociedade que
naquele momento se instaurara.
A partir do século XIX surge com força o movimento feminista, e
com ele seus discursos democráticos de contestação da posição da mulher
na sociedade e busca de cidadania. Neste século, há um avanço da
democracia, e muitos protestos, principalmente no setor econômico. As
sociedades passam por processos de modernização e junto a isso muitos
protestos também são instaurados.
Trata-se de uma época muito conturbada, de avanços econômicos e
progressos que se juntam a muitos protesto e tumultos. Confronto entre
capital e trabalho. Explosão de greves. É em 1884, o memento no qual
Marx e Engels lançam uma obra de abrangente repercussão: O Manifesto
Comunista. A capital francesa é surpreendida em 1871 com a Comuna de
Paris e a organização das Internacionais Operarias. Ainda nesse século,
em 1868, o livro O Capital, de Karl Marx, é lançado. Nesse contexto, as
mulheres trabalhadoras envolvem-se. (MELO, 2001, p.27)
Nesse momento, as mulheres enquanto trabalhadoras operárias,
145
lutam junto com os homens por melhores condições de vida. Assim, a mulher
passa agora a atuar de maneira ativa no espaço público, da espera política,
reivindicando o direito ao exercício da cidadania. Com isso começa a romper
com a barreira ideológica da divisão sexual do trabalho, desconstrução da
ideologia do espaço doméstico como único passível de atuação feminina. A
atuação da mulher agora não se restringe apenas no espaço privado, trata-se
agora de uma militância que se inicia e invade o espaço público e político.
A mulher a partir do final do século XIX começa a ser a
protagonista de sua própria história e de suas lutas. Ainda que persista no
imaginário masculino, fruto de um modelo de sociedade patriarcal, a imagem
da mulher enquanto indivíduo inferior e que deve permanecer, por suas
predisposições naturais, no espaço doméstico. Em contrapartida, as
mulheres têm demonstrado o contrário, ocupando cada vez mais e muitas
vezes melhor, o espaço público, antes ocupado, impreterivelmente, por
homens.
Entretanto, não nos enganemos, apesar de no passado as
mulheres terem sofrido as mais variadas formas de opressão e violência,
atualmente elas ainda são vítimas das mais diversas formas de violência. E
não se trata apenas da violência física, uma das mais eficiente e sutil, a
violência simbólica, dissimulada, por isso difícil de detectar e combater, mas
que tem um efeito devastador sobre a identidade da mulher, dificultando a sua
luta por emancipação. Esse tipo de violência, a simbólica, perpassa todas as
instituições sociais: a família, igreja, trabalho, política, no entanto, é na
educação onde ela encontra seu lócus principal de produção e reprodução.
Assim, a educação torna-se um dos principais mecanismos de violência
simbólica, um dos mais eficazes, para a manutenção do status quo da ordem
patriarcal, muito presente em nossa sociedade, legitimando
desigualdades de gênero nos diversos espaços, principalmente no escolar.
Segundo Bourdieu (1992, p. 20): “Toda ação pedagógica é objetivamente
uma violência simbólica enquanto imposição por um poder arbitrário de um
arbitrário cultural”.
O espaço escolar possui uma primazia no que se refere à
reprodução das ideologias dominantes, pois a escola enquanto espaço de
formação de sujeitos cumpre o papel de socialização dos mesmos. Assim,
toda sociedade possui seus modelos de identidade masculina e feminina e,
para que tais modelos sejam incorporados e perpetuados, as instituições
escolares deverão transmití-los para as gerações que lhes são confiadas,
conforme os anseios sociais. É obvio que se trata de relações que são
estabelecidas não mais pelo uso da força bruta, mas sim, da força simbólica.
São relações complexas de assimilação e rupturas permeadas por conflitos,
onde as relações de gênero se fazem presente. Nesse contexto as
desigualdades de gênero podem ser tanto perpetuadas como
desconstruídas, isso porque não podemos, pensar a escola sob uma ótica
reducionista, enquanto um espaço apenas de reprodução. Ao contrário, a
146
escola pode (deve) assumir uma postura crítica diante das demanda sociais e
tornar-se um espaço de resistência e de desconstrução dessas
desigualdades.
2 A MULHER E A DOMINAÇÃO PELO SABER
À mulher sempre foi negado o acesso ao saber este seria inútil a
estes seres de “intelectualidade inferior” foi o discurso em voga durante muito
tempo na sociedade machista. O saber, então, era privilégio apenas dos
homens, seres mais capazes. Para fazer alusão a este pensamento arbitrário
em relação às mulheres, Michelle Perrot nos traz a seguinte afirmativa:
O saber é contrário a feminilidade como é regrado, o saber é o apanágio
de Deus e do Homem seu representante sobre a terra. É por isso que Eva
cometeu o pecado supremo. Ela mulher queria saber sucumbiu à
tentação do diabo e foi punida por isso [...] (PERROT, 2007, p. 91).
Assim, segundo Perrot (2007) as religiões de livros (judaísmo,
cristianismo, islamismo), confiavam as escrituras sagradas às interpretações
masculinas, logo as mulheres eram excluídas do acesso, primeiro por
punição, herança da “astuciosa' Eva, depois por incapacidade, já que
perpetuou durante séculos o discurso da inferioridade feminina e
incapacidade para atividades que necessitassem do uso do raciocínio, uma
vez incapazes de fazer abstrações, sua percepção do mundo se dava por
meio do concreto.
Muitos foram os discursos construídos sobre as diferenças entre
mulheres e homens, no entanto, as mulheres sempre foram representadas
nestes discursos de maneira inferiorizada e desvalorizada, justificativas para
a ocupação de lugares desprestigiados na sociedade. Esses discursos dos
homens sobre as mulheres, séculos XVIII e XIX, foram oriundos, não só da
cultura ou da Religião e etc, mas, até do próprio discurso científico, sinônimo
de verdade no período, que durante muito tempo contribuiu para a
legitimação das diferenças físicas e intelectuais entre mulheres e homens e,
da suposta inferioridade feminina. Essa postura da ciência justificava a
desvalorização dos papéis sociais ocupados pelas mulheres na sociedade,
além disso, o discurso biológico naturaliza as diferenças entre mulheres e
homens, legitimando assim, as desigualdades entre estes. Vale ressaltar que
esses discursos, mesmo arbitrários, eram assimilados pelas próprias
mulheres, poucas eram aquelas que os contestavam, e as que assim
procediam era severamente coagidas. Conforme Soieht (1997, p.10):
Nesse período, a construção da identidade de gênero feminina se
pautaria na interiorização pelas mulheres das normas enunciadas pelos
discursos masculinos, fato correspondente a uma violência simbólica que
supõe dos dominados às categorias que embasam sua dominação.
Para Chartier (1995) a partir do período moderno entre os séculos
XVI e XVIII os avanços do processo de civilização propiciaram a diminuição
da violência bruta e os enfrentamentos entre os indivíduos passam a ser no
147
plano simbólico. Assim, a partir desse período, os enfrentamentos entre
mulheres e homens passam a figurar mais nas lutas simbólicas. Agora mais
do que no período anterior, a construção da identidade feminina
se enraíza na interiorização pelas mulheres, de normas enunciadas pelos
discursos masculinos, ou seja, esse tipo de violência é incorporada e
consentida pelas próprias mulheres, contudo, não significa que não haja
resistências e manipulações desses discursos, pelas mulheres.
Este autor, afirma ainda que um objeto importante da história das
mulheres é então o estudo dos discursos e das práticas, manifestas em
registros múltiplos que asseguram o consentimento das mulheres quanto às
representações dominantes da diferença entre os sexos: desta forma a
divisão das atribuições e dos espaços, a enfermidade jurídica, a inculcação
escolar dos papéis sociais, a exclusão da esfera pública, etc., longe de afastar
do “real” e de só indicar figuras do imaginário masculino, as representações
da inferioridade feminina, incansavelmente repetidas e mostradas, se
inscrevem nos pensamentos e nos corpos de umas e de outros. (CHARTIER,
1995, p. 40).
Sendo assim, a violência simbólica apresentava-se (apresenta)
como uma forma estruturada de moldar mentes e corpos a partir de um
discurso dominante masculino, legitimando na cultura e na sociedade
modelos de comportamentos, formas de exclusão, discursos e
representações que são tomadas pelos sujeitos em suas dinâmicas sociais
como naturais. É o que afirma Chartier:
Definir a submissão impostas `as mulheres como uma violência simbólica
ajuda a compreender como a relação de dominação, que é uma relação
histórica, cultural e linguisticamente construída, é sempre afirmada como
uma diferença de natureza radical, irredutível, universal. (ibid, p. 42)
Segundo Soihet, com a Revolução Francesa e seus ideais de
Igualdade entre os seres humanos, foram grandes as perspectivas das
mulheres quanto ao acesso as esses direitos entretanto, foram grandes as
decepções das mulheres que, mesmo participando ativamente desse
movimento se viram excluídas do acesso a qualquer benefício advindo da
Revolução. Um discurso muito em vaga na época, justificava o impedimento
do acesso das mulheres à cidadania, afirmando que
indiretamente estas seriam beneficiadas com os frutos da Revolução, através
dos seus maridos, pais e irmãos. Essa nova ordem com idéias tão
revolucionárias, no que se refere à mulher, continua tão retrógrada quanto a
anterior, se pautando nos discursos da natureza feminina para lhes negar
direitos, afinal mulheres e homens possuíam uma fisiologia diferente, isso
justificava papéis diferentes na sociedade.
Esta autora afirma ainda que a cidadania reservada as mulheres
pelos intelectuais iluministas, era específica, a ser exercida no recesso do lar,
como mães dos futuros republicanos, cabendo-lhes a defesa dos interesses
148
familiares. Contudo, muitos foram as mulheres que não se contentaram com
esse tipo de cidadania, reivindicando o direito à participação, política, à
instrução, ao trabalho isto é, à cidadania plena. Por defender esta causa
muitas foram mortas , como é o caso de Olympe de Gouges, que propôs a
Declaração dos direito da Mulher, já que a Declaração dos direitos do
Homem, apesar de teoricamente, pressupor homens e mulheres, até o
momento em nada tinha alterado a condição feminina na sociedade.
De fato, quando a violência simbólica não dá conta de calar e
conformar um determinado grupo, lança-se mão da violência bruta, para
eliminar qualquer forma de subversão. Ao longo da história temos
presenciado mártires que são expostas, em praça pública, servindo de
exemplo àquelas que tentarem subverter a ordem estabelecida. No entanto,
as manifestações femininas por uma participação, mais justa e igualitária na
sociedade, continuaram latentes e culminam no século XIX, na Europa e
EUA, com o surgimento do movimento feminista, onde as mulheres,
organizadas, passam a contestar e lutar por direitos iguais na sociedade.
Nesse período a principal bandeira do movimento era o acesso à educação e
o direito do voto.
Sobre o modelo de cidadania liberal masculino, extremamente
excludente no que se refere às mulheres Costa (1998, p.64) afirma que:
A cidadania liberal universal é uma categoria masculina, construída com
base na exclusão feminina a partir da definição do privado como lugar da
mulher, o lugar das diferenças, da paixão, da natureza. A polis sobreviveu
através das esferas de representação publica da sociedade iluminada,
como lugar dos homens livres, livres por serem proprietários. Para as
mulheres, no pensamento liberal não existe igualdade, fraternidade e
muito menos liberdade, permanecem fechadas no campo das
necessidades, onde prevalecem a paixão, o instinto, a irracionalidade e,
principalmente, a reprodução da espécie.
Assim, nessa sociedade sob o modelo liberal a mulher ficou
totalmente insatisfeita com o lugar que continuou ocupando, sob uma
hegemonia burguesa, patriarcal, a mulher representa mera propriedade do
homem, estando a serviço de suas necessidades, confinada no espaço
privado, dando o suporte necessário para a atuação do sujeito masculino na
esfera pública. Contudo, essa restrição ao espaço privado era comum nas
camadas mais altas da sociedade, porque com as mulheres mais pobres, a
própria condição social as conduzia a transitarem no espaço publico, pois
muitas tinham que trabalhar fora do espaço doméstico para sustentar a
família, ou realizar elas mesmas as atividades domésticas que favorecia o
transito nos espaços extra- doméstico. Assim, elas desfrutavam de mais
independência, ainda que continuassem convivendo com as contradições
entre os gêneros e incorporando os saberes masculinos sobre a identidade
feminina (SOIEHT, 1997).
149
Contudo, não podemos pensar que as mulheres incorporavam os
discursos dominantes de maneira absolutamente passiva e alienante, muitas
usavam mecanismos e estratégias para dissimular e manipular suas práticas
contra a dominação masculina.
A incorporação da dominação não exclui a presença de variações e
manipulações, por parte dos dominados, isso significa que a aceitação,
pela maioria das mulheres, de determinados cânones não significa,
apenas, vergarem-se a uma submissão alienante, mas, igualmente,
construir um recurso que lhes permitam deslocar ou subverter a relação
de dominação. Assim, definir os poderes femininos permitidos por uma
situação de sujeição e de inferioridade significa entendê-los como uma
reapropriação e um desvio dos instrumentos simbólicos que instituem a
dominação masculina, contra seu próprio dominador. (SOIHET 1997 p.
12)
Portanto, ao longo da história as mulheres têm resistido a essa
dominação do macho, de diversas formas, às vezes exercendo no interior do
espaço doméstico pequenos poderes, outras vezes partindo para o embate
público, por meio de manifestações. Fica claro o temor da ordem estabelecida
quanto às tentativas de emancipação feminina, e para frear as investidas das
mulheres ao longo dos séculos lança- se mão de vários mecanismos de
controle simbólicos, políticos, psicológicos e etc. o fato é que as mulheres tem
revestido, subvertido, lutado e vem a cada dia conquistando mais espaço
numa sociedade que ainda vigora um regime patriarcal.
154
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155
ESTRATÉGIAS DE INSERÇÃO/CONSOLIDAÇÃO PROFISSIONAL DE
MÉDICAS, FARMACEUTICAS E ODONTOLOGAS NA BAHIA
Iole Macedo Vanin
1 INTRODUÇÃO
Em 1879, com a Reforma Leôncio de Carvalho, as brasileiras
passaram a ter acesso aos cursos superiores de medicina, farmacia e
odontologia. O direito feminino a este nivel de educação, bem como o
exercicio das profissões liberais ligadas a esta formação, foi tema de debate
na sociedade de então, a partir dos jornais, desde as primeiras décadas do
século XIX. A Faculdade de Medicina da Bahia não ficou alheia a estas
discussões como se pode perceber em uma análise mais detalhada nas suas
memorias, nos periodicos como a Gazeta Médica da Bahia, na
documentação institucional, e evidencia de tal fato concretiza-se na obtenção
da do titulo de prática em cirurgia dentária por Balbina Rosa de Souza poucos
meses após a Reforma Leoncio de Carvalho ou ainda a atuação da dentista
Leonor dos Santos, na Bahia, desde 1878.
Apesar destes fatos, que merecem ser melhor analisados, a
elevação do número de mulheres nos cursos superiores da Faculdade de
Medicina da Bahia aconteceu a partir de 1920 e encontra-se relacionada com
a divulgação das ideias feministas, em um primeiro momento, e depois,
precisamente a partir da década de 1930, com a atuação das filias da
Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, através das ações realizadas
pela União Universitária e a Ala Moça, uma vez que em todos os estados de
origem das alunas havia uma filial e muitas delas faziam parte dessas
instituições. Não podemos ignorar, no entanto, a influencia das novas
relações de trabalho que foram sendo instituídas onde a presença de
mulheres brancas não pobres tornou-se mais evidente.
A inserção das mulheres no denominado "mundo biomédico"
baiano no periodo em questão foi demarcado pela ideologia patriarcal. Assim,
como a formação e a produção intelectual, o exercicio profissional
reflete uma hierarquia de gênero. A finalidade do presente artigo é apresentar
as estratégias, empreendidas por estas mulheres, para terem a inserção e
consolidação profissional em um mercado de trabalho notoriamente
masculino. E o corpus documental, além de outras fontes, foi composto sobre
tudo por anúncios de serviços médicos e odontologicos publicados em
periódicos.
Ao todo foi contabilizado para as décadas finais do século XIX e a
primeira do XX, um total de 40.917 (quarenta mil novecentos e dezessete)
anúncios. Onde aproximadamente 0,5% (meio por cento) são femininos.
Desse dado pode-se inferir que a divulgação do exercício profissional pelas
mulheres foi ínfimo. No exercício de vislumbrar os autores e atrizes do
referidos anúncios, encontrei 86 médicos e 11 dentistas que publicaram
157
constantemente a oferta de seus serviços.
Desse universo, temos apenas 01 médica e 01 odontologa. Se
pensarmos as proporções profissionais pelo viés de gênero tendo como base
os sujeitos que fazem os anúncios e não a quantidade desses anúncios,
veremos que o pequeno número de anúncios foi conseqüência da pequena
presença de mulheres que divulgaram, via imprensa, os seus serviços.
Assim, a porcentagem para os anúncios se mantém para os seus autores: as
mulheres representavam menos de 0,5% (meio por cento) dos profissionais
presentes no mercado de prestação de serviços médicos de Salvador, que
divulgavam os seus serviços nos periódicos diários. Fato que sinaliza a
caracterização de que o exercício profissional nessa área, apesar da
formação de mulheres, ainda era masculina.
A mesma conclusão é válida para o intervalo entre as décadas de
1920 e 1940, uma vez que dos 118.511 (cento e dezoito mil e quinhentos e
onze) anúncios analisados 112.158 (cento e doze mil e cento e cinqüenta e
oito) são masculinos e 6.353 (seis mil trezentos e cinqüenta e
três) femininos. E esses anúncios correspondem a 242 médicos, 22 dentistas
homens, 19 médicas e 07 parteiras. No universo de 290 (duzentos e noventa)
profissionais, apesar de existir um aumento considerável em relação ao
período anterior, a presença feminina continua mínima diante do universo
apresentado: quase 7% (sete por cento). O controle do exercício profissional
dos homens nesse setor continuou constante. Ou seja, percebe-se que
apesar de um maior número, de baianas, formadas na Faculdade de
Medicina da Bahia em relação às décadas anteriores, o exercício profissional
na área médica era eminentemente masculino.
Por meio da leitura dessas fontes foi possível verificar que a
segregação territorial e hierárquica presente na formação, se fez presente no
mercado de trabalho desses profissionais e, mais sinalizou a existência da
segregação institucional no interior da instituição baiana e de outras ligadas a
ela. Tal constatação só foi possível porque se somou a análise quantitativa o
trabalho qualitativo dos textos desses anúncios; procedimento
importantíssimo para os Estudos de Gênero, pois os dados quantitativos
apontam à existência do fenômeno e o demarcam no espaço e tempo,
permitindo uma leitura horizontal, mas apenas “arranham” os aspectos
culturais, sociais que o explicam e que só é possível por meio de uma leitura
vertical, qualitativa (DEMO, 2001). É a partir da característica desses dois
tipos de pesquisa, horizontalidade e verticalidade, que Poncela (1998, p. 168)
alerta para a importância de “complementar informação e dados que venham
de abordagens quantitativas com os qualitativos” uma vez que esses últimos
“dão voz, sentido e conteúdo as opiniões e as cifras”.
As observações que Poncela (1998) faz especificamente às
_____________________________________________________________
64
Sobre os conceitos de segregação territorial, hierarquica e institucional recomenda-se a leitura de
Schiebinger(2001) e Sedeño (2001).
158
pesquisas acerca da participação política das mulheres, concretizaram-se na
minha pesquisa na medida em que a leitura dos textos dos anúncios
possibilitou a percepção de certos padrões no atendimento
médico-odontologico que permanecem ou desaparecem ao longo do período
em questão, que somente a abordagem quantitativa (número de anúncios
feminino e masculino) não permitiria verificar. Ou seja, na serie de anúncios
algumas limitações na atuação profissional das mulheres, possivelmente
perpassadas pelas representações e práticas de gênero vigentes no contexto
em foco, quando não intuídas, podem ser visualizadas de forma nítida e isso
só foi possível por meio da leitura qualitativa dos mesmos.
A primeira limitação ocorre quanto a provável clientela e a
maneira como o atendimento de determinadas moléstias era divulgado. Os
textos da propaganda das médicas e odontológas, nos dois períodos que
compõem a serie, indicam uma clientela bem especifica - mulheres e
crianças. Houve apenas duas exceções, na década de 1930 e 1940: Cleonice
Alakija e Carmem Mesquita, ambas formadas pela instituição baiana. A
primeira especialista na área de otorriologia, como se verifica no seu anúncio:
Médica. Assistente da FAMED. Esp.: doença do nariz, gargata e ouvidos,
diatermacoagulação nos tumores da face e cavidades anexas.
Consultório: Rua Chile, Prédio Catharino, 1º. Andar; salas 24 e 26;
segundas, quartas e sextas, das 9:00 às 12:00; terças, quintas e sábados,
das 14:00 às 16:00. Residência: Siqueira Campos, 16; tel. 1693. (A
TARDE, 17/08/1933)
A segunda afirma ser especialista em doenças internas:
“Assistente da Clinica Médica da FAMED. Esp.: doenças internas. Consultas:
Prédio Catharino, sala 22, 1º. Andar; tel. 6424; das 16:00 às 18:00.
Residência: Lacerda do Tororó, 63.” (A TARDE, 02/06/1942). As outras
profissionais que atendem nesse período, inclusive na década de 1920,
dedicam-se a doenças de senhoras e crianças, a exemplo de Nair do Passo
Cunha, que durante os meses de abril, maio e junho publicou o seguinte
anuncio: “Médica. Esp.: moléstias das senhoras. Consultas diariamente das
15:00 às 17:00. Consultório: Ed. A Tarde, 3º. Andar, sala 318. Residência:
Campo Grande, 17” (A TARDE, 1939).
Deve-se destacar que a concentração em uma única área da
medicina não ocorre nas propagandas masculinas: os médicos atendem a
todas as especialidades, desde clinica geral até oftalmologia, passando por
doenças venéreas. Aqui é patente que o gênero demarcou a atuação
profissional, as mulheres, em sua maioria, foram direcionada para
especialidades definidas como adequadas a elas ou não contraditórias às
suas funções de mães e esposas. A isso podemos classificar como
_____________________________________________________________
65
Membro da Federação Baina pelo Progresso Feminino.
159
segregação territorial.
As odontológas realizavam qualquer serviço da sua
especialidade como anuncia durante o primeiro semestre de 1879 a dentista
Leonor H. A. dos Santos no Jornal O Monitor, não havendo, portanto uma
diferenciação do tipo de serviços atendidos pelos dentistas, apesar da
clientela a quem se dirigia ser feminina. Em relação a esse aspecto do
atendimento odontológico, cabe destacar que no segundo momento da série,
de 1920 e 1940, só encontrei o anuncio de uma única dentista: Adelaide C.
Amorim, que também era médica de crianças: “Cirurgiã dentista e clinica de
crianças. Consultório: avenida sete, 34; 1º. Andar, sala 1 (Ed. Almeida);
Consultas: diárias das 09:00 às 12:00 e das 14:00 às 18:00.” (A TARDE,
25/10/1948).
Além da clientela especifica, Adelaide C. Amorim teve em comum
com a médica Anna Marques de Freitas, a dupla formação: essa última além
de medica era farmacêutica. Encontrei anúncios de Anna Marques de Freitas
no Jornal A Tarde referentes aos anos de 1924, 1925 e 1928 com o mesmo
texto e em uma sessão de anúncios especifica: parteiras, a exemplo do
ocorreu com Noelia Burgos e Zaphira Ferreira, no mesmo período. Também
na década de 1920, os atendimentos eram dirigidos para as mulheres.
Uma outra característica dos anúncios das médicas foi o fato de
não mencionarem as moléstias, principalmente as venéreas. Enquanto os
homens colocavam que tratavam sífilis, gonorréias, e outras doenças do
gênero, elas não o fazem apesar do termo “moléstia de senhoras” congregar
um amplo leque. Isso não significa que não o fizessem, mas o não
declarar talvez tenha sido uma tática tanto para atrair clientes, pois
possivelmente uma “mulher de família” não iria a um consultório que
publicamente afirmava tratar dessas doenças, pois isso poderia suscitar
questionamentos acerca dos seus comportamentos; uma outra possibilidade
era o cuidado com a própria imagem, em não fornecer elementos para a
associação entre a profissão e a falta de conduta moral adequada.
O zelo com a imagem bem como as conseqüências desta para a
sua vida profissional e pessoal estavam presentes e eram cobradas como se
verifica nos discursos, tanto contrários como favoráveis, acerca da inserção
de mulheres nas profissões médicas ao longo do século XIX e primeiras
décadas do XX. Deve-se, no entanto, destacar que esse zelo ou mesmo
punição, a exemplo do ostracismo para aquelas que ousaram discutir
abertamente assuntos “impróprios para os ouvidos femininos” ou que podiam
romper a lógica imposta para as relações, fossem estes médicos ou não, no
entanto, não é sinônimo de não atuação feminina na cura de doenças ligadas
geralmente a uma “sexualidade desvirtuada”, mas das diversas formas e
estratégias que deviam ser empreendidas para lidar com as imposições,
regras, morais e sociais, feitas às denominadas “moças de família”, cuja
categoria as médicas baianas, bem como as odontológas e farmacêuticas,
160
estavam incluídas.
Assim, não só os médicos se debruçavam nos estudos e
discussões sobre as formas de combate e prevenção a estas moléstias, as
médicas também. É o que se verifica ao analisar casos que pontuaram a
atuação profissional de Francisca Praguer Fróes. Tanto no seu consultório
como na Maternidade do Santa Isabel, essa médica baiana não atendia
somente parturientes em gestação normal ou com complicações, a exemplo
de Maria da Conceição ou da senhora “S”, mas também mulheres com outras
doenças como sífilis. Este é o caso, por exemplo, da senhora “x” que ela
atendeu em seu consultório e no relato em que fez do caso tem o cuidado em
não revelar o nome da paciente.
Pode-se concluir, portanto, que a atuação profissional em uma
área especifica estava correlacionada com as representações e práticas de
gênero da sociedade baiana do período. Enquanto os médicos não
precisavam restringir a sua clientela, podendo atender homens e mulheres,
as medicas se restringiam ao atendimento de mulheres e crianças, tendo o
cuidado de, nas entrelinhas dos seus anúncios, evidenciar que terminados
enfermos e enfermidades não seriam atendidos, uma vez que nos parece
existir o veto ao atendimento, por exemplo, a homens, principalmente os
doentes venéreos, e a mulheres cuja conduta duvidosa fosse conhecida
publicamente. E quando o faziam, a exemplo de Francisca Praguer Froes, era
de forma discreta, sem fazer criticas ao que estava posto, e explicitando que
tinham em mente a preservação da família ameaçada por doenças como a
sífilis, o que não entrava em choque com a moral existente – aliás, esta foi
utilizada para reforçar a discussão de determinados assuntos como se
verifica nas produções cientificas de algumas médicas. Se assim não fosse,
fica a indagação porque delimitar o seu atendimento a mulheres e crianças ou
ressaltar a importância de sua ação profissional para a manutenção da ordem
familiar?
Uma outra limitação que se relaciona com o zelo da imagem se
faz presente ao se verificar os locais e o período de atendimento. Nos
anúncios masculinos a rotina profissional dos médicos se desenha: o
atendimento na própria residência mesmo quando se tem um consultório em
outro local é comum. Alias alguns deixam evidentemente que podem ser
procurados a qualquer momento nas suas casas, inclusive à noite mesmo
para os casos em que deveriam se deslocar até a residência do (a) paciente.
No anúncio de Glafira Araújo Ramos, o único feminino
encontrado nos periódicos diários pesquisados para o século XIX, percebe-
se que o consultório dessa médica funcionava no mesmo prédio que a sua
residência; e ainda assim ela limitava-se os seus atendimentos das 8:00 às
10:00, possivelmente o exercício profissional era estabelecido de
acordo com os seus afazeres domésticos : “Médica. Dra. Glafira de Araújo dá
consulta em todos os dias úteis das 8 às 10 horas da manhã. Especialidades –
161
partos e moléstias de senhoras. Residência – praça de 15 de novembro
(antigo Terreiro). Consultório – no pavimento térreo. Grátis aos pobres”
(DIARIO DE..., 21/6/1893).
Os indícios de que as primeiras médicas baianas ao
estabelecerem consultórios o faziam no mesmo espaço da residência ou em
local relativamente próximo a esta, se fortalece quando verificamos em um
periódico anual o anúncio que Francisca Praguer faz do seu consultório. Ele
localizava-se no Campo Grande e a residência de seus pais, com quem
morava antes do casamento, situava-se a poucos quarteirões do mesmo –
corredor da Vitória. Após o casamento ela passa a clinicar no consultório do
esposo, que se localizava no Sodré. Um outro caso de médica que não tem
consultório no mesmo local da residência foi da doutora Amélia Perouse que
clinica junto com o seu esposo – o dr. Perouse. (REIS, 1899, 1900).
O mesmo parece se aplicar as odontológas, uma vez que o
anuncio de Balbina indica que o seu gabinete seria no mesmo local da
residência enquanto o de Leonor dos Santos deixa nas entrelinhas ao afirmar
que está localizado na antiga casa do Dr. Renault. Ela, ao contrário de
Balbina, não contava com a proteção do lar ao exercer a sua atividade em um
gabinete e não na casa-gabinete. A proteção do lar não se fazia presente na
atuação de Leonor por esta acontecer em um espaço desvinculado da casa,
mas ela contava com a presença do irmão ou pai, médico que atendia no
mesmo consultório.
Essa foi uma característica que foi deixando de existir ao longo
das décadas de 1920 e 1940. Nos anos vinte, encontrei anúncios de médicas,
especialistas em partos, que atendem na própria casa: Ana Marques de
Freitas (A TARDE..., 1924-1928), Zaphira Ferreira (A TARDE..., 1924/25) e
Queiroz Amado (1925/1928). Nas décadas posteriores a 1920, os
atendimentos não são mais feitos em casa. A partir desse
momento aparecem duas situações nos anúncios: consultórios perto da
residência, a exemplo da médica Alzira, ou em prédios comerciais.
MEDICA.
Esp.: tratamento clinico de doenças da mulher, perturbações da
publicidade (sic.) e do climatório (menopausa); exames pré-nupcial.
Consultório: Ed. Sulacap, 4º. Andar, salas 413-414; tel. 1411; diariamente
das 14:00 às 18:00. (A TARDE, 1946).
No entanto, as que clinicavam com outros médicos o faziam em
companhia dos esposos, esse foi o caso da médica Ophelia Gaudenzi que
atendem em parceria com o marido: o doutor Trípoli Gaudenzi
Raphael de Menezes Silva. Trípoli G. Gaudenzi. Ophelia B. Gaudenzi.
Catedrático da FAMED; Assistente da FAMED;
Gabinete Eletroterapia – Cirurgia Geral.
Esp.: vias urinarias e doenças das senhoras.
162
Consultório: Ed. Bahia, rua Padre Vieira, 11 (Ajuda), salas 75 a 79; das
14:00 às 18:00, tel. 3256 (A TARDE, 07/06/1939).
Uma outra característica dos anúncios femininos do século XIX
que não se mantém, com a exceção de um único caso, para o lapso de tempo
de 1920 a 1940 foi o atendimento gratuito aos pobres. A localização dos
gabinetes ou casas-gabinetes das médicas dos oitocentos nos revela a
possível situação econômica e financeira delas ou de suas famílias. A rua do
Palácio, local onde encontramos a maioria dos estabelecimentos de saúde do
centro da cidade, no período em questão, era classificada de classe média
alta, portanto, manter um consultório ali significava ter condições para tanto
ou possuir uma família que pudesse fazer isso.
E poucos não foram os profissionais de saúde (médicos e
odontologos) que ao não terem inicialmente condições de montarem
consultório na rua do palácio, o fazem em ruas menos valorizadas e quando já
estão estabelecidos no mercado e, consequentemente, com condições de
possuírem gabinete na rua do Palácio o fazem. Assim, as pessoas, com
posses, que precisassem de serviços odontológicos e médicos teriam na rua
do Palácio e adjacências uma variedade de profissionais prontos
para atende-las. Não indicativo, porém, de que alguns dos que não
possuíssem posses ficassem sem atendimento. Não são raros os anúncios
de profissionais que expressam que os valores cobrados por seus serviços
são "módicos", quando não afirmam que para os considerados "pobres" os
serviços são grátis.
A prática de anunciar o atendimento gratuito os pobres era uma
forma de tornar conhecido, conseqüentemente, sedimentando uma futura
carreira para os homens, mas para as profissionais poderia trazer uma outra
questão além da formação da clientela: driblar as resistências ao exercício
profissional por mulheres. Tanto para a medicina como para a odontologia, tal
raciocínio não parece de todo ilógico uma vez que nem todos os médicos ou
odontológos anunciavam a gratuidade apesar de pratica-la e os que
anunciavam o faziam somente no inicio da carreira.
Anunciar a pratica de gratuidade além de ter sido feito por aqueles
(as) que precisavam se tornar conhecidos ou romper barreiras de preconceito
para formar uma clientela, era feita, possivelmente, também por aqueles (as)
que não possuíam um diferencial em relação a outros profissionais do
mercado. Há anúncios que mencionam a instituição de formação, a
modernidade das técnicas e aparelhos usados nos tratamentos, a tradição
familiar no ramo (status familiar), os clientes etc.
E dentre estas varias maneiras de se estabelecer
profissionalmente, pode-se fazer uma leitura de gênero intercruzada com o
status familiar como um dos caminhos para se explicar as varias formas com
que as profissionais de saúde (médicas, odontológas e farmacêuticas)
forçaram a sua inserção no mercado de trabalho ou espaços de discussão
163
profissional. Uma vez que fazer uma analise de gênero do processo de
feminização dos cursos e profissões como medicina, farmácia e odontologia
na Bahia, entre o final dos oitocentos e décadas iniciais dos novecentos, não
é apenas sinalizar as suas presenças, mas procurar explicitar as diversas
experiências.
A análise de gênero não pode, portanto, se furtar a verificar
espaços, lugares e as relações culturais, econômicas, sociais, familiares em
que estas mulheres estavam inseridas e que permearam e podem ter
determinado as suas trajetórias, táticas e estratégias profissionais
(CARSON, 1995, p.198-9). O status familiar, por meio do apadrinhamento ou
parentesco, parece que foi um fator utilizado na conquista de clientes e
inserção no mercado de trabalho, é o que o se evidencia quando o doutor F.
Deserbelles, no inicio da sua carreira, anuncia que é genro e sucessor de um
conceituado dentista, o doutor Renaldy que dentre os seus clientes tinha a
Casa Imperial. .Ao que tudo indica não tendo uma tradição familiar na arte F.
Deserbelles recorreu ao parentesco afim para se diferenciar e se estabelecer
profissionalmente, quando obteve êxito não precisou mais faze-lo e nem
atender durante os domingos e dias santificados como fazia no ano de 1877.
Continuei a encontrar os anúncios do genro do dentista da Casa
Imperial durante todo o ano de 1879, no jornal O Monitor, juntamente com os
anúncios de Leonor H. dos Santos que além de salientar que já possuía uma
clientela formada também menciona o dr. Renauldy pois passa a atender na
casa gabinete desse. Ao informar que a sua casa-gabinete era localizada na
antiga residência do dr. Renauldy, estaria, talvez, Leonor querendo reforçar a
qualidade de seus serviços pois mencionar o ilustre dentista sugere a
constituição de laços, mesmo comerciais ou sociais, indicando que fazia
parte dos dentistas do circulo do afamado odontológo, pois atendia na sua
antiga casa e mencionava o seu nome em seus anúncios; caracterizando
uma espécie de apadrinhamento profissional.
Esta não foi à única tática de Leonor ao anunciar os seus
serviços, apesar de ser a que se mantém na sua propaganda tanto no
Monitor como na Chrysalida. Ao divulgar os seus serviços no Jornal O
Monitor, a dentista salienta que possui uma clientela selecionada, atendendo
em colégios e conventos femininos; a gratuidade aparece quando passa a
dividir o espaço do seu consultório com H. Álvares dos Santos,
médico e que ao parece necessitava torna-se conhecido e formar uma
clientela. O dr. H. era provavelmente irmão de Leonor se levarmos em
consideração o sobrenome e que não seria bem visto atuar
profissionalmente, longe dos “olhos” da comunidade, em um espaço onde
teria contato com um homem que não fosse seu parente: marido, irmão ou
pai.
No entanto, posso afirmar que múltiplas foram as estratégias de
Leonor; porém, ao valer-se do mesmo recurso que o genro do doutor
164
Renauldy nos indica que o parentesco e apadrinhamento tão conhecido na
sociedade baiana, em relação à ocupação de cargos e posições, também se
fizeram presente na disputa de mercado e no acesso a terminados espaços
profissionais e que algumas mulheres não ignoraram tal característica e a
souberam utilizar a seu favor. É o que sugere a leitura das paginas iniciais da
tese de doutoramento de Glafira Araújo, que faz uma verdadeira genealogia
familiar citado os pais, os (as) irmãos (irmãs), cunhados (as), a madrinha.
Ela explicita a sua rede familiar e social, componentes intrínsecos
ao capital social (BOURDIEU,1998, p. 68-9) de que dispõem os indivíduos
para construir redes de ligações que possibilite o trânsito e atuação em
espaços “proibidos”, neste caso especifico a profissão médica. Assim,
Glafira, a exemplo de Leonor dos Santos, provavelmente percebia o capital
social de que dispunham como uma tática para romper ou contornar
possíveis entraves ao livre exercício de sua profissão. Dessa inferência, outra
se coloca: a consciência de que para ter sucesso com a tática era necessário
evidenciar as possíveis posições estratégicas vivenciadas, expressas pelo
emprego dos títulos, por alguns desses parentes ou conhecidos
mencionados. Ou seja, quanto maior e poderosa fosse a sua rede de
sociabilidade, mais fácil, talvez, fosse a sua inserção no mercado de trabalho
médico.
Ainda sobre a sua trajetória profissional de Glafira indícios são
fornecidos por Pelayo Serrano (1898) em Ainda um assunto feminino
quando ao continuar a discorrer sobre o acesso feminino ao ensino superior e
as profissões liberais no Brasil menciona que a médica baiana tinha prestado
exame em concurso para professor substituto: “Se não me falha a rebelde
memória, li, há tempos, 1894 (?), que se doutorára, na Bahia, dona Graphisa
de .... (*) a qual depois concorreu a uma vaga de lente substituto da mesma
Escola da Medicina.” (SERRANO, 1898, p. 131).
Não encontrei informações sobre os resultados desse concurso.
Faze-lo teria sido mais uma tática de Glafira para se tornar uma médica
conceituada, uma vez que o fato de ser docente da instituição baiana dava
prestigio? Fica a pergunta a ser respondida. Fato é que essa médica não se
utilizou de uma única tática para se estabilizar no mercado de serviços
médicos, além do seu capital social ela utilizou as possibilidades de uma
propaganda “boca a boca”. Ou seja, Glafira Corina de Araújo anunciou a
gratuidade para os pobres, como uma maneira de tornar-se conhecida e
superar as barreiras para a sua atuação profissional.
Esta parece ter sido uma estratégia empreendida por algumas
médicas até mesmo na primeira metade do século XX. No entanto, estas
táticas não se mantêm para o período de 1920-1949. Quando não possuem
distintivos em relação aos outros profissionais que atuam na mesma
especialidade, apresentam o texto padrão - especialidade, locais onde
podem ser encontradas, horários de atendimento.
165
Deve-se destacar que outras ações substituem o atendimento
aos pobres como estratégia. Algumas médicas tinham “um diferencial” e o
utilizaram à mesma maneira que os seus colegas, que tinham o mesmo
status, faziam: o fato de ensinar na Faculdade de Medicina da Bahia. Esse foi
o caso das médicas Cleonice Alakija e Carmem Mesquita, que eram
assistentes. A primeira noticia da atuação de uma mulher como professora na
instituição baiana data de 10 de junho de 1931 quando o Jornal Diário de
Noticias publicou, sob a chamada “É mais uma victoria da intelligencia
feminina, no Brazil – o concurso de jovem professora em nossa Faculdade de
Medicina”, a noticia de que Lily Lages tinha passando no
concurso para docente da cadeira de “Oto-thino-largologia” com brilhantismo.
(DIARIO DE..., 10/6/1936).
A partir de Maria José Salgado Lages (Lily Lages), as mulheres
passaram também a ensinar na instituição baiana. No entanto, as
encontramos como assistentes e não como catedráticas, o que reforça mais
ainda a interpretação de que o mundo da biomedicina na Bahia também se
estruturou a partir da segregação hierárquica, além da segregação territorial.
Porém, ser professora assistente agregou valor ao exercício profissional das
médicas mencionadas, pois indicava para os (as) leitoras, possíveis clientes,
que elas eram qualificadas.
Houve, portanto, no decorrer do período pesquisado
transformações nas formas como esses (as) profissionais procuravam
conquistar clientes, driblar a concorrência e se sedimentar no mercado de
trabalho. Devo ressaltar que, no entanto, apesar do “atendimento gratuito aos
pobres” não ser uma tática empregada nas décadas de 1920 a 1940 pelos
médicos, encontramos três situações pontuais, mas significativas, de
atendimento gratuito praticado por mulheres. A primeira situação é o da
médica Alzira de Oliveira Chaves, que além de atender a qualquer hora o
chamado das pacientes, atende gratuitamente, as terças e quintas:
Médica, parteira. Clinica Geral.
Consultório: Barão de Cotegipe, 139;
Consultas: das 14:00 às 17:00.
Grátis aos pobres às terças e quintas, das 8:00 às 10:00.
Atende a chamados a qualquer hora do dia ou da noite.
Residência: Barão de Cotegipe, 161. (A TARDE, 1940).
Alzira publicou o mesmo texto de propaganda até março de 1941,
quando não aparece mais nos anúncios desses tipos de serviço. A sua
propaganda foi a única que encontrei nesse período com promessa de
atendimento gratuito aos pobres. Teria sido essa uma “blindagem” contra as
resistências ao seu exercício profissional? Ela poderia estar dizendo, a
comunidade da qual era parte, que apesar de está em uma
profissão masculina e tendo, muitas vezes, que sair a noite para atender as
suas pacientes, ela não havia se “desviado do esperado” para as mulheres
166
daquele período e o exemplo disso era que praticava a caridade; ou seja,
mostrava que por meio da sua profissão “não só cuidaria de seus filhos em
casa, mas de toda a humanidade, de todos aqueles precisados.” (LEITE,
1997, p. 118). Divulgar a prática da caridade, nesse sentido, tornava-se,
portanto, mais uma “blindagem”.
E é comparando, guardadas as devidas proporções, os anúncios
que um indicio surge e acrescenta mais uma especificidade ao atendimento
médico realizado por mulheres: a pratica da solidariedade e caridade, que
sinaliza para a interferência da moral de gênero nas atividades profissionais
dessas mulheres. A benemerência era uma característica vinculada ao
estereotipo feminino vigente no período, pois significava que a sua praticante
era detentora de altruísmo, piedade, amor ao próximo, abnegação (LEITE,
1997, p. 110- 137); e, o seu exercício não se fazia somente por meio das
doações de bens materiais, mas também pelo empréstimo dos seus saberes
especializados aos necessitados.
E nas entrelinhas das fontes pesquisadas se percebe a
presença de valores tradicionalmente atribuídos ao feminino, a exemplos dos
ligados a benemerência, ou ainda à utilização da “proteção masculina” sendo
acionados de maneira a resguardá-las de possíveis represálias. Enfim,
considerando fatores como conquista de clientela e/ou caridade por parte dos
profissionais de saúde que ofereciam serviços gratuitos para os pobres
mencionei apenas duas alternativas, para aqueles que aparentemente não
poderiam pagar pelos serviços oferecidos pelos (as) dentistas ou médicos
(as), estampados nos anúncios que analisei. No entanto, há uma terceira
possibilidade: o combate à busca dos serviços daqueles que exerciam os
ofícios de odontológos, médicos e farmacêuticos de forma leiga.
Talvez alem da possibilidade de ganhar nome por meio da
propaganda boca a boca que, os denominados pobres, poderiam
fazer dos seus serviços ou mesmo da prática da caridade, odontológos (as) e
médicos (as) ao oferecem serviços gratuitos estariam também procurando
ganhar a confiança de uma parcela da população baiana que os viam ainda
com um certo receio e que, muitas vezes, preferiam às práticas leigas e
processos de cura informais. A busca dos serviços de leigos comum no século
XIX, permanece na primeira metade do século XX, tanto na capital como em
cidades do interior.
Isto se torna perceptível ao se analisar os ofícios expedidos e
recebidos pelo diretor de saúde pública para o licenciamento de farmácias,
clínicas odontológicas e médicas, entre os anos de 1916 e 1924, onde
aparecem correspondências de denúncias da pratica leiga de medicina feita
por farmacêuticos e cirurgiões dentistas; assim como, denuncias de
comerciantes e médicos que vendiam ou produziam remédios sem serem
farmacêuticos.
A consulta a esses ofícios, que perfazem um total de 49 (quarenta
167
e nove), foi valiosa para o meu estudo não devido à disposta entre médicos,
farmacêuticos, dentistas e, também, “curiosos” pelo mercado, mas devido ao
fato que dentre eles existem pedidos de licença de funcionamento de
farmácias no interior da Bahia cujos responsáveis são mulheres, algumas
formadas pela Faculdade de Medicina da Bahia; e, que associadas a outras
fontes de informação nos revelam o transito realizado por algumas dessas
mulheres (médicas, farmacêuticas e odontológas) entre espaços territoriais
distintos e distantes para a formação e o exercício profissional.
A titulo de ilustração cito o oficio que o Diretor de Saúde Pública
enviou, em 17 de setembro de 1917, a Carlos Macedo Guimarães, delegado
de higiene de Itaberaba, solicitando que esse realizasse a vistoria em uma
farmácia no Orobó (Mundo Novo), de propriedade de dona Elvira
Albuquerque Mello, com o fim de autorizar o funcionamento sob a
direção da farmacêutica Georgina Della Cella Camara.
Ilmo. Sñr. Dr. Delegado de Hygiene de Itaberaba, Carlos Macedo
Guimarães.
Tendo a pharmaceutica D. Georgina Della Cella Câmara [grifo meu]
requerido a esta Directoria para gerir profissionalmente uma pharmacia
no Orobó da propriedade de D. Elvira de Albuquerque Mello... (OFICIOS
EXPEDIDOS..., 1916/1924).
Georgina formou-se no ano de 1908 na Faculdade de Medicina
da Bahia. Se compararmos o sobrenome que consta no Livro de Registro de
Diplomas e no de Índice de Graduados, com o registrado no oficio do Diretor
de Saúde Pública, notaremos o acréscimo do sobrenome “Câmara”. O que
sinaliza que essa farmacêutica contraiu núpcias após a formatura, indo viver
no interior da Bahia.
Ampliando as reflexões sobre a presença de Georgina na cidade
de Mundo Novo, acredito que ela tenha, a partir da sua atuação profissional,
estimulado algumas moças do Orobó a ingressarem na Faculdade de
Medicina da Bahia e especificamente no curso de Farmácia. É o que suscita a
formatura das farmacêuticas Maria Thereza Figueiras Victoria e Maria Cide
Gomes Bastos, respectivamente em 1948 e 1949 – ambas da cidade de
Mundo Novo.
Se Maria Thereza e Maria Cide retornaram ao Piemonte da
Chapada Diamantina não foi possível verificar. Mas, os ofícios expedidos pela
Diretoria de Saúde Pública trazem mais dois exemplos o de Emilia dos Reis
Meirelles e o de Maria Etelvina de Araújo Figueiredo Pinheiro de Almeida. A
primeira formou-se em 1907 e em 12 de abril de 1917 solicitou ao órgão
competente autorização para o funcionamento de uma farmácia na cidade de
Aratuípe:
_____________________________________________________________
66
Pessoas que não tinham a habilitação técnica, mas realizavam práticas de curas
168
Ilmo. Sñr. Dr. Delegado de Hygiene da Cidade de Nazareth.
Tendo a pharmaceutica Emilia dos Reis Meirelles [grifo meu] solicitado
desta Directoria licença para uma pharmacia na cidade de Aratuhype, e
não havendo actualmente preposto sanitário nessa cidade, peço
procederes o exame da referida pharmacia... (OFICIOS EXPEDIDOS,
1916/1924).
Parece que Emilia teve a sua experiência como exemplo para as
mulheres da família Meirelles, pois em 1946, 1947 e 1948 encontrei a
formatura, em farmácia, respectivamente de Zildete de Magalhães Meirelles
(filha de Victor Meirelles), Ady Meirelles (filha de Arnobio Meirelles) e Zélia
Dulce Meirelles Vieira (filha de Edith Meirelles Vieira). Provavelmente essas
moças, que durante o período de curso fizeram companhia uma as outras,
eram primas e sobrinhas de Emilia. Antes de trazer a cena o caso de Maria
Etelvina, saliento que aparentemente Emília e Georgina não foram às únicas
que, ao exercerem as suas profissões, estimularam gerações posteriores, de
parentes e conhecidas, a buscarem um curso superior.
Um outro exemplo da constituição dessas “redes de influência”
apareceu quando cruzei o nome de Edméia Novaes Nonato que, segundo
anotações feitas nas margens da folha do livro que contém o registro do seu
diploma, após a formatura foi para a cidade de São Felix, com o de Celeste
Aida de Almeida Alves e Helena Lordelo Ferreira oriundas da referida cidade
do Recôncavo Baiano e que se formaram respectivamente em 1949 no curso
de farmácia. O fio que liga essas mulheres a de Maria Etelvina foi constituído
não só da área de formação, mas da movimentação que essas faziam para se
formarem e atuarem profissionalmente. Voltemos ao caso dessa
farmacêutica. Em 12 de abril de 1917, o Diretor de Saúde Publica solicita ao
delegado de Higiene de Itaparica que faça a vistoria da farmácia “Ivantéle”:
Ilmo. Sñr. Dr. Delegado de Hygiene da Cidade de Itaparica.
Tendo o sñr. Guimarães Cova & Baraúna solicitado licença para a sua
pharmacia “Ivantéle” nessa cidade sob a responsabilidade da
pharmaceutica D. Maria Etelvina de Araújo Figueiredo Pinheiro de
Almeida [grifo meu], peço a execução das disposições do art. 23...
(OFICIOS EXPEDIDOS..., 1916/1924).
Não encontrei o registro de Maria Etelvina nos documentos
consultados no acervo da Faculdade de Medicina da Bahia, portanto essa
farmacêutica formou-se em outra instituição que não a baiana. O
que reforça a indicação de que o transito de mulheres não ocorreu somente
no sentido de buscar uma formação, mas também em relação aos espaços
para o exercício profissional. Um outro caso que aventa essa possibilidade foi
o de Alzira Normélia Fernandes da Costa, egressa do curso de odontologia da
Faculdade de Medicina da Bahia, no ano de 1910, e que após a formatura
mudou-se para o Amazonas conforme consta na observação feita no livro de
registro do seu diploma. Os destinos das damas formadas pela Faculdade de
169
Medicina da Bahia, nos seus cursos superiores, foram múltiplos, bem como
os motivos que os geraram e foi impossível registra-los não só por que
envolvem as subjetividades dessas mulheres, mas também porque
encontramos pouquíssimos vestígios dessas experiências.
No entanto, a partir do cruzamento das informações referentes à
localidade de origem constante nos registros de diplomas com anúncios de
serviços oferecidos para a interlândia soteropolitana e os ofícios de pedidos
de licença para funcionamento de estabelecimentos ligados à área de saúde,
foi possível verificar que aproximadamente 38% (trinta e oito por cento) das
baianas formadas Medicina na cidade do Salvador ingressaram formalmente
no mercado de trabalho local divulgando a sua atividade profissional, pois das
49 somente foi possível encontrar vestígios de apenas 19 que divulgam a sua
atividade profissional em consultório ou estabelecimento próprio ou
aparecem como responsável pelo funcionamento desses ou atuando em
parceria com outros profissionais.
Merece destaque o fato de que o maior número de baianas
formadas pela Faculdade de Medicina da Bahia encontra-se no curso de
farmácia (127) e odontologia (103). A inexistência de anúncios de
farmacêuticas explica-se pelo fato dessas atuarem em
estabelecimentos que nem sempre mencionavam o nome dos profissionais
responsáveis pela sua direção. Essa explicação, no entanto, não é suficiente
para explicar a ausência de anúncios das odontológas; fica a interrogação:
elas atuavam, mas não divulgavam os seus serviços ou, simplesmente, não
exerceram a profissão?
Prováveis respostas para tal questionamento foram sinalizadas
por Besse (1999) quando essa afirma que ao se casarem as mulheres
deixavam de trabalhar, voltando a este somente em caso de ser necessário
complementar a renda familiar. Assim, é possível que algumas dentistas,
médicas e farmacêuticas ao se casarem tenham se voltado à dedicação
integral da família. Artigos publicados em periódicos baianos, nos anos finais
da década de 1930, defendem que a mulher casada deve-se se dedicar a
família (marido e filhos) permanecendo no lar e deixando espaços no
mercado de trabalho para homens, a quem cabia em primeira instância ser o
responsável prover o lar. Um exemplo do conteúdo desses artigos, foi o
publicado no Diário de Noticias, em 25 de novembro de 1938.
Na seção dedicada a expressar a opinião dos leitores, um senhor
por nome Euvaldo Caldas, apresentou a sua opinião, contraria a de outros
_____________________________________________________________
67
Quando digo formalmente, estou querendo dizer que elas respondiam publicamente por consultórios ou
estabelecimentos. Dessa maneira, não foi possível contabilizar aquelas que atuavam em parceria com
outros profissionais e não assumia publicamente a responsabilidade pelos espaços onde exerciam a
profissão.
68
Nesse calculo não foi considerado as profissionais que atuavam em Salvador, mas que não foram
alunas da instituição baiana.
170
colaboradores do periódico, acerca do trabalho da mulher casada em um
texto que intitulou de “collaboradora”. Ele faz uma rápida discussão sobre a
necessidade que motivou as mulheres a assumirem atividades no mundo do
trabalho por causa da guerra, mas com a volta dos homens isso não era mais
necessário. Ressalta que reconhece a existência de atividades que podem
ser desempenhadas por mãos femininas a exemplo da datilografia, o
magistério (infantil e normal), a enfermagem, pois essas “não deturpam” e
são condizentes “com a sua própria formação moral e espiritual, como filha,
irmã, noiva, esposa e mãe” (CALDAS, 1938). E ele continua afirmando que
sabe da existência de mulheres que “pela sua absoluta necessidade
econômica, precisam de trabalho honesto”, no entanto depois de casadas
não devia mais trabalhar.
Essa idéia fazia parte do imaginário acerca de que as funções de
mães e esposas eram a primordiais na vida das mulheres, e que todas as
suas outras atividades deviam articular-se com essas. Isaura Leitão, na
entrevista que deu ao Jornal A Tarde, afirma que a sua profissão não será
empecilho para os cuidados e deveres que ela, enquanto mulher – mãe e
esposa – deve ter com a família. Assim,
Entretanto, a minha these versa sobre a transfusão sanguínea e se
continuar a residir na capital, me dedicarei à clinica médica. Exercendo a
minha profissão, como pretende-lo fazel-o (sic), com amor e dedicação,
não me deixarei absorver completamente por ella; isto é, os desvelos pela
família, o lar, continuarão a ter guarida no meu coração. Não há
incompatibilidade entre uma e outra cousa, é aminha convencida opinião.
(A MULHER NA..., 06/01/1917)
Um outro exemplo de que os deveres familiares vinham em primeiro
lugar é o da odontologa Carmem Germano da Costa, que ao contrair
matrimonio foi deixando aos poucos de exercer atividade para poder cuidar
da família. Maria Amélia Almeida (1986) ao apresentar o perfil de algumas
mulheres que constituíram a Federação Baiana pelo Progresso Feminino,
cita a atuação profissional de Carmem.
Não encontrou problemas por ser mulher, a despeito de não serem bem
vistas as mulheres que trabalhavam, principalmente solteiras, como no
seu caso. O casamento não significou um corte em sua vida profissional,
fato excepcional para a época. [...]. Com o nascimento de seus dois filhos,
resolveu transferir seu consultório do centro da cidade para o lado de sua
residência na Barra, o que resultou, devido à distancia, em grande perda
de clientela. Aos poucos, foi deixando de trabalhar. (ALMEIDA, 1986, p.
66).
Os dados, no entanto, de que disponho no momento não me
permitem analisar em profundidade os prováveis fatores que interferiram na
não publicização do exercício profissional dessas mulheres ou o não
exercício profissional por parte delas. Ouso, no entanto, afirmar – a partir das
171
reflexões feitas por Besse (1999) e Almeida (1986), além da fala de Euvaldo
Caldas – que qualquer que tenham sido esses fatores houve uma interseção
com as questões de gênero vigentes no período. Uma vez que não só os
espaços físicos da Faculdade de Medicina da Bahia e a sua
ocupação eram demarcados pelas representações de gênero, mas as
próprias áreas de atuação e exercício profissional iam sendo moldadas de
acordo com estas representações.
172
REFERENCIAS
173
FUTEBOL FEMININO: o hábito não altera o gênero
Daniella Silva do Nascimento
Maria do Rosário de Fátima Andrade Leitão
1 INTRODUÇÃO
Entendendo a identidade como “o processo de construção de
significados com base em um atributo cultural, ou ainda um conjunto de
atributos culturais inter-relacionados, os quais prevalecem sobre outras
fontes de significado” (CASTELLS, 2000, p. 22), é que se pretende abordar o
papel identitário estabelecido pelas atletas do Sport Club do Recife. Durante a
observação pôde ser notada que a identidade das atletas foi construída sobre
os parâmetros observados por CASTELL (2000, p.26).
[...] onde essa construção consistiu num projeto de vida diferente, talvez
com base em uma identidade oprimida, porém expandindo-se no sentido
da transformação da sociedade como prolongamento desse projeto de
identidade [...] resultando na liberação das mulheres, dos homens e das
crianças por meio da realização da identidade das mulheres.
Foi através do processo de opressão que se assemelha ao
cárcere que foi cotidianamente imposto às mulheres que se fortaleceu a luta
pela criação de sua identidade, é nesse jogo de poder, nesse campo que a
identidade é construída e fortalecida, sendo a identidade social um ato de
poder.
[...], pois se uma identidade consegue se afirmar é apenas por meio da
repressão daquilo que a ameaça. Derrida mostrou como a constituição de
uma identidade está sempre baseada no ato de excluir algo e de
estabelecer uma violenta hierarquia entre os dois pólos resultantes -
homem/mulher etc. aquilo que é peculiar ao segundo termo é assim
reduzido – em oposição à essencialidade do primeiro à função de um
acidente. (HALL apud DERRIDA, 1993, p.33).
O futebol tem na sua gênese o sentido de virilidade, idealizado
por uma sociedade conversadora e machista, que encontrou respaldo na
máxima de que “futebol é coisa pra macho”. Tratando o futebol não apenas
como um espaço esportivo e sim sociocultural, a ele é atribuído
valores e limites a quem o pratica. A partir do momento que se pensa que a
mulher é um sexo frágil, incapaz de superar os limites físicos impostos pelo
futebol, sua participação no campo futebolístico faz com que se quebrem
valores e subverta a ordem já estabelecida pela sociedade que a instituiu,
quanto mais machista e sexista for à sociedade, mais exacerbado torna-se o
preconceito.
Pode-se, portanto, afirmar que o futebol é um campo de batalha
ideológico e simbólico onde o homem sempre prevaleceu e onde se trava
uma luta para reconhecer a mulher como parte integrante dele, ou como uma
parte diferenciada, que está nele, mas que não é dele. E hoje pelo que mostra
a pesquisa muito já foi feito, mas não há nada que se pode comemorar.
175
É de fundamental importância ressaltar que as atletas buscam
um reconhecimento de sua inserção no futebol não apenas pela sociedade de
um modo geral, mas especialmente por elas mesmo, um reconhecimento
interno, que faça com que sejam reconhecias não apenas como jogadores de
futebol, como “transgressoras” dos valores que lhes foram impostos, mas
como mulher, batalhadora que busca diariamente uma oportunidade de
legitimar sua identidade.
Não é, portanto, o futebol que lhes conferem legitimidade, mas é a
luta constante, podemos ver as mulheres hoje lutando em outros campos que
antes eram de predominância masculina. A dominação masculina vem
imbuída em outros meios, como por exemplo, num ambiente onde um homem
atua a mulher realizada o mesmo trabalho muitas vezes com uma carga
horária maior, e seu salário é menor, há neste caso uma limitação de direitos
onde ainda predomina a dominação masculina sobre a feminina.
Convém destacar que a diferença existente no futebol é
evidenciada pelo meio no qual a identidade é construída, é apenas através
dela que a construção das identidades dessas atletas são consolidadas. No
caso do futebol feminino está diferença já é imposta, já foi elaborada pela
sociedade, portanto, a construção já é tida como certa. Como romper este
modelo pré-estabelecido? Como pode haver legitimidade dessa
construção, se não há aceitação e valorização de quem dela faz parte? A
pergunta é pertinente, se formos analisar que nas respostas das meninas
entrevistadas observa-se que elas não se aceitam como são, mulheres, e
sempre buscam em suas respostas de afirmação parâmetros de identidade
masculina para se afirmarem. É lógico que não podemos esquecer que suas
lutas sempre foram travadas dentro da arena do “macho”, mas não se pode
esquecer que existe uma construção social de gênero que estabelece
algumas características denominadas de feminina mesmo dentro de um
ambiente denominado de masculino.
A questão aqui não se resume a travar uma luta entre macho e
fêmea, mas debater sobre as oportunidades diferenciadas, onde as duas
partes possam competir, ganhar aquilo que lhes é de direito, e não onde
apenas uma parte o “masculino”, obtenha mais expressão e visibilidade, não
oportunizando as mulheres de obterem seu lugar submetendo-as a uma
violência simbólica, a exclusão ou marginalização.
Importante ressaltar que a participação e permanência feminina
num determinado esporte seja ele o futebol ou qualquer outro está
geralmente atrelado a uma rede de significações, pois
[...] a habilidade esportiva dificilmente se compatibilizava com a
subordinação feminina tradicional as sociedade patriarcal; de fato, o
esporte oferecia a possibilidade de tornar igualitárias as relações entre os
sexos. O esporte, ao minimizar as diferenças socialmente construídas
entre os sexos, revelava o caráter tênue das bases biológicas de tais
diferenças, portanto, constituía uma ameaça séria ao mito da fragilidade
176
feminina. (ADELMAN, 2003, p.448).
O esporte pode ser uma atividade que desmistifique este mito da
fragilidade feminina. Uma elaboração social sobre as relações de gênero
consiste na afirmativa de que a mulher é frágil, mas este argumento é apenas
um meio pelo qual pôde-se exercer um controle social sobre a mulher e
subjugá-la.
Perguntamos por que o futebol é considerado um esporte
masculino já que é um esporte de todos, onde todos podem participar e
mostrar suas habilidades.
Será que desde sua criação ele foi assim estigmatizado? Será que em algum
momento foi explicitado que era de uso exclusivo dos homens? Pese a que
historicamente sua prática fosse apenas dos homens. Mesmo assim, o
futebol engloba outras dimensões,
[...] pois diferentemente de outras instituições, o futebol tem a capacidade
de unir muitas dimensões simbólicas na sua invejável multivocalidade,
sendo a um só tempo, jogo e esporte, ritual e espetáculo, instrumento de
disciplina de massa e evento prazeroso. (DA MATTA, 2006, p.139).
O processo de construção da identidade destas atletas é
influenciada por toda a sociedade, mas afeta diretamente a elas em sua auto-
estima, ou seja aceitação e rejeição instituídas por elas ou imposta pela
sociedade.
Dentre os vários estigmas estão os relacionados à sexualidade.
Se o futebol é coisa de homem, o discurso construído socialmente sobre as
mulheres que o praticam, é que segundo o senso comum, não são mulheres e
sim homossexuais. Discurso que as afeta diretamente em sua aceitação
como sujeitos sociais, o que ficou notório é que o tema sobre a
homossexualidade gera um bloqueio na comunicação, umas apresentam
dificuldade de se aceitarem como homossexuais, umas negam, outras
simplesmente falam.
Já que durante as entrevistas percebi certo bloqueio no tocante a
sexualidade, optei em aplicar dois questionários no qual um deles não era
necessário a identificação. Argumentou-se se elas percebiam algum tipo de
preconceito, a maioria respondeu que as pessoas falavam muito sobre suas
atuações no meio masculino e que elas se masculinizavam bastante.
Assim constatamos que a orientação sexual dessas atletas é
muito questionada no meio esportivo, e é motivo de muitos comentários.
Sabe-se que o senso comum anula a existência dessas atletas como
mulheres e as enxergam como homens, menosprezando a mulher
desportista. Isto é um tipo de violência, que podemos denominar de violência
de gênero. Essa violência de gênero segundo (STREY, 2006).
[...] é o resultado da conformação de consciências estereotipadas que
_____________________________________________________________
69
Aquilo que é comum a todos. Realidade concebida a partir de uma visão geral.
177
ocorrem no processo de socialização dos seres humanos, reflexo da
nossa sociedade patriarcal, onde as relações sociais, entre homens e
mulheres, são permeadas pelas diferenças de poderes entre os sexos.
A dominação masculina faz com que a mulher se torne apenas
em objetos simbólicos, onde são colocadas em permanente estado de
insegurança corporal, ou seja, de dependência simbólica, das mulheres se
espera que sejam atenciosas, submissas ao marido e à família, frágeis e
dependentes. Quando há a prática de um determinado esporte pelas
mulheres há segundo BOURDIEU (2007, p.84).
[...] uma profunda transformação da experiência subjetiva e objetiva do
corpo: deixando de existir apenas para o outro ou, o que dá no mesmo,
para o espelho (instrumento que permite não só se ver, mas também
experimentar ver como é vista e se fazer ver como deseja ser vista), isto é,
deixando de ser apenas uma coisa feita para ser olhada, ou que é preciso
olhar visando à prepará-la para ser vista, ela se converte de corpo-para-o-
outro em corpo-para-si-mesma, de corpo passivo e agido em corpo ativo e
agente; no entanto, aos olhos dos homens, aquelas que rompendo a
relação tácita de disponibilidade, reapropriam-se de certa forma de sua
imagem corporal e, no mesmo ato, de seus corpos, são vistas como “não-
femininas” ou até como lésbicas – a afirmação de independência
intelectual, que se traduz também em manifestações corporais,
produzindo efeito em tudo semelhante.
178
Gráfico 1 – Orientação sexual
179
daí é que os sujeitos vão se construindo e se transformando como
masculino e como feminino.
Com base nesses dados e com base na observação participante
fica evidente que a sexualidade ainda é um tabu, tanto para elas que não se
afirmam concretamente quanto para os que convivem com elas, que vez por
outra nega ou tenta evitar o assunto.
Por ser algo há tanto tempo discriminado o futebol exercido pelas
mulheres passam ao longo do tempo por processos de amadurecimento,
talvez elas nem percebam isso, mas ultrapassaram os limites da
discriminação, pois quando entram em campo seus corpos e almas estão
voltados para a bola, objeto de desejo e satisfação para quem pratica o
futebol. Todas as atletas foram enfáticas ao afirmarem que praticam o futebol
por que gostam e por se sentirem realizadas, além do mais todas afirmar que
sua prática é baseada em rendimentos futuros, ou seja, almejam um
reconhecimento profissional.
As jogadoras de futebol são sempre questionadas a respeito de
sua sexualidade. A esse discurso são agregados valores a elas, como por
exemplo, que seus corpos tornam-se viris, e que elas não estão dentro de um
padrão estético e comportamental estabelecido para as mulheres pela
sociedade, padrão que aparentemente define o que é heterossexualidade. As
mulheres hoje questionam a hegemonia esportiva masculina que foi
construída historicamente e assimilada culturalmente, e enfrentam o
preconceito a elas imposto, é claro que existem outras que vão por outro
caminho, e se caracterizam pelos trejeitos masculinos, assumindo a forma
masculina de ser.
No tocante a família, ela exerce um papel fundamental para essas
atletas, particularmente suas respostas me surpreenderam, pois imaginei
que as famílias fossem as primeiras a obstruírem a participação dessas
meninas no futebol. De acordo com o gráfico 80% receberam incentivos da
família quando resolveram jogar futebol e 20% não receberam nenhum
incentivo de seus familiares, sendo um dos maiores repressores, seus pais.
180
GRÁFICO 2 – INCENTIVO DA FAMÍLIA
183
condição esporte profissional, mas é um status apenas do masculino, o
feminino vivencia a situação de esporte amador. Motivo da
diferença dos salários entre jogadores e jogadoras no Futebol brasileiro. Por
ser amador o futebol feminino é pouco valorizado.
O Sport Club do Recife investe pouco ou quase nada, segundo
uma das dirigentes do futebol feminino do Sport, as meninas são invisíveis ao
clube, quase imperceptíveis. Há uma ajuda de custo dadas às atletas que não
chega há um salário mínimo, a menor ajuda está em torno de R$ 150,00 e a
maior em R$ 400,00, pagas segundo uma das dirigentes com uma ajuda dada
pela Faculdade que as patrocina e com o que o clube pode oferecê-las.
Por outro lado, os privilégios oferecidos para o futebol masculino
estão longe dos olhos do futebol feminino, são realidades completamente
diferentes, os salários milionários dos homens não são parâmetros para os
das mulheres. Se o futebol feminino tivesse 1/3 do oferecido ao masculino à
realidade seria completamente diferente. Outro tipo de beneficio oferecido às
atletas é que elas podem ganhar bolsas de estudo para faculdade, existe um
patrocínio com uma faculdade particular o Recife, que se elas jogarem
defendendo a entidade lhes são oferecidas bolsas de estudo integral, na
verdade são oferecidas apenas doze bolsas de estudo, para quem não tinha
nenhuma perspectiva essa é uma grande oportunidade, pois depois do
futebol pode-se almejar um futuro promissor.
No universo das dez atletas entrevistadas durante a pesquisa
uma possuía o ensino fundamental, três estavam no ensino médio, quatro
estavam cursando a faculdade e duas haviam concluído o ensino superior. As
idades delas variam bastantes, mas estão na faixa dos dezoito aos vinte e
seis anos, tendo apenas uma com trinta e cinco anos de idade. É possível
verificar mais detalhadamente o nível de escolaridade e as idades conforme o
gráfico abaixo.
_____________________________________________________________
70
O salário mínimo estipulado no Brasil está no valor de R$ 465,00.
184
GRÁFICO 3 – NÍVEL DE ESCOLARIDADE DAS ATLETAS
185
GRÁFICO 5 – RENDIMENTO SALARIAL MÉDIO MENSAL
186
Convém mencionar que em um desses casos há uma residência
que moram oito pessoas, contando com duas crianças, cuja família é
sustentada apenas com um salário mínimo que provém de uma
aposentadoria. Há outros casos interessantes como de três atletas que fazem
parte de um mesmo espaço, mas que possuem realidades completamente
diferentes. Uma trabalha como camelô em Jaboatão dos Guararapes, região
metropolitana do Recife, outra faz e conserta barcos de pesca no Pina –
Recife e outra é boleira no clube onde joga. Vê-se, portanto que as
dificuldades são imensas e as histórias de vida, parecidas pela realidade
enfrentadas por elas, mas juntas buscam um único objetivo, que é de serem
reconhecidas não pelo que são ou pelo que possuem, mas pelo que
representam quando estão dentro de um campo de futebol.
A presença da mulher na prática do futebol feminino foi e continua
sendo uma conquista louvável, para uma sociedade machista e
preconceituosa como a nossa. No entanto diante das dificuldades o que lhes
é ofertado se restringe a agarrar as oportunidades que lhe são dadas para
obter uma vida melhor num futuro próximo, o futebol é uma atividade de curta
duração considerando que a prática do esporte lhes proporciona uma
educação de qualidade, a meta pode ser aliar o lazer com o compromisso de
garantir um futuro diferente da atual realidade.
Mas existem outras barreiras a serem vencidas, a falta de
estrutura para treinamento é outra dificuldade. O Sport oferece a elas o CT
(Centro de treinamento do clube), que fica em Paulista, na região
metropolitana do Recife, mas fica longe e pra treinar lá teriam custo com
transporte, e o clube não oferece transporte. Vale salientar que o CT só está
disponível quando o profissional (futebol masculino), não o está utilizando.
Convém destacar que são oferecidos ao departamento de futebol feminino os
materiais para jogo, como camisas, meiões, bermudas e bolas, e além do
_____________________________________________________________
71
Designação dada a quem, trabalha nas quadras de tênis, buscando as bolas que são jogadas para fora da
quadra pelos jogadores que praticam esse esporte.
187
Estádio da Ilha do Retiro, existe um ao lado que é o Auxiliar da
Ilha, onde lhe são ofertados para treinamento e jogos nos quais elas
participam. Jogar no Auxiliar da Ilha é mais vantajoso porque não há custos
com transportes já que as atletas residem próximo ao clube e a maioria vai
aos treinos e a jogos de bicicleta.
Há uma conquista significativa e muito lembrada pelas atletas
durante as entrevistas, no ano de 2008, elas sagraram-se campeãs do
Campeonato Pernambucano de Futebol Feminino organizado e dirigido pela
Federação Pernambucana de Futebol (FPF), e com isso obtiveram o direito
de participar da Copa do Brasil, evento bastante divulgado pela imprensa
local. Chegaram à final, e o clube honradamente lhes ofereceu o alojamento
de uso exclusivo dos atletas do futebol masculino. Este alojamento é tido
como um dos melhores seria um hotel de luxo dentro do clube, que serve para
concentrar os atletas durante os jogos em que eles participam. Houve um
deslumbramento por parte das atletas, pois em nenhum momento foram
oferecidos a elas tamanho reconhecimento, infelizmente ficou só nisso
mesmo, pois durante a final um dos dirigentes do clube lhe ofereceu um
“bicho”, e até hoje elas esperam por esse pro labore e se sentem lesadas pela
promessa não cumprida. Elas não obtiveram o êxito desejado e sagraram
vice-campeãs.
Para se ter idéia da grande dicotomia existente entre o futebol
feminino e o masculino no quesito investimento, destaco a Copa do Brasil que
ocorreu no ano de 2008 e contou com a participação das duas equipes do
Spot Club do Recife, tanto a masculina como a feminina, como se vê logo
abaixo na tabela a relação de público e renda da final de cada uma das
modalidades é gritante, isso sem contarmos com a publicação que é
investida.
_____________________________________________________________
72
Evento organizado pela Confederação Brasileira de futebol (CBF), que contou com a participação de 32
equipes de diferentes estados brasileiro.
73
Bicho, é como chamam o prêmio que os jogadores recebem por vitórias e até por empates.
188
GRÁFICO 8 – RELAÇÃO PÚBLICO/ RENDA NA COPA DO BRASIL DE FUTEBOL FEMININO 2008
_____________________________________________________________
74
Com a publicação do Decreto 6.180 de 03 de agosto de 2007 que regulamenta a Nova Lei de Incentivo ao
Esporte (Lei nº 11438/06), finalmente pessoas físicas e jurídicas poderão usufruir dos incentivos fiscais ao
apoiar diretamente projetos desportivos e paradesportivos previamente aprovados pelo Ministério dos
Esportes.
75
Jogadora que faz parte da seleção brasileira de futebol, que entrou na calçada da fama do Maracanã,
sendo até o primeiro momento, a primeira mulher a deixar a marca de seus pés neste local.
76
Espaços estruturados de posições ou de postos cujas propriedades dependem das posições nestes
espaços, podendo ser analisadas independentemente das características de seus ocupantes (em partes
determinadas por elas)... (BOURDIEU, 1983, P.89)
189
Há outra conquista dada às mulheres fora do gramado, cada vez
mais vemos as mulheres indo aos estádios, acompanhando seu time do
coração, discutindo e entendendo cada vez mais de futebol, sendo cronistas
esportivas dentro de uma redação de jornal, e o que é sabido é que na maioria
das vezes elas acabam entendendo mais de futebol do que o próprio homem.
As barreiras impostas estão sendo transpostas, e os limites estão
diariamente sendo superados. É lógico que a dominação masculina que se
fundamenta segundo Bourdieu (2007), “como a relação de causalidade
circular que se estabelece entre as estruturas objetivas do espaço social e as
disposições que elas produzem, tanto nos homens como nas mulheres” está
longe de ser extinta, pois o poder do patriarcado está intrinsecamente ligado à
formação da sociedade, e se faz presente nas normatizações e valores
regidos por ela. O que se pretende mostrar é que é possível a homens e
mulheres viverem em condições de igualdade, ocupando cada um o seu
lugar, porém sendo reconhecido por aquilo que fazem e não por aquilo que
lhes é imposto.
3 A INVISIBILIDADE FEMININA NO FUTEBOL
Ao analisar o campo esportivo verificamos também como sendo
um campo de lutas, onde a busca pelo poder, pelo capital econômico e
simbólico são constantes, e é justamente neste contexto que se encaixa a
máxima da invisibilidade feminina no futebol. Sendo um campo hoje bastante
difundido pela mídia, o futebol tornou-se um dos grandes meios pelo qual o
capital econômico se faz presente, o respaldo dado pela mídia ao futebol é
algo impressionante.
Importante destacar que não é apenas a mídia a possuidora de
interesse pelo futebol. Sendo uma das modalidades esportivas mais
praticadas em todo mundo e difundida em diferentes culturas, o futebol
tornou-se alvo de interesse comercial, o produto bastante valorizado pelo
marketing. O interesse que permeia o futebol é algo indiscutível, o que se vê
hoje é um leque variado de patrocinadores, que vêem no futebol uma
mercadoria valorativa. Mas isso é comum no futebol masculino. Em
contrapartida o futebol feminino está à margem desta realidade, sendo
praticamente invisível a sua presença dentro de campo. Seria pueril afirmar
que o tratamento dado aos homens pela mídia é o mesmo dado às mulheres.
Com a capacidade de formar e construir opiniões através dos fatos
apresentados, a mídia exerce grande influência como formadora de opinião
na sociedade.
Neste contexto pode-se afirmar que o futebol é uma mercadoria
que é vendida pela mídia, porém o possuidor de maior valor é o futebol
masculino, que é tratado como herói, o possuidor de encarar desafios e
_____________________________________________________________
77
STREY, Marlene Matos, 2004, P.31.
190
superar os limites impostos, já o feminino é vendido pela mídia como o belo e
o sensual.
Evidenciamos em todas as esferas do futebol o preconceito, o
descaso e a indiferença dado ao feminino. Se formos analisar os
campeonatos, a forma como são organizados, os recursos captados, se é
que se pode chamar de recursos, verificamos a grande dicotomia existente
entre esses extremos. Não dá pra se calcular tamanha divergência. Para se
ter uma idéia no ano de 2008 durante a Olimpíada de Pequim, a Seleção
Brasileira de Futebol obteve uma classificação medíocre, não conseguindo
chegar à final, já a Seleção Feminina chegou à final e obteve o segundo lugar,
num jogo onde a garra e a determinação fizeram das atletas “gladiadoras”
dentro de campo. O feito das atletas durante a Olimpíada de Pequim foi
inédito, se levarmos em consideração que não há investimento para esta
modalidade, e onde os recursos são investidos no futebol masculino. um
jornal de grande circulação em nosso Estado diante da má fase do futebol
masculino publicou uma matéria relacionado a sua péssima
colocação com o titulo “Futebol de meninas” e estampada uma fotografia do
jogador Ronaldinho Gaúcho. Na realidade não há uma luta de gênero, mas
sim de igualdade, onde as diferenças possam ser respeitadas e as
oportunidades possam direcionadas a todos, independente do sexo de cada
um. O que se viu diante deste relato foi uma repetição de um estereótipo
apesar do desempenho das atletas durante as olimpíadas.
Essa invisibilidade midiática também é freqüente com as meninas
do Sport, que sofrem pela falta de oportunidades e de divulgação do futebol.
Existe um outro fator importantíssimo para a ascensão do futebol feminino,
que são os patrocinadores. Se houvesse uma mobilização por parte da
Federação e dos clubes o futebol feminino seria mais valorizado, pois fica a
máxima de que, se as atletas não são valorizadas pelo próprio clube a que
defendem imagina pelos que não conhecem seu trabalho. Se os
campeonatos fossem organizados, se houvesse divulgação, com certeza os
patrocínios surgiriam.
No ano de 2008 as atletas do Sport Club do Recife, como já foi
citado participaram da Copa do Brasil e foi impressionante a sua atuação
nessa competição. A mídia cumpriu seu papel de divulgar e informar sobre a
atuação das meninas. Durante toda a competição foram exibidas matérias
tanto na mídia escrita quanto na televisiva. As atletas se expuseram de uma
forma como nunca havia acontecido. Mas depois da competição, voltaram ao
ostracismo. A participação das atletas do Sport na Copa do Brasil pode ser
traduzida por uma única palavra “SUPERAÇÃO”. Superação dos
preconceitos impostos, da falta de estrutura, da falta de oportunidades e da
falta de igualdade. Podemos atribuir a conquista feminina ao que Bourdieu
(1990, p.170) denominou de
191
[..] capital simbólico como capital de reconhecimento ou consagração,
institucionalizada ou não, que os diferentes agentes e instituições
conseguiram acumular no decorrer das lutas anteriores, ao preço de um
trabalho e de estratégicas específicas.
78
Ver anexos de algumas matérias publicadas
193
patriarcalismo se faz presente e o senso comum as denigre, afetando-as
diretamente como sujeitos sociais.
O investimento e a valorização dado ao futebol feminino são
ínfimos se comparado ao futebol masculino, mas a resistência, a auto-estima,
empoderamento redundam na superação das dificuldades para existência e
sobrevivência desse esporte que é tão estigmatizado para as mulheres.
O recurso propício para que essas atletas possuam algum
beneficio futuro está na educação, pois a elas são oferecidas como forma de
incentivo bolsas de estudo, desde que não parem de jogar, aliando assim o
“dom” de jogar futebol com as benesses que lhe são dadas por essa prática.
É fundamental afirmar que a melhoria de vida dessas atletas
encontra respaldo no futebol, a elas não são ofertados grandes salários, nem
tão pouco visibilidade midiática até porque como foi visto a mídia de uma
forma geral não dá espaço para o futebol feminino, porém lhes é ofertado a
condição de cursar uma faculdade, pois já que não há um retorno financeiro a
curto prazo, há uma chance de buscar esse retorno através da educação.
Foi observado também que a maior das discriminações não está
na condição social de cada uma delas, nem na escolaridade que possuem e
sim no tocante a sua sexualidade. A discriminação sexual denigre e segrega
essas meninas, tornando-as reféns do estereótipo social.
A homossexualidade ou heterossexualidade dessas atletas não
as distinguem dentro de campo, na realidade o que se vê são sujeitos sociais
que buscam firmar sua identidade através de suas escolhas, e isso é inerente
a qualquer ser humano, seja ele homem, mulher ou criança. A identidade é
uma constante diária, cada dia buscamos afirmá-la de uma forma ou de outra
e não seria diferente com essas atletas. Ficou notório a afirmação da
identidade destas atletas do futebol, já que estão em constante construção.
Conclui-se, pois que a pratica do futebol feminino não altera o
gênero, muito pelo contrario ajuda-o a se firmar, pois como se sabe a
elaboração do modelo feminino sempre ficou à margem do modelo
masculino, a mulher sempre foi considerada como o oposto “fragilizado”
incapaz de superar os limites impostos pela sociedade. O futebol feminino
mesmo estigmatizado e segregado legitima a superação feminina e derruba o
tabu da mulher fragilizada que tantas vezes foi sub-produto do homem e hoje
é responsável pela criação de sua própria visão de mundo.
_____________________________________________________________
79
Jornal de grande circulação no Estado de Pernambuco; A nota foi divulgada no dia 11 de junho de 2009.
194
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195
RELAÇÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADE NO CURRÍCULO
ESCOLAR: desafios e possibilidades nas práticas pedagógicas no
estado do Maranhão
INTRODUÇÃO
A sociedade contemporânea é intensamente marcada pelos
conhecimentos e habilidades elaborados através dos processos formais de
escolarização. A escola, enquanto instituição social é co-responsável pela
formação dos sujeitos, atuando conjuntamente com outras instituições como
a família e a religião (igreja), por exemplo. Neste bojo, vale ressaltar a
importância das práticas educativas na formação do indivíduo, devendo-se
levar em consideração sua “formação integral”, bem como as transformações
no mundo do trabalho e na sociedade como um todo, uma vez que a escola é
condicionada pelos contextos social, econômico, político e cultural.
Consideramos nesse ínterim que a educação integral supõe o
desenvolvimento de todas as potencialidades humanas com equilíbrio entre
os aspectos cognitivos, afetivos, psicomotores e sociais. Isto requer uma
prática educativa crítica, que compreenda o ser humano em sua
integralidade, em suas múltiplas relações, dimensões e saberes,
reconhecendo-o em sua singularidade e universalidade. E, o currículo
escolar faz parte desse processo. É importante observar que o currículo
reflete todas as experiências em termos de conhecimento que
serão proporcionados aos alunos e alunas. Dessa forma, ele deve ser
encarado como elemento central do processo da educação
institucionalizada.
Ao trabalharmos com o conhecimento, e sua distribuição na
sociedade contemporânea, trazemos para a discussão do campo do currículo
algumas indagações: é possível analisarmos a produção social do
conhecimento de acordo com as perspectivas das teorias críticas do
_____________________________________________________________
*
Mestra em Educação pelo Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal do
Maranhão – UFMA. Professora do Departamento de Educação I da UFMA. Membro do Grupo de Estudos e
Pesquisas sobre Mulheres e Educação de Gênero – GEMGe / UFMA.
80
A questão da formação integral do indivíduo como desenvolvimento pleno de competências que o
capacitem para a vida, para o trabalho e para a prática da cidadania está destacada na Lei n° 9394/96 de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN (BRASIL, 1996), ao ratificá-la como o objetivo da
educação. Consideramos, portanto que a educação integral supõe o desenvolvimento de todas as
potencialidades humanas, com equilíbrio entre os aspectos cognitivos, afetivos, psicomotores e sociais.
Isto requer uma prática educativa globalmente compreensiva do ser humano em sua integralidade, em
suas múltiplas relações, dimensões e saberes, reconhecendo-o em sua singularidade e universalidade.
197
currículo? Como desenvolver uma prática educativa crítica, diante dos
dilemas e desafios da sociedade contemporânea?
GÊNERO E SEXUALIDADE NO CURRÍCULO ESCOLAR: de que forma se
processa a educação do homem e mulher contemporâneos?
Educação, Pedagogia e Currículo devem ser apreendidos a partir
da relação com as questões históricas, políticas e culturais, sendo envolvidas
nas tramas do poder e saber, no sentido que lhe confere Foucault (1999, p.
27), quando diz que “não há relação de poder sem constituição correlata de
um campo de saber, nem saber que não suponha ou não constitua ao mesmo
tempo relações de poder”.
Para Giroux e McLaren (1995, p. 144) a pedagogia está presente
em qualquer lugar em que o conhecimento seja produzido, “em qualquer
lugar em que existe a possibilidade de traduzir a experiência e construir
verdades, mesmo que essas verdades pareçam irremediavelmente
redundantes, superficiais e próximas ao lugar-comum”. Verdade, de acordo
com Foucault (1993) nada mais é do que uma mentira que não pode
contestada em um determinado momento.
O currículo, segundo Silva (2005) pode ser visto como um
discurso que, ao incorporar narrativas particulares sobre o indivíduo e a
sociedade, nos constitui como sujeitos particulares. Em sua argumentação,
Silva afirma que as narrativas contidas no currículo corporificam noções
particulares sobre as formas de organização da sociedade e diferentes
grupos sociais e o conhecimento, estabelecendo, por exemplo, qual o
conhecimento que pode ser considerado verdadeiro.
Sob essa égide, encontram-se as relações de gênero e a
sexualidade. Questões nem sempre contempladas nos currículos escolares
como objeto de discussão e análise. Contudo, o que importa, na perspectiva
das relações de gênero, é discutir os processos de construção ou formação
histórica, linguística e social, instituídas na formação de mulheres e homens,
meninas e meninos.
Silva (2005) ressalta as perspectivas críticas sobre relações de
gênero e pedagogia feminista dizendo que estas passaram a questionar o
fato de não levarem em consideração a questão de gênero e da raça no
processo de produção e reprodução das desigualdades. Nesse contexto, o
currículo refletia e reproduzia uma sociedade masculina. A pedagogia
feminista passa a desenvolver formas de educação que levam em
consideração os valores feministas, para contrapor-se à pedagogia
tradicional de valorização do masculino. O currículo é visto como um artefato
de gênero, pois corporifica e ao mesmo tempo produz relações de gênero.
Os Estudos Feministas sempre estiveram preocupados com as
relações de poder entre mulheres e homens. Inicialmente, esses estudos
buscavam atentar para as condições de exploração e dominação a que as
mulheres estavam submetidas. Vale ressaltar que os estudos de gênero não
se limitam, aos estudos de/sobre mulheres, envolvem também a discussão
198
em torno da constituição das masculinidades, problematizando de que forma
elas têm sido postas em discurso.
A categoria gênero vai ser desenvolvida pelas teóricas do
feminismo contemporâneo sob a perspectiva de compreender e responder,
dentro de parâmetros científicos, a situação de desigualdade entre os sexos e
como esta situação opera na realidade e interfere no conjunto das relações
sociais. A construção dos gêneros se dá através da dinâmica das relações
sociais. Os seres humanos só se constroem como tal em relação com os
outros.
E qual seria a diferença entre sexo e gênero? Pode-se dizer que
sexo é algo biológico, ou seja, quando um ser nasce diz-se que é macho ou
fêmea, e no caso dos seres humanos, dizem que se fazem homens e
mulheres. Enquanto que na questão gênero, este é construído
historicamente, socialmente e culturalmente, sendo o sexo social definido, ou
seja, não é sinônimo de sexo biológico. O gênero refere-se à construção
social de relações de homens e mulheres, que não recebem o mesmo tipo de
educação.
Não se leva em conta que as diferenças biológicas entre homens
e mulheres não determinam e não explicam as diferentes atribuições a estes
na sociedade. Sendo assim, as diferenças não são de ordem natural, mas sim
cultural, construídas e elaboradas socialmente a partir das diferenças
biológicas.
Assim surgiu o que se denomina hoje de sexismo, ou o chamado
preconceito de sexo, consistindo em identificar características que
determinem as diferenças entre as identidades de gênero, reconhecendo o
homem como essencialmente forte, objetivo, racional e determinado em
oposição à concepção feminina de ser emocional, sensível, intuitiva e pré-
racional.
O sexismo encontra forte legitimação nos discursos religiosos,
nas formas de produção e no reforço e reprodução dos papeis sexuais. Com
isso, a educação tradicional, aquela que possui como base à sociedade
patriarcal, é voltada para a transmissão eficiente dos papéis sexuais
tradicionais, tendo o sexismo “como seu ethos inspirador. A tradição
ocidental, terreno histórico e cultural da tradição patriarcal, encontra-se
hegemonicamente legitimada na concepção de identidades diferenciadas
entre o masculino e o ser-homem e o feminino e o ser-mulher” (NUNES, 2000,
p.70).
Dessa forma, essas identidades são postas como prontas e
acabadas, geralmente centradas em ideais religiosos e, tomando-se
legítimas a partir dos aspectos biológicos. Com isso, inúmeros
conceitos ligados à sexualidade encontram seus fundamentos apenas no
senso comum, ou, disfarçados numa suposta igualdade que ao primeiro
conflito revelam-se seu preconceito, pois, sabe-se que mesmo com toda a
transformação dos costumes ainda persistem as discriminações
199
relacionadas ao gênero.
Por outro lado, quando se trata de discriminações e preconceitos,
pode-se dizer que a escola contribui fortemente para a formação destes,
principalmente através do currículo oculto. Este, embora não faça parte do
currículo escolar segundo Silva (2005), encontra-se presente nas escolas
através de aspectos pertencentes ao ambiente escolar e que influenciam na
aprendizagem dos alunos.
A escola, desde sua criação, exerce uma ação distintiva,
separando os sujeitos que tinham acesso a ela, daqueles que não tinham.
Além disso, os gestos, movimentos e sentidos são produzidos no espaço
escolar e, são incorporados pelos alunos e alunas, tornando-se parte de seus
corpos, de suas vidas. Todas as lições, de uma forma ou de outra confirmam e
produzem as discriminações e preconceitos e, os sujeitos desse processo se
envolvem e são envolvidos nessas aprendizagens, reagindo, respondendo,
recusando ou assumindo aquilo que lhe é posto.
Na visão crítica, o currículo oculto forma atitudes,
comportamentos, valores, orientações, dentre outros aspectos que permitem
a adaptação dos sujeitos às estruturas da sociedade capitalista e excludente.
Nessa perspectiva, as relações de gênero e sexualidade passaram a ser
questionadas, pois o currículo pensava e reproduzia uma sociedade
masculina. Na prática pedagógica crítica, o currículo deve lidar com a questão
da diferença como uma questão histórica e política, pois não importa apenas
celebrar a diferença e a diversidade, mas questioná-la.
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS CRÍTICAS: desafios e possibilidades
Prática pedagógica de acordo com Veiga (1994, p.16), é “uma
prática social orientada por objetivos, finalidades e
conhecimentos, e inserida no contexto da prática social [...], é uma dimensão
da prática social que pressupõe a relação teoria-prática, e é essencialmente
nosso dever, como educadores/as, a busca de condições necessárias à sua
realização”. Libâneo (2005) ressalta que em várias esferas da sociedade há
a necessidade de disseminação e internalização de saberes e modos de
atuação, dentre eles, a aquisição de novos conhecimentos, conceitos,
habilidades, hábitos, procedimentos, crenças, atitudes.
As práticas pedagógicas se estabelecem por ações,
conhecimentos e valores que fazem parte de um processo intencional e
sistematizado, com finalidades educativas e formativas, que possibilitam a
singularização, socialização e humanização dos sujeitos, envolvendo o
complexo de interações entre indivíduos e contextos.
A Contemporaneidade configura-se pela complexidade social e
na diversificação das atividades educativas e formativas. Conforme destaca
Paredes (1997, p. 178), “cada professor tem sua própria contextualização
sobre educação e, nesse sentido, é ele, e só ele, quem vai dar determinada
orientação à sua prática”.
No entanto, uma prática pedagógica crítica, que pretende ser
200
transformadora deve lutar pela construção de uma sociedade com igualdade
de oportunidades, sejam econômicas, sociais, políticas, com respeito às
diferenças e à diversidade, pois “respeitar as diferenças exige o direito se
sermos considerados, pelos outros, como iguais em capacidades e direitos”
(PAREDES, 2006, p.137).
Dessa forma, podemos dizer que uma prática pedagógica crítica
funda-se no modo de produção social da existência, utilizando-se uma
metodologia que permita a apreensão da realidade, através da unidade entre
teoria e prática (práxis) na busca da conscientização e transformação da
realidade histórica. Ao professor e professora nesse processo, não cabe a
postura de neutralidade, pois assim a reprodução tende a se manter. Estes
precisam reconhecer seu papel político e a dimensão política da
educação, refletindo-a através de sua práxis. Da mesma forma o currículo
não é neutro, desinteressado, conforme aponta Michel Aplle. Para o autor, a
reprodução social não se dá de forma tranqüila, há sempre um processo de
contestação, conflito, resistência. E o professor e professora devem ser
agentes transformadores (SILVA, 2005).
Giroux também defende o papel o professor como intelectual
transformador. Advoga a pedagogia da responsabilidade, na qual os
professores e professoras devem ser críticos, criativos e esperançosos em
relação ao potencial que, tanto eles, como seus estudantes podem oferecer,
contrariando as forças políticas conservadoras que significa muito mais uma
submissão às pressões do mercado do que uma produção intelectual
inovadora. Assim, o autor vê o currículo por meio dos conceitos de
emancipação e libertação.
Paulo Freire (1996, p. 42-43) diz que “ensinar exige reflexão
crítica sobre a prática”, acrescentando que “a prática docente crítica,
implicante do pensar certo, envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o
fazer e o pensar sobre o fazer”. Além disso, o professor e professora devem
respeitar os saberes dos alunos e alunas, sobretudo os das classes
populares. Assim, o currículo deve conceber a experiência dos educandos
como a fonte primária para temas significativos ou geradores. Por outro lado,
sua teoria é contestada por Dermeval Saviani na pedagogia histórico-crítica
ou pedagogia crítico-social dos conteúdos. Segundo este autor, a educação
só será política quando esta permitir às classes dominadas se apropriarem
dos conhecimentos transmitidos como instrumento cultural que permitirá uma
luta política mais ampla (SILVA, 2005).
Nesse sentido, combater os diversos preconceitos na sociedade
é uma forma de emancipação social, e, neste estudo, tratamos
especialmente os relacionados aos estereótipos construídos e vivenciados
na escola, bem como a contribuição desta, nas construções das identidades
de gênero e sexual do homem e da mulher contemporâneos.
CONSTRUINDO IDENTIDADES DE GÊNERO E IDENTIDADES SEXUAIS
NA ESCOLA
201
O conceito de identidade tem sido muito discutido ao longo do
tempo e, portanto, abriga diversas abordagens teóricas, de cunho
psicológico, filosófico, antropológico ou sociológico. Anteriormente, a noção
de identidade estava ligada à concepção de um sujeito uniformizado. Na
sociedade contemporânea e as profundas transformações no modo de
pensar as questões sociais, os discursos passam a indicar uma sociedade
multicultural, assim, é possível o sujeito identificar-se com referências
culturais distintas e a afirmação ou repressão de determinadas
características identitárias das culturas diversas passa por uma escolha
política. A identidade é construída socialmente e desenha escolhas políticas
de grupos humanos.
Além disso, o conceito de identidade trata-se de uma constituição
simbólica. A construção da identidade também se relaciona à apreensão e
explicação da realidade, visto que é um processo de representação
simbólica, uma tentativa de compreensão de sua própria posição no mundo.
Essa construção se dá por meio de esquemas classificatórios, que nos
permite separarmos dos "outros" a partir de critérios estabelecidos. Por outro
lado, a idéia de identidade vem seguida de uma noção de normalidade, noção
esta que lhe dá uma certa confirmação, tanto teórica (no caso psicológica)
como social.
A identidade reúne características pessoais e sociais que fazem
com que pessoas e grupos se diferenciem entre si. É constituída pelo
conjunto de papéis que desempenhamos, sendo que tais papéis atendem à
manutenção das relações sociais.
Na escola, ainda que seu ambiente seja flexível em relação aos
papéis sociais, os estereótipos podem aparecer entre as próprias crianças,
produto do meio em que convivem, ou reflexo da faixa etária em que a divisão
entre meninos e meninas torna-se uma forma de se apropriar da
identidade sexual (Brasil, 1999: 42).
Em relação ao conceito e à abordagem relacionada a papéis, há
uma certa limitação para o seu entendimento, pois estes não possibilitam
uma discussão mais ampla em relação ao poder, violência e desigualdade.
Um dos problemas relacionados a papéis é que estes se restringem a formas
muito específicas, como por exemplo, o papel de esposa, de mãe, sendo
usados para se mencionar um tipo normativo de comportamento ou ainda
indicar estereótipos de papéis em relação ao homem e à mulher.
Algumas das explicações buscam evidenciar como se produzem
às identidades de gênero ou mesmo as identidades sexuais. Estas se
fundamentam em estruturas de interação bastante restritas, por exemplo, o
campo familiar, ignorando o fato de que as relações de gênero estão
conectadas a outros sistemas sociais, econômicos, políticos ou de poder,
como destaca Joan Scott (1995).
A identidade é uma interação social. Ela promove, ao mesmo
tempo, uma coerência e uma multiplicidade, uma estabilidade e uma
202
mudança, ou seja, a identidade é construída via interação com o outro. A
identidade psicossocial se coloca como uma formação discursiva que tem
referência tanto no sujeito quanto no contexto. Ela é uma relação dialética, um
sujeito descentrado – uma vez que, em sua narrativa, não tem consciência ou
tem consciência apenas parcial dos fatores sociais e psíquicos que
influenciam a própria narrativa – vivido como sujeito da comunicação e sujeito
da experiência.
Hall (2004, p. 105) concorda com Foucault quando diz que o que
nos falta é uma teoria da prática discursiva, pois...
Parece que é nas tentativas de rearticular a relação entre sujeitos e
práticas discursivas que a questão da identidade – ou melhor, a questão
da identificação, caso se prefira enfatizar o processo de subjetivação (em
vez de práticas discursivas) e a política de exclusão que essa
subjetivação parece implicar – volta a aparecer.
Assim, a abordagem discursiva vê a identificação como uma
construção, como um processo nunca completado – como algo
sempre em processo. A identificação é, pois, um processo de articulação e
não uma subsunção. Hall (2004) acrescenta que as identidades são
construídas dentro e não fora do discurso, por isso precisamos compreendê-
las como produzidas em locais históricos e institucionais específicos, no
interior de formações e práticas discursivas específicas, por estratégias e
iniciativas específicas.
Alguns autores e autoras que se aproximam dos Estudos
Feministas e dos Estudos Culturais, concebem a identidade de forma mais
aberta, como um processo dinâmico, plural. Dentro de nós há identidades
contraditórias, levando-nos a direções diversas, de tal maneira que nossas
identificações estão sendo sempre modificadas.
Em relação à identidade de gênero e à identidade sexual também
é possível apreender que estas são plurais e estão em constante
transformação. Para Guacira Louro (1997), enquanto a identidade de gênero
relaciona-se à identificação histórica e social das pessoas, que se distinguem
como femininos ou masculinos, a identidade sexual está ligadas diretamente
ao modo com que os indivíduos vivenciam seus desejos corporais, das mais
variadas maneiras: sozinhos/as, com parceiros do mesmo sexo ou não,
dentre outras. A identidade sexual encontra-se constantemente reformulada,
reorganizada, principalmente pelas complexidades da experiência vivida,
pelo conhecimento escolar, pela cultura popular, e pelas inúmeras e mutáveis
histórias de marcadores sociais como gênero, raça, geração, nacionalidade,
aparência física e estilo popular.
Dessa forma, tanto as identidades de gênero quanto às
identidades sexuais podem ser caracterizadas pela inconstância, estando,
portanto, em constantes transformações. Desde que nascemos, estamos nos
estabelecendo como indivíduos, com múltiplas identidades (de gênero, de
etnia, religiosas, sexuais, etc).
203
Contudo, o discurso naturalizante e universal em torno da
sexualidade tem produzido poderosos efeitos de verdade. A
sexualidade tem sido alvo de constante controle por parte da família, da
escola e dos diversos aparatos culturais, incluindo-se aqui os livros didáticos
e paradidáticos.
É possível observar que mesmo tendo sido colocada em discurso
de forma tão intensa nas últimas décadas, ela mais do que nunca tem sido
vigiada e controlada (Felipe, 1998). Em relação à escola, por exemplo,
muitas/os educadoras/es têm tomado para si a responsabilidade de atuarem
como “vigilantes” da sexualidade infantil, na tentativa de moldarem os
comportamentos que consideram mais apropriados para meninos e meninas.
Examinar os materiais didáticos e paradidáticos voltados para as
crianças, bem como os diversos objetos culturais - brinquedos, filmes, dentre
outros, são fundamentais para entender de que forma eles trazem percepção
de gênero, sexualidade, raça/etnia, geração, nacionalidade, pautadas muitas
vezes pela desigualdade. Em um mundo caracterizado pela diversidade, é
essencial que os educadores e educadoras, a partir de uma prática educativa
crítica, não compactuem com a idéia de que as diferenças individuais sejam
transformadas em desigualdades.
PCN'S E PROPOSTA CURRICULAR DO ESTADO DO MARANHÃO: onde
estão as questões de gênero e sexualidade?
A educação sexual na escola sempre foi um objeto de polêmicas,
isso devido à tradição educacional brasileira. Assim, a escola, sempre
procurou se manter distante desses assuntos. No entanto, com a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei n° 9394/96, a iniciativa dos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) que incluiu a “Orientação
Sexual” como um dos Temas Transversais a ser trabalhados de forma a
perpassar todas as disciplinas do currículo escolar e as manifestações de
sexualidade em todas as faixas etárias, a escola e os professores e
professoras, deparam-se com situações a qual precisa abordar, pois é
preciso propiciar a discussão de questões relacionadas à gênero e em
relação ao sexo e ao sexismo, além do questionamento das atitudes pessoais
das crianças e jovens, frente a própria sexualidade.
Com a inserção do tema sexualidade nos PCN's denota-se a
importância que tal assunto assumiu em nossa sociedade e, o volume que
trata esta questão apresenta a sexualidade como “a energia que motiva
encontrar o amor, contato e intimidade, e se expressa na forma de sentir, na
forma das pessoas tocarem e serem tocadas” (BRASIL, 2000, p.118).
O documento ressalta a postura do educador e educadora na
condução do processo educativo e na parceria com a família, apresenta os
objetivos do trabalho com educação sexual e sugestões dos blocos de
conteúdos a serem trabalhados nas diversas áreas do conhecimento (Corpo:
matriz da sexualidade; relações de gênero e prevenção das doenças
sexualmente transmissíveis). Além disso, destaca algumas orientações
204
didáticas e critérios de avaliação.
A inclusão de temas relacionados à sexualidade em documentos
que norteiam à prática educativa deu-se especialmente pela urgência social e
os problemas que a vivência da sexualidade trazem para a sociedade. Por se
tratar de um conteúdo atitudinal – atuando na mudança de valores e atitudes –
assim como os demais Temas Transversais deveria transformar-se em
elemento essencial na proposta pedagógica dos estados, municípios e das
escolas de modo geral. Contudo não é isso que se observa, pois até mesmo
na Proposta Curricular para o Ensino Fundamental do Estado do Maranhão
este e os demais Temas Transversais são praticamente inexistentes, estando
presentes no volume da 1ª a 4ª série, apenas no capítulo que trata da área de
Matemática.
Vale ressaltar que nos volumes dos PCN's que tratam das
diversas disciplinas do currículo escolar, apenas o da área da Matemática
apresenta sugestões para o trabalho com os Temas Transversais,
conseqüentemente, a educação sexual. Dessa forma, acreditamos que ao
elaborarem a Proposta do estado, basearam-se nesses volumes, excluindo-
se os que tratam dos Temas Transversais.
O capítulo da Proposta curricular do Maranhão que trata da
matemática e os temas transversais aponta que deve haver um compromisso
partilhado pelos professores e professoras das diversas áreas do
conhecimento, “o que inclui a aprendizagem de conceitos, procedimentos e o
desenvolvimento de atitudes” (MARANHÃO, 2002, p. 71), e, acrescenta que
através dos conteúdos da Matemática, a criança pode compreender e
analisar questões relacionadas à sexualidade. Através de dados estatísticos,
por exemplo, poderão compreender a diferença na remuneração de homens
e mulheres no mercado de trabalho; o aumento da gravidez prematura entre
adolescentes; a evolução das Doenças Sexualmente Transmissíveis, dentre
elas a AIDS que muito assusta nossa população; as políticas públicas
voltadas a tais questões.
Trabalhar esses conteúdos são de extrema relevância social e
deveriam ser apresentadas nos documentos e propostas curriculares nas
diversas áreas do conhecimento e não apenas em Matemática. Embora a
Proposta do estado, assim como os PCN's não se constituam num modelo
rígido e obrigatório a ser seguido, e sim um referencial e instrumento de apoio
à prática pedagógica, tal prática, numa perspectiva crítica e transformadora,
deve atentar para os problemas e desafios que assolam a sociedade, um dos
motivos para se adotar as sugestões dos referidos documentos na escola,
incluindo-se os Temas Transversais e a educação sexual.
CONCLUSÃO
Na prática educativa crítica, o (a) professor (a) deve estar atento,
intervindo de modo a combater as discriminações e os estereótipos
associados, dentre outros aspectos, ao gênero e à sexualidade, trabalhando
o respeito ao outro e às diferenças individuais, demonstrando, por exemplo,
205
os “comportamentos diferenciados de homens e mulheres em diferentes
culturas e momentos históricos, o que auxilia os alunos a entenderem as
determinações da cultura em comportamentos individuais” (BRASIL, 2000,
p.146).
Os resultados da aplicação de conteúdos relacionados a gênero
e sexualidade podem ser bastante promissores, tanto para as professoras e
professores, como para os alunos e alunas, pois, são temas que podem levá-
los a aprimorarem-se como cidadãos e cidadãs críticos, participativos,
ajudando-os a entender o processo de construção histórico-social dos
valores da sociedade, sejam eles, culturais, morais e religiosos, além de
poderem participar do processo de transformação social.
Logo, não se pode construir uma educação emancipadora e
transformadora baseada nos princípios discriminatórios. Portanto, nosso
compromisso como educadoras e educadores comprometidos com a
sociedade trata-se de dimensionar a dialética do indivíduo no contexto da
transformação revolucionária, no caminho da liberdade e da diversidade
como princípio educativo.
206
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207
GT 2 – GÊNERO E GERAÇÃO
COORDENAÇÃO: Profª. Dra. Marion Teodósio de Quadros - UFPE
209
APRESENTAÇÃO
Este Grupo de Trabalho se propõe a refletir acerca das
articulações entre gênero e geração. A perspectiva adotada é que estas duas
dimensões de análise são construções sócio-culturais. As diferentes
abordagens do conceito de gênero contido nos trabalhos deste GT
possibilitam um amplo olhar para a relação entre as dimensões biológica e
cultural. As análises empreendidas destacam aspectos biologizados e
naturalizados que atuam como marcadores sociais e impulsionam relações
de poder difusas entre as próprias mulheres, bem como entre travestis e a
sociedade mais ampla. Estas análises tornam evidente como o
entrecruzamento com as questões de geração podem aprofundar nossa
reflexão sobre a exclusão e a desigualdade. Alguns dos trabalhos apontam a
possibilidade de interferência ou atuação para a superação das
desigualdades e exclusões realçadas, mostrando como as potencialidades
de mudança/resistência enlaçadas às abordagens de gênero aqui utilizadas
se beneficiam da utilização deste entrecruzamento.
A maioria dos trabalhos privilegiou a reflexão sobre a
juventude. O texto de Anny Oliveira, Claudiana Sousa e Danila Cordeiro é
fruto de uma pesquisa que combina as abordagens quantitativa e qualitativa,
ressaltando as desigualdades no uso das novas tecnologias. Mostra como
questões de gênero, classe social, geração e geografia influenciam a
acessibilidade de jovens e as formas de utilização no meio urbano e rural.
Indagando sobre a interação a televisão e o espaço virtual, refletem sobre
mudanças nos modos de vida e nos valores das jovens da periferia de áreas
urbanas e rurais.
O trabalho de Rosineide Cordeiro e Marion Teodósio de Quadros
chama a atenção para um outro aspecto de desigualdades que atinge as
jovens rurais: a legislação sobre o salário-maternidade. O texto é fruto de uma
pesquisa qualitativa, baseada em documentos, depoimentos e entrevistas, e
reflete sobre as incongruências envolvidas em um debate sobre a idade
considerada adequada pela legislação para a aquisição do direito ao salário-
maternidade, evidenciando as dificuldades enfrentadas e conquistas
alcançadas pelas trabalhadoras rurais para a aquisição deste direto e, por
outro lado, como o direito adquirido exclui as jovens que engravidam com
menos de 16 anos, embora elas atendam aos demais requisitos legais
exigidos pela Previdência.
Karla Adrião reflete, a partir de uma abordagem qualitativa, sobre
o entrecruzamento das questões de gênero e idade na própria militância
feminista, destacando como as jovens feministas têm interagido com as
chamadas feministas históricas, suas dificuldades e sucessos no
fortalecimento das agendas do movimento e a na formação de uma agenda
específica, iluminando a complexidade da formação do campo feminista
211
como um locus de formação de uma diversidade de sujeitos políticos
específicos que contribui para colocar novas questões para o próprio
movimento e os estudos de gênero.
O último trabalho a ser apresentado neste GT traz para a
discussão uma outra questão igualmente importante para os estudos de
gênero e geração: o envelhecimento e suas marcações sociais que
acentuam desigualdades para as pessoas, especialmente quando estamos
no campo de entrecruzamentos entre gênero e sexualidades. Nele, Jesana
Batista Pereira, Márcia Santana Tavares e Maura Lúcia de Olim analisam
significações e resignificações de travestis frente a uma marca identitária
fundamental, o poder de sedução, utilizando experiências e trajetórias de
vida.
Um outro mérito destes textos é o de possibilitar a reflexão
sobre a relação entre militância e a realização de reflexões que esmeram pelo
cuidado com o material de pesquisa e seu diálogo com questões teóricas. Se
a militância política é um ingrediente fundamental para a realização das
pesquisas, parece haver um entrelaçamento bastante dosado entre a ação e
a reflexão, sendo notório que estas duas dimensões, embora interligadas em
todos os momentos da produção do conhecimento, tem peculiaridades que
as distinguem. Esta distinção enriquece o debate, proporcionando novas
perspectivas na análise das questões ensejadas e maiores aportes para as
decisões sobre o rumo das ações. As ações, por sua vez, quando refletidas a
partir da produção de conhecimento, parecem evidenciar suas
(in)consistências, (in)coerências, suas (im)possibilidades de mudança ou
resistência.
Ao ressaltar esta questão, estamos dando passos para enfrentar
um desafio importante que pode ser considerado um desdobramento do tema
central da XV REDOR: investir na produção de conhecimentos e no
movimento. Como a produção de conhecimentos feministas tem se
relacionado com ação política feminista? Para fazer frente ao patriarcado/
racismo/capitalismo (SAFFIOTI) nós só temos nossa capacidade de nos
organizar, de reivindicar e de ter frentes de luta e, ao mesmo tempo, nós
temos o empobrecimento crescente tanto das mulheres quanto dos próprios
movimentos sociais. Dentro dessa composição de forças, que estratégias
nós podemos tomar? Isso é um ponto para refletir e tentar elaborar
estratégias de enfrentamento.
Marion Teodósio de Quadros
Coordenadora do GT Gênero e GeraçãoO SALÁRIO-MATERNIDADE E
O CRITÉRIO IDADE: refletindo sobre a exclusão de jovens agricultoras
Rosineide Meira Cordeiro – UFPE
Marion Teodósio Quadros – UFPE
212
O SALÁRIO-MATERNIDADE E O CRITÉRIO IDADE: refletindo sobre a
exclusão de jovens agricultoras
81
Coordenada por Rosineide Cordeiro, financiada pelo CNPQ - Edital Relações de Gênero, Mulheres e
Feminismo e com a participação de três bolsistas do Programa de Iniciação Cientifica (PIBIC) Mônica
Regina Gomes da Silva, Adiliane Valéria B. F. da Silva e Paula Rafaela Gonçalves Lima . A pesquisa foi
realizada no município de Santa Cruz da Baixa Verde no período de 2006-2008. Agradecemos a
colaboração e apoio de Vanete Almeida, do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Santa Cruz da Baixa
Verde e do Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Sertão Central de Pernambuco.
82
Estas entrevistas foram realizadas por Adiliane Valéria B. F. da Silva (PIBIC).
213
relacionadas a idade, considerando as definições de adolescência e
juventude, que são marcadas por recortes etários e significados igualmente
distintos. Enfocamos os estudos sobre os diferentes significados da gravidez
para os jovens em contextos diferenciados. Ao final dessa parte,
apresentamos analisamos a situação das jovens agricultoras que não
obtiveram o salário-maternidade por conta da idade.
Na terceira parte, direcionamos nossa análise mais
especificamente para as posições das ativistas do movimento de mulheres
trabalhadoras rurais do Sertão Central e do movimento sindical a respeito do
critério idade para o acesso ao salário-maternidade.
2 AS LUTAS DAS AGRICULTORAS PELO SALÁRIO-MATERNIDADE: a
maternidade como um problema?
A maternidade é tema fundamental no debate feminista
(BEAUVOIR, 1980; DAUSTER, 1988; CHODOROW, 1978; SCAVONE,
2001), colocando em questão a biologização do destino social das mulheres
que serve para apoiar justificativas conservadoras para a sua posição
desvantajosa na sociedade. Para muitas feministas é um dos eixos centrais
de explicação das desigualdades entre os sexos.
Por conta de sua influência central na determinação da ausência
das mulheres no mundo público e do enfrentamento do debate acerca da
relação entre natureza e cultura, foi um dos temas que mais
inspirou a politização das questões do âmbito privado que eclodiram no
feminismo ocidental contemporâneo (SCAVONE, 2001). Do ponto de vista
feminista, a maternidade tem significado uma modalidade de controle do
corpo feminino uma vez que as mulheres são sobrecarregadas com os
cuidados e as responsabilidades da vida reprodutiva. Por isso, o feminismo
defende a maternidade como um direito de livre escolha da mulher, sinônimo
da autodeterminação e autocontrole sobre seu corpo e não um destino
obrigatório.
Os debates em torno do tema levantam posicionamentos
diferenciados. Sendo entendida como livre escolha e por conta do caráter
limitante, de controle e sobrecarga com a qual a maternidade é vivida, as lutas
das feministas focaram mais as conquistas para o direito e o acesso á
contracepção e ao aborto, que reforçam o direito a não ter filhos como
expressão da livre escolha e libertação do poder masculino. Estas lutas
reforçam o direito a não ter filhos ou a escolher o momento em que se quer ter
filhos, valorizando a possibilidade de ser mulher sem ser mãe. Uma outra
discussão que se tornou forte a partir dos anos de 1980 focaliza a
_____________________________________________________________
83
Ver Convenio sobre La Protección de la Maternidad, 1919
http://www.ilo.org/ilolex/spanish/convdisp1.htm
84
Ver Convenio sobre La Protección de la Maternidade, nº 103, 1952.
http://www.ilo.org/ilolex/spanish/convdisp1.htm
85
Ver Convenio sobre La Protección de la Maternidad, 183, 2000
http://www.ilo.org/ilolex/spanish/convdisp1.htm
214
maternidade como fonte de poder, um poder que marca diferenças e valoriza
o saber feminino que lhe está associado (SCAVONE, 2001, p. 141). Nessa
discussão, a livre escolha continua sendo o norte, mas a relação entre ser
mulher e ser mãe aparece positivada, fortalecendo a mobilização para a
garantia dos direitos relacionados ao exercício da maternidade.
Com a introdução do conceito de gênero a partir da discussão
feminista, a partir de meados da década de 1980, a maternidade passou a ser
compreendida como um “símbolo construído histórico, cultural e
politicamente, resultado das relações de poder e dominação de um sexo
sobre o outro” (SCAVONE, 2001, p. 143). O debate em torno dos
posicionamentos feministas foi importante para as discussões dentro das
ciências sociais, pois a maternidade passou a ser analisada como
construção sócio-cultural e portadora de várias facetas em
contextos distintos, e não pela afirmação ou negação de um handicap natural
da mulher. Atualmente, tanto nas leituras feministas e quanto nas ciências
sociais, a maternidade vem sendo abordada a partir das várias simbologias
que comporta: a do ideal feminino, da opressão, do poder etc, de acordo com
o contexto em que se apresenta.
Esta discussão das abordagens da maternidade está
vinculada aos debates a ações dos movimentos sociais, especialmente o de
mulheres, em torno da promoção de direitos, entre eles os trabalhistas e a
seguridade social. A proteção á maternidade para as mulheres trabalhadoras
ainda não completou cem anos. Em 1919, no ano da sua fundação, a OIT
adotou a Convenção sobre a proteção á maternidade que previa, entre outros
aspectos, o afastamento do trabalho após o parto, sem prejuízo da
remuneração, por um período de seis semanas. Em 1952, há uma revisão e
é adotada uma nova Convenção sobre a Proteção da Maternidade
(Convenção nº 103). Dentre as mudanças, destacamos dois itens: a definição
do trabalho agrícola, ausente na Convenção de 1919, e a licença por um
período de doze semanas, dentre estas, seis obrigatoriamente após o parto.
Em 2000, a OIT ratificou uma nova Convenção (nº 183) que ampliou os
dispositivos da convenção passada: licença pelo menos de catorze semanas
e a garantia do retorno ao mesmo posto de trabalho ou equivalente com a
mesma remuneração ao final da licença maternidade.
No que se refere ás agricultoras que trabalham individualmente
ou em regime familiar na agricultura o tema é bastante recente. Nas
Convenções da OIT acima referidas não há menção explicita a qualquer tipo
de trabalho na agricultura que esteja fora das relações de assalariamento. No
Brasil, no inicio da década de 1960, no governo de João Goulart, a
proteção á maternidade para as produtoras rurais e assalariadas rurais
aparece no Estatuto do Trabalhador Rural. Para as assalariadas, há um
capitulo sobre o trabalho da mulher que prevê a proteção á maternidade antes
e depois do parto. As agricultoras familiares ou que produzem
215
individualmente são invisibilizadas como trabalhadoras e estão presentes no
Estatuto como dependentes do marido (artigo 162) para fins de benefícios
previdenciários. No artigo sobre os benefícios, há um item sobre a assistência
á maternidade, entretanto, não é possível identificar que tipo de assistência
era prestada. Além disso, as agricultoras eram excluídas da aposentadoria e
do auxilio doença.
Em 1971, foi criado o Programa de Assistência ao Trabalhador
Rural –PRORURAL que era executado pelo Fundo de Assistência ao
Trabalhador Rural – FUNRURAL. O PRORURAL abrangia benefícios
previdenciários, assistência á saúde e serviços sociais, entretanto, não havia
nenhuma referencia á maternidade.
Há registros que nos anos de 1970 as trabalhadoras rurais já
reivindicavam do FUNRURAL o auxilio gestante correspondente a seis
semanas antes e seis semanas após o parto. Entretanto, a discussão sobre a
proteção á maternidade para as agricultoras só alcançou visibilidade política
no Brasil no inicio da década de 1980 com o surgimento de grupos de
mulheres trabalhadoras rurais em várias regiões do país. Esse
tema apareceu no debate sobre o direito à Previdência que se tornou um dos
principais eixos de lutas das trabalhadoras rurais.
Em meados dos anos de 1980 foi notória a articulação política dos
diferentes segmentos do movimento de mulheres. Nos encontros nacionais e
regionais que reuniam feministas, sindicalistas, mulheres rurais e urbanas os
temas do direito á terra, proteção á maternidade e a extensão dos direitos
trabalhistas e previdenciários para as trabalhadoras do campo passaram a
ser discutidos pelo conjunto do movimento de mulheres. Durante o processo
constituinte estas reivindicações estiveram presentes nas diferentes
proposições aos constituintes, elaboradas pelas trabalhadoras rurais e pelos
diferentes segmentos do movimento de mulheres, dos movimentos
populares e do movimento sindical rural.
Entre as conquistas mais importantes alcançadas na
_____________________________________________________________
86
O artigo 2 da Convenção da OIT nº 183 assegura que a referida Convenção deverá ser aplicada a todas
as mulheres empregadas incluído as que desempenham formas atípicas de trabalho dependente.
Provavelmente há aqui a intenção de abranger as diferentes modalidades do trabalho das mulheres em
regime de produção familiar, comunitária, produção individual para o autoconsumo ou trabalho domestico
Na nossa opinião, a classificação de trabalho atípico e dependente é problemática e não contempla o
debate feminista sobre o trabalho das mulheres nas esferas produtivas e reprodutivas.
87
Para Kaizô Iwakami Beltrão et. al. (2000) a primeira medida de inclusão do trabalhador rural na
Previdência Social ocorreu em 1945, quando Getúlio Vargas assinou a Lei Orgânica dos Serviços Sociais
(Decreto-Lei 7.526, de 7 de maio de 1945) criando o Instituto de Serviços Sociais do Brasil (ISSB).
Segundo Beltrão et. al. (2000), em 1955, foi criado, Serviço Social Rural, destinado a prestação de
assistência aos segmentos rurais e que foi custeado e pelas empresas industriais urbanas. Suas
atividades tiveram início oficialmente em 1957, entretanto partir de 1961 é que passaram a ser melhor
desenvolvidas. Em 1962, o Serviço Social Rural passou a integrar a Superintendência de Política Agrária
(Supra).
88
Ver CONTAG, 2003
89
Ver CONTAG, 2003
216
Constituição de 1988 para as trabalhadoras rurais estão o direito ao título da
terra independente do estado civil, extensão dos mesmos direitos trabalhistas
dos segmentos urbanos (as) para (s)as trabalhadores (s) do campo e o direito
á Previdência. Dentre os benefícios previdenciários, é importante destacar o
acesso à aposentadoria por idade (os homens a partir dos 60 anos e as
mulheres com 55 anos) independentemente de serem chefes de família ou
não, e em igualdade de condições com o cônjuge; e o salário-maternidade. A
Constituição estabeleceu o piso de um salário mínimo para todos os
benefícios previdenciários e proporcionou a inclusão de agricultores (as),
garimpeiros e pescadores artesanais no sistema previdenciário.
Após a Constituinte, a luta das trabalhadoras rurais foi pela
regulamentação dos direitos conquistados. Em 1992 foram regulamentados
os dispositivos constitucionais relativos à aposentadoria e outros benefícios
sociais. Os (as) agricultores que trabalham de forma autônoma
individualmente ou em regime de economia familiar foram enquadrados (as)
como segurados (as) especiais para a Previdência Social. São também
considerados (as) segurados (as) especiais o cônjuge ou
companheiro, bem como filho maior de 16 (dezesseis) anos de idade, e que,
comprovadamente, trabalhem com o grupo familiar respectivo.
No que se refere ao salário-maternidade, a luta foi bastante árdua
e durou cinco anos até a aprovação do Projeto. Em 1989 foi apresentado o
primeiro Projeto de Lei para regulamentar o salário maternidade, elaborado
pelo então Deputado Federal Antônio Marangon (PT/RS). Entretanto, em
1991, o presidente Fernando Collor vetou o salário- maternidade na Lei 8.213
(que dispõe sobre a Previdência Social). A partir daí a Articulação de
Instancias de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Cinco Estados do Sul
(AIMTR-Sul) passou a mobilizar mulheres de vários regiões do pais para
derrubar o veto do Presidente Collor no Congresso Nacional. Em 1993, uma
comissão de trabalhadoras rurais foi a Brasília e descobriu que havia vários
projetos tratando do mesmo assunto na Câmara Federal. As propostas foram
transformadas num único projeto, sob a liderança da Deputada Luci Choinaki
(PT/SC), e tramitou nas comissões da Câmara Federal. Entretanto, ficou
parado na Comissão de Seguridade Social e Família, por conta
do Ministro da Previdência, Antônio Britto, que não concordava com a
proposta. O Ministro alegava que a Previdência não tinha recursos para o
pagamento do beneficio.
Começa um então novo ciclo nacional de mobilização das
trabalhadoras rurais: viagens das lideranças para diferentes estados do
Brasil para mobilizar as trabalhadoras; cartas, telegramas e fax para o
Ministro Antonio Brito, o relator do Projeto e demais parlamentares;
caravanas ao distrito federal com o objetivo de pressionar os parlamentares;
e a organização de uma equipe de mulheres em Brasília para fazer as
negociações políticas com os deputados e acompanhar a votação no
Congresso.
217
Em agosto de 1993, apesar da posição contrária do Ministro, a
Câmara de Deputados aprovou um requerimento para votação do Projeto do
Salário Maternidade para agricultoras em regime de urgência urgentíssima.
O Projeto foi aprovado, nas palavras do Movimento de Mulheres
Camponesas-MMC, “graças a mobilização das mulheres junto ao Presidente
da Câmara e aos líderes partidários, além da ocupação das galerias e da
panfletagem feita no Congresso, garantiu a aprovação do Projeto que foi
enviado ao Senado” (MMM, 2004, p. 14).
No final de 1993, as mulheres conseguiram uma grande vitória: o
Presidente Itamar Franco editou uma medida provisória alterando alguns
artigos da Lei 8.213 que contrariavam o Projeto do Salário Maternidade. No
inicio de 1994, o Projeto retornou à Câmara dos Deputados com algumas
emendas feitas pelo Senado. No dia 25 de março de 1994, finalmente, o
Presidente da República sancionou a lei que criou o Salário Maternidade para
a trabalhadoras rurais (LEI No 8.861, DE 25 DE MARÇO DE 1994). A
regulamentação junto a Previdência ocorreu no mesmo ano,
porém a autorização do pagamento do benefício só ocorreu em 1997.
Para terem acesso ao beneficio as mulheres têm de apresentar
documentos que comprovem o trabalho na agricultura. São documentos
pessoais e documentos que atestem o exercício de atividades agropecuárias
de forma individual ou em regime de produção familiar. Além disso, a
agricultora para usufruir do beneficio tem que comprovar que trabalhou na
agricultura por no mínimo 10 (dez) meses antes do parto.
_____________________________________________________________
90
Ver BRASIL, 1987
91
A “Campanha constituinte sem mulher fica pela metade” promovida pelo Conselho Nacional dos Direitos
da Mulher – CNDM conseguiu mobilizar vários grupos e movimentos para inscrever na nova Constituição
as reivindicações das mulheres. Entre outros documentos, ver a Carta das Mulheres aos Constituintes
de 1987 que contém as principais demandas do movimento de mulheres para a assembléia constituinte.
Ver também as conclusões do I Encontro Nacional A Mulher e as Leis Trabalhistas, promovido em 1987,
pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher – CNDM, com o apoio dos sindicatos, das federações e
confederações de trabalhadores. O documento foi elaborado em forma de proposição aos constituintes e
contém uma sessão referente às trabalhadoras rurais. Um outro documento importante é a 'Uma carta aos
constituintes', elaborada pelas trabalhadoras rurais no 1º Seminário Nacional da Trabalhadora Rural, em
julho de 1988.
92
Na Lei 8.213 de 24 de julho que “ dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras
providências” os (as) agricultores que produzem individualmente ou em regime de produção familiar foram
enquadrados como segurados especiais da Previdência Social . Com a Lei nº 11.718, de 2008, novas
categorias rurais foram incorporadas e algumas reivindicações dos trabalhadores rurais foram incluídas na
legislação. Anita Brumer (2000) apresenta três diferenças do sistema previdenciário urbano para o rural:a
primeira é que, diferentes dos setores assalariados a contribuição do segurado especial não é sobre os
salários ou ganhos recebidos. A forma de contribuição consiste numa percentagem sobre o valor da
produção comercializada e o recolhimento fica a cargo do comprador dos produtos agropecuários ou
extrativistas. A segunda diferença é a idade-limite, que é de 55 anos para as mulheres e 60 nos para os
homens. Para os trabalhadores urbanos é de 60 e 65 respectivamente. Por último, diferentemente dos
urbanos que tem que garantir um tempo mínimo de contribuição, os segurados especiais têm que
comprovar o tempo de atividade de trabalho por meio de inúmeros documentos sobre a propriedade ou
uso da terra, documentos pessoais e outros que explicitem a atividade rural pelo tempo requerido pela
legislação.
218
O beneficio do salário-maternidade é a concessão de 1 (um)
salário mínimo, durante 120 (cento e vinte) dias. A segurada poderá requerer
o salário-maternidade 28 (vinte e oito) dias antes do parto e até 90 (noventa)
dias após o nascimento da criança. Como a condição de segurado especial é
a partir dos 16 anos e o tempo mínimo de carência é de 10 (dez meses), a
agricultora para requerer o beneficio tem que ter mais de 16 anos e dez
meses, sendo o parto o evento que define a contagem do tempo requerido
pela legislação.
Assim, o gozo do beneficio pelas trabalhadoras rurais tem apenas
11 anos de existência. Entretanto, após a conquista desse direito
praticamente o tema desapareceu da agenda política do movimento de
mulheres trabalhadoras rurais. Por exemplo, se analisarmos as
reivindicações das três edições (2000; 2003 e 2007) da Marcha das
Margaridas perceberemos que em todas elas há reivindicações
previdenciárias. Entretanto, o tema do salário-maternidade
apareceu na primeira marcha em 2000 e na terceira em 2007. Nesta ultima,
há apenas uma reivindicação sobre o tema, que exige o pagamento do
beneficio corrigido independente da data do requerimento.
Um outro exemplo, é o Movimento de Mulheres Camponesas –
MMC. Sabemos que muitas mulheres do MMC participaram ativamente das
lutas e mobilizações pelo salário-maternidade nos anos de 1990 e há no site
do Movimento um link especifico sobre a previdência social com vários
documentos que mostram a sua posição política e as lutas por direitos
previdenciários. Entretanto, nos documentos disponíveis sobre a Previdência
Social não há nenhuma menção ao salário-maternidade.
O último exemplo que poderemos apontar é a pesquisa que
Rosineide Cordeiro (2006) coordenou sobre as reivindicações do movimento
sindical rural por salário-maternidade. Foram analisadas as pautas dos
congressos da Confederação dos Trabalhadores da Agricultura - CONTAG e
do Grito da Terra Brasil no período de 1991 a 2005. Há seis reivindicações
que tratam do salário-maternidade, dentre elas, uma sobre a ratificação da
Convenção 103 da OIT. Somente uma das reivindicações exige a garantia do
salário-maternidade ás mulheres que se tornam mães aos 16 anos,
questionando os 10 meses de carência que são requeridos de acordo com as
normas vigentes.
Contudo, o que é mais surpreendente nos três exemplos
apresentados acima é a não existência de reivindicações pela mudança da
idade mínima para a concessão do beneficio. Sabemos que a Constituição
_____________________________________________________________
93
As informações apresentadas a seguir estão baseadas na cartilha Nenhuma Trabalhadora Rural Sem
Documentos (2004) do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC). Também foram utilizadas
correspondências da Articulação de Instancias de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Cinco Estados do
Sul (AIMTR-Sul) enviada para as mulheres.
219
Federal (art. 7º. XVIII) proíbe o trabalho para menores de 16 anos, salvo na
condição de aprendiz, a partir do 14 anos. Entretanto, o próprio Estatuto da
Criança e do Adolescente –ECA (Art. 65) estabelece que ao aprendiz, maior
de quatorze anos, são assegurados os direitos trabalhistas e
previdenciários.
Temos conhecimento que as integrantes das diferentes
expressões do movimento de mulheres rurais e do movimento sindical rural
desenvolvem várias ações nos sítios, comunidades e vilas rurais para
garantir o acesso das mulheres ao salário-maternidade: acompanham as
mulheres por ocasião da solicitação do beneficio; fazem reuniões e
socializam informações; pressionam para que as mulheres tenham
documentos civis e de propriedade da terra; e participam de lutas mais gerais
por mudanças na Previdência Social, entretanto a quase completa ausência
de reivindicações de mudança pela idade mínima não favorece a ampliação
do acesso ao benefício.
As jovens mães agricultoras são penalizadas de duas formas: as
que têm 14 anos não são consideradas aprendizes, mesmo quando
trabalham nessa condição; segundo, ter 16 anos completos não é condição
suficiente para ter acesso ao beneficio. É preciso adicionar o tempo de
carência de 10 meses, ou seja, a concessão do salário-maternidade de fato é
para quem tem mais de 16 anos e 10 meses.
As lutas das trabalhadoras rurais, nas décadas de 80 e 90 do
século passado, expressam a ênfase na proteção à maternidade como um
direito, denunciando a falta de assistência dada a estas mulheres à gravidez,
parto e primeiros meses de cuidados com o bebê, fortalecendo a luta por
direitos reprodutivos para mulheres de diferentes posições sociais no Brasil. A
discussão se dá em torno da garantia do exercício da maternidade,
evidenciando a carência de recursos a que as mulheres mais pobres estão
submetidas e visibiliza a maternidade como um direito reprodutivo pelo qual
ainda é necessário muita luta, especialmente no que tange às mulheres
jovens e, mais ainda, aquelas que são agricultoras familiares. O debate
sobre a livre escolha não parece reforçar o discurso e as pautas nacionais das
agricultoras.
A aquisição deste direito foi um avanço, entretanto não modificou
substancialmente a divisão sexual do trabalho e a desigualdade de gênero na
área rural. Some-se a isto ao pouco questionamento do estereótipo da
mulher-mãe nas bandeiras dos movimentos rurais. É preciso,
portanto, aliar a luta pelo salário maternidade a uma discussão sobre o
significado da maternidade para a jovem agricultora familiar e a análise das
possibilidades de empoderamento que esta discussão pode suscitar. Dada a
amplitude desta discussão, que não pretendemos esgotar, e a necessidade
de que ela ocorra em fóruns ampliados de debate, iremos refletir sobre uma
das questões que consideramos importante: a idade em que a gravidez
ocorre.
220
1 QUAL A IDADE PARA ENGRAVIDAR?
Como vimos, é surpreendente a ausência de debate
político nos movimentos de mulheres trabalhadoras rurais acerca da idade
mínima em que se pode obter este benefício, considerando a grande
mobilização sobre o direito ao salário maternidade, realizada por estes
mesmos movimentos em décadas passadas.
A discussão política sobre o direto ao salário-maternidade e a
idade em que se adquire este direito, incorpora padrões da legislação
trabalhista e da previdência que parecem não considerar a vida das mulheres
de carne e osso, que engravidam em diferentes idades e em contextos
específicos.
A literatura sobre saúde sexual e saúde reprodutiva vem
abordando as questões relacionadas a esta faixa de idade a partir de duas
definições: adolescência e juventude que são marcadas por recortes etários
distintos e possuem significados igualmente distintos. A adolescência
abrange pessoas entre 10 e 20 anos e a juventude, pessoas entre 15 e 24
anos. O sentido etário, mais ligado ao termo adolescência, remete ao plano
individual e possui significados negativos, como dependência,
irresponsabilidade, dificuldades emocionais e impulsividade. O
sentido geracional, mais ligado ao termo juventude, remete a um significado
mais coletivo, relacionado ao segmento populacional de uma sociedade, com
significados positivados, como independência, criatividade e
responsabilidade (VILLELA; DORETO, 2006).
Assim, a própria literatura parece espelhar os desencontros da
sociedade, em que estamos sempre preocupados em defender os direitos
das jovens, pela ausência de serviços e instrumentos públicos que
possibilitem o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos de modo
autônomo, ou em justificar porque os direitos sexuais e reprodutivos das
adolescentes devem ser observados de acordo com determinadas condições
que impõem critérios limitantes ao exercício de quaisquer destes direitos.
De fato, os dados do DATASUS/MS de 1999, evidenciam que o
índice de natalidade e de fecundidade geral no país está em declínio,
_____________________________________________________________
94
Os documentos pessoais são: número de Identificação do Trabalhador – NIT (PIS/PASEP) ou número de
inscrição do Contribuinte Individual/Trabalhador Rural; atestado Médico original ou original e cópia da
Certidão de Nascimento da criança; documento de Identificação (Carteira de Identidade, Carteira de
Trabalho e Previdência Social - CTPS ou outro qualquer) da segurada; cópia e original da Certidão de
Casamento, se for o caso, quando houver divergência no nome da requerente; Cadastro de Pessoa Física
- CPF da segurada. Para outras informações ver
www.previdenciasocial.gov.br/pg_secundarias/beneficios_10.asp.
95
Os documentos sobre o exercício da atividade rural exigidos pela Previdência podem ser caracterizados
em três tipos: 1.Propriedade ou posse da terra: Comprovante de Cadastro do Instituto Territorial (ITR), ou
Certificado de Cadastro do Imóvel Rural (CCIR), ou Autorização de Ocupação Temporária fornecida pelo
do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), ou Comprovante de Cadastro do INCRA;
2. Uso da terra: contrato de arrendamento, parceria ou comodato rural registrado ou com reconhecida firma
em cartório à época do exercício da atividade; 3. Comercialização de produtos: Blocos de Notas do
produtor rural e/ou Notas Fiscais de venda realizada por produtor rural.
221
enquanto na população jovem está aumentando. Há uma tendência
crescente dessas taxas nos três grupos etários considerados (10–14, 15–19
e 20–24). Essa tendência é bem mais marcante justamente nos grupos de
menor idade, de 10 a 14 e de 15 a 19 anos, enquanto nas jovens de 20 a 24
anos o aumento verificado foi menor, por isso tem chamado a atenção dos
pesquisadores e profissionais de saúde, ampliando o interesse por estudos
sobre a gravidez na adolescência.
A literatura de inspiração biomédica e demográfica (BEMFAM,
1999a e b) preocupa-se muito com a 'precocidade' da primeira relação sexual
ou o menor grau de escolaridade, pois eles diminuem a chance de uso dos
contraceptivos e levam a existência da gravidez na adolescência, também
chamada de gravidez precoce. É curioso como a luta por um direito, como a
luta feminista por direito reprodutivo à contracepção, que abre o debate sobre
a vida privada na sociedade e consegue inspirar políticas de saúde, pode
sofrer uma leitura tão peculiar por parte do saber biomédico de modo a
reforçar o vínculo entre contracepção e controle e, também, entre
maternidade e biologia (a velha afirmação de um handicap natural!).
Na última década, entretanto, vários pesquisadores têm se
dedicado a compreender a gravidez na adolescência a partir do
reconhecimento da pluralidade de adolescências e de percursos para a
gravidez, da particularidade das concepções culturalmente oferecidas sobre
o fenômeno, dos determinantes sociais e econômicos, dentre eles o sistema
de gênero (CABRAL, 2002 e 2003; LONGO, 2002; CASTRO, ABRAMOWAY
e SILVA, 2004; ALMEIDA, et al, 2003; ALMEIDA, 2002; AQUINO et al, 2003;
HEILBORN; GRAVAD, 2005; HEILBORN et al, 2006; ROHDEN; GRAVAD,
2005; PIROTTA, 2003; SCOTT, QUADROS; LONGHI, 2002).
O trabalho de Almeida (2002) evidencia que as repercussões da
gravidez na adolescência na vida escolar e profissional dos (as) jovens não
são tão devastadoras quanto parecem. Moças que haviam realizado o pré-
natal em unidades básicas de saúde de Botucatu (SP), não se sentiram
prejudicadas em sua vida escolar, uma vez que a gravidez só aparece como
um motivo de abandono definitivo da escola quando esta não faz mais parte
do projeto de vida das adolescentes, não sendo considerada um empecilho à
continuidade dos estudos. Também não houve modificação do vínculo
empregatício por conta da gestação, para a maioria delas (ALMEIDA, 2002,
p. 202).
A comparação entre jovens urbanos e rurais (QUADROS, 2007)
reforçou a idéia de que, embora a necessidade de perceber a pluralidade de
adolescências ou juventudes seja consenso, no contexto de diferenças que é
o Brasil contemporâneo, há poucas pesquisas entre populações específicas
considerando-se os recortes de raças/etnias, orientações sexuais, classes,
religiões, regiões, dentre outros demarcadores. Vale ressaltar que a maioria
dos estudos foi realizada entre populações urbanas, poucos focaram a
constituição da sexualidade entre grupos rurais ou do interior do país
222
(ALVES, 2003; SILVA, 2002; RIBEIRO, 2003; QUADROS, 2007).
Marion Quadros (2007), em um estudo comparativo entre jovens
urbanos e rurais evidencia que desigualdades de gênero e entre
gerações são fundamentais para entender o comportamento dos/das jovens
perante a gravidez e a contracepção. Por exemplo, o vínculo entre ser moça
e virgem está presente nas duas localidades de modo diferenciado. Na área
rural, a virgindade da moça é mais valorizada e sua sexualidade é mais
vigiada. No bairro da periferia urbana investigado, essas identificações
resvalam para outras, como ter mais cuidado com a saúde e ceder mais nas
relações de namoro. Tanto na área urbana quanto na rural há uma
vinculação entre ser uma moça inexperiente nos prazeres do sexo e ser uma
moça 'boa para casar'.
A gravidez na adolescência é uma das temáticas que possuem
um recorte de gênero e que merece distinções quando tratamos de juventude
rural. Segundo Eliza Guaraná Castro (2006), apesar de na área rural o
controle ser maior sobre as mulheres, a gravidez antes do casamento é
comum nesse ambiente. Ao estudar a construção das identidades dos(as)
jovens de origem rural, Vanda Aparecida Silva (2006) destacou que a
sexualidade é marcada e demarcada pelo contexto cultural. A gravidez da
jovem solteira e o casamento podem ser formas de libertação da autoridade
paterna. Para as moças da área rural, uma gravidez representa uma
estratégia pré-matrimonial, seja a realização do desejo da maternidade, seja
outra forma de inserção social.
Nos estudos sobre a juventude rural, a idade está socialmente
circunscrita, tanto quanto a valorização da maternidade. A gravidez aparece
como um marcador de passagem para a vida adulta, no qual a jovem se
reconhece e é reconhecida como adulta a partir da realização da
maternidade, o que torna a situação paradoxal, uma vez que a gravidez e a
maternidade servem como formas de controle do corpo e da sexualidade das
mulheres. Controle e vigilância, reconhecimento e libertação do julgo da
família, podem ser identificados como dois lados de uma mesma moeda.
A revisão da literatura sobre jovens, saúde sexual e reprodutiva
sugere, portanto, a consideração dos contextos da atividade
sexual (práticas) em interface com as identidades socioculturais variadas e
dos significados que remetam à saúde sexual e reprodutiva de jovens, uma
vez que a gravidez de uma jovem de 15, 16 ou 17 anos, pode estar
totalmente condizente com as expectativas que ela própria e a comunidade
em que vive esperam como realização para estas idades (BUTTO E SILVA,
1999; SILVA, 2006; SCOTT, 2001 ; ALMEIDA, 2002). Isso reforça o nosso
questionamento sobre o critério idade mínima para se adquirir o benefício,
uma vez que a gravidez pode ocorrer antes dos 16 anos e estar exatamente
simbolizando a passagem para a vida adulta.
Por outro lado, quando causa expectativas negativas na própria
223
jovem, na família ou na comunidade, a gravidez pode ocorrer numa situação
em que ela fica mais vulnerável pela falta de aceitação familiar ou do próprio
parceiro, o que leva a maior necessidade de assistência e benefícios públicos
que possibilitem a garantia dos diretos sexuais e reprodutivos.
3 AS JOVENS MÃES AGRICULTORAS DO SERTÃO DE PERNAMBUCO
Afinal, o que dizem as próprias jovens? Para conhecer um pouco
mais da situação das jovens mães agricultoras familiares, foram realizadas
cinco entrevistas no município de Santa Cruz da Baixa Verde . As
entrevistadas, à época que tiveram o primeiro filho, encontravam-se na faixa
etária de 13 a 15 anos de idade, motivo pelo qual foram informadas da
impossibilidade de solicitarem o benefício.
Das cinco jovens, apenas uma está separada do pai da criança, e
mesmo assim não retornou à casa dos pais, (seus vizinhos de sítio),
residindo só com o filho. As outras quatro residem com os filhos e o
companheiro, e apenas uma afirmou que saiu da casa dos pais antes da
primeira gravidez.
No que se refere aos estudos, todas abandonaram as aulas
durante o início da primeira gestação e apenas uma retomou. Quanto ao
trabalho, apontamos que a invisibilização do trabalho feminino na área rural
muitas vezes impede que as próprias mulheres se reconheçam
como agricultoras, mesmo que tenham trabalhado na roça desde criança. Ao
perguntarmos se trabalhavam, algumas jovens responderam que não: “só
de roça”. Uma chegou a dizer que ia à roça de vez em quando e que criava
galinhas em casa. Provavelmente por não considerarem como trabalho as
inúmeras atividades produtivas realizadas, as jovens rurais têm dificuldades
de se reconhecerem como portadoras de direitos, conseqüentemente, não
demandam coletivamente mudanças na legislação ou na agenda do
movimento sindical rural e do movimento de mulheres.
A respeito da gravidez, as jovens afirmaram que não planejaram
o primeiro filho. Todas relataram que, ao descobrir a gravidez, ficaram felizes,
mesmo que esse sentimento viesse acompanhado de um pouco de susto.
Sobre a reação do companheiro, a resposta ocorreu sempre no sentido de
aceitação da criança. A reação dos pais das adolescentes foi relatada como
tranqüila, e a tentativa da família é que o casal fique junto e não se cogite a
idéia de aborto. Esses dados apontam para a idéia da gravidez como
passagem para a vida adulta, que não parece se constituir num problema
nem para as jovens nem para as suas famílias. O problema não está na idade
_____________________________________________________________
96
Sabemos que algumas jovens com apoio do sindicato de trabalhadores rurais ou do movimento de
mulheres têm entrado com processo judicial para garantir o acesso ao beneficio aos 14 anos.
Infelizmente, são experiências isoladas que não têm repercutido na ação política mais ampla
97
Vale salientar, que não estamos considerando nesta discussão a gravidez que é resultante de violência
sexual. Este tipo de violência atinge mulheres com diferentes idades, é cometida por estranhos,
conhecidos e parentes e ocorre nas áreas rurais e urbanas
224
em que a gravidez acontece, mas sim quando as jovens que engravidam não
têm um companheiro que assuma a união conjugal e a paternidade.
Nenhuma entrevistada referiu o uso de contraceptivos antes da
primeira gestação, e apenas uma afirmou que atualmente não utiliza nenhum
método para não engravidar. Algumas disseram que, após engravidar,
receberam de médicos e enfermeiros orientação sobre como evitar filhos e
doenças sexualmente transmissíveis. Só uma alegou que recebeu
informação na escola, mas mesmo assim disse que não entendeu muito bem
na época do que se tratava. Estes dados realçam a falta de assistência à
saude sexual das jovens, uma dificuldade comum para esta faixa etária, seja
no sistema de saúde, na escola ou na família (QUADROS, 2007).
As jovens relataram que durante todas as gestações foram
acompanhadas no atendimento pré-natal, algumas no PSF da Vila Jatiúca,
outras em Serra Talhada, evidenciando o viés materno-infantil da assistência
básica em saúde (SCOTT; QUADROS, 2008). Além dos enjôos nos primeiros
meses em algumas gestações, a dificuldade apresentada durante a gravidez
foi a paralisação dos estudos, que pode ser mais um indicador da passagem
para a vida adulta do que um sinal de prejuízo para as jovens grávidas.
Também há que se considerar o ensino oferecido nas escolas, muitas vezes
desestimulante, que pode não oferecer atrativos suficientes para que as
jovens decidam continuar estudando.
Todas as entrevistadas chegaram a ir ao sindicato na tentativa de
requerer o salário-maternidade. Apenas uma delas teve gastos com xerox de
toda a documentação, mas durante a abertura do processo foi informada de
que não podia solicitar o benefício por conta da idade. Uma das jovens alegou
que um funcionário do INSS (mencionado por mais de uma entrevistada) não
deferiu o salário-maternidade na sua segunda gravidez, mesmo ela tendo
mais de dezesseis anos. O indeferimento teria sido motivado por ela não ter
“respondido direito” às perguntas feitas por ele.
È um momento de muita tensão para as agricultoras quando elas
vão ao INSS formalizar a solicitação do beneficio. É quando o(a)
funcionário(a) do órgão preenche os dados da agricultora, recebe os
documentos e averigua se eles estão de acordo com as exigências legais. Há
uma série de perguntas sobre o trabalho, o que plantam, como e quanto
plantam e quem são os(as) vizinhos(as). As agricultoras têm medo de não
saber responder aos questionamentos e se sentem intimadas e
constrangidas com as perguntas. Parece que há um ambiente pouco
acolhedor, hostil e que causa medo às mulheres. Elas sentem que alguns
funcionários fazem perguntas à procura de alguma incoerência ou
contradição entre o que foi apresentado nos documentos e a entrevista. Além
disso, geralmente, os (as) agricultores(as) não conseguem ter o
domínio das exigências legais para ter acesso à Previdência. As lideranças
sindicais possuem maior número de informações e procuram socializá-las
225
nas reuniões, nas assembléias e nos atendimentos. Porém, sempre há
incertezas e dúvidas acerca dos procedimentos legais.
As jovens confirmaram que possuíam alguns documentos
comprovando a atividade rural durante a primeira gravidez, a saber:
comprovantes de cursos destinados a trabalhadores(as) rurais, título,
documento do sindicato etc. Disseram ter ficado abatidas ao receberem a
notícia de que não teriam acesso ao salário-maternidade . Alegaram que o
benefício serviria para a compra de terra, construção da casa, além de
complementar os custos com comida e produtos para o bebê.
Os depoimentos das jovens mães mostram que o direito á
proteção a maternidade não abrange todas as mulheres que trabalham e
tampouco incorpora as necessidades especificas das jovens agricultoras. O
critério idade alija essas jovens de um direito que é usufruído pelas demais
agricultoras e deixa exclusivamente nas mãos das jovens e de suas famílias a
assistência á maternidade.
4 A POSIÇÃO DAS ATIVISTAS DO MOVIMENTO DE MULHERES E DO
MOVIMENTO SINDICAL
Como não encontramos forte presença das reivindicações do
salário- maternidade nas lutas e pautas atuais dos movimentos das mulheres
trabalhadoras rurais, resolvemos ressaltar as opiniões de ativistas a esse
respeito.
As ativistas apresentam diversos posicionamentos sobre o não-
acesso ao salário-maternidade por parte das jovens que engravidam antes
do tempo previsto legalmente. Ao contrário de um pensamento único ou
homogêneo sobre o assunto, as posições ora divergem, ora encontram um
eixo comum; algumas têm um cunho progressista, outras possuem base
bastante legalista. Nesta sessão direcionamos a análise para as três
posições que foram mais recorrentes nas entrevistas com as
ativistas do movimento sindical rural e do Movimento de Mulheres
Trabalhadoras Rurais do Sertão de Pernambuco.
As ativistas admitem que o critério idade impede o acesso dessas
jovens ao salário-maternidade, mesmo que sejam agricultoras e tenham a
posse de todos os documentos exigidos:
A menina tinha prova de 9 meses e 28 dias antes do nascimento da
criança. Por causa de dois dias o servidor negou o benefício, e ela tinha
antes sim uma prova de indício que era a matrícula na escola. Então
comprovava que ela estava na roça e ele não aceitou e indeferiu o
benefício (...) se ela não levar uma prova de 10 meses e 1 dia é indeferido,
isso é um absurdo pra gente (Cândida ).
E sobre a idade a gente sabe que pra ter direito, até hoje, a mãe tem que
ter completo 16 anos, 10 meses e 1 dia para ter direito ao benefício do
salário-maternidade. Quem não tem essa idade não tem acesso. Tem
caso que a gente tem que contar data de nascimento da mãe, data de
226
nascimento da criança para verificar se realmente a mãe tinha 16 anos e
10 meses e um dia pra ter acesso. Às vezes por causa de uma hora pode
até ter ou não ter direito (Verônica).
Diferentemente das outras mães agricultoras, as jovens têm
de lidar com a contagem do tempo de forma mais minuciosa: a própria idade,
dia e hora do nascimento do bebê se tornam fundamentais nesse cálculo.
Como já falamos anteriormente, identificamos nas entrevistas
três posições a respeito do acesso das jovens ao salário- maternidade: a
primeira faz uma relação entre o índice de mulheres grávidas e o salário-
maternidade. Aparece o argumento de que, se as menores de 16 tiverem
acesso ao benefício, vai aumentar o número de meninas grávidas porque
elas vão engravidar para ter o salário-maternidade. Aqui a gravidez é algo
indesejável:
se abrir espaço para adolescentes menores de 16 anos, de 18 anos (..) 16
né?... terem o acesso ao salário-maternidade, aí vai aumentar cada vez
mais, sei lá, vai aumentar aquela gravidez indesejada porque muitas
adolescentes elas pensam no dinheiro. Elas não pensam como ali vão
criar aquela criança. Eu não sou a favor em de ter (assim) essa idade para
poder ter o acesso ao salário-maternidade (Mônica).
Elas parecem esquecer que as próprias avós e bisavós
engravidaram muito antes dessa faixa etária. Ser mãe antes dos 16 anos
aparece como sinal de falta de responsabilidade presente tanto no ato de
engravidar quanto nos cuidados com os bebês.Esta posição está próxima a
daqueles que classificam esta idade como adolescência e potencializam a
noção de irresponsabilidade com a de oportunismo. O atendimento básico
do Sistema Único de Saúde, por meio do Programa de Saúde da Família, por
exemplo, colabora para a institucionalização desta visão na medida em que
classifica como gravidez de risco aquela de toda e qualquer adolescente,
mesmo que esta apresente perfeita condição de saúde. É certo que esta
visão institucional parte do argumento da “falta de maturação do organismo
da adolescente”, mas o efeito deste argumento invade a vida das
adolescentes como um todo, e não apenas o seu organismo biológico,
acabando por corroborar a visão de que a adolescente não está preparada
para assumir esta responsabilidade. Este argumento se fortalece na medida
em que, de um lado, a gravidez de risco recebe um atendimento especial e a
própria maneira de identificá-las como grávidas de risco invade as
classificações comunitárias a respeito da gravidez e, de outro, porque vem
acompanhada da visão, geralmente mais médica do que comunitária, de que
a adolescente, ao engravidar , estragou sua vida e seu futuro ( Almeida, 2002;
Scott, Quadros e Longhi, 2002; Quadros, 2007).
a segunda posição lembra que, de acordo com a legislação, crianças e
adolescentes não podem trabalhar. Entretanto, na área rural as jovens
trabalham e casam com pouca idade:
227
Essa é uma questão muito complicada, porque se a gente vai pela lei que
fala que criança e adolescente não podem ter uma profissão. Se a gente
vai observar essa parte, a gente acha que tá certo. Mas, a gente sabe que
a realidade rural não é essa. [...] As jovens casam muito cedo ou não se
casam e têm relação muito cedo e têm filhos muito cedo na área rural e por
isso perdem o direito da segurada especial. Porque já tão complicado
para nós rurais ter nossas documentações em dias e muito menos na
adolescência. Acho que tem que ter uma visão mais aperfeiçoada, mais
qualificada pra as adolescentes rurais. Temos que ter especificidades e aí
começar a conceder também porque elas são trabalhadoras, a gente
sabe que toda trabalhadora rural ela não começa a ser trabalhadora rural
a partir dos 16 anos porque a nossa economia não permite. Elas
começam a ir para a roça desde criança, senão não dá pra sustentar a
casa, temos que ajudar os pais, temos que está na limpa da roça, na
colheita porque todo mundo precisa contribuir para que a gente consiga o
sustento em casa (Rafaela).
Este depoimento expressa o paradoxo entre as lutas contra o
trabalho infantil e os modos de vidas nos quais o próprio trabalho dá
significado a uma parte considerável das relações de gênero e geração. Se a
idade para o trabalho compreende a infância, provavelmente, isso termina
por influenciar na idade em que as jovens são consideradas aptas para a
gravidez e inclui muitas jovens abaixo de 16 anos. As mulheres sabem que
integram um tipo de economia familiar baseada no trabalho de homens e
mulheres em diferentes faixas etárias e ao mesmo tempo são participes das
lutas que condenam o trabalho infantil. Provavelmente, resida aqui o grande
temor das mulheres: a defesa da inclusão das jovens agricultoras ao sistema
previdenciário poderá ser confundida com aceitação do trabalho de crianças
e adolescentes a terceira posição é favorável ao salário-maternidade para as
jovens. Entretanto, o argumento é baseado em dois elementos: as mulheres
jovens são casadas e na agricultura familiar todos começam a trabalhar com
pouca idade. Essa posição é a única que considera que a exclusão das
mulheres jovens ao salário-maternidade é uma injustiça:
Na maioria dos casos que eu tenho conhecimento lá nesse ano, as
mulheres que vão procurar elas são casadas, tem casamento civil que tá
comprovando sua atividade rural, elas têm alguns documentos e elas não
podem por conta da idade, só não têm a idade. Muitas faltam coisa de dois
meses, seis meses e eu acho que isso é uma injustiça, porque elas,
trabalhadoras, nós mulheres agricultoras, a gente não tem uma idade
determinada pra ir pra roça. A gente começa a trabalhar desde os oito
anos, já começa a acompanhar a mãe, seja pra deixar o almoço, seja pra
arrancar um pé de mato, seja cuidar dos bichos, então não tem idade pra
gente começar a trabalhar (Paula).
228
Entretanto, a definição da injustiça passa pela situação conjugal
da mulher, que parece tão importante quanto a pouca idade para o
reconhecimento deste direito. Maternidade e conjugalidade aparecem
intrinsecamente deixando de fora as jovens agricultoras que não são casadas
ou aquelas que não têm um companheiro fixo.
O que foi comum nas três posições analisadas é a ausência de
uma reflexão sobre as significações da gravidez e maternidade para as
jovens agricultoras. Não há referência nos discursos das ativistas ao debate
feminista sobre o direito á livre maternidade, independentemente do estado
civil. Também não há qualquer menção aos desejos de autonomia e de
independência por parte das jovens que aparecem nos discursos das
ativistas como desprovidas de maturidade e responsabilidade. Além disso,
quando as mulheres consideram que é injusto o critério de faixa-etária
terminam por associar maternidade à conjugalidade. Por fim, por conta das
lutas contra o trabalho das crianças e adolescente as mulheres ficam presas
ao critério idade. Provavelmente, elas têm medo que ao reivindicarem a
inclusão das jovens agricultoras ao salário-maternidade sejam mal
compreendidas e acusadas de coniventes com o trabalho infanto-juvenil na
agricultura.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O critério faixa-etária utilizado para a concessão do salário-
maternidade impede que as jovens agricultoras, com menos de 16 anos,
tenham acesso aos direitos previdenciários e cria obstáculos
para que elas possam usufruir da proteção á maternidade de forma ampla.
Não há políticas públicas no âmbito do município para as mães jovens; elas
não têm acesso ao salário-maternidade e nem encontram apoio nos
movimentos sociais rurais.
O salário-maternidade para as seguradas especiais foi fruto das
lutas e conquistas das diferentes expressões do movimento de mulheres
rurais nas décadas de 80 e 90 do século passando. Entretanto, a revisão do
critério de faixa etária para a solicitação do salário-maternidade ainda não
constitui pauta na agenda de lutas e reivindicações das agricultoras e nem do
movimento sindical rural. A discussão e o aprofundamento desta temática
são os primeiros passos para a ampliação do direito ao salário-maternidade
das jovens que são excluídas do acesso ao referido benefício. Além disso, é
importante considerar que esta luta está inserida numa discussão mais
ampla sobre autonomia e direto à livre escolha das mulheres rurais.
Se o critério faixa-etária utilizado pelo INSS para a concessão do
salário-maternidade não condiz com a realidade das jovens agricultoras
familiares, os argumentos das ativistas evidenciam o quanto a discussão
sobre a maternidade parece guiada mais por mecanismos de controle do
_____________________________________________________________
98
Estas informações foram baseadas em SILVA e CORDEIRO (2008).
229
corpo e da sexualidade das jovens do que por uma discussão sobre direitos e
cidadania. Nos discursos das ativistas é salientado a existência de um modo
de vida próprio, em que o trabalho e a maternidade estão associados à pouca
idade, entretanto, estão ausentes as questões da autonomia e
independência e do direito á proteção á maternidade independentemente do
estado civil e de idade.
_____________________________________________________________
99
Numa entrevista para a pesquisa essa posição também é assumida pela chefe do setor de benefícios do
INSS em Serra Talhada: “muitas estão engravidando para ter o salário-maternidade (...). Se fosse
permitido solicitar abaixo de 16 anos, elas teriam filhos com 10 ou 12 anos (Chefe de setor de benefícios do
INSS).
230
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235
JOVENS FEMINISTAS, QUESTÕES DE GÊNERO E GERAÇÃO:
entrelaçamentos de agendas?
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho procura articular como se apresentam as
demandas e agendas da juventude no âmbito do movimento feminista
Brasileiro, a partir da análise de discursos de representantes do movimento
de jovens feministas nacional, entre os anos de 2005 e 2006. Tendo em vista
que o mesmo encontra-se em fase de consolidação nas arenas de
representação e debate das agendas e questões pertinentes ao movimento
feminista e de mulheres no Brasil, estudar seu impacto dentro do movimento
como um todo pode auxiliar a entender algumas das relações entre gênero e
juventude. Além disso,
[...] a articulação entre Estudos sobre Juventude e Estudos Feministas
apresenta uma importante contribuição para a desconstrução de algumas
concepções vigentes sobre juventude, assim como para uma maior
compreensão dos contextos sociais/relacionais a partir dos quais as/os
jovens elaboram suas visões de mundo e constroem suas identidades (
WELLER, 2005, p. 112).
Uma aproximação entre feministas de distintas gerações e maior
simpatia dos estudos feministas para com as culturas juvenis
contemporâneas torna-se importante não somente para uma discussão dos
rumos que o feminismo irá tomar nesse início de século, mas também para
uma mudança da perspectiva de análise e compreensão sobre o que vem a
ser a condição juvenil. A crítica mais contundente (Weller, 2005) é a de que as
pesquisas sobre juventude continuam operando com definições há muito
tempo criticadas nos estudos sobre gênero e relações raciais, ou seja, com
uma concepção de juventude como categoria pré-social, caracterizada pela
crise biológica e emocional vivida no processo de transição para a vida adulta.
Entretanto, torna-se premente trabalhar com a noção teórico-metodológica
de que para compreender as juventudes, é necessário acessar as narrativas
dos próprios grupos sociais, de forma a entender como ela é vivida de fato
pelos/as adolescentes e jovens. Pesquisas que articulam gênero, direitos
sexuais e reprodutivos e juventude, vem sendo realizadas por diversos
núcleos de pesquisa nas regiões sul, sudeste e nordeste do Brasil (TONELI et
al, 2006, QUADROS; LONGUI, 2002). Entretanto, a crítica que Weller (2005)
aponta continua como importante dado, se levarmos em consideração os
estudos sobre juventude em sua interface com políticas e com movimentos
sociais, dentre estes, o feminista. A esse respeito, comenta Mary Castro, que
o pouco investimento de pesquisas feministas, na compreensão das culturas
juvenis estaria relacionado “ao fato de as mulheres jovens ainda não se
237
constituírem em um coletivo feminista, sujeito social de pressão, sujeitos de
uma cidadania ativa juvenil feminista” (CASTRO, 2004, p. 298).
Ao pesquisar nos sites do Scielo e Google academics a respeito
das categorias “gênero e juventude” e “jovens feministas”, encontrei, entre os
anos de 2000 e 2009, 3 artigos sobre a experiência deste “ novo” segmento no
movimento feminista. Além disto, sobre gênero e juventude apareceram 13
artigos que relacionavam gênero, juventude e direitos sexuais e reprodutivos.
Quando se buscava a especificidade das questões da juventude na interface
com gênero, destacaram-se a coletânea sobre gênero e juventude da Revista
de Estudos feministas – REF- no ano de 2005, e um Simpósio temático do
Encontro Internacional Fazendo Gênero 8, que trazia textos a este respeito.
Dentre os textos encontrados, destaco aqui o de Julia Giovanni, a
respeito da experiência do Acampamento da Juventude do Fórum Social
Mundial (FSM), em 2003. Este espaço, de acordo com a autora, e
corroborado por entrevistas realizadas com informantes-chaves para
pesquisa que resultou em dados que serão aqui apresentados, trazem o
espaço do FSM como momento fértil de articulações que, mais tarde
resultariam no grupo intitulado “jovens feministas”. Importante colocar ainda
que, de acordo com a autora, “a experiência de 2003 no Acampamento da
Juventude apontou para as lacunas de uma ausência prolongada
do feminismo em espaços de juventude (GIOVANNI, 2003)”. Retornarei a
estes textos ao final deste artigo, tendo em mente articular a experiência de
campo com a literatura disponível sobre a questão.
Neste momento, proponho a/ou leitor/a uma incursão em torno da
constituição de um segmento que articula gênero e juventude em suas
prerrogativas: as jovens feministas.
A participação política das jovens tem se constituído em um
grande desafio. De acordo com falas das próprias integrantes do movimento
(diário de campo, 2005) elas não encontravam espaço de constituição
autônoma nem no movimento feminista, tampouco nos movimentos juvenis.
No primeiro, aquelas que se aproximaram ficaram por muito tempo sem
ocupar espaços de liderança, pois mesmo que por vezes fossem percebidas
como herdeiras das conquistas do feminismo, em geral eram vistas como
inexperientes, condição que só seria alterada se as “feministas históricas”
não estivessem ocupando a liderança no movimento. Com relação aos
movimentos juvenis a crítica que se faz é a de que as jovens exercem funções
na base ou no trabalho operacional, tendo muito poucas, ou quase nenhuma,
chegado a ocupar lugares de liderança e poder. Esta crítica é reforçada em
outros trabalhos sobre jovens feministas no Brasil, como o de Julia Zanetti
(2008). A autora comenta, baseada em Araújo (2001) que
Esta situação que vem se alterando nos últimos anos. No início dos anos
2000, coletivos de jovens mulheres começam a aparecer no cenário
nacional. Este é o caso do Fórum Cone Sul de Mulheres Jovens Políticas
238
– Espaço Brasil, que começa a ser articulado em 2001 pela Fundação
Friedrich Ebert – FES, possivelmente a primeira articulação nacional
exclusivamente voltado para este público. Também conhecido como
Forito, esta é uma articulação de jovens que atuam em diferentes
organizações, movimentos e espaços políticos (ZANETTI, 2008, p. 08).
A Fundação supracitada já promovia fóruns como esse em outros
países da América Latina, entretanto no Brasil, o crescimento da
participação da juventude se consolidou a partir do encontro no Fórum Social
Mundial em 2003.
Após este momento, grupos nos diversos estados brasileiros
comoeçaram a se organizar e a preparar uma estruturação que permitisse
entrada nos espaços feministas a partir de um lugar de fala que marcasse a
dimensão da geração – a juventude – como aporte. Este encontro se deu
efetivamente no 10º Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe,
ocorrido em outubro de 2005, em São Paulo.
As dimensões do crescimento da participação da juventude no
movimento feminista não podem ser avaliadas sem ter em mente o que
aconteceu durante este encontro, no qual 25% das participantes eram
mulheres com menos de 30 anos (ADRIÃO, 2008; ADRIÃO; TONELI, 2008,
ZANETTI, 2008). Além de participarem como integrantes e na organização
do evento, as jovens feministas trouxeram para o 10º Encontro suas próprias
questões, demarcando um campo de reivindicações coletivas – organizadas
em um segmento - que nenhuma outra geração jovem anterior havia
reivindicado.
2 CAMINHANDO EM TORNO DE UM “NOVO” LUGAR NO FEMINISMO: as
jovens feministas.
O encontro com Ana se deu numa manhã de segunda-feira, em
São Paulo, na sede da União de Mulheres, cinco dias após o 10º Encontro
Feminista. Branca, de estatura média, com 25 anos e formada em Letras, Ana
atua no movimento desde 1996, quando iniciou um curso de jovens
lideranças na ONG União de Mulheres, em São Paulo. Desde lá, vem
militando e se identificando como feminista. Porém, quais especificidades as
jovens feministas trazem em seus discursos? Para além da
discussão sobre hierarquia dentro do movimento, onde feministas mais
experientes teriam mais poder e visibilidade, essas jovens se preocupam em
se colocar em espaços de discussão não apenas como observadoras ou
coadjuvantes dos processos. Antes, elas querem discutir e ter acesso aos
debates, assim como outras parcelas e segmentos dentro dos movimentos.
Mas será que há uma especificidade ou várias especificidades que coloquem
as jovens feministas como mais um segmento dentro do movimento
feminista?
_____________________________________________________________
100
Categoria êmica.
239
Ana diz que não tem clareza quanto a isto. Lembramos juntas da
tomada do centro da plenária, no último dia do 10º Encontro, quando mais de
30 jovens leram sua moção. Existiam especificidades naquela carta? Ana me
diz que este momento retrata algo de novo sim, mas que este novo não é
produto final, constituindo um processo. Coloca então a discussão sobre os
dois nomes/conceitos que identificam este segmento: jovens e feministas.
Por que “jovens” antes de “feministas”? As jovens com quem dialogaram nos
dias do encontro, vindas, principalmente, da Nicarágua, do Chile e do Peru,
autodenominavam-se feministas jovens, posto que eram feministas, em
primeiro lugar. Mas Ana, assim como as demais jovens brasileiras, também
são “feministas em primeiro lugar”. Entretanto, diz mais uma vez Ana que
colocar o nome “jovem” antes do nome feminista revela uma demarcação de
visibilidade. “Ou seja, somos jovens feministas sim e mesmo com toda a
ambigüidade que este discurso traz em si, colocamo-nos enquanto segmento
dentro do movimento feminista mais amplo”.
No 10º Encontro, as Jovens Feministas organizaram uma oficina
de diálogo e compartilhamento de experiências entre “as jovens e as velhas”
feministas. A atividade que não estava inscrita, foi impulsionada “a partir de
um desejo das mulheres jovens que estiveram no Fórum de Mulheres Jovens,
no dia 10 de outubro, durante o 10º Encontro, com o objetivo de troca entre as
gerações e de se reconhecer e construir ações comuns”
(Fernanda Grigolin, jovem feminista, página do 10º Encontro na internet).
Neste momento, duas a duas, as mulheres de gerações distintas se
encontravam para dividir suas experiências de militância, sua entrada no
movimento, suas demandas e especificidades. Esta foi uma tentativa de
lançar ao diálogo e na agenda do movimento o debate geracional.
O Fórum de Mulheres Jovens Feministas, citado no parágrafo
anterior, ocorreu no dia 11 de outubro, durante o 10º Encontro, e contou com
mais de cem jovens de toda a América Latina e do Caribe. O momento,
considerado de articulação, foi importante porque ali se discutiram as
demandas, especificidades e estratégias das jovens feministas. Entre as
demandas, as jovens destacaram:
Ser necessário não construir espaços adultocêntricos e verticais, garantir
que as mais diversas jovens expressem suas necessidades e
apreensões dentro do processo, além de se trabalhar conjuntamente nos
movimentos de juventudes e feministas, sem deixar de pensar,
considerando as inter-relações com as demais identidades, raça/etnia,
classe social, condições sócio-geográficas, culturais e orientações
_____________________________________________________________
101
Alvarez et al (2003) trazem comentários históricos sobre o primeiro aparecimento das jovens feministas,
no final da década de 1990, em Juan Dolio, na República Dominicana (1999), no 8º Encontro Feminista
Latino-Americano e do Caribe. Naquele momento, as questões eram as mesmas que as atuais,
evidenciando que este segmento continua causando “estranhamento” nas demais feministas participantes
destes eventos.
240
sexuais (Fernanda Grigolin, jovem feminista, página do 10º Encontro na
internet).
Outro momento que se destaca é a conversa entre a socióloga
feminista Sonia Alvarez e jovens feministas vindas da cidade de Natal, Rio
Grande do Norte. Em pé, no meio do pátio central do 10º Encontro, antes de
seguirem para mais uma oficina, conversavam sobre a especificidade de ser
jovem e feminista. Um dos argumentos trazidos era o do estranhamento da
acadêmica com relação a esta categoria, não nova, mas que se reconfigurava
de forma tal que pedia por discursos de especificidade enquanto categoria
identitária dentro do movimento feminista como um todo.
Importante situar a inclusão dos lugares de imposição de
agendas e discussões sociais, tomando a conformação de movimentos de
jovens e redes de juventudes neste lócus. Nas duas últimas décadas o que
assistimos é a conformação e segmentação de identidades políticas e,
nestes espaços, os movimentos de jovens têm se tornado cada vez
mais participantes do cenário geral. Veja-se, por exemplo, o contexto dos
Fóruns Sociais Mundiais, onde o acampamento da juventude é um dos
espaços políticos de grande impacto internamente e, também, junto à mídia
e ao que é veiculado e percebido pela população em geral. Assim, o encontro
de mais este movimento, de jovens, vem se agregar de maneira distinta das
vivências das feministas jovens das décadas de 1980 e 1990, no Brasil.
Existiam sim feministas jovens, entretanto, neste momento, o que parece se
conformar é um espaço onde “ser jovem” tem um valor/peso de ordem
semelhante ao “ser feminista”, afirmam as jovens feministas. Entretanto,
questiono esta afirmação, visto que considero que o debate não se concentre
no ato de “medir uma dupla participação” e sim no peso que a imbricação de
dois significantes, orientadores de dois segmentos específicos – movimento
da juventude e movimento feminista – têm quando aparecem juntos.
A importância das jovens é inegável. Traz à tona a existência de
uma hierarquia interna do movimento, na qual quem tem mais tempo ali, ou
seja, as “históricas”, tem mais poder. Esta evidência, aparentemente óbvia,
fundamenta parte das reivindicações das jovens e faz emergir as formas
pelas quais as relações de poder fundamentam-se. Além disso, vem
questionar o nível de participação, a igualdade de participação e de poder
decisório quanto a pautas, já que propõe temas de debate que nem sempre
estão na ordem do dia para o movimento, como a preocupação com a
concepção e contracepção do ponto de vista da idade fértil e do direito de ter
filhos e creches; e a participação “igual” para jovens e “históricas”. Também
levantam a questão da participação masculina no movimento, concordando
em alguns casos com a presença dos homens presentes nas reuniões de
jovens feministas.
_____________________________________________________________
102
Miriam Grossi (1998) destacou a relação entre jovens e velhas feministas em seu texto “Velhas e novas
feministas no Brasil”.
241
Desestruturam a ordem, ao mesmo tempo em que pedem licença
às “mais velhas” para participarem, exaltando o que já foi conquistado e
levando em consideração as lutas travadas anteriormente. Ou seja,
reconhecem o passado histórico, sem abrir mão de alterações no
presente, de forma que sejam não apenas ouvidas, mas tenham acesso aos
espaços decisórios. De certa forma, isto já vem acontecendo, visto que uma
das jovens feministas estava presente na comissão organizadora do 10º
Encontro e que o debate sobre as jovens feministas fez parte da
programação oficial do evento, tendo uma jovem feminista em cada mesa de
debate dos diálogos complexos.
As jovens feministas utilizam estratégias de busca de igualdade
dentro do movimento ressaltando suas “diferenças específicas”. Ou seja,
movimentam internamente o feminismo com a inserção de demandas
situadas e contextualizadas como “de um movimento jovem”. Ao mesmo
tempo, percorrem caminhos que outras mulheres de outros segmentos já
percorreram como foi o caso das negras, indígenas e lésbicas. Trazem a
reflexão de volta para a questão interna do movimento feminista acerca da
sua unidade, traduzida em termos de questões da mulher. Levantam o
paradoxo em dois sentidos: um deles reforçando a existência da diferença
sexual (SCOTT, 2002), a partir da afirmação de que são feministas e
mulheres, unindo-se, dessa forma ao todo do movimento; e o outro
afirmando a diferença no interior do movimento, ao trazer mais uma
desigualdade que se encontrava na margem, a de geração, portanto situada
e específica para o todo do movimento feminista. Os percursos deste “novo”
segmento auxiliam a compreender as dinâmicas discursivas pelas quais se
produzem sujeitos legítimos, com demandas aceitas dentro do contexto
feminista.
As perguntas dos diálogos complexos podem apontar algumas
análises. Com relação a “Feminismo e Juventude” a preocupação central
girava em torno da busca de uma plataforma própria, a qual justificasse a
especificidade deste “novo” segmento. Quanto ao tema “Feminismo e
Racismo”, há o questionamento de se realmente os demais segmentos
acoplam as especificidades raciais e as tornam tão importantes quanto a
própria categoria mulher – “maior” identidade feminista. Ou seja, torna-se
claro que há uma hierarquia interna ao movimento e que a idéia de pluralidade
permanece mais no plano das idéias do que no plano das concretizações. Ao
mesmo tempo em que o feminismo não se faz enquanto plataforma de ação
sem as reivindicações das mulheres negras, há ainda a necessidade de
demarcação deste lugar (assim como há para outros segmentos, mas a força
de mobilização, produção teórica e tempo de organização deste segmento o
coloca em lugar de destaque nos debates).
A hierarquia interna também é movimentada pela assunção das
“jovens feministas” que declaram haver um jogo de poder no movimento, para
o qual “ser histórica” é sinônimo de destaque. Embora não seja esta uma
242
autodenominação, há uma identificação por parte daquelas que “não o são”.
3 DEMANDAS E AGENDAS DA JUVENTUDE NO ÂMBITO DO
MOVIMENTO FEMINISTA BRASILEIRO- ENTRELAÇANDO GÊNERO E
GERAÇÃO?
As Jovens feministas apareceram como grupo que vinha se
consolidando nos espaços feministas. O que elas me mostravam: que era
possível pensar algumas tensões pelas quais os movimentos feministas no
Brasil passavam, tendo em mente a tensão entre teoria e prática, ou seja,
entre como algumas das teorias feministas retornam aos espaços políticos
dos movimentos feministas. Dito de outra forma, como a categoria gênero
vem sendo trabalhada em ambos espaços: a partir das relações de poder ou
apenas como “ uma construção social” ? Se disputas por legitimidade
aparecem como questões de poder e hierarquia, retoma-se a perspectiva
feminista de desconstruir e desnormartizar o estabelecido. Entretanto, as
relações de sexo/gênero trazem a questão do sujeito do feminismo para o
centro do debate. Ou seja, a “mulher” enquanto universal, é o sujeito legítimo
do feminismo? Nestes termos, as questões de gênero vêm despolitizar o
debate em torno das desigualdades sofridas pelas mulheres? Uma das
questões que aparecem nos movimentos sociais, e particularmente no
feminista, é a da pluralidade, qual seja, a de que diferentes mulheres
disputam por legitimidade nos espaços do movimento feminista, ao mesmo
tempo em que questionam o sujeito mulher no singular.
As jovens feministas enquanto “segmento” pediam por uma
especificidade que "incomodava" e que “enaltecia” o espaço do 10º Encontro:
incomodava por não apresentar especificidades concretamente, segundo as
feministas “históricas”, e enaltecia por mostrar que o feminismo ainda é um
movimento atual e importante, que as desigualdades continuam existindo e
que as jovens se interessam por este movimento. Além disso, suas pautas
evidenciavam tensões que falam de uma interseção entre gênero e
juventude, ou seja, de como estudos sobre juventude vem sendo tratados
neste contexto, de que ainda há uma invisibilidade das questões específicas
das jovens, tanto no movimento feminista quanto em espaços de movimentos
da juventude. Segundo Mary Castro, há um investimento pequeno do (s)
Feminismo (s) na compreensão das culturas juvenis, e que este estaria
relacionado “ao fato de as mulheres jovens ainda não se constituírem em um
coletivo feminista, sujeito social de pressão, sujeitos de uma cidadania ativa
juvenil feminista” (CASTRO, 2004, p. 298). Apesar de observar a pertinência
do comentário da autora, levanto em que medida este não estaria pautado por
uma visão “ adultocêntrica”, na medida em que pontua a organização das
jovens a partir de parâmetros que não levam em consideração as
experiências de jovens que já se articulavam, ainda que a partir de formas
próprias a elas mesmas.
As jovens feministas, entretanto, se organizaram “formalmente” e
reivindicaram em espaços consolidados do feminismo seu espaço próprio, tal
243
qual relatado aqui nas páginas anteriores. Dentre as especificidades
demarcadas estão algumas agendas que não vem sendo mais evidenciadas
no seio do movimento como há 20 anos - ter ou não ter filhos - trazendo
questões práticas como a das creches, jornadas de trabalho
(diminuição), contracepção. Questões pelas quais as jovens estão passando
como experiência individual e coletiva, neste momento de suas vidas. Aqui a
tensão se dá porque as " históricas" questionam a especificidade destas
agendas. Há uma disputa por legitimidade e poder nas relações entre
diversos segmentos, e mais ainda, há uma disputa geracional que aparece “
sem querer ser nomeada”. Neste termos, Ana (líder do movimento no Brasil)
diz que colocar o nome “jovem” antes do nome feminista revela uma
demarcação de visibilidade: “Ou seja, somos jovens feministas sim e mesmo
com toda a ambigüidade que este discurso traz em si, colocamo-nos
enquanto segmento dentro do movimento feminista mais amplo (Ana,
entrevista, 2005)”.
As questões em torno do segmento das jovens feministas no
movimento levantam um paradoxo reforçando a existência da diferença
sexual (SCOTT, 2002), a partir da afirmação de que são feministas e
mulheres, unindo-se, dessa forma ao todo do movimento. Além disso, esse
paradoxo também é evidenciado ao afirmarem a diferença no interior do
movimento, ao trazerem mais uma desigualdade que se encontrava na
margem, a de geração, portanto situada e específica para o todo do
movimento feminista.
O impacto das jovens feministas também se faz na tensão entre
elas e outros movimentos juvenis. Ao afirmarem o feminismo como dimensão
fundamental da prática dos movimentos e dos projetos de “um outro mundo
possível”, elas questionam alguns mitos que circulam no senso comum a
respeito do feminismo, tais como “ que o feminismo não é mais necessário
enquanto corrente de pensamento pois as mulheres já conquistaram os
espaços públicos e de poder”, o de que “ as feministas fazem um movimento
contra os homens, e que “ são mal-amadas”. Fazer a crítica a estas visões
deturpadas da realidade social, buscando consolidar o feminismo e suas
ações em espaços não feministas, não é tarefa fácil, e tampouco seria mais
fácil entre jovens do que entre 'adultos', como poderiam fazer pensar as
freqüentes naturalizações da rebeldia da juventude e o mito de que todo
jovem tem 'a cabeça aberta'.
Portanto, os percursos deste “novo” segmento auxiliam a
compreender as dinâmicas discursivas pelas quais se produzem sujeitos
legítimos, com demandas aceitas dentro do contexto feminista, além e tornar
possível a continuidade de um projeto societário feministas para as novas
gerações, dentro e fora do movimento feminista.
_____________________________________________________________
103
Termo êmico.
244
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WELLER, Wivian. A presença feminina nas (sub) culturas juvenis: a arte de se
tornar visível. Revista Estudos Feministas. Vol. 13, n. 01, 2005, p. 107-126.
WELLER, Wivian. (Org.) Seção Temática Gênero e Juventude. Revista
Estudos Feministas, v. 13, n. 1, 2005.
ZANETTI, Julia Jovens Feministas: um estudo sobre a participação juvenil no
Feminismo. In: Fazendo Gênero 8, Florianópolis, SC, 2008., p.10.
245
ITINERÁRIOS DE VIDA AO ENVELHECER: experiências de travestis em
sergipe
1 PRELÚDIO
Neste ensaio, tomamos como objeto de estudo os relatos de três
travestis, na faixa etária entre 58 e 63 anos, com o objetivo de investigar as
mudanças e particularidades das práticas sociais e sexuais das travestis. O
trabalho foi dividido em três etapas: Na primeira, apresentamos alguns
apontamentos que serviram de aporte teórico para a pesquisa. Na segunda
etapa, fazemos observações relativas ao percurso metodológico adotado
para realização da pesquisa empírica. Na terceira, analisamos a trajetória de
vida, experiências e representações elaboradas pelas travestis investigadas
sobre o envelhecimento, de forma a descobrir como o processo de
envelhecimento interfere na elaboração de projetos de vida, em suas
aspirações amorosas e práticas sexuais. Nas considerações finais, refletimos
sobre as representações elaboradas pelas travestis entrevistadas sobre o
envelhecer e como estas diversificam de acordo com a trajetória de vida de
cada uma.
2 APONTAMENTOS PARA A REVISÃO LITERÁRIA
Os estudos feministas contemporâneos atribuem ao gênero
um caráter performativo, o que tem suscitado a interpretação de que o sexo,
assim como o gênero, é também uma construção cultural, o que põe em
xeque o suposto caráter natural do sexo. Conforme salienta Cardozo (2007,
p. 247): “A construção social do sujeito, sua ação a partir de sua subjetividade
e o discurso engendrado ou generificado que tem sobre si é que poderia
construir seu sexo.”
O autor sugere que, no caso das travestis, pode haver uma
inversão no que se refere à precedência do sexo sobre o gênero, ou seja, o
sexo não determina o gênero, mas o gênero confere significação ao sexo.
De fato, Newton (apud Butler, 2003, p. 195), afirma que a travesti
consiste em uma dupla inversão, enunciativa de que “... a aparência é uma
ilusão”: A aparência externa é feminina, mas, internamente, o corpo é
masculino. Ao mesmo tempo, seu corpo e gênero são masculinos, mas sua
essência é feminina. Segundo Butler, essas duas afirmações, apesar de
contraditórias, são verdadeiras, isto é, uma não elimina a outra, o que anula a
validade das significações do gênero do discurso do verdadeiro e do falso.
Butler (2003, p. 194) argumenta que seus atos, gestos e atuações
produzem um “suposto” feminino na superfície do corpo, ou seja, o feminino,
247
ao ser esculpido, revela sua performatividade, “[...] no sentido de que a
essência ou identidade que por outro lado pretendem expressar são
fabricações manufaturadas e sustentadas por signos corpóreos e outros
meios discursivos”. Em suma, o corpo de gênero não possui “status
ontológico separado dos vários atos que constituem sua realidade” (ibid).
Saraiva (2004), reportando-se a Butler, argumenta que para a
autora, o sexo não consiste em um simples fato ou a condição de imobilidade
de um corpo, mas é um processo pelo qual as normas regulatórias dão
materialidade ao sexo e geram essa materialização por meio de uma
repetição. Em outras palavras, a autora destaca o fato de que as normas
regulatórias do “sexo” operam de uma forma performativa para compor a
materialidade dos corpos, para tornar concreto o sexo do corpo e a diferença
sexual a serviço da consolidação do imperativo heterossexual. Todavia,
pondera Saraiva (2004, p. 124), “os corpos não se conformam, nunca,
completamente, às normas pelas quais sua materialização é imposta,
sempre há instabilidades e possibilidades de rematerialização”.
Por sua vez, Benedetti (2005) toma o conceito de embodiment
desenvolvido por Csordas, segundo o qual o corpo não é um sustentáculo de
significados, mas sim um elemento produtor e o cenário inicial desses
significados, para defender que é no corpo e através dele, que os
sentidos conferidos ao masculino e ao feminino pelas travestis se
materializam. Deste modo, enfatiza Benedetti (2005, p. 55):
As travestis, ao investir tempo, dinheiro e emoção nos processos de
alteração corporal, não estão concebendo o corpo como um mero suporte
de significados. O corpo das travestis é, sobretudo, uma linguagem; é no
corpo e por meio dele que os significados do feminino e do masculino se
concretizam e conferem à pessoa suas qualidades sociais. É no corpo
que as travestis se produzem como sujeitos.
A construção da corporalidade e do gênero travesti é feita
através de uma série de processos: trato, alongamento e pintura das unhas;
uso de cosméticos para “montagem” do rosto, cujo principal item é o batom,
geralmente de cor vermelha; depilação ou emprego de pinças para retirada
dos pelos; cabelos bem cuidados, longos e com cortes femininos. Trajar
roupas e lingeries femininas também é um processo importante na fabricação
da travesti, uma vez que realça suas formas curvilíneas, além de outros
assessórios como sapatos, sempre com saltos bastante altos (OLIVEIRA,
1994; BENEDETTI, 2005).
Benedetti (2005, p. 80) acrescenta que uma das mais importantes
decisões na vida da travesti é iniciar a aplicação de hormônios, pois o
tratamento hormonal torna as mudanças corporais mais aparentes e
definitivas, conferindo ao corpo uma nova condição, qual seja, a condição de
travesti. Conforme ressalta o autor:
O hormônio goza de um status privilegiado: seu consumo parece ser o
248
elemento simbólico que determina o ingresso nessa identidade social em
fabricação, nessa moldura social possível. [...] O hormônio (e
conseqüentemente seus efeitos no corpo e nas relações) parece ser um
instrumento ritual de passagem, porque é junto com os seios e as formas
arredondadas do novo corpo que a travesti (re)nasce para o mundo, que
esse processo de transformação se instaura e se evidencia.
O tratamento hormonal é permanente, uma vez que seu efeito
é passageiro, isto é, caso a travesti interrompa a ingestão de hormônios, os
sinais da mulher produzida desaparecem e o corpo masculino readquire suas
linhas. Algumas travestis, com maior poder aquisitivo, recorrem
também à aplicação de silicone líquido, uso de próteses de silicone para
modelar os seios ou cirurgias plásticas corretivas (OLIVEIRA, 1994;
BENEDETTI, 2005).
Em geral, observa Oliveira (1994), o processo de transformação
das travestis não se limita apenas a uma dimensão física de mudança
corporal, mas envolve um significado subjetivo de indícios de certa
homossexualidade descoberta na infância, propulsora de um processo de
troca ritual de identidade sexual. Um processo aperfeiçoado ao longo dos
anos que se mostra infindável, pois a imagem que buscam alcançar habita um
horizonte impossível e as características viris insistem em reaparecer.
De fato, enfatiza Saraiva (2004, p. 129), no processo de produção
da travesti em mulher, corpo e alma se inventam e, da conciliação desses
campos moldam-se pessoas e emergem indivíduos desejantes, o que nada
tem de simples ou mecânico, pois existe uma subjetividade em questão.
Neste sentido, Saraiva cita Silva, segundo o qual, “independentemente dos
motivos que o impulsionam a tal atitude, o ser humano que traz dentro de si é
dotado de vida própria, paixões, conflitos, preconceitos, desejos, valores e
vontades que se manifestam cotidianamente”. Por essa razão, esclarece
Oliveira (1994, p. 115):
Os travestis preferem não se definirem ou se auto-classificarem.
Preferem ser o fator desordem nas trocas simbólicas entre identidades
sexuais. Desejam abarcar as várias imagens que o espelho lhes devolve
e, principalmente, permanecer definitivamente nas zonas de transição,
em estado permanente de liminaridade. [...] Na aventura de não se
colocarem em nenhum lugar visível, os travestis não querem ser mulher,
apesar de muitos se sentirem uma delas, não querem ser homossexuais
e, muito menos, homens. Querem ser a diferença.
Essa diferença é aprimorada e exercitada nos territórios de
prostituição, lugares em que trabalham e garantem uma fonte de renda, mas
que também atuam como ponto de encontro e convívio social. É lá que
aprendem as técnicas e métodos para transformação do corpo, assimilam os
valores e formas do feminino, assim como iniciam o aprendizado relativo aos
jogos de sedução presentes no cotidiano da prostituição. “É nas
249
quadras de batalha que se aprendem, por meio de um fluxo de aprovações e
reprovações das outras travestis, dos clientes e transeuntes, as formas de ser
feminina e de ser desejada pelos homens que ali circulam, sejam eles
(potenciais) clientes ou não” (BENEDETTI, 2005, p. 115).
Contudo, o que acontece quando a “montagem” não consegue
ocultar as marcas do tempo, o poder sedutivo da travesti diminui e é preterida
por outras travestis mais jovens? Os estudos desenvolvidos por Benedetti
(2005) e Oliveira (1994) indicam que as travestis, ao se depararem com o
envelhecimento, abandonam a prostituição, passam a atuar como
bombadeiras, aplicando silicone em travestis mais novas ou então usam sua
experiência para acompanhar o processo de fazer-se travesti entre iniciantes
ou recém-chegadas nos territórios da prostituição. O fato é que há poucas
travestis idosas, muitas morrem ainda jovens, em decorrência da violência a
que se encontram expostas ou devido a complicações relacionadas ao
HIV/Aids. Entre aquelas que alcançam a velhice, como a travesti
portoalegrense Rubina, a realidade cotidiana é marcada pela solidão e
ausência de expectativas:
O que é que eu espero freqüentando um bar, uma boate, com 70 anos?
Que alguém me ame, que alguém me queira? Se eu não tiver um bom
bolsinho não sai nada. [...] Não tenho ilusão de me vestir, pra quê? Ah...
pra dizerem – Olha o puto velho! [...] Então, a gente fica feito um bicho
raro, parece um ser do outro planeta... (BOËR et. al., 2003, p. 38).
O depoimento acima sugere que o envelhecimento contribui
para a perda de atratividade e poder sedutivo das travestis, na medida em que
deixam de corresponder à imagem de glamour, beleza e sedução propalada
pela cultura do consumo. Essa realidade compromete sua auto-estima e
diminui as possibilidades de vislumbrar projetos de vida. Neste sentido, o
presente artigo objetiva refletir acerca das experiências e trajetórias de vida,
bem como representações sociais elaboradas por travestis sergipanas frente
ao envelhecimento e perda de seu poder sedutivo.
104
Os nomes das informantes são fictícios, de forma a resguardar seu anonimato.
253
Há de se observar, entretanto, que o desfazer não segue os
mesmos percursos, pois diferentemente de Arielle e Liz, apesar de também
abandonar a prostituição, Danielle adia o envelhecer refabricando sua
corporalidade, porque chega uma idade a pele fica mais flácida, a pele fica
mais sensível, e o peito com o tempo ele cai mais. [...] Mas eu nunca fiz para
mostrar para outra que sou isso, que eu sou aquilo, eu acho que a gente faz as
coisas pra gente. Renovada, investe na militância política e dedica seu tempo
à defesa dos direitos humanos, além de orientar as travestis mais jovens
quanto à importância de preservarem a qualidade de vida, – vivem o glamour,
[...] elas trocam a comida pelo glamour –, isto é, devem ter uma boa
alimentação e horas regulares de sono, além de pensarem no futuro,
adquirirem um imóvel próprio para usufruírem de uma velhice tranqüila. Em
suma, a questão delas sempre pensarem, nunca se preocuparem em que a
beleza e a juventude são eternas. E não é.
Assim como o tempo é relativo, a percepção do que é ser idosa
para a travesti também é relativizada, embora pergunte ao
espelho se há marcas que denunciem o envelhecer: Eu tô velho demais pra
minha idade? Tá bom pra minha idade de 61 anos? Terceira idade é de 60
para lá, né? Isso é ilusão desse povo! Eu ando tanto a pé, não sinto nada! [...]
Para mim a velhice é de 80 anos para lá. No entanto, o tempo de
aposentadoria para a travesti sofre um decréscimo, ou seja, entre a idade
estipulada pelo Estatuto do Idoso para o início da terceira idade e a
perspectiva elaborada pelas travestis, há uma defasagem de vinte anos, pois
para nós travestis, eu acho que aos quarenta já é terceira idade, quando
chegam lá.
Todavia, se precisa continuar trabalhando para assegurar a
sobrevivência e tantas vezes é assaltada pela depressão e fica tristonha,
somente com a ajuda de uma entidade, uma pomba gira de esquerda:
Quando eu estou assim, ela diz: tome uma para se animar! Eu vape,
tomo uma, uma Dreher com limão, tome, ela é quem manda. Eu não
tenho medo dela não! Mas [...] é assim, ela me ajuda para eu vender
minhas roupas, me anima, vai em frente, anda diabo, se alevanta! Ela é
que bota no ouvido, ninguém vê ela, ela é imortal.
Ao que tudo indica, enfrentar o envelhecimento requer a proteção
de uma entidade mística do plano do fantástico e do maravilhoso, uma vez
que o passar dos anos lhes rouba a identidade profissional e, impossibilita a
concretização do glamour que cerca as jovens travestis que vêm da Europa,
retornando do rito de passagem que as reveste de outro status, agora não
mais iniciantes, mas iniciadas e iniciadoras. Além disso, adquirem poder
aquisitivo, com o qual conseguem até comprar a aceitação do grupo
doméstico-familiar. Neste sentido, Arielle se sente ressentida ao ser excluída
da possibilidade de vivenciar tal experiência, porque na minha idade, [...]
primeiro elas não me leva, porque não sou bonita e não sou branca. Outra
254
coisa, dinheiro pra ir eu não tenho. Se eu tivesse dinheiro meu mesmo, pra ir,
eu ia. Pelo menos pra saber como é. [...] Agora eu não posso mais não, né?
Porque numa idade dessa, tem esses problemas de saúde...
A despeito da trajetória de vida marcada pela rejeição, pelo
preconceito, por amores desfeitos e armadilhas amorosas, pelas dores e
sofrimento, marginalização e exclusão social, não abdicam da
essência que conduz a sua existência no mundo. Conforme enfatiza Arielle:
Se eu nascesse de novo, eu não queria ser homem, não queria ser mulher,
queria ser homem sexual novamente, porque eu admiro minha vida, eu gosto
da coisa, não desisto nunca. [...] É uma coisa que eu vim com esse desejo.
[...]. Não tenho arrependimento, não tenho inveja de ninguém, eu queria ser
eu mesmo. Quero ser como eu sou mesmo.
5 DESFECHO
Tomando com parâmetro Butler (2003), podemos inferir que a
travesti não carrega a dualidade de um corpo e gênero masculino que convive
com uma essência feminina. O envelhecimento compromete a imagem
ilusória do feminino para as travestis e para quem as olha, mas não
desautoriza sua essência feminina, embora provoque nas travestis diferentes
reações: não aceitação e ressentimento; tentativa de driblar o tempo por meio
da biotecnologia ou a recorrência a uma entidade que garante a imortalidade
da mulher. Isso evidencia que o processo de envelhecimento, ao invés de
produzir a semelhança, engendra a diferença, pois o envelhecimento, apesar
de ser um evento da natureza humana, suscita percepções da ordem do
simbólico: Se um dia eu morrer, eu vou reformar uma pessoa e vai ser Liz, pior
do que eu. Essa mulher? Ela me acompanha...
255
REFERÊNCIAS
OLIVEIRA, Neuza Maria de. Damas de Paus: o jogo aberto dos travestis no
espelho da mulher. Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA, 1994.
257
GT 3 – GÊNERO E SAÚDE
COORDENAÇÃO: Profº. Dr. Jorge Luiz Cardoso Lyra – PAPAI/ UFPE
259
APRESENTAÇÃO
Jorge Lyra
Coordenador GT – Gênero e Saúde
261
REFLETINDO A SAÚDE DA MULHER NO PSF DO BAIRRO DAS
INDÚSTRIAS- JOÃO PESSOA-PB
1 INTRODUÇÃO
O debate contemporâneo do Serviço Social centra-se na
compreensão das configurações das seqüelas das questões sociais
materializadas no cotidiano da vida social. Como forma de contribuir com
esse debate, buscamos aprofundar a discussão sobre a saúde da mulher, a
partir do atendimento do Programa Saúde da Família- PSF, como uma
expressão da precarização do direito à saúde, assim como um reflexo da
desigualdade de gênero, sendo esta uma construção secular e perversa.
Nesse sentido, elaboramos o artigo em tela a partir de uma
pesquisa realizada, no curso de Mestrado do Programa de Pós-graduação
em Serviço Social da Universidade Federal da Paraíba. Procuramos
compreender o atendimento do PSF à luz da percepção das usuárias
atendidas por esse programa.
Este artigo está organizado em quatro partes: O SUS e a
Perspectiva de Gênero, o Programa Saúde da Família (PSF) e a Saúde da
Mulher, A saúde da mulher no PSF do Bairro das Indústrias e uma breve
conclusão.
2 O SUS E A PERSPECTIVA DE GÊNERO
Ao abordar a perspectiva de gênero no interior do SUS partimos
da percepção de que conceber o processo saúde/doença não pode ser feito
dentro de uma dissociação da relação macho X fêmea, na qual é considerado
apenas os aspectos biológicos, mas levando em consideração todos os
aspectos culturais e sociais que envolvem as relações desiguais entre
homens e mulheres. Dentro dessa direção de análise tomamos como
referencial as concepções de Scott (1991), que rejeita todo e qualquer
determinismo biológico atribuído as relações entre o sexo masculino e
feminino, apontando à relevância da superação dos limites das abordagens
descritivas, buscando dar visibilidade às mulheres dentro do processo
histórico, entendendo a construção histórica da organização da sociedade,
as relações de dominação, de exploração, de desigualdade entre mulheres e
homens.
Desse modo, tratar da perspectiva de gênero na atenção à saúde
não se pode deixar de levar em consideração que:
Durante várias décadas, ignorou-se as influências socioeconômicas
como determinantes da situação de saúde das populações.
Atualmente, ainda permanece muitas reticências para reconhecer
263
que a construção social do feminino e do masculino, o que chamamos
de sistemas de gênero, determina a condição social de mulheres e
homens e , também, que dada a desigualdade de poder entre eles, o
gênero é fator explicativo da situação de saúde das mulheres é da
maior importância. (GAMA, 2006, p. 80).
A saúde da mulher, no Brasil, é incorporada às políticas sociais
na década de 30, limitando-se, nesse período, as ações incipientes
relacionadas à gravidez e ao parto. Os programas materno-infantis
desenvolvidos durante as décadas de 1930, 1950 e 1970, incorporavam uma
visão limitada sobre a mulher, fundamentada em seus aspectos biológicos e
no seu papel social de mãe, doméstica e cuidadora dos seus familiares. A
mulher estava reservada a responsabilidade da criação, educação e saúde
dos filhos. Outra característica marcante era a verticalidade e a falta de
integração com as demais políticas e programas desenvolvidos pelo governo
federal.
A mulher passa a ser alvo das preocupações governamentais
com a institucionalização da medicina social, que no Brasil ocorre no final do
século XIX quando a concepção da higiene no interior da família adquire
centralidade. Nessa perspectiva a mulher é transferida da tutela paterna para
a higiênica, processo que não apresenta nenhuma autonomia. Nesse
contexto a “medicina” fala sobre as mulheres e diz como elas querem viver.
Essa concepção de programas de saúde voltados para a
mulher/mãe permanecerá até a década de 1980, pois era maternidade
concebida como a única via de acesso cidadania feminina, assim
como aos benefícios sociais.
Na literatura encontram-se vários conceitos sobre a saúde da
mulher. Há concepções mais restritas que abordam apenas os aspectos da
biologia e a anatomia do corpo feminino e outras mais amplas que interagem
com as dimensões dos direitos humanos e as questões que contemplam a
cidadania.
A evolução da política de saúde voltada para as mulheres está
intimamente ligada com o histórico do movimento feminista, pois é a partir dos
primeiros movimentos reivindicatório, na década de 60, que se pode pontuar
a evolução das ações nesse âmbito, pois no momento tinha como meta a
igualdade na diferenciação sexual. Segundo Giffin (2002, p. 3),
Do ponto de vista da eqüidade de gênero, as especificidades das
mulheres todas relacionadas com as diferenças sexuais que, elaboradas
no social, irradiam desde as vivências sexuais e reprodutivas mais
intimas, até a arquitetura de redutos do poder como os congressos
nacionais onde não há provisão de banheiros femininos, passando por
identidades pessoais, símbolos culturais, normas e instituições sociais,
leis, etc.
Com o desenvolvimento dessa concepção emerge na década
264
de 1980 o conceito de direitos reprodutivos, como estratégia política das
feministas pela reivindicação das garantias de igualdade, liberdade, justiça
social e dignidade no exercício da sexualidade e da função reprodutiva
(VENTURA , 2006).
Sem dúvida a Constituição de 1988 representa o marco político-
institucional e jurídico, que deu um novo direcionamento em todo o sistema
público brasileiro regulamentando e adequando as normas legais dentro dos
parâmetros direitos humanos. No campo dos direitos reprodutivos os
dispositivos constitucionais são expressos na afirmação à vida digna, a
igualdade de direitos entre homens e mulheres, à integridade física e
psicológica, à proteção a maternidade no âmbito da seguridade social, ao
direito a saúde de forma universal e igualitária, ao direito ao planejamento
familiar, entre tantos outros.
Quanto às primeiras ações governamentais no campo da saúde
contemplando noções básicas a respeito dos direitos sexuais e reprodutivos
podem ser identificadas na década de 1980, como resultado das proposições
do movimento feminista, que inspirado pelas discussões internacionais da
década de 1970, nas quais as proposituras visavam uma nova concepção
para o “natalismo” e o “controlismo”, passando a ser concebido dentro do
exercício dos diretos reprodutivos,como uma condição essencial à cidadania
e de responsabilidade social.
Como respostas a essas reivindicações é lançado,em 1985, pelo
governo federal, o Programa de Atenção Integral a Saúde da Mulher- PAISM,
sua configuração preconiza a criação de uma rede de serviços de saúde com
acesso universal, hierarquizada e regionalizada, que prestasse ações de
controle de riscos de adoecimento, em um contexto onde a rede de saúde
incorporava à assistência médica individual, como foco central.
Osis (1998, p. 27) aponta as seguintes diretrizes que
compunham inicialmente o PAISM:
As diretrizes gerais do programa previam a capacitação do sistema de
saúde para atender as necessidades da população feminina, enfatizando
as ações dirigidas ao controle das patologias mais prevalentes nesse
grupo; estabeleciam também a exigência de uma nova postura de
trabalho da equipe de saúde em face do conceito de integralidade do
atendimento; pressupunham uma prática educativa permeando todas as
atividades desenvolvidas de forma que a cliente pudesse apropriar-se dos
conhecimentos necessários a um maior controle sobre a sua saúde.[...]o
documento em questão dedicava dois itens ao planejamento familiar[...].
Com o processo de implantação do SUS o PAISM passa a sofrer
uma série de inflexões, uma vez que a partir da Constituição de 1988 as ações
de saúde passam a preconizar ações de reorganização da atenção básica,
por meio do PSF passando para os municípios a responsabilidade de gerir a
atenção básica mínima não abrangendo o conjunto de ações previstas para
265
o PAISM.
As críticas ao PAISM extrapolavam essas questões e se inseriam
também no questionamento da integralidade, bem como da ausência do
recorte racial/étnico, uma vez que eram desprezadas doenças inerentes as
mulheres negras. Além dos questionamentos em torno das
instituições de formação profissional, sobretudo as escolas de medicina e
enfermagem, por uma ausência das grades curriculares dos temas
relacionados a saúde da mulher, aos direitos sexuais e reprodutivos e a uma
compreensão ampliada do conceito de integralidade. O que contribui para
uma prática profissional distanciada das reais necessidades das mulheres
até mesmo do ponto de vista ético.
Essas questões levaram, no ano de 2003, à Área Técnica de
Saúde da Mulher do Ministério da Saúde, em processo de construção com o
movimento feminista, de mulheres negras, trabalhadoras rurais, lésbicas,
portadoras de necessidades especiais, a elaborar Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde da Mulher- PNAISM, que passa adotar como
princípios a humanização e a qualidade da atenção em saúde como
condições essenciais para que as ações em saúde se traduzam na resolução
dos problemas identificados, na satisfação das usuárias, no fortalecimento da
capacidade das mulheres frente à identificação de suas demandas, no
reconhecimento e respeito aos direitos e na promoção do auto cuidado.
Segundo Araújo (2005), o propósito do Ministério da saúde, com a
elaboração dessa política é apoiar estados e municípios na construção de um
consenso a cerca da necessidade da elaboração e consolidação de políticas
públicas voltadas para as mulheres, que ocorram de forma integral e
sinérgica, garantido assim uma melhor qualidade de vida as mulheres alvo
dessa política.
Para tanto requer a decisão política dos gestores (as) na
efetivação da política, assim como do papel da sociedade civil com regulador
de todo esse processo.
3 O PROGRAMA SAÚDE DA FAMÍLIA (PSF) E A SAÚDE DA MULHER
Buscando refletir sobre as ações do PSF e abordagem de gênero,
ou apenas o enfoque feminino, observamos que ao mesmo tempo em que era
desenvolvida a proposta do PSF, dentro do movimento feminista as
articulações giravam em torno da implantação do PAISM, que
apresentava um caráter puramente vertical e voltado estritamente para a
saúde da mulher, sendo este produto das reflexões e experiências do
movimento de mulheres na área da saúde e que contava com todo o aporte
ideológico da Reforma sanitária. O período dos anos 1990 que marca a
expansão do PSF é também palco para o processo de extinção do PAISM, os
fatores estavam relacionados à fragmentação, baixa qualidade das ações
desenvolvidas e a falta de vontade política, isso não que dizer o movimento de
mulheres esteve apático a abordagem de gênero no PSF, mas as
266
preocupações se voltaram para uma requalificação do PAISM.
Segundo Portella (2205, p.14);
[...] As elaborações conceituais e políticas a respeito do modo como as
mulheres são tratadas e como os homens são excluídos dos serviços,
assim como as preocupações com a humanização do atendimento e
inexistência na importância da formação continuada de todos os
membros das equipes das unidades de saúde, que resultaram na
reformulação de algumas estruturas e fluxo de atendimento, são algumas
das respostas produzidas pelas feministas para lidar com a evidente
reprodução das desigualdades entre homens e mulheres, operada
cotidianamente pelos serviços de saúde [...]
As mulheres são alvo direto dos serviços ofertados pelo PSF, e
são percebidas prioritariamente como mães, esposas, donas-de-casa, e
principalmente, como cuidadoras da família sendo estas as mediadoras entre
os serviços e a família. Esses fatores contraditoriamente não contribuem para
sua valorização, pois são percebidas como usuárias de difícil
relacionamento, assim como suas queixas são desvalorizadas e não se leva
em consideração os seus contextos sócio-historicos e culturais. A sua saúde
é tratada do ponto de vista da reprodução e planejamento familiar, porém a
sexualidade é tratada com preconceito. A contracepção é percebida apenas
como responsabilidade exclusiva do homem, no qual o enfoque é apenas o
controle da natalidade, a violência doméstica e sexual é encarada com
preconceito e imbuída de medo o que dificulta a notificação compulsória.
(PORTELLA, 2005).
A problemática maior apontada pela autora remete a “cegueira de
gênero”, que constitui a proposta do modelo do Programa, pois
esta ausência permite a produção e reprodução generalizada de valores e
atitudes extremamente conservadoras. A forma conservadora de
abordagem, que esta imbuída na proposta do programa, ao mesmo tempo
em que contribui para melhoria dos indicadores de saúde, no caso específico
das mulheres ao contrario representam um agravo em sua saúde, como é o
caso da violência e das DST's. A ausência do enfoque de gênero leva a
violência institucional e a violação dos direitos sociais.
O problema aponta para uma dimensão muito maior do que a
qualidade e o acesso, mas se insere na recusa do enfoque de gênero na
formulação das políticas sociais, com isso a o desprezo da dimensão
fundamental da vida social, as relações histórica, social e cultural entre
homens e mulheres na sociedade. Sem adoção desse olhar não é possível
pensar em políticas eficazes que venham garantir a efetivação dos direitos
das mulheres. Isso requer não apenas uma revisão programática das ações
dos programas, mas perpassa pela distribuição de recursos humanos e
financeiros, técnicos e materiais.
4 A SAÚDE DA MULHER NO PSF DO BAIRRO DAS INDÚSTRIAS
267
A pesquisa, em tela, teve como espaço investigativo o Bairro das
Indústrias, que se encontra localizado nas proximidades do Distrito Industrial
de João Pessoa, sendo este responsável pelo surgimento desse Conjunto
Habitacional. A população estimada é de 7.755 habitantes, sendo 3.996
compostas por mulheres e 3.759 por homens. Quanto à infra-estrutura o
Bairro conta apenas com 50% das ruas pavimentadas e apenas 2% são
cobertos por rede coletora de esgotos.
Compreender o atendimento do PSF a partir da concepção de
suas usuárias constitui-se o foco central desse estudo, no qual buscamos
traçar uma avaliação do referido programa focalizado na qualidade da
atenção.
Utilizou-se como proposta metodologia a sugerida por Gama
(2006), na qual se dá através de uma abordagem qualitativa e
toma-se como referência a perspectiva dialética no campo das análise
organizacionais, sugerida por Deslandes (1997), buscando associação de
indicadores que referencie uma ótica de gênero.
A pesquisa foi realizada com 23 usuária do PSF do Bairro das
Industrias atendidas freqüentemente pelo programa dentro da faixa etária de
18 á 40. De acordo com os percentuais referentes à faixa etária, constata-se
que há uma prevalência, em torno de 84%, que apresentam entre 26 e 40
anos de idade, evidenciando que a procura aos serviços de saúde, em alguns
casos, ocorre em busca de cuidados com á saúde vinculados a maternidade e
a saúde reprodutiva.
Esses dados também fortalecem as afirmações levantadas por
Coelho (2006) quanto a predominância do enfoque materno-infantil e do
planejamento familiar na assistência à saúde da mulher, assim como do seu
enfoque restrito à atenção básica. O que possivelmente justifica a procura por
faixa etária aos serviços de saúde.
A preocupação inicial centrou-se nos motivos que levam as
usuárias a procurarem os serviços oferecidos pelo PSF. De acordo com os
dados levantados 47,8% das mulheres entrevistadas atribui a proximidade da
sua residência, como foco central à procura da USF. A fala a seguir vislumbra
essa colocação: “o atendimento é ruim. Eu venho por que é aqui perto da
minha casa e eu não tenho dinheiro para pagar o transporte. Imagine a
consulta!” (RE 4)
Em contra partida 43,5% das entrevistadas apontam como
principal aspecto que as fazem acessar os serviços da USF estão vinculados
ao caráter público, que em sua grande maioria encontra-se vinculado a falta
de recursos financeiros para busca de outros espaços.
A questão da confiabilidade das mulheres em torno das questões
especificas da sua sexualidade é um dos pontos problemático visto que
muitas mulheres apontam a necessidade de procurar outros
serviços para tratar como é colocado “dos aspectos ginecológicos”. Isso
268
ocorre por conhecimento cotidiano com os (as) profissionais do PSF, o que
faz com que não se citam a vontade, onde na verdade os sentimentos
deveriam ser diferenciados. As causas podem estar associadas a forma de
abordagem, ao caráter impositivo dos saberes e a falta de ética de alguns
profissionais, sobretudo os ACS's.
O recorte de prevenção e promoção à saúde da família, que
constitui o direcionamento do programa foi diluído em ações focais e de
cunho curativo. Quanto à abordagem da saúde da mulher esta ocorre focada
no modelo de assistência como foco a “mulher mãe”, limitando o atendimento
à reprodução e ao planejamento familiar. As questões à cerca da violência
doméstica são encaradas como restrito ao foco familiar não cabendo o
envolvimento do (a) profissional. Por fim, o caráter preventivo e educativo é
desprezado, pois o atendimento continua centrando-se nas consultas
individuais.
O atendimento médico é utilizado pela maioria das mulheres
entrevistadas, cerca de 95,7%. O que é perfeitamente concebível, tendo em
vista a centralidade do saber médico. Porém, é surpreendente que das
mulheres indagadas apenas 17,4% afirmem participar do planejamento
familiar oferecido na USF, uma vez que a maioria encontra-se em idade
reprodutiva, são mães e tem parceiros fixos. Vale destacar, que o dia
reservado ao planejamento familiar é denominado na USF como “o dia da
mulher”, pois é específico para prevenção do câncer do colo do útero,
consultas ginecológicas, distribuição de contraceptivos, entre outros.
Mesmo prevalecendo entre as mulheres um percentual de 52,2%
satisfeitas com o atendimento, por outro lado os fragmentos de algumas falas
levantam aspectos extremamente preocupantes. Como se pode observar as
afirmações da entrevistada 8: “Deixa pouco a desejar, porque ela às vezes
não olha nos seus olhos, não pergunta o que você esta sentindo, se você tem
algo na pele, ela não pede para mostrar. O médico tem que ser
completo, tem que chegar perto, atender, fazer muitas perguntas, o que você
esta sentindo, o que não esta, incentivar outras coisas que você não tem
noção para fazer.” (RE 8)
O relato acima aponta elementos muito problemáticos, que
perpassam desde a forma do atendimento, ao respeito com o paciente, e por
fim a especialização médica, que constitui um dos maiores problemas do
PSF, pois a estrutura desse programa exige um médico generalista, mas a
dificuldade de firmar profissionais faz com que os gestores municipais
desconsiderem essa prerrogativa, colocando em cheque a saúde e vida dos
(as) usuários (as).
Os resultados apresentados demonstra que durante as consultas
médicas, na maioria dos atendimentos, só há a preocupação com as queixas
apresentadas, conforme relata 65% da mulheres entrevistadas,
desconsiderando a abordagem de aspectos inerentes a saúde integral da
269
mulher. Nesse enfoque segue trechos de depoimentos das entrevistadas:
Não eu acho que o médico, se eu falo com você, você tem que entrar na
minha vida”. “Por exemplo: fazer um citológico, procurar porque, se esta
em dia com o exame de sangue, se quer fazer exame de HIV, um exame
de sífilis, fazer perguntas, não tem necessidade a pessoa pedir tanto, as
pessoas já estão saturadas da vida, das doenças que ate esquece de
pedir”. “Como ser humano ela é uma pessoa boa, mas como profissional
tem alguma coisa a desejar. (RE 15)
Em uma avaliação em que 40% das mulheres aprovam o
atendimento e 12% desqualificam, contradiz a atual situação da saúde no
país, passando pela ausência da atenção à saúde nos seguintes parâmetros:
desfinanciamento do setor saúde, descaracterização do princípio
constitucional da integralidade, desintegração das três esferas de governo:
federal, municipal e estadual.
Fica evidente nos relatos das mulheres entrevistadas a
fragilidade do atendimento médico, que deixa a desejar desde o trato com as
usuárias, aos horários, abordagens e tratamento, mas é evidente a falta de
humanização dos profissionais da USF, assim como as dificuldades de
acesso aos serviços de referência e contra referência. Essa
questão suscita a integralidade das ações de saúde voltadas para as
mulheres.
A resolutividade dos problemas de saúde a partir do atendimento
na USF é compreendido pelas usuárias como possível sempre que há a
procura, seguido de 22% da entrevistadas que afirmam que nem sempre a
uma devido tratamento e um número considerável de 30% das entrevistadas
reconhecem que diante das fragilidades apresentadas não o solucionamento
das queixas em relação á sua saúde no PSF.
As mulheres ao refletirem sobre o significado da instalação da
USF na localidade onde moram, avaliam negativamente e cerca de 43% das
entrevistadas afirma não vislumbrar melhorias nas suas condições de saúde,
muito pelo contrario 14% das mulheres asseguram que ocasionou a
complicação na marcação de exames e 33% das mulheres apontam a
proximidade da USF de suas residências um fator relevante.
A justificativa, por parte das entrevistadas, em relação às
possíveis melhorias na sua qualidade de vida está focada no caráter
imediatista da saúde mediante da sua relação com o estado da sua
enfermidade. Desse modo há a valorização das abordagens curativas em
detrimento das preventivas, bem como a justificação de ações focais.
2 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As reflexões levantadas a cerca da saúde da mulher e de como
esta é abordada nos programas de saúde desenvolvidos pelo SUS, em
_____________________________________________________________
105
Dados do censo do IBGE realizado no ano 2000
270
particular o PSF, partem de uma abordagem de gênero por conceber o
processo saúde x doença associado não apenas aos aspectos biológicos,
mas arraigado nas construções históricas e sociais, que marcam as relações
desiguais entre homens e mulheres na sociedade.
No Brasil, a constituição de 1998, apresenta entre outros avanços
sociais o princípio da integralidade como aspecto central no desenvolvimento
das ações no âmbito da saúde. Integralidade esta já fazia parte dos
programas desenvolvidos para a melhoria da qualidade de saúde da mulher,
como é o caso do surgimento do PAISM em 1983 e que é
reafirmado com a PNAISM em 2003. Integralidade nas ações e políticas de
saúde para as mulheres subitem a operacionalidade prevendo integração
das ações de promoção, prevenção ou recuperação, cujo enfoque não se
restrinja a penas a concepção mulher mãe e sobretudo reprodutora, mas
ações que extrapolem essa visão e abranja todos os aspectos
biopsicossocial garantindo assim a minimização das desigualdades de
gênero, raça e etnia.
Na verdade verifica-se o verdadeiro descompasso em o âmbito
das proposições e o da efetividade, como foi o caso do PAISM e na
contemporaneidade do PNAISM.
Com a expansão do PSF na década de 1990, acreditava-se que
este iria produzir a capilaridade entre os serviços de saúde e integrar as ações
assistenciais na comunidade.
Em torno dessas constatações constituiu-se as questões que
nortearam essa pesquisa tendo em vista que a forma como o PSF tem
trabalhado a saúde da mulher não tem contribuído significativamente para a
melhoria da qualidade de vida dessa mulheres, assim como não exerce o seu
papel de prevenção dos agravos a saúde da população. A exemplo a falta de
ações educativas, abordagem da sexualidade feminina, violência,
precarização das redes de referência e contra-referência e tantos outros.
Desse modo, a existência dessa realidade põem em xeque o
princípio da constitucional integralidade da à saúde da mulher.
É verdade que a atual conjuntura, em que se insere, as políticas
sociais em especial o SUS vislumbra-se a ênfase na focalização, na
precarização e no desfinanciamento das ações. A exemplo da focalização o
PSF vem se constituindo em um programa de extensão da atenção as
famílias de baixa renda descaracterizando o princípio constitucional da
universalidade, bem como apresenta a ausência de uma devida
(re)organização do sistema, prevendo as ações de atenção básica aos
demais níveis de assistência.
A pesquisa realizada aponta também para problemas de ordem
técnica, estrutural e de humanização. Nessa verifica-se a confusão de papéis
entre a médica e a enfermeira pela população; por outro lado as queixas das
mulheres são relativizadas e há pouco espaço para escuta; a caráter do
271
atendimento é extremamente curativo não havendo ações educativas; as
mulheres principais usuárias do programa são vistas como esposas-mãe e a
sua saúde é tratada de forma limitada a reprodução e ao planejamento
familiar; a figura do agente de saúde é concebida com desconfiança por
algumas; as dificuldades de acesso aos espaços de referência e contra-
referência marcam a vida das mulheres. Por fim, não se há percepção de
gênero nas ações do programa o que permite a reprodução de valores e
práticas conservadoras.
A partir desse estudo não só pode-se comprovar estas questões
como também constatar o elevado grau de desproteção social a que estão
expostas as mulheres atendidas pelo PSF.
272
REFERÊNCIAS
ARAÙJO, Maria José de O. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde
da Mulher: Antigas necessidades e novas perspectivas. Jornal da Rede
Feminista de Saúde.Belo Horizonte, n. 27. setembro de 2005. p. 6-9.
GAMA, Andréa de Souza. Gênero e avaliação da qualidade da atenção em
serviços de saúde reprodutiva. In: Bravo, Maria Inês de Souza (Org.).
Saúde e Serviço Social.São Paulo: Cortez; Rio de Janeiro: UERJ, 2006.
GIFFIN. Karen. Pobreza, desigualdade e eqüidade em saúde:
considerações a partir de uma perspectiva de gênero transversal. In:
Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro. v. 18. 2002. Disponível em
:http://www.scielo.br. Acesso em: 10 de dez. 2006.
FUNDAÇÃO INSTITUTO BRASILEIRO DE ESTATÍSTICA E GEOGRAFIA.
(IBGE). Censo Demográfico- 2000. Características da População e dos
Domicílios. João Pessoa: Unidade Estadual do IBGE da Paraíba, 2002.
OSIS, Maria José M. D. Paism: um marco na abordagem da saúde
reprodutiva no Brasil. Cadernos de Saúde Pública. v. 14, Supl. 1,
1998.Disponível em :http://www.scielo.br. Acesso em: 23 de set. 2004.
PITANGUY, Jacqueline. MIRANDA, Dayse. As mulheres e os direitos
humanos. In: O Progresso das Mulheres no Brasil. Brasília. UNIFEM.
FORD FOUNDATION. CEPIA. 2006.
PORTELLA. Ana Paula. O Programa de Saúde da Família e a Saúde da
Mulher. Jornal da Rede Feminista de Saúde. Belo Horizonte, n. 27. setembro
de 2005. p. 14-17.
VENTURA. Mirian. Saúde feminina e o pleno exercício da sexualidade e
dos direitos reprodutivos. In: O Progresso das Mulheres no Brasil.
Brasília. UNIFEM. FORD FOUNDATION. CEPIA. 2006.
273
PROGRAMA DE ATENÇÃO INTEGRAL À SAÚDE DA MULHER –
PAISM: entre as diretrizes nacionais e a realidade em Imperatriz
286
interação, até porque não era uma situação fácil. A gente não tinha os
recursos humanos muito próximos... e principalmente médicos para você
chamar para reunião fica muito difícil...“um dos elementos é a dificuldade
de reunir o pessoal das equipes que é outro grande problema que
depende de decisão política, porque ai nós temos a cobrança da
produtividade...(P.M)
“ainda precisamos ver com outro enfoque, precisamos sensibilizar mais,
mobilizar mais, trazer a sociedade civil pra ajudar, trazer a comunidade
como um todo...eu acredito que vai ser determinante um controle social
para que possa estr junto ao Gestor em nível de município e em nível de
estado para que se possa realmente fazer com que a equipe se reúna,
faça planejamento, pra que haja sugestões da comunidade que estão na
ponta...(Secretária)”.
“Para os indicadores, PCCU, CISCOLO, a gente tem feito reunião. A
gente se reúne para avaliar cumprimento de meta de indicadores que
estão pactuados há mais tempo...há reuniões, sim, sobre os
indicadores...(Secretária)”.
“Nós temos uma equipe multidisciplinar, trabalhamos com atendimento
das mulheres e, mensalmente, são avaliados os dados, quantas mulheres
são atendidas, no que elas são atendidas, trabalhamos com o
planejamento dessas atividades”. (Coordenadora)
Os gestores constatam e pontuam, com clareza, a dificuldade de
realizar as reuniões para avaliar e planejar as ações, reafirmando, em suas
falas, que até acontecem reuniões mensais com alguns membros da equipe
para levantamento e registros de dados de produtividade.
Constata-se que a discussão do atendimento à mulher vítima de
violência foi retomada pela atual Coordenação, que conseguiu realizar uma
reunião com alguns técnicos da Secretaria de Saúde e iniciaram um debate
para definir um fluxograma de atendimento às mulheres vítimas de violência.
Porém, a iniciativa se mantém embrionária, dada as dificuldades de
elaboração, compreensão do que fazer, como fazer, quem fazer. O
desconhecimento por parte dos membros da equipe que se envolveram, na
discussão, sobre a temática, juntamente com a ausência da compreensão
das relações de gênero, dificultam a articulação dessas ações.
Alguns dos dados do Relatório de Atividades de 2005 a 2007 são,
comprovadamente, irreais. Estes, quando divulgados, comprometem a real
cobertura da saúde da mulher, no município e região, pois eles, de fato, não
existiram. Comprometem, também, as informações da cobertura nacional na
medida em que estes são informados ao Departamento de Informática do
SUS - DATASUS, órgão da Secretaria Executiva do Ministério da Saúde, que
tem a responsabilidade de coletar, processar e disseminar informações sobre
saúde.
A inexistência da avaliação e planejamento culmina com as
287
dificuldades do exercício da prática da interdisciplinar que se concretiza
diante de tais fatos que impossibilitam ações combinadas e de superação de
demandas diárias.
Assim sendo, é palpável o confronto entre as duas políticas
presentes no PAISM de Imperatriz. Dentro do espaço da ordem capitalista, a
política de bem-estar social exige garantias de direitos sociais; a
política liberal, perpetrar restrições e, por conseguinte, nega tais direitos,
promovendo ambiguidade e contradições que adquirem dimensões éticas.
2 CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer deste estudo, verificou-se que as políticas públicas
resultam de uma permanente luta de classes e que, apesar de se
conseguirem avanços e conquistas sociais, nem sempre se garante, na
prática, a eficácia do seu conteúdo teórico.
Durante as etapas que o nortearam, é visível que a luta pela
implantação do PAISM faz parte do mesmo esforço da implantação do SUS, e
este se fortaleceu e tomou impulso com as últimas Conferências Nacionais de
Saúde, mas, sensivelmente, recua na prática dos gestores responsáveis
pela sua concretização, através de rupturas com os princípios do SUS,
levando-se a crer que, apesar das declarações oficiais a favor de sua
implantação, há manobras políticas com o propósito de inviabilizá-lo.
A implantação do PAISM aparenta ter sido bastante diferenciada
em todo o país, refletindo os distintos graus de compreensão e compromisso
político dos governantes com a questão da mulher e a disparidade nas
estratégias adotadas na organização do sistema de saúde.
A partir de 2004, o PAISM foi transformado em Política de Atenção
Integral à Saúde das Mulheres, transformação esta que tem o papel
determinante de provocar mudanças não apenas na qualidade de atenção à
saúde da mulher, mas também o de provocar mudanças culturais no eixo de
como se compreende o que é saúde e sexualidade, e de como, no processo
de construção da autonomia, são centrais as determinantes de gênero,
raça/etnia e classes sociais.
Observamos que, a partir de uma proposta norteada por
diretrizes e princípios, não se conseguiu, em oito anos, efetivar a
integralidade e equidade dentro do Programa, nem mesmo fazer estas
diretrizes conhecidas pelos profissionais de saúde que nele
atuam, muito menos, as usuárias.
As investigações constatam, claramente, a falta de
correspondência entre os direitos assegurados nos discursos oficiais e a
realidade concreta a que se referem. Observa-se, na realidade dos serviços
públicos, que a garantia do direito à saúde está muito distante do que se tem
no papel.
Falta trabalhar a interdisciplinaridade, estimulando a discussão
coletiva acerca das ações desenvolvidas e por toda a equipe;
288
Falta capacitação da prática interdisciplinar.
Falta capacitação da equipe na perspectiva de gênero;
Falta conhecimento e preparação da equipe para o atendimento à
mulher vítima de violência doméstica e sexual;
Falta articulação entre os outros Programas da Saúde, inclusive o
PSF;
O atendimento médico está voltado, unicamente, para “doença”
da usuária;
É imprescindível que o Programa implante o acolhimento,
invertendo a lógica de organização e funcionamento do serviço de saúde,
norteado em experiência exitosa, como o caso de Betim – MG, pautado nos
seguintes princípios:
1) Atender a todas as pessoas que procuram os serviços de saúde,
garantindo a acessibilidade universal. Assim, o serviço de saúde
assume sua função precípua, a de acolher, escutar e dar uma
resposta positiva capaz de resolver os problemas de saúde da
população.
2) Reorganizar o processo de trabalho, a fim de que este desloque
seu eixo central do médico para uma equipe multiprofissional que
se encarregue da escuta do usuário, comprometendo-se a resolver
seu problema de saúde.
3) Habilitar a relação trabalhador-usuário, que deve dar-se por
parâmetros humanitários, de solidariedade e cidadania.
4) Habilitar toda a equipe na perspectiva de gênero; garantido a
sensibilização da equipe para determinadas fragilidades e
vulnerabilidades das usuárias do Programa;
5) Habilitar a equipe para o atendimento à mulher vítima de
violência doméstica e sexual;
6) Articular dentro da equipe ações permanentes de educação e
saúde;
7) Que se repense a importância e necessidade da avaliação
sistemática das ações desenvolvidas pelo Programa, respeitando-se as
instâncias de representação das mulheres, na luta por saúde pública de
qualidade.
8) Por fim, que as instâncias de gestão no Município
compreendam a importância política de transformar o PAISM – Programa de
Atenção Integral à Saúde da Mulher na PMAISM - Política Municipal de
Atenção Integral a Saúde da Mulher.
Sugerimos, portanto, melhoria gerencial dos serviços e a
qualificação permanente dos profissionais de saúde, a fim de que possam
prestar uma assistência integral e humana, evitando a excessiva utilização de
tecnologias médicas, utilizando recursos de “escuta” de “acolhimento”,
289
contribuindo, efetivamente, para a transformação do atual modelo de
assistência.
Nesse contexto, espera-se que os resultados deste estudo
possam estimular reflexões que favoreçam mudanças urgentes na
adequação das ações, ao modelo de atenção proposto pelo PAISM, no que se
refere ao acesso e acolhimento das mulheres, enfatizando-se a
proposta de humanização, integralidade e equidade.
290
REFERÊNCIAS
291
RAZÕES E/OU MOTIVOS DO ABORTAMENTO EM UMA MATERNIDADE
PÚBLICA DE TERESINA-PI
Ariane Gomes dos Santos
2
Inez Sampaio Nery
Fernanda Maria de Jesus S. P. Moura3
Érida Zoé Lustosa Furtado1
1 INTRODUÇÃO
A Organização Mundial de Saúde estima que, no mundo todo, cerca de
500mil mulheres morrem a cada ano de causas relacionadas à gestação,
sendo que 98% dessas ocorrem nos países em desenvolvimento. Nesses
locais complicações de aborto são responsáveis por 15% do total das mortes
maternas a cada ano (OLINTO; MOREIRA-FILHO, 2006).
Desse modo, verifica-se que a prática da interrupção da gravidez espelha as
desigualdades sociais brasileiras. Segundo Olinto e Moreira-Filho (2006),
enquanto mulheres de classes sociais mais privilegiadas recorrem ao aborto
em clínicas privadas com procedimentos seguros, mulheres pertencentes a
classes sociais menos favorecidas são expostas a procedimentos inseguros,
na maioria das vezes, realizados por profissionais não especializados
utilizando-se de técnicas perigosas que podem acarretar risco de vida ou
seqüelas irreversíveis.
O Código Penal Brasileiro, no artigo 124, caracteriza como crime o aborto
provocado pela gestante ou com seu consentimento, contudo, o artigo 128
dispõe que não se pune a realização do aborto nos casos de risco de vida da
gestante e de gravidez resultante de estupro (RODRIGUES, 2001).
No entanto, apesar da existência dessas medidas legais, estatística feita pelo
Ministério da Saúde, no Brasil, mostra que cerca de um milhão de abortos são
feitos clandestinamente por ano; 300 mil mulheres são internadas com
complicações decorrentes de abortos clandestinos; 10 mil morrem por causa
de aborto mal feito; 205 abortos legais foram feitos até hoje por hospitais
públicos no Brasil; 47% das mulheres que fizeram abortos nos hospitais em
São Paulo tinham até 19 anos (OLIVEIRA; BARBOSA; FERNANDES, 2005).
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no
período de 1980 a 1994, a região Nordeste foi considerada a segunda região
brasileira de maior incidência de abortos, perdendo apenas para a região
Sudeste (OLIVEIRA; BARBOSA; FERNANDES, 2005). No Estado do Piauí, o
_____________________________________________________________
106
[1] Graduandas do 8º período do curso de Enfermagem da UFPI.
[2] Doutora em Enfermagem. Profª Associado I, das disciplinas Saúde da Mulher e Saúde Reprodutiva
da UFPI. Email: ineznery.ufpi@gmail.com
[3] Mestre em Enfermagem. Professora Auxiliar das disciplinas Saúde da Mulher e Saúde Reprodutiva
da UFPI.
293
aborto constitui a quarta causa de morte materna (NERY; TYRRELL, 2002).
Pessoas leigas ou até mesmo profissionais de saúde confundem os
vocábulos aborto e abortamento, utilizando-os como sinônimos. Contudo,
tais denominações são distintas, visto que o aborto é “o produto conceptual
eliminado” e o abortamento “é a interrupção da gravidez antes de
completadas 20 semanas de sua evolução, ou quando o produto conceptual
eliminado pesa 500g ou menos” (BASTOS, 1998:325), podendo ocorrer
espontaneamente ou de forma induzida (VIEIRA, et al, 2007). Este último
pode ter a participação voluntária ou involuntária da gestante, e ser
considerado legal ou ilegal (RESENDE FILHO; MONTENEGRO, 2008).
Por sua vez, as razões e/ou motivos que levam a mulher a interromper a
gravidez são resultado da inter-relação de vários fatores e envolvem
aspectos particulares e individuais, de modo geral fundamentadas em
questões sociais, econômicas e emocionais.
Desse modo, a idéia de elaborar um trabalho com essa temática surgiu do
interesse das autoras em conhecer e discutir as razões e/ou motivos que
conduziram as mulheres ao abortamento em uma Maternidade Pública de
Teresina – PI, tratando este processo como uma questão de saúde da mulher
e do bem estar da família, tendo em vista a complexidade do tema exposto.
Considerando-se que o aborto constitui um importante problema de saúde
pública (PERES; HEILBORN, 2006), pretendeu-se com este estudo
conhecer as razões e/ ou motivos que conduziram as mulheres ao
abortamento e sua implicação na qualidade de vida da mulher. Esta pesquisa
poderá ajudar na caracterização da clientela e, ao mesmo tempo, auxiliar os
profissionais de saúde a atuarem de forma adequada, objetivando a
implantação e/ou implementação de estratégias e programas de intervenção
que tenham por base a Saúde Reprodutiva e a prestação de uma assistência
mais humana e segura às mulheres nesta situação de risco.
2 METODOLOGIA
Trata-se de um estudo de natureza quali-quantitativa que foi realizado com
mulheres hospitalizadas em processo de abortamento, em uma maternidade
pública de referência para o atendimento à mulher no ciclo gravídico -
puerperal situada em Teresina-PI.
O instrumento utilizado para a coleta de dados foi um formulário previamente
elaborado contendo questões abertas e fechadas, o qual foi submetido a um
pré-teste e a seguir às correções devidas, de acordo com as variáveis do
estudo. A técnica utilizada para o preenchimento do formulário foi a entrevista,
que consiste numa técnica bastante relevante e que permite desenvolver
relações mais próximas entre as pessoas sendo também considerado o
procedimento mais utilizado no trabalho de campo.
294
A população do estudo foi composta por 70 mulheres hospitalizadas que
tiveram como causa de internação o abortamento, foram abordadas nas
enfermarias e, as que aceitaram participar da pesquisa, levadas a um
ambiente mais reservado (sala de reuniões), para dessa forma evitar
constrangimentos. Ressalta-se que mulheres em pós-operatório imediato por
curetagem, em estado emocional debilitada e portadora de distúrbio mental,
foram excluídas da pesquisa devido à fragilidade em que se encontravam.
Não foi definido antecipadamente o tamanho da amostra em função de se
tratar de um evento em expectativa de ocorrência, entretanto a maternidade
em questão atende uma média de 60 casos mensais.
A coleta de dados foi realizada por duas acadêmicas do curso de
Enfermagem da UFPI, no período de abril a maio de 2009. Inicialmente, as
respondentes foram informadas sobre os objetivos e importância do estudo,
sendo-lhes assegurado o total sigilo e anonimato, respeitando a privacidade,
a intimidade e a liberdade de participação, seguindo os preceitos legais da
Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde que trata da pesquisa
envolvendo seres humanos. Dessa forma, os sujeitos assinaram o termo de
consentimento livre e esclarecido (BRASIL, 2002).
Na coleta de dados utilizou-se o método de janelas de tempo, que permite
economia de tempo e pessoal para a pesquisa e evita o viés de sazonalidade,
sendo muito aplicado a eventos que estão por acontecer (JEANNEL, et
al,1988). Desse modo, mesmo não havendo um cálculo prévio do tamanho da
amostra a população foi representada sem prejuízo, considerando o método
de seleção utilizado. Neste sentido, o período de coleta dos dados totalizou
oito semanas consecutivas, sendo que em cada uma dessas semanas três
dias foram aleatoriamente utilizados para a investigação. Nos dias
aleatoriamente selecionados de cada semana, as pesquisadoras
compareceram à MDER em dois turnos para verificar se houveram
internação por abortamento, para realizar as entrevistas.
Para a análise dos dados utilizou-se o software SPSS versão 17.0 e os dados
foram apresentados em forma de tabelas possibilitando a discussão com
base na revisão da literatura sobre o tema. Através da análise das variáveis
estabelecidas no formulário, foi possível identificar as razões e/ou motivos
que levaram a esta prática na maternidade pública em questão.
3 RESULTADOS
Foram apresentados na forma de tabelas enumeradas de 1 a 6 conforme a
seguir:
Tabela 1 - Distribuição das mulheres com abortamento por número de
abortos e gestações, relacionada à renda familiar, Teresina, abril-maio, 2009.
295
As mulheres que tinha uma menor renda familiar, até um salário mínimo,
apresentaram uma maior taxa de abortamento na primeira gestação com
relação às mulheres que apresentavam um maior poder aquisitivo, sendo que
as primeira representaram 37,14%, ou seja, 26 mulheres de um total de 47
respondentes, o que corresponde a 67,14% das entrevistadas. No que se
refere ao número de gestações relacionado à renda familiar, percebeu-se que
26 mulheres, ou seja, 37,14% de um total de 35 mulheres, 50% da população
estudada, tiveram até duas gestações, sendo que 21,43% delas estavam na
segunda gestação e 15,71% na primeira. Todas, essas com renda familiar
equivalente a um salário mínimo, conforme pôde ser verificado na Tabela 1.
Tabela 2 - Distribuição das mulheres com abortamento por situação conjugal,
relacionada ao número de abortos, Teresina, abril-maio, 2009.
304
REFERÊNCIAS
307
VIOLÊNCIA E SAÚDE MENTAL: uma análise do discurso das mulheres
Milena Fernandes Barroso (UFAM)
Luciana Oliveira Lopes (UFAM)
107
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Sustentabilidade da Universidade
Federal do Amazonas (UFAM) e Professora Auxiliar do Instituto de Ciências Sociais, Educação e Zootecnia
de Parintins – ICSEZ, da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). E-mail: .
108
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Amazonas
(UFAM) e Professora Substituta da Faculdade de Psicologia da Universidade Federal do Amazonas
(UFAM). E-mail: lulopespsi@hotmail.com.
309
De acordo com os dados da Secretaria Estadual de Segurança do
Amazonas, em 2006, foram registradas 54.999 ocorrências de violência
contra as mulheres em Manaus, em 2007 esse número cresce para 83.193
ocorrências.
Embora os números assustem, é importante dizer que eles não
representam o retrato real dessa questão, uma vez que muitos casos não
chegam a ser notificados. Apesar da magnitude do problema ainda não ser
dimensionado com precisão, sabe-se que o agravo é de elevada prevalência
e tem assumido caráter endêmico (MENEGHEL, 2007).
Por influência dos movimentos feministas, as questões
envolvendo a temática da violência contra as mulheres passam a compor as
agendas políticas, governamentais e acadêmicas, inserindo-se fortemente
no campo dos Direitos Humanos, a exemplo da Convenção para Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – CEDAW, adotada
pelo Governo brasileiro, em 1984; a Declaração de Direitos Humanos de
Viena, aprovada em 1992; II Conferência Mundial, de 1993, da Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher –
Convenção de Belém do Pará, adotada em 1995; e a IV Conferência Mundial
das Mulheres, realizada em Beijing em 1996.
Nos anos 1990, a violência contra as mulheres foi reconhecida
como um problema de saúde pública, sendo considerada uma das formas
mais generalizadas de abuso dos Direitos Humanos. De acordo com Sagot
(2007), os altos índices de violência intrafamiliar vividos pelas mulheres,
constituem sério problema de saúde pública, um obstáculo oculto para o
desenvolvimento sócio-econômico e uma violência flagrante dos Direitos
Humanos das pessoas afetadas, representando muitas vezes uma violação
direta à integridade da pessoa.
Os custos da violência contra as mulheres também são grandes;
gastos com saúde, processos legais, transporte, incapacidades e
absenteísmo laboral das mulheres podem significar somas multimilionárias
para as instituições públicas e privadas. “A violência intrafamiliar representa
quase 1 ano de vida perdido para cada 5 anos de vida saudável para as
mulheres de 15 a 44 anos” (SAGOT, 2007, p.25).
A violência contra as mulheres configura-se hoje como uma das
mais acentuadas violações dos direitos, representando restrições à
liberdade, a dignidade e à autonomia. Em 1973, a Conferência das Nações
Unidas sobre Direitos Humanos, realizada em Viena, reconheceu a violência
contra as mulheres como uma violação flagrante contra os Direitos Humanos.
Mas, o que consideramos violência contra as mulheres? Afinal,
de que violência estamos falando? De que mulheres estamos falando? Das
Eloás que viram espetáculo para a grande mídia? Também. Mas, sobretudo,
devemos falar das Marias, Joanas, Aparecidas e tantas outras anônimas que
não aparecem nos noticiários, tão pouco nos boletins de ocorrência das
310
delegacias.
A violência contra as mulheres não se caracteriza somente por
aquilo que é visível (a violência física). Por trás de diversas manifestações
aparentes pode existir um risco real e iminente de morte; meses, anos de
agressões físicas, emocionais ou sexuais. De acordo com
Heleieth Saffioti (2004), uma das autoras brasileiras com extenso trabalho
nesta área, a violência contra as mulheres é expressão histórica da
desigualdade de poder nas relações sociais de gênero, determinadas pela
dominação patriarcal, pela desigualdade de classe e pelo racismo.
A violência doméstica contra a mulher é vista pelo feminismo
como expressão radical da relação hierárquica entre os sexos no núcleo
familiar. Segundo Gregori (1993), em seu estudo A violência conjugal na ótica
do feminismo brasileiro, este tipo de violência é entendido como uma relação
assimétrica, em que o homem ocupa a posição de mando, podendo fazer a
sua autoridade para punir, exigir e por vezes agredir os outros componentes
da família; enquanto a mulher, cujo papel é o de lidar com as tarefas
domésticas e cuidar dos filhos, está subordinada aos desígnios do homem.
Destacamos o conceito de violência contra as mulheres
formulado na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher - Convenção de Belém do Pará, que o caracteriza
como qualquer ato que resulte ou possa resultar em danos ou sofrimentos
físico, sexual, psicológico ou patrimonial à mulher, inclusive ameaças de tais
atos, coerção ou privação arbitrária de liberdade em público ou na vida
privada, assim como castigos, maus tratos, pornografia, agressão sexual e
incesto.
As estatísticas apontam para o fato de que a violência contra as
mulheres é um problema de grandes proporções, socialmente estruturado
nas desigualdades de gênero, perpassado pelas desigualdades de raça e
classe e, não raro, pela dimensão geracional. Caminham para uma direção
onde, na maioria dos casos, esta violência é praticada por homens que
possuem uma relação de proximidade, ou seja, que possuem algum tipo de
relação íntima – afetiva ou familiar –, com quem as sofre. Apontam ainda para
a existência de um lugar privilegiado para a ação deste tipo de violência,
tendo em vista que na maioria dos casos, ela ocorre no espaço, do doméstico.
“O abuso das mulheres por parte de seus companheiros é uma
forma endêmica da violência familiar” (SAGOT, 2007, p. 23).
De acordo com a Lei Maria da Penha (2006), violência doméstica
significa:
109
Pesquisa: A mulher brasileira nos espaços público e privado – Fundação Perseu Abramo. Disponível em:
http: // www.fpa.org.br/nop/ Acesso em: 05 abril de 2007.
311
sofrimento sexual, sofrimento psicológico, dano moral ou dano
patrimonial, dentro da unidade doméstica (espaço de convívio
permanente de pessoas com ou sem vínculo familiar), do âmbito familiar
(pessoas que são ou se consideram aparentadas, por laços naturais, por
afinidade e por vontade expressa) e de qualquer relação íntima de afeto
independente de coabitação (namoro ou qualquer outro tipo de
envolvimento íntimo em que exista uma convivência).
No contexto em que a violência contra as mulheres viola os
princípios da igualdade de direito e o respeito à dignidade humana, se
configurando como um grave problema social, econômico, interpessoal e de
saúde, é que buscamos conhecer as situações de violências vivenciadas
pelas mulheres atendidas no Centro de Atenção Psicossocial Dr. Silvério
Tundis em Manaus, e qual a relação da violência com o sofrimento mental que
a fizeram procurar/chegar ao serviço. Para tento realizamos uma revisão nos
conceitos de saúde, saúde mental e a relação entre violência e saúde mental
para entendermos melhor se existe relação entre o sofrimento psíquico e os
conceitos de violência doméstica apresentados.
2 O CONCEITO DE SAÚDE, PROMOÇÃO DE SAÚDE E SAÚDE MENTAL
Sendo a violência contra a mulher uma questão de saúde pública, que
caminhos os estudos e pesquisas nesta área têm tomado ao longo dos anos?
O que se entende como saúde? E saúde mental? E o que isso tem haver com
violência contra a mulher?
O conceito mais amplamente conhecido e aceito na atualidade
entende saúde como um bem estar biopsicossocial, sendo esse proposto
pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Verifica-se assim que tal
conceito não é simplesmente a ausência de doença, mas tem como base o
entendimento de que os aspectos psicológicos, sociais, ambientais e
ecológicos são tão relevantes quanto o biológico para determinar que uma
pessoa apresente uma boa saúde.
Anteriormente, a doença era o foco dos profissionais e
pesquisadores da área. Observa-se assim, uma mudança de paradigma
tendo em vista que durante séculos o modelo dualista mente-corpo, bem
como o de clínica a partir do adoecimento foi o vigente.
Mas essa transposição garantiu uma mudança na concepção de
saúde? O modelo proposto fomentou um conhecimento e diálogo
interdisciplinar que pretendesse superar as metodologias psicopatológicas e
dos métodos psicoterapêuticos?
Partindo do conceito de saúde, uma nova perspectiva de cuidado
foi se aprimorando. O enfoque passa ser a saúde e não a doença. Ou seja,
busca-se, acima de tudo, a promoção de saúde. Mas, esse é um conceito que
ainda encontra muita dificuldade de entendimento tornando-se assim
necessário traçar diferenciações sobre esse entendimento, clarificando a
definição do mesmo.
312
Buss (2003) nos diz que as conceituações de promoção de
saúde podem ser agrupadas em dois grandes grupos. Sendo o primeiro
deles, composto por compreensões de que a promoção de saúde consiste
nas atividades dirigidas às transformações dos comportamentos dos
indivíduos. Concentra-se em atividades educativas primárias. Nessa
conceituação, ainda de acordo com o autor, fugiriam do âmbito da promoção
de saúde todos os fatores que estivessem fora do controle dos indivíduos.
Em contraposição, o autor cita que o que caracteriza o conceito
de promoção de saúde, é a constatação de protagonistas gerais para as
condições de saúde, quais sejam: alimentação e nutrição, habitação e
saneamento, boas condições de trabalho, oportunidades de educação ao
longo da vida, ambiente físico limpo, apoio social para famílias e indivíduos,
estilo de vida responsável. Tal conceito diz mais respeito ao que se entende
sobre saúde atualmente, vendo-a de maneira mais globalizante, articulando
saúde e condições de vida.
Entendemos então que o conceito de promoção está intimamente
ligado ao que se entende por integralidade da pessoa, ou seja, um olhar que
abarca todas as experiências vivenciadas sejam elas positivas ou negativas,
inclusive a vivência da violência. Falamos de uma diretriz política que pensa a
pessoa potencializada pela sua subjetividade, auto-estima, autonomia e
cidadania, devendo, pois, ser concebida dentro de uma nova construção
epistemológica.
Basaglia (2005, p.136) se referindo a Goffman, discutindo um
novo modelo de atenção na área da saúde mental, apontava que o autor:
Deixando de lado qualquer definição nosográfica, ele conseguiu
apreender as facetas do aspecto social da doença (o que foi feita dela, o
significado que lhe deram, a face construída para ela), identificando o
doente mental como o objeto de violência original, familiar, social e
institucional – “o vórtice dos enganos” – confirmada pela rotulação
científica que a justifica. De fato, se deixarmos a doença como fato real e
considerarmos apenas seu aspecto social, podemos definir o doente
mental como a presença de um terceiro mundo dentro do mundo
ocidental
A OMS em seu Relatório Mundial de Saúde (2002) direciona pela
necessidade de estudos mais elaborados no desenvolvimento de
intervenções na área da saúde mental, na busca de compreender as
variações que influenciem no resultado e na eficácia do tratamento.
Acrescenta ainda que conceito de saúde mental é definido diversamente em
diferentes culturas, embora aponte que saúde mental é algo muito mais do
que a ausência de perturbações mentais. O relatório afirma ainda que o
conceito de saúde mental abrange, entre outras coisas, o bem-estar
subjetivo, a autonomia, a auto-realização do potencial intelectual e emocional
do sujeito.
313
No Brasil, o espaço preconizado pelo Serviço Único de Saúde
(SUS) para o tratamento àqueles que se encontram em sofrimento psíquico
são os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), lugar privilegiado para a
realização da pesquisa, pois configura-se como ordenador da rede de
atendimento em saúde mental, e um dos serviços substitutivos ao modelo
manicomial.
Rabelo e Queiroz (2008) relatam que ao realizarem um grupo de
atendimento a mulheres em um Caps, no discurso, as usuárias
apresentavam representações sociais sobre a loucura levantadas pelo
discurso médico e psicológico, dizendo que os problemas são nos “nervos da
cabeça”, ou “que já nasceu assim”, buscando nas teorias científicas, e não em
suas vivências, explicações para seu adoecimento. Nestes casos podemos
apontar para a reedição de formas antigas de lidar com a saúde, deslocando a
integralidade da pessoa, das condições de sofrimento que possam
apresentar. Daí nos questionamos: as situações de violência vividas pelas
mulheres são levadas em consideração quando se pensa sua situação de
saúde mental?
Outro questionamento que guiou o presente estudo foi se existe
“espaço”, “lugar” para o discurso das mulheres sobre a violência nos serviços
de saúde mental? As mulheres encontram canais de comunicação sobre a
violência doméstica no Centro de Atenção Psicossocial?
Padovani e Williams (2008) dizem que as mulheres em situação
de violência buscam ajuda sistemática em diferentes setores da área de
saúde, sendo que um olhar sobre o fenômeno é raramente observado ou
consta no diagnóstico e nas condutas realizadas nos serviços de saúde.
Citando Scharaiber, D´Oliveira, França e Pinho (2002) dizem ainda que no
estudo realizado por eles, de cada três usuárias que buscam o serviço de
saúde, uma apresenta histórico de violência intrafamiliar.
Koss et al. (2003), que realizaram estudos específicos nos
serviços de saúde mental, apontaram que mesmo com a alta incidência de
mulheres vítima de violência nesses serviços, a maioria não relata a questão
de violência aos profissionais de saúde, fazendo uso, assim, de recursos
próprios para lidar com as adversidades provenientes da relação abusiva.
Contudo, de acordo com Adeodato at al. (2005) as
consequências da violência doméstica para a saúde das mulheres são
maiores que as consequências de todos os tipos de câncer. Uma revisão de
estudos dos Estados Unidos, citados pela autora, concluiu que o
abuso é fator condicionante de 35% de suicídio das mulheres norte-
americanas. Afirma ainda que este tipo de violência tem sido associado a
sintomas que variam entre depressão, ansiedade e desordem de estresse
pós-traumático, aumento do uso de álcool e drogas.
3 O ESTUDO
A pesquisa foi realizada, conforme referência anterior, no Centro
314
de Atenção Psicossocial Silvério Tundis, gerenciado pela Secretaria de
Estado de Saúde do Amazonas (SUSAM). O início do seu funcionamento
data de maio de 2006, e ainda é a única unidade no município de Manaus,
criado de acordo com as diretrizes da Reforma Psiquiátrica, até agosto/2009.
O período do estudo refere-se aos meses de janeiro a julho de
2009, a partir dos registros dos prontuários, das observações e discurso das
mulheres durante o momento de acolhimento, atendimentos individuais e
grupais. Para tanto, foram obedecidos os seguintes critérios: as mulheres
pesquisadas deveriam estar inseridas em algum dos regimes de atendimento
da instituição no período citado e terem feito alguma referência sobre
situações de violência em algum momento na instituição.
O objetivo principal foi observar se existe relação da violência
com o sofrimento mental que a fizeram procurar/chegar ao CAPS. Qual a
percepção e o discurso das mulheres sobre suas vivências de violência
doméstica?
A amostra do estudo foi de 18 (15%) das 117 mulheres que fazem
parte de algum dos regimes de atendimentos citados. Vale ressaltar que no
período da pesquisa foram realizados 617 atendimentos médicos para
pessoas do sexo feminino e 448 para pessoas do sexo masculino. O que nos
leva a apontar que a maior demanda de consultas médicas no serviço,
provém de mulheres, 58% do total.
O estudo foi quantitativo e qualitativo, a partir da análise do
discurso das usuárias e dos registros contidos nos prontuários. Para as
análises qualitativas nos debruçamos sobre 06 usuárias, no sentido de
entender mais profundamente suas histórias.
Tivemos o cuidado de extrapolar um olhar objetivante dos
registros, no sentindo de evitar o risco de rotular a vivência de situações de
violência contra a mulher. Priorizamos por conhecer essas mulheres, suas
dores, vivências, histórias de vida, violência, e sofrimento mental.
4 DISCUSSÃO
A idade das mulheres vítimas de violência doméstica atendidas
no Caps varia entre mulheres jovens (16,6% até 30 anos) e adultas (33,3% de
31 a 40 anos; 33,3% de 41 a 50 anos e; 16,6% com mais de 51 anos). Não
constou da amostra nenhuma mulher acima de 60 anos.
Das mulheres pesquisadas 50% apresentaram queixas no
momento do acolhimento relacionadas à depressão, ansiedade, insônia e
medo. O que nos leva a corroborar com a bibliografia estudada que relata tais
sintomas como comuns às mulheres que vivenciam violência doméstica.
Observamos nos relatos das experiências vividas das mulheres
pesquisadas, histórias de violência e de desigualdade de gênero, que nunca
haviam sido ouvidas. Casos graves que fazem parte da história de muitas das
entrevistadas, onde seus discursos foram/são negados dentro e fora da
instituição, colocando a situação de violência como fundo de uma
315
problemática, sendo que deveria ser figura. É o que foi percebido na história
de Deméter.
Deméter, 40 anos, tem uma história de mais de 10 anos de
atendimento e sucessivas internações psiquiátricas, quando chegou ao Caps
fazia uso de um grande número de medicações psiquiátricas, ficando muitas
vezes impregnada, e tornando-se dependente dessas medicações. No
acolhimento, as observações estavam restritas às condições biológicas,
ligadas à avaliação das funções psíquicas. Nos grupos, de inicio veio a fala:
“minha irmã me proíbe de entrar na casa dela”, ao final de um dia de
atividades terapêuticas, outra frase que se repetia quase que cotidianamente:
“não quero voltar para casa, tenho medo da minha irmã”. Mesmo assim, as
observações ainda se restringiam aos registros no prontuário do tipo:
dificuldade com o auto-cuidado, baixa auto-estima, higiene pobre,
comportamento infantilizado.
No decorrer dos atendimentos, ao ser garantindo espaço de fala
para Deméter, sua história foi realmente contada:
Morei com um homem que bebia e me batia, isso tem 10 anos, tiraram
minha filha de mim, que hoje mora em Minas Gerais, quero minha filha de
volta, foi assim que adoeci, depois que tiraram a minha filha, fiquei só na
vida, ele me batia muito (Deméter).
Ao ouvir a fala, depois de mais de quatro meses de atendimento,
dando espaço para a expressão da situação de violência, o quadro de
dependência a medicação retrocedeu, sendo necessário ainda resgatar a
auto-estima e o auto-cuidado, que tanto foram negligenciados, passando
esse a ser o maior desafio. A usuária, mesmo depois de três anos em
atendimento, não tem um diagnóstico dentro da classificação de transtorno
mental definido. Mas, será Deméter uma mulher com transtorno mental? Se
Démeter se enquadra ou não na classificação doenças e problemas
relacionados à saúde, tendo como referência a Nomenclatura Internacional
de Doenças, estabelecida pela Organização Mundial de Saúde – CID 10, não
podemos afirmar no presente estudo. Porém, é inegável o sofrimento e a
violência vivência pela usuária ao longo de vários anos.
Com o estudo percebemos o relevante impacto que as situações
de violência doméstica causam na saúde mental das mulheres, confirmando
os dados da bibliografia estudada. As histórias dessas mulheres indicam
ocorrência do adoecimento pela cronificação das situações vividas: como
ameaças, negações, violências físicas, sexuais e exigência de um
comportamento considerado como de “mulher ideal”, baseado nos
estereótipos de gênero. É o que indica a fala de Héstia ao procurar
atendimento individual para a vontade de separar do marido:
Convivo com meu marido há treze anos, tenho três filhos. Nunca gostei
dele como deveria ser. Fui morar com ele porque engravidei. Fui traída
várias vezes e mesmo assim continuo com ele. Meu marido esta
316
frequentando uma igreja evangélica e acredita que estou em crise
influenciada pelo inimigo, me diz que não posso desistir da família, pois
ele deseja ser pastor. Eu não possuo condições financeiras para me
sustentar sozinha e, não tenho casa e tenho três filhos (Héstia).
Podemos sugerir de acordo com a fala e com os relatos do
prontuário, que a vontade de separar-se e a não aceitação por parte do
esposo, estejam contribuído para o adoecimento da usuária. O desfecho do
caso de Héstia se deu, quando se ausentou do serviço, retornando com a
família após alguns meses, em virtude de uma tentativa de suicídio, sendo
encaminhada para internamento no Hospital Psiquiátrico do Estado. O
internamento foi o único encaminhamento registrado em seu prontuário, não
constando de espaço para falar da violência sofrida, inclusive para abordar as
razões que a levaram a tentar suicídio.
Observamos ainda nos discursos das mulheres que como não
existe o espaço para a fala, antes de chegar ao serviço de saúde mental, elas
encontram recursos próprios para lidar com as adversidades provenientes da
relação abusiva, em alguns casos ligadas com auto-agressões, como Gaia
que após ser violentada pelo namorado, aos 16 anos de idade expôs: “Desse
tempo em diante comecei a me machucar no braço e em demais partes do
corpo” (Gaia).
A mesma situação é relatada por Ártemis que, desde que sofreu
violência sexual, aos oito anos de idade até os dias atuais, costuma raspar
todos os pelos do corpo, inclusive os cabelos. Mutilou-se, faz uso de drogas e
realiza trocas sexuais. Entre cinco e oito anos fui abusada pelo meu pai, só
parei de sofrer violência quando ele faleceu, nos meus oito anos (Ártemis).
O relato aponta para vivência da violência sexual na infância, bem
como para ausência de espaço para verbalizar as situações de violência na
instituição, só expôs a situação acima, após três anos de atendimento no
serviço. Os registros no seu prontuário indicam que em nenhum momento o
sofrimento da usuária foi percebido para além do discurso da patologia. O
_____________________________________________________________
110
Nesse acompanhamento, o objetivo é proporcionar ao sujeito uma liberdade para que o mesmo
apreenda suas próprias contradições, seus interstícios, suas causalidades. Dessa forma, é fundamental
valorizar canais de formação de sentidos. E esses podem ser também formados pela “intuição” (Czerina,
2003). Ou seja, o conhecimento científico e a possibilidade de operar nas práticas de saúde deveriam ser
viabilizados sem provocar a desconexão da sensibilidade em relação aos nossos próprios corpos.
111
Os regimes de atendimento nos Caps são divididos em intensivo (todos os dias úteis da semana), semi-
intensivo (de duas a três vezes por semana) ou não-intensivo (três vezes ao mês), de acordo com as
atividades específicas em contratualidade com o terapeuta de referência da usuária.
112
Aqui nos referimos ao conceito de violência doméstica contra a mulher contido na Lei No. 11.340, Lei
Maria da Penha: Qualquer ação ou omissão que cause morte, lesão, sofrimento físico, sofrimento sexual,
sofrimento psicológico, dano moral ou dano patrimonial, dentro da unidade doméstica (espaço de convívio
permanente de pessoas com ou sem vínculo familiar), do âmbito familiar (pessoas que são ou se
consideram aparentadas, por laços naturais, por afinidade e por vontade expressa) e de qualquer relação
íntima de afeto independente de coabitação (namoro ou qualquer outro tipo de envolvimento íntimo em que
exista uma convivência).
317
comportamento “discordante”, transgressor da usuária, foi resolvido através
da medicalização.
A pesquisa apontou também para uma limitação institucional, os
profissionais não analisam a questão da violência no processo de
acolhimento das usuárias. Dos 18 prontuários analisados no estudo, apenas
02 (11%) continham informações a respeito da violência doméstica
vivenciada. Só percebeu-se a história de violência como intimamente ligada
ao processo de adoecimento psíquico, após a inserção da mesma nos
regimes de atendimento, sendo que a resposta inicial à demanda
apresentada foi sempre a prescrição medicamentosa.
Entretanto, torna-se importante destacar que desses prontuários
que não apresentavam inicialmente história de violência doméstica, em 03
casos havia registro por parte do profissional de problemas na relação
familiar. Mas, a situação não foi investigada.
Frente à amostra, destacam-se como prováveis hipóteses para a
dificuldade do registro por parte do profissional do serviço, a falta de
conhecimento sobre o fenômeno, a representação e o medo de ofender a
usuária e, as crenças equivocadas sobre a violência doméstica.
Assinalamos para a importância dos profissionais de saúde em
realizar a escuta das mulheres em sua complexidade e integralidade. Não
tivemos dúvidas nesse estudo, sobre o quanto à violência pode estar
relacionada a diversos problemas de saúde, entres estes, os
sofrimentos mentais.
Sabemos que o relato das experiências de sofrimento e violência
também está relacionado ao tempo de mulher, a confiança, e vínculos
construídos. Nesse sentindo cabe destacar que os Centros de Atenção
Psicossocial tem papel importante na construção de vínculos com seus/suas
usuários/as. Faz-se mister aguçar a escuta e estar aberto para olhar o outro,
as mulheres, em sua integralidade e principalmente como sujeito de direitos.
Têmis foi uma das duas usuárias que relatou no primeiro
acolhimento que sofreu violência, disse que sofreu abuso sexual e que por
isso carregava traumas. Fazia questão de dizer que não era maluca; dizia não
estar bem porque não estava em casa, veio de outro Estado e estava
morando com os irmãos. Falava do sentimento de medo e de abusarem suas
filhas. “Sofri abuso sexual na adolescência, quando residia na casa de uma
tia. Acordei com esperma na barriga. Neste dia meus tios brigaram. Mas, meu
tio é uma pessoa boa, quase um segundo Pai.” (Têmis).
O relato indica um quadro de dualidade presente nas situações
de violência sexual: culpa, vergonha, raiva. Têmis, em alguns atendimentos
individuais, referindo-se sobre sua vida sexual com namorados e maridos,
descrevia aspectos de submissão, o que nos leva a sugerir que sua vida
_____________________________________________________________
113
Os nomes das usuárias são fictícios, visando a preservação de suas identidades.
318
sexual, estabeleceu-se a partir dos desejos de outros e nunca a partir da
realização de seus próprios desejos e/ou de cumplicidade.
Os resultados do estudo também mostram o risco de tratarmos a
violência como uma doença e daí, como já apontava Schraiber (1999), em
seus estudos sobre violência e saúde, deduzirmos um conjunto de
procedimentos e ações que a mulher deve seguir para poder “curar-se” do
problema. O que ocorreu com algumas das usuárias, foi o encaminhamento
para atendimentos psicológicos (61%) bem como o uso da medicação (em
100% dos casos), no sentido de “curar-se” da violência, quando na verdade, a
violência doméstica apesar de trazer muitas consequências para a saúde das
mulheres, se sobrepõe a essa esfera, fazendo parte de uma
situação de vida, situação complexa, que não será “resolvido” apenas nos
meandros do serviço de saúde.
O estudo apontou ainda que o recurso à medicação, muitas
vezes, é uma forma de calar manifestações de resistência e autonomia das
mulheres. Porém, a fala das mulheres como argumento e ação (Arendt, 2001)
têm se mostrado presente e fundamental para construção de outros lugares,
para além da violência. É o que nos demonstra o depoimento de Métis ao
falar de sua discordância de seu marido ao exigir sua ida para o Hospital
Psiquiátrico do Estado:
Não tinha necessidade ir pra lá, fico irritada, chateada, porque realizo as
atividades de casa sozinha, gostaria que meu marido também fizesse,
mas, eu arrumo tudo e ele deixa tudo bagunçado, bem que ele podia
ajudar mais na educação de nosso filho também, tudo de casa é minha
responsabilidade. Ele pensava que eu estava em crise, mas, eu não
estava, sabia tudo que estava acontecendo (Métis).
1 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Concluímos, com o desejo de continuar conhecendo tantas
outras Démeter, Héstia, Gaia, Ártemis, Têmis, Métis e Marias. Esperamos
com esse artigo contribuir para a visibilização das situações de violência
sofridas por tantas mulheres e, principalmente para reflexão do não espaço e
da medicalização que as instituições de saúde, mesmo com propostas
diferenciadas, continuam a reproduzir.
Cabe considerar também que, para além da significativa relação
da violência doméstica contra a mulher com a saúde mental/sofrimento
mental, o estudo mostrou-nos a importância da construção da autonomia
efetiva e cotidiana das mulheres, na trajetória de enfrentamentos e superação
da violência à qual foram submetidas.
Aqui se trava o desafio, pois percebemos que o discurso e as
falas das mulheres são permeados por poderes que vem garantindo
resistências diárias para a superação das situações de violência, já
apontadas por Focault (2001, p.89) ao afirmar que “o poder está em toda
319
parte; não porque englobe tudo e sim porque provém de todos os
lugares”.
O discurso dessas mulheres contribuiu para a reflexão do risco de
se objetivar a fala, e com isso a efetivação para a situação de cronificação do
sofrimento psíquico. Tal percepção aponta para a necessidade de maiores
estudos que relacionam saúde mental e gênero, para que a atuação prática
também consiga abarcar essa demanda, sem preconceitos, medos e mitos.
320
REFERÊNCIAS
322
GÊNERO, CIÊNCIA E PATERNIDADES: ANÁLISE DA PRODUÇÃO
CIENTÍFICA BRASILEIRA EM BANCO DE TESES E DISSERTAÇÕES
DA COORDENAÇÃO DE APERFEIÇOAMENTO DE PESSOAL DE NÍVEL
SUPERIOR (CAPES)
1 INTRODUÇÃO
Compreendendo a ciência como dispositivo de produção de
modos de ser e regimes de verdade (FOUCAULT, 2007), este levantamento
bibliográfico nasceu da necessidade de construção de um projeto de
pesquisa para o Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UPPE.
Para tanto, analisamos, entre maio a junho de 2009, os resumos
de pesquisas indexadas, de 1987 a 2008, no Banco de teses e dissertações
da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES),
a partir do descritor: paternidade. Os critérios adotados para escolha dos
trabalhos foram:
a) que no título da publicação tivesse referência direta à palavra
“paternidade” ou termos correlatos (pai, função-paterna etc.);
b) publicações voltadas exclusivamente à paternidade entre
humanos;
c) resumos com informações mínimas para compreensão da
publicação.
O objetivo geral deste levantamento era conhecer o campo de
estudos científicos sobre paternidade no Brasil. Como específicos,
desejávamos: fazer um panorama que permitisse visualizar como o tema
paternidade vem sendo problematizado nos diversos campos de
saber nestes 21 anos de pesquisas e analisar a relação entre saberes
científicos e a construção do sujeito homem-pai a partir dos estudos
feministas de gênero que buscam superar a di-visão natureza/corpo versus
cultura/gênero, focalizando dispositivos de saber-poder que produzem
_____________________________________________________________
114
Site: www.servicos.capes.gov.br/capesdw.
115
Destaco tal critério porque na pesquisa sobre paternidade são muitas as publicações cujo foco é a
paternidade entre não humanos, por exemplo, “Impressos digitais de DNA genômico amplificado através
de primers randômicos na determinação da paternidade bovina” (LIMA, 1994).
323
reiterações constantes da heteronormatividade e da dicotomia masculino-
feminino (BUTLER, 2008).
2 CIÊNCIA E PATERNIDADES
Em 21 anos de produções científicas identificadas 807
dissertações e 272 teses, cujo total corresponde a 1.079 trabalhos de
diversos campos de saber.
Jorge Lyra (1997) produziu um levantamento bibliográfico que
compreendeu os períodos entre 1985 a 1995. Nesses 10 anos de brasileiras
pesquisas, identificou apenas dois artigos de revista científica e 17 trabalhos,
entre dissertações e teses. Identificou um total de 39 produções brasileiras
entre livros, capítulos de livros, teses, dissertações, artigos de revistas,
comunicações em congressos e relatórios/monografias sobre paternidade.
Obviamente um número bem reduzido do atual.
Medrado, Lyra, Ana Roberta Oliveira, Mariana Azevedo, Giselle
Nanes e Dara Andrade Felipe (2009), em artigo recente, produziram outro
levantamento a partir do descritor paternidade em no banco de
teses/dissertações da CAPES, no SciELO e Google Acadêmico obtendo,
respectivamente, 1.089 trabalhos, 53 artigos científicos e 11.400 referências
entre artigos científicos, livros, resumos, textos produzidos por organizações
profissionais, bibliotecas de pré-publicações, etc.
A diferença entre os dois levantamentos é explicada pelos
autores e autoras a partir de alguns fatores:
a) o advento da internet possibilitou um aumento exponencial no
número de veículos de comunicação científica e de fontes de levantamento
bibliográfico;
b) a facilidade de acesso às publicações indica também maior
potencial de produções e o próprio compartilhamento dos conhecimentos;
c) e a relevância do tema no contexto acadêmico dado a continuidade
e o aumento do número de publicações.
Destacamos esses fatores por acreditar que os argumentos que
os subsidiam também se adéquam a presente pesquisa. Além disso, o
exponencial crescimento de publicações sobre paternidade, a super
exposição do tema em vários veículos de comunicação científica, o aumento
– que como pode ser percebido nos levantamentos – da pluralidade e
diversidade de saberes que se dedicam a investigá-la, analisá-la, classificá-
la, defini-la, conhecê-la, evidenciam tanto seu caráter polissêmico como os
jogos de poder no qual está inserida conforme os contextos e sentidos.
Uma breve análise sobre as publicações que tratam da
paternidade confirma tal percepção ao evidenciar como o tema está sendo
324
conhecido a partir de diferentes campos de saber que vão do Direito a
Enfermagem, da Psiquiatria a Antropologia, da Educação Física a Psicologia,
das Ciências Sociais a Comunicação.
a) De 1987 a 1990...
Os saberes presentes no banco de teses/dissertações da CAPES
na forma de publicações são o Direito e a Psicologia.
Os interesses no campo do Direito recaem sobre o
reconhecimento da paternidade fora do casamento. Dois marcos históricos
foram importante para subsidiar tais análises: a promulgação da Constituição
Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990. Nos
documentos se assegurou que filhos havidos ou não fora do casamento, ou
por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações relativas à filiação e se
reconheceu o estado de filiação como direito personalíssimo, indisponível e
imprescindível, podendo ser exercido pela força da lei contra pais e seus
herdeiros.
Na Psicologia, inserida neste contexto histórico, a investigação é
a paternidade, sendo problematizada a partir das implicações de
sua ausência e como construção na história de vida e no desenvolvimento do
sujeito.
b) De 1991 a 2001...
Uma década depois a paternidade desponta, pouco a pouco,
como temática investigada por uma pluralidade e diversidade de saberes
científicos. Em 1991 no Direito se analisa a tensão entre o código civil vigente
e a jurisprudência acerca da paternidade presumida enquanto na Psicologia
se investigam as representações sociais e o papel da paternidade. Foram
identificadas em 1993 somente publicações no Campo da Psicologia nas
quais se analisou o lugar do pai e a tensão entre função paterna e complexo
edipiano; e a paternidade como experiência negada por meio do abortamento
provocado e do silencio cultural dos homens diante desse processo.
Em 1994 a Psicologia analisou as tensões entre a identidade
masculina e uma paternidade que envolveria atribuições antes ligadas à
condição feminina como afetividade e cuidado, e a busca de uma nova
definição de ser homem, e a paternidade na clínica. Na publicação de Saúde
Pública se questionou os significados de ser pai, a postura paterna frente aos
filhos e seu envolvimento no cuidado dos mesmos.
É importante ressaltar outro marco histórico que ressoa nas
produções acadêmicas internacionais e nacionais. Nesse mesmo ano foi
realizada em Cairo/Egito a Conferência Internacional de População e
Desenvolvimento no Cairo/Egito, na qual se afirmou a importância da
325
responsabilização do homem por seu comportamento sexual e
por sua maior participação na vida familiar e no cuidado com a prole.
Além disso, da necessiadade de garantir atravês de uma
educação formal e familiar que meninos e rapazes aprendassem a respeitar
as mulheres e as meninas. Medidas que visavam contribuir para a Igualdade
e Equidade entre os sexos e promoção da mulher. Tais propostas não
“apareceram” no evento, pois o antecidiam e faziam parte das discussões dos
movimentos sociais, com destaque ao feminista, sendo que foi na
conferência que foram tornados públicos enquanto reivindicação e proposta
coletivas.
No campo do Direito, conseqüência direta do impacto da Carta
Magna e do ECA na vida familiar brasileira, o interesse recaiu sobre a nova
concepção de família, o estabelecimento da paternidade e a filiação afetiva.
Na Psicologia, por sua vez, se buscou problematizar a construção de uma
paternidade (mais consciente e participativa) pela desconstrução da
“masculinidade hegemônica”; e a vivência e experiência do pai enfocando a
contribuição das mudanças culturais (do ser masculino e feminino) para a
configuração de uma nova estrutura psíquica do ser humano, assim como
familiar e organização social, a partir de um enfoque psicanalítico.
Mais saberes passam a produzir verdades sobre a paternidade a
partir de 1996. No campo da Antropologia se questiona a construção da
“nova” paternidade a partir da ruptura do modelo hegemônico de
masculinidade. Na Educação o foco é conhecer e problematizar o discurso
paterno buscando as singularidades e diversidades. Os dois
trabalhos são exemplos do cruzamento entre estudos sobre masculinidades
que marcam a década de 1990 que analisam os homens (e não mais o
homem genérico) em suas singularidades e em suas diversidades e os sobre
a paternidade e “nova” paternidade. No Direito o impacto das novas
tecnologias de reprodução é problematizado enquanto que na Psicologia
analisa-se exercício da paternidade na separação conjugal.
Em 1997 as publicações no Campo da Psicologia recaem sobre a
paternidade na adolescência propondo análises e intervenções. Nesse ano é
_____________________________________________________________
116
“A paternidade fora do casamento – análise crítica do estatuto vigente no Brasil” (RAMOS, 1988).
117
“Ausência paterna e suas associações a psicodinâmica e ao aproveitamento escolar da criança”
(VIZZOTTO, 1988). “Reflexões sobre o pai – um estudo sobre a construção da paternidade na história de
vida e no desenvolvimento do sujeito” (CARVALHO, 1990).
118
“Paternidade presumida: código civil a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal” (FACHIN, 1991).
119
“A construção do papel paterno” (STINGEL, 1991). “As representações sociais da paternidade e da
maternidade: implicações no processo de aconselhamento genético” (TRINTADE, 1991). “Pai divorciado:
auto-percepção de seu papel” (BREDA, 1991).
120
“ser pai: o que é isso? Um estudo do lugar do pai sob enfoque freudiano” (CHAVES, 1993).
“Considerações sobre a função paterna no pensamento de Freud” (SILVA, 1993).
121
“A paternidade negada” (SMIGAY, 1993).
326
identificado o primeiro trabalho científico oriundo do Campo da Enfermagem,
no qual o interesse recai sobre o vivido do pai que aguarda pelo parto, em vias
de se tornar pai. O mesmo inaugura uma dúvida que permeará os anos que
virão: quando/como o homem se torna pai?
O número de obras indexadas aumenta em 1998. Na Psicologia
os focos são as tensões/relações entre paternidade, esquizofrenia e gênero,
o arquétipo do pai na cultura e suas influências na relação pai-filho, as
representações sociais de paternidade em grupos de homens-pais de
gerações distintas, o declínio do pai na modernidade e uma análise das
permanências e transformações da paternidade em mídia impressa. No
Campo da Psicanálise, cujas obras foram indexadas
desatreladas do termo genérico de psicologia clínica, investiga-se a relação
entre paternidade e filiação, assim como o interdito da função paterna na
relação entre homem-pai e filho-menino. Na Educação se volta para a tensão
entre tradição e reinvenção da paternidade e masculinidade. Pela primeira
vez neste levantamento, na Saúde Publica se analisa a paternidade como
atrelada a identidade masculina adulta enquanto no Serviço Social as
representações sociais que inscrevem o homem-pai como provedor material.
A Psicologia se sobressai em número de publicações (seis) em
relação aos demais saberes. A paternidade é analisada como significado
importante para a construção da autonomia do sujeito, a partir da literatura
machadiana, do início do século XIX, investigando o lugar do pai na
constituição da subjetividade dos filhos, especialmente no que se refere ao
reconhecimento da Lei, ainda com base na psicanálise, na tensão entre o
processo estruturação da Lei, a relação mãe-filho e desejo materno, e, por
fim, por meio das expectativas e sentimentos que antecedem o nascimento
do filho e demarcam a transição do homem para o pai.
As obras nos Campos das Ciências Médicas e do Direito se
ocupam do tema, respectivamente, investigando os novos sentidos sobre
paternidade e analisando tensões, especialmente, no Direito de Família,
intensificadas com a popularização do exame de DNA, na segunda metade
de 1990, como instrumento jurídico, médico e biológico para determinação da
_____________________________________________________________
122
“Ser/estar pai: uma figura de identidade” (MACIEL, 1994).
123
“O pai e seus destinos na clínica psicanalítica” (SIMONE, 1994)
124
“Paternidade: estudo dos depoimentos de duas gerações de pais” (BOSCO, 1994). Este trabalho é
uma referência por ser o primeiro a enfatizar no seu resumo a mudança na atribuição do papel paterno
enquanto uma repercussão do movimento feminista e de outros fatores sócio-culturais.
125
“Questão da filiação sócio-afetiva. A nova concepção de família e o estabelecimento da paternidade
com fundamento na 'posse de estado de filho'” (DELINSKI, 1995).
126
“A experiência de ser pai de uma mulher” (MATOS, 1995).
127
“O exercício da paternidade hoje” (RAMIRES, 1995).
128
“Construindo uma nova paternidade? As representações masculinas de pais pertencentes as
camadas médias em uma escola alternativa de Recife/PE” (QUADROS, 1996).
129
“Discurso paterno: similaridade e especificidade” (KONRATH, 1996)
327
verdadeira paternidade biológica.
No último ano do século XX, há um equilíbrio relativo nos
números obras e uma variedade de saberes que as indexaram. No campo da
Psicanálise os interesses recaem sobre o contexto clínico no qual demandas
que envolvem a questão paterna são analisadas (como função simbologia,
real e prescindível), assim como o chamado declínio da função paterna na
modernidade.
Na Educação, Fonoaudióloga, Antropologia e Sociologia a
paternidade foi analisada, respectivamente, a partir das
implicações da ausência/ presença do pai no processo de socialização; de
sua participação no cuidado com a prole e no contexto das Instituições de
Saúde que promovem ou excluem a presença paterna; de sua re/construção
no espaço das relações familiares, especialmente, entre filhos; e como
produto histórico-cultural cujas atribuições ligadas a ordens de sexo/gêneros
tem se modificado a partir negociações estabelecidas entre casais (homem-
mulher).
No Campo da Psicologia a paternidade surge através das falas
dos pais jovens cuidadores que “entram em cena” na ausência da mãe ou na
perspectiva de perda jurídica dos filhos e do paralelo entre paternidade e
pobreza na construção da identidade de homens. Por sua vez, no Campo do
Direito, os impactos do reconhecimento do/as filhos/as em qualquer que seja
a origem da filiação ainda suscitam questionamento, ou melhor, tensões entre
os elos da paternidade para o Direito, com destaque, no de Família
Em 2001, no primeiro ano do século XXI, o “boom” da paternidade
é uma evidência e já demonstra permanências advindas de mudanças. A
paternidade como experiência de cuidado outrora assunto encarado como
_____________________________________________________________
130
“Paternidade por inseminação artificial com sêmen de terceiro” (BARBOSA, 1996)
131
“A paternidade ativa na separação conjugal” (SILVA, 1996).
132
“Eu, pai? A paternidade na adolescência e seu significado” (TRINDADE, 1997). “Paternidade
adolescente: uma proposta de intervenção” (LYRA, 1997).
133
“O significado da espera do parto – o vivido do pai na ótica da enfermagem” (GARRIDO, 1997).
134
“Paternidade, esquizofrenia e gênero: um estudo de base fenomenológica” (HORTA, 1998)
135
“O arquétipo do pai na cultura patriarcal: um estudo sobre a relação entre pai-filho e seus reflexões na
subjetividade do homem atual” (DONHA, 1998).
136
“O cotidiano da paternidade: uma experiência no Rio de Janeiro” (LOPES, 1998).
137
“Modernidade e declínio do pai: a 'resposta' da psicanálise” (CRESPO, 1997).
138
“Permanências e transformações: a paternidade na revista pais e filhos” (ROSENBAUM, 1998).
139
“Estudos sobre paternidade e filiação” (ROLO, 1998)
140
“A paternidade e psicanálise: do menino interditado ao pai interditor” (SOUZA, 1998).
141
“Paternidade e masculinidade: tradição, herança e reinvenção” (SARAIVA, 1998).
142
“Paternidade na adolescência: a antecipação e reafirmação de uma identidade masculina” (MAIA, 1998)
143
“Ele ainda é chefe de família: um estudo sobre as representações da paternidade” (MARTORELLI,
1998).
328
“novo”, reflexo da “crise masculina” ou rompimento no modelo de paternidade
e masculinidade tradicionais, já aparece sendo analisada produtivamente
(FOUCAULT, 2007). Ou seja, a partir das implicações positivas ou negativas
que pode gerar na vida (na saúde) de homens, mulheres,
crianças e na organização social. Contudo, a “nova” atribuição ainda produz
dilemas ao masculino, mas esses precisam ser contornados já que se
distanciam do “esperado/melhor” para todos e todas. Por exemplo, no
Campo da Psiquiatria o interesse recai sobre as repercussões da ausência
paterna na saúde adolescente.
No Campo da Psicologia as pesquisas se voltam para analisar a
função paterna na contemporaneidade e os discursos de pais; os conflitos
que envolvem a paternidade em um grupo de homens na tensão entre “o” pai
e pai possível; a paternidade adolescente na esfera da experiência de jovens-
pais no cuidado do bebê e a participação do pai no parto da criança e os
desafios institucionais que a impedem, Ou seja, a participação masculina no
cuidado não decorre apenas da vontade do sujeito, mas das condições
sociais criadas para propiciá-la.
Nos Campos da Enfermagem a paternidade é analisada a partir
das vivências cotidianas do homem-pai, assim como no da Antropologia, mas
com o foco na construção da relação pai-filho. Nas Ciências Sociais as
reflexões são feitas sobre reprodução e gênero para se chegar às
concepções de pai e filho.
Ao longo deste texto destaquei marcos históricos como a
Constituição Federal de 1998, o ECA e a popularização do teste do DNA, por
exemplo. Retomo-os, pois as obras do Campo do Direito
parecem como o futuro de um passado: o impacto do teste de DNA; as
implicações do reconhecimento de direitos e igualdade entre os filhos em
_____________________________________________________________
144
“O significado do pai para a psique da interdição à construção da autonomia” (FILHO, 1999).
145
“O pai moderno e a urbana família brasileira: reflexões a partir de Esaú e Jacó de Machado de Assis”
(OLIVEIRA, 1999). “Do Direito ao pai: sobre a paternidade no ordenamento jurídico” (BARROS, 1999).
146
“A transição para a paternidade: expectativas, sentimentos e síndrome de Couvade dos futuros pai ao
longo da gestação” (MARTINI, 1999).
147
“Casais grávidos e os novos sentidos de paternidade: um estudo qualitativo com referencial
psicanalítico” (SARMENTO, 1999).
148
“A antecipação da tutela dos alimentos provisórios e provisionais cumulados a ação de investigação de
paternidade” (OLIVEIRA, 1999). “O sistema presumido da paternidade no direito positivo brasileiro e
comparado” (GUIMARÃES, 1999). “Posse de Estado de filho no estabelecimento da filiação” (BOEIRA,
1999).
149
“O pai real e o término da análise” (HELENA, 2000), “A problemática paterna na potencialidade
polimorfa” (GARCIA, 2000) e “Para além do pai está o homem: a função paterna de Freud a Lacan”
(DECOURT, 2000).
151
“Família e socialização: um estudo das implicações da situação de presença/ausência paterna”
(BARUFI, 2000).
151
“O pai na clínica fonoaudiólogica: ausente ou excluído” (COELHO, 2000).
329
qualquer que seja o estado de filiação; e a tensão/crise do “modelo
tradicional” de paternidade e o rompimento da autoridade paterna e os
dilemas causados pela intervenção médico-legal no corpo da mulher
originando uma gestação “sem pai”.
c) De 2002 a 2008.
Já é século XXI e o ano de 2002 é referencial pelo aparecimento do
termo “paternidade participativa”, em especial, naquelas realizadas no
Campo da Psicologia: uma paternidade descrita como relação afetiva e
próxima da prole e não mais restrita ao provimento material nem
necessariamente vivida na companhia de uma mulher, esposa ou alguém. A
exceção é o estudo sobre homens e a importância do filho biológico.
No Campo da Psicanálise as obras analisam demandas clinicas e
seus vínculos com a função paterna, o pai real e as mudanças
contemporâneas. Nas produções da Enfermagem se analisam a
compreensão masculina da gravidez a partir de uma experiência na qual o
homem/pai a simula utilizando o artefato “barriga-grávida”, e os sentimentos e
o vivido do adolescente pai. Por sua vez, no Campo da Saúde Pública o foco
esteve na tensão das normas de sexo/gênero a partir de relatos de homens
em situação de desemprego prolongado que passaram a exercer a
paternidade como cuidado enquanto as mulheres passaram prover
materialmente a residência.
Pela primeira vez aparecem produções dos Campos da
Comunicação, da Saúde da Mulher e da Criança e Neurociências – essa
última é mais um exemplo de como o tema paternidade e, sobretudo, a
questão da presença/ ausência do pai se tornaram relevantes neste
final/início de século.
Na Antropologia os trabalhos não estiveram distantes das
_____________________________________________________________
152
“De pai para filho: tecendo um novo território familiar” (HAYGERT, 2000).
153
“Experiência masculina da Paternidade nos anos 1990: estudo de relações de gênero com homens
das camadas médias” (UNBEHAUM, 2000).
154
“Ouvindo o pai jovem no contexto da psicologia judiciária; algumas reflexões” (MENDES, 2000).
155
“Pobre pai: a construção da identidade em homens pais pobres urbanos” (NASCIMENTO, 2000).
156
“O elo biológico da paternidade: um estudo a luz do direito brasileiro” (ALMEIDA, 2000).
157
“Averiguação oficiosa de paternidade: a caminho da implementação do Direito de Família
Constitucional no Brasil” (SELENE, 2000).
158
“As repercussões da ausência paterna sobre a construção da identidade do adolescente” (YOSHIDA,
2001).
159
“A função paterna: problematização da contemporaneidade” (BERGOTTINI, 2001).
160
“Sobre o discurso de pais na contemporaneidade” (PADILHA, 2001).
161
“O pai possível – um estudo dos conflitos da paternidade em um grupo de homens” (FARIAS, 2001).
162
“Paternidade na adolescência: expectativas, sentimentos e a interação com o bebê”
(LEVABDOWSKI, 2001).
330
questões ligadas a “paternidade participativa” e dos espaços culturais criados
a partir dos marcos históricos, em especial com o ECA e o patamar de
relevância que a criança atingiu no mundo deste o final do século,
materializada na preocupação primeira com seu “bem-estar” e “melhor
interesse”, que tornaram a diversidade mais visível: num se analisa a adoção
e paternidade homossexuais e noutro o vinculo paterno com os filhos após
separação conjugal e novo casamento.
Por fim, no Campo do Direito as publicações os focos se
mantiveram sobre temas como investigação paterna, a tensão entre aspectos
jurídicos e inseminação artificial e, entre o direito personalíssimo do filho ao
estado de filiação e a insubmissão do homem a perícia genética do DNA. É
importante destacar outro marco histórico: a reforma do Código Civil
Brasileiro de 2002 que ao colocou em igualdade todas as formas de filiação,
natural ou sociológica (adoção); conferindo legalidade jurídica ao princípio da
paternidade afetiva (PERUCCHI, 2008).
Ainda no Campo do Direito, no entanto agora em 2003, algumas
obras já analisam: o exame de DNA considerando os efeitos das recentes
mudanças no campo jurídico ao enfocarem a responsabilidade de “ser”
paterna e o direito de “ser” filho; a construção da paternidade enquanto
experiência de homens-pais com a guarda de filho(a)s, as transformações
dos laços paterno-filiais diante do processo biotecnológico de inseminação
que as produziram. Assim como recaem sobre as problemáticas da
presunção e investigação da paternidade, da filiação paternal, e, em especial,
uma publicação sobre o reconhecimento do Direito à paternidade e
_____________________________________________________________
163
“A participação do pai no Nascimento da criança: as famílias e os desafios Institucionais em uma
maternidade pública” (CARVALHO, 2001). Essa última ao enfocar a participação do homem no cuidado
enquanto um desafio na esfera das instituições se aproxima de outras pesquisas como de Elizabeth
Coelho (2000) e Lyra (1997).
164
“Paternidade: conceito e vivencia – um estudo compreensivo na ótica da enfermagem do cotidiano
de pais” (ABREU, 2001)
165
“Ser homem, pobre e pai: a construção cotidiana da relação pai-filho nas camadas de baixa renda”
(LONGUI, 2001).
166
“Concepções de filhos, concepções de pai: algumas reflexões sobre reprodução e gênero” (COSTA,
2001).
167
“A certeza da paternidade através da pericia genética e a efetividade do acesso à justiça: uma
análise constitucional” (JUNIOR, 2001).
168
“A presunção legal de paternidade face ao principio constitucional da igualdade entre os filhos”
(SOARES, 2001).
169
“O rompimento dos laços de autoridade parental: pais e filhos perante o Estado juiz” (CARVALHO, 2001).
170
”A relação jurídica da paternidade com as novas técnicas de inseminação artificial” (QUEIROZ, 2001).
171
“Paternidade participativa: a vivência masculina” (SUTTER, 2002). “A gravidez do primeiro filho à luz da
perspectiva paterna” (BORNHOLDT, 2002). “O papel do pai no contexto familiar e na interação com a
criança em famílias de baixa renda nos períodos 1945/1950 e 1995/2000” (GIANIMI, 2002). “Homens com
a guarda dos filhos: sentimentos e reorganização do cotidiano” (GONÇALVEZ, 2002). “O exercício da
paternidade: a paternidade com filhos adolescentes do sexo masculino nas camadas médias” (CHAVES,
2002). “A construção da paternidade desde a gestação até o primeiro ano do bebê” (CASTOLDI, 2002). “O
envolvimento paterno com o bebê na gestação e aos doze meses de idade” (BOLLI, 2002). ”Estudo
descritivo de sentimentos e reações emocionais de pais de adolescentes” (ÂNGULO, 2002).
331
maternidade homossexuais e de seus exercícios a partir da adoção ou da
utilização de técnicas de inseminação artificial e reprodução assistida.
Nas publicações na Saúde da Mulher e da Criança, na Saúde
Coletiva e Psicanálise os interesses foram, seqüencialmente, a parentalidade
como marca subjetiva e cultural que remete a condição humana de
vulnerabilidade e suas articulações na identidade paterna e materna na
contemporaneidade; e a mudança nas configurações familiares ocidentais
contemporâneas, em especial, no que tange o afastamento, definitivo ou
temporário, do pai que pode provocar desde o surgimento de padrões
disfuncionais na família até a formação de auto-imagem inadequada, tanto
para os meninos e meninas. A disso, suscitar neles/as sentimentos como
abandono, rejeição e culpa, colocando em risco a formação de novos
vínculos, comprometendo futuras relações, contaminadas pela insegurança.
O referido estudo mostra o papel do pai na família contemporânea está
sobtensão. Por fim, a temática da definição do pai, na teoria psicanalítica, em
suas relações com a possibilidade do tratamento da psicose determinando os
limites da atuação na clínica e o lugar do pai na subjetividade.
No Campo da Educação investigou-se a promoção da saúde de
estudantes com dificuldades de aprendizagem pela participação dos pais.
Mais uma vez a questão da ausência/presença do pai e o impacto disso na
prole e na família. Por exemplo, a autora concluiu que quando a
responsabilidade pela educação dos filhos é delegada apenas as mães essas
desenvolvem ações de superproteção gerando dependência, acomodação e
falta de interesse no educando. A ausência paterna pode gerar a escassez de
regras e limites por parte da prole e que somente com um trabalho de
conscientização que envolva pais e mães e educadores tais dificuldades
serão revertidas.
_____________________________________________________________
172
“'Sangue do meu sangue': as tecnologias de reprodução assistida e a importância do filho biológico”
(BORLOT, 2002).
173
“As fobias e o real do pai” (PRESTES, 2002). “O que é um pai? Do papel do pai à função lógica do pai”
(MARTINHO, 2002). “Função paterna: mutabilidade ou invariância? Um estudo sobre os pais e os ideais na
contemporaneidade” (DUBEUX, 2002).
174
“processo criativo do artefato 'Barriga-grávida': compreensão da concretude biológica da gravidez pelo
homem/pai” (VASQUES, 2002).
175
“O vivido pelo adolescente frente à paternidade” (SOANE, 2002).
176
“Efeitos do desemprego prolongado na divisão sexual do trabalho: estudo de uma população masculina
do ABC” (JIMENEZ, 2002).
177
“Imagens do pai no cinema desta passagem de século: encenações da agressividade estruturante em
suas manifestações sociais como violência” (FANTINI, 2002)
178
“Em busca do pai: um estudo sobre paternidade adolescente” (NASCIMENTO, 2002).
179
“Interação pai-mãe-bebê: elementos para analise do papel da paternidade” (GONÇALVES, 2002).
180
“Pais assumidos: adoção e paternidade homossexual no Brasil contemporâneo” (TARNOVSKI, 2002).
181
“Eternos aprendizes: o vínculo paterno em homens separados e recasados de camadas médias”
(MARCONDES, 2002).
332
No campo da Psicologia, novamente o maior número (oito) de
publicações, os focos foram sobre o pai presente em um contexto familiar, a
manutenção do vinculo afetivo entre pais e filhos após separação conjugal, a
paternidade adolescente, homens de meia-idade e a paternidade em seus
projetos de vida, os sentimentos de pais que residem ou com seus filhos, a
percepção da figura masculina como pai de criança portadora de deficiência
mental e a história oral de pais com filhos deficientes mentais. Esses últimos
estudos analisam o pai e o exercício da paternidade em situações de cuidado
com filhos/as com necessidades especiais enfocando as vivências,
depoimentos, sentimentos e atitudes dos mesmos: as experiências de si
como pais.
No Campo da Educação, em 2004, uma publicação, semelhante
às acima destacadas, enfoca as concepções de homens-pais sobre seus
bebês com deficiência e outra se volta para o declínio da função paterna no
contexto escolar. A paternidade a partir de experiência de adolescentes
também foi enfocada, de diversas maneiras, pelos Campos das Ciências
Sociais, Serviço Social e Antropologia enquanto nos da Enfermagem,
Psicanálise e Sociologia, respectivamente, investigaram-se o significado da
paternidade para homens, a partir do enfoque de gênero, a função paterna e
sua terceirização na contemporaneidade e sobre a deserção de pais e não
reconhecimento de crianças analisadas por conta do sexismo.
As publicações no Campo do Direito estão voltadas,
especialmente, para a investigação de paternidade: e o princípio da
dignidade da pessoa humana e os seus aspectos materiais e processuais.
Em outra o foco é o mesmo, porém argumenta a incontestável cientificidade
do exame de DNA e a importância de uma possível revisão de sentenças
anteriores, mesmo que já encerradas, que tratavam da investigação de
paternidade quando tal técnica não estava disponível a fim de assegurar uma
_____________________________________________________________
182
“Investigação paterna na ordem civil constitucional” (POZZI, 2002).
183
“Banco de sêmen e paternidade: aspectos jurídicos e biológicos” (CENEDEZE, 2002).
184
“O direito ao vinculo jurídico da paternidade frente a insubmissão do investigado à pericia genética:
solução para os conflitos de Direito Personalíssimos” (MACHADO, 2002).
185
“O exame de DNA face à investigação oficiosa de paternidade: a responsabilidade de 'ser' pai e o direito
de 'ser' filhos” (CAROSSI, 2003).
186
“Paternidade em construção: demandas de guardas de filho(a)s em processos judiciais” (QUEIRÓZ,
2003).
187
“Filhos da biogenética: uma análise das transformações dos laços paterno-afetivos em face do processo
biotecnológico” (SOUSA, 2003)
188
“Presunção de paternidade: novas coordenadas legais” (MALUF, 2003).
189
“Da coisa julgada na investigação de paternidade” (CASARA, 2003).
190
“Filiação paternal” (MAIA, 2003).
191
“Da possibilidade de reconhecimento do direito à paternidade/maternidade dos homossexuais e a
viabilidade de seu exercício através da adoção e da utilização de técnicas de reprodução medicamente
assistidas” (SAPKO, 2003).
192
“Ser-mãe, ser-pai: parentalidade contemporânea realizações e avatares” (SILVA, 2003).
333
sentença irrefutável sobre o caso. O autor apresenta como sugestão, visando
contribuir com a discussão, a transformação em lei do projeto que estabelece
tal revisão. Em outras publicações são analisadas a reconstrução da
paternidade diante da recusa do filho ao exame do DNA e o dilemas que
envolvem os tipos três de paternidades (presumida por lei, biológica e sócio-
afetiva), a teoria do melhor interesse da criança e a relevância da
paternidade na formação física, moral e psíquica de cada pessoa natural. A
autora argumenta que se apenas um tipo não garantir a fixação do estado de
filiação paternal adequadamente será necessário nascer uma nova filiação
na qual será preciso conjugar dois ou mais tipos de paternidade para que se
garanta ao sujeito criança e adolescente, o direito a uma paternidade
“verdadeira”.
No Campo da Psicologia foram analisadas as concepções de
paternidade de meninos colocados em regime de abrigamento, os exercícios
da paternidade, os dilemas entre função paterna e adolescência na escola, as
preocupações de pais de recém-nascidos prematuros, os significados da
ausência paterna para homens-adultos e a paternidade na mídia
contemporânea problematizando, a partir uma perspectiva teórico-
metodológica que articula os campos dos Estudos Culturais,
Feministas e foucaultianos, o modelo triático de família (pai-mãe-filho), o
relevante lugar que a criança ocupa na sociedade moderna e as implicações
dessa no posicionamento e regulação de ações de mães e pais.
Nesse último trabalho, a autora argumenta que a posição do homem
em relação a si mesmo, nas relações de gênero e nas relações com filhos/as
abre o debate sobre masculinidades, o governo do eu, as disputas de poder
_____________________________________________________________
193
“'Partenogênese' – os efeitos da exclusão do pai no desenvolvimento da personalidade e na dinâmica
familiar” (FEIZENZWALB, 2003).
194
“Um pai para a psicose?” (COELHO, 2003).
195
“O lugar do pai: subjetividade, clínica e contemporaneidade – reflexões a partir de uma leitura”
(MONTSERRAT, 2003).
196
“A promoção da saúde do educando a partir do envolvimento de pai nas dificuldades de aprendizagem”
(QUEIRÓS, 2003).
197
“Paternidade contemporânea: um estudo sobre o pai presente num contexto familiar estável” (GOMES,
2003).
198
“O exercício da paternidade após a separação: um estudo sobre a construção e a manutenção do vinculo
afetivo entre pais e filhos na família contemporânea” (DANTAS, 2003).
199
“As estratégias utilizadas na maternidade e paternidade adolescente” (BELTRAME, 2003) e “Ser
adolescente, pobre e pai: um estudo qualitativo das repercussões na organização das famílias” (PAIVA,
2003).
200
“Hermenêutica do existir do homem de meia-idade – paternidade, sexualidade e projetos de vida: um
olhar à luz de Heidegger” (TRINDADE, 2003).
201
“Sentimentos sobre paternidade e envolvimento de pais que residem e pais que não residem com seus
filhos” (SILVA, 2003).
202
“Estudo psicológico sobre a percepção da figura masculina como pai de criança portadora de deficiência
mental” (SOUZA, 2003).
203
“Viver ao lado da deficiência mental: a história oral de pais com filhos deficientes mentais”
(CARMIGNANI, 2003)
334
entre homens e mulheres, os deslizamentos em torno das concepções de
paternidade, a emergência da noção de pai participativo. Por fim, afirma que
nas mídias prevalecem representações hegemônicas sobre paternidade,
sendo necessário que se trabalhe pensando nas diferenças e se questione o
lugar Psicologia na produção das subjetividades paternas.
Em 2005, algumas publicações “o cuidado parental” já é abordado
como prática masculina, sem necessariamente invocar rupturas que as
explicassem. Os homens são conhecidos a partir de sua diversidade,
singularidade e concretude e não de formas genéricas. Além disso, a
paternidade aparece sendo analisada não mais isoladamente, mas, por
vezes, acompanhada da maternidade ou ainda a relação entre ambas.
Por exemplo, na Psicologia são estudos: as reações e vivências de
pais de crianças com síndrome de down, o comportamento paterno na
Enfermaria de Maternidade nas primeiras horas de vida do bebê, a percepção
de filhos sobre o cuidado parental, o comportamento paterno a partir da
compreensão de homens e mulheres e a construção de sentidos sobre
paternidade e maternidade em uma família. Ainda foram analisados os
impasses da paternidade na contemporaneidade e as relações adolescência,
paternidade e cuidado e a produção de sentido. Por sua vez, no Campo da
Psicanálise os interesses recaíram sobre a função cultural do pai e sobre os
sentidos do declínio paterno na psicanálise.
No Campo da Enfermagem as obras analisaram as relações
entre paternidade e adolescência a partir do olhar de pais adolescentes; os
significados de paternidade para pais-adolescentes cujos filhos estão
hospitalizados e as narrativas de homens que acompanharam o nascimento
e o parto de seus filhos enquanto que no Campo da Educação as relações
entre paternidade e filiação com o foco no impacto do turno de trabalho
_____________________________________________________________
204
“Concepção paternas sobre o bebê com deficiências, inserido em programa de estimulação precoce, na
educação especial” (HANSEL, 2004).
205
“O declínio da função paterna e o mal-estar na escola: uma leitura entre a psicanálise e história”
(CAVALCANTE, 2004).
206
“Tradições, contradições, transformações: a família na ótica de pais de adolescentes” (STENGEL, 2004)
e “Fechando com chave de ouro' – o significado de paternidade e da maternidade na experiência das
classes populares no Rio de Janeiro” (ALMEIDA
207
“Jovens pais e jovens mães: experiências em camadas populares” (REIS, 2004).
208
“'Filho cedo não é a pior coisa que pode acontecer na vida': um estudo sobre representações e práticas
de jovens e respeito de transição de fase de vida a partir da maternidade e paternidade” (CARPES, 2004).
209
“significado da paternidade para homens que vivenciam: um enfoque de gênero” (FREITAS, 2004).
210
“Psicanálise e família: a terceirização da função paterna na contemporaneidade” (DECOURT, 2004).
211
“Paternidade e deserção. Crianças sem reconhecimento, maternidade penalizadas pelo sexismo”
(THURLER, 2004).
212
“A ação de investigação de paternidade e a dignidade da pessoa humana” (GAVALDÃO, 2004).
213
“Investigação de paternidade: aspectos materiais e processuais” (FEUZ, 2004).
214
“Paternidade e coisa julgada: limites e possibilidades à luz dos direitos fundamentais e dos princípios
constitucionais” (JUNIOR, 2004).
335
parental no desempenho acadêmico e autoconceito da criança; e entre a
fratura da função paterna e o processo de simbolização
Por fim, nos Campos do Direito e da Filosofia, pela primeira vez,
as obras tinham como foco, respectivamente, o dilema da obrigatoriedade do
exame do DNA na investigação de paternidade e um estudo sobre o percurso
da simbologia paterna nas culturas grega, hebraica e na contemporaneidade.
As expectativas e vivências do pai adolescente e a formação do
apego em pais de recém-nascidos nascidos prematuramente são os focos
das publicações no Campo da Enfermagem em 2006. Na primeira, conclui-se
que os adolescentes possuem expectativas positivas e desejam ser diferente
de seus genitores quanto à afetividade e participação ativa na vida do filho e
compartilhando o cuidado com a companheira (trocar fraldas, alimentar, dar
banho, entre outros) enquanto na segunda que a inserção dos pais em todo o
contexto que envolve a prematuridade, bem como no cuidado direto ao
recém-nascido, favorecendo o apego seguro, dá-se por uma postura
institucional e, em especial, de profissionais da enfermagem. Destaco os dois
trabalhos porque neles a paternidade aparece como cuidado e atitude que se
promove. Ou seja, não é natural e sim aprendida, sendo esse promovido pela
instituição e seus profissionais a fim de respeitar o direito do cidadão de
exercer a paternidade.
Nos Campos da Psiquiatria, Antropologia, Psicanálise,
Educação, Serviço Social e Letras, pela primeira vez, foram publicados
trabalhos cujos interesses recaíram sobre, respectivamente, a maternidade e
a paternidade na esquizofrenia e seus impactos na vida de pacientes e filhos;
a paternidade e sexualidade nas décadas de 1920 a 1940; a função paterna
na contemporaneidade, as identidades paternidade na literatura infanto-
juvenil, as estratégias utilizadas por pais e mães adolescentes e, por fim, as
paternidades presentes na obra machadiana Dom Casmurro.
Já no Campo do Direito o interesse recai sobre os dilemas da
filiação sócio-afetiva e o direito ao conhecimento da identidade genética; o
_____________________________________________________________
215
“Da relação paterna – filial” (BORBA, 2004).
216
“'Um homem para chamar de pai': as concepções de paternidade de meninos afastados de suas famílias
e colocados em regime de abrigo” (HOEPFNER, 2004).
217
“Exercício da paternidade: estudo de dois casos clínicos” (SILVA, 2004).
218
“Função paterna e adolescência na escola: um estudo correlativo em uma instituição particular”
(FERREIRA, 2004).
219
“Preocupações dos pais de recém-nascidos prematuros coma proximidade de alta da unidade de terapia
intensiva neonatal” (BALBINO, 2004).
220
“O significado da ausência paterna para adultos: um estudo fenomenológico” (SANTOS, 2004).
221
“A paternidade na mídia contemporânea: discursos e modos de subjetivação” (HENNIGEN, 2004).
222
“Reações e sentimentos vivenciados pelos pais de um grupo de crianças com síndrome de down
referentes ao movimento da noticia e do diagnostico” (VOHLK, 2005).
336
paradoxo da atribuição de paternidade pelo exame de DNA e o princípio da
afetividade paterna e sobre a investigação de paternidade e a antecipação da
tutela.
Finalmente, no Campo da Psicologia as publicações se voltaram
para análise da paternidade: o desejo de ser pai, a função do pai e o sujeito no
contexto clínico, os sentidos atribuídos por adolescentes pais à paternidade e
as práticas de cuidado com os filhos, o envolvimento de homens-pais na
gravidez como período de transição para a parentalidade e da relação entre
introjeção da figura paterna e atos infracionais de adolescente em conflito
com a lei cumprindo medida sócio-educativa.
No ano de 2007 os estudos da Psicologia se voltaram para o
exercício da paternidade e as indenizações por abandono afetivo, assim
como para participação paterna no cuidado dos filhos em uma
creche-escola, no envolvimento com crianças com síndrome de down, no
cuidado do bebê no contexto da depressão pós-parto materna, na adoção e
com os filhos após o fim do casamento.
Os pais e a paternidade foram estudados, ainda no Campo da
Psicologia, enquanto cuidadores, a partir de suas concepções acerca da
prematuridade de seus filhos e de suas percepções e sentimentos. Este
último trabalho analisa a paternidade através de uma leitura da instituição que
produz paternidade: promovendo-a e/ou gerando sua invisibilidade, de
maneira semelhante a Lyra (1997), Coelho (2000) e Maria Luiza Carvalho
_____________________________________________________________
223
“O comportamento paterno em enfermaria de maternidade nas primeiras horas de vida do bebê”
(MALLARD, 2005).
224
“Percepção de filhos sobre aspectos reais e idéias do cuidado parental” (FURTADO, 2005).
225
“Semelhanças e diferenças entre homens e mulheres na compreensão do comportamento paterno”
(PRADO, 2005).
226
“A construção de sentidos relacionados à maternidade e à paternidade em uma família” (COSTA, 2005).
227
“A lei em nome do pai: impasses no exercício da paternidade na contemporaneidade” (BRANDÃO,
2005).
228
“Adolescência, paternidade e cuidados: os sentidos que adolescentes pais atribuem à sua participação
nos cuidados dos filhos” (RADTKE, 2005).
229
“Pai: função cultural? A problematização freudiana” (MATOS, 2005).
230
“Declinando o declínio do pai” (VIDAL, 2005).
231
“Paternidade na adolescência: vivências e significados no olha de homens que a experimentam”
(CORREIA, 2005).
232
“Significados de paternidade para adolescentes com recém-nascidos hospitalizados” (CAUDURO,
2005).
233
“O pai acompanhante no processo de nascimento e parto: narrativas sobre experiência” (MAZZIERI,
2005).
234
“O impacto do turno de trabalho do pai no desempenho acadêmico e no autoconceito de crianças
escolares” (CIA, 2005).
235
“A fratura da função paterna e o processo de simbolização: um estudo com crianças de periferia urbana
em fase de escolarização inicial” (MAGGI, 2005).
236
“Investigação da paternidade: obrigatoriedade ou não do exame de DNA” (ARÊAS, 2005).
237
“Percurso de um símbolo: manifestações do símbolo paterno nos primórdios das culturas grega e
hebraica e na contemporaneidade” (CARDOSO, 2005).
337
(2001). A diferença está no fato de Monica Silva (2007) analisar uma
Instituição Prisional, e não contextos que dizem respeito ao campo da saúde,
dos direitos sexuais e reprodutivos, que não está somente não preparada
para o exercício da paternidade dos presidiários, mas também é estranha a
tal questão.
Na Psicologia estudou-se ainda a construção imaginária do lugar
do pai, a paternidade a partir das transformações da masculinidade na
modernidade, a transmissão das identidades entre gerações familiares e, por
fim, a relação entre orfandade, educação e paternidade.
No Campo da Enfermagem o interesse recaiu sobre as
experiências de pais no cuidado ao filho com câncer, como acompanhante no
cuidado pré-natal, no contexto neonatal, da construção da paternidade para
pais adolescentes e a partir da perspectiva de jovens universitários enquanto
no do Direito se investigou a relação paterno-filial, o reconhecimento paterno
por sócio-afetividade, o dano moral por abandono afetivo nas relações
paterno-filial e os exames de DNA.
Por fim, nos Campos das Ciências Sociais, da Educação e
Comunicação as publicações se voltaram, respectivamente, para o ser pai e o
ser mãe adolescentes, a participação masculina na escolarização de seus
filhos, no contexto familiar com criança com síndrome de down e o ser pai
hoje, e, finalmente, para o estudo da carnavalização da paternidade em um
desenho animado.
Em linhas gerais, o ano de 2008 não foi diferente dos anteriores,
pelo menos os sete passados, no sentido da diversidade de campos de saber
que se dedicam a investigar e problematizar, analisar e classificar,
repercutindo em nossas maneiras de “saber” quem é o pai, o que é
paternidade, quais as atitudes e sentimentos do homem-pai, como é vivida
nos contextos da separação conjugal, no adoecimento materno ou filial, e na
adolescência, as Instituições a propiciam e/ou obstruem, qual sua
importância? E também sobre o número de publicações que se manteve
_____________________________________________________________
238
“Vivências e expectativas da paternidade, pelo adolescente, sob a ótica da enfermagem” (MUNHOZ,
2006).
239
“A formação do apego pais/recém-nascidos pré-termo e/ou de baixo peso no método mãe-canguru: uma
contribuição da enfermagem” (GUIMARÃES, 2006).
238
“Maternidade e paternidade na esquizofrenia: o impacto da doença na vida de pacientes e seus filhos”
(TERZIAN, 2006).
241
“O gênero e a espécie: paternidade e sexualidade nas décadas de 1920 a 1940” (FINAMORI, 2006).
242
“A função paterna na contemporaneidade: uma análise psicanalítica” (GOULART, 2006).
243
“'Pai não é de uso diário' (?): paternidade na literatura infanto-juvenil” (SEFTON, 2006).
244
“A paternidade em dom casmurro: ocultamentos e revelações” (CELIDONIO, 2006).
245
“Filiação sócioafetiva e direito à identidade genética” (NUNES, 2006).
246
“A atribuição de paternidade pelo exame de DNA em ação judicial: um paradoxo diante do princípio da
afetividade” (ANDRADE, 2006).
247
“da antecipação dos efeitos da tutela no direito de família sob a perspectiva dos direitos da personalidade
na investigação de paternidade” (MARTINS, 2006).
338
**
elevado, aproximadamente 30 , sendo que seus conteúdos foram da
paternidade e a transformação masculina aos sentimentos do pai que cuida
dos filhos adoecidos, da identidade paterna adolescente ao reconhecimento
de paternidade por meio do exame do DNA.
No Campo da Enfermagem os interesses recaíram acerca da
participação do pai nos processos de humanização do parto e da
amamentação, e sobre o significado de paternidade adolescente para jovens
que a vivenciam. Já nos Campos da Sociologia, políticas Públicas e
Psiquiatria, respectivamente, investigaram-se os discursos sobre
maternidade e paternidade no campo da reprodução assistida; a
ressignificação da identidade paterna após ruptura conjugal e, por fim, a
relação entre o vínculo parental e a transferência no contexto
psicoterapêutico.
Alguns campos de saber foram, neste levantamento,
identificados pela primeira vez, por exemplo, o da Educação Física, do Ensino
de Ciências Matemáticas e Multidisciplinar. Neles a paternidade foi estudada
a partir do discurso de pais acerca do corpo de mulheres gestante e mães de
seus filhos; da relação entre paternidade e saúde feita por jovens de escolas
públicas e acerca das discussões sobre limites e possibilidades da
experiência da paternidade solitária.
No campo do Direito as publicações analisaram a relação entre
pais e filhos com o foco no afeto e as variáveis: filiação biológica, sócioafetiva
_____________________________________________________________
248
“Desejo de ser pai: algumas vicissitudes da função paterna” (BORGES, 2006).
249
“Um real em jogo: a função do pai e o sujeito na clínica” (RIBEIRO, 2006).
250
“Paternidade nas adolescências: investigando os sentidos atribuídos por adolescentes pais à
paternidade e às práticas de cuidado dos filhos” (ORLANDI, 2006).
251
“Satisfação e responsabilidade: o envolvimento do pai na gravidez durante a transição para a
parentalidade” (FACCION, 2006).
252
“Adolescência e transtorno de conduta. Caracterização de uma amostra de adolescentes infratores
em cumprimento de medidas sócio-educativas entre conduta e introjeção da figura paterna” (FREITAS,
2006).
253
“'Ai o pai virá réu...' – estudo sobre o exercício da paternidade e as indenizações por abandono
afetivo” (PADILHA, 2007).
254
“A paternidade em famílias urbanas: análise da participação do pai na creche-escola e nos cuidados
com os filhos” (SEABRA, 2007).
255
“O envolvimento paterno e a experiência da paternidade no contexto da síndrome de down” (HENN,
2007)
256
“Paternidade e depressão pós-parto materna no contexto de uma psicoterapia pai-bebê” (SILVA,
2007).
257
“Bendito o fruto do vosso ventre – estudo psicanalítico da maternidade e paternidade por adoção”
(SILVA, 2007)
258
“Parentalidade em tempo de mudanças: desvelando o envolvimento parental após o fim do
casamento” (GRZYBOWSKY, 2007).
259
“Cuidado, sociedade e gênero: um estudo sobre pais cuidadores” (CARVALHO, 2007).
260
“Concepções do pai acerca da prematuridade do seu filho” (WALDOW, 2007).
261
“Presidiários: percepções e sentimentos acerca de sua condição paterna” (SILVA, 2007).
262
“O lugar do pai: uma construção imaginária” (SILVA, 2007).
339
e homoafetividade e entre paternidade e filiação; o não reconhecimento da
paternidade como dano moral ao princípio da dignidade humana;
os dilemas entre autonomia privada e as relações jurídicas no contexto das
relações paterno-filial; o direito à paternidade genética, as mudanças
comportamentais da figura paterna diante da licença paternidade e a relação
entre pais e filhos no âmbito jurídico da família no Brasil.
Novamente o número de publicações que se voltaram à
paternidade para analisá-la, conhecê-la, classificá-la e problematizá-la
pertence ao campo da Psicologia.
Os interesses recaíram sobre os significados da parentalidade de
adolescentes pais cumprindo medida sócio-educativa; das representações
sociais sobre a figura paterna para crianças e adolescentes; da relação entre
guarda paterna e representações sociais de maternidade e paternidade, das
percepções de pais acerca de filhos com câncer e filhos sadios sobre a
estrutura e dinâmica familiar e de pais e mães sobre os problemas de
comportamento de seus filhos.
Ademais, sobre a relação entre envolvimento paterno na família e
o desemprego do pai; e entre qualidade de vida de crianças e
_____________________________________________________________
263
“Paternidade e subjetividade masculina em transformação: crise, crescimento e individuação”
(ALMEIDA, 2007).
264
“De pai para filho: uma reflexão sobre identidade e transmissão intergeracional em duas diferentes
gerações” (TEYKAL, 2007).
265
“Crianças pré-escolares e prisão paterna: percepção de familiares” (BECKMAN, 2007).
266
“Experiência de pais no cuidado ao filho com câncer; um olhar na perspectiva de gênero” (MOREIRA,
2007).
267
“A experiência do homem como acompanhante no cuidado pré-natal” (CAVALCANTE, 2007).
268
“Encontros afetivos entre pais e bebê no espaço relacional da unidade neonatal: um estudo de caso à luz
do método mãe-canguru” (SILVA, 2007).
269
“A construção da paternidade na família do pai adolescente: contribuição para o cuidado de
enfermagem” (MEINCKE, 2007).
270
“Perspectivas de jovens universitários da região Norte do Rio Grande do Sul em relação à paternidade”
(PEROSA, 2007).
271
“O reconhecimento da paternidade por sócio-afetividade e seus desejos jurídicos” (RODRIGUES, 2007).
272
“a paternidade sócioafetiva como direito fundamental” (ZAGO, 2007).
273
“Limites e possibilidades de dano moral por abandono afetivo nas relações paterno-filial” (RAPOZO,
2007).
274
“Evolução tecnológica dos exames de paternidade e sua validade jurídica” (DUZ, 2007).
275
“Sendo mãe, sendo pai: sexualidade, reprodução e afetividade entre adolescentes de grupos populares
em Belém” (PANTOJA, 2007).
276
“Família-escola: a participação masculina – a compreensão dos homens – a pais ou responsáveis –
sobre sua atuação na escolarização dos filhos e participação na escola” (FERNANDES, 2007).
277
“Contexto familiar com síndrome de down: interação e envolvimento paterno e materno” (SILVA, 2007).
278
“Ser pai hoje: uma conexão entre educação e psicanálise” (OLIVEIRA, 2007).
279
“A carnavalização da paternidade em episódios as série Os Simpsons” (AMERENO, 2007).
**
Número de publicações já obtido a partir dos critérios descritos na página um deste artigo. O número
total identificado a partir do descritor paternidade foi 97 publicações.
340
adolescentes com transtornos no desenvolvimento e envolvimento paterno e
sobre as vicissitudes da família de adolescentes que foram agredidos pelos
pais. Como também a influência do gênero (sexo) e a ordem de nascimento
de filhos acerca das práticas parentais; a escuta de pais na clínica; a função
paterna e as configurações familiares; os padrões de apego das crianças em
relação à figura paterna e, por fim, o discurso jurídico como dispositivo de
produção de paternidade e modos de ser pai.
3 PROBLEMATIZANDO RESULTADOS... AQUÉM DE CONCLUSÕES
Ao fim do levantamento bibliográfico fica evidente que o tema
paternidade se tornou relevante para o contexto científico brasileiro ao
alimentar publicações em diversos campos de saber. Consideramos que o
saber científico desponta como um dos saberes que produz paternidades,
modos de “ser” pai e regimes de verdade sobre a paternidade cujos usos e
efeitos de suas práticas discursivas engendram nossa maneira de “conhecê-
la”, por vezes, delimitando e excluindo possibilidades.
Medrado, Lyra, Oliveira et. al. (2009) argumentam que as
políticas públicas, especialmente no campo dos direitos sexuais e
reprodutivos, produzem regimes de verdades sobre paternidade e modos de
ser pai que delimitam certas maneiras e por isso acabam por excluir
possibilidades a diferenças. Por meio do saber científico constroem-se
medidas e afirmam-se idéias, legitimam-se valores que não apenas
subsidiam as políticas públicas, mas constituem sua formulação e
implementação.
O estudo produzido pelos autores e autoras foi desenvolvido a
partir do exercício analítico proposto por Perucchi (2008) em sua tese de
doutorado, na qual analisa discursos da jurisprudência brasileira sobre
paternidade. A autora, subsidiada pelo referencial foucaultiano e dos estudos
_____________________________________________________________
280
“O parto humanizado e a participação paterna” (LENGO, 2008).
281
“O pai participe no processo de amamentação: intervenção da enfermeira no período gravídico
puerperal” (RÊGO, 2008).
282
“A paternidade na adolescência e seu significado entre os jovens que a vivenciaram” (AZEVEDO, 2008).
283
“As tecnologias da reprodução: discursos sobre a maternidade e paternidade no campo da reprodução
assistida no Brasil” (VIEIRA, 2008).
284
“Ressignificando a paternidade: um estudo acerca da identidade paterna após ruptura conjugal”
(CARVALHO, 2008).
285
“Um estudo sobre relação entre o vinculo parental e a transferência em psicoterapia psicanalítica”
(OLIVEIRA, 2008).
286
“Corporeidade gestante: o discurso de corpo de mulheres em idade adulta e madura e dos pais das
crianças” (LUPERINI, 2008).
287
“Paternidade e saúde discutidos por jovens de escolas públicas em vídeos documentários” (JUNIOR,
2008).
288
“Paternidade solitária: limites e possibilidades” (BITTELBRUNN, 2008).
289
“O afeto nas relações entre pais e filhos: filiação biológica, sócioafetiva e homoafetiva” (FUJITA, 2008).
290
“Paternidade e filiação: de onde vem e para onde vai – uma abordagem a relação paterno-filial no direito
brasileiro” (BORGES, 2008).
341
feministas de gênero, afirma que o discurso jurídico não reproduz ou
representa a paternidade, mas, antes de tudo, produz modos de ser pai.
Como argumentam Medrado, Lyra e Oliveira et. al. (2009), a autora não
constrói sua análise a partir da idéia de que a paternidade adquire novos
sentidos no discurso jurídico, por exemplo, paternidade biológica, sócio-
afetiva ou de registro de nascimento, que estariam somando ao um suposto
sentido original. Nas palavras dos autores e autoras, “de verdade, ela
questiona a existência de um sentido original e crítica a idéia de que a
vivência/experiência/exercício da paternidade antecede a sua significação”
(MEDRADO; LYRA;OLIVEIRA., 2009, p. 5).
Nesse sentido, aquém de conclusões, desejamos problematizar
os resultados deste levantamento bibliográfico considerando o exercício
analítico proposto por Perucchi (2008). Assim, o saber científico não
reproduziria ou representaria a paternidade ou mesmo paternidades
disponíveis na “realidade social”, mas sim produziria a paternidade e diversos
modos de “ser” pai.
Todavia, esses “diversos modos” seguem certos parâmetros,
pois, em linhas gerais, aparece nos trabalhos científicos atrelada à dicotomia
corpo-gênero, sendo sua ruptura associada a crises e mudanças que, por
vezes, ora a naturaliza ora a essencializa, mas, enfim, acabam reiterando as
normas de gênero e fixando (mesmo quando as relativiza) posições de
gênero que produzem o sujeito homem-pai universal. Por exemplo, outrora
_____________________________________________________________
291
“'O princípio da dignidade pessoa humana e o dano moral em face do não reconhecimento da
paternidade'” (FERNANDES, 2008).
292
“A autonomia privada e as relações jurídicas paterno-filiais” (APARÍCIO, 2008).
293
“Direito à paternidade genética e presunção juris tatum: valorização dos direitos fundamentais colidentes
e flexibilização da coisa julgada” (AHMAD, 2008)
294
“A voz do coração: pais e filhos na travessia jurídica da família no Brasil” (MOREIRA, 2008).
295
“As mudanças comportamentais da figura paterna e a licença paternidade prevista na constituição
Federal de 1988” (MORAES, 2008).
296
“'Filhos do desamparo, filhos que amparam: significações da parentalidade de adolescentes-pais em
medida de Liberdade Assistida'” (CESTARI, 2008).
297
“As representações sociais sobre a figura paterna: um estudo com crianças e adolescentes em
situação de risco e vulnerabilidade social” (LEÃO, 2008).
298
“Guarda paterna e representações sociais de paternidade e maternidade” (VIEIRA, 2008).
299
“estrutura e dinâmica da família na perspectiva de pais de filhos com câncer e de filhos sadios”
(COELHO, 2008).
300
“as percepções de pais e mães acerca dos problemas de comportamento dos filhos” (BORSA, 2008).
301
“Paternidade e desemprego: características do envolvimento paterno e aspectos do relacionamento
familiar” (SOUZA, 2008).
302
“'Qualidade de vida e envolvimento paterno em crianças e adolescente com transtorno do
desenvolvimento” (YOSHIHARA, 2008).
303
“Vicissitudes da família de adolescentes agredidos pelo pai” (GIRALDI, 2008).
304
“A influência do gênero e ordem de nascimento sobre as práticas educativas parentais” (SAMPAIO,
2008).
305
“A clínica do bebê pré-termo e a escuta dos pais: questões para a psicanálise” (DIAS, 2008).
306
“A função paterna nas configurações familiares atuais” (AZEVEDO, 2008).
342
restritos ao universo feminino, os sentimentos agora aparecem na
experiência dos homens pais e a paternidade aparece como o lugar que
possibilitaria que eles pudessem desenvolvê-los e expressá-los melhor.
Assim, o saber científico produz modos de “ser” pai e regimes de
verdade sobre a paternidade, ora delimitando e ocultando as estratégias de
saber-poder que produzem o sujeito homem-pai e a concordância entre
pênis-racionalidade-procriação-heterossexualidade, ora possibilitando a
visualização dos limites da eficácia das normas de gênero, abrindo espaço
para produção de fissuras e transformações.
Objetivamos a partir deste levantamento e dos argumentos dos
autores e autoras aqui destacados aprofundar os problemas em pesquisas
que virão.
_____________________________________________________________
307
“As especificidades do padrão de apego da criança em relação à figura materna e paterna”
(SCHEFFEL, 2008).
308
“'Mater semper certa est pater nunquan': o discurso jurídico como dispositivo de produção de
paternidades” (PERUCCHI, 2008).
309
A autora analisou, tomados como materiais empíricos, documentos relativos aos “acórdãos” – termo
usado no âmbito jurídico para se referir à decisão final proferida pelo tribunal superior acerca de um
processo que passa a funcionar como paradigma para solucionar casos semelhantes – referentes aos
Tribunais de Justiça de Santa Catarina e Rio Grande do Sul (PERUCCHI, 2008; MEDRADO, LYRA,
OLIVEIRA ET. AL., 2009).
343
REFERÊNCIAS
345
GT 4 – GÊNERO E VIOLÊNCIA
COORDENAÇÃO: Profª. Dra Fernanda Marques de Queiroz - UERN
DO SONHO AO PESADELO: o tráfico de mulheres para fins de
comercialização sexual no Brasil
Adriana Lima Bispo
Daywyanny da Silva Ataíde
Rosiane de Jesus Santos Felix
1 INTRODUÇÃO
O tráfico de mulheres para fins de comercialização sexual é um
crime transnacional e movimenta um mercado altamente lucrativo o que
confirma uma crescente incidência em escala mundial de mulheres
vulneráveis às redes de tráfico. Neste sentido, partimos da compreensão de
que, por um lado, o processo capitalista globalizado objetiva, em sua
totalidade, a maximização do lucro, e, assim, é historicamente estruturada
uma sociedade fortemente marcada pela exploração do homem pelo homem
na produção de mercadorias e pelo estímulo incessante à satisfação pessoal
diante do consumo destas; e, por outro lado, essa marca de exploração não
se sustenta apenas na economia, mas também na cultura que reproduz a
desigualdade de gênero que vem historicamente se perpetuando até muito
antes do capitalismo. É nesse contexto que se insere a lógica do tráfico de
mulheres para fins de comercialização sexual.
Dessa forma, propusemos identificar os aspectos que
determinam o tráfico de mulheres e, a partir desse cenário apresentar o perfil
das vítimas, aliciadores/as e rotas que configuram a comercialização sexual.
A temática abordada envolve questões relacionadas ao
Neoliberalismo, classe social, gênero, etnia e geração que coloca o corpo
feminino como mercadoria a ser desejada e consumida. Essas esferas inter-
relacionadas geram, na atual conjuntura, a viabilidade em número crescente
da exploração de mulheres submetidas, muitas vezes, a regimes
escravistas, ao controle do homem, à violação do próprio corpo e à violência
física e psicológica. Configura-se um crime que tem como fundamento a
desigualdade social e de gênero. Parece-nos óbvio trazer esta nuance para a
discussão acerca das relações de gênero de modo a contribuir para o debate
contemporâneo, bem como estimular novas investigações a fim de chamar a
atenção para o referido tema, ainda pouco difundido no âmbito social. Em
suma, entendemos que este artigo, de alguma forma, pode trazer um
aprofundamento acerca da temática, na medida em que seja trabalhado
numa perspectiva crítico-dialética visando à promoção e igualdade das
mulheres.
_____________________________________________________________
310
Este artigo é um desdobramento do Trabalho de conclusão de curso da Faculdade de Serviço Social
da Universidade Federal de Alagoas, sob a orientação da Profa. Dra. Elvira Barretto.
Bacharel em Serviço Social pela Universidade Federal de Alagoas.
Bacharel em Serviço Social pela Universidade Federal de Alagoas.
Bacharel em Serviço Social pela Universidade Federal de Alagoas.
2 CONSTRUÇÃO TEÓRICA DO OBJETO: aspectos socioeconômico e
cultural
Com o intuito de uma melhor compreensão das questões
pertinentes ao tráfico de mulheres para fins de comercialização sexual na
contemporaneidade, nos propomos em fazer um sucinto resgate histórico
acerca do sistema econômico, político e cultural, pois, entendemos que
dessa forma será possível encontrar a base que vem sustentando e
perpetuando a problemática em pauta.
O período de transição neocolonial oferece bases econômicas e
institucionais para a erradicação do capitalismo competitivo nucleado no
setor urbano comercial. Em Karl Marx (1978) vemos que a produção
capitalista começa quando o capital individual ocupa simultaneamente o
aumento do número de operários, tendo como resultante o aumento da
produção de mercadorias. Para Alfredo Lisboa (1968), a produção de
mercadorias e sua circulação, em particular na forma desenvolvida do
comércio, constituem o fundamento do capital que surge inicialmente sob a
forma de moeda, historicamente sob as formas do capital mercantil e
posteriormente na forma industrial.
De acordo com Fernandes (1981) sobre o capitalismo
competitivo, nas relações entre Estado, sociedade e cultura, o
trabalho livre é consolidado e a movimentação demográfica em direção às
cidades é crescente, bem como as inovações postas pelo mercado
competitivo a partir da “cosmopolitização dos hábitos mundanos”,
incentivando o consumo de produtos e o reaparecimento de novas formas
escravistas e exploratórias, entre elas a prostituição, acentuando um novo
estilo de vida, inclusive diante de vias de comunicação em massa.
No âmbito do mercado de trabalho/econômico, diante da redução
do uso da força de trabalho no sistema industrial, o contingente de
trabalhadores é ampliado à medida em que mulheres e crianças incorporam-
se à produção, tornando toda a família trabalhadora dependente do capital.
Amplia-se também o grau de exploração, ao passo que, em razão da
conquista da jornada de trabalho reduzida, o capital cria meios para ampliar a
intensidade do trabalho, exigindo um maior desgaste do trabalhador. Com a
inserção de mulheres e crianças no processo de produção, retirando-as do
ambiente doméstico, são estabelecidas novas bases para a organização da
família e as relações entre os sexos, afetando transformações nas relações
sociais, nos costumes, na moral, na religião, na organização familiar, no lazer,
enfim, em todo modo de vida na sociedade.
No Capitalismo Monopolista houve uma imensa concentração de
riqueza, tendo como resultante deste processo uma intensificação das
contradições já existentes, combinadas com novas configurações e
antagonismos, vislumbrando o aumento do desemprego, ocasionado
também pela substituição do homem por equipamentos auto-reguláveis
350
marcadamente presentes no processo de modernização do sistema
produtivo e, ainda, o aumento da miséria.
Segundo Gentilli e Sader (1995), para o Neoliberalismo, as taxas
de desemprego existentes na sociedade de um determinado país tornaram-
se um “mecanismo natural e necessário de qualquer economia de mercado
eficiente”. Ou seja, tal projeto tem como base de sustentação o desemprego
de uma grande parcela da sociedade, o que fomenta a economia
mercadológica. Além do que, a expansão da mídia reproduz valores que
estimulam nos indivíduos sociais o desejo de ascensão mediatizada pela
posse de bens materiais e, por outro lado, a banalização da sexualidade e a
coisificação do corpo numa dimensão econômica de concorrência entre as
empresas em nível mundial e, em conseqüência a internacionalização do
comércio.
2.1 Globalização X Mundialização da Cultura
Já feito um breve resgate histórico acerca do capitalismo, agora
concentramos a análise da globalização econômica e mundialização da
cultura enquanto causa e consequência. Em face da aceleração do
crescimento econômico, os direitos sociais tornam-se mais seletivos e
excludentes, trazendo, como resultante, o distanciamento entre igualdade e
desigualdade. Para tanto, é necessário compreender a mundialização da
cultura, o processo pelo qual a mercadoria torna-se objeto de desejo, em suas
formas mais sensíveis e “coisificadas”, representadas, especialmente, no
corpo feminino de consumo para fins comerciais.
Veem-se que tendências opostas de desigualdade global entre
os países no mundo têm aumentado assiduamente. Isto ocorre devido a
capacidade estatal para assegurar um padrão de igualdade, segurança e
estabilidade social ser incompatível com a economia mundial de mercado
globalizado. Sobre isto, Therborn (1996, p.83) explica que “as políticas e
instituições estatais são intrinsecamente ambíguas em seus efeitos sobre a
(dês) igualdade, dependente das configurações do poder atrás delas”.
Ortiz (1994) oferece uma contribuição a respeito do conceito de
mundialização da cultura. Ele afirma tratar da correlação entre economia e
cultura do plano global, mas esta não se dá de forma imediata. Na
emergência de uma cultura globalizante, é importante considerar uma
reciprocidade realimentada entre o âmbito econômico e a dimensão cultural
da sociedade.
Em relação ao consumo, sua revolução foi conduzida pela
natureza hierárquica da Inglaterra do século XVIII. Conforme Mc Cracken
(2003), os bens foram subitamente convertidos em provas no jogo de status e
estavam sendo consumidos com entusiasmo. O século XIX viu a introdução
de elementos que ainda hoje caracterizam o consumo. No século XX,
destaca-se o avanço da liberdade de escolha. Neste, o sistema promete
liberdade sendo dada sob a forma de opção de consumo, mas nega formas
351
mais básicas de liberdade, tais como: trabalho não-alienado e uma relação
criativa entre sujeitos e objetos, as pessoas e seu mundo (SLATER, 2002).
Ao examinar a crítica à cultura do consumo, Slater (2002) observa
que ela gira em torno de um paradoxo brutal: a produção histórica mundial de
abundância material da modernidade não promove a felicidade ou satisfação.
Primeiro, ele explica que na produção de riqueza seu preço, na verdade,
constou também a produção de níveis obscenos de pobreza, exploração e
insegurança, absoluta ou relativa, quer na metrópole, quer no interior, enfim,
no mundo em desenvolvimento. A segunda contrapartida da riqueza é
resumida pela alienação - essa fica evidente na oscilação incessante entre
um desejo febril, frustrado, superestimulado e um pouco desesperado
permeado por indiferença e tédio supremos em relação a todas as coisas
novas.
Nesse sentido, a modernidade introduziu uma objetividade
maciça no mundo com dois sentidos, segundo Slater (2002): ao passo que
mais coisas são produzidas, por outro lado, uma maior parte da vida social é
produzida como se fosse uma coisa.
O consumo é uma questão de como os sujeitos humanos e
sociais com necessidades relacionam-se com as coisas do mundo que
podem satisfazê-los (bens, serviços e experiências materiais e simbólicas). O
sujeito, por meio do pensamento utilitarista liberal, define suas necessidades
e, em seguida, busca descobrir na natureza e no mercado, no mundo das
coisas e das necessidades, algo que satisfaça seus desejos já definidos.
Diante disso, identificamos que é esta expressão dos requisitos
que compõem as outras faces do consumo, que, por sua vez, abrange a
exploração sexual de forma específica. Então, partindo deste pressuposto
acerca da cultura do consumo em sua forma mais clarificada no sentido da
coisificação do corpo feminino como objeto para fins de comércio sexual,
intencionamos chamar a atenção para o tema tráfico de mulheres para fins de
comercialização sexual, como o ápice da expressão da "coisificação" do
indivíduo social numa sociedade que se diz "civilizada".
2.2 Contextualização do tráfico
Em termos gerais, a palavra tráfico designa a atividade
comercial que envolve o trânsito de mercadorias proibidas. Neste sentido, o
termo tráfico, além de se referir à comercialização ilícita de animais silvestres,
drogas e armas, inclui no rol dos produtos a comercialização do ser humano.
O escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime (UNODC) estima que
o lucro das redes criminosas com o trabalho de cada ser humano
transportado ilegalmente de um país para outro varie entre US$ 13 mil e US$
30 mil por ano (WIKIPÉDIA, 2009).
De acordo com a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico
de Pessoas instituída em 2007, em linhas gerais, tráfico é o recrutamento de
pessoas mediante uso da força e/ou outras formas de coação, fraude, abuso
352
de autoridade, situação de vulnerabilidade ou ainda através da oferta para
obter o consentimento de uma pessoa ter autoridade sobre a outra para fins
de exploração.
Devemos considerar, por um lado, o tráfico de pessoas enquanto
um aspecto das manifestações da questão social, contexto de contradição
entre capital e trabalho, em diálogo com a lógica global do consumo. Assim
sendo, o tráfico é uma ofensa aos direitos humanos ao passo que explora a
pessoa humana, degrada sua dignidade, limita sua liberdade de ir e vir.
Portanto, é fruto da desigualdade socioeconômica, da falta da educação
enquanto política pública, devido a poucas perspectivas de emprego e de
realização pessoal, como ainda relacionado a uma amplitude de
variadas questões. Dentre elas, destacamos as relações de gênero, já que na
sua maioria são mulheres.
Diante de um contexto marcado pelo patrimonialismo, articulada
à categoria economia política, o tráfico configura-se como um fenômeno
multidimensional, multifacetado e transnacional, determinado nas relações
macro-sociais, isto é, mercado globalizado e sua implicação na precarização
do trabalho e migração, bem como nas relações culturais, ou seja, valores
patriarcais, gênero, etnia e adultocêntricos, que inserem mulheres e crianças
em relações desiguais de poder.
3 TEORIA DE GÊNERO E SEXUALIDADE
O tráfico de mulheres para fins de comercialização sexual
engloba diversas categorias de análise, em especial "gênero" como um
processo construído teórico e historicamente.
Na intenção de realizarmos uma breve construção histórica e
contínua das mulheres, nos reportamos a Scott (2002) que utiliza a
significação da expressão Fantasy echo sinalizada como jogos da mente,
nem sempre racionais, que efetuam a repetição de algo imaginado, como um
eco (retorno imperfeito de som). A fantasia opera como sinônimo de
imaginação, devendo sofrer uma fiscalização racional e intencional. Em
relação ao "eco", transportado para o movimento da História, representa um
processo em que os sujeitos relacionam-se com diferenças entre os
significantes.
Nesse sentido, identidade (tanto no sentido de igualdade como
de individualidade) como um fenômeno histórico e contínuo, opera como
fantasy echo, uma fantasia que apaga as divisões, descontinuidades e
diferenças que separam os sujeitos no tempo.
Tendo realizado essas considerações, apresentamos de acordo
com Scott (2002) duas fantasias produzidas para consolidar a identidade
feminina. A fantasia da oradora feminina que insere as mulheres no cenário
público masculino, utilizando em seus discursos sociais, ideias
ligadas ao erotismo e à sexualidade como uma forma de transgredir os limites
sociais e sexuais. Outra, a fantasia maternal feminina que define a
353
reprodução como função primordial das mulheres. Lembramos, pois, que o
corpo da mulher é o primeiro com o qual se tem alguma relação e, ainda, o
primeiro amor que compartilha é o amor materno. No mundo das mulheres,
aspirados pelas feministas, o prazer encontra-se entre elas, um prazer além
do falo.
Nesse sentido, para nosso estudo, cujo objeto é o tráfico de
mulheres para fins de comercialização sexual, o foco na História das
mulheres e a construção de identidades coletivas femininas, a partir da
compreensão da fantasia e do eco, que almeja o fim da diferença, da
divisibilidade, da alienação e dos conflitos, consiste no ponto de partida para
entender a submissão das mulheres numa sociedade ainda marcada pelos
valores patriarcais, atrelada à lógica de mercado, consumo e da ideologia de
ascensão social (SCOTT, 2002).
Observa-se que é a partir do gênero que se pode perceber a
organização da vida social e suas conexões de poder nas relações entre os
sexos, isto é, ele transforma seres biologicamente machos e fêmeas em
homens e mulheres, entendidos como seres sociais, numa reflexão de cariz
essencialmente social, e, assim, nos proporcionam desvendar e
compreender a complexa e instigante dinâmica das relações sociais,
desigualdades e hierarquias sociais, pois o gênero se preocupa em
desmistificar a consolidação de identidades encarceradas do masculino e do
feminino o qual limitam homens e mulheres em seus "papeis" já consolidados
socialmente.
Tratando da sexualidade e do poder, é possível perceber os
sistemas de conjuntos de práticas, símbolos e representações, normas e
valores sociais elaborados pela sociedade a partir da diferença sexual
anatômico-fisiológica que dão sentido à satisfação dos impulsos sexuais, à
reprodução da espécie humana e ao relacionamento entre as pessoas.
Desde a nossa infância, o poder é inserido em nosso corpo. É
importante estar atento ao fato de que, historicamente falando, o poder
sempre esteve implícito na reprodução de relações de forma desigual e
injusta entre mulheres e homens. A alternância da escola, da educação
familiar, religiosa ou cívica, com o tempo, formou em nós uma trama
indissociável do nosso pensamento mais íntimo, por meio da ideologia ou
interiorização consciente, impossibilitando a separação da nossa falsa
identidade.
Observamos que ainda existe uma realidade muito viva em vários
sentidos quanto ao domínio masculino sobre as mulheres. No entanto, estão
presentes algumas alterações no que concerne a passividade e a submissão
feminina nos sistemas de gênero. Quando assentadas na sexualidade ou em
outras dimensões sociais, a construção social das diferenças e o poder
podem ser revelados nas suas singularidades e dinâmicas que vão além das
contradições da dominação masculina.
354
A descrição do poder está associada a uma face sombria de um
prazer perturbador, tendo em vista que força a vontade de outrem e impõe a
sua própria lei. Na relação entre estrangeiros destaca-se a força e a
submissão do outrem. Nesta, há superioridade, onde o mais viril é o homem e
a mulher é inferior, acaba formando uma relação voluntária, sendo
estabelecida compulsoriamente. Diante desse contexto, trazemos para essa
discussão o tráfico sexual de mulheres, já teorizado historicamente na seção
anterior, em diálogo com a economia política do sexo, haja vista que aqui
encontramos os fundamentos que sustentam e reforçam a questão do tráfico.
3.1 Gênero e Sexualidade no rastro da economia política do sexo
Propomos que nos reportemos ao estudo inédito de Rubin (1986)
que, numa revisão teórica de autores marxistas – Marx e Engels, culturalista –
Lévi-Strauss e Psicanalistas – Freud e Lacan desenvolve uma reflexão sobre
a economia política do sexo. Assim, compreendê-la implica em algumas
reflexões. A primeira é com relação ao modo de produção vigente e suas
consequências; a segunda transita em torno da origem da família
na relação com esse modo de produção, especialmente no que concerne ao
sistema de parentesco. Assim, urge a necessidade de se decifrar a
constituição do matrimônio e as relações de intercâmbio nele implicadas.
Com esta análise, objetivamos desenvolver subsídios que contribuam para
uma reflexão crítica em torno da questão do tráfico de mulheres, haja vista,
como já tratamos anteriormente, que este tema é complexo e demanda certo
aprofundamento.
No que se refere a relação mulher/capitalismo, Rubin (1986)
evidencia alguns entendimentos. Assim sendo, a mulher consiste em reserva
para a força de trabalho. Quando empregadas, seus salários, geralmente
inferiores aos dos homens, geram mais-valia extra para o capitalismo, bem
como servem ao sistema em seus papeis de administradoras do lar.
Se para Marx a classe trabalhadora é a força motriz para o
capitalismo, para Rubin (1986) não existe uma sociedade imutavelmente
opressiva. Para isso, além da superação do capitalismo, haja vista também a
superação do sistema sexo/gênero, onde a opressão é existente.
No sentido de desvendar a submissão das mulheres, a
referida autora utiliza o método estruturado por Lévi-Strauss, que reconhece
o lugar da sexualidade e das profundas diferenças entre homens e mulheres
na sociedade, mediante os sistemas de parentesco que, por sua vez, envolve
organização das atividades econômica, política além da sexual como
também, de deveres e privilégios dos indivíduos. Engloba o tabu do incesto, o
matrimônio entre primos, as relações de intimidade forçada e proibida entre
outros elementos presentes na sociedade, e que variam de uma cultura a
outra. Salientamos, pois, que o nosso estudo teve como cenário a cultura
ocidental.
Rubin (1986) a luz dos estudos de Lévi-Strauss pontua que o tabu
355
do incesto inicia o intercâmbio do falo. Diante desse contexto, é válido
compreender que para decifrar o sistema de sexo, é importante entender a
questão do matrimônio. A autora enfoca Lévi-Strauss, que, por sua vez,
afirma que o matrimonio é uma forma de trocar presentes, no qual
as mulheres apresentam-se como o mais precioso deles. Dessa forma, ele é
representado como um sistema com vistas a conseguir uma mulher, tendo o
homem a concessão de direitos sobre a mesma. O tabu do incesto segrega a
relação sexual em categorias de companheiros permitidos e proibidos.
Assim, a proibição do casamento dentro de um grupo impõe o intercâmbio
marital entre grupos. Logo, o tabu do incesto impõe na sociedade a exogamia
e a aliança aos fatores biológicos do sexo e da procriação.
É interessante destacar os atores sociais que participam do
matrimônio, no qual a mulher ocupa uma posição mercadológica e de
inferioridade. Rubin (1986), explica o intercâmbio constituído no matrimônio,
que não se estabelece mediante uma relação entre um homem e uma mulher,
mas entre dois grupos de homens, onde a mulher é apenas objeto de
intercâmbio, não uma participante desse processo. Ao aceitar a união
matrimonial, a mulher permite que o intercâmbio se reproduza, porém não
pode modificar sua natureza. Dessa forma, parentesco supõe organização,
que, por sua vez, implica poder.
No âmbito da psicanálise Lacaniana, Rubin (1986) destaca o
valor social e simbólico do falo. Ela afirma que o falo conserva um significado
social de dominação dos homens sobre as mulheres, sendo privilegiados de
direitos que elas próprias não têm. Ainda, o falo preserva o significado da
diferença entre o que troca e o que é trocado, entre o presente e o doador.
Com este entendimento, o falo é mais que um traço que distingue os sexos,
ele enaltece o status masculino que eleva os homens e lhes confere o direito a
posse de uma mulher. Podemos identificar como exemplo, o tráfico de
mulheres para fins de comercialização sexual, mediante o aliciamento ser
constituído em grande parte por homens para satisfação de poder, libido e
desejo dos próprios homens.
4 A CONFIGURAÇÃO DO TRÁFICO DE MULHERES PARA FINS DE
COMERCIALIZAÇÃO SEXUAL: a particularidade brasileira
Como vimos, a configuração do tráfico de mulheres só pode ser
compreendida no contexto histórico, político, socioeconômico e nesse
aparato as relações de gênero, classe e etnia.
O tráfico de seres humanos é um crime transnacional e
movimenta um mercado altamente lucrativo, perdendo apenas para o tráfico
_____________________________________________________________
311
Departamento Americano de Investigação Criminal - FBI em 2002.
312
Relatório sobre Tráfico de Pessoas - Revista eletrônica do Departamento dos EUA, volume 8,número
2 (2003: p.2).
356
de drogas e armas. Estima-se que 800.000 a 900.000 pessoas são traficadas
anualmente. Destas, cerca de 20.000 entram nos Estados Unidos, e mais de
meio milhão de mulheres são traficadas para Europa. Segundo dados da
Organização Internacional do Trabalho - OIT (2005), o lucro anual produzido
com o tráfico de pessoas chega a 31,6 bilhões de dólares.
De acordo com Kempadoo (2005), na composição do tráfico de
pessoas estão subentendidos alguns problemas estruturais globais. Dentre
eles, destacam-se: a globalização, o patriarcado, o racismo, os conflitos e as
guerras étnicas, a devastação ecológica e ambiental e a perseguição política
e religiosa. Em se tratando das causas subjacentes ao tráfico de seres
humanos, Kempadoo (2005) dá ênfase à pobreza, ao desemprego, à
ausência de educação e à falta de recursos. A busca pela melhoria das
condições de vida impulsiona algumas pessoas a correrem o risco de cair nas
mãos de traficantes.
Estão mais vulneráveis ao tráfico de seres humanos,
particularmente, mulheres e crianças. Isso se deve à feminização da pobreza,
à discriminação entre homens e mulheres, à falta de possibilidades de
educação e de emprego nos seus países de origem. As últimas pesquisas
divulgadas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) comprovam
que mais de um milhão de mulheres trabalham como escravas sexuais para
redes internacionais de tráfico de pessoas. Dados estes que reforçam o
quanto esta questão é um dos negócios mais rentáveis do mundo.
Seguindo a análise de Kempadoo (2005), o tráfico de mulheres é
um problema internacional especialmente entre o final do século XIX e início
do século XX. Nesse período, surgem no cenário internacional mulheres
trabalhadoras migrantes, cuja função esteve basicamente relacionada às
ideias sobre a sua utilização para comercialização do sexo.
De acordo com Leal (2002), o Brasil é um dos maiores
exportadores de mulheres no ramo da prostituição, obtendo liderança no
tráfico na América do Sul. Segundo estimativas mais recentes da
Organização Internacional de Migrações (IOM), agência ligada à
Organização das Nações Unidas (ONU), confirma-se um percentual
aproximado de 75 mil prostitutas brasileiras atualmente trabalhando na
Europa. Cerca de 95% dessas mulheres estão com os passaportes retidos,
"devem" a aliciadores e vivem em condições humilhantes. Esse número vem
crescendo em países como Espanha, Holanda, Suíça, Alemanha, Itália e
Áustria.
De acordo com o Governo Espanhol, observa-se a existência de
1,8 mil prostitutas brasileiras no país, o que totaliza aproximadamente 32
rotas de tráfico de mulheres. A Espanha é o destino mais frequente das
brasileiras, seguida por Holanda, Alemanha, Itália, Suriname e Venezuela.
Portugal é a principal porta de entrada de brasileiras; praticamente todas
chegam ao continente com documentos falsos. É tão elevado o número de
357
brasileiras que algumas chegam a cargos de chefia no sistema do tráfico.
Os anos 70 são um marco no turismo sexual no Brasil, período em
que começa a saturar esta indústria na Ásia, transferindo essa prática para a
América Latina, principalmente para o Brasil e a República Dominicana.
Também nesse período começam as propagandas e o grande incentivo do
governo brasileiro a essa indústria. Um exemplo muito conhecido de
propaganda veiculada no tempo da ditadura militar brasileira pode ilustrar a
forma direta de anunciar “o produto” de exportação nacional: a mulata
brasileira.
Dentre os diversos fatores determinantes para a proliferação do
turismo sexual destacam-se: a conivência das autoridades nacionais, a
imagem de sensualidade, o erotismo e a liberdade sexual veiculada tanto nas
propagandas turísticas quanto na literatura constitui outro fator. Ainda há
também o processo de erotização do cotidiano e a banalização do sexo por
meio da mídia, tão crescente na sociedade de mercado e na cultura brasileira.
O tráfico para fins de exploração sexual comercial no Brasil é
assim caracterizado: mulheres e adolescentes afrodescendentes (negras e
mulatas), cuja faixa etária de maior incidência varia entre 15 a 25 anos,
respectivamente. De modo geral, elas são oriundas de classes populares,
apresentam baixa escolaridade, habitam em espaços urbanos periféricos
carentes de saneamento, transporte, dentre outros, moram com algum
parente e geralmente têm filhos, na maioria dos casos já sofreram algum tipo
de violência intrafamiliar ou extrafamiliar(abuso sexual, estupro, sedução,
atentado violento ao pudor, abandono, negligência, maus tratos, dentre
outros). Esse público-alvo, na maioria dos casos, está inserido em atividades
laborais desprestigiadas e subalternas relativas ao ramo da prestação de
serviços, que, por sua vez, são mal remuneradas, sem vínculo empregatício,
sem garantia de direitos, bastante rotativas e, principalmente, com uma
desgastante jornada de trabalho, ou seja, sem qualquer possibilidade de
ascensão ou melhoria (LEAL, 2002).
A mulher ou adolescente aliciada é constituída por dois tipos que
se opõem entre si, conforme apontam os estudos de caso. A pessoa ingênua,
humilde e cercada por grandes dificuldades financeiras é o primeiro tipo -
essa acaba sendo iludida e enganada com certa facilidade; no segundo caso,
trata-se da mulher que, mesmo tendo consciência dos riscos, consente em
ser aliciada, na esperança de conquistar sua estabilidade
financeira (LEAL, 2002).
Algumas mulheres vítimas de tráfico, embora saibam que vão
trabalhar no ramo da prostituição não conseguem discernir que muitas vezes
serão mantidas em condições próximas da escravatura. Por vezes, são
obrigadas a reembolsar pesadas dívidas referentes aos custos de
documentação e transporte, após serem interditados seus passaportes e
dinheiro, são introduzidas no mundo dos tóxicos e da dependência.
358
Tratando dos aliciadores brasileiros, vê-se que majoritariamente
são do sexo masculino, a maior parte possui nível médio ou superior, embora
também existam mulheres neste ramo, com faixa etária média de 20 a 50
anos para o primeiro e de 20 a 35 anos para o segundo. Geralmente são
casados/as ou vivem em uniões estáveis; dizem-se empresários, atuando em
negócios como casas de shows, comércios, casas de encontros, bares,
agências de turismo, salões de beleza e casas de jogos.
Existem dois graus de aliciadores: os considerados de primeiro
grau geralmente pertencentes às redes de tráfico e os de segundo grau
normalmente têm maior poder de convencimento, pois, estão inseridos nos
bairros das vítimas. A atraente possibilidade de um rápido enriquecimento,
acaba deixando as adolescentes deslumbradas com a possibilidade de que
no exterior terão êxito e, consequentemente, ganharão muito dinheiro,
constitui a principal arma de sedução dos traficantes.
Assim, a partir do perfil dos aliciadores, torna-se necessário
conhecer e analisar o processo de constituição das rotas, que dão origem às
redes de tráfico de mulheres para fins de comercialização sexual.
O relatório da OIT (2005) aponta o Brasil como campeão mundial
em tráfico de mulheres com 110 rotas internas e 131 internacionais e funciona
como grande fornecedor de capital humano para alimentar uma crescente
demanda, localizada principalmente em países da Europa, como Espanha,
Holanda, Itália, Suíça, Alemanha e França.
As redes internacionais do tráfico criam uma "indústria"
desenvolvida e bem organizada com apoio político, mediante recursos
econômicos nos países de origem, trânsito e destino. Operam através de
agências de emprego conceituadas, agências de viagens, empresas de lazer,
redes de mercado da moda, rede de telessexo, redes de agenciamento para
projetos de desenvolvimento e infra-estrutura e, ainda através de agências
matrimoniais. Constata-se no tráfico internacional a existência de 131 rotas,
das quais 120 envolvem apenas mulheres. Assim, observa-se que as
mulheres são locadas ao tráfico internacional e as adolescentes são partes
integrantes do tráfico interno,
Em seu artigo, Pires e Gonçalves (2007) destacam que o tema do
tráfico e da exploração sexual de mulheres explicita as relações desiguais de
poder entre homens e mulheres, o que contribui para a solidificação de
relações machistas e estereotipadas na sociedade. No mais concreto, o
tráfico de mulheres para fins de comercialização sexual configura-se em uma
_____________________________________________________________
313
LEITE, Maria Jaqueline de Souza. A exploração das mulheres na dinâmica do turismo sexual. Centro
Humanitário de Apoio à Mulher. Disponível
em:<http://www.chame.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=39> Acesso em: 15 ago.
2008
314
Ao aludir os estudos de caso, nos referimos à LEAL (2002) que aponta experiências de mulheres
brasileiras traficadas para o exterior.
359
violação os direitos sexuais das mulheres à medida que compromete a
liberdade de viver sua sexualidade sem violência, discriminação ou coerção,
além de infringir o direito à integridade física do próprio corpo, à integridade
psíquica, o direito a ter sonhos e fantasias, bem como o direito de viver
relações que se alicercem no respeito e na igualdade de gêneros.
Diante do exposto, percebemos que o tráfico de mulheres para
fins de comercialização sexual é mais uma forma de expressão da questão
social, resultado das contradições sociais que se acirram com o processo de
globalização e com a fragilidade dos estados no que tange ao enfrentamento
dessa questão, além da estruturação da identidade de gênero nesse
contexto. Essa prática fere os Direitos Humanos, à medida em que viola a
dignidade humana de sujeitos de direitos. De acordo com o que foi explanado
nesse artigo, nos parece que o tráfico de mulheres para fins de
comercialização sexual constitui-se numa refração social a ser considerada
por diversas áreas de conhecimento no cotidiano de sua prática, na medida
em que o contexto exige um profissional cada vez mais preparado
e compromissado com a ética, a efetivação e ampliação dos direitos, partindo
do pressuposto de que vivemos num sistema que se reproduz produzindo
desumanidades.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Feito este resgate, foi possível entendermos a gênese da
banalização do corpo feminino e o cenário do tráfico de mulheres onde se
harmonizam relações de mercado, consumo e migração em sintonia com as
desigualdades sociais, de gênero e etnia que colocam as mulheres em
situação de vulnerabilidade social, abrindo lacunas para a exploração,
especialmente a sexual.
Na relação harmoniosa para o capital, intensificam-se as
desigualdades, o desemprego, as precárias condições de sobrevivência,
bem como uma sociedade patriarcal que se utiliza da mulher como
mercadoria para fins sexuais, que, por sua vez, prioriza a eficácia econômica
em detrimento da equidade social. Portanto, abre um leque de possibilidades
para expandir em larga escala a comercialização sexual da mulher, que
cresce aceleradamente, atingindo a sociedade como um todo.
Tratando a mundialização da cultura, compreendemos o
processo pelo qual a mercadoria torna-se objeto de desejo, em suas formas
mais sensíveis e "coisificadas", representadas, especialmente, no corpo
feminino de consumo para fins comerciais. Neste processo, a globalização é
sustentada pela mídia, que, por sua vez, propaga a cultura do consumismo, a
busca incessante pela ascensão social, de forma a reproduzir certos valores
nos indivíduos que fomentam a busca pela satisfação pessoal e social, por
intermédio da posse rápida de bens materiais e; a banalização da
sexualidade e a coisificação do corpo.
Em suma, esse estudo trouxe uma reflexão para essa
360
modalidade de tráfico que, apesar de estar crescendo constantemente, ainda
é pouco debatida no âmbito social; contudo, merece uma atenção especial,
tendo em vista que é resultado das desigualdades sociais e da falta de
políticas públicas efetivas que não façam do indivíduo um mero receptor de
ajuda, mas que preconize resgatar sua auto-estima, tendo como horizonte
um cidadão em pleno gozo de direitos.
_____________________________________________________________
315
Entendemos por desumanidade as relações bárbaras e crueis implícitas no sistema capitalista que
prioriza a esfera econômica em detrimento da esfera social.
316
Entendida como usuários em situação de perda ou fragilidade de vínculos de afetividade; diferenciação
social em termos étnico, cultural e sexual; formas variadas de violência advinda do eixo familiar, grupal ou
individual; inserção precária ou não inserção no mercado de trabalho formal e informal; estratégias de
sobrevivência que representem risco pessoal e social e; exclusão pela pobreza. (POLÍTICA NACIONAL
DE ASSISTÊNCIA SOCIAL, 2004).
361
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364
MATEI POR AMOR, E AGORA? O DEBATE JURÍDICO SOBRE O CRIME
PASSIONAL NA PRIMEIRA REPÚBLICA
Antonio Carlos Lima da Conceição
PPG NEIM/UFBA – curalima@ig.com.br
1 INTRODUÇÃO
Este artigo analisa as transformações político-jurídicas
decorrentes da proclamação da república em 1889 e da promulgação da
primeira constituição republicana de 1891, ao mesmo tempo em que são
discutidos os argumentos utilizados pelos agentes jurídicos para justificar
suas posições favoráveis ou contrárias ao uso da paixão, e da honra, como
justificativas para absolvição dos acusados da morte, ou tentativa de morte de
suas companheiras.
O breve apanhado do enquadramento legal em que atuam os
agentes jurídicos visa a entender o lugar ocupado pela “paixão” no
pensamento jurídico penal, assim como, a importância da história da
implantação de um determinado Código Penal. Faz-se necessário
compreender também o papel desempenhado pelo júri nesta história, a sua
crescente desvalorização como instrumento legal, desde que foi criado no
Brasil, e como a discussão sobre a sua manutenção ou extinção está
imbricada não só com a questão dos “crimes passionais” como, também, a da
maior ou menor participação da sociedade nas decisões judiciais.
Nos limites deste trabalho seria impossível fazer um
levantamento da extensão do uso desses argumentos em nossa sociedade,
mas o propósito é evidenciar que a argumentação jurídica utilizada no país,
com variações locais que provavelmente não modificam o núcleo central das
discussões, visto que o aparato legal é utilizado em todo o Brasil.
A paixão, este impulso considerado pelos juristas como
irresistível, devia ser analisada tomando por base a sua qualidade em relação
às leis e às necessidades permanentes da vida social e da vida
humana. A etimologia da palavra paixão procede de outra que significa
sofrimento, dor, doença.
No âmbito do direito, este crime se beneficiou não só da onda de
amor romântico mas, também, da importância que foi atribuída à análise
individualizada do criminoso desde meados do século XIX, por um grupo de
italianos que, sob a orientação de Lombroso, teve grande influência em todas
as alterações do direito penal contemporâneo.
Psicólogos e juristas, de acordo Soihet (1997), empenharam-se
em demonstrar que o crime passional era uma mera expansão brutal do
instinto sexual que cabia à civilização controlar no homem este instinto era
ativo, enquanto na mulher ele se manifestava pela passividade. A assimilação
_____________________________________________________________
317
O termo paixão é utilizado pelos juristas do período com o sentido de impulso irresistível, uma
emoção não controlada que leva ao crime.
365
destas teorias foi excluindo a mulher como agente de crimes passionais,
ficando-lhe reservada, como ser passivo, a possibilidade de ser defendida,
quando acusada por crime de morte, por ter atuado em legítima defesa.
No Brasil, a significação implícita da expressão crime passional,
no campo das discussões jurídicas, era a de punição da esposa adúltera. O
crime passional, como o crime supostamente cometido na legítima defesa da
honra, é um crime basicamente masculino, o que só será explicitado pelos
juristas que o combateram na década de 30.
Os juristas argumentavam que era necessário julgar o prejuízo
que este crime trazia à ordem social. A sua punição devia ser exemplar e o
suficiente para preveni-lo. Assim, apontava-se que as penas obedeceriam a
critérios fixos, mas a justiça devia levar em consideração as qualidades
pessoais do criminoso e o tipo de paixão que o impulsionava.
Neste sentido, a pena aplicada devia ser exemplar, mas no
caso dos passionais isto era desnecessário, pois o seu crime era entendido
como um momento fugaz e corretivo da ordem estabelecida, já que o que o
impulsionava era uma paixão social e, portanto, um “motivo justo” .
Bandeira (1912, p. 26) relata, os caracteres distintivos dos
criminosos passionais, dizendo que eles “são indivíduos de uma
conduta precedentemente honesta, de temperamento sanguíneo ou
nervoso, de uma sensibilidade exagerada”. Quanto aos motivos da
delinquência específica dos apaixonados, segundo Moraes (1933), encontra-
se uma grave ofensa à dignidade, ao amor e à honra, sendo a característica
do estado verdadeiramente passional a ideia fixa . Todo o esforço do campo
jurídico no período estudado dar-se-á no sentido de caracterizar o criminoso
passional.
A pessoa do criminoso exprimia uma entidade abstrata, a mesma
que depois seria expressa no cárcere por um número; por sua vez, a ideia da
pena como retribuição do mal pelo mal se opõe, segundo os pressupostos da
nova escola penal, à ideia de pena como meio para o bem, como instrumento
de elevação individual e de preservação social.
Na primeira república percebe-se o esforço dos promotores para
descaracterização do assassino passional como forma de garantir a
condenação dos criminosos em questão. Uma atuação destacada foi a do
promotor Roberto Lyra, no Rio de Janeiro, membro do Conselho Brasileiro de
Higiene Social, órgão formado por juristas como o próprio Roberto Lyra,
Nelson Hungria e Afrânio Peixoto, que tinham por objetivo terminar com a
tolerância aos crimes de paixão e a interpretação “errônea” da tese do
passional. Seu trabalho culminou com a eliminação do mecanismo que
considerava isento de responsabilidade quem estivesse em “estado de
perturbação dos sentidos”.
A campanha pelo fim da tolerância com os criminosos passionais
apregoava a existência de um verdadeiro massacre e de um aumento
366
descabido do número de assassinatos (BORELI, 1999, p.31). Para estes
reformadores devia ser combatida a idéia de que a honra masculina dependia
do comportamento feminino e de que o amor contrariado devia ser vingado
pelo sangue, pois para eles era esta crença a “real” motivação dos assassinos
passionais e somente quando a mulher fosse encarada como um
ser com “honra própria”, a onda de crimes passionais terminaria.
Lyra (1931), em “O Amor e a Responsabilidade Criminal”,
trabalho de um dos eruditos criminalistas da nova geração, repelia a ideia da
inimputabilidade dos passionais. O mais inflexível seguidor desta tendência
repressiva foi Afrânio Peixoto, cujas manifestações se intensificaram, neste
sentido, desde a publicação da Psicopatologia Forense, em que exigia
repressão severa ao amor que assassina.
De acordo com Peixoto, os crimes passionais eram o delito
bárbaro das sociedades primitivas. Atacando os jurados, os juízes e os
advogados, quando distinguem as diferentes classes de passionais, sustenta
que é a inépcia das leis que faz, nas nossas sociedades, o crime passional.
Assim ele se expressa:
Urge prender e condenar esse amor. O verdadeiro amor, honesto,
doméstico, sem fartura de dinheiro e de tempo, nem pródigo, nem ocioso,
o santo amor de cada dia não pode ser criminoso. Celerado é o amor
vadio, dos parasitas sociais, que não tendo que fazer ou pensar, apenas
cuidam de abastecer de espasmos a sua medula lombar; celerado é o do
dessas máquinas de prazer, manequins de estofos e de joias, que não
trabalham, nem amam, mas vendem o corpo e alma, por tafularias e
vaidades. Aos crimes desse amor dobradas penas, para que se eduque
na regra do bem viver (LYRA, 1931, p. 9-12).
O delito passional devia ser julgado de acordo com dois critérios:
a qualidade dos motivos e a personalidade do autor. Estes dois itens deviam
ser analisados para estabelecer se o criminoso era ou não um passional. O
motivo que o levou a agir deveria ser relevante para a manutenção da ordem
moral da sociedade. Se agia em defesa de princípios como família e honra, a
paixão que o impulsionava classificava-se como social e, portanto, era
possível a atenuação da pena, diminuindo o tempo de reclusão ou levando à
absolvição do criminoso.
Determinar a causa do crime era essencial para a percepção de
que aquele “criminoso” tinha cometido um delito levado por um motivo
relevante. Entre os motivos assim considerados, estava a honra masculina.
Os juristas que utilizavam esta definição na defesa de passionais insistiam
que a honra era uma paixão social e que mantinha a vida social. Tratava-se,
portanto, da manutenção de uma estrutura hierárquica nas relações entre o
_____________________________________________________________
318
O amor romântico fenômeno tardio, teria surgido apenas, durante o processo de industrialização e
de urbanização que teve lugar na Europa do século XVIII.
367
homem e a mulher e que estabelecia uma ligação entre a honra do homem e
os atos femininos.
Reforçar a diferença entre os passionais e outros criminosos era
necessário para colocá-los em outra categoria, o que permitia que
recebessem um tratamento jurídico mais adequado à sua situação de réus
primários e que tinham agido por um “motivo nobre”. Era preciso criar a
noção de que o crime era um intervalo infeliz e irracional na vida de um “bom
cidadão”, cumpridor de seus deveres de cidadão e de marido. Era, portanto,
injusto que fosse julgado pelos mesmos parâmetros dos prisioneiros comuns.
Conforme Moraes (1933), era necessário levar em consideração
quais foram as circunstâncias e os motivos de um crime para julgá-lo, pois era
incorreto aplicar a mesma pena para aquele que defende um valor social
relevante e a um criminoso habitual, que age levado por seus “instintos
perversos”. Trata-se da noção de individualização das penas que dizia que
em determinados casos, como no dos passionais, era necessário julgar os
indivíduos por toda a sua vida e não somente pelo momento do crime.
O que se considerava era que o passional tinha realizado um ato
corretivo da ordem vigente, que tinha sido “perturbada” pelo comportamento
adúltero e que tinha retornado à sua ordem pelo ato do passional. Neste
sentido, o passional não devia ser criminalizado, pois não havia conturbado a
ordem social e, sim, retificado o comportamento inadequado de uma mulher
que manchara a honra de um homem.
Os crimes passionais eram uma expressão exacerbada da
violência de gênero e suas representações na imprensa
demonstravam uma tentativa de reforçar os perfis aceitos socialmente. No
processo de construção desses perfis era necessário zelar para que estes
fossem um parâmetro para o comportamento de todos os indivíduos que
viviam naquela sociedade; desejava-se um padrão de normalidade do
comportamento e as outras maneiras de viver eram classificadas como
desvios socialmente questionáveis.
Corrêa (1981) salienta que tudo caminha com a finalidade de
produção da verdade jurídica, o que significa a atribuição de responsabilidade
penal aos possíveis autores de infrações tanto quanto a construção de
sujeitos como entidades morais .
Dessa forma, é possível afirmar que os autos criminais são um
espelho complexo da realidade social. Verdades são construídas sobre os
envolvidos e é a partir disso que esses são enquadrados ou não em um
“projeto civilizador”, de modo que o direito penal sancionando as condutas
contribua para a manutenção da ordem social.
_____________________________________________________________
319
Roberto Lyra, pernambucano, formou-se na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, foi especialista
em direito penitenciário, considerado o príncipe dos promotores públicos brasileiros, foi membro da
comissão revisora do projeto do Código Penal de 1940.
320
Foi médico e inspetor de saúde pública e diretor do Hospital Nacional de Alienados em 1904.
368
Uma vítima descrita como insinuante, provocante, que não é
virgem, que frequenta bailes, que se prostitui, que consome bebida alcoólica,
que já tenha um histórico de internações psiquiátricas, ou mesmo que
caminhe sozinha durante a noite, será desmerecida em seu depoimento e
orientará a solução rápida, simples e injusta praticada pelos agentes
jurídicos.
O grau de credibilidade dos depoimentos relaciona-se com
elementos de gênero, classe e etnia. Possuir credibilidade é ser “idôneo”, ser
honesto, o que denota uma racionalidade jurídica dual e discriminatória em
relação à população economicamente excluída da sociedade brasileira, em
que a marginalidade aparece como tendência masculina e a prostituição
como tendência feminina.
A discussão de Esteves (1989), em todos os discursos jurídicos
do final do século XIX e início do século XX, aponta para um padrão de
honestidade associado ao comportamento e à conduta social. O
intuito do sistema jurídico não era apenas estabelecer a verdade e determinar
o autor. A conduta total dos indivíduos é que iria ou não redimi-los de um
crime; não estava em questão o que definitivamente havia ocorrido, mas
aquilo que acusado e ofendida eram, poderiam ser ou seriam.
Na formação da inocência de um homem e culpa de uma mulher,
eles eram julgados prioritariamente pelo seu trabalho e elas, por sua conduta
sexual. As mulheres deveriam controlar o seu sexo e os homens suas
indisposições para o trabalho. Para eles não eram necessárias muitas
qualificações, simplesmente era citado o fato de serem trabalhadores. Para o
saber jurídico, os atributos do trabalhador se associavam ao de honestidade.
Conforme Caulfield (2000) um homem honesto era aquele considerado bom
trabalhador, respeitável e leal: ele não desonraria a mulher ou voltaria atrás
em sua palavra. Em contraste, a honestidade feminina referia-se à virtude
moral no sentido sexual, e esse era um grande tópico de grande preocupação
teórica e da jurisprudência.
De acordo com a pesquisa empreendida por Caulfield (2000), que
analisou processos do início a meados do século XX, cabia à justiça o papel
de impor normas sociais através da associação entre verdade e conduta
pessoal.
A narrativa de um crime passional se construía como o enredo de
uma novela: um homem de bem, isto é, um marido, noivo, namorado ou
amante de bom comportamento social, encontra um dia sua companheira
mantendo relações sexuais com outro homem e a mata, ou mata a ambos.
Este paradigma, apresentado pela retórica jurídica, quase nunca se repetia
na vida real de maneira linear, e os ajustes que se fazem nas apresentações
dos personagens durante o debate perante o júri visavam, principalmente, a
aparar as arestas de uma realidade que insistia em se diferenciar do mito.
O assassinato da esposa cometido mediante um flagrante
369
adultério, por exemplo, é um caso raramente mencionado nas narrativas
destes crimes e, na maioria das vezes, era laboriosamente
reconstruído através de testemunhas, vizinhos, amigos ou parentes do
marido ou de ambos. Assim, este tipo de adultério se tornou um elemento
indispensável de argumentação da “legítima defesa da honra”.
Nos casos que citava para apoiar a defesa dos criminosos
passionais, Evaristo de Morais enfatizava ainda um outro elemento da
definição literária destes crimes: a tentativa de suicídio dos autores do crime,
quase imediatamente após o assassinato, tentativa esta quase sempre
frustrada. O jurista Castro (1943), em relação a esta atitude dos criminosos
passionais, assim se expressa:
O homem não quer perder a posse desses encantos que embriagam seus
sentidos, nem ficar humilhado diante de um rival mais feliz. Essa mulher
que aí passa, convergindo sobre si os olhares invejosos de todos os
homens, só a ele pertence, só ele penetra na alcova discreta e sombria, só
para ele se rasgam os véus do pudor na nudez dos corpos que palpitam e
estão em ânsias de volúpia (CASTRO,1943, p.138)).
Esta “paixão”, quando contrariada, acabava gerando violência,
pois o homem era tomado de emoção e suas atitudes tornavam-se irracionais
e inconseqüentes.
O que se observa é que a lógica jurídica , apesar de
aparentemente funcionar segundo os critérios de racionalidade e
neutralidade decorrentes do princípio liberal de justiça, é constituída de
práticas de diferenciação entre os indivíduos justamente por se deslocar do
fato em questão para a avaliação da conduta social de vítima e de acusado.
2 OS AGENTES JURÍDICOS E SUAS FALAS
O sistema jurídico, em sua busca pela verdade dos fatos e
personificado através da forma de operação de seus agentes, sejam eles
advogados, promotores e juízes, orienta-se através de uma lógica que
relaciona o grau de adequação dos comportamentos sociais de vítima e de
acusado com a credibilidade de seus depoimentos. A atuação dos agentes
jurídicos consiste, então, em observar a identidade da vítima e do acusado,
observação esta orientada pelas questões levantadas durante as
declarações policiais e judiciárias, e do relato feito pelas testemunhas.
Percebe-se que a idoneidade moral dos indivíduos é considerada
fundamental para atestar a credibilidade dos seus depoimentos. Esta
relação, efetuada pelos agentes jurídicos, entre comportamento socialmente
adequado e veracidade dos depoimentos, ao invés de ser questionada em
sua dimensão discriminatória, é vista como uma prática jurídica necessária.
Se a discriminação contra a mulher-vítima ocorre, sobretudo, pela utilização
de estereótipos referentes à sua conduta na esfera sexual por parte dos
agentes jurídicos, uma das explicações para este fato seria a de que a
discriminação contra as mulheres ocorre no sistema jurídico porque este
370
reflete a situação de desvalorização feminina existente na sociedade como
um todo, situação decorrente de uma ótica masculina das relações sociais.
Os agentes jurídicos reproduziam a assimetria de gênero no
momento do julgamento dos crimes passionais, com a intenção de perpetuar
papéis sociais diferenciados para homens e mulheres, justificando suas
próprias ações com base em um sistema de ideias que se pretendiam
universais e era defendido como o único possível. As práticas jurídicas
discriminatórias de gêneros seriam o reflexo desse ponto de vista unilateral
que afirma a predominância do masculino sobre o feminino.
O saber jurídico, nos crimes passionais, só acreditava na palavra
da vítima se esta fosse caracterizada como “honesta”. Este conceito está
intimamente relacionado à questão da moralidade feminina. Neste sentido,
este pode ser considerado um discurso de gênero presente no interior do
saber jurídico com a finalidade de afirmar os papéis normativos para as
mulheres, principalmente em relação ao controle de sua sexualidade.
Como já evidenciado, o comportamento feminino costuma ser
avaliado segundo seu comportamento na área da sexualidade enquanto o
comportamento masculino era avaliado de acordo com o âmbito público,
preponderantemente em suas relações profissionais.
Diferentemente do ciúme, o ódio, a vingança e a perversidade
não deixavam dúvidas, pois, considerados nocivos à sociedade, jamais
fundamentaram argumentos dos advogados. Em contrapartida, eram
explorados pelos promotores ao sustentarem que a vingança e o ódio eram
como o amor e a honra, também paixões.
O que levava esses homens a se tornarem criminosos? As
alegações eram as mais diversas, tanto as apresentadas pelos próprios réus
como as invocadas pelos agentes jurídicos. Os argumentos usados pelas
partes, defesa e acusação, não diferiam de caso a caso. Para os defensores,
advogados contratados ou designados pelo estado, a perturbação dos
sentidos, a defesa da honra, a probidade moral e profissional, a ausência de
vícios. Para a promotoria, os maus-tratos, o alcoolismo e a ausência de
trabalho por parte dos homens constituíam argumentos utilizados para pedir
a condenação dos criminosos.
O Tribunal do Júri, foi criado no Brasil em 1822, para julgar os
crimes de opinião, ou de imprensa, e funcionava com 24 jurados, os “juízes de
fato”, dele cabendo recurso só ao príncipe regente. Na Constituição de 1824,
o tribunal do júri ganhou amplas atribuições , devendo julgar quase todos os
fatos considerados crimes. Era composto de dois conselhos: um júri de
acusação, e um júri de sentença.
Numa sociedade escravocrata e elitista, o júri não tinha caráter
de representação popular. Podiam ser jurados os eleitores, isto é, os “homens
bons”, com certa renda e pertencentes a determinadas categorias sociais. Ao
longo dos anos e através de várias reformas, o júri perdeu e recuperou sua
371
amplitude, passou para a direção da polícia e voltou para as mãos do poder
judiciário.
Em 1934 com a promulgação da Constituição, compõe a
organização do judiciário , saindo da esfera de atuação da cidadania para a
do estado. Em 1938, perdeu sua soberania nas decisões, restituída pela
Constituição de 1946, que também recolocava o júri no capítulo “dos direitos e
garantias individuais”, mas lhe atribuía definitivamente apenas a
competência de julgar os “crimes dolosos contra a vida”. Este dispositivo foi
mantido pela constituição de 1967 e pela de 1969, que, no entanto, não fez
menção à soberania do júri, reabrindo a discussão sobre a sua relevância em
nossa sociedade.
Desde sua criação, o júri foi alvo de criticas, pelos que desejavam
a sua extinção ou modificação. Dos júris das cidades do interior, dizia-se que
os jurados eram controlados pelos “coronéis locais”. Os das capitais,
argumentava-se que era composto por pessoas mal preparadas para julgar e
que se deixavam facilmente levar pelo oratória dos advogados e promotores,
ou por relações políticas.
Desde a criação do júri, seus membros ,como diz o código foram
“cidadãos de notória idoneidade”. A composição do júri variou em função do
número de habitantes da cidade onde ele está instalado, mas a definição de
quem sejam estes cidadãos idôneos era responsabilidade do juiz
encarregado de alistar os candidatos a jurados.
A instituição do júri passou por modificações desde sua
instauração no Brasil e foi, perdendo até as características retóricas de
“julgamento popular” que, de fato, nunca teve. O que o júri teve de mais
popular, e que permanece ainda na lembrança de velhos advogados e
promotores e nas memórias de seus mais antigos atores, foi o seu aspecto de
espetáculo durante certa época: os julgamentos de pessoas que por uma
razão ou por outra ganhavam destaque nas notícias dos jornais e levavam
multidões às salas dos tribunais. O início do século XX, foi época de glória do
júri no Brasil, era o momento em que as capitais brasileiras estavam
passando à categoria de “cidades grandes”.
No tocante à Organização do Poder Judiciário baiano, a
constituição do Estado da Bahia de 1891 no Art.63 diz que o poder judiciário é
independente e será exercido por juízes e tribunais do estado, aos quais
pertence unicamente a distribuição da justiça nos processos e que versarem
sobre matéria criminal, civil e administrativa, que não fora da
exclusiva atribuição dos juízes e tribunais federais.
O Art. 80 do mesmo estatuto legal trata do júri: “O júri é o tribunal
competente para o julgamento das causas criminais”. Neste sentido, o
Tribunal do Júri passou a ser o foro competente para julgar os crimes contra a
vida, conforme reza a Constituição do Estado da Bahia:
Título I Dos crimes contra a pessoa diz: A pessoa humana, sob o duplo
372
ponto de vista material e moral, é um dos mais relevantes objetos da tutela
penal. No capítulo I Dos crimes contra a vida, a lei penal, com a sua
provida e reforçada tutela, procura resguardar a incolumidade do
indivíduo humano até mesmo antes do seu nascimento, ou mais
precisamente, desde a sua concepção. Segundo a ordem em que os
alinha o código, são os seguintes os crimes contra a vida: o “homicídio”
(doloso e culposo), o “induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio”, o
“infanticídio” e o “aborto.
O direito e as normas jurídicas, enquanto forma de organização
da vida social, refletem o conjunto de crenças, valores, costumes de uma
sociedade. Por isso mesmo, o direito está sempre num processo de
constante transformação. Entretanto, nenhuma lei, por si só, é suficiente para
alterar costumes e preconceitos. Muitas vezes mudanças ocorridas na
sociedade demoram até de se refletir numa mudança da legislação. Outras
vezes há uma defasagem entre o avanço da legislação e a interpretação que
os juristas e os demais representantes do sistema político-jurídico dela
possam vir a fazer.
Em um processo penal não se julga o crime isoladamente, mas,
os indivíduos envolvidos. No entanto, é próprio da dinâmica dos processos
isolar o crime de seu contexto original e acender as luzes sobre o criminoso e
vítima, suas personalidades e suas vidas: caracterizar os “protagonistas do
delito”, como dizem os juízes em suas sentenças. Na prática, se busca traçar
um perfil dos envolvidos, cujos contornos já estão dados de antemão, pois o
seu comportamento é avaliado em função de uma série de requisitos e da sua
adequação a determinados papéis sociais.
Assim, o sistema normativo propõe a defesa da liberdade de
indivíduos considerados iguais, ao mesmo tempo ele sanciona uma estrutura
de relações na qual uma desigualdade fundamental é tida como natural. Os
momentos em que a defesa e acusação privilegiam argumentos que não
utilizariam se vítima e réu fossem do mesmo sexo. A utilização de argumentos
que discriminam a mulher não deve ser pensada apenas como uma questão
de foro íntimo do advogado. A consideração de que, em se tratando de
defender o acusado, os meios justificam os fins, deve ser revista quando se
discute a discriminação da mulher.
Os processos penais são constituídos de inúmeros documentos,
dependendo das circunstâncias e por quem foi cometido o crime. Os
processos referentes a crimes contra a vida são, evidentemente, os mais
volumosos, já que o julgamento pelo Tribunal do Júri envolve inúmeras
possibilidades de embates entre Defesa e Acusação. Sejam eles processos
de homicídio, de lesões corporais ou de estupro, todos são compostos de
algumas peças essenciais para a análise, pertencentes aos dois momentos
do processo: o policial e o judicial.
Enviado ao fórum, o processo é examinado pelo promotor,
373
representante do estado junto ao poder judiciário, que é o acusador e quem
deve formular a denúncia do fato ao juiz. O ato criminoso é agora retraduzido
num código específico, deixando patentes as contravenções e suas possíveis
legitimações, e sua punição é pedida em termos de tal ou qual artigo do
código penal. O juiz, por sua vez, após aceitar a denúncia do promotor,
interroga novamente as testemunhas e os protagonistas. Antes da sentença
final, e, dependendo do tipo de crime em análise, haveria ainda os ofícios dos
recursos interpostos pela defesa do acusado no empenho de obter a
absolvição de seu cliente. O processo termina, pela última decisão tomada
pelo juiz a respeito do réu.
Os relatos no decorrer dos interrogatórios, na polícia e em juízo,
são um conjunto de respostas a determinadas perguntas formuladas, em
cada uma dessas instâncias jurídicas. Essas respostas são
transcritas nos autos do processo, muitas vezes, de maneira truncada e
resumida. Os casos de crimes que envolviam homens e mulheres que
mantinham relacionamentos amorosos, qualificados como crimes
passionais, são aqueles nos quais quem o praticava era o criminoso por
paixão.
Na sala do tribunal local, diante de um público apaixonado e
envolvido emocionalmente nas tramas passionais, muitas vezes, de pessoas
próximas e conhecidas, o discurso da defesa utilizava argumentos que
buscavam, de certo modo, comover o tribunal e a assistência, visando a
construir a diferenciação entre os criminosos comuns e aqueles que matavam
por amor.
Durante o período estudado, as alegações da defesa, como as da
promotoria, pouco se alteram, distinguindo-se, porém, na exposição dos
motivos que originaram o ato criminoso. Uma das primeiras razões
invocadas, pela defesa, era o amor puro e desinteressado que o acusado
nutria pela vítima. Um amor reputado, naquele momento, como um
sentimento que dava respaldo às atitudes mais diversas; das mais nobres
ações ao maior desatino e até mesmo ao crime, sobretudo, se era cometido
pelos homens. Apresentava as características do amor romântico e, como tal,
justificava qualquer ato.
O que poderia ser um gesto passível de condenação tornava-se
aceito sob o manto do amor; mais do que isso, de uma paixão desatinada.
Vozes dissonantes, inclusive de juristas famosos, refutavam a argumentação
baseada na concepção do crime passional, defendendo o sentimento
tranquilo que deveria unir homens e mulheres no abrigo dos laços conjugais.
Para esses, em caso algum, o amor poderia ser arrazoado de perturbação de
sentidos, motivo utilizado frequentemente pelos agentes da defesa por
ocasião do julgamento.
A alegação do amor vinculado à ideia de paixão ou, melhor, de
paixões que privam o sujeito de sua consciência e de sua racionalidade,
374
carrega consigo a característica de uma assimetria de poder e
seria mais aplicável ao gênero masculino. A afirmativa decorre do
pressuposto, hegemônico no início do século XX, de que nas relações
amorosas os homens ocupariam a face ativa e dominadora, enquanto as
mulheres deveriam desempenhar os papéis de submissão e passividade. A
quebra deste suposto equilíbrio revelava, nos casos masculinos, a rejeição
feminina às funções delegadas socialmente às mulheres. Os homens
poderiam, então, corrigir as transgressões, justificando seus atos através do
amor, perpetuando, assim, a reprodução das desigualdades de gênero.
Uma segunda justificativa utilizada para inocentar o acusado, no
caso sempre um homem, era a defesa da honra. Os defensores dos
criminosos passionais consideravam essa defesa humanitária, uma vez que
supunham serem os atos agressivos uma reação psicológica, fugidia ao
controle racional. Argumentavam que o temperamento idealista de algumas
pessoas as fazia perder a razão quando decepcionadas ou provocadas por
uma forte emoção. E, nos casos específicos dos homens, as emoções
estariam vinculadas a paixões como o amor e a honra, aceitas como úteis á
sociedade.
A concepção de honra masculina ofendida, no âmbito conjugal,
apresentava a particularidade de vincular-se ao comportamento sexual
feminino. Esse aspecto criou a relação entre honra masculina, sinônimo de
virilidade e coragem, e honra feminina, por sua vez, sinônimo de vergonha,
pureza e fidelidade. Neste sentido, a honra feminina estava diretamente
vinculada ao comportamento sexual das próprias mulheres. Para as
mulheres solteiras, a existência do hímen, dádiva pertencente
exclusivamente ao marido. Para as mulheres casadas, a fidelidade conjugal.
A alegação do ciúme como sentimento motivador dos crimes foi
amplamente utilizada pela defesa daqueles que diziam matar por amor. Ao
inverso da acusação, o defensor dizia que o ciúme poderia desencadear o
processo de perda da racionalidade, levando o indivíduo a comportamentos
que ele não teria em situações cotidianas.
O ciúme e a idéia de posse ficaram evidentes nos casos em que o
adultério feminino foi argumento utilizado nas falas da defesa, apesar de o
código penal vigente não consagrar ao marido o direito de matar a mulher, o
júri entretanto, votou pela condenação uma vez que a promotoria utilizou
argumentos de que o acusado agiu movido por sentimentos de cunho
antissocial prejudiciais a ordem vigente.
Na primeira metade do século XX, a perturbação dos sentidos já
encontrava respaldo entre as falas da defesa. Visando convencer o júri de
que o réu se encontrava em tal estado, o defensor apresentou algumas
ponderações médicas a fim de conferir credibilidade ao seu discurso, pois, já
nessa época, as autoridades da medicina eram solicitadas para explicar
pontos obscuros para o corpo de jurados e para o público em geral.
375
O caráter de objetividade e cientificidade conferido pelo discurso
médico auxiliou no convencimento do júri, que acatou a idéia de que
Francisco José estava, no momento em que praticou o crime, perturbado em
seus sentidos. Amor, honra, abandono e traição eram, nas quatro décadas
iniciais do século XX, sentimentos interligados e decorrentes. Quando
cometiam crimes passionais, tanto homens como mulheres se
caracterizavam como vivendo num estado de insanidade temporária,
justificativa aceita por juízes e jurados.
Apoiando-se no Código Penal vigente e nos discursos médico-
psiquiátricos, os defensores afirmavam que o crime passional resultava de
uma loucura temporária desencadeada pela perturbação dos sentidos, que,
por sua vez, era motivada por agressões morais à honra e ao amor. Juristas,
em acordo com afirmações médicas, conclamavam que “a paixão, como
resultado que é de uma emoção intensa e duradoura, é legítima equivalente
de certas psicoses, e que produz efeitos perfeitamente iguais aos efeitos
produzidos por certas formas de loucura” (ENGEL, 1997. p.322). Enquanto a
defesa empenhava-se em encontrar nas premissas dos passionalistas as
bases de seu discurso em favor do réu, a acusação anunciava a
existência de um homicídio, de uma morte e a imprescindível necessidade de
punir seu autor. Como representante das leis, de defensor da ordem social, o
promotor público conclamava a exclusão social do criminoso a fim de
defender a ordem pretendida.
Perversidade, vingança e ódio eram sentimentos que, invocados,
pesavam negativamente na balança da justiça contra o acusado, as
alegações baseadas em sentimentos eram utilizadas para a defesa, assim
como para a acusação. No caso da acusação, buscavam-se argumentos
fundamentados em sentimentos de cunho antissocial que, segundo o
pensamento penal da época, eram maléficos à ordem vigente e, como tal,
deveriam ser punidos com a condenação daqueles que os apresentassem.
O ciúme traz em si uma dupla interpretação, sendo a deformação
mais comum do amor-paixão, causa determinante dos crimes passionais. Tal
posição era defendida pelo jurista Moraes (1933). Outras posições defendiam
que “fora dos casos patológicos, que exigem manicômio, o ciúme é injúria
grave” e que o “excesso de ciúme” era alegação dos “matadores de
mulheres”, para ganhar a tolerância do júri (LYRA, 1931, p. 211).
Dessa forma, tais representações coletivas criam nas pessoas
as divisões do mundo social, estruturando esquemas de percepção a partir
dos quais classificam, agem e julgam. Assim, coniventes com as
representações de um suposto equilíbrio doméstico, a confiabilidade que
deveria haver no interior dos lares transformou-se em argumentos
condenatórios usados pelos promotores nos casos de assassinatos entre
casais.
Os crimes passionais, até aqui analisados foram praticados por
376
homens o que pode ser explicado por imposições culturais. Segundo Eluf
(2007, p.118), “mulheres sentem-se menos poderosas socialmente e menos
proprietárias de seus parceiros. Desde pequenas são educadas para
'compreender' as traições masculinas como sendo uma necessidade natural
do homem”.
Apresentadas todas as falas, esgotados todos os argumentos,
ouvidas as testemunhas, ocorria, então, o ápice do drama, quando o júri
julgava e o juiz pronunciava a sentença que condenaria ou absolveria o réu.
Ao proferirem a pronúncia, os magistrados fundamentavam suas decisões
em pressupostos relevantes para caracterizar a existência jurídica do crime,
como a confissão e os exames de delito ou cadavérico. O primeiro indicaria o
provável autor e os segundos, a concretude do ato homicida.
Na década de 1920, os magistrados persistiram nos argumentos
essencialmente jurídicos. Além da ênfase atribuída à confissão e à gravidade
do ato, apresentavam extensos debates técnicos a fim de justificar suas
decisões e mediar as intervenções dos advogados e promotores. Na década
seguinte, porém, observou-se uma argumentação mais compatível com as
teses elaboradas pelos teóricos do passionalismo, uma vez que houve uma
melhor consolidação das idéias jurídicas em relação aos crimes passionais, o
que possibilitou uma melhor assimilação do discurso legal que instituiu a
figura deste crime.
Outra constatação observada pelos magistrados foi a
superioridade física, de recursos e a consequente gravidade do ato violento. A
avaliação da violência embasava-se nos laudos médicos, discursos
autorizados a medir e descrever a extensão dos ferimentos.
A visibilidade das mortes por paixão, no período, e a campanha
desencadeada por juristas antipassionalistas no Rio de Janeiro, ecoaram nas
posturas de magistrados no tribunal. Contudo, as decisões jurídicas sobre os
crimes praticados em nome do amor não foram, exclusivamente
condenatórias. Em alguns casos os réus foram absolvidos e impronunciados.
No caso de absolvição, o principal argumento dos jurados foi a perturbação
dos sentidos sofrida pelo réu, no momento de cometer o crime.
Segundo o pensamento dominante, depois de praticar o crime, o
passional era tomado de remorso e usualmente tentava/praticava o suicídio.
O ato do suicídio era o mais melindroso na construção do
passional, pois para os teóricos era indispensável como forma de demonstrar
o arrependimento do envolvido. Entretanto, na maioria dos casos não eram
detectadas tentativas de suicídio dos homens que iam a julgamento e este
ponto era explorado pelos promotores para descaracterizar o réu passional.
Eles procuravam indicar que aquele homem não agiu como tal, pois o
assassino por paixão não suportava a idéia de viver sem sua mulher, portanto
já que a tinha matado, seu “desejo” devia ser unir-se a ela na morte.
A partir de 1930, porém, observou-se uma argumentação mais
377
compatível com as teses elaboradas pelos teóricos do passionalismo. Os
juizes apresentam em seus argumentos a discordância em associar os
crimes cometidos em nome da paixão ao parágrafo legal que atribuía aos
loucos a inimputabilidade. Para ele, os crimes passionais inegavelmente
existiam na sociedade,no entanto, um posicionamento negativo em relação à
prática da eliminação física daquele que se ama.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No projeto de remodelação urbana estava implícito o
saneamento moral da população. Nas representações do moderno, do
civilizado, encontravam-se as tensões e os conflitos. Nesse cenário, em nada
harmonioso, as relações amorosas aconteciam. Sob olhares higiênicos e
normatizadores, homens e mulheres legaram, ao presente, formas de viver e
amar que, em muitas vezes, não corresponderam aos ideais imaginados
pelos pregadores burgueses da ordem e da civilização.
Neste sentido, este artigo preocupou-se em expor a atuação dos
agentes do direito, no seu campo jurídico específico, os quais se utilizaram de
todo um instrumental doutrinário, visando a defender suas concepções
naquela esfera de poder. Não ignoramos, no entanto, que as práticas
jurídicas estavam vinculadas a um contexto maior e relacionavam-se com as
representações que motivaram os dramas entre os casais.
Foi também objeto de nossa preocupação a forma como os
agentes do direito analisavam os crimes passionais, os quais
defendiam posições impregnadas por valores e representações de gênero.
Emoções, desvios e punições abriram possibilidades de
reflexões teóricas mais profundas e oportunidades para o levantamento de
problemáticas que, de forma alguma, encerraram as possíveis aproximações
sobre os crimes passionais e as relações de gênero que marcaram o
cotidiano de homens e mulheres envolvidos nos dramas de paixão.
Este artigo pretendeu desvelar, mesmo que com lacunas, alguns
entremeios da construção social do criminoso por paixão, que se encontrava
sedimentada, na manipulação dos signos de adequação social por homens e
mulheres. Assim, a partir das transformações político-jurídicas apresentadas,
o Estado republicano estruturou-se politicamente através da constituição de
1891 e, especificamente, do Código Penal de 1890, para dar conta dos
conflitos de gênero, atuando ora para manter os papéis desejáveis para os
gêneros, ora sancionando condutas que os transgredissem. Esta ação da
ordem político-jurídica contribuiu para a construção das concepções de
gênero que dominaram o imaginário social no período estudado.
Futuros trabalhos poderão explorar outras dimensões que
contemplem a complexa trajetória dos amantes e das múltiplas paixões que
envolvem homens e mulheres.
378
REFERÊNCIAS
379
VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA CONTRA A MULHER NA RELAÇÃO
CONJUGAL
Gleidismara dos Santos Cardozo de Castro Franzoni
INTRODUÇÃO
Neste texto pretendo fazer uma análise do fenômeno da violência
psicológica contra mulheres na relação conjugal, no contexto atual brasileiro,
com base nos fundamentos teórico-metodológicos da Teoria Feminista,
utilizando gênero como categoria que possibilita compreender as
características históricas e sociais das vivências humanas.
Cada indivíduo vivencia o amor e a sexualidade conforme os
referenciais de sua época, de sua cultura, de seu grupo social, bem como, o
entendimento do significado de violência também é um fenômeno histórico e
social.
Pensar a violência psicológica no contexto brasileiro impõe
necessariamente uma reflexão sobre a violência contra mulheres, que
“integra de forma íntima a organização social de gênero vigente na sociedade
brasileira”.
Segundo a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará-1994):
“Violência contra a mulher é qualquer ação ou conduta baseada no gênero,
que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher,
no âmbito público ou privado.”
Partindo deste princípio a violência psicológica contra mulheres é
uma violência de gênero, produto das relações patriarcais de gênero que
hierarquizam as pessoas, fundamentada numa mentalidade androcêntrica,
que está intrinsecamente ligada a uma postura social discriminatória,
solidificada pela mercantilização do corpo feminino, pela banalização da
violência e pela dominação masculina, que legitimam a violência dos homens
sobre as mulheres.
Portanto é uma afronta ao princípio da igualdade de direitos
resguardado nas leis nacionais e internacionais para defesa dos direitos
humanos.
É fato que a violência psicológica perpassa os inúmeros
segmentos da sociedade, atinge mulheres de diferentes classes sociais,
raças, etnias, gerações, bem como ocorre tanto na área urbana quanto na
rural, não importa quão “desenvolvido” é o estado ou região.
É uma violência “democrática” porque pode atingir qualquer
mulher, independente de seu nível intelectual, econômico ou social, porém as
vivências não são democráticas, são diferenciadas.
Na relação conjugal, percebo que esta violência é invisibilizada,
ou seja, quase nunca é publicizada, permanece no âmbito privado, por
381
inúmeros fatores, desde os individuais (como por exemplo, a vergonha e o
medo em admitir a violência) aos sociais (parece haver um pacto social de
silêncio que evita intervenções externas protegendo violentadores).
No que se refere ao pacto de silêncio, o agressor nega a violência,
se houver testemunhas elas fingem que nada vêem, já que não se sentem
capazes de comprovar a existência material do sofrimento, e há ainda a
postura silente da mulher, tanto por fatores emocionais, quanto econômicos e
sociais.
Em diversos casos as mulheres bloqueiam o sofrimento,
relegando-o ao esquecimento, numa espécie de “entorpecimento
emocional”, como forma de resistência, e somente enfrentam as situações
violentadoras após acompanhamento terapêutico.
De acordo com Saffioti, “o próprio sentimento de culpa não
permite que o sofrimento se torne visível. A publicação da
violência masculina sobre ela exporia a mulher com suas culpas.”
Daí a grande importância do movimento feminista que, desde o
ínicio da década de 70, lutava pelo desvelamento da violência contra as
mulheres, pois ao adotar o lema “o pessoal é político” trouxe para a cena
pública o debate sobre as questões do âmbito doméstico, dentre elas a
violência doméstica, o livre exercício da sexualidade, e o controle do corpo.
O que está expresso no lema 'o pessoal é político' é a “idéia de se
pensar as relações pessoais também como relações de poder ”.
Nesta perspectiva, as feministas questionaram a separação entre
público e privado, difundindo a idéia de que a violência não poderia ser
visualizada como problema individual mas deveria ser entendida como um
problema social.
Ao dar visibilidade à violência, o feminismo contribuiu
consideravelmente na mudança das mentalidades, das posturas e das ações
da sociedade civil, que passou a exigir do Estado políticas públicas que
garantissem a proteção às mulheres vítimas de violência, principalmente
aquelas voltadas especificamente para a violência doméstica.
Neste ponto quero diferenciar violência doméstica, intra-familiar e
violência conjugal, posto que a violência intra-familiar pode ser cometida por
qualquer membro da família, não necessariamente dentro da residência,
enquanto a violência doméstica afeta pessoas que mesmo não pertecendo à
família, convivem, parcial ou integralmente, no âmbito do lar.
_____________________________________________________________
344
MILLER, M. S. Feridas Invisíveis: violência conjugal e novas políticas de segurança. RJ: Civilização
Brasileira, 1999, p. 139.
345
SAFFIOTI, H. I. B. Relações de gênero: violência masculina contra a mulher. In: Ribeiro, H. et all. Mulher
e Dignidade: dos mitos à libertação, p. 39.
346
SARDENBERG, Cecília Maria Bacellar. “Estudos Feministas: Esboço Crítico”. In: AMARAL, Célia C.
Gurgel do. (Org.). Teoria e Práxis dos Enfoques de Gênero. Salvador: REDOR, 2004,p. 20.
382
Quanto à violência conjugal é aquela que ocorre na intimidade
dos casais, entre os parceiros, porém não está restrita ao lar, pois o agressor
utiliza técnicas aprimoradas de domínio, instrumentos de controle,
monitoramento das ações, cerceando as liberdades, as atitudes, as idéias, os
desejos, o gostar, o vestir, inclusive o convívio com parentes, amigos,
vizinhos.
Certamente não é construtivo um casamento violento em que um
ser perde sua liberdade pela dominação do outro, ou está baseado numa
troca de agressões físicas ou psíquicas, numa relação muitas vezes sado-
masoquista.
Porém é preciso reafirmar que numa sociedade dividida pelo
gênero, mulheres e homens compreenderão e vivenciarão experiências
sociais diferentes. Assim, não abordarei a perspectiva masculina, pois como
Soares, acredito que a violência psicológica contra a mulher é uma “violência
de gênero, isso é, uma violência masculina que se exerce contra as mulheres
pela necessidade dos homens de controlá-las e de exercer sobre elas seu
poder.”
Na relação conjugal ocorre uma tensão entre os poderes de um e
de outro, e neste jogo de forças se estabelecem regras para que haja
condição de convivência, porém um relacionamento pautado em hierarquias
de gênero patriarcais, implica em múltiplas violências.
Assim, utilizarei a expressão “violência marital” para marcar o que
está implícito neste tipo de violência contra as mulheres: uma relação
desigual entre mulheres e homens, em que a mulher é objetalizada,
coisificada como uma propriedade do homem, que se sente no direito de
violentá-la, respaldado por padrões sociais discriminatórios que incentivam a
violência.
Tenho clareza que também existem mulheres agressoras, porém
as estatísticas comprovam que na relação conjugal violenta, o marido é o
violentador, sendo responsável por “70% das quebradeiras, 56% dos
espancamentos e 53% das ameaças com armas à integridade física da
mulher.”
Concordo com Soares ao afirmar que “mesmo quando a violência
é mútua e a mulher também agride seu agressor, ou até mesmo inicia as
agressões, há fortes probabilidades de que ela o faça como recurso de
autodefesa, física ou psicológica.”
Quero frisar que não pretendo visualizar a mulher agredida pelo
marido como uma “coitadinha”, passiva ou cúmplice da violência, pois
acredito que a mulher também é agente de sua história. Por isso ela utiliza
inúmeros mecanismos que são estratégias de sobrevivência diante da
_____________________________________________________________
347
SOARES, B. M. Mulheres invisíveis, violência conjugal e as novas políticas de segurança. RJ:
Civilização Brasileira, 1999.p. 125.
383
violência marital.
Estes mecanismos são elaborados psiquicamente, ou seja,
consciente ou inconscientemente as mulheres violentadas elaboram formas
de lidar com as múltiplas violências a que são submetidas, transformando
emoções, sentimentos em atitudes que possibilitam sua convivência
conjugal.
Certamente, quanto o maior o nível de consciência sobre o
significado real da violência, maior a capacidade de lidar com ela, inclusive
de romper com o ciclo da violência e partir para uma outra relação saudável.
Este nível de consciência está intimamente ligado ao acesso à informação,
bem como, quanto maior o nível instrucional maior a condição de
entendimento da condição de opressão que a violência impõe.
Esta atitude de dar um basta à violência, e até decidir-se pelo
divórcio, implica também numa independência financeira, já que a
capacidade de se auto-sustentar possibilita à mulher condições reais de
sobrevivência.
Há ainda os fatores psíquicos que perpassam a vivência numa
relação conjugal violenta, como por exemplo, a ambigüidade de sentimentos
que as mulheres passam ao lidar com um marido que num momento se
mostra amoroso, cuidadoso, carinhoso e dedicado, e noutro se mostra
arrogante, prepotente, dominador e violento.
Além disso, a forma de enfrentamento da violência, é muito
pessoal, passa por fatores geracionais, étnicos, religiosos,
morais, psíquicos, sociais e culturais.
Daí a importância do estudo da violência psicológica contra
mulheres, que embora esteja intimamente ligada a inúmeras outras
violências, que vão desde a patrimonial, a física, a sexual, até o femicídio, por
si só produz efeitos desastrosos para as mulheres.
Considero violência psicológica aquela que atinge psiquicamente
ou afetivamente a mulher, interferindo na sua auto-estima, na construção de
sua identidade, na realização de seus desejos, na expressão de suas
emoções, na sua vivência como cidadã.
Para Moreira, atos de violência psicológica são “aqueles pelos
quais são atingidos objetos de valor afetivo e/ou material da mulher, visando
intimidação ou representando ameaças, despertando nas vítimas
sentimentos de medo, insegurança ou vergonha.”
Ou seja, há na violência psicológica contra mulheres muito mais
do que os aspectos visíveis, como a violência física ou objetalização do corpo,
ela é muito mais aprimorada, já que não deixa marcas físicas, fáceis de
_____________________________________________________________
348
CUNHA, T.R. A O preço do silêncio: mulheres ricas também sofrem violência. Vitória da Conquista, BA:
UESB, 2007.
349
SOARES, B. M. Mulheres invisíveis: violência conjugal e as novas políticas de segurança. RJ:
Civilização Brasileira, 1999, p.58.
384
provar, deixa “hematomas na alma”, pois a manipulação das emoções e dos
afetos causa um sofrimento que deixa marcas psíquicas.
Quero enfatizar que meu objetivo não é minimizar a importância
dos estudos sobre violência física infringida às mulheres, tão pouco esquecer
as mulheres espancadas, violentadas, exploradas, mas frisar que não basta
fazer apenas um levantamento estatístico dessas mulheres, é preciso ir além,
há necessidade urgente de pesquisar as reações e expectativas das
mulheres violentadas, e principalmente verificar a destruição psíquica que
causam estas múltiplas violências perpetradas às mulheres.
Embora as relações conjugais não sejam padronizadas, é
possível destacar as formas mais frequentes de violência psicológica
infringida pelos maridos: humilhações, atitudes vexatórias,
constrangimentos, tanto na esfera da intimidade quanto em situações
públicas, ameaças, coerção, a omissão na realização das tarefas domésticas
e divisão das responsabilidades conjugais, que violentam cotidianamente,
tentando destruir a auto-estima da mulher, sua capacidade de reação, sua
individualidade, sua liberdade, sua vivência como cidadã.
Há outros fatores como a manipulação psíquica e afetiva, o
abandono afetivo e o material, tortura física, ameaça de requerer a guarda
dos filhos ou de violentá-los, violência sexual, a ameaça de suicídio pelo
marido, vingança, e tentativas de homicídio.
As vivências das mulheres não podem ser universalizadas, posto
que cada mulher é um ser único, porém é recorrente que a violência
psicológica contra mulheres na relação conjugal cause inúmeras
conseqüências, tais como: depressão, distúrbios cognitivos, perdas de
memória, ansiedade, frigidez, baixa auto-estima, sentimento de frustração e
culpa, medo, insegurança, vergonha, confusão mental, tendência ao
isolamento, doenças psico-somáticas, doenças psíquicas(principalmente
neuroses e psicoses maníaco-depressivas), auto punição, como uso de
drogas ilícitas, medicamentos e álcool, a auto-flagelação, e até o femicídio.
No que se refere ao aspecto social, as mulheres enfrentam
problemas inclusive no emprego, por faltas freqüentes em decorrência das
doenças e das estratégias de fuga dos maridos violentos, bem como pela
perda da concentração nas atividades laborais, e ainda pela perseguição dos
maridos no ambiente de trabalho.
Lembro que a violência psicológica contra mulheres também tem
conseqüências diretas para a vivência familiar, posto que o ciclo de violência
cria uma instabilidade emocional que afeta a todos, esposas, maridos e filhos.
Infelizmente, todos estes efeitos da violência psicológica contra
mulheres casadas ainda se mantém obscurecidos no anonimato do lar, pois
muitas não denunciam, e quando o fazem, não obtém do Estado qualquer
proteção efetiva que leve a cabo a violência.
No Brasil, as políticas de enfrentamento à violência ainda são
385
precárias, e mesmo quando tem por finalidade o atendimento de vítimas de
violência doméstica, ainda estão muito centrados na violência física.
Estudos aprofundados neste campo tornam possível
implementar políticas públicas de atendimento psicológico às mulheres
vítimas deste tipo de violência, visando instrumentalizá-las para a prevenção
e o enfrentamento das múltiplas violências perpetradas por seus parceiros
conjugais.
Acredito ainda, que campanhas de esclarecimento da população
contribuirão para a desnaturalização e não aceitação da violência psicológica
e para o incentivo à denúncia, o que será um fator transformador das relações
de gênero.
No que se refere à legislação nacional, movimento feminista
brasileiro pressionou para inserir uma emenda na Constituição de 1988,
garantindo igualdade entre mulheres e homens. E em 1988, atuou no
chamado “Lobby do Batom”, um grupo de 26 deputadas que independente
das legendas partidárias se uniu em prol da isonomia de direitos entre
mulheres e homens.
Mais recentemente, em 2006, a legislação brasileira,
historicamente violentadora ou ainda omissa durante tantos séculos de
violência infringida contra a mulher, novamente por meio das pressões do
movimento feminista, avançou na proteção à mulher agredida, pois em 21 de
setembro entrou em vigor a lei nº. 11.340, conhecida como Lei Maria da
Penha, que permite que os agressores sejam presos em flagrante ou tenham
prisão preventiva decretada.
A lei Maria da Penha define também as formas da violência
doméstica contra a mulher como sendo física, psicológica, sexual,
patrimonial e moral. Entretanto, a lei esbarra em problemas estruturais,
econômicos e sociais, cito abaixo um fato ocorrido em Santa Catarina:
Em Chapecó, o marido bateu na mulher, foi denunciado pela sogra e
detido. Comprovou ser extremamente pobre e pagou fiança de R$ 100,
para não ser preso. Para surpresa do delegado, a agredida esteve na
delegacia no dia seguinte para retirar a queixa, na esperança de resgatar
os R$ 100. Ela estava amamentando e relatou que o dinheiro ia fazer falta
para a família.
O que percebo é que a lei é sem dúvida um instrumento jurídico
necessário, porém é preciso abarcar todos os aspectos da lei, não basta
apenas punir os violentadores, o Estado precisa amparar as mulheres
violentadas, criando estratégias de auxílio que garantam sua saída da vida na
violência para uma vida cidadã.
Quanto à sociedade, necessita refletir continuamente sobre as
_____________________________________________________________
350
MOREIRA, Maria Inez Costa et all. Violência contra a mulher na esfera conjugal: Jogo de espelhos.In: A
violência contra a mulher na esfera conjugal: produção e enfrentamento, 1989, p. 175.
386
formas de violência contra as mulheres, o ciclo da violência, as relações
patriarcais de gênero, os dados estatísticos expressivos sobre a violência
contra as mulheres no Brasil, os aspectos da legislação brasileira, e
estratégias efetivas de enfrentamento à violência.
Existem muitos aspectos intrínsecos a este fenômeno que
precisam ser pensados, inclusive é preciso pensar sobre a violência nas
relações conjugais entre pares do mesmo sexo, não regidos pela lógica
heterossexual.
Enfim, acredito que somos cidadãs e cidadãos responsáveis pela
transformação social e pelo fim do pacto de silêncio coletivo que banaliza
essa temática, e é nossa função social difundir idéias que possibilitem a
mudança das relações sociais de gênero por meio do esclarecimento e do
debate sobre a violência psicológica perpetrada historicamente contra
mulheres casadas de todas as classes sociais.
387
REFERÊNCIAS
CUNHA, T.R. A O preço do silêncio: mulheres ricas também sofrem
violência. Vitória da Conquista, BA: UESB, 2007.
GREGORI, M.F. Cenas e queixas: um estudo sobre mulheres, relações
violentas e a prática feminista. RJ: Paz e Terra; SP: ANPOCS, 1993.
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SP:Hucitec, 1980.
MILLER, M. S. Feridas Invisíveis: violência conjugal e novas políticas de
segurança. RJ: Civilização Brasileira, 1999.
MOREIRA, M. I. C. et all. Violência contra a mulher na esfera conjugal:
jogo de espelhos. In: A violência contra a mulher na esfera conjugal: produção
e enfrentamento, 1989.
SAFFIOTI, H. I. B. Relações de gênero: violência masculina contra a mulher.
In: RIBEIRO, H. et all. Mulher e Dignidade: dos mitos à libertação. SP:
Paulinas, 1989.
_______________Violência de Gênero no Brasil Contemporâneo. In:
SAFFIOTI, H.I.B., MUÑOZ-VARGAS, Monica (Orgs.) Mulher Brasileira é
Assim. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos: NIPAS; Brasília, 1994.
SARDENBERG, Cecília Maria Bacellar. “Estudos Feministas: Esboço
Crítico”. In: AMARAL, Célia Chaves Gurgel do. (Org.). Teoria e Práxis dos
Enfoques de Gênero. Salvador: REDOR, 2004.
SOARES, B. M. Mulheres invisíveis: violência conjugal e as novas políticas
de segurança. RJ: Civilização Brasileira, 1999.
389
CAUSAS DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO ESPAÇO DOMÉSTICO NA
PERCEPÇÃO DAS GESTORAS DOS SERVIÇOS DE APOIO
Maria Tamires Alves Ferreira
1
Mary Ângela de Oliveira Canuto
Inez Sampaio Nery
1 INTRODUÇÃO
Ao longo da história, as relações afetivas entre homens e
mulheres vêm sendo marcadas por condições de dominação masculina e
submissão feminina. Os papéis destinados tanto para homens como para
mulheres foram cultural e socialmente construídos e naturalizados, cabendo
à mulher a função de cuidadora da casa e dos filhos, devendo obediência na
infância ao pai e, mais tarde, ao companheiro, caracterizando uma ordem
patriarcal de organização familiar (AMARAL, 2005).
Essas relações de poder refletem uma relação de gênero, onde
gênero pode ser compreendido como um modo de se aludir aos papéis e
comportamentos atribuídos aos homens e mulheres pela sociedade. Esse é
um processo em permanente construção, que se inicia na primeira infância e
continua no decorrer do desenvolvimento, sofrendo variações de acordo com
a história, cultura, religião e educação (AMARAL, 2005).
Neste contexto, as atitudes autoritárias e centralizadoras dos
homens são compreendidas como algo inerente à figura masculina e, a
subordinação a essa autoridade, à figura feminina. Da necessidade de
reforçar esse poder masculino, pode advir a violência contra a mulher,
também chamada de violência de gênero (BRASIL, 2003; ROTANIA et al,
2003).
Uma das principais formas de manifestação da violência de
gênero é a violência doméstica, que pode ser definida como qualquer ato
perpetrado por um membro da família, que em geral, é o parceiro íntimo, após
ou durante o relacionamento, que repercute de maneira negativ, sobre a
saúde física, mental e emocional da mulher. É um fenômeno complexo que
não se limita apenas à mulher, posto que muitas vezes atinge outros
membros do núcleo familiar, a exemplo os filhos (REICHENHEIM; DIAS;
MORAES, 2006).
No que diz respeito à violência doméstica, pode-se apresentar de
modos diversos: agressão física, como socos, bofetadas e pontapés, quando
o homem na relação de poder faz uso da força física contra a mulher,
atentando sobre a integridade desta, resultando ou não em lesões internas,
externas ou ambas; violência psicológica quando por meio de ofensas
_____________________________________________________________
352
Graduandas do 9º período do curso de Enfermagem da Universidade Federal do Piauí - UFPI
2
Doutora em Enfermagem. Profª. Associado I das disciplinas Saúde da Mulher e Saúde Reprodutiva da
Universidade Federal do Piauí - UFPI. E-mail: ineznery.ufpi@gmail.com
391
verbais, ameaças, desprezo, intimidação ou proibições, o companheiro
causa ou tenta causar prejuízo à auto-estima e identidade da parceira; e
violência sexual, ação em que o parceiro utiliza da força física, coerção ou
relação de poder obrigando a mulher a manter relações ou interações sexuais
contra a sua vontade (ROTANIA et al, 2003).
Há fatores individuais, relacionados à mulher e ao parceiro, bem
como condições sociais e familiares que podem colocar a mulher em maior
situação de risco de sofrer violência. As condições que expõem a mulher a
tais fatores de risco abrangem: baixo nível educacional, pouca autonomia
financeira, baixo nível de empoderamento, ter presenciado e/ou ter sido
vítima de violência na infância. Os fatores relacionados ao parceiro
compreendem consumo problemático de álcool e drogas, dificuldade de
comunicação com a companheira, desemprego, ter testemunhado ou ter sido
vítima de violência quando criança. Dentre os aspectos na dimensão social e
familiar tem-se a dependência financeira e econômica por parte da mulher,
distribuição desigual de autoridade e poder conforme papéis de gênero,
isolamento e fechamento da relação, dificultando a intervenção de terceiros
nas situações de violência (BRASIL, 2002; OMS, 2005).
Em termos globais, estima-se que um em cada cinco dias de
absenteísmo ao trabalho feminino é em decorrência da violência doméstica, e
que para cada cinco anos vividos, a mulher vitimada no interior de seu lar
perde um ano de vida saudável. Na América Latina, a violência doméstica
atinge 25% a 50 % das mulheres e seus custos chegam a 14,2 % do Produto
Interno Bruto (PIB), o que representa aproximadamente 168 bilhões de
dólares No âmbito nacional, 23% mulheres sofrem violência doméstica e a
cada quatro minutos, uma mulher é vitimada no espaço doméstico, sendo que
em 70 % dos casos os agressores são seus parceiros íntimos. Além do mais,
o Brasil é o país que mais padece por esse tipo de violência, que é
responsável por um terço das internações em unidades de emergências e
pela perda de 10,5 % do PIB nacional, o representa 84 bilhões de dólares
(SANTOS, 2001).
Contextualizando o problema, no Piauí em 2003, segundo dados
dos boletins de ocorrência, 31,15% dos casos de violência contra a mulher,
que foram denunciadas deram prosseguimento à justiça, enquanto o restante
não continuou principalmente por causa da desistência da agredida. Desde a
criação do Núcleo de Defesa da Mulher Vítima de Violência em agosto de
2004 até janeiro de 2005, foram realizadas 836 atendimentos e processadas
55 ações civis (MONTEIRO et al., 2006).
Em Teresina, o problema da violência contra a mulher vem a cada
dia ganhando dimensões significativas, tanto que no mês de julho de 2008
houve um aumento no número de agressões, representando 126
atendimentos do serviço social e 112 flagrantes da delegacia da mulher
(BRITO, 2008).
392
Diante dos dados referidos, percebe-se a magnitude do
problema, caracterizando-o como um fenômeno que repercute
negativamente de maneira significativa na saúde da mulher nos aspectos
físicos, sexuais, reprodutivos, psicológicos e sociais. É o que evidencia
Monteiro e Souza (2007) em estudo feito com mulheres que vivenciam a
violência conjugal, que relatam cotidianos marcados por agressões de ordem
física, sexual e psicológica (medo, vergonha, baixa auto-estima e
aprisionamento) o que resulta em intenso sofrimento e perdas na qualidade
de vida.
A violência doméstica é um grave problema de saúde pública,
devido ao elevado número de ocorrências; a gravidade, com o aumento da
morbidade, número de internações e seqüelas, contribuindo com a redução
na qualidade de vida das mulheres vitimadas; e vulnerabilidade das mulheres
em situação de risco. Além do mais, é um problema que causa impactos
sociais, econômicos e emocionais, com custos a assistência à saúde e falta
no trabalho e o sofrimento a que são submetidos tanto a mulher como os
membros da família. É um problema passível de prevenção, mediante
elaboração de políticas e de ações específicas (SILVA, 2007).
Dessa forma, devido à amplitude e complexidade do tema
violência doméstica, faz-se necessário à implementação de medidas, tais
como: leis, políticas e programas que proporcionem um atendimento integral
e de qualidade às vítimas, com criação e ampliação de redes de apoio nos
municípios brasileiros, bem como, investir em políticas que visem a redução
das desigualdades entre homens e mulheres.
Essas medidas com o intuito de coibir a violência doméstica e
oferecer amparo às mulheres vitimadas vêm sendo tomadas ao longo do
processo histórico do nosso país. A partir de 1940, o Código Penal brasileiro
reconheceu a agressão física do companheiro contra a mulher como crime.
Nos anos 80, a ação do Estado limitou-se à proteção policial e
encaminhamento jurídico dos casos, visando a punição do agressor e
reparação à mulher agredida, foram então criadas as Delegacias de Proteção
à Mulher. Nos anos 90 surgiram as casas-abrigo, bem como novas
abordagens tanto na área da saúde como na área da assistência para o
combate da violência doméstica (BRASIL, 2003). E mais recentemente, no
ano de 2006, entrou em vigor a lei Maria da Penha, que cria mecanismos para
coibir e prevenir a violência doméstica contra a mulher (BRASIL, 2007).
Dentre os serviços de referência em apoio à mulher vítima de
violência, que compõem a rede, pode-se citar as Delegacias Especializadas
de Atendimento à Mulher (DEAMs), Instituto Médico Legal (IML), unidades de
saúde, conselhos e Organizações Não-Governamentais (ONGs), casas-
abrigo e Defensorias Públicas da Mulher (BRASIL, 2003).
No Piauí, têm-se como serviços de apoio as Casas-Abrigo, o
Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (CEDDM), o Núcleo de Defesa da
393
Mulher da Defensoria Pública, o Centro de Referência para Mulheres Vítimas
de Violência Francisca Trindade, a Diretoria de Política para as Mulheres do
Piauí, o Serviço de Atenção às Mulheres Vítimas de Violência Sexual
(SAMVVIS), o Disque Mulher, as quatro Delegacias Especializadas de
Atendimento à Mulher (DEAMs), sendo duas na capital (Centro e zona Norte)
e duas no interior do estado (Parnaíba e São Raimundo Nonato), e outros.
Nesse sentido, com base na problemática abordada, realizou-se
este estudo com o objetivo de conhecer as causas que as gestoras dos
serviços de apoio percebem como geradoras do fenômeno da violência de
gênero no espaço doméstico.
2 METODOLOGIA
O estudo desenvolvido foi do tipo descritivo de abordagem
qualitativa, realizado com 9 gestoras dos principais serviços de apoio às
mulheres vítimas de violência do Estado do Piauí, localizados na cidade de
Teresina, tendo como cenário do estudo o âmbito de atuação dos sujeitos, em
que se têm: as duas defensoras públicas do Núcleo de Defesa da Mulher
Vítima de Violência, a coordenadora do Centro de Referência para Mulheres
Vítimas de Violência Francisca Trindade, a coordenadora do Serviço de
Atenção às Mulheres Vítimas de Violência Sexual (SAMVVIS), a presidente
do Conselho Estadual de Direitos da Mulher, as duas delegadas das
Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher da cidade de Teresina, a
coordenadora da Casa-Abrigo e a diretora da Diretoria de Política para as
Mulheres.
A produção de dados se deu no período de março e abril de 2009,
cuja técnica de abordagem empregada foi a entrevista e o instrumento
utilizado foi um roteiro semi-estruturado contendo dados de identificação do
sujeito e questões abertas para responder aos objetivos do estudo.
Os dados produzidos foram organizados e tratados por meio da
técnica de análise de conteúdo e agrupados em categorias analíticas.
Por se tratar de pesquisas com o envolvimento de pessoas, foram
cumpridas as exigências da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de
Saúde (CNS). O estudo foi aprovado no Comitê de Ética e Pesquisa da
Universidade Federal do Piauí (CEP/UFPI) sob o protocolo nº
0228.0.045.000-08. No caso do SAMVVIS, foi necessária aprovação da
Comissão de Ética da maternidade onde funciona o serviço. No caso dos
demais serviços, foram enviados ofícios solicitando permissão para
realização do estudo.
Os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido. A fim de garantir o anonimato das participantes da pesquisa,
foram a elas atribuídos nomes fictícios de deusas.
3 RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os resultados compreenderam o perfil dos sujeitos e as
categorias que emergiram dos relatos das gestoras. Os sujeitos podem ser
394
definidos como um grupo eminentemente feminino constituído pelas nove
gestoras dos serviços de apoio às mulheres vítimas de violência do Estado do
Piauí. Estavam na faixa etária de 28 a 62 anos, quatro solteiras, três casadas,
uma viúva, uma divorciada e uma não informou. Quanto à
escolaridade sete possuíam curso superior e duas ensino médio e no que se
refere à atuação no serviço estavam entre 2 a 20 anos.
Dos relatos das gestoras e a partir da análise dos mesmos,
emergiram categorias analíticas com base na semelhança de conteúdo dos
discursos. Dentre as categorias destacaram-se: a violência doméstica como
resultado das relações de gênero; a violência doméstica como
disciplinamento; a multicausalidade da violência doméstica; o presenciar de
situações de violência dentro do núcleo familiar na infância; e, o silenciar das
mulheres vitimadas diante das situações de violência.
3.1 A violência doméstica como resultado das relações de gênero
A condição de ser mulher determina aspectos de vulnerabilidade
a um tipo específico de violência, a violência contra a mulher, sendo
determinada pelos modelos culturais do que é “ser homem” e do que é “ser
mulher”. Esse tipo de violência ocorre mais freqüentemente no espaço
socialmente estabelecido para as mulheres: o espaço privado, o lar.
Então, essa violência é resultado das relações de gênero, da
ordem patriarcal, que é o sistema de poder masculino e de opressão às
mulheres, conforme os relatos que se seguem:
Então essa violência surge exatamente dessa posição que foi criada do
homem ser superior [...] Essa questão do gênero, que foi criada ao longo
do tempo pelas diferenças existentes entre o homem e a mulher, acabou
por servir como justificativa para algumas formas de dominação, como na
questão da violência. (Hera)
397
quando ele está no seu estado normal, mesmo sóbrio, age da mesma
forma. (Afrodite)
Réia foi a única das gestoras que apontou o uso de álcool como
causa que motiva a violência. Para Hera o álcool, isoladamente, não deve ser
considerado como causa de violência contra a mulher, mas quando
associado a outros comportamentos e fatores, considerados causas, podem
agravar o problema da violência. Afrodite coloca que, muitas
vezes, os agressores utilizam o álcool como desculpa para justificar seu
comportamento violento, pois estes agridem, estejam sóbrios ou
alcoolizados.
Em pesquisa feita por Acosta (2003), com homens agressores, e
pela Fundação Perceu Abramo (2001), com mulheres vitimadas, o
alcoolismo, foi apontado como um dos principais desencadeadores dos atos
violentos.
Dos episódios notificados de violência doméstica, em até 92%
dos casos o uso de substâncias psicoativas está envolvido, sendo que o
álcool freqüentemente facilita a violência ao atuar como desinibidor
(ZILBERMAN; BLUME, 2005)
Dessa forma, percebe-se que o uso de álcool não pode ser
considerado a causa primária da violência contra a mulher, mas sim um fator
desencadeante da violência podendo precipitá-la ou agravá-la.
3.4 O presenciar de situações de violência dentro do núcleo familiar na
infância
Outro fator que é tido como causa de violência, na opinião das
gestoras, é a criança ter presenciado situações de violência na família,
refletindo-se nas suas relações familiares futuras. É o que as deusas
revelaram:
E ela tem um fator seríssimo, que é o fator multiplicador dessa violência,
porque, se dentro de casa, os filhos vêem essa violência, muito
provavelmente eles vão reproduzi-la fora de casa e dentro das futuras
famílias que eles vão constituir. (Hera)
As crianças que são criadas, que são educadas, nesse ambiente, vão
passar a ver essa violência com naturalidade, vão achar que isso é
normal, e, de repente, elas podem também estar repetindo isso nas vidas
delas, posteriormente. (Deméter)
Estas depoentes salientam que um fator agravante e
multiplicador da violência é a reprodução de comportamentos violentos por
filhos que conviveram em ambientes familiares onde ocorria
violência.
Moreira et al (2008) considera os antecedentes familiares de
violência como fator que influencia as situações de violência, o fato das
398
pessoas terem vivenciado situações de violência doméstica (como
testemunhas ou vítimas) na infância pode ser considerado predisponente a
reproduzir o comportamento vivido, desenvolvendo estratégias agressivas
para a solução dos conflitos existentes em suas famílias atuais.
3.5 O silenciar das mulheres vitimadas diante das situações de violência
As gestoras atentam para o calar das mulheres vitimadas diante
das situações de violência, o que contribui para que esses atos de agressão
se perpetuem, como falam Atena e Afrodite:
Elas ainda se calam uma, infelizmente, porque acham que dependem
financeiramente do companheiro, que não vão conseguir viver sem o
companheiro, outras por questão de cultura, e outras ainda por questão
de religiosidade, que ainda a gente vê muito isso, que determinadas
religiões não permitem que mulheres denunciem os maridos ou que se
separem. E tem uma outra que é a mais grave, os serviços de proteção às
mulheres ainda não atendem a contento: a mulher vitimada por uma
violência qualquer que seja ela, recorre à delegacia, mas o caso dela não
tem solução, fica lá arquivado, porque o Estado ainda não oferece os
mecanismos que viabilizem a implementação das leis que garantam a
proteção das mulheres vítimas de violência e, consequentemente, a
punição. (Atena)
402
O FENÔMENO DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO: a construção e efetividade
de um modelo de intervenção institucional
Lucélia Braghini; Mirian Faury
INTRODUÇÃO
O objetivo deste artigo é realizar a apresentação do Índice de
Resignificação dos Modelos Disfuncionais das Relações de Gênero, que foi
criado para verificar a efetividade do modelo de intervenção do SOS Ação
Mulher e Família. Inicialmente será feita a apresentação da pesquisa que deu
origem ao IRMDG, para depois então conhecer o instrumento mais de perto.
No Brasil, a violência nas relações de gênero tem caráter
endêmico, podendo ser tratada como uma patologia social e um problema
de saúde pública.
O SOS Ação Mulher e Família foi criado em 1980 como uma
extensão do movimento feminista, para fazer frente a este problema e tem se
mantido fiel à sua missão até o presente. São 28 anos de trabalhos voltados à
compreensão e erradicação do fenômeno da violência doméstica em
Campinas, São Paulo, tendo sido contabilizados desde o ano de 1983 até
2008 um total de 18.272 casos atendidos. Além do atendimento a mulheres e
suas famílias que se queixam de espancamentos, ameaças de morte, crimes
de natureza sexual, violência psicológica, discriminações, a instituição
desenvolve programas preventivos, estudos e pesquisas sobre a condição
feminina, relações de gênero, papéis sexuais, influindo na criação de políticas
públicas em prol de uma sociedade mais justa e igualitária.
A entidade mantém, desde 1987, Convênio de Cooperação com a
UNICAMP, sendo filiada à Federação das Entidades Assistenciais de
Campinas e contando com o apoio da Prefeitura Municipal, do Centro
Educacional Integrado e da Fundação MVB Akzente. Ao longo de sua
atuação, a ONG sempre se destacou por seu pioneirismo e originalidade
e arregimentou um rico banco de dados, além de métodos e intervenções
nascidos no diálogo direto com seu público alvo. O modelo de intervenção
SOS se funda no “Programa Essencial de Atenção à Mulher Vítima de
Violência de Gênero e seus Desdobramentos Familiares,” sendo
realizado em equipe interdisciplinar composta por integrantes das áreas
jurídica, psicológica e social. Para o desenvolvimento desse importante
serviço a ONG conta com alguns profissionais efetivos, mas a maioria é
constituída por voluntários e estagiários.
_____________________________________________________________
354
Por efetividade entende-se o “grau em que um projeto alcançou seus resultados e contribuiu à sua
finalidade” (Monitoramento e Avaliação de Projetos Sociais. Consultoria Criando, Terceiro Setor, 2008).
355
Esta pesquisa é financiada pelo CNPq.
356
Participantes da equipe de pesquisa: Carla da Silva; Rafael F. P. e Silva; Andréa T. Gomes; Cláudia
F. Oliveira; Fabiana Taioli; Lúcia H. Octaviano.
403
Por suas características e especificidades, o SOS AMF tornou-se
um importante ponto de referência no trato da violência, constando do Manual
de Recursos Sociais do município de Campinas (1989), do Catálogo de
Organizações Não-Governamentais que trabalham com prevenção às
DSTs/AIDS (Ministério da Saúde, 1994) e do Glossário do Terceiro Setor
(Fundação FEAC, 2001). O SOS é reconhecido como entidade de utilidade
pública municipal, estadual e federal, possuindo também registro no
Conselho Municipal de Assistência Social e no Conselho Municipal dos
Direitos da Criança e do Adolescente. A entidade é regida por um estatuto e
uma diretoria eleita que regulamenta o trabalho da coordenação técnica e da
equipe interdisciplinar.
O SOS Ação Mulher e Família foi também pioneiro na luta contra a
violência sexual e desempenhou importante papel na implantação dos
serviços de atendimento às vítimas de crimes desta natureza no CAISM
(Centro de Assistência Integral à Saúde da Mulher), UNICAMP. O SOS ainda
teve participação decisiva na criação e implantação da Delegacia de Defesa
da Mulher em Campinas, nos longos anos de luta para que esta reivindicação
se tornasse uma realidade, e também atuou na criação do próprio abrigo para
a mulher e seus filhos em iminente risco de vida junto à Prefeitura Municipal
de Campinas. A instituição começou a desenvolver programas na área de
saúde e sexualidade no ano de 1990, os quais foram intensificados com o
aumento da disseminação do vírus da AIDS entre mulheres, tendo no marido
ou companheiro o vetor principal da doença. Entre esses programas de ação
preventiva teve especial destaque o curso “Saber & Sabor,” financiado no ano
de 2000 pelo Instituto de Saúde Pública do México (GLAMS) e a Fundação
MacArthur e, no ano de 2001, pela UNESCO em concordância com o
Ministério da Saúde.
No final do ano de 2007 e início de 2008, dentro do programa
específico de “Prevenção à Discriminação, Assédio e Violência Sexual e
Preconceitos” que a UNICAMP está desenvolvendo, o SOS participou na
primeira etapa de capacitação de funcionários, mais especificamente as
equipes de Ouvidoria e Serviço de Vigilância da Prefeitura do Campus,
estando também presentes profissionais do Serviço de Apoio ao Estudante
(SAE).
Dentro da programação científica da ONG voltada para a
comunidade, em especial, estudantes e profissionais da área, vale salientar o
fórum intitulado “Caminhos e Desafios da Interdisciplinaridade e
Intersetorialidade no Cenário da Violência Doméstica,” realizado no ano de
2006. Mais recentemente (ano de 2008) organizou-se o colóquio: “Abrindo
Portas: Clínica Psicanalítica e Equipes Interdisciplinares Conversam sobre
Violência,” uma iniciativa do “Espaço Científico.”
O Espaço Científico foi organizado a partir do ano de 2006 pensando em
404
dar visibilidade e propiciar espaços de discussão interdisciplinar voltados
para estudos e pesquisas realizados internamente na ONG. Pode-se citar
alguns temas, tais como: “Relações conjugais patológicas: o processo de
construção de vínculos destrutivos;” “Lei Maria da Penha: impacto jurídico
e psicossocial no atendimento às mulheres vítimas de violência
doméstica;” “SUAS: um divisor de águas na área do Serviço Social com
novas perspectivas de atuação interdisciplinar.
357
Consultoria Criando, Terceiro Setor. Monitoramento e Avaliação de Projetos Sociais. São Paulo,
2008.
358
Por dimensão entende-se o número mínimo de elementos variáveis necessários para a descrição
analítica de um conjunto. Um componente é o elemento que entra na composição de uma dimensão.
Indicadores são os dados / sinais que melhor expressam cada componente (Consultoria Criando, 2008).
407
obtidos.
Para medir o impacto da intervenção, nos primeiros seis meses do
ano de 2010 será feita uma sondagem junto à rede de apoio da
usuária e à Rede de Apoio do município, observando se houve
mudanças adaptativas duradouras na conduta e na vida da usuária.
RESULTADOS ESPERADOS
Resignificação dos modelos disfuncionais das relações de gênero e
da dinâmica familiar, através de sinais que evidenciem a interrupção
do ciclo da violência (ou um movimento nesse sentido) e a
incorporação do modelo da comunicação não violenta (resultado de
efeito);
Garantir a cidadania das mulheres e do grupo familiar (resultado de
impacto);
Fortalecimento e preservação dos vínculos pessoais, familiares e
comunitários (resultado de impacto);
Proteção e prevenção com relação aos casos de violação de direitos
(resultado de efeito).
ÍNDICE DE RESIGNIFICAÇÃO DOS MODELOS DISFUNCIONAIS DAS
RELAÇÕES DE GÊNERO
A elaboração do IRMDG foi feita com base em alguns
pressupostos:
1- A violência nas relações de gênero reflete não só uma patologia social,
como também pode ser considerada uma manifestação de doença e um
sintoma de uma patologia do vínculo, condicionada por variáveis da
esfera intrapsíquica (uma frágil estrutura egóica), que predispõem uma maior
vulnerabilidade à influência e aos mandatos do contexto sociocultural.
Portanto, uma usuária que procura a instituição com uma queixa de
violência do parceiro, fala de um modelo disfuncional de relacionamento,
que traz desordens e conseqüências desastrosas não só à sua relação
com o parceiro e a si mesma, como também a seus filhos que sofrem o
reflexo direto da desorganização do casal parental.
2- A resignificação dos modelos disfuncionais das relações de gênero ocorre
quando é possível agregar saúde ao vínculo, isto é, ambas as partes se
sentem gratificadas na relação com o parceiro, tendo resolvido
satisfatoriamente seus conflitos e satisfeito suas necessidades básicas.
_____________________________________________________________
359
Por violência de gênero entende-se toda ação ou omissão que prejudique o bem-estar, a integridade
física, psicológica ou a liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento do outro. Entenda-se como “outro,” o
parceiro(a) com quem são exercidas relações afetivo-sexuais, de caráter hetero ou homossexual
(Ministério da Saúde, Cadernos de Atenção Básica, nº 8).
408
O que se pretende com o IRMDG é justamente “medir” o quanto de saúde
foi agregado à relação e à própria usuária em seu funcionamento
intrapsíquico. No caso de apenas uma das partes avançar e apresentar
mudanças, a separação é entendida como um sinal de saúde.
O índice foi construído tomando por base 8 dimensões
intrinsecamente relacionadas à questão da violência de gênero:
1) Nível de informação sobre os direitos;
2) Forma de resolução de conflito;
3) Potencial de defesa;
4) Desenvolvimento de rede de proteção;
5) Reasseguramento do empoderamento pessoal;
6) Alteração na qualidade do vínculo;
7) Nível de fortalecimento interno;
8) Rompimento do pacto com a doença.
Far-se-á abaixo um comentário sobre cada uma delas.
1) Nível de informação sobre os direitos
Considera-se que ter a informação sobre seus direitos é uma
condição básica para que a mulher possa pedir ajuda. E esses direitos partem
da consciência de sua condição como cidadã até chegar à clareza do que
fazer no caso de ter sofrido violência do parceiro. Assim, o nível de informação
sobre os direitos possui os seguintes componentes, que vão se afunilando
para conhecimentos mais específicos:
1.1) Presença de noções mínimas de cidadania.
Antes de se ver como mulher, a usuária precisa saber que é uma
cidadã e que, enquanto tal é possuidora de direitos e deveres, o
que é investigado através dos indicadores abaixo:
- Seu documento de identidade (RG), mesmo que seja cópia
do original, é sempre levado com você?
(S = 1; N = 0)
- Você sabe que em qualquer situação que você viva no dia a dia,
além de obrigações, você possui garantias e direitos?
(S = 1; N = 0)
- Quando você tem algum problema envolvendo seus direitos, você
se informa com qualquer pessoa, mesmo que não seja uma
409
advogada?
- Você acredita que seu voto ajuda a mudar a sociedade?
(S = 1; N = 0)
1.2) Nível de conhecimento sobre o conceito de violência.
É necessário investigar se a usuária reconhece e identifica a
situação que está vivendo como sendo de violência, pois devido à
banalização da mesma no meio em que vive, à distorção de valores e à
ação de alguns mecanismos de defesa do ego (negação, redução da
dissonância cognitiva), isto nem sempre acontece. Assim, foram
elaborados os indicadores abaixo:
- Você entende como situação de violência....
- uma pessoa ser impedida de sair de casa quando quiser?
(S = 1; N = 0)
- uma pessoa ser impedida de se vestir como quiser?
(S = 1; N = 0)
- uma pessoa passar fome por não ter o que comer?
(S = 1; N = 0)
- uma pessoa doente não ser socorrida?
(S = 1; N = 0)
- uma mulher ser atingida pelo marido com empurrões, socos,
pontapés?
(S = 1; N = 0)
1.3) Presença de noções mínimas sobre os direitos da mulher.
Muitas vezes, uma mulher não tem qualquer noção sobre seus
direitos, ignora que violência contra a mulher é crime, assim como
desconhece a importância de se lavrar um Boletim de Ocorrência. Assim,
pergunta-se à usuária:
- Você sabe que violência contra a mulher é crime?
(S = 1; N = 0)
- Você sabe que neste caso deveria procurar a Delegacia de
Defesa da Mulher para fazer uma queixa?
(S = 1; N = 0)
- Você sabe para que serve um Boletim de Ocorrência?
410
(S = 1; N = 0)
- Você sabe que após fazer um Boletim de Ocorrência, você
deve representar o agressor em seis meses, pois esta é a
única forma para que responda criminalmente sobre o que
fez? (S = 1; N = 0)
1.4) Conhecimento da Lei Maria da Penha
A Lei Maria da Penha é uma conquista relativamente recente
que mudou radicalmente o cenário dos recursos da lei para a proteção da
mulher vítima de violência de gênero. É importante saber se a usuária
possui informação sobre o assunto, o que pode ser feito através dos
seguintes indicadores:
- Você já ouviu falar na Lei Maria da Penha? (S = 1; N = 0)
- Você sabe para que serve esta Lei (em que situação é aplicada)?
(S = 1; N = 0)
- Você sabe que por esta Lei pode ser pedida a medida protetiva, e
assim o Juiz pode ordenar que o agressor mantenha distância
da mulher agredida?
(S = 1; N = 0)
2) Forma de resolução de conflito
A forma de resolução de conflito é um importante termômetro que indica o
grau de saúde que predomina na relação. Assim, os componentes abaixo
apontam várias possibilidades de reação que se podem observar na
mulher que sofre violência, mas que nem sempre resolvem de maneira
saudável o conflito
422
REFERÊNCIAS
STOLCKE, V. Sexo está para gênero assim como raça para etnicidade?
Estudos afro-asiáticos, v. 20, p.101-117, 1991.
423
VIOLÊNCIA DE GÊNERO E POLÍTICAS PÚBLICAS
Michele Ribeiro de Oliveira
Renata Lígia Rufino Neves de Souza
429
independem de orientação sexual.
Art. 6o A violência doméstica e familiar contra a mulher constitui
uma das formas de violação dos direitos humanos.
Ao discutir violência deveremos analisar na plataforma de um
fenômeno social, cultural e político, como expressão da questão social. A
violência contra as mulheres é uma expressão da dominação masculina, que
se estrutura e se reproduz nas relações de poder entre homens e mulheres.
Segundo Portella (2004), as relações se fundam em contextos históricos e
socioculturais que conferem características diferenciadas à violência.
Ainda, como colocada Piovesan (2003), que mesmo com os
extraordinários avanços legais internacionais e constitucionais, dos direitos
da mulher, não implicam automaticamente em sensível mudança cultural.
A conquista de direito consubstancia o avanço da luta das mulheres,
expresso nas leis e tratados mencionados, porém na realidade presenciamos
a violência de gênero a qual atinge parcela considerável de mulheres,
situação que pode ser agravada pela influência do caldo cultural machista e
patriarcal, em especial na região nordestina, que está arraigada nas relações
social de gênero, em que como resquício a figura feminina ainda é visualizada
sob a perspectiva da propriedade e sujeição ao homem. Diariamente nos
deparamos com notícias acerca do femicídio, estupros, ameaças, lesões
corporais entre os tipos de violência que são perpetrados contra as mulheres
através de homens do seu convívio familiar ou parceiros íntimos.
Na análise das políticas públicas para as mulheres, a criação da
Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres em 2003, apresenta um
avanço na proposta de coordenação, articulação e formulação de políticas
que contemplem a relação de gênero, em especial, da condição da mulher na
sociedade brasileira, na perspectiva da promoção da igualdade de gênero,
que se coloca como desafio presente na realidade social.
A realização de duas Conferências Nacionais de Políticas para as
Mulheres (CNPM), sendo a I CNPM em 2004 e a II CNPM em 2007,
resultaram na elaboração do I Plano Nacional de Políticas para as Mulheres
(PNPM), em 2004, e o II PNPM em 2008.
O PNPM aponta ações com perspectiva de gênero nas diversas
políticas públicas das esferas do Estado, com a articulação e
responsabilidade entre o governo Federal, Estadual e Municipal.
Nesses instrumentos tem-se a discussão e proposições de ações
acerca da violência de gênero, que atinge a mulher, em especial em sua face
doméstica. Coloca essa temática inserida como questão pública, com as
ações direcionadas para o enfrentamento, coibição e atendimento das
mulheres em situação de violência quando inaugura a Política Nacional de
Enfrentamento à Violência Contra a Mulher, com objetivo de articular serviços
e as diversas esferas do poder e organizações no enfrentamento da violência
de gênero.
Atinente a coordenação e formulação de políticas para as mulheres,
430
ressalta-se a importância da implantação das Coordenadorias Municipais e
Estaduais de Políticas para as Mulheres, que direciona a promoção de
políticas públicas para mulheres, com o enfoque de gênero em diversas áreas
das políticas sociais, inclusive no fenômeno da violência. Nesse sentido,
vislumbra-se o a implantação do Centro de Referência para Mulheres, na
perspectiva de promover à prevenção e o atendimento, através de serviços e
ações direcionadas as mulheres vítimas de violência, que à luz da Política
Nacional de Enfrentamento da Violência contra a Mulher, preconiza a
proteção e o atendimento humanizado e de qualidade às mulheres, ainda,
visa à redução dos índices de violência.
Conforme Almeida (2007), no Brasil existe um fosso entre o
reconhecimento da necessidade de formulação de políticas de promoção da
igualdade de gênero e a efetivação desses direitos. Ainda, a autora enfoca
que no país a intervenção na violência de gênero está estruturada em
delegacias especializadas no atendimento a mulher (DEAMs); centros e
núcleos de atendimento à mulher e as casas-abrigo.
Vale destacar que a DEAM foi marco inicial no atendimento as mulheres
em situação de violência na década de 1980, que se apresenta como
mecanismo importante, apesar da precarização da estruturação dos
serviços. As casas-abrigo, espaço essencial na atenção e efetivação dos
direitos das mulheres, precisam está articulada com as demais políticas e
serviços.
No ano de 2005, no município de João Pessoa/PB é implantada a
Coordenadoria Municipal de Políticas Públicas para Mulheres, e em 2007, o
Centro de Referência para Mulher, em que apontam para um avanço nas
políticas públicas para as mulheres, porém inexiste o serviço de Casa-Abrigo.
Recentemente, foi assinado pelo Estado o Plano de Enfretamento à Violência
contra a Mulher, em que se vislumbram ações e metas que concerne ao
enfretamento e atendimento a essa problemática.
Nesse sentido, analisar quanto à efetivação das políticas públicas
para mulheres em situação de violência de gênero, em sua modalidade
doméstica aponta como foco de reflexão neste trabalho, dimensionando os
limites e impasses apresentados na realidade para acesso dos direitos e
proteção conquista.
2. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das reflexões apresentadas visualizamos os avanços dos
direitos da mulher no âmbito internacional e nacional, afirmando direitos que
_____________________________________________________________
360
Entendemos por questão social a definição apresentada por de Marilda Iamamoto e Raul Carvalho
(1983, p. 77) “A questão social não é senão as expressões do processo de formação e desenvolvimento da
classe operária e de seu ingresso no cenário político da sociedade, exigindo seu reconhecimento como
classe por parte do empresariado e do Estado. É a manifestação, no cotidiano da vida social, da
contradição entre o proletariado e a burguesia, a qual passa a exigir outros tipos de intervenção mais além
da caridade”.
361
Termo trabalhado por Safiotti (2004).
431
historicamente representa a luta das mulheres.
Contudo, presencia-se uma relação desigual entre os gêneros,
determinada pela construção histórica, social e cultural da sociedade, em que
as relações de dominação, exploração e poder entre mulheres e homens são
presentes. Assim, a violência de gênero, fenômeno social, cultural e político,
se apresenta como expressão da questão social.
A implantação da Secretaria Especial de Política para as Mulheres
aponta para um avanço nas políticas públicas para as mulheres. Quanto à
questão da violência de gênero, a Lei n.º 11.340 – Lei Maria da Penha –
supera a Lei n.º 9090/95. Nesta a violência contra mulher é considerada
questão de menor potencial ofensivo, ou seja, de menor gravidade, em que
reforça a naturalização da violência em que atinge a mulher, afirmando a
hierarquia entre os gêneros, como expressão patriarcal.
A Lei Maria da Penha aponta mecanismos de coibição à violência
doméstica e familiar contra a mulher, prevendo a criação dos Juizados de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e a assistência e proteção às
mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
As DEAMs, casas-abrigo e centro de referência são políticas de
atendimento as mulheres em situação de violência, configuram-se avanço
enquanto direitos das mulheres, porém necessitam de efetivação e
implementação das ações e serviços, pois há limites e impasses na realidade
concreta para acesso dos direitos e proteção das mulheres na situação de
violência.
Essa a problemática precisa ser incorporada na agenda pública,
enquanto dever do Estado em implementar políticas públicas para prevenir,
punir e combater a violência contra a mulher, com políticas que realizem os
atendimentos e acesso com as condições necessárias de materializar os
direitos conquistados pelas mulheres.
Portanto, a pesquisa em construção permitirá compreender o
direcionamento das políticas públicas sobre a violência de gênero pela esfera
governamental e a percepção das mulheres vitimizadas concernente a
violação de direitos, seja na violência sofrida, ou seja, sobre o acesso a
política pública de proteção à violência de gênero.
432
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Suely Souza de. Apresentação. In: Violência de gênero e
políticas públicas. Suely Souza de Almeida (org.) Editora UERJ: Rio de
Janeiro, 2007.
ALMEIDA, Suely Souza de. Essa violência mal-dita. In: Violência de gênero
e políticas públicas. Suely Souza de Almeida (org.) Editora UERJ: Rio de
Janeiro, 2007.
BRASIL. Lei n.º 11.340, de 7 de agosto de 2006.
BRASIL. Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. Brasília:
Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, 2004.
BRASIL. Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. Brasília:
Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, 2008.
HEILBORN, Maria Luíza. “ Violência e mulher.” In: Cidadania e Violência.
Gilberto Velho e Marcos Alvito. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Editora FGV,
2000. P. 90 a 99.
JORNAL FÊMEA. CFEMEA – Centro Feminista de Estudos e Assessoria. Ano
XIII – N.º 40 – Brasília/DF. Janeiro/2005.
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Divulgação. Ministério das Relações Exteriores. Goiania: Gráfica e Editora
Bandeirante Ltda, 2003.
PORTELLA, Ana Paula. Novas Faces da Violência contra as Mulheres.
Texto da Palestra proferida no Seminário Binacional Violência Contra a
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2004. UFPE. (mimio)
OMS. Relatório Mundial sobre a Violência e Saúde. OMS. Genebra, 2002.
Editado por Etienne G. Krug, Linda L. Dahlberg, James A. Mercy. Anthony B.
Zevi e Rafael Lozano.
ROCHA, Lourdes de Maria Leitão Nunes. Casas-Abrigo no enfrentamento
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SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. “A síndrome do pequeno poder” In:
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SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado, violência. São
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QUEIROZ, Fernanda Marques. Não se rima amor e dor: cenas cotidianas
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TELES, Maria Amélia de Almeida, MELO, Mônica. O que é violência contra
a mulher. São Paulo: Brasiliense, 2003. (Coleção Primeiros Passos.)
433
GT 5 – GÊNERO, IDENTIDADE E CULTURA
COORDENAÇÃO: Profª. Dra. Iraildes Caldas Torres -
DIREITO DE FAMÍLIA: mulher e regime dotal na legislação republicana
1
Universidade Estadual do Maranhão
2
Lei do Casamento Civil, decreto nº 181, de 24 de janeiro de 1890; Código Civil, lei nº 3.071, de 01 de
janeiro de 1916, respectivamente.
3
Da Lei de 1890, ver capítulo VII: Dos Efeitos do Casamento; e do Código Civil ver: Livro I: Do Direito de
Família - Título II: Dos Efeitos Jurídicos do Casamento; Título V: Das Relações de Parentesco, capítulo VI:
Do Pátrio Poder.
4
Lei nº 4.121, de 27 de agosto de 1962. Essa lei, conhecida como Estatuto da Mulher Casada, tratava da
situação jurídica da mulher casada, e alterava vários artigos do Código Civil (06, 233,240, 242, 246, 248,
263, 269, 273, 326, 380, 393, 1.579 e 1.1611) e o artigo 469 do Código de Processo civil. Estabelecia que a
mulher, tendo bens ou rendimentos próprios, será obrigada, como no regime de separação de bens, a
contribuir para as despesas comuns, se os bens comuns forem insuficientes para atendê-las.
5
O Código civil português, de autoria do Visconde de Seabra, vigorou desde 1867 até 1910, quando foi
proclamada a República e instituída nova legislação civil.
437
portuguesa Ana Osório (1905, p. 207-220) analisou a situação da mulher
casada e da mulher solteira perante a lei de seu país e mostrou como a
legislação era cerceadora da liberdade da mulher que casava, a qual deixava
de ser uma criatura livre, de ser senhora do seu destino e das suas ações,
porque devia “obediência ao marido”; deixava de ser a administradora dos
seus bens, porque qualquer que fosse a forma do contrato matrimonial, a
administração pertencia ao marido e só na falta ou impedimento dele a mulher
tomaria o seu lugar.
À mulher era negado o direito de alienar ou adquirir quaisquer
bens, tanto móveis como imóveis, enquanto o marido podia adquirir
quaisquer bens sem autorização da esposa e alienar os mobiliários; à mulher
era totalmente proibido fazer dívidas sem autorização do marido, enquanto
que o homem podia contrair, só por si, dívidas pelas quais respondiam os
bens do casal, no todo ou em parte.
A mulher não podia ser a educadora dos filhos, porque estes
pertenciam ao pai, que os regia, protegia e administrava, constituindo, assim,
o poder paternal, e embora o mesmo código proclamasse a mãe co-
participante desse poder, para ser ouvida em tudo que respeita os
interesses dos filhos, tal não sucedia na prática, pois o pai era o único
representante do poder paternal e contra ele a opinião e vontade materna
nada valiam.
A mulher casada não podia negociar, exercer uma indústria ou
uma profissão, escrever para o público e publicar seus livros sem a
autorização do marido; a esposa tinha obrigação de acompanhar o marido
para onde ele entendesse que a devia levar; não podia abandoná-lo, salvo em
casos especiais previstos pela lei: “adultério no domicílio conjugal ou com
escândalo público, desamparo completo, sevícias, ofensas graves”. Assim,
perante a lei civil portuguesa, a mulher, ao se casar, perdia todos os seus
“direitos e alforrias”, e podia se considerar legalmente a tutelada do homem.
Já a mulher solteira em Portugal, segundo Ana Osório, era quase
livre, equiparada ao homem perante o código, mas nesse quase havia um
imenso abismo a transpor. Depois de 21 anos podia livremente ganhar sua
vida exercendo a profissão para que se julgava habilitada, era um indivíduo
autônomo, podendo ser professora, médica, proprietária, industrial e
comerciante. A lei não excluía a mulher solteira de nenhum trabalho,
“apenas o costume, a tradição e o homem faziam reparo, a cada nova
conquista da tenacidade feminina”. A mulher solteira podia estudar as leis do
seu pais, e, visto que a lei era igual para todos, salvo casos especialmente
declarados no Código Civil, freqüentar o curso de direito e tirar a carta de
bacharel, mas ainda não poderia estar em juízo como testemunha civil.
_____________________________________________________________
6
Mesmo viúva, a mulher teria que dar contas da sua administração ao conselheiro que o defunto nomeou,
se ele tivesse reservado o poder de continuar dirigindo, mesmo depois da morte, as ações e procedimentos
de sua esposa.
438
No entanto, solteiras ou casadas, do ponto de vista da cidadania
política, as mulheres eram equiparadas pelos códigos aos menores não
emancipados, ambos menores perante a lei, não tendo a faculdade de se
ingerir nos negócios públicos, não eram eleitoras nem elegíveis.
No Brasil, o tratamento dado á mulher pela legislação civil não era
muito diferente, pois mesmo que as leis de 1890 e 1916 tenham alterado
alguns pontos do direito de família, não modificaram substancialmente
preceitos de origem canônica do Código Filipino. Segundo a historiadora
Linda Lewin, essas leis restringiram a autoridade que os pais,
como chefe de família, tinham sobre seus filhos, especialmente os filhos
homens, “embora o poder patriarcal tenha permanecido com menos
limitações nas prerrogativas legais que os maridos (e pais) continuavam a ter
em relação a suas mulheres e filhas”. (LEWIN, s/d, p. 156). Ou seja, o homem
continuava sendo o representante legal da família, o cabeça do casal, com o
poder marital e o pátrio poder, competindo a administração dos bens, a
escolha do local de moradia, a autorização para o trabalho feminino, bem
como a palavra final no consentimento para o casamento dos filhos não
emancipados.
Muitos defensores e defensoras dos “direitos da mulher”, no início
do século XX, denunciavam que a mulher continuava sujeita ao regime de
subalternidade moral e legal, que, “nem por ser adoçado pela brandura dos
nossos costumes, perdeu o seu caráter iníquo e jugo de opressão”. Esses
críticos lamentavam que a mulher continuasse um ente de submissão,
educada no desejo exclusivo de um bom marido para lhe garantir a existência
quando lhe faltasse o desvelo paternal. O marido sendo encarado como o seu
futuro, sua esperança, sua única condição de conforto, e dada a sua inaptidão
para a vida prática, devido o desconhecimento completo do mundo, achava
que só o marido a pouparia da amargura de uma vida cheia de dificuldades,
de dias escuros, de serões sem proveito, ou que era pior, de um agasalho por
caridade, essa dolorosa perspectiva de tanta moça sem fortuna. O resultado
era que, uma vez casada, a autoridade do pai era substituída pela autoridade
marital.
Os críticos ressaltavam a necessidade de elevar o nível moral e
intelectual da mulher, para que a família se assentasse sobre bases mais
dignas, pois ainda se baseava no interesse pessoal. Para os homens, esse
interesse era o de fazer um bom negócio e para as mulheres a vantagem de
se garantirem das incertezas do futuro.
Essa idéia colocava a mulher como colaboradora do homem, seu
complemento, que não devia representar um peso para o marido era. Assim
_____________________________________________________________
7
As leis portuguesas de 1910, do governo republicano provisório, alteraram sensivelmente o código civil
anterior, estatuindo o divórcio e firmando que a sociedade conjugal baseava-se na liberdade e igualdade,
incumbindo ao marido especialmente a obrigação de defender a pessoa e os bens da mulher e dos filhos
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Revista A Mensageira. Direitos da Mulher. 15.01.1900, n. 36, p. 217 -221.
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Revista A Mensageira. Direitos da Mulher. 15.01.1900, n. 36, p. 217 -221.
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como a ideologia do trabalho, do homem provedor, considerava uma desonra
para o marido não poder arcar sozinho com as obrigações de sustento do seu
lar, cabia à mulher, especialmente da classe média, o dever de gerenciar bem
as economias domésticas e evitar o desperdício com luxo e futilidades.
Mesmo que trabalhasse, sua atividade era sempre vista como auxiliar e seu
salário como complemento.
O caráter conservador do regime republicano no tocante à família
foi percebido por alguns críticos, como Barbosa Lima, para quem a república
não subvertera todo o quadro de costumes brasileiros, pelo menos fora do
domínio das reformas políticas. Além das medidas como o casamento civil,
que decorriam da separação entre a igreja e o Estado, “a república não
pensou senão em conservar”, foi buscar as fontes de sua doutrina social no
tradicionalismo, pois o Brasil estava integrado ainda em práticas e usos
patriarcais, com a família e os seus dependentes vivendo ainda os resquícios
da relação da casa grande do senhor e a senzala.
Com a república e a maior interferência do estado nas questões
de família, a influência se fazia sentir na reação contra os excessos do chefe
da família, criando em torno da mulher, aparentemente, um sentimento de
maior respeito e de apoio. Essa contribuição no sentido de divulgar esses
novos princípios coube principalmente aos discípulos de Augusto Comte,
pois o filósofo acreditava que as reformas humanas precisariam vir por
intermédio da influência feminina, e entregava à mulher os mais “rudes
encargos da educação dos homens, para os fins sociais de sua existência”.
A lei sobre o casamento civil, de 1890, instituiu as novas regras do
casamento sob o regime republicano brasileiro. De imediato, ficava suspenso
o valor legal do casamento religioso, e as pessoas que pretendessem casar
deviam habilitar-se perante o oficial do registro civil.
A nova lei mantinha a proibição dos casamentos entre parentes,
ascendentes e descendentes e demais parentes até segundo grau civil. A
idade mínima para o casamento era de 14 anos para a mulher e 16 anos para
o homem, e os menores de 21 anos eram obrigados a obter o consentimento
dos pais, caso fossem casados, e no caso de divergência entre eles, apenas
o consentimento do pai era suficiente.
Os efeitos do casamento civil eram constituir família legítima e
legitimar os filhos anteriormente havidos entre os contraentes, investir o
marido da representação legal da família e da administração dos bens
comuns e dos que por contrato antenupcial devessem ser por ele
administrados, investir o marido do direito de fixar o domicílio da família,
autorizar a profissão da esposa e dirigir a educação dos filhos, bem como
obrigá-lo a sustentar e defender a mulher e os filhos.
Quanto aos bens, quando o casamento não fosse no regime
comum, era necessário apresentar uma escritura antenupcial, pois na falta
desse contrato os bens dos cônjuges eram presumidos comuns desde o dia
seguinte ao casamento. Não podia haver comunhão de bens imediata se a
440
mulher fosse menor de 14 anos ou maior de 50, se o marido fosse menor de
16 ou maior de 60, e se os cônjuges fossem parentes dentro do 3º e 4º graus.
Nesses casos, os bens da mulher, presentes e futuros, seriam considerados
dotais e garantidos na forma do direito civil. Quanto a faculdade conferida à
mulher casada para hipotecar ou alhear o seu dote, conforme o artigo 27 do
Código Comercial, era restrita apenas às mulheres que já eram comerciantes
antes do casamento.
O pedido de divórcio continuava sendo aceito em alguns casos:
adultério, sevícia ou injúria grave, abandono voluntário do
domicílio conjugal e prolongado por dois anos, mútuo consentimento dos
cônjuges se casados a mais de dois anos. O divórcio não dissolvia o vínculo
conjugal, mas autorizava a separação indefinida dos corpos e fazia cessar o
regime dos bens, como se o casamento fosse dissolvido, embora no caso de
cônjuges com filhos comuns o divórcio não anulasse o dote, que continuaria
sujeito aos ônus do casamento, passando a ser administrado pela mulher se
ela fosse o cônjuge inocente.
Essas regras do direito de família foram, em grande parte,
ratificadas pelo primeiro Código Civil brasileiro, elaborado pelo jurista Clóvis
Beviláqua, o qual, no tocante ao casamento, manteve dois sistemas das leis
civis anteriores: a separação total de bens e o contrato de dote e arras. Apesar
de permanecer na nova legislação o regime dotal, a opinião do jurista sobre
o dote era que este fazia com que a mulher comprasse o marido.
No tocante aos bens, o Código Civil de 1916 permitia aos
nubentes estipular o que lhe aprouvesse, devendo ser feito por escritura
pública, pois caso não houvesse essa convenção, vigorava o regime de
comunhão parcial de bens.
No regime de “comunhão parcial ou limitada”, eram excluídos da
comunhão os bens que os cônjuges possuíam antes do casamento ou que
obtiveram depois por doação ou sucessão, também os que foram adquiridos
com valores pertencentes exclusivamente a um dos cônjuges. Entravam na
comunhão as doações, heranças ou legados que fossem em favor de ambos
os cônjuges, e a administração dos bens do casal competia ao marido, bem
como as dívidas por ele contraídas obrigavam não só os bens comuns, como
também, em falta destes, os bens particulares de um e outro cônjuge, na azão
do proveito que cada qual houvesse lucrado.
Os demais regimes de bens previstos eram o de “comunhão
universal”, “separação de bens” e “regime dotal”. No primeiro caso, havia a
comunicação de todos os bens presentes e futuros dos cônjuges e suas
dívidas passivas, com exceção de alguns bens, como, por exemplo, o dote
_____________________________________________________________
10
Vida Doméstica. O conceito republicano da família e do lar, novembro de 1928, n. 128, p. 125.
11
O Decreto n. 521, de 26 de junho de 1890 proibia cerimônias religiosas matrimoniais antes de celebrado o
casamento civil. Essa medida foi adotada pelo governo provisório diante da oposição de parte do clero
católico ao decreto do casamento civil. O governo encarava essa atitude como um meio da Igreja anular a
ação do poder secular e um risco para os direitos da família que resultam do casamento.
441
prometido ou constituído aos filhos, também as roupas de uso pessoal, as
jóias esponsalícias dadas antes do casamento pelo esposo, os livros,
instrumentos de profissão e os retratos de família. O regime de separação de
bens dava a cada cônjuge o direito de administrá-los, sendo que a mulher era
obrigada a contribuir para as despesas do casal com os rendimentos de seus
bens, na proporção de seu valor, relativamente ao do marido, salvo estipulado
em contrário no contrato antenupcial.
Por fim, o regime dotal, estabelecia a necessidade de descrever e
estimar na escritura antenupcial cada um dos bens que constituíam o dote, o
qual poderia ser constituído pela própria nubente, por qualquer dos seus
ascendentes ou por outrem. Essa escritura deveria estabelecer as condições
para administração e uso do dote, como até mesmo a reversão ao dotador
em caso de dissolvida a sociedade conjugal. Os frutos do dote eram devidos
desde a celebração do casamento, caso não se estipulasse prazo e o
contrato dotal podia estabelecer que a mulher recebesse, diretamente, para
suas despesas particulares, uma determinada parte dos rendimentos dos
bens dotais.
Para facilitar o acesso das mulheres de elite ao conhecimento dos
seus direitos e deveres perante o código civil, as revistas femininas
freqüentemente apresentavam às suas leitoras artigos sobre os direitos da
mulher, dando algumas noções sobre a condição da mulher no direito
brasileiro a fim de ensinar o que elas devias saber para 'os gastos da vida'.
A revista Vida Doméstica tinha uma coluna dedicada às senhoras
e moças totalmente leigas na ciência de direito, “para melhor se governarem
na vida, dentro da lei, da justiça, da ordem e da paz doméstica”. Seu redator, o
bacharel em Direito Paulo Gaia, solicitava às interessadas que enviassem
para a redação da revista cartas fechadas relatando seu caso de forma clara,
discreta, com fidelidade. A resposta desse “consultório jurídico” seria dada
através da coluna da revista ou de maneira particular, com devolução da carta
consulta, caso a autora da carta-consulta desejasse.
A Revista Feminina também dedicou vários artigos à questão dos
direitos civis das mulheres e divulgou com entusiasmo o lançamento do livro
do Dr. Vicente Ráo em 1922, que tratava da capacidade civil da mulher
casada, dizendo que a obra era muito útil, especialmente “neste século
apavorante e atemorizante” em que o “sexo ex-frágil” vertiginosamente
conquistava dia a dia, principalmente para além das fronteiras do Brasil,
posição de destaque na vida pública, entrando em franca competição e
nivelando-se com o homem que outrora a castigava de acordo com a lei.
O comentário ainda dizia que nestes dias em que nos comícios e
_____________________________________________________________
12
O código civil foi elaborado por Clóvis Beviláqua e enviado ao Congresso Nacional, que o modificou e
retardou sua promulgação. Segundo Florisa Verucci (apud. DANTAS, 2003) o civilista queria o código bem
mais liberal no que se referia à mulher.
13
Essas disposições estão contidas no Título II, “Do Regime dos Bens entre os Cônjuges”. In. Código
civil. 2.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997. p. 164-171.
442
nas assembléias de senhoras se recordava a cada passo que “depois da
declaração dos direitos do homem e do cidadão, a declaração dos direitos da
mulher é uma conseqüência lógica e necessária”, era natural e preciso
mesmo que a mulher inteligente e letrada levasse para o lar o novo e
interessante livro do Dr. Ráo, lendo e meditando sobre aquelas páginas
compreensivas dos direitos que lhe reconhecia a lei.
A obra do Dr. Vicente Ráo sobre a situação jurídica da mulher,
especialmente a mulher casada, comparava a legislação brasileira de 1916
com o direito romano e com a legislação de outros países europeus e dos
Estados Unidos. Reconhecia que a situação jurídica da mulher, sua posição
na ordem social e econômica, evoluía a passos lentos e demorados, e
embora na ordem política ainda fosse um campo de violentas lutas entre os
defensores da total abstenção da mulher na política e dos que
reivindicavam sua intervenção absoluta, na ordem privada, os “verdadeiros
princípios” já estavam assentados e a eles deviam as sociedades modernas
as reformas que lentamente vinham penetrando no espírito de cada um e na
realidade da vida.
O preceito da incapacidade da mulher, utilizado pelos
legisladores e pela sociedade de uma maneira geral para concluir pela
inferioridade da mulher (fragilitas sexus), ora partia do pressuposto de uma
inferioridade física e psíquica, ora admitia que a mulher era ser tão nobre que
devia ser protegida e dirigida pelo homem longe das lutas da vida, ora se
baseava no evidente exagero da necessidade de obediência ao marido.
Para o Dr. Ráo, o recente código civil realizou notáveis reformas e
colocou a mulher, solteira ou casada, em posição mais elevada e mais digna
da que lhe atribuía o direito anterior, mas por um excessivo respeito à mal
entendida tradição do direito brasileiro e não tomando em conta os novos
fatores que impulsionavam o meio social, não se emancipou por completo
dos velhos preconceitos e continuou a declarar relativamente incapaz a
mulher casada, colocando-a ao lado dos menores, dos pródigos e dos
silvícolas, dos que não podiam se reger por si sós por falta de necessário
discernimento.
Considerava que, se os próprios princípios científicos admitiam
que a mentalidade da mulher era perfeitamente igual a do homem,
juridicamente os termos dessa igualdade na família e no casamento deviam
ser “igualdade de direitos e unidade de direção”. Ou seja, homem e mulher
eram seres fisicamente diferentes, mas o exercício das funções impostas
'pela natureza' não devia acarretar a inferioridade jurídica da mulher, mesmo
que a unidade de direção da sociedade conjugal fosse prerrogativa
_____________________________________________________________
14
Pelo artigo 305, do Código Civil, presume-se recebido o dote se o casamento se tiver prolongado por 05
anos depois do prazo estabelecido para sua entrega, ficando ao marido o direito de provar que não recebeu
o dote, apesar de exigi-lo.
15
Vida Doméstica.Direitos da Mulher. Setembro de 1925, n. 92, p. 44
16
RÀO, Vicente. Da Capacidade Civil da Mulher Casada: estudo teórico – prático segundo o código civil.
São Paulo: Livraria Acadêmica Saraiva & C. Editores, 1922.
443
masculina.
Se a capacidade civil da mulher solteira, na legislação moderna
de quase todos os países cultos, era completa e igual a do homem, para a
mulher casada a situação era outra. Considerava que o direito civil brasileiro
anterior ao código de 1916, desde as obsoletas Ordenações do Reino que
reconheciam ao marido o direito de castigar a mulher, até a instituição do
casamento civil pelo decreto de 1890, não fez nenhuma reforma essencial no
tocante à capacidade civil da mulher casada, sempre consagrando o velho
conceito do poder marital. Esse poder formava-se pela deslocação de certos
direitos de pessoa da mulher para a pessoa do marido, roubando-lhe a
faculdade de governar-se a si mesma, de contratar e de dispor dos bens,
pondo-a sob a direção do marido, constituindo o estado de incapacidade da
mulher. A mulher era plenamente capaz até o momento do casamento, desse
momento em diante sofria uma verdadeira diminuição, passando sua
capacidade civil a ser absorvida de todo pela do marido (RÁO, 1922, p. 19-
20).
No princípio da relativa incapacidade civil da mulher, também
chamado de sistema intermediário, o casamento só influía sobre a
capacidade civil da mulher de uma maneira restrita à necessidade da direção
do marido na sociedade conjugal. Para o Dr. Vicente Ráo, o código civil
brasileiro, embora incluindo a mulher casada entre os relativamente
incapazes, se aproximava mais do sistema intermediário, onde a nova
interpretação do poder marital e do pátrio poder, não resultava mais da
necessidade de proteger a incapacidade da mulher e sim assegurar a
unidade da direção na sociedade conjugal (RÁO, 1922, p. 29).
Mesmo assegurando que o direito civil brasileiro concedia ao
marido uma proeminência ainda demasiada, considerava que o poder marital
já era mais segundo o velho conceito absorvente de toda a capacidade
jurídica da mulher, assim como também o pátrio poder no direito
moderno era instituído antes por utilidade dos filhos de que do pai, mais pelos
encargos que impunha que pelas faculdades que conferia ao pai, com os
deveres se sobrelevando aos direitos (RÁO, 1922, p. 37-38).
Quanto aos atos de administração do casal na vida econômica,
ou seja, no tocante às rendas e os bens, explicava que o código civil distinguia
os atos de “administração corrente”, cotidiana, que cada cônjuge exercia
normalmente dentro de suas 'atribuições naturais', dos atos de
“administração definitiva”, que interessavam essencialmente o patrimônio do
_____________________________________________________________
17
A Revista Feminina. Da capacidade civil da mulher casada, de agosto de 1922, n. 99, p. 03, publicou o
artigo do Dr. Adalberto Garcia, em que comentava o livro do advogado Dr. Vicente Ráo, “Da Capacidade
Civil da Mulher Casada”, publicado no Jornal do Comércio, de São Paulo, em 20 de julho de 1922, obra que
tratava da situação da mulher no código civil brasileiro.
18
Quanto à mulher casada, sua situação civil se inspirava em três sistemas: o da incapacidade civil, da
capacidade completa e o intermediário.
19
Idem, p. 9-11
444
casal e exigiam a participação de ambos os cônjuges.
Na administração cotidiana, a mulher podia praticar todos os atos
necessários à economia doméstica, comprar, mesmo a crédito, as coisas
necessárias, obter por empréstimo as quantias exigidas para a aquisição das
coisas de uso corriqueiro para a manutenção do lar. Também podia dispor
livremente dos seus bens móveis que possuísse livre da administração do
marido ou que houvesse reivindicado em conseqüência de doação.
Já os atos de administração definitiva só eram realizados com
autorização do marido, tais como, alienar, hipotecar ou gravar de ônus real os
bens imóveis ou seus direitos reais sobre imóveis alheios, pleitear acerca
desses bens e direitos, prestar fiança, fazer doação com os bens ou
rendimentos comuns, contrair obrigações que pudessem importar alheação
de bens do casa (RÁO, 1922, p. 57-62).
A mulher casada precisava da autorização do marido para
trabalhar fora, a exemplo daquelas que queriam montar seu próprio negócio
no comércio. Segundo os dados da Secretaria da Junta Comercial do
Maranhão, entre 1892 e 1900 foram registradas 06 autorizações de marido
para a mulher negociar.
Quanto ao regime de bens, mesmo não podendo aumentar ou
diminuir a capacidade civil da mulher casada, a escolha do tipo de contrato
nupcial podia conferir novos direitos e obrigações e estender a atividade da
mulher casada em relação ao seu patrimônio, conferindo maior ou menor
poderes de administração e facultando maior ou menor responsabilidades.
Assim, bem diversa era a situação da mulher casada no regime dotal daquela
que estipulou ou aceitou o regime de comunhão de bens ou de separação.
A comunhão de bens era a regra que a lei presumia no silêncio
das partes, quando não havia contrato antenupcial, já a separação de bens
era a exceção, embora houvesse casos especiais que, para proteger
interesses ou dificultar casamentos indesejáveis, o código determinava em
caráter obrigatório esse regime (RÁO, 1922, p.141-143).
O Dr. Vicente Ráo analisou o regime dotal no código de 1916 com
base no conceito de dote e sua significação rigorosamente jurídica, “como a
porção de bens incomunicáveis que a mulher, ou alguém por ela, transfere ao
marido para com os frutos e rendimentos provenientes sustentar os ônus do
matrimônio, sob a clausula de restituição de tais bens dissolvida a sociedade
conjugal”.
Sendo assim, o regime dotal apresentava caracteres
acentuadamente diferentes dos demais regimes, sendo seus elementos a
incomunicabilidade dos bens dotais, estimados na escritura antenupcial, a
sujeição deles à administração do marido, a destinação dos frutos e
_____________________________________________________________
20
Ordenações Filipinas, livro 5º, título 36, parágrafo 1º e titulo 59, parágrafo 4º.
21
Quanto à mulher, somente na falta ou ausência do marido, mesmo na vigência do casamento, tinha
plena capacidade para o exercício do pátrio poder
445
rendimentos à sustentação dos encargos do matrimônio e a restituição à
mulher ou a seus herdeiros ou ao instituidor do dote.
O dote podia compreender, no todo ou em parte, os bens
presentes e futuros da mulher, mas era vedado aos casados aumentar o dote.
Era permitido estipular no contrato dotal que a mulher recebesse para as suas
despesas particulares uma determinada parte dos rendimentos dos bens
dotais e que a par desses bens dotais houvesse outros,
submetidos a regimes diversos. Assim, quando além dos bens dotais, os
nubentes tivessem bens particulares e estipulassem o regime de separação,
os bens se distinguiriam em: bens dotais pertencentes e administrados pelo
marido, bens parafernais, pertencentes à mulher e por ela administrados,
bens adquiridos pertencentes a ambos e administrados pelo marido, bens
particulares do marido.
Como os bens dotais eram inalienáveis, era direito do marido
administrá-los, perceber os seus frutos e usar das ações a que derem lugar. O
marido adquiria a propriedade dos bens dotais quando móveis, e dos bens
dotais imóveis só mediante cláusula expressa dando transferência do
domínio para o marido. Mas, uma vez entrando os bens dotais para o
patrimônio do marido, ficava este obrigado a pagar o preço quando se
dissolvesse a sociedade conjugal ou quando fosse ocasião de o restitui
(RÁO, 1922, p. 159-163).
O dote devia ser restituído pelo marido à mulher ou seus
herdeiros, dentro do mês que se seguisse à dissolução da sociedade
conjugal, se não pudesse imediatamente. A mulher podia requerer
judicialmente a separação do dote, quando a desordem nos negócios do
marido leve a recear que os bens deste não bastassem para assegurar os
dela. Requerida e obtida a separação do dote, a mulher passava a administrá-
lo, continuando inalienável e sujeito a todas as prescrições legais que
caracterizavam os bens dotais (RÁO, 1922, p. 164-168).
O direito do marido de administrar e receber os frutos do dote era
justificado em atenção ao fim primordial e determinante da instituição do dote,
ou seja, a sustentação dos encargos matrimoniais, em subsídio à obrigação
imposta ao marido de prover a manutenção da família. Esse auxílio para o
homem, que devia ser o único e legítimo provedor do lar nas camadas médias
e altas, podia ser visto agora como um desprestígio, uma demonstração de
não confiança em sua capacidade de manter a esposa e filhos com o fruto do
seu trabalho.
Embora ainda houvesse casos de dotes incentivando os
pretendentes, o mais comum no século XX eram os noivos dotarem suas
noivas, como uma garantia futura para elas. Observa-se a preocupação da lei
com o dote, considerado ainda uma garantia futura para a mulher, devendo
ser protegido e seu valor original intocável, mesmo que seus frutos pudessem
_____________________________________________________________
22
Secretaria da Junta Comercial do Maranhão, em 31.12.1892, 22.01.1897; 31.12.1897; 09.01.1900
446
ser utilizados. Era um bem que poderia ser tirado dos riscos da economia de
mercado, sendo uma garantia para os indivíduos considerados dependentes,
no caso, a mulher e os filhos, resquícios da mentalidade patriarcal nesse
momento de transição para a consolidação de uma sociedade burguesa e
capitalista.
Pelo Código civil de 1916, os noivos eram livres para fazer
doações recíprocas, ou apenas de um a outro, devendo constar na escritura
antenupcial tanto estas doações como aquelas feitas por terceiros. Segundo
os testamentos do início do século XX, eram mais comuns os casos de noivos
dotando suas futuras esposas, fato excepcional no período colonial. A prática
do dote, em vez de desaparecer nesse período como pareciam indicar as
críticas a esse costume desde o século XIX, parecia receber nova roupagem,
“modernizando-se”.
A condenação do uso do dote nos arranjos matrimoniais das
classes favorecidas parecia mais discursiva que efetiva, e essa nova forma
de dotação pode também ser vista como uma resistência dos valores
conservadores da sociedade, uma forma dos homens continuarem a tutelar
suas esposas, especialmente da classe média, para que não buscassem sua
independência em uma profissão, mas terem no casamento a garantia de sua
subsistência sem a necessidade de um trabalho fora de casa.
Os testamentos e insinuações de dote do início do século XX
apontam algumas mudanças no costume e na diversificação dos
bens que constituíam o dote, em novos arranjos que revelam que entre as
famílias ricas mantinha-se a preocupação com o futuro da mulher garantindo-
lhe um dote, uma vez que a possibilidade de uma profissão era menos
incentivada nesse meio social.
Nos casos de noivos dotando as futuras esposas, para se
certificar que a doação do dote era feita de livre e espontânea vontade, as leis
vigentes exigiam a insinuação do dote, com a apresentação de testemunhas
que confirmassem a declaração do doador de que o referido dote foi por ele
constituído “sem indeferimento algum, arte, engano, medo, pressão ou outro
qualquer conluio”.
Os noivos ricos ou remediados costumavam dotar suas futuras
esposas, geralmente quando estas eram de condição econômica inferior e
eles já estavam no segundo ou terceiro casamentos, eram mais velhos ou
viúvos.
Foi o caso de José Ferreira da Cunha, que em seu quinto
casamento, com dona Amélia Ribeiro da Cunha, dotou a sua referida esposa
com 03 contos de réis. Suas posses em Portugal e no Maranhão eram
_____________________________________________________________
23
Os imóveis dotais não podiam ser onerados nem alienados, a não ser por autorização do juiz competente
nos seguintes casos: se o casal quisesse dotar suas filhas comuns, em caso de extrema necessidade para
subsistência da família, para pagamento de dívidas da mulher anteriores ao casamento na inexistência de
bens extra-dotais, para conservação de outro imóvel dotal, quando se achasse indiviso com terceiros, no
caso de desapropriação por utilidade pública, quando em lugar distante do domicílio conjugal.
447
constituídas por capital financeiro, constando de contas de depósito,
inscrições da dívida externa portuguesa, conta corrente com uma firma
comercial, prédios, ações de bancos e companhias. Determinou que o dote
de sua esposa dona Amélia devia ser pago com os ditos papéis de crédito
tantos quantos fossem necessários, com a recomendação de que fossem
compradas inscrições da dívida interna portuguesa e estas averbadas em
usufruto a favor de sua sobrinha Carolina da Silva..
Outro exemplo foi o fazendeiro José Fernandes dos Santos, 63
anos, natural do Maranhão e residente em São Luís. Seu testamento feito em
1926 informou que foi casado em segundas núpcias e no regime dotal com a
senhora dona Laura Marques Santos. Resolveu deixar a metade dos seus
bens à sua mulher, em cujo legado ficava o estabelecimento de lavoura de
cana de açúcar no município de Monção, avaliado em 35 contos de réis.
Como o dote devido a sua esposa era de 30 contos, lhe outorgava a faculdade
de repor aos herdeiros forçados, seus oito filhos do primeiro casamento, a
diferença em dinheiro ou outros bens, para que ficasse sendo senhora da
propriedade.
A diversificação da composição dos bens dotais e da herança,
feita em forma de ações de crédito de bancos e companhias, títulos,
inscrições da dívida pública, demonstra o desenvolvimento da economia de
mercado, com os negócios resultantes de investimentos financeiros
especulativos. Nesse caso, apesar da recomendação legal para que fossem
utilizados apenas os frutos dessas doações, ou seja, seu rendimento, esse
novo bem dotal era mais propenso aos riscos do mercado por se tratar de
ações financeiras.
Segundo Susan Besse, nas camadas médias, em muitos casos,
mães viúvas e com dificuldades econômicas, temendo pelo futuro das filhas,
as obrigavam a casar-se com homens que pareciam dispostos a lhes
propiciar riqueza e status social. No entanto, eram poucos os casamentos
realmente arranjados nesse meio social, pois os pais recorriam agora a
formas indiretas para ajudar os filhos a conseguirem casamentos vantajosos,
e mais do que nunca as moças precisavam adquirir atrativos sociais e
educação básica para competir na busca de um marido. Nas classes altas, se
os pais já não podiam efetivamente obrigar as filhas a casarem-se dentro dos
limites estreitos da antiga elite, podiam tentar influenciar nas opções de
casamento das filhas restringindo o âmbito do contato social permitido
(BESSE, 1999, p. 56).
_____________________________________________________________
24
Documento que confirmava a doação feita em testamento ou contrato antenupcial.
Essa expressão foi mantida das Ordenações Filipinas.
25
Testamento de José Ferreira da Cunha. Juízo da Provedoria de Resíduos de São Luís, 25/04/1912
26
Para as suas duas filhas dos dois primeiros casamentos deixou jóias de prata e ouro, para as duas netas
ações do Banco Comercial de São Luís, e ao neto Dacio Cunha Souza, 50 ações do banco
27
Comercial e a propriedade dos ditos papéis de crédito, bem como o relógio e a chatelaine de ouro e um
alfinete de gravata com um brilhante.
448
Apesar de serem ainda comuns nas primeiras décadas do século
XX os registros de doações de dotes nos testamentos, a confirmação desses
dotes não parecia uma preocupação imediata dos noivos. Segundo os dados
da Secretaria da Junta Comercial do Maranhão, desde o final do XIX era
registrado um número insignificante de confirmação de dotes. Entre 1892 e
1900, por exemplo, encontramos registradas duas escrituras de confirmação
de dotes e onze escrituras antenupciais de não comunhão de bens. Quanto
aos casamentos oficiais, somente no ano de 1900 foram registrados em São
Luís e vilas vizinhas, 87 casamentos, cerca de 90% entre solteiros,
adotando o regime da comunhão de bens, apenas dois com contrato
antenupcial com separação de bens e nenhum pelo regime dotal.
Apesar da prática do dote ainda figurar em alguns arranjos
matrimoniais e ter amparo jurídico, de acordo com o Código Civil de 1916,
crescia a oposição a essa prática, significando também que as famílias
estavam perdendo o controle sobre o futuro de suas filhas, onde o padrão de
vida delas dependia cada vez mais de suas qualidades pessoais, como a
educação, para arranjar um “bom partido”, e menos do dote material. “O novo
interesse pela educação feminina era um tipo de proteção contra as
conseqüências incertas do casamento sem dote; educar para torná-las mais
atraentes como noivas; a educação da mulher tornou-se um substituto do
dote” (NAZZARI, 2001, p. 256).
Por outro lado, a permanência do dote nas relações matrimoniais
era uma prova do recorte de classe no tratamento de gênero na sociedade
capitalista, pois ao mesmo tempo em que empurrava milhares de mulheres
pobres para o mercado de trabalho, nas fábricas, setor de serviços e até no
magistério, com salários extremamente baixos, mantinha mecanismos para
assegurar a proteção financeira das mulheres das camadas médias e altas,
dificultando assim, o possível abandono ou negligência das
atribuições de esposa e mãe, garantindo a subsistência dessas mulheres por
meio do casamento legal.
A educação superior feminina era incentivada, nesses casos,
como adorno dos 'dotes naturais', e não como instrumento de emancipação.
As mulheres de classe média se situavam entre os discursos que apontavam
a educação como seu novo dote, para 'arranjar marido' ou para substituí-lo
em caso de necessidade. Já as mulheres pobres, precisavam lutar sozinhas
pelo seu “dote de cada dia”, pois sua sobrevivência dependia do seu trabalho.
_____________________________________________________________
28
Testamento de José Fernandes dos Santos, de 22/06/1926. Termo de Abertura do dito testamento, de
13/03/1940.
29
Secretaria da Junta Comercial do Maranhão, em 31.12.1892, 22.01.1897; 31.12.1897 e 09.01.1900.
449
REFERÊNCIAS
BESSE, Susan K. Modernizando a Desigualdade: reestruturação da
ideologia de gênero no Brasil. 1914-1940. São Paulo: Edusp, 1999.
BUITONI, Dulcília Helena Schroeder. Mulher de Papel: a representação da
mulher na imprensa feminina brasileira. São Paulo: Edições Loyola, 1981.
HAHNER, June E. Emancipação do Sexo Feminino: a luta pelos direitos da
mulher no Brasil, 1850-1940.Florianópolis: Editora Mulheres, 2003.
_____________. A Mulher no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1978.
LEWIN, Linda. Política e Parentela na Paraíba. Rio de Janeiro: editora
Record, s/d.
NAZZARI, Muriel. O Desaparecimento do Dote: mulheres, família e
mudança social em São Paulo – Brasil, 1600-1900. São Paulo: Companhia
das Letras, 2001.
OSÓRIO, Ana de Castro. Às Mulheres Portuguesas. Livraria Editora Viúva
Tavares Cardoso, 1905.
RÀO, Vicente. Da Capacidade Civil da Mulher Casada: estudo teórico –
prático segundo o código civil. São Paulo: Livraria Acadêmica Saraiva & C.
Editores, 1922.
REVISTA A MENSAGEIRA. Direitos da Mulher. 15.01.1900, n. 36.
REVISTA FEMININA. Da Capacidade Civil da Mulher Casada, de agosto
de 1922, n. 99,
REVISTA VIDA DOMÉSTICA. O Conceito Republicano da Família e do
Lar, novembro de 1928.
REVISTA VIDA DOMÉSTICA. Direitos da Mulher. Setembro de 1925, n. 92.
SINEAU, Mariette. Direito e Democracia. In. DUBY, Georges; PERROT,
Michelle. História das Mulheres no Ocidente. Lisboa: Edições
Afrontamento, 1991. p. 559.
451
LEITURAS DE JORNAIS E ROMANCES: relações de gênero em tempos de
exceção
Andréa Bandeira
“E Deus disse: que haja luz”.
Homme et femme sous le paraplue.
“A relação do homem com a mulher é a relação mais
natural do homem com o outro homem”.
A proposta deste artigo é analisar, a partir da abordagem de
Gênero, como as publicações em jornais e romances reafirmaram uma
identidade de gênero para o ser mulher. Entendemos o discurso como um
móvel reprodutor das relações sociais e a linguagem como símbolo, forma de
contato humano (intercessão da) e modelo de representação da realidade, o
que possibilita a desconstrução da naturalização da inferioridade e
consequente subordinação social da mulher em relação ao homem. Esta é
uma imagem recorrente no discurso prevalente em nossa sociedade, onde
observa, ainda, que a masculinização ideal da mulher em tempos de
exceção, mais que transformá-las em exércitos de reserva, autoriza o lugar
hegemônico do masculino e a manutenção da cultura patriarcal.
Inicialmente, importa dizer que o debate aqui proposto nasceu de
uma questão que reporta a uma característica naturalizada comumente à
mulher paraibana – Mulher Macho.
E diante a certeza de não se tratar de um elogio ao feminino, mas
antes uma reafirmação da sua negação ou negatividade, posto que a
identidade prima e única é a masculina, este artigo inicia a discussão
apresentando um referencial teórico que possibilitará compreender as
origens do epíteto. Depois, observar que a construção dessa imagem da
masculinização ideal da mulher é naturalizada no discurso literário. Neste
recorte, valoramos os discursos jornalísticos e romanescos.
Para iniciar o debate, uma imagem logo se estabeleceu: o estudo
de Gustave Caillebotte para o quadro impressionista Rue Paris: Temps de
Pluie, 1877. Especificamente, o excerto talvez até mais famoso que a obra, o
_____________________________________________________________
1
Professora Assistente na Universidade de Pernambuco – UPE e doutoranda em História na Universidade
Federal da Bahia – UFBA, sob a orientação da Prof.a Lina Maria Brandão de Aras, desenvolve pesquisa na
área de Resistência Feminina no Período Militar no Brasil. E-mail: andreabasa@uol.com.br
2
Genesis, 1:3.
3
Esboço e excerto da obra Rue Paris: Temps de Pluie, 1877. Estudo de Gustave Caillebotte (1848 – 1898),
ilustração em PERROT, Michelle. Mulheres Públicas. São Paulo: UNESP, 1998, 6.
4
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Sagrada Família ou Crítica da Crítica Crítica contra Bruno Bauer e
seus Seguidores (1844). São Paulo: Moraes, 1987. Podendo-se também dizer: a relação do homem com a
mulher é a ralação mais natural da mulher com a outra mulher, do outro homem com a outra mulher, do
outro homem com o outro homem, ampliando ab ovo ad infinitum o direito à diferença com direito a
igualdade.
453
estudo feito pelo pintor e intitulado Homme et femme sous le paraplue. Nunca
uma figura foi, tantas vezes, exemplo das razões dos embates feministas: a
inexistência simbólica das mulheres. A partir desta imagem, produzida no
último quartel do século XIX, na França, concomitantemente a criação de
uma identidade brasileira, pretende-se continuar o caminho do deslocamento
da imagem para a historicização da identidade nordestina.
Porém, antes será necessário situar o referencial teórico para
continuar a análise da figura de linguagem, Mulher Macho, e daí para a
observação da literatura como representativa e reprodutora de uma
identidade de Gênero para o ser mulher. Uma identidade que ultrapassa o
espaço e a cultura nordestina. Esse deslocamento espacial reitera a
afirmação da existência de uma sujeita mulher.
Em seguida, apresentar o conceito e iniciar a análise, partindo da
imagem, passando pela frase, desconstruindo-a e retornando à imagem,
estabelecendo um novo padrão de olhar sobre o papel social de mulheres e
homens ao longo da história, desde as últimas décadas dos oitocentos
quando se fundou a identidade do homem macho nordestino, primeira idéia
de uma civilização brasileira per si. Sem olvidar que se escreve sobre o
passado porque se vive no seu futuro e se sabe da sua conseqüência. No
presente, debruça-se sobre as experiências alheias que dizem sobre os
humanos (sobre nós) e dos humanos (de nós) se falam segredos que muitas
vezes se recusam (nós recusamos). E se recusam (nós recusamos) porque a
fala esconde relações de experiências humanas, apenas racionalizadas nos
esquemas teóricos. Plagiando Marx, fala-se e não se sabe muito do que diz
na fala. E mesmo os esquemas mentais têm um lugar de nascimento que
exige um contexto próprio. Assim foi com a abordagem de Gênero, que se
utiliza para discutir a questão apresentada.
Nessa abordagem, o Gênero é o resultado das formulações pós-
modernas que reconhecem o sujeito – abrangente, mas não mais universal,
no sentido moderno de universal – como resultado da soma das suas muitas
participações nas diversas relações constituídas socialmente. Observa,
ainda, que a realidade dessas relações é compreendida à luz do discurso. Um
discurso que mesmo arbitrário não é metafísico, pois foi gerado no espaço-
tempo da matéria, pelo Ser-no-mundo. E, em sendo o discurso uma
compreensão arbitrária que depende dos vários interesses encadeados
dialeticamente – as muitas relações das quais esse sujeito participa – é o
resultado interessado dessas relações. Assim, cria imagens próprias para
reproduzir não apenas as cadeias de relações, mas, também, o próprio
discurso. Este conceito observa que a economia política do sexo faz parte de
sistemas sociais totais, sempre costurados em arranjos econômicos e
políticos, consequentemente a interdependência mútua da sexualidade, da
economia e da política, sem subestimar a total significação de cada uma na
sociedade humana. Uma análise retrospectiva das várias correntes de
pensamento está no cerne da construção da abordagem de Gênero. Desde
454
as teorias marxistas, passando pelos estudos estruturais do parentesco de
Lévi-Strauss, a contribuição de Michel Foucault, a teoria da linguagem de
Jacques Lacan e a definição de desconstrução de Jacques Derrida,
importante por desprender as oposições binárias do lugar da realidade
própria das coisas. Joan Scott conclui e conceitua: “Gênero é um elemento
constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os
sexos, e o Gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder”.
Além disso, a obra de Durval Muniz de Albuquerque Júnior,
Nordestino, uma Invenção do Falo, contribui para o estudo sobre a
construção subjetiva do Nordeste e do nordestino, cabra macho, na virada do
século XIX e que apenas se estabeleceu em meados dos anos 1950, como
resultado de um contexto de crises e decadência de uma elite agrária. E como
bem ressalta o autor, até as mulheres nordestinas receberam a alcunha de
macho, sendo este um adjetivo justificado pelo caráter bravo, resistente e
emotivo desse povo. Um povo que sobreviveu porque manteve uma luta
árdua com o espaço geográfico adusto do sertão. Um povo que nasceu de um
discurso operado num intricado entendimento eugênico, racial,
antropológico, sociológico, etnográfico e histórico. Nesse ecletismo teórico, o
homem sertanejo e nordestino, cabra macho, é fruto do seu meio, de uma
evolução das raças – em que o nordestino sertanejo mistura o melhor do
sangue de três “raças” –, adaptado e abrasado pelo sol na sua história de
sobrevivência possível pelos elos de solidariedade próprios da personalidade
do mestiço nordestino. O autor continua afirmando que somente a ausência
do estado federal e a influência de grupos estranhos (à natureza e ao caráter
desse homem nativo) e estrangeiros (os paulistas) explicam a má formação
que degenerou em uma história de messianismos e banditismos, resultado
de uma surpreendente perda do “sentido vital de realidade” e distanciamento
de uma longa hereditariedade cultural.
Pensar o homem cabra macho é pensar a “casa grande” que
recolheu todos sob seu teto. O homem nordestino é antes de tudo um
patriarca, um pai macio, por isso protetor, mas também forte, por isso severo.
Todos, na sua cerca/cinto, lhes rendem votos e vivem do/no seu curral sem
redil, como as cabras robustas acostumadas aos desertos, mansas vagam
livres até os cintos/cercas. Pensar o homem nordestino é pensar o homem
sertanejo, numa família sertaneja, em que todos que integram a “casa” é feita
desta mesma “fibra” forte e macia, inclusive as mulheres. Elas são as cabras
machos, são aquelas acostumadas às lidas, aos fardos, à violência
_____________________________________________________________
5
PERROT, Michelle. Mulheres Públicas. São Paulo: UNESP, 1998, 6.
6
ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz. Nordestino: uma invenção do falo. Uma história do gênero masculino
(Nordeste – 190/1940). Maceió: Catavento, 2003, passim.
7
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006, passim.
8
“O homem não sabe que faz história”. MARX, Karl. O Dezoito Brumário e Cartas a Kugelmann. São Paulo:
Paz e Terra, 1997, 21.
9
MARX, Karl. Manuscritos Econômico-filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1989; A Ideologia Alemã. São Paulo:
Boitempo, 2007.
455
nordestina de lutar cotidianamente pela liberdade, desbravadoras, guerreiras
e devotas, quando não santas e piedosas. Essas mulheres são homens nas
ausências dos homens da casa grande. E elas não podem ser outra coisa ou
não gerariam outros homens cabras machos.
Gerar os filhos dos homens é o “destino” das mulheres e disso
resultou na sua subordinação social com o advento da civilização fundada na
propriedade privada dos meios de subsistência e, depois, de produção
desses meios de subsistência. Essa tese aceita, principalmente entre as
teóricas marxistas, explica a partir de um referencial materialista-histórico,
como o conhecimento sobre a concepção e reprodução humana foram
utilizadas para regular os lugares dos sexos nas sociedades. O poder
decorrente da propriedade sobre a prole resultou na origem da invenção do
falo como representação desse poder. Em estudo etnográfico, intitulado A
Vida Sexual dos Selvagens, Bronislaw Malinowski apresenta dados de
grupos humanos que, ignorando a participação masculina na concepção, já
adotaram o pátrio poder sobre os filhos constituídos em alianças de
casamento. Essas sociedades quando adotaram formas econômicas
fundadas na propriedade privada dos meios de subsistência e reprodução
dos meios de subsistência estabeleceram diferenças de poder entre os
sexos, apropriando a força de trabalho e reservando-a ao masculino. Uma
apropriação da prole racionalizada e explicada pela adoção de divindades de
caráter masculino. Na cultura mística desses povos, os deuses enviavam
filhos aos homens como troféus pelas suas vitórias através das suas
esposas. Do que se pode concluir que a submissão das mulheres pode ser/é
anterior ao conhecimento da participação do homem na reprodução da
espécie. Importa mais saber que essa mística representante da submissão
feminina antes de tudo integra a economia baseada na propriedade privada,
reafirmando a teoria defendidas por Friedrich Engels na obra As Origens da
Família, da Propriedade Privada e do Estado, materializando e historicizando
a teoria do patriarcado.
A invenção do Falo, o falo como representação de poder, importa
_____________________________________________________________
10
LÉVI-STRAUSS, Claude. As Estruturas Elementares do Parentesco. Petrópolis, SP: Vozes, 2008.
11
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
12
Sobre as contribuições dos estudos de Lacan e Derrida, ver: RUBIN, Gaule. “O Tráfico de Mulheres: notas
sobre a 'economia política' do sexo”. Recife: SOS Corpo, 1993 (“The traffic of Women: Notes on the
'Political Economy' of Sex”, New York, 1975); SCOTT, Joan. “Gênero: uma categoria útil para análise
histórica”. Recife: SOS Corpo, 1991; KALIMEROS. A Mulher: na psicanálise e na arte. Rio de Janeiro:
Conta Capa, 1995.
13
SCOTT, Joan. “Gênero: uma categoria útil para análise histórica”. Recife: SOS Corpo, 1991, 7.
14
Ocorre uma verdadeira sobreposição de imagens e enunciados extraídos de discursos de matrizes
teóricas diversas para compor o tipo regional nordestino, que aglutina desde percepções de base racista,
passando por imagens de fundo mesológico, até imagens de tipos sociológica e historicamente definido.
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Nordestino: uma invenção do falo – uma história do gênero
masculino (Nordeste – 1920/1940). Maceió-AL: Catavento, 2003, 188.
15
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Nordestino: uma invenção do falo – uma história do gênero
masculino (Nordeste – 1920/1940). Maceió-AL: Catavento, 2003, 191.
456
o estabelecimento das diferenças entre os sexos e a consequente
subordinação da mulher ao masculino. As teorias psicanalíticas colaboram
para uma compreensão da reprodução das identidades dos sujeitos ao
entender o Simbolismo do Falo, o Falo como o lugar de poder de que se quer
ter propriedade, mas não explicam suas origens. Os conflitos entre os sexos
que se reproduzem no consciente coletivo são o resultado das máscaras das
lutas pelo poder que se produzem no inconsciente coletivo. Jacques Lacan
explica a produção e a reprodução de identidade do sujeito a partir da
linguagem e da representação do sujeito através do símbolo. Apenas a teoria
marxista permite a formulação de um modelo de compreensão da realidade
que perceba a complexidade da produção das relações materiais e a
reprodução dessas relações, integrando as subjetividades de classe aos
entendimentos do Gênero – este buscou na Teoria do Parentesco de Lévi-
Strauss o modelo para pensar a importância das relações étnicas na
reprodução das sociedades, bem como nas relações entre os sexos, as
gêneses das diferenças que se mantém entre eles e as razões para
manutenção dessas desigualdades.
A diferença naturalizada no discurso, então, reafirma a
construção de uma identidade que exclui outras identidades. Na Antiguidade,
Aristóteles afirmou na sua Poética que as personagens femininas no teatro
não poderiam ser ou ter atitudes viris, porque deveriam representar a
realidade daquela sociedade, na qual as mulheres porque não possuíam
alma, eram imperfeitas e, por isso, necessariamente, submissas aos
homens. Tal afirmativa do filósofo ajuda a compreender que o Ser é uma
invenção social que deve solucionar os conflitos resultantes do lugar de
propriedade estabelecido na constituição da desigualdade fundada na
economia de subsistência baseada na propriedade privada dos seus meios
de produção. O abismo entre o Público e o Privado, a divisão sexual do
trabalho e a opressão do sexo feminino (gerador da vida) servem para
reprodução do produtor da mercadoria primária: a força de trabalho, os filhos,
e para reprodução da força de trabalho, as filhas, reprodutoras da vida.
Hannah Arendt, na sua obra A Condição Humana, adverte para a dicotomia
dos lugares próprios a cada sexo: a produção e a reprodução da propriedade,
lugar do público, do Ser; reprodução da força de trabalho, da vida, lugar do
privado, do doméstico, do outro, do Não-ser.
Tais entendimentos resultam na crença num essencialismo
próprio do humano, na naturalização dos papeis sociais dos sexos, e na
representação imagética e lingüística dos lugares de poder ocupados por
homens e mulheres na hierarquia social, primeira forma de diferenciação
_____________________________________________________________
16
O homem sertanejo e nordestino foi comparado à fibra do algodão mocó, da melhor qualidade e da mais
resistente fibra de todas as Américas. A Voz da Manhã apud Idem, 187.
17
MALINOWSKI, Bronislaw. A Vida Sexual dos Selvagens. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983, passim.
18
ENGELS, Friedrich. As Origens da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1995, passim.
457
entre os sexos e de divisão de poder. A exemplo do significado de Ser-
homem, Ter-poder, Ser-proprietário, muito bem representado no grito de He-
man, herói de um desenho infantil televisivo, “I have a power!”. A dicotomia
presente nas contradições próprias do sistema revela o significado de Não-
ser-homem e Ser-o-outro como característica inata do feminino, isto é Ser-
Mulher (!?).
Mulher macho. O que é Ser Macho? Segundo Durval Muniz de
Albuquerque Júnior, em sua obra já citada, ser macho na sociedade
nordestina qualifica o masculino ao lugar de poder na sociedade burguesa em
avanço para o modelo de propriedade nas colônias abrasadas pelo sol,
porque o torna hábil para o desenvolvimento do sistema de mercadoria sob a
linha do Equador: o caráter bravo, resistente e emotivo desse homem, fruto
do seu meio, de uma evolução das raças – em que mistura o melhor do
sangue de três “raças” –, adaptado e “soleado” na sua história de
sobrevivência só é possível porque aliado pelos elos de solidariedade
próprios da personalidade do mestiço nordestino. Uma marca inerente de
“cordialidade”, que nem mesmo o pensamento moderno mais pragmático
conseguiu negar como sendo do caráter da identidade do povo brasileiro.
Em situações adversas, a sociedade pode aceitar uma revisão do
papel social da mulher, desde que se afirme e reconheça o deslocamento
provisório. Um exemplo, entre outros similares, que não destoa, portanto, dos
ideais propostos pela sociedade para a mulher e colabora com o
fortalecimento da cultura patriarcal. Nessa tradição, a mulher apenas se
coloca como reprodutora da natureza humana e, quando necessário, dos
bens de produção, sendo, então, inserida na economia formal, mas sempre
de modo indireto e inconstante, apenas quando as estratégias para
manutenção do sistema exigem o seu Exército de Reserva.
A revisão do papel social de homens e mulheres foi narrada e ao
se observar a literatura do período a partir do último quartel do século XIX aos
anos de 1940, desde os romances até as reportagens que circulavam em
lugares distintos do mundo, encontraremos imagens construídas de
mulheres e homens associados a um contexto de avanço da industrialização
e da crescente urbanização, com seus ares cosmopolitas e progressistas.
Homens e mulheres que a partir de estratégias diversas vivenciaram os
novos tempos e experimentaram esses momentos de transição e de
deslocamento dos valores.
Através dos textos jornalísticos e dos retratos fotográficos, sabe-
se que Maria Bonita, no sertão nordestino, e Amélia Robles, na área rural
mexicana, a partir de leituras distintas do papel feminino em meio aos valores
masculinos, atuaram de modos diversos ao participarem do mundo público,
mas as duas reafirmaram a inversão dos lugares de gênero que ocuparam,
refazendo imagens do feminino e do masculino arraigadas culturalmente nas
sociedades em que estavam inseridas. Os discursos construídos e os
“retratos de estúdio procuravam estabelecer a identidade social do indivíduo
458
fotografado segundo um código visual de elegância” admitidos, conclamados
e usados por essas sujeitas, bem como pelos seus redatores e leitores.
A baiana Maria Déa ou Maria Gomes de Oliveira, a Maria Bonita,
em 1929, aos 18 anos de idade, integrou um grupo cangaceiro como esposa
do mito Virgulino Ferreira da Silva, nascido pernambucano de Serra Talhada.
Foi a primeira mulher participante do banditismo, alterando o cotidiano rude
da peleja com o colorido das roupas e maquilagens, introduzindo relações
domésticas na vida pública da guerrilha, reforçando o papel de coronel
pretendido por Lampião. Nas fotos, aparece fardada, armada e bem
penteada. Era apreciada na sua beleza – tinha o porte baixinho, era
rechonchuda, com olhos e cabelos castanhos – e também na sua valentia e
intolerância nos julgamentos e condenações, quando as mulheres eram
consideradas “naturalmente” benevolentes e melindrosas. Morreu lutando e
foi decapitada como exemplo na Serra dos Angicos, em Sergipe, no ano de
1938. Com Lampião, teve uma filha, deixada muito cedo com a avó.
Amélia Robles, por sua vez, participou no exército camponês em
plena guerra civil mexicana, assumindo mais que o papel de soldado,
transvestindo-se de homem nesse processo,
um perfeito janota: terno escuro, camisa branca, gravata,
chapéu preto de aba larga, sapatos de pelica e nesga de lenço branco no
bolso do casaco. De pé e com um charuto numa mão, a outra posta sobre
o revólver como para fazer ressaltar a arma que levava dependurada no
coldre da cintura.
Amélia Robles, nascida em 3 de novembro de 1889, no povoado de
Xochipala, no estado de Guerrero, registrada e batizada Malaquias, segundo
o calendário religioso, foi reconhecida uma menina no seu primeiro
documento. Em casa, chamada pelo nome de Amélia, cresceu cumprindo os
rituais da época, fazendo os serviços domésticos e integrando uma
congregação católica responsável por encaminhar espiritualmente as
jonvens, Filhas de Maria. O que não a impediu de aprender a domar cavalos e
manejar as armas, habilidades reconhecidas e necessárias no momento em
que resolveu torna-se soldadera. Zapatista, lutou sob as ordens de vários
chefes por mais de cinco anos, até que a decadência do movimento e a morte
_____________________________________________________________
19
ARISTÓTELES, “Caracteres, Verossimilhança e Necessidade. Deus ex machina”. Ética à Nicômaco;
Poética/ Aristóteles, São Paulo: Nova Cultural, 1987, passim.
20
ARENDT, Hanah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000, passim.
21
Tradução livre: Eu [Ele-homem] tenho a força! He-Man é o personagem principal da série de brinquedos
Masters of the Universe, lançados pela americana Indústria de Brinquedos Mattel, em 1983, animados pela
produtora Filmation Studios, e desenhados em gibi pela DC Comics. O seriado foi popularizado no Brasil
através da Rede Globo de Televisão, na sua programação infantil, pela Editora Abril, distribuidora dos gibis,
e pela Mesbla, comerciante de brinquedos, entre os anos 1983 e 1985. E ainda hoje é transmitido em rede
particular de televisão. He-Man pretende ser a representação do homem forte, masculino e sexualmente
viril. Personagens femininas secundárias foram criadas paralelamente, sempre subordinadas ao herói, a
exemplo de She-Ra.
459
de Zapata a inclinaram por outros rumos dentro e fora das batalhas.
Na maturidade teve o reconhecimento de sua identidade masculina, Amélio
Malaquias Robles Ávila, a partir dos documentos que atestaram a sua
participação em diversos grupos, tais como: filiação ao Partido Socialista de
Guerrero (1934), delegado em Xochipala da Liga Central das Comunidades
Agrárias (1945) e membro da Associação Pecuarisra de Zumpango (1956 e
1958), entre outros, incluindo um exame médico atestando a sua virilidade,
pelo doutor Pedro González Peña. Foi entrevistada em vários momentos de
sua vida, por jornais locais e estrangeiros, e sua figura foi avaliada por
jornalistas homens e mulheres de modos diversos, sempre sensacionalistas,
dos quais são exemplos dois episódios: Em El Universal, talvez o jornal de
maior circulação na década de 1920, na cidade do México, quando a figura de
Amélia Robles foi descoberta e sua identidade feminina estampada, mas nem
por isso menos valorizada a virilidade que imprimia na foto acompanhando a
entrevista. E, décadas mais tarde, nos anos de 1940, outra vez entrevistada
por Gertrude Duby, jornalista suíça exilada no México e militante socialista.
Nessa entrevista, a figura de Amélia Robles sofre um giro completo e
transforma-se em memória das mulheres que combateram na Revolução,
referindo-se a Robles como “à coronela Amélia Robles no feminino”.
Observa-se, assim, como os usos da imagem “reproduzem a polaridade de
gênero dos papéis feminino e masculino” [e como] “a história de Robles ao
mesmo tempo subverte e fortalece as normas culturais de gênero”. É possível
também a partir dessa experiência perceber os usos das falas para a
construção e reconstrução das identidades, inclusive de gênero, e como se
forjam historicamente no enfrentamento de criar um sentido e um re-
alinhamento social necessário.
Maria Bonita e Amélia Robles ocuparam o vazio deixado pelo
masculino em situações adversas e foram retratadas de formas distintas
pelos grupos de interesse. As fotos produzidas em estúdio ou fora deles são
_____________________________________________________________
22
Durval Muniz de Albuquerque Júnior. Nordestino, uma invenção do falo. Op. cit., passim.
23
No capítulo em que analisa a obra Raízes do Brasil, de Sergio Buarque de Holanda, José Carlos Reis
observa essa cordialidade se deslocando do rural (onde ela é a expressão da igualdade entre as elites e
também a manifestação das formas paternalistas e de dominação entre os grupos sociais
hierarquicamente estabelecidos; fazendo-se e se reproduzindo nos bastidores, para poucos, em que ela é
sinônima de “ausência de espaço público”, de regalia) para uma afetividade urbana (dominada pelas
regras sociais; em que uma revolução lenta liquidaria as desigualdades) que possibilitaria a inserção das
camadas menos favorecidas: “No Brasil, são inconsistentes os preceitos de raça e cor, recusamos toda
hierarquia muito rígida, somos cada vez mais urbanos e rejeitamos a violência. Estes valores cordiais são
também democráticos. Poderia haver uma articulação entre sentimentos do homem cordial e as idéias da
democracia liberal. Não podemos trocar simplesmente o nosso ser cordial por esquematismos rígidos e
impessoais. Não podemos ignorar o nosso ritmo espontâneo próprio. O que não podemos fazer é nos
abandonar a Ele. [...] Nossa realidade contraditória precisa ser incluída de alguma forma na construção de
nossa sociedade democrática”. Apud REIS, José Carlos. As Identidades do Brasil: de Varnhagem a FHC.
Rio de Janeiro: FGV, 2000, 138.
24
BANDEIRA, Andréa. “O Sagrado”. In: Gênero & História. Cadernos de História. Ano 1. Nº 1. Recife:
Universitária UFPE, 2002, 69-82; As Beatas de Ibiapina: do mito à narrativa histórica (1860-1883).
Dissertação de História. Recife: UFPE, 2003, passim.
460
as marcas dessas sujeitas, que usaram as tecnologias possíveis para
divulgar uma imagem, o retrato fotográfico: “Os elementos formais da
fotografia – enquadramento, iluminação uniforme, entorno e, sobretudo, a
pose contida e serena do sujeito colocado no centro da cenografia – se
ajustam às convenções do retrato burguês, em que a pessoa fotografada usa
seu melhor traje e posa com decoro”. Reconstruíram os modelos de
feminilidade a partir das brechas que favoreceram suas inserções no mundo
do público.
No romance, as personagens Luzia-homem e Capitu permitem
notar as contradições dos discursos que socializaram a nova imagem da
mulher no processo de da industrialização brasileira.
Luzia-homem, na obra-título de Domingos Olímpio, é o retrato de
uma mulher nordestina, do interior do Ceará, que no final dos anos 1870,
retirante da seca, necessita sobreviver num meio hostil a sua condição de
mulher e a sua opção sexual, que, em princípio, é apenas implícita e assim
continua, apesar de um contraído casamento que não se consuma pelo fim
dramático escolhido pelo escritor. Mulher robusta, acostumada ao trabalho
braçal, fazia as tarefas ditas masculinas, e por isso, a sua alcunha. Descrita
como recatada e silenciosa, uma conduta própria para a feminina, usava
desses atributos para recusar o amor dos homens que por ela se
apaixonavam e tentavam dela se aproximar, inclusive à força, pelo soldado
Capriuna; o leal e respeitoso Alexandre, de quem ela aceita apenas a relação
de amizade e ajuda mútua. Luzia não se interessa por esses amores. No fim
do romance, o poeta formado no determinismo característico da literatura
Romântica e Naturalista, decide tragicamente pela solidão humana ou por
manter o disfarce da conduta sexual da personagem.
Capitu é uma mulher subentendida na fala da figura dramática de
Bentinho. Um homem com uma curiosa percepção da realidade. A
personagem feminina não existe senão através da palavra e do juízo do seu
narrador/personagem. Machado de Assis narra a estória da história da vida
contada por Bentinho. Machado de Assis não sabe quem é Capitu e ela é
apenas secundária na sua ficção, intitulada Dom Casmurro. Quem é Capitu?
Ela é a mulher inventada por Bentinho e existe no entrelaçamento das duas
vidas. Na ausência de ser a mulher amada e odiada pelo amante e esposo,
ela não existe. E, no entanto, se torna fundamental, porque, como afirma o
personagem no inicio do conto, ele vai narrar o seu drama e seu drama é a sua
_____________________________________________________________
25
CANO. Gabriela. “Amélio Robles, Andar de Soldado Velho: fotografia e masculinidade na Revolução
Mexicana”. Cadernos Pagu. N. 22. Campinas-SP: Unicamp, março de 2004, 115-150.
26
Idem.
27
Segundo Gabriela Cano, a identidade feminina de Amélia Robles não era um segredo e ao longo da sua
vida ela foi tratada ora assumindo sua identidade masculina, ora assumindo sua identidade feminina,
sendo então chamada de coronela Robles. CANO. Gabriela. “Amélio Robles, Andar de Soldado Velho:
fotografia e masculinidade na Revolução Mexicana”. Cadernos Pagu. N. 22. Campinas-SP: Unicamp,
março de 2004, 115-150.
Idem.
461
vida e a sua vida começa quando ele encontra e se encanta com os olhos, o
olhar oblíquo, de Capitu. Ela desliza nos seus sonhos entre a virtude e o
pecado, a crueldade e a ingenuidade. A obra machadiana, publicada em 1899
é um conto que utiliza a metalinguagem para desenvolver uma perspectiva
subjetiva da realidade da sociedade carioca do fim do século, construída
numa narrativa fantástica e romântica, onde, ainda assim, predomina o
determinismo próprio do realismo característico da obra machadiana. Duas
imagens de ser feminina num mundo onde impera o masculino e o masculino
tem a fala.
Amélia Robles, Luzia-homem, Capitu, Maria Bonita, todas as
mulheres, elas são adivinhadas. Descritas, sem falas, são inventadas.
Lembradas, são ignoradas. É mister historicizar as mulheres. Buscar as
fontes construídas por elas sobre si, e ainda assim, serão transversadas. Mas
quem existe per si? Quem é? Que modelo ou olhar esconde-se do
demasiadamente humano? Mas como também garantir que elas se
escondem nas epistemologias existentes, que elas não reconhecem a si?
Desde quando homens e mulheres não participam sob o mesmo
sol de primavera? Mas, este é um outro diálogo.
A proposta-resposta desse artigo foi a desconstrução do papel
subserviente da mulher na atual sociedade, observando a importância da
linguagem na manutenção das diferenças entre os sexos e sua implicação
ideológica, e propor uma nova visão do papel social feminino, passo para a
conclusão do projeto de criar uma identidade positiva para o Ser Mulher. A
desconstrução da naturalização da inferioridade e consequente
subordinação social da mulher em relação ao homem resultará em relações
de equidade entre homens e mulheres e o fim de uma era patriarcal.
Assim, entender a alcunha Mulher macho como uma
representação da inexistência do feminino na nossa sociedade varonil e
misógina é uma forma de identificar os modos como se conservam o papel
superior e a identidade única do masculino e re-avaliar as transversalidades
discursivas.
Na literatura, como exposto, nota-se que os valores de gênero
constroem identidades e reproduzem as relações entre os humanos. Pois,
estabelecem um senso de desenho de realidade transposta para a escrita e ai
naturalizada. Ao analisarmos essa literatura, oportunizamos a compreensão
de como os referenciais teóricos equacionam uma mentalidade formal sobre
os valores de Gênero e os seus usos. Bem como, faz notar a experiência
corrente na sociedade, para que possamos interferir no processo de
transformação da realidade. É, também, uma forma de iniciar uma prática de
fala responsável, porque autocrítica e preocupada em importar a equidade
entre os sexos.
_____________________________________________________________
28
Idem.
29
Idem.
30
Idem.
462
BIBLIOGRAFIA
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história do gênero masculino (Nordeste – 190/1940). Maceió: Catavento,
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464
O RITUAL DA MOÇA NOVA NA CULTURA SATERÉ-MAWÉ
Solange Pereira do Nascimento
Iraildes Caldas Torres
Os Mawé ou Sateré-Mawé são um povo indígena heterogêneo
originado do tronco Tupi, pertencente à etnia Tupi-Guarani. Os estudos de
Yamã (2007, p.15) dão conta de que esses indígenas,
São trilingues: falam o idioma nacional Sateré, o português (implantado
pela sociedade dominante), além da língua geral, o Nheengatú, falada por
parte dessa sociedade que, por estar há mais de trezentos anos em
contato com os brancos, atualmente vive em estado de integração, o que
lhe tirou muito de sua tradição.
Os Mawé estão organizados e divididos em cinco clãs tribais:
Sateré, o clã principal e detentor dos direitos políticos do povo; Napu'wany'ã,
o clã agricultor; Koreriwá, o clã caçador; Watunriá, o clã pescador e Hwariá,
o clã guerreiro. Além desses cinco há outros clãs menos importantes
pertencentes a cada clã principal: o Awi'á, clã das abelhas, o Wasaí, o Ga'ap,
o Mói, o Waraná, o Maraguá (independente) e o Hamaut.
O nome composto da etnia é carregado de significado assim
como todos os outros elementos da cultura Sateré-Mawé são densos de
simbologia. O primeiro nome Sateré é uma homenagem aos antepassados
deste povo, precisamente ao clã dos tuxauas considerado de alta estirpe
entre o seu povo. O segundo nome, mawé, é uma referência ao povo simples
da etnia (estrato subalternizado). Para Uggé (1991), este é o nome mais
completo da etnia na medida em que toma como símbolo um tipo de papagaio
falante existente na região. Esta simbologia acabou dando um tom popular à
denominação da etnia.
De acordo com a consulta aos códices existentes nos arquivos
das Bibliotecas Públicas do Pará e do Amazonas, não há unanimidade em
relação ao termo mawé. Isto vem desde o início da conquista
espiritual da Amazônia, dos descimentos e amarrações, relativamente ao
nome dos indígenas a que nos referimos (PEREIRA, 2003). Os vários nomes
que esta etnia recebeu foram os seguintes: Mooz, Mabué, Mangués,
Manguês, Jaquezes, Maguases, Mahués, Magués, Mauris, Mawés,
Maraguá, Mahué e Magueses. Um Pajé indígena ouvido nesta pesquisa
considera que,
O nome Mawé foi dado por um missionário que entrou na reserva para
catequizar os índios. Falavam que os missionários pegavam as crianças e
jogavam no rio. Então, os tuxauas atacaram os luzeiros (missionários)
numa praia de Ponta Alegre. O único padre que restou (do ataque),
_____________________________________________________________
1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia da Universidade Federal
do Amazonas
2
Professora da Universidade Federal do Amazonas (PPGSCA) e Doutora em Ciências Sociais pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
465
indignado com a barbárie cometida pelos índios, lançou uma praga que teria
firmado o nome da etnia: mau és, mau foste, mau serás.(Sahu, Ismael
Freitas, entrevista/2008).
Os Sateré- Mawé habitavam uma larga faixa de fronteira situada
entre os Estados do Amazonas e do Pará, numa região conhecida como
Mawézia, a pátria dos Mawé. Essa região abrange os municípios de Parintins,
Barreirinha, Boa Vista do Ramos e Maués, no Amazonas e Itaituba e Aveiro,
no Pará. Localiza-se a leste da segunda maior ilha fluvial do mundo, a ilha
Tupinambarana, berço da civilização Mawé. Atualmente os Mawé ocupam
somente um terço da Área Indígena Andirá-Marau, nos confins do território
original.
Ao todo, formam uma população de 12 mil pessoas, distribuídas
dentro e fora da fronteira de seu território. Muitos vivem em cidades vizinhas,
como Parintins, Maués e também, em Manaus.
467
tinha onze anos. Eu menstruei pela primeira vez né. Eu não sabia, a minha
mãe nunca falou pra mim né como que a gente ia quando é a primeira vez
da gente né e nesse dia eu fiquei pra mim fazer uma faxina, aí né eu tava
capinando aí eu vi aquele negócio escorrendo pela minha perna aí fui me
embora tomar banho, aí comecei a tomar banho eu não sabia de nada né,
até que minha irmã mais velha perguntou: Zelinda o quê que ta saindo?
Eu disse: não sei, eu nem me cortei, nem nada, aí ela disse: Ah Zelinda tu
ta moça nova, vou já falar pra mamãe, aí ela foi e falou pra minha mãe, aí a
minha mãe veio de lá me agasalhar, ela ainda me bateu ainda né, porque
diz que o pau tinha me furado.(Tuxaua Baku, entrevista/2009).
468
durante um mês pra num falhar o meu dia né, um mês deitado só pra um
lado, sem sair pra fora, só via água porque levavam na cuia, eu tinha meu
balde né, aí lá passei um mês. (Tuxaua Baku, entrevista/2009).
3
Comunidade Sahu-apé da Etnia Sateré Mawé, localizada na AM 070 que liga Manaus a Iranduba no Km
39 na sua margem direita. Mais precisamente na Vila do Ariaú.
4
Ela se referiu à primeira menstruação ou menarca. Num primeiro momento fez gestos dando a entender
do que se tratava e não pronunciou a palavra; somente depois é que se referiu diretamente ao termo.
469
mesma linha de raciocínio fortemente presente no ritual da moça nova.
A Tuxaua nos disse que a moça após ser trancada num quarto
com paredes de barro, cavar um buraco ao lado da rede para depositar
dejetos fecais, ela fica deitada imóvel durante seis dias numa rede tecida de
fios. Ela fica deitada de um lado só, sendo alimentada por chibé trazido na
cuia pela mãe ou pela avó. A partir deste momento, durante o período de
reclusão também tem outras proibições, tais como:
Vamos dizer, se eu menstruei com essa roupa, (dá um exemplo mostrando
suas vestimentas) com essa aqui eu vou passar o tempo todo, num troca
não, num penteia cabelo, num come sal, num come açúcar, nada, só
farinha, o chibé. [..] Peixe, de jeito nenhum, pior ainda o peixe porque ele é
chapéu do boto, o índio tem muito medo do boto, aqui que eu converso com
o boto, mas só mesmo durante o mês, só chibé e farinha, como é sehay e a
farinha, aí com um mês aí já vai comer orelha do pau é urupê e a cutia e o
inambu, primeira comida da moça nova, aí depois de um mês, dois mês aí já
pode comer a castanha, pode comer paçoca de inambu, de tucano já pode,
peixe nem pensar. Nem, veado nem pensar. porque ele pula muito, ele é
muito danado, ele pula pra cá ele pula pra li, ele pula pra cá. De jeito
nenhum, por isso que hoje moça nova eles não param demais, porque eles
não se guardam né, vê essa minha neta aqui que ela é guardada, ela não é
muito danada não né, mas gente que não é guardada, ele puxa... não param
num lugar. (Tuxaua Baku, entrevista/2009).
5
Vejamos a explicação dada pela própria Tuxaua sobre o sentido de arranhar o corpo com o dente da paca:
“Só o da paca, porque ele é amolado, ele parece uma faca... e a paca, diz que porque ela é gorda e agente
fica gorda, já vem dos velhos já mesmo pra ser gordo, aqui a perna pra ficar gordo, é. [..] É pra gente não ser
doente, pra gente não ter preguiça, porque o que mata a pessoa hoje é preguiça né, ai dormir até àquela
hora, eu num vou fazer nada né, isso é que mata, e você que é arranhado, você acorda cedo né, diz o João:
poxa mamãe se acorda muito, de madrugada, a mamãe se acorda, mas porque, graças à Deus, apesar de
né, não ser magra mas eu acho que eu tenho saúde”.
471
Neste universo cultural as relações entre homens e mulheres
parecem bem definidas e profundamente delimitadas. Aparece a presença
masculina impondo o poder pré-estabelecido como o mantenedor da ordem e
continuador dos costumes. Matos (2000, p. 23) chama atenção para o fato de
que:
É importante observar as diferenças sexuais enquanto construções
culturais, lingüísticas e históricas, que incluem relações de poder não
localizadas exclusivamente num ponto fixo – o masculino -, mas presente
na trama histórica. Bem como investigar os discursos e as práticas que
garantem o consentimento feminino às representações dominantes e
naturalizadas da diferença, o que não excluiria que à incorporação da
dominação às variações, manipulações, táticas, recusas e rejeições por
parte das mulheres, complexificando as relações de dominação históricas.
_____________________________________________________________
6
Mistura de água com farinha – um alimento consumido por todas as populações indígenas do Norte do
Brasil principalmente.
7
A cuia para os Sateré- Mawé é a representação do mundo segundo Uggé, (1991).
8
É algo reservadamente ao mundo feminino.
472
desses três mês ela já ia sair, aí já ia fazer o ritual da tucandeira. Aí vai ter
festa, pelo ritual pra ele e pra ela como moça nova né, mas se calhar né, mas
se num tiver durante essa época ela só se guarda ali, pra própria saúde dela,
depois que ela sai ela já começa a trabalhar já né. A moça é livre. Só casa se
ela quiser, se não fica aí.(Entrevista/2009).
9
Quer dizer, no segundo mês.
10
São raízes que tem uma espécie de cânfora. Arde muito quando em contato com a pele e o ferimento,
porém dá uma sensação de alívio da dor logo em seguida.
473
a fim de preparar-se para ser boa esposa e boa mãe, prendada nos serviços
domésticos e apta a obedecer o marido.
O que mais nos chamou atenção no ritual da moça nova foi o
elevado teor de sofrimento físico que as mulheres são submetidas. Crianças
ou adolescentes são obrigadas a passar por excessivo sofrimento para
conseguir o seu status social na comunidade. Se os homens passam por
ferroadas de tucandeira durante vinte vezes não seguidamente, as mulheres,
por sua vez, são isoladas do convívio social, pasam fome porque nem tudo é
permitido comer. Têm seus corpos rasgados pelo dente amolado de paca;
são obrigadas a dormir numa única posição dentro da rede, não trocam de
roupa (permanecem com a roupa que estava no corpo no dia em que
menstruou pela primeira vez, embora a roupa seja lavada pela mãe). E mais:
elas trabalham na roça com o corpo aberto em chagas sob o sol escaldante da
Amazônia e ainda carregam o paneiro de mandioca nas costas sozinhas, não
podem falar com ninguém com exceção dos pais e não podem ser ajudadas
por ninguém com os serviços da roça. Voltam a reclusão do seu quarto até
completar cinco meses. Somente depois desse processo de confinamento é
que ela retorna ao convívio social do grupo.
Para os homens a passagem ritualística do Waiperiá ou
tucandeira não está associado somente ao aspecto da
demonstração de virilidade do iniciado. Está também associado ao lugar do
iniciado na hierarquia da comunidade. Está em jogo o seu futuro político
dentro do clã. Os adultos decidirão se ele será pajé, caçador, pescador,
guerreiro e dentre outras funções.
Já no caso feminino, não existem escolhas a serem feitas, porque
à mulher não é dada o direito de escolher. Trata-se de uma determinação a
ser cumprida como parte de um processo de amadurecimento do corpo e do
espírito conforme as crenças do seu povo. A mulher Sateré-Mawé é
preparada desde cedo para se tornar esposa e mãe; não é diferente das
demais sociedades indígenas. A menina em iniciação recebe uma roça para
tomar conta. Dessa roça ela deverá prover alimentação para o seu lar como
também cuidar da educação dos filhos, mantendo silêncio na esfera pública
porque esta é lugar dos homens. Torres (2005, p.26) nos diz que:
As relações de gênero são transvestidas de relações de poder. A ameaça
do outro e da possibilidade de perda de espaço e de hegemonia levaram
os homens a construírem os fundamentos para as desigualdades
legitimando, dessa forma, as diferenças entre eles.
11
Neta dela que está no processo de preparação para o ritual.
474
dor provocada pelas ferroadas da tucandeira, para as meninas o processo se
dá desde o momento do seu nascimento. Os cuidados são redobrados e na
medida em que ela vai crescendo a mãe vai lhe ensinando somente os
afazeres domésticos. Atentemos para o nos diz Schwartzman in Silva, (1995,
p.25).
Devem ser os homens educados de modo a que se tornem plenamente
aptos para a responsabilidade de chefes de família. Às mulheres será
dada uma educação que as torne afeiçoadas ao casamento, desejosas
da maternidade, competentes para a criação dos filhos e capazes da
administração da casa.
_____________________________________________________________
12
A Tucandeira ou Paraponera Clavata pode medir até 3 cm. Sua ferroada é muito dolorida, deixando o
membro ferroado bastante inchado e seu efeito dura de 24 horas ou mais.
475
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477
AS MULHERES SATERÉ MAWÉ E A FORMAÇÃO DE COMUNIDADES
ÉTNICAS EM MANAUS, AM
Wagner dos Reis Marques Araújo
Iraildes Caldas Torres
Esta pesquisa tem o propósito de verificar o modo como as
mulheres sateré-mawé se deslocaram de suas.
Com base no censo indígena do ano 2000 realizado pela
Confederação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB),
verificamos que em Manaus a população indígena constava entre 15.000 a
20.000. Percentualmente os Sateré-Mawé se sobressaem com 27,35% e os
Tikuna com 23,50%. Os outros percentuais estão distribuídos entre as etnias
do Alto Rio Negro com 23,41% da amostra, os restantes 25,74% provêm de
outras etnias da Amazônia.
A presença significativa dos Sateré-Mawé em Manaus foi
determinante para a escolha dessa etnia como objeto de investigação. Em se
tratando de uma pesquisa sobre os sateré-mawé, buscamos, ainda,
fundamento nos trabalhos de distintas comunidades de origens para a cidade
de Manaus, em busca de melhores condições de vida para si e suas famílias
pesquisadores, dentre eles os de Nunes Pereira (1982, 2007), Sonia Lorenz
(1992) e Roberto J. Bernal (2009). Nesses trabalhos encontramos
referências sobre o deslocamento de mulheres Sateré-Mawé para as cidades
de Manaus e Maués, centros urbanos próximos de suas aldeias.
À medida que íamos avançando na revisão de literatura sobre os
Sateré-Mawé, adotamos um questionamento ia aparecendo na pesquisa: em
que medida o estigma étnico e a desvalorização do trabalho doméstico
interferem na vida dessas mulheres. Ou seja, como o estigma étnico e a
invisibilidade do trabalho doméstico repercutem na subjetivação desses
sujeitos ?
Conforme observa Lorenz (2009), a história de migração Sateré-
Mawé para Manaus está fortemente marcada por um cunho feminino que se
verifica também entre os índios do Alto Rio Negro. As condições de extremo
contato interétnico e a diminuição do seu território por causa da colonização
extrativista, fizeram com que os Sateré-Mawé se opusessem “[...] à dispersão
excessiva das tribos e especialmente à saída das mulheres da comunidade”
(BERNAL, 2009, p. 97).
Nunes Pereira visitou o grupo em 1939, e coletou informações
que foram publicadas inicialmente na década de 1940. Nesse trabalho, o
_____________________________________________________________
1
UFAM - marquesreis@hotmail.com
479
autor analisou a estatura social dos Sateré-Mawé, descreveu aspectos de
alguns rituais e abordou questões sobre a religião nativa e os painis (pajés).
E, ainda, esse etnólogo esclarece que,
Em represália às perseguições e excursões punitivas, que os
portugueses lhes moveram, os Maués [Sateré-Mawé], proibiram as suas
mulheres de falar a língua portuguesa. Privando-se com elas, sente que
algumas têm o desejo de falar, mas não devem fazer; e não fazem.
Outras, cujos pais e irmãos falam português, denunciam que o
compreendem (PEREIRA, 2003, p. 85).
485
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Notas:
488
MULHERES NEGRAS FEMINISTAS: conquistando visibilidade.
1
PPG-NEIM/UFBA-BA - mnegrass@hotmail.com
489
No campo acadêmico, em especial na História também foi a partir
dos anos 80 que historiadoras/es passaram a usar gênero enquanto
categoria de análise. Segundo Maria Izilda S. Matos, “é em função dessas
críticas [referindo-se a categoria mulher] das próprias transformações nas
reivindicações dos movimentos feministas que surge o gênero enquanto
categoria de análise histórica”. (MATOS, 1997: 94). A introdução da categoria
gênero se constitui na possibilidade de evitarmos as posições binárias e
dicotomizadas nas relações entre homens e mulheres. Matos prossegue
dizendo:
PERCURSOS E VIVÊNCIAS
502
sempre brancos. Não só nas representações continuamos ausentes,
mas na vida real estamos tomando este lugar que são de todos e não só
deles, eles se sentem atingidos e nos tratam de uma maneira bastante
violenta.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
504
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506
VOZES XERENTE: gênero e construção da identidade a partir da percepção
da mulher Akwĕ
Maria Santana Ferreira dos Santos Milhomem
Profª Drª Maria Helena Santana Cruz
Este estudo propõe-se a analisar sob a perspectiva de gênero, as
relações sociais e a construção da identidade de mulheres indígenas da etnia
Xerente do Tocantins. Procura-se através dos estudos etnológicos,
apresentar uma discussão sobre a cultura indígena Xerente e seu modo de
vida, analisando como são construídas as identidades e conseqüentemente,
as relações de gênero a partir das experiências narradas por algumas
mulheres indígenas desta etnia residentes no Tocantins.
Acredita-se ainda que as reflexões apresentadas ao longo desse
trabalho podem contribuir para o atual debate acerca das relações de gênero
no espaço do cotidiano indígena cujo discurso dominante sobre as relações
de gênero é o da existência de igualdade e neutralidade de gênero
A ETNIA XERENTE A PARTIR DAS VOZES ETNOGRÁFICAS
Os Xerente são uma das várias etnias indígenas do Brasil
Central. Localizam-se entre o Rio Tocantins e o Rio Sono, próximos as
cidades de Tocantinia e Miracema do Tocantins. Essa comunidade se distribui
em duas áreas de demarcação indígenas, chamadas de Reserva Xerente e
Reserva Funil, a 70 km ao norte de Palmas, capital do Tocantins. As cidades
de Tocantínia, localizada entre as duas áreas, e a de Miracema, situada na
outra margem do Rio Tocantins, tornaram-se ao longo do século XX, palco de
tensões entre a população local não índia e os Xerente.
O Estado do Tocantins possui uma população de 1.243.627
habitantes, dentre os quais, de acordo com dados da Fundação Nacional de
Saúde – FUNASA, a população indígena é de aproximadamente 9.000 mil
índios, distribuídos em sete etnias indígenas, sendo os Karajá, Javaé,
Karajá/Xambioá, Xerente, Krahô, Apinayé e Krahô/Kanela.
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NPGED/UFS - msfsantos@yahoo.com.br
2
NPGED/UFS - helenacruz@uol.com.br
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508
feminina, sendo que os dois processos pertencem a duas
Metades Patrilineares. No entanto, segundo os etnógrafos existe uma
diferenciação. No caso do nome feminino, o princípio de patrilinearidade dá-
se pela negativa, ou seja, uma menina recebe um nome de uma classe de
idade que não seja a do seu pai. No caso do nome masculino, o princípio de
patrilinearidade dá-se positivamente uma vez que o menino recebe um nome
que deve ser do mesmo clã de seu pai.
Hoje, a maior parte dos Xerente fala o português, além da língua
nativa akwӗ, o que os caracterizam como um grupo bilíngüe. A exceção é feita
apenas às crianças em idade pré-escolar e algumas mulheres mais idosas,
que encontram dificuldades em para se expressarem em português. No
convívio familiar a língua falada é sempre o akwӗ. O português serve apenas
para comunicações triviais com aqueles que não dominam o idioma do grupo
(De Mattos, 2005).
Entre os Xerente, a família extensa4 tem grande importância. A
descendência segue uma ordem patrilinear, sendo o pai o proprietário de toda
a prole e também da esposa. A regra de residência é uxorilocal: o genro mora
na aldeia (ou no segmento residencial) do sogro. Geralmente, os Xerente não
costumam fazer restrições a casamentos interétnicos realizados entre índios
e mulheres não- índias, mas desaprovam explicitamente o matrimônio de
mulheres Xerente com não-índios. Entretanto, todo não índio (seja homem ou
mulher) que se casa com um Xerente, logo é incorporado às redes de
parentesco e aos sistemas cerimonial e político, adquirindo direitos e deveres
idênticos a um membro do grupo5. Quando ocorre a separação conjugal, os
filhos ficam com o homem e a mulher volta a morar na casa de seus pais, a
quem volta a pertencer
Os estudos etnográficos sobre os Xerente mostram ainda que,
apesar do feminino receber a nominação através de um Sistema de Classe
com um ritual específico, o nome pertence a uma Classe de idade masculina.
Nessa perspectiva, de acordo com as descrições etnográficas da
cultura e tradição do povo Xerente, em que o sexo masculino e feminino
desde o nascimento já pertencem a uma determinada Metade ou Classe e
que existem diferenças na posição, status e função de cada uma, é possível
compreender que ao feminino está reservado o espaço privado e doméstico,
e ao masculino o espaço púbico e cerimonial.
No entanto, no processo de contato com o não índio, os Xerente
abandonaram ou ressignificaram, gradativamente, alguns de seus costumes
cerimoniais e incorporaram hábitos e transformações da cultura brasileira.
Alguns ritos sociais foram preservados ao lado de novos costumes, criando-
se um misto da cultura de origem (indígena) e da cultura importada (não
6
indígena) .
509
Concomitante a análise etnográfica da Estrutura Social dos
Xerente, põe-se em questionamento as transformações ocorridas, nas
últimas décadas, na organização social e política dessa comunidade em
virtude da história do contato com o não índio. Como exemplo, indica-se o
rápido crescimento do número das aldeias, e, conseqüentemente, o número
de liderança - em 1987, elas eram 09, atualmente um total de 44 aldeias, e o
surgimento de novos papéis sociais (professores, vereadores, agentes de
saúde, diretores de associação, enfermeiros, etc). Esse rápido crescimento
do número de aldeias é resultado do fracionamento das antigas povoações.
Segundo Paula7, esse processo de cisão entre as aldeias Xerente
ganhou uma velocidade nunca vista em sua história a partir da década de
1989, e deve ser visto como uma das formas de expressão do faccionismo
Xerente em nossos dias. Para tanto, pode - se afirmar que os Xerente, como
as demais sociedades Jê, caracterizam-se por se expressarem-se através de
práticas sociais que, de acordo com o momento histórico, expandem-se ou se
retraem. Este é um movimento pertinente à dinâmica da sociedade Xerente,
8”
“contrair e reflorescer .
Dentre outras mudanças na organização social e cultural dos
Xerente, destaca-se o rápido e intenso processo de transformação das
unidades habitacionais, tanto no nível da forma quanto da tecnologia,
valorizando assim, os elementos da sociedade nacional.
Diante disto, coloca-se em questionamento a posição dos atores
nesse processo de ressignificação e de mudança dos costumes, valores e
consequentemente da cultura indígena, uma vez que a cultura atribui funções
reais e simbólicas inerentes ao sujeito, e “é no interior dos processos e
estruturas psíquicas inconscientes que esses traços são internalizados, re-
9
elaborados, ressignificados e transformados em valores e atitudes”.
Portanto, o exame dos sistemas culturais contribui para identificar algumas
características mais particulares dos atores sociais, tais como as
representações que, como grupos ou indivíduos, fazem do seu entorno, e os
padrões que utilizam em tais representações. Torna-se possível assim,
desvendar o significado das relações de poder.
Neste sentido, é importante destacar que diante desse aspecto
da modernidade, aparece apenas uma pequena parcela de mulheres
inseridas tanto no mercado de trabalho - com um total de 10 mulheres para
um total geral de 53 homens na atividade docente, quanto na atividade
política - dos 10 candidatos ao cargo de vereador do Município de Tocantínia,
apenas 01 era mulher. No entanto, nas atividades de pouco prestígio
(merendeira, e vigia noturno e ASG) existe a predominância das mulheres,
sendo que do total de 20 servidores administrativos da esfera estadual, 07
são homens e 13 são mulheres.
Ademais, mesmo diante dessa assimetria de gênero na
510
comunidade indígena Xerente, foi observado que através dos processos de
formação e de luta pelos seus direitos, as mulheres indígenas Xerente, têm
conseguido adentrar os espaços 'ditos masculinos', como é o caso do
10
exercício de liderança nas aldeias. Das 44 vagas para o cargo de Cacique
das aldeias, 02 vagas são assumidas por mulheres, e segundo o depoimento
11
de uma professora indígena entrevistada, esse avanço político é resultado
da inserção da mulher no mercado de trabalho e na organização de
associações, nos quais ocupam cargos de chefia.
A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DE GÊNERO: a mulher indígena
xerente em questão
Para análise das relações de gênero e construção da identidade
na comunidade indígena, é necessária a problematização das relações
sociais que não são neutras. Neste sentido, apesar desse estudo estar
focado nas relações entre homens e mulheres, não é possível deixar de
analisar as experiências vividas pelas mulheres indígenas Xerente.
Necessariamente conflituosas, as relações sociais remetem a relações de
poder, e certamente, uma de suas dimensões é a relação de gênero. Desse
modo, segundo Hirata12, “relação significa contradição, antagonismo, luta
pelo poder, recusa de considerar que os sistemas dominantes (capitalismo,
sistema patriarcal) sejam totalmente determinantes”.
Para construir um conceito de identidade, é mister que se façam
opções epistemológicas, metodológicas e políticas, pois existem diferentes
formas de pensar sobre qualquer conceito, mas para os propósitos que se
têm neste trabalho, constitui pressuposto fundamental a ideia de identidade
como uma construção social, superando o conceito de identidade como uma
entidade fixa e imutável, e destacando o caráter ativo do indivíduo no contexto
sócio-histórico de sua via.
Nesse sentido, faz-se uma incursão pelos trabalhos de Hall
(2007), Woodward (2007), Silva (2007), entre outros, que permitem a
construção de saberes necessários para a compreensão do processo de
constituição da identidade da pessoa humana.
Compreende-se que a identidade é um constructo tratado por
várias disciplinas, inclusive pela sociologia, sendo que do ponto de vista
sociológico, tem um núcleo ou essência interior que é o 'eu' real, mas este
núcleo forma-se e modifica–se num diálogo contínuo com o outro e com o
mundo. “A identidade, então, costura o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os
sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam tornando ambos
reciprocamente mais unificados e predizíveis” (HALL, 1991,
p.12). Para a Sociologia, na construção da identidade estavam presentes o
que estava ocorrendo para o sujeito num dado momento, a sua história e os
tensionamentos, conflitos e crises existentes no mundo.
511
Ainda do ponto de vista sociológico, identidade pode ser definida
como:
Características distintivas do carácter de uma pessoa ou o carácter de um
grupo que se relaciona com o que eles são e com o que tem sentido para
eles. Algumas das principais fontes de identidade são o gênero, a
orientação sexual, a nacionalidade ou a etnicidade, e a classe social. O
nome é um marcador importante da identidade individual, e dar um nome
é também importante do ponto de vista da identidade do grupo.
(GIDDENS, 2004, p. 694)
514
515
516
517
constrói a política, e, também como as relações de gênero
delineiam as relações sociais ao mesmo tempo em que estas edificam o
próprio gênero e a própria política.
Nesta posição, a suposta oposição entre homens e mulheres
passa a ser problematizada, contextualmente definida, repetidamente
construída e não mais unívoca e pré-determinada naturalmente. Com isso,
abandona-se a idéia de uma causa ou origem única e universal para a
dominação masculina, enfatizando a complexidade e a heterogeneidade das
relações sociais.
O cotidiano da comunidade indígena Xerente é formado pela
dominação de gênero. Em meio as nossas atividades mais triviais, a situação
privilegiada do homem aparece como algo natural, desde o salário inferior
concedido à mulher por trabalho igual a regras morais severas abrigadas sob
as “doces” normas que dizem o que convém ou não a uma “dama” ou a uma
“moça de bem”. Compreende-se então, que as relações sociais entre homens
e mulheres são atravessadas pelo poder; homens e mulheres são
classificados pelo gênero e separados por duas categorias: uma dominante e
outra dominada. As relações de poder constroem e legitimam as diferenças
desvantajosas para as mulheres com base na sexualidade, que é, portanto, o
ponto de apoio da desigualdade de gênero.
Para este estudo, adota-se ainda a idéia norteadora, da noção de
violência simbólica, na medida em que, apesar da categoria professor
exercer expressiva liderança dentro da comunidade, ou seja, ouvir e ser
ouvida, emitir opiniões, é quase irrisória a participação da professora nas
decisões da comunidade. Melhor dizendo, quando esta deseja emitir suas
opiniões é frequentemente impedida pelos homens da aldeia. O poder
simbólico da figura masculina, ainda assim, continua presente. Nesse
sentido, a inserção da mulher indígena no mercado de trabalho e sua
contribuição para a renda familiar, traço de modernização encontrada em
algumas mulheres indígenas Xerente, não garante à mulher a possibilidade
518
27
de escapar da condição de vítima do preconceito /discriminação.
Trata-se da violência como uma ação deliberada, que
independentemente das intenções que acompanhem, é capaz de destruir ou
violar a integridade física e psíquica, a dignidade humana de alguém,
“coisificando”28 o indivíduo. Para Chauí29, a violência é “[,,,] o conceito de força
física e da coação psíquica, para obrigar alguém a fazer alguma coisa
contrária a si, contrária a seus interesses e desejos, contrária a seu corpo e à
sua consciência, causando-lhe danos profundos e irreparáveis, como a
morte, a loucura, a auto-agressão ou a agressão aos outros”.
30
Esta definição exclui a denominada violência simbólica que não
se manifesta nem pela força física, nem pela coação psíquica, mas pelo
consentimento, e é tão potente e danosa quanto a violência física (ou mais do
que ela). Essa é uma forma de dominação suave, insensível, invisível as suas
próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente
simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou mais precisamente, do
desconhecimento, do reconhecimento ou em última instância, do sentimento,
responsável em grande parte pela naturalização da violência e pela
institucionalização de uma cultura de violência.
A violência simbólica constitui uma categoria importante para se
discutir determinadas formas de violência – como a violência contra a mulher,
em especial quando se refere à violência doméstica. A violência é, portanto,
um fenômeno complexo, multidimensional e amplo, atravessado por muitos
outros fatores (culturais, históricos, políticos e econômicos, raciais, e étnicos,
de gênero, classe, geração, etc.).
Não obstante, nas raízes das relações de poder,
desencadeadas a partir de relações hierárquicas e assimétricas, impõe-se
uma forma de violência por vezes imperceptível. Esta por sua vez, é exercida
através do poder simbólico, que segundo Bourdieu31:
É invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que
não querem saber que lhes estão sujeitos ou mesmo que exercem.[...] é
um poder que aquele que lhe está sujeito dá àquele que o exerce, um
crédito com que ele o credita, uma fides, uma auctocritas, que lhe confia
519
pondo nele confiança.
529
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532
A VISÃO DE SIMONE DE BEAUVOIR SOBRE A LESBIANIDADE
Gilberta Santos Soares
“Meus ensaios refletem minhas opções práticas e minhas certezas
intelectuais”
(S. de Beauvoir)
INTRODUÇÃO
A proposta do artigo é levantar reflexões críticas a respeito da
perspectiva apresentada por Simone de Beauvoir sobre a lesbianidade no
Segundo Sexo, no capitulo a “A lésbica” do vol. II, intitulado a Experiência
Vivida, em diálogo com as posições da autora, expressas na entrevista
concedida a Alice Schawarzer em 1985. Este diálogo incluirá o diálogo crítico
com a psicanálise uma vez que a autora a toma como referencial teórico para
discutir a lesbianidade, em movimento de apoio e contraposição.
No segundo volume de O Segundo Sexo, ela dedica um capítulo
ao tema, chamado “A lésbica“. Antes da publicação do livro, ele foi publicado
em Les Temps Modernes (BEAUVOIR, 2008), juntamente com os capítulos
“Iniciação Sexual” e “A mãe”, antecipando a publicação do livro. Anos depois,
na entrevista com Alice Schwarzer, ela avalia como errada a estratégia, pois
antecipou preconceitos, críticas violentas que também foram proferidos
contra O Segundo Sexo (SCHWAZER, 1985). Outro fato revelador do
capitulo “A lésbica” é o fato dele ter sumido da Biblioteca Nacional de Paris.
No momento da entrevista a Schwarzer, já tinham passado 34
anos da publicação de O Segundo Sexo. Simone estava noutra fase da vida,
Sartre já havia morrido e ela já se definia como feminista e como atuante do
movimento feminista, trazendo idéias que não haviam sido expressas
anteriormente, dotando de sutis diferenças a sua forma de se revelar.
Procurarei inserir as idéias da autora no contexto histórico e na
doutrina filosófica existencialista e trarei o debate sobre a institucionalização
das sexualidades e homossexualidades como objeto da ciência e como um
campo discursivo, assim como a crítica a estas. Também será considerado o
acúmulo teórico dos estudos lésbicos.
Voltar a ler Simone de Beauvoir, sobretudo a leitura de O
Segundo Sexo, me trouxe uma sensação de tomar água quando se está
sedenta. Havia um misto de encanto, curiosidade e revisitação no mergulho
_____________________________________________________________
1
Graduada em Psicologia Social e Mestre em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB.
Feminista, sócia fundadora da ONG Cunhã Coletivo Feminista/PB. Atualmente é doutoranda do Programa
de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo PPG-NEIM
desenvolvido na Universidade Federal da Bahia- UFBA. Bolsista da FAPESB. E-mail:
gilbertass@gmail.com
533
nas idéias expostas de forma sistemática e cuidadosa – um “Deja vu” da
práxis feminista. Isto aconteceu no mesmo momento em que estreou no
Brasil o monólogo “Viver sem tempos mortos” - peça de teatro, na qual
Fernanda Montenegro encarna a filósofa. A atriz não tem medo de afirmar
“Simone Beauvoir mudou as nossas vidas”.
O livro traz a genealogia da condição feminina, envolvendo a
crítica às fases da vida da mulher e aos discursos existentes. Nele, podem-se
reconhecer as opções metodológicas e políticas feitas pelo movimento
feminista (refiro-me ao feminismo brasileiro), como os grupos de reflexão, a
revisitação das experiências de vida na Linha da Vida, o compartilhamento de
experiências entre mulheres, a troca sobre vivências da sexualidade, da
maternidade, a afirmação da liberdade de escolha, a denúncia.
No entanto, ao ler o capítulo “A lésbica” fui tomada por uma
sensação de estranhamento, que pude localizar, especialmente, na utilização
de alguns termos e terminologias de cunho normalizantes e moralizadores.
Entre eles, o termo “invertida” para designar a lésbica, com a recorrência ao
modo discursivo da psicanálise para o entendimento dessa vivência.
Encontrei esta reflexão em Bonnet (2005) quando discute a dificuldade de
Beauvoir de tratar do tema da lesbianidade, afirmando “uma inconsciência da
homofobia” de parte da escritora.
O questionamento que trago parte do uso do termo “invertida”
sem que haja referência crítica ao processo de institucionalização das
sexualidades, ancorado na patologização, disseminação e implantação das
sexualidades anormais (polimorfas) através da psiquiatria, da psicanálise e
psicologia, como mecanismos de controle da sexualidade, a partir do século
XIX.
Essa abordagem coexiste com o fato de que a lesbianidade
aparece como uma possibilidade existencial e real na vida das mulheres.
Beauvoir também fala de vivências lésbicas nas seções em que ela versa
sobre a iniciação sexual e a vida adulta.
As ambigüidades que aparecem ao longo dos dois textos
analisados remeteram ao fato de que o questionamento sobre a
heteronormatividade obrigatória e as demandas e lutas das mulheres
lésbicas não tenham ocupado espaço proeminente na trajetória e nas
demandas epistemológicas e políticas do movimento feminista Latino
americano, sobretudo brasileiro, especialmente na Primeira e Segunda
Onda. As mulheres lésbicas demandaram o reconhecimento como sujeito
_____________________________________________________________
2
Sobre possíveis problemas de incoerência na tradução para o português, fiz consulta ao original em
Francês, no qual ela usa a mesm a terminologia. Esse cuidado é pertinente, sobretudo frente, aos
inúmeros problemas na tradução para o inglês.
534
político feminista e a visibilidade no contexto do feminismo da diferença e da
teoria feminista pós-moderna.
O EXISTENCIALISMO NA LEITURA DE BEAUVOIR SOBRE A
CONDIÇÃO DAS MULHERES
Qualquer análise a ser feita a respeito da obra de Simone de
Beauvoir, precisa situar o contexto histórico, a filosofia existencialista e o
impacto do Segundo Sexo no mundo ocidental, sobretudo na Europa.
O contexto histórico era marcado pelo fim da 2ª Guerra Mundial
com uma crise geral que abalou os valores da época e exigia a reconstrução
material. Sentimentos como o desespero, o desânimo, o pessimismo, o
desencanto com a humanidade pairavam no ar e afetavam, em especial, a
juventude. O holocausto havia deixado marcas indeléveis na história da
humanidade, diluindo mitos e afetando definitivamente a visão de mundo. A
França havia sido ocupada pelos nazistas alemães e a resistência foi uma
tarefa para os franceses.
As experiências nazi-fascistas e a ditadura do proletariado
Stalinista levaram a um anseio pela liberdade e o desejo de resgatar a
humanidade perdida. Existia uma pergunta no ar sobre o devir do mundo
após duas guerras mundiais. Dialeticamente, nos anos que se seguiram ao
fim da segunda guerra mundial, as inquietações do período suscitavam
mudanças e revoluções, existia um clima propício para uma nova paisagem
cultural, para formulações intelectuais e para a reinvenção de normas sociais.
As mulheres que tinham sido aproveitadas no mercado de
trabalho, como exército de reserva, perdiam seus postos de trabalho para os
homens e voltavam para casa. Na França, o direito das mulheres de votar foi
tardio, conquistado apenas em 1945. O aborto era crime e a anticoncepção
não era liberada.
A despeito de que a figura da “La Garçonne” tenha sido lançada
no imaginário francês na década de 1920, a situação de subordinação das
mulheres aos homens ainda era uma realidade naquele contexto e existia
forte preconceito contra lésbicas.
La Garçonne representou uma transgressão na imagem
feminina, um estilo, que surge na França com a publicação do romance de
mesmo nome, de Victor Margueritte, em 1922, ano em que o Senado Francês
negava o direito do voto às mulheres. O livro tornou-se um “best seller” e foi
considerado um escândalo, por apresentar uma jovem protagonista esbelta,
elegante, que se vestia como homem, usava cabelos curtos, fumava
cigarrilhas e tinha liberdade de sair sozinha à noite. A protagonista vivia
livremente sua vida, após ser traída pelo noivo, tendo outros parceiros. O
tema do livro remetia a questão da emancipação das mulheres e da igualdade
de direitos (MARGUERITTE, 1957).
535
A imagem de La Garçonne permaneceu no imaginário Francês
como transgressão, suscitando rebeldia, irreverência e
colocando em perigo a feminilidade. Teria sido reavivada a imagem da La
Garçonne com as idéias revolucionárias de Simone de Beauvoir sobre as
mulheres?
A reação ao Segundo Sexo não pareceu diferente, causando
muito incômodo. Simone foi duramente atacada, sob a pecha de imoral,
pornográfica, reduzida a mulher de Sartre. A defesa da moralidade foi um dos
argumentos utilizados com ironia, não só pelo fato dela introduzir na fala
pública temas que não eram usualmente tratados, como a sexualidade, a
lesbianidade, as diferenças sexuais, mas por romper o silêncio e atribuir a
mulher lugar de sujeito.
A hostilidade se dirige precisamente a esses temas desde o
aparecimento, na primavera de 1949, em Les Temps Modernes, dos
artigos de Simone de Beauvoir sobre “A iniciação sexual da mulher”, “A
lésbica” e “A maternidade” [...] Se as passagens dedicadas à análise
literária recebem acolhida favorável, o mesmo não se dá naquelas que
abordam sem tabus as experiências sexuais femininas ou desmistificam a
maternidade. (CHAPERON, 1999, p 43).
3
BEAUVOIR, S. In: BONNET, 1999; p: 1.
539
heterossexual e por isso, passível de controle médico-legal.
Considerava-se que a então chamada "inversão sexual" constituía uma
ameaça múltipla: à reprodução biológica, à divisão tradicional de poder
entre o homem e a mulher na família e na sociedade e, sobretudo, à
manutenção dos valores e da moralidade responsáveis por toda uma
ordem e visão de mundo. (CHAPERON, 2007, p.).
4
A partir de agora, todas as referências feitas no texto serão ao volume 2 de O Segundo Sexo – A
Experiência Vivida
541
como um reflexo de espelhos, em que o corpo e as preferências são
(re)conhecidas através de si próprias, fazendo uma referência a troca de
lugares na relação entre mulheres:
[...] as carícias são menos destinadas a se apropriar do outro do que a
recriar-se lentamente através dele [...] dentro de uma exata reciprocidade
cada qual é ao mesmo tempo sujeito e objeto, a soberana e a escrava; a
dualidade é cumplicidade (p. 156).
5
Em 1870, o psiquiatra Carl Westphal escreveu o texto “As Sensações Sexuais Contrárias, colaborando
para a criminalização da homossexualidade pelo código penal alemão. Nessa perspectiva a
homossexualidade representava uma ameaça a ordem (MISKOLCI, 2007).
542
Beauvoir compreende a posição política de mulheres lésbicas de
recusa em partilhar relações sexuais e emocionais com homens. Pois,
acredita que a relação de dominação se perpetua nas relações sexuais e que
muitas mulheres se escravizam sexualmente. Para ela, a frigidez pode ser
uma forma de expressar o mal estar da relação de dominação com homens.
Beauvoir compreende que não é fácil para as mulheres assumirem o lugar de
ativas ante a expectativa dos homens de fêmea passiva. Ela afirma que entre
artistas e escritoras encontram-se muitas lésbicas por não se submeterem a
superioridade masculina e às exigências da feminilidade, já que sua
prioridade é o trabalho. (BEAUVOIR, 1980, vol. 2).
No entanto, ela questiona algumas posturas das mulheres
lésbicas a qual sente como imposição às heterossexuais “acho aborrecidas e
irritantes sua mística ao clitóris e todos aqueles dogmas sexuais que tentam
nos impor” (1983, p. 34). Neste ponto, ela se coloca como “nós” - mulheres
heterossexuais - e “elas” são as lésbicas.
Da mesma forma que lhe aborrece a imposição da sexualidade
lésbica, não pode sugerir a bissexualidade como a forma ideal; parecendo
uma incoerência mediante sua proposta libertária de amor, de relações
afetivas e para as mulheres.
Beauvoir também rechaça a idéia de que toda relação sexual com
homem seja uma violação, acreditar nisso seria uma retomada aos mitos
masculinos do sexo do homem como espada, uma arma, seria a
impossibilidade de recriar as relações (1980). “A mulher que não quer ser
vassala do homem, está longe de sempre o evitar: tenta antes fazer dele o
instrumento de seu prazer” (p. 151). No entanto, ela reconhece que isso
dependerá da presença de circunstâncias favoráveis e não apenas da
mulher.
Talvez tenha sido a sua crença na bissexualidade que fez com
que ela não contestasse a teoria freudiana de sexualidade feminina no
tocante ao desenvolvimento genital. Este aspecto da teoria tem sido
fortemente criticado por feministas pela perspectiva androcêntrica,
normalizadora e restritiva que representa.
Nesta teoria, ambos os sexos passam pelo desenvolvimento oral
e anal; no estágio genital, as meninas terão duas etapas, enquanto que
meninos uma. Freud diz:
O desenvolvimento da sexualidade feminina é complicado pelo fato de a
menina ter a tarefa de abandonar o que originalmente constituiu sua
principal zona genital – o clitóris – e, favor de outra, nova, a vagina (1931,
p.5).
_____________________________________________________________
6
Grifo meu.
543
Para Freud, o prazer clitoridiano é uma etapa na evolução da
sexualidade feminina. Essa transição se relaciona a passagem do foco do
amor materno ao paterno, que se relaciona diretamente à castração: “motivo
mais forte para a menina se afastar dela, a censura por a mãe não ter lhe dado
um pênis apropriado, isto é tê-la trazido ao mundo como mulher”. (Freud,
1931:6)
Freud utiliza expressões como “a mulher só atinge a normal
situação edipiana positiva” quando toma o pai como objeto (de desejo);
“atingirá a atitude feminina normal final” quando desloca o foco de seu prazer
sexual do clitóris para a vagina (1931:6).
O resultado do desenvolvimento sexual não é bem sucedido
quando as mulheres se revoltam e crescem insatisfeitas com o seu clitóris,
abdicando da sexualidade ou quando permanecem fixadas na mãe como
objeto, recusam a castração e buscam o pênis perdido, podendo resultar na
homossexualidade. Freud admite que o clitóris (segundo ele, com caráter
viril) continuará a funcionar na vida sexual feminina adulta, mas não hesita em
afirmar, no final de sua carreira, depois de um longo silêncio sobre o tema que
alguma coisa lhe escapou sobre a feminilidade, “esse continente negro” e
deixará no ar a pergunta, “afinal o que quer uma mulher?” (ANDRE, 1998).
Beauvoir contestou a idéia freudiana da castração e de que a
resolução esperada para o complexo de castração é a completude gerada
com a gravidez e o nascimento de um filho. Denunciou o reforço à
maternidade obrigatória como lugar de definição das identidades femininas.
Ela focou sua discordância na discussão da feminilidade e
masculinidade e no fato da teoria freudiana considerar a sexualidade
masculina como referência; o masculino como a norma; e o feminino como o
desvio, a mulher como o outro; a teoria serve ao reforço da idéia de sujeito
universal e do segundo sexo.
Para Beauvoir, “a elaboração do erotismo feminino é uma história
psicológica em que fatores fisiológicos são envolvidos, mas que depende da
atitude global do sujeito em face de sua existência” (p. 145). Ela discorda que
a homossexualidade seja uma falha no complexo de castração (Freud) ou um
ato de resistência e superioridade (Adler).
Simone estava interessada no aspecto psicológico da
lesbianidade, por isso dialogou com a psicanálise freudiana. Com ênfase no
psicológico, discute a articulação entre estes fatores e os sócio-culturais e
fisiológicos.
Sua teorização antecipa a noção de Orientação Sexual quando
afirma que a elaboração do erotismo feminino é uma história psicológica em
que os fatores fisiológicos são envolvidos, mas que depende da atitude global
do sujeito em face de sua existência. (p. 145). Beauvoir já trazia a conjunção
544
de fatores psicológicos, culturais e fisiológicos que são a base do conceito de
Orientação sexual.
Ela conclui o capitulo “A lésbica”, dizendo que “a
homossexualidade não é uma perversão deliberada nem uma maldição fatal”
(p. 164). É uma atitude escolhida em situação, isto é, existem fatores que
influenciam de modo que não se trata de uma intenção deliberada. Ela se
refere à noção de vocação lésbica como algo ligado a questões hormonais
em hermafroditas ou mulheres virilóides, como esportistas, mas não
condiciona a lesbianidade a esta questão. Para ela, a masculinidade ou
feminilidade de uma mulher não define a sua vocação lésbica.
Simone de Beauvoir recorre à psicanálise para entender a
existência lésbica. Ela reconhece o avanço da psicanálise ao lidar com a
sexualidade e com o corpo para além da biologia, considerando o corpo vivido
pelo sujeito que se aproxima da noção de corpo situação.
A afirmação de Mitchell (1979) de que Beauvoir elabora uma
filosofia com conteúdo psicológico é bastante pertinente para o capitulo “A
lésbica”. “Ainda que a psicanálise não se considere uma filosofia, S. Beauvoir
encontra nela uma dimensão filosófica”. (Mitchell, 1979, p. 320)
Ela construiu uma crítica epistemológica à psicanálise e à
compreensão desenvolvida acerca da subjetividade. Todavia, não deixa de
dialogar com a mesma, arriscando uma filosofia da psicanálise. O que teria
feito Simone insistir no diálogo com a psicanálise? Como conciliar o
inconsciente da psicanálise com o lugar da consciência para o
existencialismo?
Sartre é totalmente contrário à noção de inconsciente da
psicanálise, pois que acredita na consciência. Talvez o encantamento de
Simone fosse com o aparecimento de uma área de conhecimento que trazia a
subjetividade, a sexualidade; ou ainda a possibilidade de considerar o lugar
do inconsciente na liberdade circunstanciada. Simone não tinha medo do
desconhecido; de adentrar no conhecimento e de ousar.
Para Mitchell, Beauvoir aprecia a psicologia existente na
psicanálise, mas discorda da natureza desta psicologia (1979). Mitchell alerta
que 'a natureza da intenção psicofilosófica de Simone de Beauvoir determina
sua leitura de Freud” (1979, p. 320). A leitura de Beauvoir da obra de Freud é
determinada pela sua perspectiva crítica de desconstruir a inferioridade
feminina, o lugar da mulher como outro supremo em detrimento da definição
do homem como sujeito universal, sem deixar de reconhecer suas
_____________________________________________________________
7
Rich, A., Wittig, M. e Falquet, J. defendem a idéia de sistema patriarcal como lócus da opressão da mulher
e da heterossexualidade obrigatória.
8
Grifo meu.
545
contribuições e de transparecer certo encantamento com a nova área de
conhecimento.
BREVES CONSIDERAÇÕES FINAIS...
Leituras e releituras parecem insuficientes para apreender
Beauvoir em relação à lesbianidade. A autora desliza entre idéias
contraditórias acerca da lesbianidade; por um lado, trata como uma
experiência da existência feminina, presente em várias fases da vida e
reconhece como legítima a relação afetivo-amorosa entre duas mulheres.
Mas, não compreende a plenitude de uma relação lésbica e na sua tentativa
de psicofilosofar, em diálogo com a psicanálise, acaba levando ao lugar da
falta. Beauvoir parece mais consistente quando trata da relação afetivo-
amorosa entre mulheres, do que quando aborda os aspectos da sexualidade
propriamente dita. Todavia, o foco de seu interesse é a (dês) construção da
feminilidade e masculinidade atributos pré-determinados.
Não há duvidas quanto à pertinência e a atualidade dos temas
abordados por Simone de Beauvoir ao longo do livro O Segundo Sexo. Suas
análises são, em grande parte, pertinentes aos dias de hoje. Em relação à
questão do aborto traz um leque de argumentos que são sintonizados com a
abordagem hoje utilizada, como a questão da saúde púbica, da justiça social
e da autonomia das mulheres.
Quando aborda o tema da lesbianidade também está movida pela
idéia de liberdade existencialista e a defesa da autonomia feminina, por isso
trata de afirmar o direito de escolha. Não restam dúvidas que ter incluído essa
questão no livro foi uma atitude corajosa na sociedade francesa pós-guerra,
inclusive entre os existencialistas, grupo pelo qual nutria pertencimento. Suas
questões contribuíram para trazer o debate a tona, mesmo que tenham
gerado muitos, inclusive contra ela própria. Todavia, sua escolha em dialogar
com a psicanálise resvalou para posturas androcêntricas e reforçadoras da
moral da época, como já foi abordado ao longo do artigo.
Mesmo que não se declarasse feminista quando escreveu O
Segundo Sexo, este não foi apenas importante, foi fundamental para a lenta
revolução das mulheres e para uma geração de mulheres que disseram que
Beauvoir “mudou nossas vidas”, a exemplo da atriz Fernanda Montenegro.
Herdeiras de Beauvoir, o feminismo resistiu a incorporar as
questões das mulheres lésbicas em sua produção teórica e agenda política.
Há muitas lésbicas que fazem parte do movimento feminista. No entanto, boa
parte do movimento feminista se deixou intimidar pela pressão social que
_____________________________________________________________
9
Complexo de castração diz respeito à percepção e constatação que meninos e meninas terão da
ausência do pênis nas mulheres. Nos meninos, o interesse em preservar o pênis funcionará como uma
interdição ao amor materno e a superação do Complexo de Édipo. Nas meninas, a castração levará ao
reconhecimento da superioridade masculina e de sua inferioridade.
546
exigiu ao feminismo o silêncio sobre a lesbianidade e sua invisibilização para
que pudesse ser minimamente respeitado. As lésbicas passaram a ser um
tipo de ameaça, mesmo que estas lutassem pelas causas das mulheres
hetero, como a contracepção e o direito ao aborto (FALQUET, 2006).
O protagonismo de mulheres lésbicas feministas tem produzido
leituras críticas sobre a realidade das mulheres, inserindo de forma incisiva a
crítica a heteronormatividade e a lesbofobia nos estudos feministas, através
da categoria sexualidade, em diálogo com as dimensões de gênero, raça,
classe, geração. Assim como as mulheres negras, as lésbicas pautam e
enriquecem o feminismo brasileiro a partir de sua forma de olhar e atuar
politicamente.
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10
O termo orientação sexual é considerado atualmente mais apropriado do que opção sexual ou
preferência sexual em concordância ao fato de que não se escolhe ser heterossexual ou homossexual.
Orientação Sexual considera a sexualidade nas suas dimensões biológica, psíquica e sociocultural. (MEC)
547
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549
GÊNERO, CIÊNCIA E PRÁTICAS ESCOLARES
1
Núcleo Temático Mulher & Cidadania – NTMC/UFAL
550
discursivo de um texto escrito (redação) produzido por um professor de
matemática, a partir da questão: “Como percebo o desempenho de alunos e
alunas na aprendizagem da matemática?” Discutimos a premissa hipotética
da relação existente entre a sub-representividade das mulheres nas ciências
e os mecanismos explícitos e implícitos (“currículo oculto”) veiculados na
escola, espaço institucional reprodutor de estereótipos ideológicos de
gênero.
Como resultado da análise, constatamos a existência de uma
posição de sujeito marcada por valores androcêntricos próprios de uma
formação social capitalista patriarcal de gênero, cujos canais de reprodução
ideológica se materializam entre outras formas, através das instituições,
como a escola. Nesta, o corpo docente constitui um dos elos da cadeia de
transmissão e perpetuação dos estereótipos de gênero e, através de suas
práticas no processo ensino/aprendizagem, produz efeitos de sentidos que
acabam repercutindo no distanciamento das mulheres em relação às
ciências. Porém, já que os valores inculcados em meninos em meninas na
escola são práticas discursivas historicamente construídas com base numa
lógica binária da diferença, também poderão ser descontruidas; essa
desconstrução, rumo a uma relação igualitária, teria como base uma
ontologia do múltiplo.
Como contribuição para efetivar mudanças nessas práticas,
propomos a realização de um trabalho com enfoque de gênero nas
instituições escolares com docentes e discentes, bem como nos Cursos de
Pedagogia das IES (Instituições de Ensino Superior), com estudantes que
estão recebendo formação para lecionar disciplinas do campo das ciências
da natureza.
551
POR QUE TÃO POUCAS? PERSCRUTANDO O LUGAR DAS MULHERES
NAS CIÊNCIAS DA NATUREZA
Por que tão poucas? Por que apenas nove
mulheres ganharam o
Prêmio Nobel em Ciências, contra mais de
trezentos homens?
(MCGRAYNE, 1994, p.13).
É questionando o lugar das mulheres no campo das ciências que
McGrayne abre sua obra Mulheres que ganharam o Prêmio Nobel em
Ciências: suas vidas, lutas e notáveis descobertas (1994) e, assim fazendo,
aponta para um dado de realidade: a reduzida presença das mulheres nas
ciências da natureza.
Se acatamos a premissa de que a realidade é socialmente
construída, isso significa que o socius é regido por relações de poder que
repercutem na produção de saberes e emissão de dizeres. Acatando essa
premissa, estamos assim navegando em águas epistemológicas que
argumentam a regência das condições sócio-culturais e econômicas no
processo de produção de idéias porque, como diz Marx (1977, p.24), “Não é a
consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que,
inversamente, determina a consciência.” Do ponto de vista da construção
discursiva da ciência, Pêcheux segue a linha do raciocínio marxiano ao
afirmar que essa produção é um “efeito (e a parte) de um processo histórico
determinado.”(1988, p.190). As condições de aparecimento
estão vinculadas, continua Pêcheux (1988, p.190), “ às ideologias práticas
do modo de produção capitalista e à relação que essas ideologias mantêm
com as do modo de produção anteriores.” E, conclui ele, “através delas, as
ciências 'já começadas'(essencialmente, o continente matemático).”.
Em se tratando de gênero e ciência, considerar a produção do
conhecimento como um “efeito (e a parte) de um processo histórico
determinado”, implica destacar a base material não só do modo de produção
capitalista, mas também do patriarcado que, lembrando Castells (1999,
p.278), “dá sinais no mundo inteiro de que ainda está vivo e passando bem
[...].”.
Assim sendo, partindo do dado de realidade do lugar das
mulheres nas ciências da natureza, fazemos nossa a questão de McGrayne –
Por que tão poucas? – e, fundamentada nessa leitura epistemológica de
produção do conhecimento e construção discursiva, partimos em busca das
possíveis relações históricas que apontam para a relação das mulheres com
a ciência, particularmente, com a matemática.
Do ponto de vista dos Estudos de gênero, esse tema vem sendo
objeto de investigação por teóricas feministas que, numa postura crítica à
ciência, há muito vêm evidenciando a presença de implicações de gênero no
campo do saber científico. Isso implica perscrutar o processo de construção
desse campo do saber, destacando suas condições de produção patriarcal e
552
capitalista, bem como sua articulação com a relação de gênero.
COMO PERSCRUTAR? DISCURSO E GÊNERO NA CIÊNCIA
Na produção desse campo investigativo gênero e ciência,
necessário se faz elucidar como vem se processando essa relação no que se
refere à produção do conhecimento científico. Em relação ao gênero – como
uma categoria de análise historicamente datada – muito se tem escrito sobre
e com sentidos diferenciados; porém, alguns aspectos vêm se mantendo
presentes nas diversas abordagens: o relacional (que implica atributos
masculinos e femininos historicamente construídos) e o de dominação
(homens/masculino sobre mulheres/feminino). Para Scott (1990), isso seria
traduzido através de duas proposições básicas: gênero como elemento
constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas
entre os sexos; gênero como primeiro modo de dar significado às relações de
poder.
Como elemento constitutivo de relações sociais, o gênero atua
através dos processos simbólico (simbolismo de gênero), estrutural (divisão
sexual de trabalho) e individual (identidade de gênero), intrinsecamente
relacionados e, como tais, atribuem significados à masculinidade e
feminilidade; em relação ao poder de gênero, uma das formas de dominação
social, em que o masculino é sempre mais valorizado que o feminino. Nesse
sentido, se o Modo de produção capitalista constitui o conceito-chave para
dar conta da dialética de classes, o de patriarcado (ordem patriarcal de
gênero) é a chave conceitual para a apreensão da dinâmica do
feminino/masculino, historicamente construídos.
Sobre essa abordagem patriarcal de gênero, Pateman enriquece
a discussão em The Sexual Contract (1988), quando trabalha o conceito de
patriarcado como um contrato sexual; atuante no âmbito privado, mas com
desdobramentos para o espaço público, essa conceituação permite que se
constate a estrutura patriarcal do capitalismo e de toda a sociedade civil,
donde os desdobramentos de estruturas patriarcais de pensamento. Para
ela, a “lei do pai” e a “lei do marido” vêm garantindo a perpetuação de uma
história de liberdade para uns sujeitos sociais e submissão para outros; a
relevância desse conceito se justifica nos Estudos de gênero, entre outras
razões, porque é através dele que são atribuídos direitos aos homens sobre
as mulheres, configurando uma relação de poder, cuja base material se
sustenta na desigualdade estabelecida no âmbito do trabalho e no controle da
sexualidade e reprodução. Se literalmente se entende patriarcado como “lei
do pai”, historicamente o sentido desse termo está associado a uma espécie
de pacto masculino para garantir a opressão das mulheres e, conforme afirma
Vivien Burr (1998, p.14), “Historically, the term was used to refer a system of
government in which older men governed women and younger men through
their position as heads of hoouse-holds olds.”.
Já em relação à gênese e desenvolvimento da ciência moderna,
sua emergência se deu por volta do século XVII, em meio a um processo de
553
transformações culturais e conflitos filosóficos, que culminou com a
derrocada da visão sacral de mundo, apoiada nas verdades reveladas; nesse
sentido, representou uma reação ao obscurantismo medieval que pretendia
reduzir todo conhecimento à tirania da “Santa” Inquisição, inclusive o
científico. Neste momento emergente, os princípios norteadores da nova
visão de mundo secularizada e apoiada na razão têm como “pais” duas
figuras excepcionais na história das idéias: René Descartes (1596-1650) e
Francis Bacon (1561-1620); neles, a Ciência moderna vai ser edificada
contando em seus alicerces premissas cartesianas, particularizando-se
como um conhecimento de caráter racional e empírico.
Diante dessa rígida construção teórico-metodológica do
emergente saber científico, assim estruturado em nome da neutralidade e
objetividade, não tardaram críticas questionando tais parâmetros de
cientificidade; a idéia de certeza embutida na ciência clássica, por exemplo,
foi questionada à luz do princípio da incerteza (termodinâmica, física
quântica, cosmofísica), vindo a gerar uma diversidade de discussões
epistemológicas. Na contemporaneidade, essas discussões contam com a
contribuição de Popper, Khun, Holton, Lakatos, Feyerabend, entre outros. No
cenário atual, cada vez mais se tende a constatar que a ciência está muito
mais para hipótese do que para certeza; que mesmo uma teoria provada, não
o está definitivamente, donde se apreender a construção do conhecimento,
nas palavras de Morin (1996), como um processo complexus (aquilo que é
tecido junto) e dialógico (espiral itinerante).
O movimento de crítica à ciência ficou conhecido como “crise dos
paradigmas” e, entre as críticas dirigidas, destacamos a do campo dos
Estudos de gênero, apontando para a presença dos valores androcêntricos
na concepção de ciência, bem como de sua prática. É nesse caldo de
discussão que nas últimas décadas do século XX (70 e 80) foi sendo forjado o
campo temático gênero e ciência, quando o feminismo, muitas vezes referido
como da segunda onda, se caracterizou como um movimento político e, como
tal, teve como efeito um projeto intelectual acadêmico: a teoria feminista. No
bojo desse movimento, em 1978 aparece pela primeira vez nomeado o
campo de estudo Gender and Science, num artigo de autoria de Evelyn Fox
Keller. Este projeto se dirigia a uma concepção de conhecimento
fundamentado na gênese da divisão sexual e emocional do trabalho, que
dicotomizava os sujeitos produtores: de um lado, o masculino identificado
com a mente, razão, objetividade; do outro, o feminino, com o coração
(corpo), sentimento, subjetividade, tendo como saldo, a exclusão das
mulheres do empreendimento científico. Buscava, em suma, identificar,
traços da ideologia androcêntrica nas ciências. Desde então, a produção
nesse campo vem se ampliando e se diversificando, mantendo como foco de
_____________________________________________________________
2
Entre outras produções nesse campo, destacamos as de: KELLER, E. F., 1991; HARDING, S.,1996;
ROSE, S., 1986; ROSE,H., 1977; JAGGAR,A. & BORDO,S.,1990.
554
direção questionar as bases da autoridade cognitiva das ciências da natureza
nas culturas ocidentais; nesse sentido, questionar as bases da construção do
saber científico, perscrutar o lugar das mulheres no campo das ciências,
implica a apreensão das condições de produção dessa realidade em que as
mulheres estão sub-representadas, bem como da construção discursiva da
relação de gênero na ciência.
Isso remete para um dispositivo teórico-metodológico
preocupado com o funcionamento discursivo, isto é, com uma leitura de
realidade a partir de uma proposta interpretativa de mundo, que desnaturaliza
o ato da leitura: o que ler quer dizer? Nessa questão, está posta uma visão de
leitura que vincula o dizer à sua exterioridade e, assim sendo, o ato de ler
assume o estatuto de um dispositivo teórico, conforme trata a Teoria da
Análise do Discurso (AD). Em nossa análise, adotamos a AD como dispositivo
teórico-metodológico e nele nos apoiamos na busca de apreensão do
funcionamento discursivo, remetendo o texto ao discurso.
A análise sobre o tema gênero e ciência implica buscar o
atravessamento de gênero na construção do saber científico, bem como a
vinculação dessas categorias com outras a elas relacionadas; nessa busca,
tanto a constituição social, como a relação de poder remetem para as
condições históricas de produção discursiva, donde a abordagem de dois
conceitos básicos: o de patriarcado e o de modo de produção capitalista.
No seu sentido mais geral, patriarcado consiste num lastro
constituinte fundamental caracterizado por relações hierarquizadas entre
seres socialmente desiguais que, na ordem de gênero, correspondem a
homens e mulheres. Historicamente, de acordo com estudos que vêm sendo
realizados (PATEMAN, 1988; CASTELLS, 1999; LERNER, 1986; JOHNSON,
1997) essa ordem patriarcal apresenta alguns traços marcantes e, entre
estes, destacamos o controle imposto, tanto em relação à natureza (meio
ambiente), quanto ao socius. Estes traços vão se manifestar em formações
discursivas várias, inclusive na da ciência, marcadamente construída pela
visão cartesiana e empiricista do saber; é diante disso que os traços
patriarcais na produção do saber científico também se fazem presentes,
através de parâmetros masculinos que subjugam a mulher e a natureza.
Na contemporaneidade, imagens androcêntricas continuam
sendo disseminadas e macicamente usadas no mundo da ciência quando por
exemplo, se faz uso de denominações do tipo: ciências exatas como dotadas
de rigor e as sociais, de flexibilidade; ciências hard e soft,
_____________________________________________________________
3
Sobre o nascimento da Ciência Moderna, Rossi (2001) estabelece um período em torno de 160 anos, que
vai do surgimento do tratado de De revolutionibus de Copérnico (1543) ao da Ótica de Newton (1704).
4
Em O Discurso sobre o Método, Descartes estabelece os fundamentos da Ciência moderna pelo
racionalismo e pela objetividade, bases do positivismo, que surgiria mais tarde, no século XIX. Defendia a
superioridade da Razão sobre os sentidos na apreensão dos fenômenos materiais (res extensa),
diferenciado do mundo dos espíritos pensantes e racionais ( res cogitans).
5
Considerado o “Pai do Empirismo”, Bacon criou a idéia de possibilidade de dominar as forças da
natureza para benefício do homem.
555
“duras” e “moles”, gendramente dicotimizadas. O outro conceito básico em
nossa análise – o de modo de produção capitalista –, particularmente, no que
se refere à emergência do saber científico, implica na questão: qual o lugar
da ciência no capitalismo?
No Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política,
(1977), Marx afirma que o modo de produção de vida material condiciona a
vida social, política e intelectual e, nesse sentido, a realidade social determina
a consciência. Ora, em se tratando da produção do saber científico em sua
inserção histórica e o modo de produção capitalista na formação social
européia do século XVII, observa-se como estão irmanados, donde se
identificar similaridades entre ambos. Já em meados do século XIX Marx
ressaltava a atuação da ciência como força produtiva direta de acumulação
capitalista e como meio de controle social, contribuindo para a perpetuação
do sistema.
Entendemos que é considerando essas condições de produção
da ciência, bem como sua construção discursiva, que Harding (1986) chama
a atenção para a imagem construída da figura de cientistas: em regra,
homem, branco e de classes favorecidas; um outro ponto, é o parâmetro do
modo de pensar, sempre marcado pela separação: seja na concepção e
execução da pesquisa, seja na concepção de procedimentos “científicos”
adotados, sempre marcados pelo signo da separação entre pensamento e
sentimento, sujeito e objeto, corpo e alma.
É a partir desse referencial portanto, que se argumenta ser a
construção discursiva da ciência sustentada por condições de produção de
nível material e também ideológico: idéias, costumes, religião, educação,
artes, etc. Esse nível ideológico funciona através de mecanismos que
buscam manter relações de dominação como se fossem da ordem do natural;
tanto Althusser, em Ideologia e Aparelhos ideológicos de Estado (1970),
como Pêcheux e Fuchs (1993) na Teoria da AD, trabalham a ideologia como
interpelação. Estabelecidos os marcos referenciais teórico-metodológicos,
abordamos a seguir o funcionamento discursivo, tendo como base um texto
escrito (Redação) de um docente de Matemática da 9° ano.
COMO O GÊNERO ENTRA NA ESCOLA? A MATEMÁTICA, RELAÇÕES
DE GÊNERO E PRÁTICAS ESCOLARES
Mesmo reconhecendo a ampla teia de condições históricas
possíveis propiciadoras dessa condição de sub-representatividade,
elegemos uma delas – a instituição escolar – por reconhecermos o papel
fundamental que exerce no processo de formação de crianças e jovens, nas
suas escolhas pessoais e profissionais. Ao mesmo tempo que consiste numa
instituição que desempenha papel fundamental na sociedade, reproduz no
seu interior (estrutura e funcionamento) as relações sociais e, como tal,
constitui o espaço em que se dá o discriminatório aprendizado da separação
e da desigualdade, destacando-se aí a de gênero.
Eis portanto um ambiente propício para que as relações de
556
gênero se manifestem, sejam construídas e reproduzidas, muito embora não
sejam as únicas nessa função, co-existindo ao lado de outras instâncias
ideológicas. Desde Althusser, com A Ideologia e os Aparelhos Ideológicos de
Estado (AIE) às recentes produções sobre esse campo institucional escolar,
sabe-se de sua importância, tanto no processo de socialização, como na
introjeção de mecanismos ideológicos que funcionam na modelação de
corações/mentes/corpos, incluindo aí as relações de gênero. Com os AIE,
Althusser lançou as bases para a crítica marxista da educação,
estabelecendo a relação educação e ideologia; para ele, a manutenção do
capitalismo dependeria não apenas da reprodução das relações de trabalho e
dos meios de reprodução, mas também dos mecanismos ideológicos.
Nesse processo, entram em cena, entre outras instâncias
ideológicas, a religião, a família, a mídia, as artes, a ciência, o senso comum,
a escola. Justificando sua argumentação sobre a posição da Escola como
aparelho ideológico dominante, afirma Althusser (1985, p.64) que, “Desde a
pré-primária, a Escola toma a seu cargo todas as crianças de todas as classes
sociais, e (...) inculca-lhes durante anos, (...) 'saberes práticos' (...) ou
simplesmente, a ideologia dominante no estado puro”.
Esse conjunto de saberes é atravessado pela ideologia de
gênero, perpassa as instâncias sociais e chega à escola através das mais
diversificadas vias: livro didático, currículo, brincadeiras, jogos, conteúdos
disciplinares (regra gramatical do masculino plural), bem como através do
“currículo oculto” (o dito no não-dito, gestos, silenciamentos), pela relação
estabelecida dos profissionais da educação com meninos e meninas. Esta
relação, por sinal, vem sendo objeto de estudos (WALKERDINE, 1995;
CARVALHO, 2001; CAVALCANTI, 2003) e sendo apontada como uma das
mais poderosas formas de reprodução da desigualdade de gênero no espaço
escolar; esse dado se fundamenta não só pelo modo diferenciado como
profissionais da educação tratam meninos e meninas mas, sobretudo, por
considerarem esse modo como da ordem do “natural”.
Sobre essa visão do “natural”, dos silenciamentos e implícitos, dos
ditos e não-ditos” Louro (2001, p.67), afirma que a educação marca as
pessoas com o que é dito, mas também com o que é silenciado, visto que “ tão
ou mais importante do que escutar o que é dito sobre os sujeitos, parece ser
perceber o não-dito, aquilo que é silenciado – os sujeitos que não são, seja
porque não podem ser associados aos atributos desejados, seja porque não
podem existir por não poderem ser nomeados”.
Já Cavalcanti (2003, p.183) argumenta que o cotidiano escolar
reproduz as relações sociais dicotomicamente, também em relação ao
conhecimento humano, “imputando aos meninos maior tendência à
atividade motora, à transgressão das regras estabelecidas e a uma relação
mais objetiva e impessoal com o conhecimento”; às meninas, em
contrapartida, continua Cavalcanti (2003, p.183), lhes é imputada
“uma forma mais passiva e pacífica de comportamento, uma maior motivação
557
para a organização e limpeza, e uma maior atenção em relação às emoções e
aos relacionamentos.” Essa postura geral se desdobra, particularmente, para
o ensino das disciplinas e, em relação à matemática, vem persistindo
questões sobre sua relação de distanciamento com o feminino. No campo
das ciências, apesar das estatísticas estarem apontando para um aumento
da presença feminina nesse campo do saber, as mulheres porém, continuam
hierarquicamente excluídas das posições de poder (exclusão vertical). É em
função disso que questionamos: De que modo a instituição escola, através de
seu corpo docente, pode estar contribuindo para o distanciamento das
meninas/jovens da matemática?
Eis a questão que nos leva a perscrutar o gênero na escola.
Assim sendo, tendo em vista apreender os possíveis mecanismos
reprodutores das relações de gênero a contribuir para a diminuta presença de
mulheres na matemática, elegemos a instituição escolar como nosso locus
investigativo; nela, buscamos um docente do 9° ano para produzir um texto
escrito (Redação) a partir da seguinte questão-temática: “Como percebo o
desempenho de alunas e alunos na aprendizagem da matemática?”.
Para efeito dessa reflexão, vamos nos deter no texto escrito que,
de acordo com as pistas discursivas fornecidas, nos possibilitará o acesso ao
discurso, conforme já anteriormente abordado: remeter o texto ao discurso,
buscando contextualizá-lo e situá-lo a partir de sua relação com as condições
de produção discursiva. Esta contextualização textual implica num processo
de intervenção no texto, recortando-o (R) em fragmentos (frases,
parágrafos), dando conta dos dizeres enunciados sobre a questão-temática
_____________________________________________________________
6
Disciplina emergente nos anos 60 do século XX, filiada à Escola Francesa de Michel Pêcheux e que tem
no Discurso seu objeto analítico; nessa concepção de AD, o que se busca é “como um discurso funciona
produzindo (efeitos de) sentidos.” (ORLANDI, E., 2001, p.63).
7
Em 2004, nos dados do CNPq, consta a seguinte distribuição por sexo no doutorado: masculino –7.836;
feminino – 8.750. Garcia e Sedeño (2006) afirmam que, mundialmente, a participação das mulheres nas
ciências está em torno de 30% e ocupando cargos de poder, de 5 a 10%.Resultados do Pisa (Programa
Internacional de Avaliação do Estudante) em 2006, por sua vez, apontam para uma evolução positiva na
posição feminina no desempenho e produção intelectual. Porém, tanto nas ciências, como na vida
profissional, essa posição continua aquém da masculina (diretorias de grandes empresas, altos escalões
do governo e na vida acadêmica).
558
proposta, o que resultou num tópico, conforme apresentado no
Quadro 1, seguido de análise.
8
A noção de locutor remete à idéia de Ducrot (1987), entendida como porta-voz do discurso.
9
Estamos entendendo “operador” no sentido trabalhado por Guimarães (1989), em que a língua é marcada
argumentativamente, através do funcionamento de preposições, conjunções, advérbios, etc.
560
impulsiona a observá-lo/apreendê-lo/interpretá-lo de acordo com referenciais
pré-estabelecidos. O que precisa ser ressaltado é que, de acordo com a
premissa de que o conhecimento é socialmente construído, a construção
paradigmática também o é e, como tal, está vinculada a relações de poder
que a sustentam e perpetuam.
É remetendo o texto do docente sobre a aprendizagem da
matemática por meninas e meninas para o discurso da ciência que buscamos
centrar a análise do funcionamento discursivo; este tem como pano de fundo
o dualismo ontológico, baseado na lógica binária da diferença com todas as
implicações que isso traz para questão de gênero.Sobre essa questão,
Tubert (1996, p.303), argumenta que “ El discurso masculino está constituído
por uma lógica binária (logocentrismo) que organiza todo lo pensable en
oposiciones y está asociado al falocentismo en tanto las oposiciones binarias
y asimétricas se relacionam siempre con el par hombre/mujer.”
A oposição de homens e mulheres na aprendizagem da
matemática, de acordo com o locutor, aponta para uma formação discursiva
de ciência androcêntrica, expressão do patriarcalismo, em que prevalece “el
discurso masculino” em todas as instâncias sociais, fundamentado na lógica
binária da diferença. Esta constitui o solo fértil a alimentar e nutrir
mecanismos ideológicos de gênero, regidos pela “mesmidade”, ou seja, “ la
lógica interna del logocentrismo” dicotomizando homens/masculino (posição
superior) e mulheres/feminino (posição inferior). Em oposição a essa lógica
excludente, própria do paradigma cartesiano, a leitura feminista de gênero se
fundamenta numa construção epistemológica que privilegia o complexus,
sempre atento às tendências separatista, reducionista e fragmentada.
Ontologicamente, se aproxima da ontologia do múltiplo (Badiou,1993), que
se caracteriza por: privilegiar verdades transposicionais e construção de
diferenças de gênero apoiadas na singularidade infinita de individualidades
históricas; entender os seres humanos nem como idênticos, nem diferentes
mas, simplesmente, como semelhantes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
MATEMÁTICA, ASSUNTO PARA MULHERES?
Como considerações finais de nossa reflexão, apresentamos a
seguir alguns resultados a que chegamos e apontamos algumas possíveis
alternativas tendo em vista o desencadeamento de mudanças nas relações
de gênero na ciência. Diante da prática discursiva do docente de matemática,
consideramos que faz sentido a premissa hipotética sobre o atravessamento
de gênero na produção científica, como um mecanismo que contribui para a
sub-representação das mulheres nesse campo do saber. Diante da questão
Por que tão poucas? consideramos que mecanismos explícitos, mas também
implícitos (pela via do “currículo oculto”) funcionam para a inclusão desigual
das mulheres nas ciências da natureza. E, diante disso, acrescentamos mais
561
uma questão: Até que ponto práticas discursivas similares à do docente de
matemática estariam funcionando também para a manutenção do Por que
tão poucas?
Na prática discursiva docente, destacamos os seguintes pontos:
em seu dizer, o locutor reconhece a existência de diferenciação
entre meninos e meninos na aprendizagem da matemática; entre as razões
que aponta (culturais e genéticas) sinaliza para uma heterogeneidade
discursiva mas, homogeneamente enraizada em traços patriarcais da cultura
brasileira. Assim sendo, diríamos que as pistas discursivas do docente
apontam para estereótipos que se presentificam na escola e nos dizeres de
profissionais da educação; estes tendem a funcionar como os elos fortes da
cadeia de reprodução de valores androcêntricos e, consequententemente,
contribuem para o distanciamento das mulheres das ciências da natureza.
Todavia, se a realidade é discursivamente construída, também
poderá ser desconstruída e reconstruída; se discursos gendrados perpassam
as instâncias sociais e chegam à escola fortalecendo a rede de aprendizagem
da separação entre o mundo masculino e feminino, práticas discursivas
outras poderão entrar em cena e abrir caminhos para que outras vias
discursivas sejam trilhadas. Em função disso, necessário se faz efetivar
programas nas escolas direcionados para o corpo docente e discente, tendo
em vista a reconstrução do feminino, desde uma nova menina à uma nova
mulher.
Em relação à mulher na ciência, incrementar atividades e
mudanças substantivas curriculares, inserindo nos conteúdos programáticos
estudos e discussão sobre as cientistas na história; no que se refere ao
“currículo oculto”, realizar ações afirmativas que eliminem atitudes
androcêntricas nas práticas informais na escola, nas atitudes
docentes/discentes. Tais mudanças se fundamentam na premissa de que
nem a escola, nem a ciência são neutras e objetivas; em direção à mudança,
necessário se faz a promoção efetiva de práticas discursivas (oficinas
temáticas), que reconstruam o masculino e o feminino, calcados numa nova
lógica: ao invés do binarismo da diferença, a ontologia do múltiplo.
No discurso da prática escolar, perscrutar novos olhares e
questionamentos, como por exemplo: se as meninas são apreendidas (pelo
corpo docente) como obedientemente cumpridoras de regras (maior
capacidade de atenção, observação e interesse), esse é um dado que se
choca com o imaginário coletivo sobre a natureza desagregadora do
feminino, responsável pela disseminação do mal no mundo. Pois, não cabe à
Eva, à Pandora, entre tantas outras imagens femininas miticamente
_____________________________________________________________
10
Título de um curso proferido por Carol Gilligan, citado por Dowling (2000, p.136).
11
À guisa de ilustração, lembramos a crítica de Paulo Freire à “educação bancária”, analogia aproximada a
um ensino que busca a memorização de informações depositadas a-criticamente.
562
construídas, a responsabilidade pela disseminação do mal no mundo? O que
aconteceu com a alma feminina? Mudou? Ou mudam as meninas que, depois
de adultas, se tornam desregradas /desagregadoras? Ou os mitos são
construídos exatamente com essa função de mascarar a “essência das
coisas”? Sabe-se, desde sempre e em toda parte, que se tem medo do
feminino e a mulher miticamente é acusada pelo masculino de haver
disseminado a infelicidade, a morte, o caos sobre a terra. Mesmo
reconhecendo o aparato concreto dessa representação, que tem na base
condições sociais de produção de um discurso patriarcal secularmente
sedimentado e que posiciona o feminino nesse lugar de agente
desagregador, o que importa atentar é para a força simbólica nela contida e
para os efeitos de verdade que produzem.
Esses são pontos que implicam num confronto interrogativo com
a “aparência exterior” das práticas discursivas escolares contidas, seja no
senso comum, seja na ciência, cujos discursos são alimentados e nutridos
pela ordem patriarcal de gênero; este se manifesta em formações discursivas
várias, como por exemplo, na ciência androcêntrica cartesiana. O confronto
interrogativo com essa “aparência exterior” implica o uso de ferramentas
teóricas e, entre elas, o da ciência crítica, que busca apreender as
contradições internas e as condições de produção material da construção
discursiva. É nessa direção que vêm caminhando os Estudos de gênero e as
investigações realizadas sobre o atravessamento de gênero na ciência.
Tendo em vista possíveis mudanças em direção a uma presença efetiva das
mulheres nas ciências, necessário se faz o desencadeamento de atividades
sob o enforque de gênero, seja no espaço da instituição escolar, seja nos
Cursos de Pedagogias das IES (Instituições de Ensino Superior). Tais
atividades terão como foco desconstruir os mecanismos ideológicos ,
sobretudo no “currículo oculto”, que vêm contribuindo para o Por que tão
poucas?
Pensar efetivamente em práticas educativas transformadoras
constitui um dos caminhos possíveis para, igualitariamente, construir um
espaço para as mulheres nas ciências.
Assim sendo, a matemática tornar-se-á, efetivamente, assunto
para mulheres.
563
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567
MULHERES CHEFES DE FAMÍLIA EM SALVADOR: articulações
interseccionais e experiências de empoderamento
1
NEIM/UFBA
569
pois nem todas são pobres. Inversamente, acredito que seu crescimento
entre as classes médias pode ser tomado como um indicativo de que há uma
melhoria significativa nas condições de sobrevivência e existência dessas
mulheres, principalmente quando comparadas às mulheres de classes
populares.
A investigação levada a termo trabalhou dois eixos fundamentais:
as trajetórias e as experiências de 30 mulheres chefes de família de classe
média em Salvador. Assim, buscou entender quais os caminhos que as
levaram à condição de chefes de seus domicílios, através da reconstrução de
suas trajetórias familiares, educacionais, afetivo-sexuais e conjugais e como,
nesse contexto, foram sendo construídas suas carreiras profissionais. Na
outra ponta, buscou mergulhar nas experiências atuais das entrevistadas em
torno do triplo pertencimento à condição de mãe, trabalhadora e chefe de
família: a idéia, portanto, foi a de perceber como seus marcadores de gênero,
raça/etnia, classe social e idade/geração, vão, na trama das
interseccionalidades (CRENSHAW, 2002), definindo-lhes suas experiências
atuais, entre escolhas e constrangimentos.
Nessa perspectiva, optou-se pela adoção de uma epistemologia
feminista que reconhece o conhecimento como proferido a partir de um lugar
(HARAWAY, 1995) e uma metodologia que visava valorizar a articulação de
práticas e representações, buscando integrar as dimensões objetivas e
subjetivas da existência desses sujeitos através do uso do conceito de
habitus – de forma a dar conta do duplo movimento de objetivação e
subjetivação da vida social (BOURDIEU, 1994).
Assim, a pesquisa de campo foi operacionalizada mediante o uso
de uma abordagem qualitativa, através da reconstrução de histórias de vida e
entrevistas em profundidade (com uma tentativa de observação) junto a
mulheres na condição de provedoras de seus domicílios e conviventes com
filho biológico ou não (dependente economicamente), acessadas através da
estratégia de formação de redes entre as entrevistadas. O trabalho de campo
foi realizado exclusivamente por mim entre outubro de 2006 e maio de 2007,
um verdadeiro “mergulho em campo” que resultou mais de 500 páginas de
relatos. Vamos, portanto, aos achados!
OS ACHADOS DA PESQUISA: apresentando as entrevistadas e suas
trajetórias
De um modo geral, pode-se caracterizar o grupo entrevistado
como composto por 30 mulheres profissionais, residentes em áreas
consideradas tipicamente de classe média da cidade de Salvador
(principalmente nos bairros da Graça, Ondina, Rio Vermelho, Itaigara, Pituba
e Praia do Flamengo). Desse universo, 18 mulheres possuem apenas um
filho, 10 têm dois e apenas duas possuem três filhos. A faixa de idade varia de
33 a 60 anos, distribuída basicamente em três grupos: as “jovens” de 33-39
anos (04), as “adultas plenas” de 40 a 49 (15) e as “maduras” entre 50 e 60
(11) – a maior concentração está, portanto, na faixa das adultas plenas com
570
50% das mulheres.
Em termos de pertencimento étnico-racial, a grande maioria é
branca (18) e as negras estão sub-representadas, como era de se esperar
numa população de classe média, com respectivamente, 07 mulheres pardas
e 05 pretas. Já no tocante à situação conjugal, predominam, maciçamente, as
separadas (22) e, em segundo lugar, as solteiras (4) e viúvas (3) e apenas
uma delas permanece casada (recasamento). Pude ainda constatar um
elevado nível de escolarização: das 30 mulheres entrevistadas, 28 têm 15 ou
mais anos de estudo, sendo 22 graduadas, 04 mestres e 02 doutoras – 02
estão fazendo mestrado e, pelo menos 02, planejam fazê-lo em futuro
próximo e uma já estava se preparando para fazer doutorado. Por fim, no
quesito condições socioeconômicas: (i) as faixas salariais das entrevistadas
estão concentradas entre 6 e 9 salários mínimos (11) e entre 10 e 14 (10) e, de
15 e mais (9); (ii) 2/3 já é possuidora de casa própria; (iii) é bastante reduzido
o número de entrevistadas que disseram receber pensão ou algum tipo de
contribuição para o sustento dos filhos por parte dos ex-companheiros –
apenas 1/3 estão nessa situação e (iv) 2/3 das entrevistadas possuem
apenas um dependente, o outro terço possui dois filhos nessa mesma
condição e um número bastante reduzido (03) possui, além dos filhos, outros
membros da família (neto/a, mãe e outros) como dependentes.
Quando instadas a falar de suas trajetórias e experiências de vida
ficou evidenciada a ocorrência de uma série de continuidades e
descontinuidades em suas posições e atuações sociais, decorrentes, em
grande parte de seu pertencimento (em trânsito) a diferentes grupos de idade
e geração. No geral, a narrativa das entrevistadas busca fazer um balanço de
suas trajetórias e experiências de vida, que são lidas, simultaneamente, a
partir do encontro entre escolhas e possibilidades e constrangimentos
impostos pelas suas circunstâncias sociais e pessoais e o fator
idade/geração é referido com diferentes sentidos por mulheres de diferentes
idades e gerações – havia uma clara preocupação em resgatar o trajeto
biográfico em conexão com o contexto social, pois “cada trajetória é um
caminho tornado possível” pelo encontro de circunstâncias sociais e escolhas
possíveis.
Também merece ainda ser explicitada a opção pelo “recorte
geracional” como importante marcador para pensar as convergências e
diversidade, daí ser esta a estratégia privilegiada de exposição dos achados
para apresentar os trajetos de mulheres pertencentes aos diferentes grupos
etários participantes da pesquisa. Assim, as práticas e representações em
torno de geração denotam vivências contraditórias, marcadas pela imposição
de parâmetros socialmente impostos, minimamente “adequados” ao que se
espera de uma pessoa com uma determinada idade biológica e,
simultaneamente, social (BRITTO DA MOTTA, 1999a; 1999b; 2000).
Assim, através das noções de agência humana (ELDER, 1994),
estratégia (BOURDIEU apud WACQÜANT, 2002) e curso de vida
571
(FEATHERSTONE, 1994) a análise das trajetórias vai mostrar que as
mulheres dos três grupos vão apresentar diferentes tipos de protagonismo –
pois fazem escolhas em um tempo histórico que traz seus marcos objetivos e
valores que lhe são atinentes. Daí se poder dizer que as trajetórias dessas
mulheres foram constantemente “atravessadas” e “produzidas” pelo encontro
de seus pertencimentos de gênero, classe, raça/etnia e idade/geração,
possibilitando-lhes fazer escolhas que não podem ser explicadas apenas
pelo dado de classe (isto é, pela acumulação de capitais – nesse caso cultural
e econômico), mas também por fazerem parte de diferentes gerações que,
progressivamente, vivenciaram a difusão e as conquistas das bandeiras
feministas e outras mudanças culturais (legalização do divórcio, as lutas por
emprego e salário igual, as mudanças nas hierarquias de gênero no contexto
familiar ou ainda na liberdade sexual e no direito ao prazer etc.). Mas, mesmo
dentro de um determinado grupo geracional, o contexto sócio-histórico será
reinterpretado a partir das diferentes “combinações” de pertencimentos
sociais, daí não ser possível pensar em geração como uma dimensão
homogeneizadora dessas trajetórias (ou ainda das experiências), pois, em
interação com outras dimensões ela própria é reinterpretada, inclusive, em
entre sujeitos que partilham um mesmo contexto sócio-histórico.
Portanto, essas diferentes combinações dos marcadores sociais
de classe – inclusive o pertencimento a diferentes estratos dentro dessa
classe –, raça/etnia, origem rural urbana, histórico e background familiar, vão
favorecer a constituição de diferentes habitus entre as mulheres pertencentes
a esses três grupos. Algumas terão as suas trajetórias mais marcadas pela
dimensão da sobrevivência, do investimento prioritário no processo de
escolarização ou mesmo nas atividades profissionais. Outras menos, pela
sua própria origem familiar, assegurando-lhes não apenas a transmissão de
capital econômico e o acesso a um capital cultural, viabilizado pela freqüência
às melhores escolas, o que vai lhes permitir gozar dos benefícios
assegurados pelo “peso do diploma” (BOURDIEU, 1998); mas, também
receberam todo um capital cultural transmitido em “estado incorporado”,
como lembra Bourdieu, na forma de uma familiaridade confortável com os
códigos de boas maneiras, o domínio da linguagem culta ou a intimidade com
os livros.
Certamente que há uma série de outros elementos que se
entrelaçam a esse quadro tão simplificadamente apresentado para tentar
explicar os pontos de convergência e as diferenças entre essas mulheres.
Esta observação é bastante pertinente, inclusive, porque fatores muitas
vezes minimizados como temperamento, personalidade ou mesmo certos
traços idiossincráticos dos sujeitos sociais, não podem ser ignorados em
nome de uma abordagem mais objetivista – é sempre tentador, para um/a
analista social que partilha de uma orientação teórica mais próxima de um
referencial de corte mais histórico-estrutural, remeter os possíveis nexos
explicativos da realidade de seu objeto de estudo a dados “mais concretos”,
572
particularmente a uma relação mais imediata entre os indivíduos e as classes
sociais, enfatizando a objetividade do mundo exterior como modeladora
desse sujeito que se deseja conhecer, numa relação de mão única. Espero ter
sido exitosa no esforço de fugir a essa tentação, atentando sempre para a
mútua influência entre determinações sociais e sujeitos históricos.
CONFRONTANDO EXPERIÊNCIAS: entre escolhas e constrangimentos
31 de dezembro de 2007, ultimo dia do ano. Uma conhecida
revista de circulação nacional publica como matéria de capa uma reportagem
intitulada: “a segunda vida das mulheres: a crise da meia idade chega ao
mundo feminino – e traz mudanças muitas vezes para melhor”. Por que causa
espanto que a vida dessas mulheres esteja mudando para melhor? O que
surpreende é o simples fato de que todas elas são separadas e mães – e,
portanto, são chefes de família – e, paradoxalmente, não estão em situação
pior de que aquela vivenciada antes, na condição de “mulheres casadas”.
Pelo contrário: essa nova vida parece ser melhor que a anterior.
O tema mulheres chefes de família é um dos exemplos dessa
leitura enviesada de que mulheres nessa condição estão sempre “na pior”,
contribuído fortemente para a construção de representações sociais
negativas a respeito do fenômeno, relacionando-o diretamente e de maneira
generalizada aos processos de feminização da pobreza. E, como afirmado
anteriormente, nem todas são pobres. Assim, qual o diferencial das mulheres
chefes de família de classe média em relação às de classe popular? Há
alguma uma especificidade nesse primeiro grupo? Pode-se falar ainda de um
diferencial intra-classe no interior desse grupo?
Em sintonia com a análise das trajetórias que já apontava para
uma margem de escolha mais larga em relação às mulheres das classes
populares, os “achados” acerca das experiências dessas mulheres vão
mostrar uma referência maior à dimensão da existência em relação à da
sobrevivência. Quando argüidas sobre a experiência de tornar-se chefe de
família, as mulheres vão ressaltar a relevância de ter a sua vida de volta para
si – o que chamarei da conquista de uma recém descoberta “liberdade de
gênero”. Assim, a dimensão de gênero ao ser ressignificada pela dimensão
de classe vai terminar por fazer com que, muitas vezes, a dimensão da
existência se sobreponha à dimensão da sobrevivência, gerando assim uma
situação muito mais confortável para a mulher de classe média –
que passa simultaneamente pela dimensão material e simbólica –, fazendo
com que essas mulheres terminem por construir o que optei por chamar de
um “habitus de gênero conforme a classe”. Isso porque, a partir das
dimensões objetivas e subjetivas da classe, se constrói uma forma particular
de viver a dimensão de gênero. Bourdieu (1994) vai mostrar que os processos
de engendramento do habitus, enquanto o resultado de um agir movido pelas
determinações, também se manifestam na forma de escolhas
circunstanciadas (isto é: aspirações pré-adaptadas às suas exigências
objetivas). É isso que vai diferenciar as experiências das mulheres de chefes
573
de família de classe média daquelas das classes populares, pois as primeiras
podem efetivamente elaborar escolhas e construir projetos congruentes com
seu universo objetivo e simbólico, pois, na maioria das vezes, dispõem de um
arsenal de meios e recursos necessários e suficientes para convertê-los em
realidade.
A dimensão da volição é, portanto, um elemento fundamental
para entender esse novo sujeito que surpreende e chega a causar espanto.
Com as recentes transformações culturais e, particularmente, nas relações
de gênero, as mulheres tornam-se cada vez mais impulsionadas à
autodeterminação, o que termina por desestimular trajetos tradicionais,
favorecendo novas escolhas e investimentos em projetos individuais e não
apenas no casamento – aproxima-se cada vez mais do “indivíduo
individualizado” (SINGLY, 2007) típico das sociedades industrializadas no
mundo contemporâneo.
A maternidade como escolha termina por ser uma das situações
prototípicas desse processo de autodeterminação onde a biologia não é mais
destino e a opção por filhos torna-se cada vez mais um projeto – as situações
de maternidade a solo do tipo adoção de crianças fora da conjugalidade ou
mesmo a produção independente vão representar exemplos que
materializam essa lógica. Esse é um outro diferencial entre as mulheres de
diferentes classes sociais, pois entre mulheres de classes populares não se
verifica o mesmo nível de vinculação de “aspirações e práticas objetivamente
compatíveis com as condições objetivas” – o que termina por fazer com que
volição e oportunidade permaneçam como um par desencontrado para essa
últimas.
Esse diferencial também irá se expressar na centralidade dos
filhos no projeto existencial dessas mulheres, pois embora a maternidade
seja um marco na vida dos indivíduos de ambos os grupos, a forma de viver
esse projeto e sua interação com outras dimensões da existência será
conformada pelas possibilidades objetivas e subjetivas de manejar o tripé
mãe-chefe de família-trabalhadora, onde as demandas postas em cada uma
dessas dimensões da experiência não apenas reflete na outra, mas, termina
por redefini-las. Assim, ainda que central, o projeto da maternidade precisa
ser relativizado, pois ele é apenas um dos eixos na vida das mulheres de
classe média que, como sujeitos escolarizados e intelectualizados, vão
buscar mais freqüentemente construir e alimentar projetos individuais.
Ser mãe, trabalhadora e chefe de família é uma experiência que
será redimensionada ainda por fatores como o tipo de relacionamento
mantido com o pai da criança e a possibilidade de acesso à compra de
serviços relacionados ao cuidado com filhos e com a casa e ainda quanto à
participação em redes de suporte e solidariedade familiares. As mulheres
entrevistadas vão apontar para as dificuldades de manutenção do vínculo
parental com a ruptura do vínculo conjugal – há recorrentes situações de
afastamento dos pais em relação à provisão econômica e educação dos filhos
574
–, o que parece apontar para a persistência de ideologias hierarquizantes
nesse contexto. Assim, são apresentadas uma pluralidade de situações que
vão desde a ruptura em definitivo do vínculo parental até a guarda
compartilhada, o que termina por mostrar como essa última situação ainda
pouco freqüente, mas em expansão entre as classes médias, pode vir a ser
um outro diferencial em relação às mulheres nessa situação pertencentes às
classes populares, pois, com partilha de responsabilidades com os filhos não
se configura o modelo de monoparentalidade em que uma única pessoa
precisa dar resposta à provisão, autoridade e a toda a esfera do cuidado.
Portanto, a situação típica de monoparentalidade vai acentuar a
relevância do recurso ao trabalho doméstico remunerado – fundamental,
especialmente, quando há crianças pequenas. Para as mulheres de classe
média esse arranjo de organização doméstica tem uma importância
estratégica, sinalizando, inclusive, seu pertencimento às classes menos
pauperizadas. Entre as entrevistadas 2/3 tem empregada doméstica e
algumas necessitam que essas trabalhadoras morem no domicílio, o que
muitas vezes termina por gerar uma relação de dependência em torno de
arranjos complexos, onde se misturam relações de trabalho, identidades e
trocas afetivas ambíguas – como o caso da entrevistada que dizia ser o
provedor e a empregada a esposa e a mãe da criança. Esse diferencial é
extremamente importante para pensar os contrastes nas experiências entre
mulheres de diferentes classes sociais diante dessa tripla responsabilidade
como mãe, trabalhadora e chefe de família.
Por fim, a participação em redes de suporte ao núcleo doméstico
familiar também será um outro elemento fundamental, pois aqui é trocado
muito mais que cuidados e afetos – no caso das chefes de classe média a
solidariedade intergeracional resultou em vários momentos em apoio
material, tornando-se elemento vital para a definição do nível de vida do
grupo: aproximadamente, ¼ das entrevistadas – e exatamente aquelas com
melhor condição de vida – pôde contar com apoio material para realizações
como a compra da casa própria ou montagem de negócio próprio, através da
transferência de capitais entre as gerações.
ALGUMAS CONCLUSÕES
Em primeiro lugar é preciso deixar claro que não existe uma
identidade particular dos sujeitos nesse contexto, mas uma partilha de
circunstâncias comuns que podem produzir certas “disposições duráveis”,
mas o entrelace de diferentes dimensões da existência termina por
impossibilitar qualquer tipo de homogeneidade no grupo. Assim, a construção
das identidades desses sujeitos estará marcada por uma pluralidade de
olhares sobre questões aparentemente comuns como: o “peso” da
responsabilidade de ser simultaneamente mãe, mulher e trabalhadora ou
inversamente a interação entre essas dimensões como fontes de
_____________________________________________________________
2
Trata-se da revista Época, Editora Globo, n.502, de 31 de dezembro de 2007 (p.80-86).
575
retroalimentação; ou mesmo a avaliação quanto ao crescimento em termos
de mobilidade ascensional, formulado por algumas como um fator limitante e
por outras como um divisor de águas numa trajetória a partir daí marcada pelo
crescimento profissional e uma melhoria em termos sócio-econômicos – pelo
menos 50 % das entrevistadas se consideram como tendo melhorado de vida
– decorrente de uma aprendizagem auto-gerida sobre como manejar o uso do
dinheiro e da autonomia para a viabilização de projetos; algumas apontam
como dificuldade “a solidão de não poder errar” enquanto, outras,
inversamente, comemoram a possibilidade de tomar decisões sem a
necessidade de um “outro homologador”; há ainda dissenso com relação ao
exercício da autoridade sobre os filhos, tarefa árdua para umas e necessária
e manejada com relativa tranqüilidade por outras que avaliam terem se
tornado mais assertivas e seguras com a experiência de chefia de família.
No geral, é bastante perceptível a ocorrência de um conjunto de
mudanças que vão permitir um avanço nessa direção da autodeterminação e
da assertividade. Chamei essa experiência de “pedagogia da praxis”
(GADOTTI, 1994), pois evidenciam a construção de um discurso que aponta
para múltiplos sinais de empoderamento, expressos em vários momentos por
um sentimento de potência quanto à sua capacidade de envidar esforços e
articular recursos para construir novos projetos. Entre eles, está o firme
propósito de permanecer sozinha diante da incompatibilidade (muitas vezes
de ordem emocional, intelectual e financeira) com possíveis parceiros, pois
não estão dispostas a pagar qualquer preço para estar em união. Várias
entrevistadas vão afirmar que estão sós, mas não solitárias e se posicionam
firmemente contra a idéia de “baixar o nível de exigência para não ficar
sozinha”, inclusive porque não vêem o estar sem parceiro como um problema
– ao que perece, para muitas a conjugalidade não é mais um projeto central.
Mas, nem todas estão sós, pois pelo menos 1/3 admitiu ter parceiro
(namorado, caso, ficante, companheiro), mas muitas não desejam mais a
coabitação, defendendo o “viver juntos, porém separados”.
Assim, essas mulheres parecem não querer abrir mão de
importantes conquistas como: o direito a requisitos mais igualitários nas
relações de gênero, a manutenção de “um teto todo seu” e a possibilidade de
cultivar projetos individuais – como retornar a estudar, montar um negócio,
mudar de profissão, consumir e trabalhar menos e ganhar mais qualidade de
vida entre outros. Os filhos permanecem como parte importante desse
projeto: querem vê-los formados e pós-graduados, trabalhando, mas
algumas já projetam, inclusive, uma separação física deles para que possam
seguir vidas paralelas, próximo afetivamente, mas voltadas para por em
movimentos os projetos pessoais de cada um.
_____________________________________________________________
3
Os dados relativos às mulheres de classe popular são de uma pesquisa anteriormente realizada por mim,
como dissertação de Mestrado: MACÊDO, Márcia S. Tecendo os fios e segurando as pontas: trajetórias e
experiências entre mulheres chefes de família em Salvador. Dissertação (Mestrado em Sociologia).
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.
Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1999, 185p.
576
Por fim, espero que esse trabalho tenha terminado por oferecer
alguma luz para se compreender melhor o que é ser mulher chefe de família
de classe média hoje, sem tomar o “lugar social” desses sujeitos numa
perspectiva imobilizada do tipo “elas são assim” ou mesmo próxima de
qualquer tentativa de definir-lhes uma visão de mundo específica ou
particular. Portanto, gostaria ainda de reafirmar algumas questões
importantes que emergiram do trabalho de investigação. Entendo que as
mulheres chefes de família estão cotidianamente sendo desafiadas a
enfrentar as definições tradicionais do que é ser mulher, pois, pela própria
posição que ocupam no seu grupo familiar, têm vivenciado experiências que
não se encaixam nos esquemas tradicionais do gênero e, nesse processo,
são obrigadas a confrontar, em vários momentos, os códigos culturais e
estereótipos existentes.
Creio que desafio de compreender a emergência de uma nova
identidade entre essas mulheres, requer desvendar os processos de
estruturação, determinados por uma base objetiva e subjetiva de sua
experiência e que através das respostas produzidas por esses sujeitos, vai se
materializar em um novo habitus de gênero. Isso significa dizer que passa,
principalmente pela experimentação de muitas e novas maneiras de ser
mulher, mãe, trabalhadora, chefe de família e sujeito de sua história. Por outro
lado, é muito importante esclarecer ainda que não se trata aqui de pensar um
único habitus de gênero dentro de um esquema de simplificação das relações
sociais aí existentes. Isso porque elas estão sendo desafiadas
cotidianamente perante certas práticas, discursos e representações sociais
que são estruturadas por outros eixos hierarquizantes das relações sociais,
também igualmente relevantes, em termos de classe social, idade/geração,
raça/etnia, orientação sexual.
Portanto, arrisco a pensar que, nesse contexto de articulação
dinâmica de dimensões fundantes da vida social, essas mulheres chefes de
família estão sendo produzidas por e ao mesmo tempo produtoras de novas
possibilidades de viver a dimensão de gênero segundo sua classe social, sua
idade/geração e raça/etnia. Assim, como apontado anteriormente nesse
trabalho, preciso reafirmar as diversidades inter e intra-classes, pois ao falar
em mulher chefe de família de classe média estou me referindo à construção
de um habitus de gênero conforme a classe, pois é possível visualizar
diferenças significativas nas práticas e representações entre mulheres
chefes de família de diferentes classes sociais. Mas o processo não pára por
aí, pois esse habitus de gênero conforme a classe se apresentará de maneira
distinta ainda conforme a idade/geração dentro de um grupo de mulheres
chefes de família de mesma classe social, mas pertencentes a diferentes
grupos geracionais – e aí por diante –, sempre tecidos nas tramas das
relações interseccionais de seus outros pertencimentos sociais.
Finalizando: acredito que a adoção dessa perspectiva termina
por permitir que se possa compreender que algumas mulheres vivem a
577
experiência da chefia em termos bastante diferenciados do viés dominante
nesse campo de estudos, a depender da combinação de seus diferentes
pertencimentos sociais, o que pode significar dizer que, em algumas
situações, ser chefe de família pode ser lido como o resultado da melhoria das
condições de vida de algumas mulheres e não o contrário.
578
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POLÍTICAS. Ouro Preto: ABEP, 2002, 99p.
580
MULHERES PESCADORAS: a construção da resistência no mundo da
pesca.
Maria do Rosario de Fátima Andrade Leitão
Alexsandra Silva de Lima
Gilmar Soares Furtado
O artigo objetiva analisar o processo de conquista das mulheres
na colônia Z-10 em Itapissuma, através da historia, das lutas e resistências
por elas vividas. A escolha do tema iniciou com as leituras sobre gênero e as
visitas a Colônia de Pescadores Z-10 em Itapissuma. A literatura além de
subsidiar a compreensão sobre o trabalho feminino, passou a ser
considerada como fonte de informação sobre o processo de luta e conquistas
dos pescadores, sobretudo, pescadoras, dentro de um espaço marcado pelo
machismo e desigualdade social. Ao longo da história do Brasil, podemos o
reconhecimento da atividade das mulheres no trabalho profissional da pesca,
tem sido observado como um fenômeno relativamente novo, porque a
Marinha de Guerra que tutelava as Colônias de Pescadores não admitia
mulheres em seu quadro, por isso também não concedia as mulheres
pescadoras o direito a se cadastrarem.
Considerando a questão da desigualdade entre homens e
mulheres ainda bastante arraigada em nossa sociedade, focando neste
estudo o espaço pesqueiro, traremos como problemática o relato de Luta,
Resistência e Conquista das Mulheres Pescadoras de Itapissuma, a partir de
sua história e trajetória.
Neste contexto o artigo fomenta o debate sobre o papel das
mulheres na pesca artesanal nas dimensões estabelecidas entre a casa e o
mundo do trabalho, destacando suas limitações potencialidades, destacando
as relações de gênero e identidade.
Alguns marcos na história das colônias de pescadores/as são:
As primeiras colônias de pescadores do Brasil foram estabelecidas a partir de 1919, e
foi levado a cabo pela Marinha de Guerra. O primeiro estatuto das colônias de
pescadores data de 1º de janeiro de 1923, assinado sob a forma de aviso, proveniente
da Marinha. (BRAS)
_____________________________________________________________
1
Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Extensão Rural e Desenvolvimento Local.
POSMEX- Universidade Federal Rural de Pernambuco – UFRPE. rosario@dlch.ufrpe.br
2
Bacharel em Ciências Sociais – Universidade Federal Rural de Pernambuco -
UFRPE.alexsandralima18@hotmail.com.
3
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Extensão Rural e Desenvolvimento Local. POSMEX-
Universidade Federal Rural de Pernambuco – UFRPE. gilmarfurtado@gmail.com
4
Extensão Rural & Extensão Pesqueira: experiências cruzadas. Maria do Rosário de Fátima Andrade
Leitão (org.). Recife: Fasa, 2008.
581
Em 1920 foi criada a Confederação dos Pescadores do Brasil. Posteriormente com o
decreto nº. 23.134/33 foi criada a Divisão de Caça e Pesca, onde um dos objetivos era
gerenciar a pesca no país. Os pescadores deixaram de estar submisso ao Ministério
da Marinha e passaram para o domínio do Ministério da Agricultura. Posteriormente
com o Decreto-Lei nº. 4.890 de outubro de 1942, retorna ao controle dos pescadores
do Ministério da Agricultura para o da Marinha.
_____________________________________________________________
5
Sobre o assunto da poluição e do lançamento de bombas no mar, em noticia de jornal, relata que Joana
Mousinho foi ameaçada de morte por ter denunciado um companheiro que jogava bombas para matar os
peixes. (Fonte: Diário de Pernambuco, 06 Janeiro de 1991).
6
Margarida Rodrigues Mousinho nesta época era presidente da colônia de pescadores Z-10, assumiu
o cargo com a renuncia do anterior presidente o Sr. Genival Aquino de Souza, sendo a 1ª mulher a
ocupar tal posição.
586
na memória de identidade profissional da pescadora. Mulher,
com baixo nível de instrução e de renda, luta para sobreviver numa profissão
estereotipada como masculina. Leva a mulher a uma situação coadjuvante.
Sobre esse assunto, Maneschy (1999) ressalta sobre o caráter completar da
atividade feminina:
A complemetariedade, que em princípio denotaria interdenpendenciae,
portanto, pressuposto para relações simétricas entre os sexos, como
acentuou Badinter (1986), é tradicionalmente pensada em termo de
ascendência dos papeis masculinos sobre os femininos, tidos como
acessórios. Tal modelo ideológico é acentuado sob o capitalismo, na
medida em que a noção de trabalho é associada à geração de renda
monetária, concebendo-se como secundarias aquelas atividades não
pagas, relacionadas ao consumo, como o preparo dos alimentos, sua
distribuição e, logicamente, o cuidado com os seres humanos”.
(MANESHY, 1999, p. 163).
7
(Fonte: Diário de Pernambuco, Janeiro de 1991):
8
Fonte: Diário de Pernambuco, Novembro de 1997 – Colônia de Pescadores Faz 70 Anos
587
desempenharam, mas que não eram vistas por causa de uma divisão social
do trabalho intensamente centrada no masculino, divisão que conceitua o
mar como ambiente de homens e posiciona as mulheres na terra. Assim, a
presença feminina na liderança da colônia de pescadores Z-10 em
Itapissuma se mantém na beira do mar, no mangue e na terra, e suas histórias
estão sendo reescritas por outras práticas e outros dizeres refeitos por essas
mulheres.
Vale ressaltar ainda a dupla jornada de trabalho para a mulher,
fato identificado por Joana Mousinho como a principal dificuldade da mulher
pescadora:
È muito difícil você sair você chegar, tratar, catar e cozinhar siri e outros
mariscos, consertar rede e ainda tomar conta da casa dos filhos... Porém,
pra mim tem uma vantagem, porque você esta convivendo diretamente
com a natureza, e isso é muito bom.
10
Jornal Diário de Pernambuco, 10 de novembro de 1997.
590
processos de mudanças sociais, culturais e políticas em países tem-se
evidenciado de forma expressiva, merecendo estudos e reflexões mais
profundas. Ser mulher hoje requer muita luta pelo reconhecimento da sua
posição como sujeito social, exigindo dos cientistas sociais um estudo maior e
especial das relações de gênero. O maior desafio de homens e mulheres é a
garantia de mecanismos para atuação das mulheres nos espaços de poder.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A História de luta, trabalho, resistência e conquistas revelam a
existência de uma pesca realizada por mulheres, que está relacionada há um
amplo conhecimento tradicional acumulado por gerações. O discurso
observado na entrevista com Mirian Mousinho da Paz, Presidente da Colônia
de Pescadores de Itapissuma destacou-se pelo “fazer-se pescadora”, pela
própria complexidade da pescaria do dia a dia onde enfrente risco oferecido
pela natureza e pela violência. A experiência de vida e trabalho dela enriquece
o discurso histórico com a apresentação de seus feitos, com também seus
relatos de perigo no mar, mas não subestima sua força e coragem, não
apenas dela, mais de todas as mulheres pescadoras que precisam trabalhar
para prover suas famílias.
Portanto, as mulheres pescadoras têm sido sujeitos de luta na
garantia dos territórios e direitos sociais das comunidades costeiras. Mas
essa presença precisa ser mediada pela visibilização de suas problemáticas.
Daí a necessidade e os esforços que desenvolvem para constituir-se como
sujeito político, visibilizadas e reconhecidas, na medida em que dão
movimento à construção de um espaço igualitário, democrático e
efetivamente sustentável. Num momento histórico em que se faz essencial à
organização política da sociedade civil, a organização política das mulheres
tem constituído um importante diferencial em relação ao fazer emergir outras
dimensões das desigualdades, como a exploração e opressão das mulheres,
refletida no machismo e nas estruturas patriarcais que ultrapassam as
dimensões de classe, de acordo com a tradição, tratada pelos diferentes
movimentos.
As pescadoras quebram barreiras advindas das relações de
gênero, que se proclamam na subordinação e na subserviência, quando
buscaram a edificação de um novo mundo. A partir das mudanças sociais,
advindas da valorização do conhecimento local e da participação eficaz de
todos os atores, em todas as etapas do processo, elas estão conquistando o
resgate da auto-estima da equidade e da inclusão social.
As colônias e associações de pescadores precisam assumir essa
ação e procurar rever a definição estreita de pescador, de modo a que
trabalhadoras da pesca hoje invisíveis tenham um espaço, ou seja, um lugar.
O acesso a benefícios como aposentadoria, seguro saúde, ou auxílio
maternidade constitui uma condição própria da cidadania. Garantir às
591
mulheres o estatuto de trabalhadoras da pesca, como parceiras de terra ou
das águas, é um grande passo na conquista de uma cidadania de qualidade,
com relações mais justas, igualitárias e democráticas entre homens e
mulheres.
Assim sendo, a manutenção e sobrevivência nas comunidades
pesqueiras é uma luta cotidiana. Na terra, as mulheres assumem a árduo
trabalho de fornecer alimentos e renda, na falta ou omissão dos homens. Elas
devem, pois, descobrir formas de sustento, e inventar novas táticas. Deste
modo, no universo da pesca, a idéia atribuída ao trabalho da mulher requer
análises mais aprofundadas, já que essa idéia aparece em geral ligar-se a
uma visão romântica e estereotipada da natureza feminina, que determinar
como essencial do feminino a maternidade e o trato do lar.
592
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2000. p. 241-274.
VIEZZER, M. O Problema Não Está na Mulher. São Paulo: Cortez, 1989.
WOORTMANN, E. F. Da Complementaridade à dependência: espaço,
tempo e gênero em “pesqueiras” do Nordeste. Comunidades. Revista
Brasileira de Ciências Sociais, n.18, fev.1992, p.41-61.
594
GT 6 – GÊNERO, LITERATURA E COMUNICAÇÃO
COORDENAÇÃO: Profª. Dra. Margarete Edul Prado Lopes – UFAC
APRESENTAÇÃO
599
MULHER INVISÍVEL: a imagem da mulher negra no jornalismo de revista
feminino brasileiro
Erly Guedes Barbosa
Prof. Dr. Silvano Alves Bezerra da Silva
Com o famigerado mito da democracia racial, a miscigenação
deixa de ser um ato natural e é analisada como um dispositivo de poder,
capaz de se manifestar como elemento que permite justificar e mascarar uma
prática que permanece invisível até então.
Na condição de dispositivo de poder, a mestiçagem comanda
ações, saberes e sentimentos em determinada direção, com o objetivo de
integrar e tornar dóceis as raças que estão na raiz da nacionalidade brasileira.
Nesse sentido, conforme Munanga (1999), a elite brasileira exalta a mistura
de etnias e as possibilidades de ascensão social do mestiço, como os meios
que comprovam que o Brasil é um país multicultural sem preconceitos e sem
discriminação – uma verdadeira democracia racial.
O mito da democracia racial forja a crença de que o negro não
enfrenta problemas no interior da sociedade brasileira, tendo em vista que
não existem distinções raciais e as oportunidades são iguais para todos. Esta
ideologia difundiu-se socialmente e se tornou senso comum, ritualmente
celebrada nas relações do cotidiano ou na abordagem dos mais diversos
temas pelas mídias brasileiras.
Esse mito acabou por esconder um dos mais graves problemas
do país. Nos últimos anos, os dados sobre a exclusão social da população
negra não deixam dúvidas: mais de um século após a Abolição, pessoas
brasileiras negras estão segregadas nas periferias das grandes cidades,
concentradas nos setores com os menores índices de renda, de emprego e
de escolaridade.
Os meios de comunicação de massa influenciam na organização
social e na construção da realidade na sociedade moderna. A mídia
apresenta-se como elemento da comunicação de massa que
influencia o pensamento social ao definir pautas e conteúdos do discurso
público. O discurso é compreendido como uma forma de difusão de
significados que exerce papel não somente para a elaboração, transmissão e
reprodução de referências, idéias, valores, como também de preconceitos.
Para forjar representações acerca da mulher negra, as revistas
jornalísticas voltadas para o público feminino utilizam-se de recursos de
linguagem específicos. Tais representações possuem a faculdade de
_____________________________________________________________
7
UFMA - erlyguedes@gmail.com
601
alimentar as práticas culturais em vigor na sociedade, apresentando a
capacidade de reproduzi-las ou modificá-las.
Desta maneira, esta pesquisa almeja analisar as representações
de mulheres negras publicadas nas revistas Claudia e Marie Claire, de
circulação nacional, voltadas para o público feminino, no período de outubro
de 2007 a março de 2008. Este estudo busca evidenciar os mecanismos de
dissimulação do racismo e do sexismo presentes na revistas femininas, para
promover discussões sobre sua produção e interpretação, tendo em vista que
os componentes raça, cor e gênero são elementos integrantes da costura
entre as relações sociais.
Como outros veículos de comunicação, as revistas femininas
trazem as representações das relações de gênero da sociedade em que
estão inseridas. Além disso, pertencem aos dois maiores grupos de
comunicação brasileiros, o Grupo Abril (Claudia) e as Organizações Globo
(Marie Claire).
A perspectiva teórica aqui adotada parte do pressuposto de que a
esfera da produção e circulação de sentidos, o campo da produção simbólica,
é um espaço extremamente importante para o desenrolar das lutas contra-
hegemônicas. É nessa arena que os diferentes grupos sociais tentam fazer
circular seus discursos, elaborar seus significados e torná-los legítimos
perante o próprio grupo e a sociedade.
Esta perspectiva de análise permite assumir a existência,
especificamente no âmbito das práticas discursivas, da mesma
luta pela fixação dos significados sociais que se situa em toda a esfera da
produção cultural e simbólica, conferindo dinamismo às formações
discursivas.
MULHER NEGRA: dupla jornada de preconceito
Duplamente discriminada, por ser mulher numa sociedade
machista e negra numa sociedade racista, analisar e, ao mesmo tempo,
procurar romper com a visão estereotipada da mulher negra desqualificada
moral, intelectual e socialmente coloca-se como uma questão de grande
importância.
Embora a sociedade considere o racismo e suas implicações
como elementos periféricos da estrutura social, eles são responsáveis pela
sustentação da ideologia da superioridade branca que produz resultados
práticos.
Entendidas como mecanismos que justificam a opressão das
mulheres e de como essa opressão se reflete nas mentes, as relações de
gênero interferem diretamente no cotidiano de homens e mulheres,
reproduzindo-se em muitas situações que passam a ser consideradas como
602
verdade absoluta e determinantes nos comportamentos sociais.
Compreender como as revistas direcionadas ao público feminino
retratam uma parcela desse público – a mulher negra – no plano simbólico por
meio dos textos da mídia impressa e como isto pode manter determinados
discursos hegemônicos é essencial para entender a estrutura social atual.
Afinal, o exercício do poder simbólico é, em parte, responsável por afirmar
estereótipos e hierarquizar grupos sociais, alem de influenciar na formação
ou deformação da identidade dessas mulheres e, consequentemente, na luta
para ultrapassar a barreira de estereótipos e invisibilidade.
Racismo e sexismo têm sido os principais obstáculos para que a
mulher negra possa ter a sua cidadania assegurada, pois mesmo entre os
negros, as diferenças de renda entre homens e mulheres são mais
significativas que entre os demais grupos raciais. A pobreza no Brasil tem cor
e sexo: é negra.
Segundo Antonia Aparecida Quintão (In CARRANÇA; BORGES,
2004, p. 53), a mulher negra é excluída dos espaços de poder político e
econômico já conquistados pelas mulheres brancas.
Com as transformações sociais, culturais e econômicas que ocorreram ao
longo dos anos muitas mulheres da classe média ingressaram nas
universidades, nas repartições públicas em busca da sua emancipação.
Quem vai fazer a faxina, cuidar das crianças, preparar o jantar? Quem
afinal vai possibilitar essa emancipação? É a mulher negra.
8
A revista Claudia foi lançada em outubro de 1961 pela Abril Cultural (Editora Abril), cujo slogan era:
“Claudia: a revista amiga”. A publicação era voltada para a mulher casada e dona de casa, apresentando
matérias de moda, decoração e culinária. Além de sexualidade, seus textos tratavam da condição de
emancipação da mulher. A Claudia é a revista feminina mais antiga em circulação no Brasil. Fez 40 anos
em 2001. A revista Marie Claire foi lançada no Brasil, em setembro de 1991, pela editora Globo. Ela é a
versão da homônima francesa, lançada em 1937. Diferente dos conceitos das demais revistas, a Marie
Claire é supostamente dirigida à mulher que pensa, como diz seu slogan “Chique é ser inteligente”.
603
mulheres de todo o mundo, a mulher negra continua vivendo uma situação
marcada pela dupla discriminação. Se no período escravista as mulheres
negras atuavam como trabalhadoras à força, no período pós-abolição elas
passam a exercer trabalhos braçais e insalubres. Portanto, o discurso da
ocupação feminina de áreas profissionais antes restritas aos homens
concerne apenas ao grupo de mulheres brancas. Enquanto isso, as mulheres
negras continuam associadas às funções que elas desempenhavam na
sociedade colonial, tais como: empregada doméstica, lavadeira, faxineira,
cozinheira.
A ausência ou distorções da imagem da mulher negra nos meios
de comunicação, por exemplo, é uma forma de violência extremamente
dolorosa, cruel e prejudicial, pois sem referenciais positivos, a mulher negra,
enquanto grupo recortado e atravessado pela raça e pelo gênero,
simplesmente deixa de existir. Não é por acaso que são poucas as negras que
se reconhecem como tal no Brasil; definem-se, em grande parte dos casos,
como morena, mulata, marrom, morena jambo, mestiça, parda.
A COR E O SEXO NO JORNALISMO DE REVISTA BRASILEIRO
As produções simbólicas podem ser instrumentos de dominação,
visto que a formação dos objetos se dá no ato da enunciação. Ao classificar ou
nomear um objeto, o sujeito oferece uma posição no mundo a ele. Dessa
capacidade do discurso surge uma forma de poder chamada por Bourdieu
(2006, p. 7) de poder simbólico que é “uma espécie de círculo cujo centro está
em toda parte e em parte alguma [...] é, com efeito, esse poder invisível o qual
só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber
que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem”. Portanto, o poder simbólico
é um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem
das coisas.
O discurso não só é alvo de disputas, mas é o local privilegiado da
disputa pelo poder visto que a cada enunciação busca-se a hegemonia do
que é dito. Para Bourdieu (2006, p. 14) o poder simbólico é o poder se fazer
tomar em consideração, o poder de falar e se fazer ouvir:
O poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação, de
fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e,
deste modo, a acção sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase
mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força
(física ou económica), graças ao efeito específico de mobilização, só se
exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário.
606
As duas revistas totalizam 230 matérias com referências à mulher
branca, 104 na Marie Claire e 126 na Claudia. Portanto, no universo de 244
matérias jornalísticas, verifica-se que apenas 5,73% notas ou reportagens
trazem temas do universo da mulher negra.
607
Nas doze revistas pesquisadas, não foram encontradas capas
com mulheres negras brasileiras. A capa da revista é o chamariz das
mulheres para que a comprem e traz as chamadas das principais matérias da
edição. Retratadas nas capas são atrizes, apresentadoras de TV, modelos ou
cantoras brasileiras brancas que estão na pauta do discurso midiático. A
exceção está presente na edição de novembro de 2007 da Marie Claire: a
atriz norte-americana Angelina Jolie.
Quadro 3: – Categoria 1: Mulheres Notáveis, Claudia e Marie Claire, outubro de 2007 a março de 2008.
Fonte: Pesquisa direta.
610
Por outro lado, há, paradoxalmente, em todas as matérias, a
tendência para ironizar ou, no mínimo, por em evidência, pontos
considerados femininos que, na verdade, são pistas do cunho discriminatório
do discurso das publicações estudadas acerca do feminino negro.
Categoria 02 – Mulheres Estereotipadas: incorpora temas que representam a
negra por meio de ideias pré-fixadas socialmente: os estereótipos.
As mulheres retratadas nas matérias incluídas nesta categoria
são representadas de forma estereotipada e vazia. Quando ocupa lugar de
destaque na reportagem, é representada sob a forma de estereótipos como a
mulata sensual, indivíduo exótico, pessoa que depende da ajuda da mulher
branca, bandida ou marginal, feia.
Deste modo, o lugar delineado para a mulher negra é em um
contexto mítico e ambíguo de sedução e desejo, repulsa e perigo. Segundo
Côrrea (1996), forja-se um estereótipo do feminino negro ligado à submissão,
à sensualidade, ao perigo e ao prazer, mas um prazer relacionado à pobreza,
à miséria e à desordem, atributos que somados ao estereótipo da
negatividade dirigida à sua cor de pele tornam-na em um ser duplamente
discriminado: por ser mulher e por ser negra.
No corpus de análise foram identificadas oito notícias (Quadro 4)
que representam mulheres com a referida representação.
Quadro Z: – Categoria 2: Mulheres Estereotipadas, Claudia e Marie Claire, outubro de 2007 a março de 2008.
Fonte: Pesquisa direta.
611
Essa estereotipia justifica a exclusão e a marginalização histórica
da mulher negra. Ela legitima um projeto de nação que vem sendo construído
nestes 500 anos: de hegemonia branca e exclusão ou admissão minoritária e
subordinada de negros, indígenas e não-brancos em geral. E é este mesmo
projeto de nação que o imaginário da revistas femininas busca consolidar.
A discriminação racial na sociedade brasileira manifesta-se,
muitas vezes, não em comportamentos que podemos observar ou detectar,
mas exatamente na sua ausência. Trata-se, portanto, de procurar analisar o
que está oculto sob o manto da indiferença, o que está implícito, as omissões,
os silêncios, a inexistência, a ambiguidade.
Por estar sujeita a um ideal branco inatingível e ter seus valores
negativados pela sociedade, a mulher negra tem grandes dificuldades para a
afirmação da sua identidade. Em função dessa ideologia, elas tendem a
introjetar os valores e princípios de ascendência européia, determinados
como superiores, e a desvalorizar o universo de ascendência africana. Esta
internalização é feita de forma inconsciente, causando prejuízos para a
construção de sua identidade.
SILÊNCIO ESTAMPADO
A mulher negra, no jornalismo feminino, é silenciada, tendo em
vista que aparece de forma diminuta no conjunto das matérias jornalísticas.
Apesar de não declarar explicitamente, as revistas estudadas adotam uma
política de silêncio e discriminação em relação às mulheres negras, forjando
um discurso fundado no mito da democracia racial brasileira e da ideologia do
branqueamento. O resultado dessa construção é a negação da mulher negra
em relação a sua raça e cultura.
O poder do discurso é perpassado por uma dimensão do silêncio
que remete ao caráter de incompletude da linguagem: todo dizer é uma
relação fundamental com o não-dizer. Segundo Orlandi (2007, p. 13), o
silêncio é “Reduto do possível, do múltiplo, o silêncio abre espaço para o que
não é “um”, para o que permite o movimento do sujeito”.
Portanto, o silêncio atravessa as palavras, existe entre elas,
indica que o sentido pode ser outro, ou que aquilo que é mais importante não
se diz, enfim, o silêncio é fundante. Há, pois, um aspecto político da
significação que resulta no silenciamento como forma não de calar, mas de
fazer dizer “uma” coisa, para não deixar dizer “outras” coisas. Ou seja, o
silêncio recorta o dizer. Essa é sua dimensão política e está assentada na
dimensão fundante do silêncio.
No discurso, o sujeito e o sentido se constituem ao mesmo tempo.
Ao se utilizar o mecanismo da censura, se proíbe ao sujeito ocupar certos
lugares, isto é, proíbem-se certas posições do sujeito, se interdita a inscrição
dele em formações discursivas determinadas. Consequentemente, a
identidade do sujeito é afetada, tendo em vista que a identidade é resultado
de processos de identificação segundo os quais o sujeito deve ser inscrito em
determinada (e não em outra) formação discursiva para que suas palavras
612
tenham sentido.
Os meios de comunicação contribuem para determinar e definir o
lugar feminino negro na contemporaneidade. Assim, concebe-a em condição
de agente passivo na relação com o homem, aproximando-a da identificação
de mera dominada e elemento relegado ao segundo plano na relação. Ao
mesmo tempo, representa-a como oposta e inferior à mulher branca.
O modo como a mídia produz as notícias atende, em primazia, a
orientações ideológicas que obedecem a interesses comerciais próprios, à
medida que seguem linha editorial específica e preestabelecida pelos
proprietários. Selecionando, desse modo, os elementos da realidade e
alterando as formas de articulação deles, a ideologia concebe uma forma de
ser do mundo.
Dessa forma, os meios de comunicação, enquanto produtores de
discursos, detêm o poder influenciador, de certa forma limitado, de funcionar
como elementos de constituição ou reforço de identidades para a mulher
negra. Isso se dá por meio de exclusão da temática que não convém e/ou não
é oportuna expor à sociedade.
CONCLUSÕES
Diante da análise de matérias jornalísticas editadas em revistas
femininas de difusão nacional, constatou-se que a mulher negra é
apresentada por esses periódicos de forma estereotipada e vazia. Ela é
invisível nesses produtos midiáticos, pois não é foco das matérias
jornalísticas e, quando ocupa lugar de destaque na reportagem, é
representada sob a forma de estereótipos como a mulata sensual ou
indivíduo exótico. Apesar de não declarar explicitamente, as revistas
estudadas adotam uma política de silêncio e discriminação em relação às
mulheres negras, forjando um discurso fundado no mito da democracia racial
brasileira e da ideologia do branqueamento. O resultado dessa construção é
a negação da mulher negra em relação a sua raça e cultura.
Os meios de comunicação não transmitem uma imagem
equilibrada nem da diversidade das mulheres, nem de suas contribuições à
sociedade. A falta de sensibilidade sobre o tema se evidencia no fracasso em
eliminar os estereótipos baseados no gênero, constatando-se a contínua
projeção de imagens negativas e degradantes das mulheres negras, que
precisa urgentemente ser mudada.
Compreender os vários papéis culturais construídos através das
mídias impressas, que afetam os formadores de opinião, empresários,
artistas e políticos, para as mulheres negras é de grande importância para o
desenvolvimento saudável da auto-estima dessas mulheres e a superação
do preconceito racial e de gênero, afinal, as representações forjadas pela
mídia influenciam na formação ou deformação da identidade dessas
mulheres e, consequentemente, na luta para ultrapassar a barreira de
estereótipos e invisibilidade.
613
REFERÊNCIAS
615
A MORAL FEMININA EM FOLHETINS NA SEGUNDA METADE DO
SÉCULO XIX: entre o lazer e o discurso
9
Estudante da Universidade Federal do Maranhão.
10
Professora do Departamento de Educação da Universidade Federal do Maranhão.
617
Desenvolvendo uma economia agroexportadora baseada no
trabalho escravo e tendo como principal produto o algodão e o arroz, o
Maranhão apresentava-se, durante o século XIX, plenamente integrado ao
quadro econômico nacional. Mas, a partir de 1850 a Província passa a
enfrentar obstáculos para concorrer internacionalmente com seus produtos,
pois, além dos fortes competidores e das oscilações dos preços no mercado
mundial, a lavoura enfrentava problemas como insuficiência técnica,
dificuldade de transporte e de comunicação. Problemas desse tipo levaram
muitos proprietários a vender parte de seus cativos, buscando dessa forma
capital para investir no plantio, o que na prática serviu para contribuir com o
tráfico interprovincial (CABRAL, 1984).
Os esforços dos proprietários em fortalecer a economia
maranhense, apesar de terem conquistado a adesão das autoridades
provinciais, não conseguiram sensibilizar o governo central, que tinha sua
atenção voltada para o novo polo econômico, o Centro-Sul. Portanto, é dentro
do quadro de perda da hegemonia política e econômica do Nordeste que
podemos entender, em parte, as dificuldades enfrentadas pela economia
maranhense no período.
Para Ribeiro (1900, p.65), a economia da Província foi marcada
por um estado de crise permanente “que decorreram das condições
estruturais em que se assentou a economia brasileira, de feições nitidamente
coloniais [...]”.
Por outro lado, segundo Meireles (1972), os problemas
financeiros que a Província enfrentava não impediram que algumas
melhorias fossem realizadas, como, por exemplo os serviços de navegação a
vapor, construção e melhorias de estradas e implantação de um sistema
bancário. E, por que não citar a criação de jornais como O Publicador e O
Globo, que, à época, representavam importantes instrumentos para o
desenvolvimento urbano da capital maranhense, por facilitarem a
comunicação e promoverem o comércio, num momento em que as cidades
assumem posição destacada na economia nacional.
No aspecto social, O Maranhão possuía uma estrutura bem
definida. Os seus vários elementos ocupavam lugares específicos e
previamente ditados pela sua condição econômica e jurídica. A classe
senhorial era formada pelos grandes proprietários de terras, comerciantes e
altos funcionários da Coroa; o segmento médio era composto por
funcionários públicos, pequenos comerciantes, profissionais liberais, padres
e letrados; na base social estavam os brancos pobres, índios e mestiços livres
– estes eram destituídos de qualquer fortuna e privilégio dentro do modo de
produção – ; e por fim os negros escravos, sobre os quais como é sabido,
recaía o trabalho diário e exaustivo que se fazia em todas as frentes (nos
campos, engenhos, transporte, afazeres domésticos, dentre outras).
Viveiros (1954), ao discutir a situação dos pobres livres da
Província, esclarece que o fato de estes exercerem um papel secundário nas
618
atividades produtoras levou os setores abastados a difundirem a ideia de que
este segmento social era avesso ao trabalho e à produção de bens de raízes,
rotulando-os de vadios, sem, contudo, considerar a estrutura econômica na
qual estavam inseridos, que desprivilegiava a mãodeobra livre em detrimento
do trabalho escravo. Mas os pobres livres executavam trabalhos tão pesados
quanto o escravo, para garantirem a sobrevivência.
Para alguns autores, o crescimento comercial vivido pelo
Maranhão foi responsável por mudanças socioculturais, como o refinamento
da elite aristocrática, que, influenciada pelos costumes europeus, adotou o
gosto por produtos refinados e pelos modos europeus de falar e vestir. E além
da moda, os móveis, os bailes, as peças teatrais, as aulas de piano e francês,
os folhetins e os saraus dançantes e literários faziam com que a vida social
mantivesse um ar opulento e ostentador, como bem observa Lacroix (2000, p.
45-56):
Tornou-se corriqueiro o uso de servir em bandeja de prata ou de faience o
xerez, o madeira, o champanhe de ouro ou de púrpura [...], os sorvetes
gelados do ocidente o néctar dos deuses. Nada faltava nos casarões e era
servido com graça, presteza e ordem, ditadas pelas boas maneiras
européias.
Culturalmente, a Província possuía uma posição destacada no
cenário nacional e muitos foram os intelectuais maranhenses de formação
europeia a produzir grandes obras literárias e históricas. Para Abranches
(1992, p.109), “a cultura do vernáculo tornara-se o padrão de glória dos
maranhenses: ninguém os excedia pelas outras províncias na pureza, na
correção e na elegância da linguagem [...]”.
O desenvolvimento cultural, associado à elegância e ao
refinamento da classe abastada, fez com que no meio intelectual da época
fosse gestada a ideia de São Luís ser a Atenas Brasileira. Entretanto, Lacroix
(2000, p.64) questiona a singularidade da cultura maranhense desse período
e advoga que “foi no meio de uma pequena fatia da população branca que se
verificou aquela efervescência intelectual [...], talvez semelhante à de outras
províncias”.
Ao levarmos em consideração que o acesso da população livre
pobre à mínima instrução oferecida pelo poder público passava por inúmeras
dificuldades, como: um número reduzido de professores; instalações
precárias; longas distâncias e a recusa dos pais em dispensar os filhos da
lavoura, entendemos em parte esse desinteresse, que resultou,
consequentemente, num reduzido número de crianças livres em idade
escolar frequentando as aulas de primeiras letras e serve para demonstrar
que a elite local apenas criara argumentos para reforçar sua condição social
privilegiada, em meio a uma maioria de analfabetos.
A EDUCAÇÃO FEMININA
A sociedade imperial brasileira foi herdeira das relações
patriarcais de gênero do período colonial. Os discursos que buscaram manter
619
e legitimar essa ordem social apoiaram-se em fundamentos morais
específicos como recato, castidade, virtude e honra, atribuídos ao sexo
feminino, com o objetivo de determinar seus comportamentos e sentimentos.
A mentalidade patriarcal ainda atribuía à mulher uma fragilidade
física em relação ao homem, fundamentada por uma diferença biológica, e
que servia para justificar a divisão de papéis dentro do modo de produção e a
permanente “necessidade” de proteção e submissão do sexo feminino.
Bourdieu (2004, p.33), a esse respeito, esclarece que “a força particular da
sociodicéia masculina lhe vem do fato de ela acumular e condensar duas
operações: ela legitima uma relação de dominação inscrevendo-a em uma
natureza biológica que é, por sua vez, ela própria uma construção social
naturalizada”.
Segundo Samara (1989), cabia à mulher a vida privada, a lida
doméstica e o cuidado com os filhos, enquanto que ao homem eram
reservadas iniciativas sociais e contatos diversos. Conceber, parir, criar,
parecia ser seu destino, quando passava da tutela do pai à do marido. Criada
para o casamento, à mulher, em grande parte, eram confiados o
fortalecimento e o sucesso da vida familiar. Portanto, deveria ser sempre o
modelo de perfeição a ser seguido pelos membros de sua família.
A visão social que predominou à época sobre a educação foi que
os homens deveriam ser instruídos e as mulheres, educadas, recaindo sobre
estas a ênfase na formação moral e sobre aqueles a formação intelectual.
É importante destacarmos que a educação de meninos e
meninas, apesar de fazer parte de um projeto nacional, não se insere em um
processo único dentro da sociedade imperial e, como pontua Louro (1997, p.
444), “as divisões de classe, etnia e raça tinham um papel importante na
determinação das formas de educação utilizadas para transformar as
crianças em mulheres e homens”.
A própria escritora Nísia Floresta, ao defender uma educação
feminina mais completa, pautada em conhecimentos científicos, filosóficos e
princípios morais e religiosos, produziu um discurso que, apesar de moderno
para a época, não fugia da concepção de esposa e mãe. Considerava que
uma boa educação levaria a mulher a exercer adequadamente seu papel
(ABRANTES, 2004). A educação da mulher seria feita, portanto, para além
dela, já que sua justificativa não se encontrava em seus próprios anseios e
necessidades.
Apesar de sujeita a um padrão duplo de moralidade,
característico da sociedade de então, as mulheres das classes abastadas
experimentaram durante o Império o alargamento das oportunidades de
convívio social, motivado pelo desenvolvimento econômico e
consequentemente urbano. Espaços como a escola, o baile, o teatro, os
saraus, os chás e o passeio público deixaram de ser frequentados em sua
maioria pelos homens. Os eventos sociais eram momentos nos quais a
mulher se tornava peça indispensável.
620
Essa mudança se fez sentir com maior intensidade a partir da
segunda metade do século XIX. Nesse momento, a influência de
pensamentos filosóficos e científicos, como o liberalismo, e a dinamicidade
da vida sóciocultural do Brasil, apontaram para a necessidade de educação
da mulher vinculada à modernização da sociedade (ALENCASTRO, 1997).
No Maranhão, as iniciativas do poder público provincial para
educar as mulheres foram a criação de aulas de primeiras letras para
meninas, conforme estabelecia a Lei de Instrução Pública do Império, a
fundação do Asilo de Santa Tereza e o sustento de algumas educandas no
Recolhimento de N.S. da Anunciação e Remédios. Também foram fundadas,
a partir da década de 1840, várias escolas femininas, mas a maioria de
caráter particular e destinadas às filhas da elite.
As escolas particulares para as moças, além de prendas
domésticas, ensinavam a ler, escrever, noções de aritmética, dança, tocar
piano e falar francês, o que revela um espírito de renovação, já que não mais
se restringia unicamente a ensinar o necessário para a vida no lar.
O colégio de N. S. da Glória, fundado em 1844, foi o único espaço
de educação particular para meninas durante vinte anos em São Luís. A partir
de 1874, outros foram fundados. Dentre os principais cabe citar o colégio de
N.S. de Nazaré, N.S. de Santana, N.S. da Glória e N.S. da Soledade. Com um
corpo funcional composto basicamente por mulheres, esses espaços de
sociabilidade representavam a oportunidade de exercícios outros, que não os
domésticos.
Nos jornais de época, era comum aparecerem anúncios de
escolas oferecendo aulas para moças. Um bom número destes
estabelecimentos, preocupados com a aceitação e a credibilidade junto aos
pais, ofereciam, além do ensino, acomodações às internas e semi-internas,
bem como serviços de costura, conforme anuncia o jornal O Globo (NUNES,
1854, p.4):
[...] no colégio de D. Emília de Magalhães Branco na praia do caju [...]
aprontam-se co toda a perfeição, e ao gosto modernovestidos,
quinzenas, manteletes, chapéus, toucados e todas as obras de agulha
própria dos modistas. E no mesmo colégio continua a receber-se meninas
tanto internas como externas, de cuja educação se cuida com todo
desvêlo”.
A participação das mulheres abastadas na vida social
pressupunha alguma preparação. Era natural, portanto, que, com o passar do
tempo, os pais procurassem instruir suas filhas para que, quando atingissem
a idade casadoura, pudessem frequentar os ambientes públicos e neles
mostrassem suas qualidades, facilitando a conquista de um consórcio
vantajoso. A presença feminina nas escolas e nos bailes já era vista pela
_____________________________________________________________
11
Regime de relações civis que dá direito ao homem sobre as mulheres e representa uma estrutura
relacional hierárquica de poder baseado tanto na ideologia quanto na violência (SAFFIOTI, 2004).
621
sociedade como algo natural, conforme destacado em O Globo (NUNES,
1854, p. 1):
[...] quando nossos avós fechavam as filhas e não queriam que elas
soubessem ler nem escrever, para que não lessem novelas, nem
tivessem correspondência com peraltas (janotas daquele tempo); quando
as mães levavam as filhas à missa primeira, ocasião única das pobres
raparigas tomarem ar [...] Mas hoje que as meninas aprendem a ler e
escrever conforme podem, hoje que os pais mesmos alguns dos mais
sisudos vão comprando a biblioteca [...] hoje que há bailes, teatros,
passeios, músicas, etc. [...] parece que aquela chorada meia hora de
missa podia, e devia dar-se toda a Deus.”
Para a Igreja, a educação necessária à mulher era aquela útil ao
bom desempenho da vida conjugal. Criticava as inovações na educação
feminina por considerá-la mundana e voltada para bailes e ostentações. No
Recolhimento, única instituição religiosa em que era oferecida educação a
mulheres leigas, estas aprendiam apenas a ler, escrever, noções de
aritmética, prendas domésticas, além de forte orientação cristã. Como não
poderia deixar de ser, os religiosos do Maranhão usavam os jornais para
exaltar a importância da religião para a formação do espírito da mocidade (O
Eclesiástico,1857).
Apesar do discurso conservador da Igreja com relação à
educação das mulheres da elite, a educação leiga ganhava espaço dentro da
sociedade provincial maranhense, assim como no restante do país. Se por
uma parte as mulheres abastadas podiam ter, além da educação costumeira,
uma preparação para a vida social, o mesmo não acontecia com as camadas
pobres, que contavam apenas com as aulas de primeiras letras ou o ingresso
em uma das duas instituições citadas anteriormente.
A MORAL FEMININA EM FOLHETIM
Gênero literário importado da Europa para o Brasil, os folhetins
romanescos eram histórias de leitura rápida, publicadas nos jornais em
espaços determinados e destinados ao entretenimento. Possuíam um
caráter didático, o que contribuiu para que se popularizasse
progressivamente e aumentasse o número de leitores durante o século XIX.
Por serem publicados diariamente e aos pedaços, as ficções narrativas
passaram a fazer parte do cotidiano dos leitores brasileiros, que através de
seus enredos, heróis, heroínas e vilões assimilaram modos e modas
europeizantes (REIS; BRAGA, 2009).
_____________________________________________________________
12
O Brasil, em sua Carta Constitucional de 1824, estabelece que a instrução primária é gratuita a todos os
cidadãos e se compromete com a abertura de colégios e universidades. Mas somente com a Lei Geral de
Ensino de outubro de 1827, as escolas de primeiras letras tomam forma, sendo definido que os saberes
elementares (ler, escrever e contar) se dará por meio do tripé: Língua Portuguesa, História Nacional e
Religião Católica. O Estado deixa, portanto, entrever que pretende agir sobre meninos e meninas por meio
da instrução para conferir ao Império brasileiro a condição de moderno e civilizado (GONDRA, 2008).
13
A Sociedade e a Religião cristã defendiam uma moral diversa para homens e mulheres. A virgindade, o
recato e a submissão eram entendidos como comportamentos próprios do sexo feminino, enquanto aos
homens se atribuía a virilidade, honra e autoridade (SAMARA, 1989).
622
Os folhetins de estrangeiros, traduzidos em terras brasileiras
encontraram nos precursores nacionais importantes colaboradores que
passaram a escrever e a atender um público cada vez maior. O gênero aos
poucos foi se disseminando entre as classes populares, uma vez que tratava
de evento a que todos estão expostos e de paixões que todos conhecem,
estabelecendo dessa forma uma proximidade com o leitor e deixando de ser
lido apenas por uma elite em seus momentos de ócio (ABREU, 2009).
Apesar da popularidade dos folhetins, a partir da segunda metade
do século XIX, o maior número de leitores estava entre as mulheres, que, por
terem limitado acesso a outros escritos, acabaram por fazer deste mais que
um instrumento de lazer, um meio de conhecer o mundo. Isto fez
considerarmos que os valores e as prescrições de conduta moral presentes
no texto ficcional encontraram no público feminino maior possibilidade de
serem assimilados sem que desse fato tivesse plena consciência.
Desse modo, faz-se necessária a análise de conteúdo desses
folhetins, cujo ponto de partida é a mensagem, ou seja, seu significado e
sentido, mas com ênfase no ponto de vista do produtor, por entendermos que
todo autor traz consigo concepções de mundo que fazem com que seus
enunciados não sejam arbitrários e estejam direcionados pelos interesses de
sua época ou de classe, o que acaba por evidenciar sua concepção da
realidade, a qual é filtrada mediante seu discurso (FRANCO, 2005).
Como pontua Brandão (2002), o sujeito histórico fala a partir de
um espaço social e um tempo histórico determinado, e sua fala é um recorte
das representações da sua vivência e experiência, o que faz com que o
sujeito situe seu discurso em relação aos discursos do outro. E o outro não é
apenas o destinatário, mas também os outros discursos historicamente já
construídos e que emergem na sua fala.
Para este estudo, usaremos os folhetins: “O cavaleiro do cruzado
novo e o cavaleiro do botão de rosa”, publicado no jornal O Globo, em 1854;
“Elisa e Alfredo”, publicado no jornal O Ramalhete, de 1863 e a “A freira no
subterrâneo”, publicado no jornal O Publicador Maranhense, de 1872. O
intervalo de tempo e a diversidade dos jornais devem-se ao fato de tentarmos
observar as permanências ou mudanças nos discursos moralizantes. Todos
os três folhetins têm enredos ambientados na Península Ibérica, o que serve
para percebermos as concordâncias ou divergências dos discursos,
presentes em espaços geográficos distintos, mas marcados por uma moral
cristã semelhante.
Ainda por meio do romance naturalista “O Mulato”, do
maranhense Aluísio de Azevedo, escrito em 1881, buscamos criar um
contraponto aos enunciados discursivos presentes nos folhetins, por ser uma
literatura da Província e apresentar as convenientes relações patriarcais que
a moldavam. Assim, os folhetins e o romance acima citados associam-se
como fontes para o estudo do discurso moral voltado às mulheres
maranhenses na segunda metade do século XIX.
623
Nos enunciados romanceados, pontuamos a imagem feminina
de virgem, esposa e mãe, visto que nos estudos sobre a história das mulheres
no período, estes três aspectos são apresentados como tendo importante
implicação no papel moral que a mulher deveria desempenhar. Portanto,
interessa-nos perceber como o discurso que fundamenta a moral feminina foi
reproduzido pelos folhetins romanescos de autores estrangeiros, publicados
nos jornais da época na capital maranhense, e possivelmente lidos pelas
moças letradas da Província.
O folhetim “O cavaleiro do cruzado novo e o cavaleiro do botão de
rosa” possui um enredo simples, em que uma moça e um rapaz, ambos ricos,
apaixonam-se e acabam casando-se. Enquanto a família de Adelaide
desconhece a origem abastada de Pedro e de seu interesse em casar-se com
ela, existe uma evidente preocupação de que estivesse envolvendo-se com
um rapaz de condição inferior à sua e que pudesse ser seduzida por um
homem experiente, colocando dessa forma em risco a sua honra e a de sua
família.
Já no folhetim “Elisa e Alfredo”, o amor do casal não é permitido
pelo pai, que a promete a outro homem. Elisa aceita o casamento em
obediência ao pai. Ao longo da estória a heroína pede insistentemente ao
amado que não faça nada que possa ir contra a vontade de seu pai, mas,
prefere morrer de tristeza e desalento a casar-se com um homem que não
amava.
Por sua vez, o folhetim “A freira no subterrâneo” também
apresenta um enredo em que o amor do casal não era permitido pelo pai, por
questões políticas e étnicas. Surpreendida pelo pai em um encontro
clandestino com o seu amado, Bárbara em um momento de desespero,
diante de um possível assassinato, aceita ir para um convento e tornar-se
freira, renunciando dessa forma ao seu amor.
Mesmo que nos três folhetins os envolvimentos amorosos das
personagens levem--nas a destinos diferentes (ao casamento, à morte e à
contemplação), todos representam a prevalência da autoridade masculina
que balizava as relações de gênero até então.
A preservação da virgindade das mulheres é um tema recorrente
nos três enredos e estava socialmente vinculada à manutenção da honra
masculina, o que fazia do recato o comportamento conveniente e esperado
das mulheres para conservar a sua honra e a de sua família. Em 'O cavaleiro
do cruzado novo (1854, p.2)', Rafael, irmão de Adelaide, assim a repreende:
“[...] mas dize-me minha irmãzinha as relações que tem havido entre te, uma
mocinha inocente, e um mancebo amestrado seguramente da arte de
seduzir? [...]”. Nesse enunciado a fala é dada ao homem, e não a outra
mulher. Aquele, na condição de irmão, se coloca como vigilante e atento aos
possíveis riscos que a irmã poderia correr em um envolvimento amoroso não
legitimado pela família.
A virtude também aparece como alvo de exaltação pelos autores
624
dos folhetins e foi colocada pelo personagem Alfredo como condição de
continuidade do seu amor pela jovem Elisa, como podemos observar em
'Elisa e Alfredo (1863, p.1)': a tua virtude te há feito sublime, mulher
encantadora “[...] conserva sempre essa virtude, que se em algum momento
me atormenta, é também o laço mais forte que me uni a ti [...]”. A virtude é
entendida aqui, assim como o recato, como um valor ético que leva a mulher a
preservar a sua virgindade. Ou seja, a mulher virtuosa é aquela que se
comporta de modo a conservar sua pureza sexual.
Nos enunciados também aparecem censuras aos
comportamentos que colocavam em risco a virgindade. Em 'A freira do
subterrâneo (1872, p.1)', o narrador, ao construir o enunciado do pai
surpreendendo sua filha em um encontro furtivo com o namorado, constrói
seus argumentos da seguinte forma: 'O amor que Barbara sentia não lhe era
estorvo a conhecer que cometia grave culpa contra seu pai e contra os bons
costumes. Seria amaldiçoada pelo pai [...], o mundo culpá-la-ia, e as mães
proibiriam as suas filhas que lhe falassem'. Este enunciado também mostra
as reações da sociedade e o tratamento dado a uma mulher que não soube
proteger sua moral.
Em outro enunciado de contexto semelhante, Raimundo,
protagonista de 'O Mulato', censura sua amada, Ana Rosa, por querer
renegar as convenções sociais e casar-se com ele sem a autorização de seu
pai. Ele assim se expressa: “Mas supões que eu seria capaz porventura de
sacrificar-te ao meu amor? Que eu seria capaz de condenar-te ao ódio de teu
pai, ao desprezo dos teus amigos e aos comentários ridículos desta província
estúpida? [...] Segue o teu caminho honesto; és virtuosa, serás a casta mulher
de um branco que te mereça [...]” (AZEVEDO, 1997, p.157).
Para D'Incao (1997, p.235), independentemente de ter sido ou
não praticada como um valor ético, a virgindade funcionava, no período,
como um dispositivo para manter o status da noiva como objeto de valor
econômico, sobre o qual se assentaria o sistema de herança de propriedade
que garantia a linhagem da parentela.
Outra imagem importante para o papel moral que a mulher
deveria desempenhar era o de esposa. O casamento era apresentado como
o ideal da mulher, a concretização dos sonhos de juventude, mas, na prática
acabava por reforçar a continuidade de sua tutela pelo homem. Este, não
mais na posição de pai, mas de esposo. Em conformidade com esse discurso,
o protagonista Raimundo de O Mulato assim expressou-se: “via-se dona de
casa, pensando muito nos filhos [...], muito dependente na prisão do ninho e
no domínio carinhoso do marido [...] mas uma pobre mulher que futuro
poderia ambicionar que o casamento?” (AZEVEDO, 1987, p.21).
Em outro enunciado do folhetim 'Elisa e Alfredo (1863, p.1)', a
protagonista mostra ter consciência de não poder escolher livremente o seu
cônjuge e, ao mesmo tempo, expõe o remorso por ceder às emoções do
amor, agindo contra o desejo de seu pai: “Perdoai-me meu Deus, o juramento
625
que acabo de fazer sem o consentimento do meu pai e ter cedido aos gostos
de Alfredo prometendo-lhe a nossa união [...]”. A obediência aparece aqui
como o comportamento adequado à mulher na condição de filha, bem como
de esposa. Em determinada passagem de 'A freira do subterrâneo (1872,
p.1)', a mãe de Bárbara conversando sobre casamento, expôs
sua opinião da seguinte forma: “Porque o evangelho nos ordena obediência
ao marido e a lei nos obriga [...] eu respeito o evangelho e sigo a lei [...]”. Nos
dois enunciados a fala foi dada à mulher no reconhecimento da autoridade do
homem, seja na condição de pai ou de esposo, o que se reveste de um peso
ainda maior, pois não é o homem que veicula o discurso, mas aquela mesma
que sofre sua ação. Disso podemos apreender que a obediência feminina,
como algo reconhecido sociamente, parece nestes dois folhetins como algo
que deveria partir da mulher, fundamentalmente.
Se, por um lado, uma parte significativa dos enunciados
confirmava os valores morais femininos em voga, em alguns momentos eles
os rejeitam e/ou os completam. Em 'A freira do subterrâneo (1875, p.1)', a
protagonista Bárbara, reconhece a submissão ao seu futuro marido, mas
rejeita que a escolha deste não respeite sua inclinação:
Quero obedecer a meu marido, quero amá-lo muito, segui-lo, ser a
metade vivente, pensante e apaixonada do esposo recebido perante o
padre; mas quero escolher esse marido que há de me dominar; quero
estimá-lo, adorá-lo antes de lhe sacrificar a vida. E tão pouco admito o
casamento de conveniência, como o casamento por dinheiro.
É importante pontuar que os folhetins caracterizavam-se por um
Romantismo que propunha sentimentos novos, em que a escolha do cônjuge
passa a ser vista como condição de felicidade e não como objeto de arranjos
familiares que visavam à preservação da riqueza e do status social. Porém,
mesmo que os folhetins manifestassem uma tendência à preferência de
casar por amor, não era esta uma prática corrente ainda, na sociedade, que a
vontade dos enamorados fosse utilizar o amor como critério para as uniões
entre as famílias ricas, já que outros interesses estavam em jogo. Entretanto,
o enunciado manifesta uma contestação à autoridade paterna que, à época,
julgava-se legítima e inquestionável.
A imagem da mulher-esposa completa-se com a da mulher-mãe
cuja família aparece como o centro de suas preocupações. As
idéias filosóficas, como o liberalismo e o positivismo, também influenciaram
as produções folhetinescas e fizeram com que a mulher passasse a ser
considerada a base moral da sociedade, devendo, como esposa e mãe, ser
_____________________________________________________________
14
A obra retrata a realidade social de São Luís, capital da Província do Maranhão por volta de 1870. Tem
como tema central o preconceito racial sustentado pelo escravismo, e deixa entrever os prejuízos de uma
estrutura social arcaica.
15
Para aprofundar essa idéia, ler o artigo Educação Feminina em São Luís - Século XIX (ABRANTES,
2004).
626
fiel ao marido, construir uma descendência saudável, educar os filhos e
cuidar do comportamento da prole, o que reforçava a importância do papel
moral que deveria desempenhar.
Em 'O Mulato', o narrador assim se expressa ao destacar que a
função principal da mulher é ser mãe:
E ela então sentiu bem nítida a responsabilidade dos seus deveres de
mulher perante a natureza, compreendeu o seu destino de ternura e de
sacrifícios, percebeu que viera ao mundo para ser mãe; concluiu que a
própria vida lhe impunha, como lei indefectível a missão sagrada de
procriar muitos filhos [...] (AZEVEDO, 1987, p.76).
Vigiar a castidade das filhas também aparece nos folhetins como
um dos deveres de mãe e, para tanto, esta devia estar atenta aos
envolvimentos amorosos das filhas e dos possíveis perigos à sua honra. Em
um enunciado de 'Elisa e Alfredo (1863, p.1)', a personagem Elisa,
demonstrando cumplicidade à sua mãe, assim se manifesta: ”Eu te juro
Alfredo, que serei só tua e prometo escrever-te com a condição de que minha
mãe há de ler as tuas cartas e as minhas [...]”. Em 'A Freira do subterrâneo
(1872, p.1)', o erro da filha Bárbara foi apresentado a partir da fala do pai como
negligência da mãe no desempenho do seu papel de educadora, e abriu
espaço para que o marido a recriminasse, como indica o enunciado a seguir:
“Tu educas mal esta rapariga, deixando-lhe nutrir no coração idéias de
independência que tarde nos darão que sofrer [...]”. Este enunciado indica a
não identificação do pai com a função de educar e orientar a filha, mas com a
de proteger a honra familiar, visto que, na trama, quando este se vê diante de
um perigo moral, impõe à filha uma vida conventual.
CONCLUSÃO
Os folhetins romanescos, publicados nos jornais, foram uma
prática corrente, na segunda metade do século XIX, em todo o Brasil. Ao
oferecerem romances sentimentais, acabaram por conquistar o público
feminino e serviram como um dos veículos balizadores do seu
comportamento. No Maranhão, as representações sobre as mulheres que
aparecem nos três folhetins, aqui apresentados, que foram publicados nos
jornais da capital, São Luís, apesar de europeizadas, encontram duplamente
correspondência na sociedade provincial, primeiro pelo considerável número
de portugueses que aqui viviam e, segundo, por ser a imagem ocidental cristã
do feminino, reproduzida nas relações patriarcais aqui estabelecidas.
Assim, numa sociedade em que o homem estabelece relações de
gênero hierárquicas e de submissão, o ideal de mulher é aquele que reproduz
essa ordem. Foi, pois a partir da imagem de virgem, esposa e mãe, que a
_____________________________________________________________
16
Movimento artístico, literário e filosófico que se originou na Europa do século XVIII, caracterizado por ser
uma reação ao Neoclassicismo e por dar livre curso à imaginação e às emoções. Temos no Brasil
significativos representantes.
627
moral feminina, socialmente aceita, construiu o perfil de virtuosa, casta,
obediente, honrada, educadora e guardiã do lar, como características
próprias da mulher, o que na literatura aparece de forma romanceada através
de personagens femininas. Isto nos leva constatar o caráter moralista da
sociedade imperial brasileira, que procurava, na maioria das vezes, reforçar o
modelo atribuído a mulher.
Enfim, os folhetins confirmam, rejeitam, completam e baseiam-se
nos discursos historicamente construídos sobre a mulher do século XIX,
tendo em vista que é nas vivências sociais que o autor vai buscar argumentos
para compor seu enredo. E, justamente por isso, encontrou correspondência
na sociedade da época.
628
REFERÊNCIA
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629
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SAMARA, Eni de Mesquita. As Mulheres, o poder e a Família: Século XIX.
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VIVEIROS, Jerônimo de. História do Comércio do Maranhão (1612-1895).
São Luís: Associação Comercial do Maranhão, 1954.
630
NARRATIVAS SOBRE MULHERES NA AMÉRICA COLONIAL
Lina Maria Brandão de Aras
A presente comunicação objetiva discutir a relação estabelecida
entre a história e a literatura a partir de suas formas narrativas. Tomamos para
objeto de análise duas obras Doña Francisca Pizarro e Inés da Minha Alma,
cujo foco de preocupação se concentra nas relações de gênero na América
espanhola no período da conquista.
Em O General em seu Labirinto, Gabriel Garcia Marquez utilizou
a metáfora “labirinto” na composição da sua obra, com o objetivo de analisar
as relações de gênero. O desafio que apresentamos neste trabalho trilha o
mesmo caminho, no sentido de buscar as relações entre a História e a
Literatura na construção do conhecimento histórico. Além de que, ao tomar as
mulheres como centro de análise, impõe-se a questão de que a nossa
problemática pergunta sobre o “ seu lugar, a sua condição, os seus papéis e
os seus poderes, as suas formas de ação, o seu silêncio e a sua palavra que
pretendemos prescutar, a diversidade das suas representações – Deus,
Madona, Feiticeira – que querem só captar nas suas permanências e nas
suas pujanças” (sic).
As relações entre os escritos literários e os históricos
encontramproximidade nas crônicas, escritas no mundo ibérico desde o
século XIII. Essas crônicas servem como relatos históricos ao descrever,
datar, situar e apresentar o passado e seus contextos a partir do olhar do
próprio cronista, trazendo para o texto sua vivência e, com ela, os elementos
do mundo no qual estava inserido.
Outro elemento motivador da aproximação da História com a
Literatura foi estabelecido para além das fronteiras entre a ciência e o objeto,
_____________________________________________________________
17
Professor Associado II, do Departamento de História, da FFCH/UFBA e professora permanente dos
programas de pós-graduação em História e de Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e
Feminismo.
18
ROSTWOROWSKI, Maria. Doña Francisca Pizarro. Uma ilustre mestiza (1534-1548). Lima: IEP, 2003.
19
ALLENDE, Isabel. Inés da Minha Alma. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.
20
ARAS, Lina Maria Brandão de e OLIVEIRA, Wálney da Costa. No cenário da guerra: as mulheres e a
literatura. In: MOTTA, Alda Brito et alli. Um diálogo Simone de Bauvoir e outras falas. Salvador:
UFBA/NEIM, 2000, 199-217. Este artigo é um extrato de outro texto em construção por esses autores.
21
DUBY, Georges e PERROT, Michelle. História das Mulheres no Ocidente. Porto/São Paulo:
Afrontamento/Brasil, 1990, 7.
22
DOSSE, François. A História em Migalhas. Campinas: Ensaio, 1992.
23
VÉSCIO, Luiz Eugênio e SANTOS, Pedro Brum (Orgs). História e Literatura: perspectivas e
convergências. São Paulo: Edusc, 1999; CHALHOUB, Sidney e PEREIRA, Leonardo Affonso de M.
(Orgs). A História Contada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
631
pois, a escrita da história, ao adotar a leveza literária, estimulou e ampliou o
público leitor do texto historiográfico e se inseriu no mercado editorial, cujo
consumo encontra-se em ascensão.
Entre as fronteiras do histórico e do literário, encontra-se um
profícuo campo de produção de conhecimento a ser, constantemente,
otimizado pelo trabalho conjunto e pelo compartilhamento de ferramentas
analíticas e experiências específicas. A essência do que somos, de quem
fomos dificilmente se expressa na objetividade de relatos pessoais ou de
seus observadores – amplamente traduzida através das representações
imagéticas ou literárias. Ao transcender através da linguagem plástica, ou
fugindo da angustiante pretensão da fiel descrição – dispensável e até
mesmo indesejável no literário –, poderemos tratar a obra como fonte, e
conseguimos ouvir muito mais do que pretenderam nos falar seus autores.
O fazer historiográfico contemporâneo assume feições que
tangenciam as considerações de Barthes sobre o abandono de uma busca
pelo “efeito de realidade” no discurso da História, quando esta rompe com
uma narrativa simplificada e direta que presumia a retratação do real. Nesta
reflexão, o autor ressalta a relação possível entre ficção e História,
destacando a – crescente – preocupação em entender as formas de
apreensão e reprodução discursiva do real, assim como a percepção de que a
estruturação da narrativa (histórica e literária) revela visões de mundo,
aspirações, ideologia e escolhas – seja do autor ou do pesquisador.
Para atingir o alcance histórico do produto literário é importante
refletir sobre a importância do texto e a interação com seu leitor – “quem lê” e
“com que intenção”. Ao considerar a leitura como ato criador e as condições
de leitura como produto de um contexto histórico específico, podemos
entender como as idéias eram (e são) transmitidas por vias impressas, ao
mesmo tempo em que são abertos os caminhos para percebermos como o
contato com a palavra grafada afetou o pensamento e o comportamento da
humanidade.
O confronto de biografias que se gestam distintamente nos
domínios do fazer literário e do fazer historiográfico, transita, mutuamente,
em bases que não se descolam da lógica científica da história, resulta da
constatação e do amadurecimento das abordagens que circunscrevem
ambas as narrativas, as quais recorrendo a materiais e métodos distintos
fazem convergir os dois campos de produção textual para o universo de
produção do conhecimento humano, do conhecimento histórico.
A busca da aproximação interdisciplinar caracteriza o
reconhecimento – quiçá num caminho de retorno, mas nunca em contramão,
pois é necessário articular as diversas instâncias da sociedade na busca pela
explicação do objeto.
632
A literatura dos espaços relativos ao terceiro ou quarto mundo é, antes de
mais, a que equaciona fatos do domínio (ou âmbitos do visível ou
imediatamente verificável). Constrói-se, escreve-se, substitui-se à
história não oficial dos povos que preenchem esses espaços. Porque é
impossível conceber povos sem história e se esta é devorada pelo
silêncio dos arquivos (que não há ou se queimam), dos jornais que não
relatam (ou a censura estrangula), a Literatura tem de fazer-se “história”,
num sentido científico do termo, porque a História não se pode fazer sem
documentos e estes não existem. Daqui, mais uma vez, a necessidade do
sintagma literatura documental.
24
BARTHES, Roland. O Rumor da Língua. São Paulo: Brasiliense, 1988. Especialmente, no capítulo “O
Discurso da História”.
25
Cf. CHARTIER, Roger. Entre Práticas e Representações. Lisboa: Difel, 1986; DARNTON, Robert. O
Beijo de Lamourette. São Paulo: Companhia das Letras, 1990; PRADO, Maria Ligia Coelho. América
Latina no Século XIX: tramas, telas e textos. São Paulo: EDUSP, 1999.
26
DARNTON. Op. Cit.
27
TORRES, Alexandre Pinheiro. “O problema da privação biográfica ou um seu correlativo
(indeterminação de identidade individual e nacional) em “mulatos-tipo” de Castro Soromenho”. In: Actes
du Colloque Les Litteratures africanes de langue portugaise: a la recherche de l'identite individualle et
nacionale. Colloque Les Litteratures africanes de langue portugaise: a la recherche de l'identite
individualle et nacionale. Paris, 28-30/novembre e 1/décembre/1984. Paris: Foundation Calouste
Gulbenkian/Centre Culturel Portugais, 1985, 169-173
633
permite fazer aproximações e distanciamentos e, ainda, realizar uma
discussão teórica sobre o conhecimento produzido pelo historiador e pelo
romancista.
As obras tratam de duas narrativas sobre figuras femininas que
fizeram percursos inversos, a primeira saiu da América e se fixou na Espanha
e, a segunda, saiu da Espanha e se fixou na América. A escolha por mulheres
peruanas, nascidas no Peru ou lá erradicadas (e, por isso, vinculadas à
história desse país), tem um ponto em comum: a mestiçagem. Os estudos
sobre as mulheres e a mestiçagem no Peru encontram uma ampla produção,
visto que a sociedade colonial no Vice-Reino representou o maior contingente
mestiço na América espanhola. As fontes disponíveis e já mapeadas e
trabalhadas, tem assegurado o aprofundamentos dos estudos sobre as
mulheres e a existência de uma bibliografia consolidada motiva o
desenvolvimento de novas pesquisas.
A abertura para novos temas e abordagens, herdadas dos
Annales e ampliadas ao longo do século XX, nos possibilitou o encontro com
as fontes e com elas a identificação com outros sujeitos históricos,
anteriormente silenciados. A partir das décadas de 1960 e 1970, ancorados
nos movimentos feministas, as mulheres passaram a ocupar o espaço central
dos estudos renovados. Entretanto, somente na década de 1980 é que a
História das Mulheres se estabeleceu como campo do saber histórico
consolidado, tendo ainda que enfrentar a oposição das feministas que
desejam que a temática fosse tratada dentro do campo das relações de
Gênero.
A História das Mulheres, por sua vez, ao incorporar na sua
tessitura as discussões sobre Gênero, classe e etnia-raça, aprofundou suas
investigações, buscando os parâmetros sociais que permeiam as relações
nas sociedades. Para a América Latina, acrescentamos o patriarcado como
elemento fundador das relações de Gênero, na medida em que essa
sociedade é marcada pelas orientações da Igreja Católica Ibérica, cuja
expansão ultramarina estava calcada na conquista dos infiéis.
Daí que recorremos à apreciação de Rafael Varón Gabai.
Segundo este autor há duas vertentes de análises sobre a mulher. Gabai
distingue o primeiro grupo que se ocupa da mulher passiva, protegida e
recolhida ao mundo doméstico do segundo grupo que defende a mulher como
pessoa decidida e capaz de gerir ela própria sua vida e seus negócios. Muitas
vezes encontramos essas duas vertentes de forma complementares, sem,
contudo, prejudicar a análise. Entretanto, a dicotomia entre essas duas
vertentes trazem problemas para as análises históricas, especialmente, para
aquelas que tratam das diversas formas de violência contra as mulheres.
Nesse sentido é pertinente trazer para este estudo a presença
marcantemente masculina na conquista e colonização da América Latina,
634
sem perder de vista a presença feminina e os papéis por elas
desempenhados. Nesse contexto, ressalte-se que a bibliografia tem centrado
sua atenção para o masculino, mas, com a ampliação das pesquisas sobre as
mulheres, esse contingente tem se diferenciado e evidenciado nas páginas
da história.
Voltando à questão do espaço reservado à mulher na sociedade,
bastante discutido na historiografia, destacamos que a mulher também se fez
presente no espaço público, embora de forma diferenciada, isto quer dizer
que as suas ações e participações, dentro de uma estrutura social, estavam
mais bem delimitadas que a dos homens, visto que, na sociedade ocidental e
cristã, ao homem estava reservado o espaço público, enquanto às mulheres o
espaço doméstico, da casa.
Maria Ligia Colho Prado identificou uma série de mulheres que de
maneiras diversas se fizeram presente nas guerras de
independência na América. Esse trabalho de mapeamento é muito
importante para evidenciar os vários momentos em que as mulheres
atuaram. E, com isso, abrir as discussões em torno das várias identidades de
mulheres, tirando a exclusividade da ação de grupos sociais particulares ou
situações específicas. Isto tem, ainda, contribuído para a ampliação dos
estudos e gerado outros e novos modelos, visto que a Historia da Mulher
como exemplo único não possibilita a percepção dos sujeitos históricos.
É certo, entretanto, que o movimento pela construção do panteão
das heroínas contribuiu, ainda nos anos de 1960, para a disseminação da
idéia de que as mulheres poderiam desempenhar papéis tão importantes
quanto os homens, inclusive nos cenários de guerra, sem atentar para as
mediações entre o herói-heroína e a sociedade na qual estava inserida.
Em se tratando da História da América Colonial, os registros dos
cronistas já anunciavam a forte presença feminina nas sociedades ali
encontradas e que, mesmo entre os europeus, as mulheres já exerciam
diversas funções no espaço público. Assim é que as mulheres, nas ausências
de maridos, pais, tutores, parentes próximos, assumiram de forma ampla a
administração dos negócios da família, quebrando com o paradigma de que
_____________________________________________________________
28
SÁ, Eliane Garcindo de; AZEVEDO, Francisca. L. Nogueira; MONTEIRO, John. M. Fontes para Estudo
de História da América Espanhola: Descoberta e Conquista. América Raízes e Trajetórias. São Paulo:
EDUSP/EXPRESSÃO E CULTURA, 1996.
29
SANTARO, Ana Cristina de Menezes. “A participação feminina no cenário da conquista peruana”.
www.anphlac.hpg.ig.com; SÁ. Op. Cit., traz as instituições e os fundos documentais onde estão fontes
importantes para o estudo da mulher peruana.
30
SCOTT, Joan. “História das Mulheres”. In: BURKE, Peter (org.) A Escrita da História. São Paulo: UNESP,
1992, 63-95.
635
para elas estava reservada, apenas, a atuação no ambiente doméstico. Além
disso, é notória a participação das mulheres na produção literária e na vida
religiosa, sem contar com o papel desempenhado pela prostituição nas
sociedades patriarcais.
Maria se destacou desde o início nas pesquisas sobre a História
das Mulheres. Nascida em Barranco, é investigadora de história andina com
ampla publicação na área e formadora de uma geração de historiadores
peruanos. É membro de instituições culturais como o Instituto de Estudos
Peruanos (IEP) e da Academia Nacional de História do Peru. Recebeu vários
títulos honorários, dentre elas o de doutor honoris causa da Pontifícia
Universidade Católica do Peru e da Universidade Nacional de Trujillo. É
professora honorária da Universidade Católica de Santa Maria (Arequipa-
Peru). Recebeu o prêmio “Sigillo D´Oro Del Centro Internacional de
Etnohistoria (Palermo-Itália).
Em 1984, no Primeiro Seminário Nacional de Mujer e Historia em
El Peru, apresentou trabalho com o título “La Mujer em La Historia del Peru”.
Os trabalhos posteriores preocuparam-se com o aprofundamento das
pesquisas, destacando-se com sua pesquisa sobre Francisca Pizarro, que
iluminou outros trabalhos sobre essa mesma personagem.
Em 1988 foi publicada a primeira edição de sua obra mais
conhecida Historia Del Tahuantinsuyu, que teve reedições ampliadas,
notabilizando-se como pesquisadora da historia peruana há mais de
quarenta anos, porque discuti as fontes e a historiografia produzida sobre o
Peru pré e colonial. A escrita da sua história e suas preocupações teórico-
metodológicas se reproduz em Francisca Pizarro, cuja preocupação com as
fontes e a bibliografia de apoio se fazem presente com grande freqüência ao
longo do texto em análise.
Isabel Allende é uma escritora consagrada na literatura de língua
espanhola. Nascida em Lima, em 1942, exerceu a profissão de jornalista e
escritora desde muito cedo. Começou a publicar aos17 anos, atingindo o
sucesso em 1982 com a Casa dos Espíritos em um momento em que se dava
a transição para a democracia em vários países latino-americanos.
A personagem feminina é o ponto principal e a espinha dorsal da
obra, o que se justifica por se constituir em uma crônica redigida a partir das
_____________________________________________________________
31
ROIZ, Diogo da Silva. “A Discreta e Sedutora 'História das Mulheres'”. Cadernos PAGU (30), jan-
jun/2008, 445-452.
32
GABAI, Rafale Varón. La ilusión del poder. Apogeo y decadência de los Pizarro em la conquista del Peru.
Lima: IEP, 1997.
33
LACOSTE, Pablo. La carcel y el carcelero de la mujer colonial. Estudos Ibero-Americanos, v. 33,
dez/2007, 7-34.
34
PRADO, Maria Ligia Coelho. Op. Cit.
636
memórias de Inês Suarez. Isabel Allende publicou em 2006, em espanhol, a
obra Inés da Minha Alma, publicada no Brasil dois anos depois, 2008, pela
Bertrand. Allende justificou em sua obra “A soma dos dias” a sua escolha por
Inês e por outras personagens trabalhadas em sua obra. Essa é uma escolha
ancorada numa posição política explicitada no víeis feminista, elemento
freqüente na obra desta autora e que se faz presente em seus outros escritos.
É também uma opção política de trazer para seus leitores questões
polêmicas referentes às questões sociais do seu tempo, a exemplo da
discussão sobre o patriarcado presente em “Meu país inventado”.
DUAS AUTORAS, DUAS OBRAS: mulheres e suas vidas
As autoras latino-americanas estudadas evidenciam um
procedimento narrativo revelador, que ultrapassa os procedimentos literários.
O fazer historiográfico ao se aproximar da literatura busca uma fluidez
palatável ao grande público que, cada vez mais, consome as biografias; de
outra parte, o texto literário nasce da leitura de um documento e, tal qual na
prática da pesquisa histórica, procura ultrapassá-lo pela conjectura
circunstanciada na pesquisa conjuntural. As notas bibliográficas no texto de
Maria foram utilizadas no corpo do texto e apresentadas também no final da
obra. E no texto de Isabel Allende elas foram incorporadas ao final do livro.
Assim, a diferença reside no refinamento de não propor uma
análise histórica, mas travesti-la na criação literária, fazendo um faz de conta,
tecendo um enredo que não é, mas que poderia (ou pode!) ter sido o cotidiano
da personagem retratada. Desta forma a escolha de duas obras – uma
literária e outra histórica – escritas por uma historiadora e por uma escritora,
são as bases para o nosso trabalho.
As obras trabalhadas foram escritas em espanhol, mas só o
romance foi traduzido para o português. As publicações de Isabel Allende em
português no Brasil é uma constante, visto que a maior parte de sua obra
encontra-se publicada em português brasileiro. A obra da historiadora
peruana é amplamente conhecida dos círculos acadêmicos, aparecendo na
bibliografia trabalhada pelos pesquisadores e professores de História da
América no Brasil e seu livro mais conhecido sobre a sociedade inca
encontrou grande aceitação no mercado editorial brasileiro.
As duas obras são biográficas. Esse fato por si só já chama a
atenção por ser essa uma opção corrente na historiografia e na literatura
contemporâneas, onde proliferam as publicações, cujo tema central, a
biografia, encontra um público leitor ávido por conhecer diferentes trajetórias
ditas individuais. A biografia, por outro lado, é uma escrita da história e pode
ser utilizada de forma política para construir uma imagem positiva das
mulheres, pois muitas delas passaram às páginas da história pelo olhar
sexista, desprestigiada e, especialmente, desqualificada. Exemplo clássico
na História da América é Malinche e Carlotta Joaquina, onde aparecem com
637
mais profundidade os contextos em que suas personagens viveram, e suas
autoras conseguiram traçar perfis que as livraram dos estigmas a elas
reservados nas páginas da história, sem, contudo, deixar de explicitar
aqueles elementos próprios de sua personalidade.
As obras em estudo quebram a linha do individual e traçam os
percursos das personagens escolhidas dentro de um coletivo que se constrói
com a contribuição de todos os envolvidos, pois as personagens fazem parte
de um contexto que, se isoladas, perdem o sentido de suas existências. A
escolha pela escrita de uma obra biográfica, onde são observadas as tramas
e teias sociais, enriquecem o biografado e dão a dimensão do objeto em si
mesmo, além é encontrar, mais uma vez, respaldo nos estudos históricos e
literários, recebendo a legitimidade desejada pela (o) autor (a) e pelas (os)
leitoras (es).
A escrita pela pena feminina tem sido objeto de muitas
discussões sobre a produção do conhecimento e as questões de gênero. No
caso em estudo são duas autoras, mulheres forjadas em países distintos,
com ampla experiência com a escrita e pertencente a setores intermediários
das sociedades latino-americanas. Com tais características, a seleção dos
conteúdos trabalhados nas suas respectivas obras buscou ressaltar as
temáticas mais recorrentes dentro da sociedade patriarcal, o papel das
mulheres nessas sociedades e como elas se inserem dentro delas. Nesse
sentido é importante repetir, mais uma vez, os ensinamentos de Michelle
Perrot, quando afirma:
[...] o 'ofício do historiador' é um ofício de homens que escrevem a
história no masculino. Os campos que abordam são os da ação e do poder
masculinos, mesmo quando anexam novos territórios. Econômica, a
história ignora a mulher improdutiva. Social, ela privilegia as classes e
negligencia os sexos. Cultural ou 'mental', ela fala do homem em geral,
tão assexuado quanto a Humanidade.
_____________________________________________________________
35
ALLENDE, Isabel. A Soma dos Dias. Rio de Janeiro: Betrand Brasil, 2008.
36
ALLENDE, Isabel. Meu País Inventado. Rio de Janeiro: Betrand Brasil, 2003.
37
ESQUIVEL, Laura. Malinche. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007.
639
estabeleció desde muy temprana fecha uma obligada relación de
dependência. Ellas compartían La vida diária de los hispanos,
cohabitaban com ellos segpun sus diferentes condiciones. La escasez de
mujeres españolas em los rimeros tiempos hizo indispensable para los
varones europeos la presencia de las mujeres andinas.
37
AZEVEDO, Francisca L. Nogueira. Calota Joaquina na Corte do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003.
39
PERROT, Michelle. Os Excluídos da História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
641
imagem tradicional, consolidada no imaginário coletivo através de
representações de uma mulher devota, que reagiu em defesa da pátria, que
apoiava causas caridosas. Essa visão se justifica com a preocupação em
disseminar valores e dificultar o rompimento deles, como é o caso da inserção
das mulheres nas forças em armas. Na historiografia tradicional, a mulher
soldado na conquista da América ou não existia ou era um caso isolado,
apenas, recentemente, se tornou um elemento importante nos campos de
batalha. Aqui não discutiremos de que lado estava Inés Suarez no momento
em que assumiu esse papel, mas que ela se incorporou a um projeto político
“masculino”, defendeu esse projeto e, como mulher, liderou ações
impossíveis de serem consideradas da competência feminina.
A presença da cultura indígena é marca da obra de Isabel Allende:
Inés é acompanhada de Catalina, uma índia quéchua, cujas práticas culturais
estão presentes durante toda sua existência, pois “los vencidos conservaron
sus crenças a ultranza em um intenso proceso de resistência indígena que
repercutió profundamente em nuestra historia y em La construcción de una
identidad nacional”. Outrossim, Maria se preocupa mais com os
distanciamentos entre a herdeira Pizarro das suas raízes mestiças.
Nesse sentido Sara Guardia continua a explicitar o papel
desempenhado pela mulher da elite inca e suas relações com os
conquistadores, pois refletem para além “de su dimensión humana y cultural,
reflejan la articulacíon y negociación de estas alianzas políticas em el âmbito
público y privado, al convertirse em sus esposas, concubinas, y madres de los
primeiros mestizos compartiendo vida y patrimonio”. Da mesma forma que
Francisca Pizarro era filha de uma inca com o conquistador e este fato lhes
rendeu prestígio e apoio, as teias de solidariedade tecidas entre Inés Suarez
e os indígenas que estavam ao seu redor lhe proporcionou conhecimento e a
auxiliou nas estratégias de sobrevivência no Novo Mundo.
Para Francisca Pizarro a viagem teve significados diversos e a
depender do interesse do pesquisador é nesse ponto que temos uma grande
riqueza de informações na documentação e suas possibilidades de
elucidação das questões. O risco da viagem entre a Europa e a América foi
uma escolha nas duas narrativas, pois ambas discutiram a distância
percorrida e o desconforto da viagem, além dos custos. No caso de Francisca
Pizarro, o custo de seu deslocamento motivou uma querela sobre os gastos
despendidos, como também serviu de objeto de pesquisa específica. Já a
viagem de Inês Suarez, esta se apresentou como espaço de afirmação do
seu papel de mulher, cujas viabilidades – domésticas e no exercício das
curas, contribuíram para a construção de um perfil de mulher decidida, em
busca de um objetivo e nesse percurso não permitira qualquer pedra no
_____________________________________________________________
40
A Sobre as discussões as narrativas na História ver: BURKE, Peter. A história dos acontecimentos e o
renascimento da narrativa In: BURKE, Peter. A escrita da história. São Paulo: Editora da UNESP, 1992. P.
327-348.
41
LA VEGA, Garcilaso de. Comentarios Reales de los Incas. México: Fundo de Cultura Econômica, 1995.
42
ROSTWOROWSKI, Maria. Op. Cit., 15
642
caminho.
Pela árvore genealógica, Maria começou a obra a partir dos
parentes pela linha familiar materna de Francisca, o que a remeteu aos
últimos tempos do império inca. O caminho pelo mundo inca demonstrou os
vínculos que foram estabelecidos entre os conquistadores e os incas, as
atitudes dos conquistadores na execução dos nativos, sem deixar, entretanto,
de chamar a atenção para os papeis desempenhados pelas mulheres e a sua
participação nas tramas.
A partir do sexto capítulo, Maria retomou as concessões de
encomiendas a dona Francisca e a morte de Pizarro e seu irmão Fruceto, bem
como a preocupação em casar Francisca com onze anos. Como única
herdeira dos Pizarro, com a morte de seu irmão, Francisca se viu rica. A partir
da contextualização histórica Maria deu inicio ao estudo do primeiro
testamento de dona Francisca. Nesse contexto, Maria destacou a
recomendação do Conselho das Índias em transferir os herdeiros Pizarro
para a Espanha.
O primeiro testamento foi datado de 12 de março de 1551, às
vésperas da viagem para a Espanha, detalhando os riscos da viagem e os
problemas com os tutores que gastaram parte dos recursos financeiros. Além
da sua chegada à Espanha, acompanhou os caminhos percorridos por
Francisca. Maria buscou trocar o perfil de Hermando Pizarro, seu tio e futuro
esposo, pois o prestigio de Hermando estava relacionado as suas ações na
conquista inca, enfrentando seu desejo por amealhar fortuna e como se havia
indisposto com a Coroa. Neste estudo interessa a solução encaminhada por
ele para afastar Isabel de Mercado de sua companhia e levar adiante seus
planos de casar-se com Francisca Pizarro.
Maria chama a atenção, ainda, para a expectativa de Francisca
em relação a Espanha. Tal expectativa está vinculada à educação recebida
sob a batuta de Inês Munoz e uma referência à herança paterna. Pois, mesmo
mestiça, Francisca era filha do conquistador do Peru. Diferentemente de sua
tia Inês Munoz, Francisca foi caracterizada no testamento de Hernando como
uma mulher submissa e silenciosa, mas a recomendação para que não se
casasse não foi atendida, visto que Francisca realizou o segundo matrimônio,
dentre outras vontades expressas. Dos cinco filhos – três homens e duas
mulheres, dois deles não chegaram a fase adulta, morrendo ainda na
infância.
_____________________________________________________________
43
ALLENDE, Isabel. Inés da Minha Alma. Op. Cit., 4.
44
A legislação espanhola era muito rigorosa com a condição jurídica das mulheres. Por isso, a viuvez se
tornou uma condição importante para a liberação das mulheres de certas obrigações anteriormente
estabelecidas. Sobre essa legislação ver: CAPDEQUI, José Maria. OTIS: Instituições. In. BERETTA,
Antonio Blallesteros y (Dir.) História de América y de los Pueblos Americanos. Barcelona: SALVAT, 1959.
643
O destino conventual se fez presente para várias mulheres
independente do requisito de pureza. A manutenção de mulheres por toda a
existência foi uma constante nas sociedades ibéricas e latino-americanas.
Era um destino para mulheres viúvas, jovens sem proteção e, como nos dois
casos protagonizados pelos Pizarro, solução para relacionamentos pouco
recomendáveis para a sociedade de então.
A linha de desenvolvimento segue a cronologia linear, mas como
recurso da narrativa se permite o retorno ou avanço no relato dos fatos. Nesse
sentido, Maria acompanhou a vida dos descendentes de Francisca e
Hernando. Seus filhos aparecem nas esculturas com o casal. Dois, desses
filhos, aparecem ainda, nas fotografias dos edifícios em Trujillo, que fazem
referência aos Pizarro. Francisca Pizarro é uma mulher preocupada com a
sobrevivência material da prole, inclusive com o dote das filhas. O segundo
matrimônio, um desastre financeiro, foi posterior ao casamento do seu último
filho. Francisca herdou, após a morte do seu filho Francisco, enorme legado
que não conseguiu gastar. Sua morte, logo em seguida, obrigou sua biógrafa
a continuar a história a partir dos seus descendentes, da mesma forma que
deu início a sua obra a partir da ascendência inca de dona Francisca.
A historiadora surpreende no Capítulo 15 ao buscar uma
comparação entre dona Francisca e Garcilaso de La Veja. Tal exercício segue
a linha da descendência mestiça onde o pai é espanhol e a mãe índia, mas
com trajetórias diversas “no solo por pertenecer a sexos distintos sino por lãs
circunstancias que rodearon su crianza”. Aqui foi tomada para análise a
questão do Gênero como espelho, pois neste capítulo Maria evidencia que o
homem americano não se acultura, permanece ao lado da mãe índia e com
ela convive com os costumes incas, enquanto que para a mulher ocorria o
contrário.
No caso de Inés Suarez, como uma mulher nascida na Espanha,
sua trajetória se constrói no sentido oposto ao de dona Francisca, pois ela se
desloca da Espanha em direção a América e se afasta de seus objetivos, pois
pretendia encontrar o marido que partira em busca das riquezas do Novo
Mundo. Já dona Francisca encontrou seus maridos na Espanha. Todavia
ambas trazem sob suas cabeças muitos elementos em comum,
especialmente, os padrões e efeitos do catolicismo sobre suas vidas.
Inês Suarez mesmo com seus diversos momentos de recusa ao
padrão de mulher estabelecido manteve comportamentos e práticas
condizentes com a sociedade que a forjou, mesmo longe da Europa, distante
_____________________________________________________________
45
Para as guerras de independência em todo o território latino-americano, foram identificadas mulheres
que tiveram ampla participação nesse processo. Da mesma forma, para a Guerra do Paraguai há uma
produção significativa sobre as mulheres presentes nos vários lados envolvidos no conflito.
46
GUARDIA, Sara Beatriz. “Mujeres de la Elite Incaica em el Drama de la Conquista: la mestiza Francisca
Pizarro y su viaje a España”. (1534-1598). Labrys Études Feminita. Jan/jun, 2007, 1.
47
GUARDIA. Op. Cit., 1-2.
644
de sua gente e ela própria uma desconhecida daquele Novo Mundo. Para dar
início a sua narrativa, Inés Suarez se situou no tempo e no espaço de onde
falava. Era uma mulher idosa que escrevera grande parte de sua crônica, mas
que naquele momento necessitava do auxílio para completar sua obra.
Do casamento com Juan de Malaga, seu primeiro marido, Inês
relata o muito que trabalhou e o aprendizado nas coisas do corpo e do prazer.
Das habilidades manuais e dos quitutes que sabia preparar e o quanto isso
lhe foi útil na sobrevivência, tanto na travessia do mar tenebroso quanto da
vida que enfrentou em seguida. Dessas habilidades também ganhou o
respeito de homens que lhe defenderam e daqueles que conquistaram o seu
amor.
Já na América, a sua acompanhante, a índia quéchua Catalina
percorreu boa parte de sua trajetória, pois só a morte conseguiu afastá-las.
Eram eram cúmplices e parceiras nas ações que desenvolveram. Não
chegou a ser denunciada à Inquisição por práticas condenáveis, mas Inês e
Catalina faziam uso das diversas práticas de cura advindas da medicina
quéchua, bem como Catalina realizava seus ritos sem que fosse recriminada
por sua senhora, dentro de um pacto de ajuda mútua e
solidariedade entre mulheres. E, mais, Inês Suarez cometeu um crime em
defesa de sua honra. Tal fato, ancorado na neutralidade da expansão
ultramarina foi compreendido e aceito pelo comandante da embarcação que
trouxera Inês à América. Sem o corpo e sem o crime, Inês continuou sua
procura pelo marido, sem esquecer que tirara a vida do seu agressor.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Allende parte do documento, mas extrapola para criar o cenário
possível que não, necessariamente, precisa ser provado. Maria dialoga o
tempo todo com o documento, se preocupando em não extrapolar o
documento, como ato criador, ficcional. Passagens semelhantes entre um e
outro texto – mostrar como apresenta uma situação sem precisar do
documento, usando estratégias diferentes na construção do conhecimento.
Os comportamentos apresentados das duas mulheres nos
ajudam a buscar semelhanças ou disparidades nas formas de lidar com a
sociedade e com os padrões estabelecidos. São elas personagens
contemporâneas no tempo, mas o local que ocuparam na sociedade motivou
ou não atitudes que as ajudaram a experienciar situações das mais diversas.
As duas obras permitiram discutir questões de relação e valores
de gênero, etnia-raça, classe e geração de forma a perceber numa trajetória
de vida feminina. E da mesma forma, os acontecimentos que marcaram suas
rotas e as desviaram dos caminhos socialmente estabelecidos.
_____________________________________________________________
48
ROSTWOROWSKI, Maria. Op. Cit., 81.
49
Universidade Federal do Tocatins - UFT
645
ENTRE A MEMÓRIA E A LIBERDADE: Conceição Evaristo e Ezilda Barreto
no combate ao racismo
Ana Maria Coutinho de Sales
No prefácio do livro de Conceição Evaristo, Becos da memória
(Mazza, 2006), Maria Nazareth S. Fonseca destaca a relevância histórica de
romper o silêncio das vozes marginalizadas que ao serem reproduzidas pelo
traço da escrita, provocam ruídos na transmissão oficial dos acontecimentos
ou na forma como o social é construído. No caso específico do silêncio
imposto às mulheres negras, podemos constatar como são esquecidas em
lugares de pouca visibilidade, inclusive na literatura, pois raramente ocupam
o lugar de protagonistas principais nos romances. Um dos objetivos
fundamentais da literatura Afro-brasileira é a afirmação e a reabilitação da
identidade cultural, da personalidade própria dos povos negros.
Nessa direção, analisando uma parte da produção literária das
escritoras da Paraíba do começo do século XX, constatei como determinados
textos são fontes significativas para rever e construir novas interpretações
sobre a visibilidade da população afro-descendente, em particular a
relevância da mulher negra na formação cultural da sociedade brasileira. O
nosso trabalho está fundamentado nas teorias dos estudos culturais,
articulando as categorias de gênero, raça, etnia e classe social, tomando-se
como referencial básico, entre outros, autores como Frantz Fanon, Homi
Bhabha, Edward W. Said, Michelle Perrot, que nos vêm ajudando a
compreender, analisar e perceber a relevância social de pesquisas sobre a
problemática dos efeitos negativos do racismo, como nos ensina Maria
Aparecida Andrade Salgueiro (2004), que combater o racismo é uma forma
de lutar por um futuro mais justo, fraterno, solidário e coerente para a
humanidade.
Neste artigo analiso brevemente alguns fragmentos das
produções literárias de Conceição Evaristo e Ezilda Barreto, evidenciando no
processo escritural dessas autoras, a forma de unir a narrativa insubmissa à
ação política de promoção da igualdade racial, confirmando que a Literatura
Afro-Brasileira é um local para o exercício de liberdade e do cuidado com a
dignidade de todas as pessoas, em particular da população afro-
descendente. Vale ressaltar que a emergência de uma Literatura Afro-
Brasileira de autoria feminina, instiga a produção de novas pesquisas através
de perspectiva comparatista. No caso deste artigo, a escolha dos nomes de
Conceição Evaristo e Ezilda Barreto ocorreu em função de que suas obras
problematizam as questões de gênero, raça e etnia. A análise dos textos
selecionados segue numa perspectiva interdisciplinar.
_____________________________________________________________
51
UFPB
647
A socialização desses romances ganha relevância no contexto
das ações afirmativas e da Lei No. 11.645/08, que reconhece a necessidade
de promover-se a valorização histórica das populações afro-descendentes e
indígenas. Nesse contexto é pertinente dar visibilidade à mulher negra na
literatura, considerando que essa representação não revela uma verdade
única, mas abre um leque de possibilidades para nos fazer pensar sobre a
relevância de analisar obras produzidas por mulheres de diferentes regiões
do Brasil e de diferentes períodos históricos. Sabemos que analisar
criticamente textos de autoras vivas é uma atividade desafiadora. Neste
sentido, trabalhamos com os romances de Conceição Evaristo, que nasceu
em Minas Gerais, e com o romance de Ezilda Barreto, que nasceu na Paraíba
no final do século XIX. Mulheres de tempos e lugares diferentes, mas que
usam as palavras como armas na luta contra a violência, a injustiça, a miséria,
a escravidão e os efeitos nefastos do racismo.
Assim, romances e outros textos literários podem contribuir para
desenvolver um olhar que sirva para reler o passado e ultrapassar antigas
visões estereotipadas da população afro-descendente. Além disso, o olhar
sobre duas autoras até hoje não estudadas em conjunto, na perspectiva de
gênero, raça e etnia, também constitui uma contribuição para
confirmar a dimensão pedagógica do diálogo entre literatura e história como
um meio facilitador para a irradiação de novas imagens da mulher negra,
quebrando as algemas das discriminações raciais e produzindo novos
conhecimentos. Neste ponto a universidade brasileira tem, entre outras
tarefas, o compromisso de produzir pesquisas que possam colaborar para
combater toda forma de preconceito social, sobretudo a discriminação racial.
Como sabemos o racismo, entre outros fatores, é fruto dos anos de
colonialismo e de um dos maiores crimes cometidos contra a humanidade
que foi a escravidão, responsável pelo extermínio físico, psicológico e
simbólico de povos indígenas e dos negros africanos e seus descendentes.
Decorre daí a relevância da emergência de uma literatura Afro-
brasileira que rompe o silêncio da população afro-descendente, em particular
da mulher negra que ficou durante muito tempo no porão da história. Esta é a
razão pela qual escolhemos como objeto de pesquisa os romances de
Conceição Evaristo, de Minas Gerais, e de Ezilda Barreto, da Paraíba. São
autoras que trabalham com memórias de mulheres negras. Como sugere
Nazareth Fonseca (2006), essas narrativas revolvem os conflitos provocados
pelo afloramento das “memórias subterrâneas” ao palco da história que as
sonega. Decorre daí a função social das narrativas das romancistas
selecionadas neste artigo, pois salvam do esquecimento, como adverte a
historiadora Margareth Rago, as histórias de vida mergulhadas na pobreza
extrema e no abandono. Ezillda Barreto e Conceição Evaristo, fazendo-se
sujeitos participantes, assumem narrar as histórias dos lugares degradados
como uma forma de luta contra o racismo e a miséria, revelando assim a
648
dimensão política da escrita ao retratar as vidas dos que lutam por sobreviver
em condições extremamente desumanas.
A analogia entre Nos Arcanos do Império, de Ezilda Barreto, e
Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo é surpreendente. Quem lê, logo
identifica a semelhança de processo: o espaço de fala que é destinado à
população escravizada, especificamente a mulher negra. Nesses romances
entram em cena personagens femininas afro-descendentes, com traços de
muita inteligência, coragem, força, sensibilidade, insubmissão, resistência,
enfim, mulheres negras que assumem o lugar de sujeitos históricos, lutando
para conquistar a liberdade tão desejada. Podemos perceber, claramente, a
identificação das narradoras com a população marginalizada, fazendo da
palavra um meio para superar a opressão.
EZILDA BARRETO: uma romancista da Paraíba no combate ao racismo
Ezilda Milanez nasceu a 29 de fevereiro de 1898, em Guarabira,
na Paraíba. Desde menina sonhava em ser escritora. Após a conclusão do
Curso Normal foi morar na cidade de Areia, na região do brejo da Paraíba,
onde viveu até o seu falecimento aos 88 anos de idade. Era também jornalista
e professora. Escrevia com freqüência para o jornal O Areiense. Tornou-se
uma figura emblemática da cidade pela sua luta em favor da população
marginalizada. Provavelmente, decorre daí, a sua preocupação literária com
a história das mulheres e da população afro-descendente, alinhando-se na
direção inaugurada pela maranhense Maria Firmina dos Reis, autora do livro
Úrsula, publicado em 1859, o primeiro romance histórico afro-brasileiro de
autoria feminina.
Nos Arcanos do Império foi escrito desde o começo do século XX,
mas diante de inúmeras dificuldades só foi publicado em 1981. A
encadernação em tons salmonado e marrom apresenta na capa uma
fotografia em preto e branco de uma Ama de Leite embalando uma criança
branca. Apesar da sua condição social ser desfavorecida, entretanto o seu
corpo retrata a elegância de uma rainha. Essa linguagem corporal pode ser
interpretada como uma forma de não se curvar diante do autoritarismo
imposto pelo modo de produção escravista do Brasil. Assim, a atitude política
da escritora de escolher o retrato de uma Mãe Preta para ilustrar a capa do
seu romance, ajuda a recompor a memória coletiva das mulheres
escravizadas, rompendo o silêncio histórico dessa população.
A narradora inicia o primeiro capítulo do romance Nos Arcanos do
Império utilizando a imagem de um castelo abandonado como metáfora para
criticar o sistema escravagista, o abandono e o desamparo em particular das
mulheres escravizadas. O antropomorfismo do castelo faz lembrar que a
estética nasceu como discurso do corpo. A vivência da penúria afina alguns
instrumentos narrativos para expor as vidas subterrâneas, centradas na
carência secular de melhores condições de vida para a população negra. O
649
romance recompõe as experiências de pessoas expostas à dura pobreza,
que, contudo não arrefece o desejo de continuar vivendo e lutando por
melhores dias. No universo de vidas tão sofridas e de histórias construídas de
migalhas, os efeitos negativos da fome e da violência minam o corpo de
sofrimento, abandono e de doenças. Vale ressaltar que o corpo é na
atualidade uma das categorias centrais nos debates feministas. Na
perspectiva das relações de gênero, raça e etnia fica evidente como no texto
de Ezilda Barreto o corpo da mulher escravizada é moldado por formas de
poder, sofrendo os impactos da violência e do abandono:
O castelo de Moran está mergulhado nas trevas. Há muitas horas
que os lampiões de sua grande fachada e os candelabros dos seus salões
fecharam-se dentro da noite para uma noite também.
O seu corpazil negro, lodoso, de torres desguarnecidas, recebe a
luz difusa das ruas mais próximas, como a coroá-lo de cuidados, como
apresentá-lo, na noite imensa, aos notívagos na sua grandeza antiga, nas
lendas que o cercam, no desprezo de seu dono que o abandonara à mercê do
tempo, sem nenhum reparo a limpeza, sem luz permanente, por dentro ou por
fora, como se desejasse que ele fosse enterrado nos próprios escombros de
um passado de grande glória ou desgraça também.
Era o que se deduzia desse aspecto doloroso de corpo retalhado
de fendas e roupagens esfrangalhadas (BARRETO, 1981, p. 7).
No livro A poética do espaço, Bachelard (2003) nos ensina que, a
casa tem a dimensão simbólica do abrigo, proteção, ninho de lembranças e
de integração dos sonhos, fator de integração do indivíduo. Desse modo, fica
explícito que a descrição do castelo é uma metáfora da condição social da
mulher negra. A sua grandeza antiga é uma referência à liberdade que havia
na África. E, na lendas que o cercam, abre espaço para servir como meio
facilitador para desconstruir os estereótipos racistas das lendas que ainda
hoje cercam a população afro-descendente. Observamos que o castelo de
Moran representa o abrigo, segurança. Assim, tal castelo sem nenhum reparo
denuncia o descuido absoluto da sociedade em relação à população negra
depois da abolição da escravatura, a falta de cidadania e dos direitos
humanos.
De outra parte a narradora ainda utilizando o castelo como
metáfora do corpo da população afor-descendente, denuncia que diante de
tanta violência muitos homens e mulheres escravizados fugiam ou até
mesmo preferiam morrer, como é possível constatar no texto abaixo:
Minha avó costumava adormecer os netos com esta história. O
castelo Negro, situado na província de Beira [...] sua dona há muito
desaparecera [...] Uns diziam que ela se suicidara e outros que emigrara para
alguma terra distante (BARRETO, 1981, p. 37).
650
Como podemos observar a escravidão espalhou vários
preconceitos a respeito da África. Como nada é por acaso num romance,
através dessa narrativa a autora intenta socializar outra imagem da Mãe
Preta, valorizando a mulher negra escravizada na função pedagógica de
contadora de história, ressignificando-a como personagem importante da
nossa literatura infanto-juvenil. E mais adiante a narradora entrelaça os fios
da ficção com os fios da história, denunciando que muitas pessoas negras
não suportavam os diversos tipos de violência, adoeciam e até chegavam a
falecer. Muitas pessoas escravizadas desapareciam, uns morriam de
“banzo”, que é um tipo de saudade da África que provoca uma tristeza
intensa. E nas palavras da Mãe Preta, mais uma vez a utilização do castelo
como metáfora para o corpo de uma mulher africana, destacando a condição
diaspórica vivida pela dona do castelo cujo destino foi o suicídio ou uma
viagem para algum a terra distante, que provavelmente é a África, de onde foi
arrastada. Esse trecho além de reler um fragmento da história de nossas
ancestrais na áfrica, faz uma intertextualidade com o capítulo nove do
romance Úrsula, de Maria Firmino dos Reis, narrando o aprisionamento de
mãe Suzana no dia em que foi seqüestrada da África dos nossos ancestrais.
Fica evidente a crítica que Ezilda Barreto faz ao sistema
escravagista a exemplo do diálogo entre o General Otto e sua filha Rose:
“- Quem são aquelas famílias que habitam o porão?”
Otto estranhou aquela pergunta tão inusitada, fora dos assuntos do dia,
mas respondeu calmamente:
- Sim. Escravos, filha, são criaturas, como nós, massacrados por pessoas
desalmadas, `a procura de proteção. De modo que está havendo, em todo
o país, um movimento pacífico para a libertação dos mesmos. Nosso
Imperador ainda não se pronunciou a respeito. Grande parte do Exército
já se manifestou a favor dos oprimidos (BARRETO, 1981, p. 63).
652
E trechos denunciando a violência e o sofrimento d apopulação
escravizada são inúmeros, como podemos verificar:
Esta casa ainda está cheia das recordações do meu sofrimento.
Meu sangue e minhas lágrimas ainda vivem por aqui como uma maldição. Os
gritos de dor dos escravos, no tronco, ainda ecoam nos meus ouvidos dentro
da casa (BARRETO, 1981, p. 96).
Abandonaram o castelo no dia 13 de maio de 1888, data marcada
para a assinatura da Lei Áurea (BARRETO, 1981, p. 98).
Riam, choravam e gritavam: “Não somos mais escravos!”
Entretanto, ainda traziam consigo os ressaibos da vida passada, a marca dos
arrochos das correntes na pele escura e o sangue a gritar, com a vibração
saída de bocas e dos seus corpos em movimentos atávicos ou ondulações
hipnóticas (BARRETO, 191, p. 99).
Os foguetões estouravam, os sinos tocavam, cantava-se e
dançava-se, alguns caíam com ataques de histeria. As dilig6encias não
paravam, levando doentes, embriagados e agressores, que tentavam
apedrejar algumas resid6encias onde os escravizados eram massacrados, e
até mortos pelo patrão (BARRETO, 1981, p. 100).
Somos todos livres, João. Eu também fui à escrava branca e rica,
hoje, como você, sinto o que voc6es sentem: o entusiasmo deste espetáculo
tão maravilhoso que irmana uma humanidade inteira num só pensamento: a
Liberdade (BARRETO, 1981, p. 101).
Todos traziam consigo “[...] correntes de flores e faixas, a
ornamentarem o corpo das criaturas que deixaram atrás de si a relho, a
corrente, o trabalho forçado e outras atrocidades que não convém relatar,
porque ofuscaria o valor deles no trabalho do crescimento da nossa Pátria!”
(BARRETO, 1981, p. 113).
Como podemos constatar nos diversos fragmentos acima
destacados, Nos Arcanos do Império afloram as recordações. O tempo
presente liga-se a um passado distante da África. É interessante analisar
como este mesmo fenômeno também ocorre no romance Ponciá Vicêncio de
Conceição Evaristo, que utiliza as palavras para cicatrizar as feridas da
memória das mulheres negras.
CONCEIÇÃO EVARISTO: uma romancista curando com palavras as feridas
da memória Maria da Conceição Evaristo de Brito nasceu em Belo Horizonte,
Minas Gerais, em 1946. É a segunda filha de uma família de nove irmãos. A
mãe, Joana Josefina Evaristo Vitorino; a tia, hoje falecida, Maria Filomena da
Silva, assim como outros membros da família, transmitiram a Conceição
Evaristo o gosto pelo “contar e ouvir histórias”. Da experiência em que tudo,
do maior ao menos acontecimento, se transformava em uma narrativa,
vislumbrou para Conceição Evaristo, desde cedo, a necessidade da escrita.
653
Em 1973, depois de ter concluído, em 1971, o antigo Curso
Normal pelo Instituto de educação de Minas Gerais, parte para a cidade do
Rio de Janeiro em busca de trabalho, faz concurso e começa a trabalhar no
magistério público. Continua seus estudos se formando em Letras
(Português – Literatura) pela UFRJ. É Mestre em Literatura Brasileira pel
PUC/RJ e Doutoranda em Literatura Comparada na UFF. Esteve como
palestrante, em 1996, nas cidades de Viena e de Salzburgo/Áustria e, em
2000, Mayagüez, Porto Rico, falando sobre literatura afro-brasileira.
Publicando sempre em antologias, seus primeiros trabalhos surgem, em
1990, na coletânea Cadernos Negros, do Grupo Quilombhoje de São Paulo. A
partir de então, anualmente, a série Cadernos tem sido o principal veículo de
socialização de sua produção literária. Para este artigo destacamos alguns
fragmentos de dois romances: Ponciá Vicêncio, de 2003 e Becos da
memória, de 2006, ambos publicados pela Mazza Edições, de Belo
Horizonte.
O romance Ponciá Vicêncio conta a história da protagonista com
o mesmo nome, sinaliza os seus caminhos, andanças, sonhos e
desencantos. A romancista traça o itinerário da personagem da infância à
idade adulta, destacando seus amores e desafetos, sua trama com a família e
com, os amigos. Um ponto relevante é a questão da identidade de Ponciá,
como podemos conferir nos seguintes trechos:
O tempo passava, a menina crescia e não se acostumava com o próprio
nome. Continuava achando o nome vazio, distante. Quando aprendeu a
ler e a escrever, foi pior ainda, ao descobrir o acento agudo de Ponciá. Às
vezes, num exercício de autoflagelo ficava a copiar o nome e a repeti-lo,
na tentativa de se achar, de encontrar o seu eco. E era tão doloroso
quando grafava o acento. Era como se estivesse lançando sobre si
mesma uma lâmina afiada a torturar-lhe o corpo (EVARISTO, 2003: p. 27).
655
A ESCRITURA FEMININA NORDESTINA EM JORNAIS DO SÉCULO XIX E
XX: Ignez Sabino e Edith Gama
Maria da Conceição Pinheiro Araújo
A literatura escrita por mulheres em livros, revistas e
periódicos no século XIX e início do XX não foi anotada nos manuais,
compêndios e histórias da literatura. Essa produção se manteve por longo
tempo fora dos ambientes acadêmicos, invisibilizada estrategicamente por
um cânone androcêntrico, começou a ser estudada, no Brasil, em 1970,
quando os estudos literários sobre a mulher começam a ser realizados ainda
que de forma esporádica e individual.
O GT Mulher na Literatura, originado no ano de 1986, e os
Encontros Nacionais, ocorridos entre 1987 e 1989, tornam-se mais
sistemáticos nos anos de 1990 e início do século XXI. Eles representam um
marco no que se refere às respostas práticas, em termos de produção
científica, das reuniões realizadas nos congressos da ANPOLL, e nos
seminários nacionais Mulher e Literatura. Dos Encontros, Congressos e
Seminários resultou, além dos Anais, uma produção intelectual que registra
as discussões mais recentes em torno da questão da escrita feminina do
passado à contemporaneidade.
As autoras e/ou organizadoras são professoras, pesquisadoras e
feministas do século XX, que quebraram uma norma ao desmontarem um
estereótipo construído para excluir, das histórias da literatura, as obras de
autoria feminina. Não há motivos justificáveis para essa exclusão, apesar dos
“normatizadores de plantão” insistirem num valor estético que,
afirmam eles, os textos femininos não teriam, e, portanto, o crivo masculino
não aprova(va).
As pesquisadoras audaciosas enveredaram por um projeto de
revisão da história literária e como resposta ao processo estabelecido,
produziram livros que salvaram as obras do passado, do sequestro ou do
limbo em que se encontravam. São antologias, coletâneas biográficas e
dicionários cujo objetivo se pauta em resgatar a ousadia das escritoras de
outros tempos que fizeram história, ao se inserirem no espaço público, em um
momento quando a atividade literária só era permitida aos homens. Ressalto,
porém, que os textos e obras escolhidas, a fim de respaldar este estudo, não
_____________________________________________________________
52
Instituto Federal da Bahia/Salvador
53
A exemplo temos: AZEVEDO, Josefina Álvares de. Galeria ilustre: mulheres célebres, (1897); SABINO,
Ignez. Mulheres illustres do Brasil, (1899); OLIVEIRA, Andradina de. A mulher rio-grandense e escritoras
mortas, (1907); BRITO, Cândida de. Antologia feminina: escritoras e poetisas contemporâneas, (1929);
BITTENCOURT, Adalgisa. Mulheres e livros, (1948); TACQUES, Alzira Freitas. Perfis de musas, poetas e
prosadores brasileiros, (1956-1958); GUIMARÃES, Rute. Mulheres célebres, (1963); GALEANO,
Henriqueta. Mulheres admiráveis, (1965); BITTENCOURT, Adalgisa. Dicionário biobibliográfico de
mulheres ilustres, notáveis e intelectuais do Brasil, (1969), (III volumes); GALENO, Henriqueta. Mulheres
do Brasil, (1971) - (IV volumes).
657
são os primeiros trabalhos. Muito antes, desde o século XIX, já existia a
preocupação com o resgate de textos de autoria feminina.
Tais publicações contestam um projeto androcêntrico que foi
construído para olvidar as obras escritas por mulheres. Ao resgatar as
produções de nossas primeiras escritoras, revisam a história literária tendo
como alicerce teórico os estudos da crítica feminista e sua confluência com as
relações de gênero.
O difícil acesso ao material referente às escritoras do passado e a
dificuldade de localização dos textos produzidos por elas são questões
tratadas pelas pesquisadoras. Em um ensaio publicado no ano de 1994, Ria
Lemaire defende que a escrita e o ensino de história literária no ocidente tem
se mostrado “um fenômeno estranho e anacrônico”. A história literária
tradicional repete a sucessão de escritores brilhantes, como a genealogia das
sociedades patriarcais do passado pautava-se na seqüência cronológica de
guerreiros heróicos. Nos dois casos, “as mulheres foram eliminadas ou
apresentadas como casos excepcionais, mostrando que, em assuntos de
homem, não há espaço para mulheres normais”. A ensaísta contesta a
assertiva, dizendo que esse tipo de historiografia, definida em termos
patrilineares, com ênfase excessiva na paternidade cultural, precisa ser
desconstruída em dois vieses: a desestabilização do sujeito masculino e,
conseqüentemente, do “herói” das obras literárias e do mito de uma única
literatura.
A redescoberta dessas escritoras, diferente do perpassado em
forma de omissão pelas histórias literárias, comprova que seus textos levam
em conta pressupostos teóricos. Eles são concernentes aos discutidos como
novidade em termos de literatura na época quando foram escritos. Até
mesmo, as escritas femininas do período apresentam temas e questões
muito mais revolucionários do que aqueles tratados pelos homens.
Hoje, a publicação e a recepção de obras desse caráter mostram
que muitas mulheres conseguiram extrapolar as barreiras impostas à sua
condição sexual e insubordinaram-se no sentido mais audacioso da palavra,
ao burlar os mecanismos de opressão impostos a elas. E, ainda, fortalece as
atuais pesquisas no campo do resgate de textos de autoria feminina, na
medida em que acrescenta mais um tijolo no recente, mas promissor projeto
de formulação de uma historiografia feminista e da construção de uma
tradição literária feminina brasileira.
É inegável, na atualidade, a importância social, cultural e política
dos estudos na área de resgate e visualização de textos produzidos por
grupos ditos minoritários, no caso específico, o da mulher. Esses estudos
iniciaram uma reflexão sobre a escrita feminina, reavaliando a própria história
literária através da recuperação dos textos produzidos. Na medida em que
essas vozes foram caladas ou consideradas menores, constatou-se o
empobrecimento da literatura e da própria história da humanidade.
Em meio a descoberta de uma vasta produção de obras literárias,
658
constatou-se ao, longo das pesquisas, que também havia uma produção
jornalística por ser resgatada. Assim, apesar do difícil acesso aos jornais,
recuperou-se um grande número de textos publicados por mulheres tanto na
Imprensa quanto na chamada “Imprensa feminina”. Os primeiros estudos a
respeito desse tema surgiram no Rio de Janeiro e São Paulo. Mas
essa já era uma discussão presente no GT da ANPOLL “A Mulher na
Literatura”, onde frequentavam pesquisadoras de todo o Brasil.
No IV Encontro Nacional, acontecido em 1989, em São Paulo, a
professora Luzilá Gonçalves Ferreira (UFPE) apresentou, em uma mesa-
redonda, o seu projeto de trabalho que tinha como objetivo recuperar a
memória feminina na imprensa de Pernambuco. Assim diz a pesquisadora:
Buscando recuperar a fala feminina brasileira, através de documentos
vários, deparamo-nos com um número surpreendente de jornais e títulos,
escritos por mulheres, empenhadas em criar para elas próprias e para
suas contemporâneas um espaço de fala possível. São 18 títulos, 38
números de jornais, que testemunham uma evolução do pensamento
feminino brasileiro e cujo estudo nos obrigará, certamente, a uma re-
leitura da História
Ao decorrer do texto, Luzilá apresenta alguns títulos: A Mulher
(1883); Sociedade Abolicionista Ave Libertas (1885); A Rosa (1890); O Lyrio
(1902) e o Myosote (1911). Lendo alguns textos publicados nos periódicos, a
professora da UFPE faz algumas constatações: eles foram instrumento de
mobilização a favor da campanha abolicionista; a mulher podia escrever o
que quizesse sem a supervisão masculina; eram catalisadores de
informações de obras literárias femininas; refletiam a luta coletiva pela
emancipação da mulher; eram prova da capacidade intelectual feminina.
Dez anos após a publicação do artigo referido acima, a mesma
pesquisadora publica um texto intitulado “A Luta das Mulheres
pernambucanas” no qual retoma a discussão sobre a importância dos jornais
femininos na luta abolicionista. Destacando, principalmente, a atuação do
jornal da Sociedade Ave Libertas, em oposição a jornais como O Liberal
Pernambucano que se opunha a alforria dos escravos. Sobre a Associação, a
pesquisadora pernambucana declara:
A ação da Sociedade Ave Libertas foi contínua e eficaz, até que se
assinou a Lei áurea, prolongando-se depois dela. Desde o momento de
sua fundação, para despertar o público sobre a causa que defendiam e
para angariar fundos de libertação de escravos, aquelas senhoras se
desdobravam em organizar festas e quermesses, passeatas, concertos e
até peças de teatro, como o noticiam os periódicos.
Luzilá apresenta-nos três intelectuais pernambucanas que
escreviam poemas e artigos em prol da abolição; Ignez de Almeida Pessoa
(1854- 1892), professora; Maria Amélia de Queiroz ( ? ), ex-aluna de Nísia
Floresta, republicana, feminista e prestigiada conferencista; Maria Augusta
Estrela (1860- ?), redatora do jornal A Mulher. E, ao final, sabendo da
_____________________________________________________________
54
LEMAIRE, Ria. Repensando a história literária. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.) Tendências e
Impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 58-71.
659
impossibilidade de trazer uma lista maior de nomes, chama a tenção do leitor
para outras mulheres:
Muitas outras mulheres escreveram artigos sobre a Abolição além das
articulistas e conferencistas citadas. Em jornais especializados, como O
Abolicionista, poemas e textos em prosa de mulheres como a poetisa e
pianista Laura Fonseca, largamente conhecida em sua época, como
Beatriz Castro, tecem louvores aos abolicionistas e os exaltam. Em
periódicos de informação como A Tribuna ou em jornais que se dedicam a
atividades específicas, como O Artista, escritoras cujos nomes já não
falam aos leitores de hoje, escrevem, e suas vozes, que o tempo calou,
nos chegam, indignadas ainda, regozijadas ainda com o fim da
escravidão no Brasil.
Mesmo após a abolição, essas mulheres não descansaram, ao
contrário, iniciaram uma nova luta: a alfabetização e profissionalização dos
escravos.
O nome que sobressai na imprensa Rio-grandense do século XIX
é o de Nísia Floresta Brasileira Augusta (1810-1885) autora do provocativo
livro Direito das Mulheres e Injustiça dos Homens, publicado em 1832, e com
duas reedições, em 1833 e 1839. Na época da publicação, Nísia tinha 22
anos e revelou uma ousadia admirável nas discussões apresentadas no livro
que era uma tradução livre da versão francesa do panfleto inglês Vindication
of the rights of woman (1792), de Mary Wollstonecraft, uma resposta à
Declaração Universal dos Direitos do Homem. Segundo Constância Lima
Duarte, a tradução de Nísia é uma nova escrita inspirada na leitura da obra da
autora inglesa e por isso mesmo “o texto fundante do feminismo brasileiro”.
Segundo a pesquisadora:
Em sua essência, os Direitos das Mulheres de Nísia Floresta se
encontram com os Rights of Woman de Mary Wollstonecraft, tanto na
denúncia da mulher como classe oprimida, como na reivindicação de uma
sociedade mais justa, em que ela seja respeitada e tenha os mesmos
direitos. Também são pontos comuns a denúncia da superioridade
masculina apoiada na força física, a valorização da função materna, a
educação como o meio eficaz de promoção feminina e o aparato filosófico
de feição iluminista. No mais, os textos se distanciam tomando cada qual
_____________________________________________________________
55
Podemos citar aqui os trabalhos de BICALHO, Maria Fernanda Baptista. O Bello Sexo: Imprensa e
Identidade feminina no Rio de Janeiro em fins do século XIX e início do século XX. Dissertação de
mestrado. Rio de Janeiro: UFF, 1988; BERNARDES, Maria Thereza CAIUBY Crescenti. Mulheres de
Ontem? Rio de Janeiro – século XIX. São Paulo: T.A.QUEIROZ, Editor, 1989; PAIXÃO, Sylvia. A fala-a-
menos: a repressão do desejo na poesia feminina. Rio de Janeiro: NUMEM Editora, 1991.
56
FERREIRA, Luzilá Gonçalves. O discurso feminino possível: um século de imprensa feminina em
Pernambuco (1830-1930). In: GOTLIB, Nádia Battella. (org.) A Mulher na literatura. Belo Horizonte,
Imprensa da Universidade Federal de Minas Gerais, 1990, p. 69.
57
FERREIRA, Luzilá Gonçalves. A Luta das mulheres pernambucanas. In: FERREIRA, Luzilá Gonçalves,
ALVES, Ívia. FONTES, Nancy Rita... et al. Suaves amazonas: mulheres e abolição da escravatura no
nordeste Recife: Ed. Universitária da UFPE, 1999, p. 41- 110.
58
FERREIRA, 1999, p. 88.
660
o seu rumo, srgundo as motivações das autoras, o público a que se
destinavam e as peculiaridades da condição feminina num e noutro lugar.
Nísia Floresta publicou grande parte da sua obra em jornais.
Mesmo antes da publicação do seu mais famoso livro, já colaborava em O
Espelho das Brasileiras, de Recife. É em 1831 que estréia naquele jornal
dedicado às senhoras pernambucanas, escrevendo artigos sobre a condição
feminina no século XIX. Naquele periódico e em outros (O Diário do Rio de
Janeiro, O Liberal, O Brasil Ilustrado) tratava de questões polêmicas, o que
provavelmente custou-lhe o esquecimento nas Histórias Literárias.
Em se tratando da Bahia, cabe ressaltar o trabalho pioneiro de
Ívia Alves junto à UFBA e ao NEIM para resgatar autoras baianas do séc. XIX
completamente desconhecidas. Seu projeto resultou numa antologia virtual
onde consta o resgate da vida e obra de 24 autoras. Também é preciso
destacar o livro de Lizir Arcanjo, publicado em 1999, intitulado Mulheres
Escritoras na Bahia. Na Coletânea, a autora recupera poemas de 34 poetisas
baianas do século XIX, encontrados em livros, revistas literárias e jornais
pertencentes aos acervos de Bibliotecas de Salvador, Rio de Janeiro e São
Paulo. Na Apresentação, informa ao leitor, o objetivo do trabalho, qual seja,
resgatar a produção literária feminina de toda uma época em que pouco ou
quase nenhum valor se lhe dava, exatamente por ser de mulher.
A pesquisadora destaca os nomes de Ildefonsa Laura César
(1794-?), Adélia Fonseca ( ?), Ana Autran (1856 – 1933) e Ana Ribeiro de
Góes Bittencourt (?). É no Diário de Notícias que as escritoras encontram, na
década de 80, um espaço para exercer mais livremente suas atividades
literárias: “Em setembro de 1880, o Diário de Notícias publica nota dirigida às
senhoras da Bahia, solicitando suas valiosas produções, quaisquer que
fossem, em prosa ou verso, logogrifos, charadas, etc., para honrar as páginas
do Almanaque”. Quase duas décadas depois, em 1897, O Diário da Bahia,
publica em sua primeira página 36 poemas escritos por mulheres brasileiras.
Algumas publicações dedicadas ao público feminino florescem no interior da
Bahia como O Espelho das Belas (Margogipe, 1860-1861); A Grinalda
(Cachoeira, 1869-1870); O Echo Sant'Amarense (Santo Amaro, 1881 –
1884); O Propulsor (Feira de Santana (1898-1901), entre outras.
Um nome pouco conhecido mas bastante representativo na
imprensa do século XIX é o da baiana Maria Ignez Sabino Pinho Maia (1853-
1911) filha de Olegário Sabino Ludgero Pinho e Gertrudes Pereira Alves
Maciel, nascida em 31 de dezembro de 1853. Entre as pesquisadoras dos
_____________________________________________________________
59
Idem, ibidem, p. 107.
60
DUARTE, Constância Lima. Nos primórdios do feminismo brasileiro: Direitos das Mulheres e Injustiça
dos Homens. In: GOTLIB, Nádia Battella. (org.) A Mulher na literatura. Belo Horizonte, Imprensa da
Universidade Federal de Minas Gerais, 1990, p. 38.
61
DUARTE, Constância Lima. Nísia Floresta Brasileira Augusta. In: MUZART, Zahidé Lupinacci. Escritoras
brasileiras do século XIX: antologia. Florianópolis: Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000. v. I.,
p.175.
661
estudos de gênero, ela é conhecida pelo seu livro Mulheres ilustres do Brasil,
no qual faz um trabalho pioneiro sobre a memória literária feminina. A família
de Ignez Sabino mudou-se para a Cidade de Nassau, em Pernambuco, e a
autora frequentou aulas no curso propedêutico. Teve aulas particulares com
intelectuais que considerava seus mestres: Tobias Barreto e Autran da Matta
Albuquerque, professores renomados da Faculdade de Direito de Recife.
Notando a vocação intelectual da filha e seus pendores artísticos para a
pintura e a música, o pai a enviou para estudar na Inglaterra, mas sua estadia
foi encurtada com a morte do seu genitor e, conseqüentemente, com a
dificuldade financeira da família.
A autora casa-se com o comerciante português Francisco de
Oliveira Maia, residente em Recife, com quem teve uma filha. Ignez Sabino e
sua família se mudam para São Paulo e, posteriormente, fixam residência no
Rio de Janeiro até 1911, ano de sua morte.
A primeira obra publicada de Ignez Sabino foi o livro de poesia Ave
Libertas [s.d.] e ainda, Rosas Pálidas (1886) e Impressões (1887). A sua
estréia no campo da narrativa acontece com Contos e Lapidações. O livro,
contendo 340 páginas, composto de 19 contos, 30 poesias e dois artigos, foi
muito bem recepcionado pela crítica por alguns anos. Ainda como
contista, Ignez Sabino publica Noites Brasileiras, uma coletânea de 19 contos
e um bosquejo histórico. Impresso em Paris e ornado de gravuras, o livro é
dedicado às crianças e aos adolescentes.
Com Lutas do Coração, Ignez Sabino inaugura sua carreira de
romancista. Na época de publicação do romance, Ignez Sabino já é uma
escritora conhecida em Portugal e a recepção ao livro Lutas do Coração é
constatada na seção “Publicações recebidas”, do Almanach de Lembranças
Luso-Brasileiro.
Em 1899, aparece Mulheres Ilustres do Brasil, publicado no Rio de
Janeiro, pela editora Garnier. No prefácio do livro, a autora indaga: “Por
que razão a mulher não poderá ser conhecida pela pena de outra mulher,
estudando em si, a psicologia alheia?” Em 1996, a editora Mulheres inicia
uma série de publicações com a reedição fac-similar deste livro,
considerado um marco na historiografia. Nele, Ignez Sabino resgata
nomes esquecidos, já demonstrando preocupação com o apagamento
dos nomes de mulheres, que contribuíram para a história do nosso país
nas mais diversas áreas.
Zahidé Muzart cita, como parte da obra de Ignez Sabino, o livro
Esboços Femininos. Na verdade, trata-se de uma coluna no jornal carioca A
_____________________________________________________________
62
http://escritoras baianas.ufba.br. Acesso em 04 de abril de 2009.
63
ALVES, Lizir Arcanjo. Mulheres Escritoras na Bahia: As poetisas – 1822 – 1918. 2ª ed. Salvador: Étera
Projetos Editoriais, 1999, p.15
64
FONTES, Nancy Rita Vieira. A bela esquecida das letras baianas: a obra de Anna Ribeiro. Dissertação de
Mestrado. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1998.
65
Idem, ibidem, p. 38.
66
ARAUJO, Maria da Conceição Pinheiro Araújo. Tramas femininas na Imprensa do século XIX; tessituras
de Ignez Sabino e Délia. Tese de doutorado. Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul, 2008.
67
SABINO, D. Ignez. Mulheres ilustres do Brazil. (Edição fac-similar). Florianópolis: Mulheres, 1996.
662
Estação, para o qual a autora escreve artigos publicados, primeiro
quinzenalmente e depois mensalmente, de 15 de abril de 1890 a 15 de março
de 1891. Nos artigos, ela traça o perfil biográfico de diversas mulheres do
Brasil e do mundo.
Além da bibliografia aqui mencionada, Zahidé Muzart acrescenta
Através dos meus dias [s.d.] e Kátia Bezerra menciona O crime de amor [s.d.],
Memórias do meu país [s.d.] e Psicologia de vários homens de letras [s.d.]. O
jornal Corymbo também divulga uma nota sobre Ignez Sabino, na qual
informa às(aos) leitoras(es) sobre uma nova obra que estaria no prelo.
Ignez Sabino foi uma das escritoras brasileiras que mais publicou
na imprensa do século XIX no Brasil: Alagoas (A União Acadêmica); Bahia
(Diário da Bahia); Pernambuco (Revista da Sociedade Ave Libertas do
Recife); Rio Grande do Sul (Corymbo e Escrínio); Rio de Janeiro (Almanaque
Brasileiro Garnier, Echo das Damas, A Estação, Jornal do Brasil, A Semana, O
Tempo); São Paulo (A Mensageira). Fundou, juntamente com Josefina
Álvares de Azevedo, o jornal A Família (RJ).
A própria escritora fala da sua atividade intelectual em várias
áreas do conhecimento, no jornal Corymbo:
Desde que me lancei há vários anos neste labirinto intrincado que se
chama literatura, os estudos históricos também têm chamado a minha
atenção, porque, dedicando-me também a estudos psicológicos, eu creio
que existe a grande necessidade de se cuidar da psicologia da história...
No total, o Corymbo divulga 43 textos dessa autora. São eles: 13
poemas, cinco biografias, nove prosas literárias e 17 artigos, sobre temas
como educação feminina, religião, luta da mulher pela profissionalização, etc.
Como não foi localizada a coleção na íntegra do jornal, muitos textos estão
incompletos. Alguns possuem apenas o início e outros apenas o final.
Em Portugal, Ignez publica textos no Almanach de Lembranças
_____________________________________________________________
68
SABINO, Ignez. Contos e Lapidações. Rio de Janeiro: Laemmert & C.Editores, 1891. Agradeço a
generosidade da pesquisadora Zahidé Muzart que me cedeu o seu exemplar para cópia, na ocasião em
que participou de uma banca de doutorado na PUCRS, em setembro de 2005.
69
SABINO, Ignez. Noites Brasileiras. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1897. Existe um exemplar dessa 1ª edição
na Biblioteca Nacional (RJ), no setor de obras raras. Fiz a leitura entre os dias 12 e 13 de agosto de 2005. A
Biblioteca Nacional, através do seu serviço de reprodução de imagens, providenciou-me a digitalização da
capa e do prólogo.
70
SABINO, Ignez. Luctas do Coração. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro Santos, 1898. Um exemplar dessa
1ª edição encontra-se na Biblioteca Municipal Mário de Andrade, em São Paulo, na seção de obras raras do
1º andar. Não houve permissão para fotografar, nem há serviço de digitalização na Biblioteca. A editora
Mulheres publicou (em 1999) uma edição fac-similar com atualização do texto, notas e apresentação de
Susan Canty Quinlan. Cf. SABINO, Ignez. Lutas do Coração. Florianópolis: Mulheres; Santa Cruz do Sul:
EDUNISC,1999. As citações desse estudo foram retiradas dessa edição.
71
Existe um exemplar dessa 1ª edição na Biblioteca Nacional e outro na Biblioteca Central em Salvador.
72
SABINO, D. Ignez. Prefácio. In: ______. Mulheres Ilustres do Brasil. Florianópolis: Mulheres, 1996, p.
VIII.
663
Luso-Brasileiro. Nessa publicação recolhi 35 textos entre poemas, crônicas,
artigos e biografias, publicados entre os anos de 1891 e 1913 e dois textos no
Almanach das Senhoras.
A produção jornalística de Ignez Sabino revela uma proposta de
construção de uma literatura que promovesse a imagem da mulher leitora,
como interlocutora de sua obra na medida em que suas “patrícias” se
instruíssem e pudessem interferir no destino da nação. Sua opção por
dialogar com as suas “companheiras de sexo” denota comprometimento com
a causa feminino/feminista. Dedicando-se à “literatura para mulheres”, Ignez
Sabino assume uma postura político-pedagógica que pode ser
notada na quase totalidade de seus textos, divulgados em diversos espaços:
prólogos dos romances; títulos, dedicatórias e/ou temas recorrentes. Os
preceitos contidos na moralidade cristã e os princípios estabelecidos para o
comportamento social das mulheres e, particularmente, das jovens eram
matéria constante da escrita de Sabino e deveriam ser observados por
aquelas que desejavam assumir uma posição de destaque na sociedade
onde viviam.
Apesar de deixar claro que a profissionalização da mulher
escritora não poderia ascender à categoria de substituta das tarefas
domésticas e do cuidado com os filhos e o marido, Ignez Sabino assume a
escrita de um texto marcadamente feminino como estratégia político-
ideológica de enfrentamento com o masculino. É publicando textos, em sua
grande maioria, nos jornais femininos, que ela constrói modelos de afirmação
da identidade feminina dentro do que é possível construir por mulheres no
conturbado final do século XIX e limiar do século XX. Esse ethos feminino vai
se apresentando como parâmetro para que a mulher tenha subsídios para
tomar as decisões acertadas e “não se perder”, em meio às propostas
finisseculares de emancipação feminina: profissionalização, divórcio, voto,
elegibilidade. Pode parecer um discurso contraditório, mas era justamente
essa discrepância que marcava esse “tempo das mulheres”. Tempo de
avanços e recuos estratégicos, de afirmações e negações, de entraves e
negociações. Ignez, por exemplo, em um texto defendia a necessidade de a
mulher obter conhecimento mesmo que seja para se tornar uma mãe
qualificada para educar os filhos que serão a pedra de toque da nação. Em
outros, solicitava que as mulheres tivessem cuidado com as novas idéias em
relação aos questionamentos sobre o papel da mulher na família.
No início do século XX, A Revista do Grêmio Literário da Bahia
(1901-1904) publica textos de Amélia Rodrigues e Adelaide de Castro Alves
Guimarães. Mais tarde, Amélia Rodrigues cria A Paladina do Lar (1910 -
1917), primeira revista escrita por mulheres e para mulheres em Salvador.
_____________________________________________________________
73
Catalogação feita por mim na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro em agosto de 2006 e janeiro de 2008.
74
Nenhuma dessas cinco obras citadas foi encontrada.
75
SABINO, Ignez. Impressões de leitura. Corymbo, Rio Grande, 01 jan. 1903, p. 01.
664
Na década de 30 (séc.XX) o nome mais representativo nas letras
baianas é o de Edith Mendes da Gama e Abreu, primeira mulher a entrar na
Academia de Letras da Bahia, fundadora e presidente vitalícia da Federação
Bahiana para o Progresso Feminino, filial da Federação Brasileira para o
Progresso feminino, fundada por Bertha Lutz no Rio de Janeiro.
Edith Mendes da Gama e Abreu (1898 – 1982) nasce a 13 de
outubro de 1898, natural de Feira de Santana, Bahia. Filha do casal João
Mendes da Costa e Maria Augusta Falcão Mendes da Costa. Seu pai, figura
eminente de Feira de Santana, foi coronel da Guarda Nacional, político e
prefeito daquela cidade, de 3 de janeiro de 1931 a 29 de maio de 1933, por
força da Revolução de 30. Edith tinha um irmão João Mendes da Costa Filho,
advogado, constituinte de 1946 e Ministro Vice-Presidente do Superior
Tribunal Militar, falecido em 1971, e uma irmã Judith Mendes da Costa,
musicista, companheira inseparável que lhe sobreviveu.
Sobre sua infância e adolescência sabe-se apenas que estudou
com preceptores em sua própria casa, como era o costume daquela época
entre as famílias abastadas. Estudou no Colégio Nossa Senhora de Lourdes,
e na Escola Complementar da profa. Estefânia Mena em sua cidade natal.
Em Feira de Santana foi nomeada professora pela Prefeitura
Municipal entre 19/09/1918 e 23/12/1920 para reger a “Escola do sexo
Masculino”. As informações a respeito da sua vivência naquela cidade são
escassas. Há, portanto, um hiato sobre o caminho percorrido pela escritora
até quando esta passa a entrar em evidência, no cenário intelectual e político
em Salvador, por volta do ano de 1930.
Em Salvador, cursa o pedagógico no Educandário dos Perdões, atual
Educandário do Sagrado Coração de Jesus, equiparado à Escola Normal da
_____________________________________________________________
76
ALVES, Ívia. Amelia Rodrigues: Itinerarios Percorridos. SALVADOR: NUCLEO DE INCENTIVO
CULTURAL DE SANTO AMARO/BUREAU, 1998. 125 p.
77
OLIVEIRA, Aline Paim. A Paladina do Lar: escrita feminina baiana – 1910/17. Dissertação de Mestrado.
Salvador: UFBA, 2000.
78
ARAÚJO, Maria da Conceição Pinheiro. Uma imortal baiana: a produção de Edith Mendes da Gama e
Abreu e relações de gênero. Dissertação de Mestrado. Recife: Universidade Federal de Pernambuco,
2001.
79
Sobre a data de nascimento de Edith é interessante informar que em toda bibliografia consultada a data
que consta é 13/10/1903. Entretanto ao consultar os Arquivos da Faculdade de Filosofia em agosto/2000,
encontrei uma cópia da Certidão de Nascimento bem como da Carteira de Identidade as quais atestam o
ano de 1898 .
665
666
diversos países da Europa, onde fazia turismo cultural visitando
as catedrais, museus, castelos, teatros, universidades, etc. Era uma
dedicada representante das mulheres de sua classe social e época.
Edith faleceu no dia 20 de janeiro de 1982, às 11:30 em sua
residência na Vitória. A Imprensa local divulgou, com notas elogiosas sobre a
escritora, a funesta notícia. Foram diversos os registros do falecimento da
nossa dama intelectual baiana.
No primeiro aniversário de falecimento de Edith, a cidade de
Salvador homenageia a memória de sua ilustre escritora com a atribuição do
seu nome a uma das novas ruas e importantes vias públicas do bairro da
Pituba. Há ainda um colégio em Feira de Santana que tem o nome da
escritora.
A participação feminina na imprensa baiana na década de 30 e 40
foi bastante significativa no que diz respeito à propagação das idéias
feministas. Neste sentido, Edith Mendes é a mulher mais representativa da
Bahia. Destacou-se nos meios culturais e ocupou espaço na Imprensa
escrevendo assiduamente em jornais da Bahia e do Brasil. Atuou como
correspondente, em jornais de vários estados: Em Porto Alegre no Correio do
Povo e Diário de Notícias; No Rio de Janeiro no Jornal do Brasil, Correio da
Manhã, e O Espelho; Em São Paulo no Oeste Paulistano, O Paulistano e
Folha da Noite. Mas é em Salvador que encontra-se disperso o maior número
de seus artigos publicados em jornais. Destacamos aqui: A Tarde, Diário da
Bahia, O Estado, O Jornal, Diário de Notícias e Estado da Bahia. Escreveu
para o jornal O Imparcial durante vinte e cinco anos, primeiro como
colaboradora e, posteriormente, como redatora. Publicou, também, nas
revistas Vida Doméstica e Cruzeiro.
Da participação da articulista no Jornal O Imparcial foi possível
recuperar 57 textos escritos entre os anos 30-40. As temáticas abordadas são
as mais diversas desde a preocupação com questões caritativas à questões
políticas que envolvem problemas de interesse nacional. Destes textos 15
667
tratam sobre feminismo e questões relativas à mulher; 06 sobre o
pacifismo; 05 sobre política; 04 sobre história; 06 sobre religião; 06 sobre
caridade; 06 sobre literatura; 05 biografias e 04 discursos.
A leitura e análise dos textos de Edith Mendes da Gama e Abreu
revelou-nos uma escrita bastante preocupada com a condição feminina, a
elevação cultural e intelectual da mulher, demonstrando comprometimento
com a luta pela Emancipação da Mulher. A Educação e a Cultura são,
segundo Edith, os alicerces que sustentam o Ideal Feminista. A posição que
assumia como presidente vitalícia da Federação proporcionou-lhe certo
prestígio junto à sociedade baiana o que permitiu à acadêmica um trânsito
constante na imprensa local escrevendo uma quantidade surpreendente de
artigos que eram amplamente divulgados nos jornais. Para consolidar a
simpatia e adesão de muitos, inclusive figuras eminentes da política baiana,
adquirida ao longo da sua trajetória como feminista. Como personagem
atuante na imprensa baiana, questiona o papel desempenhado pelas
mulheres na sociedade e reivindica, a todo momento, um lugar para elas. O
discurso da feminista era marcado por um tom político-militante que
procurava, primeiro, convencer seus interlocutores da justeza e
inofensividade de sua luta e, segundo, garantir que a inserção da mulher na
esfera pública e no Movimento Feminista não ocorreria em detrimento de
seus deveres de mãe e esposa.
668
REFERÊNCIAS
ALVES, Ívia. Amor e submissão: Formas de resistência da literatura de autoria
feminina? In: RAMALHO, Cristina (org.) Literatura e feminismo: propostas
teóricas e reflexões críticas. Rio de Janeiro:Elo, 1999, p. 107 – 116.
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Gonçalves, ALVES, Ívia. FONTES, Nancy Rita... et al. Suaves amazonas:
mulheres e abolição da escravatura no nordeste. Recife: Ed. Universitária da
UFPE, 1999, p. 17-40.
ALVES, Ívia. Amelia Rodrigues: Itinerarios Percorridos. SALVADOR:
NUCLEO DE INCENTIVO CULTURAL DE SANTO AMARO/BUREAU, 1998.
125 p.ALVES, Lizir Arcanjo. Mulheres escritoras na Bahia: as poetisas – 1822
– 1918. 2. ed. Salvador: Étera Projetos, 1999.
ARAÚJO, Maria da Conceição Pinheiro. Uma imortal baiana: a produção de
Edith Mendes da Gama e Abreu e relações de gênero. Dissertação de
Mestrado. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2001.
ARAUJO, Maria da Conceição Pinheiro Araújo. Tramas femininas na
Imprensa do século XIX; tessituras de Ignez Sabino e Délia. Tese de
doutorado. Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul, 2008.
BICALHO, Maria Fernanda Baptista. O Bello Sexo: Imprensa e Identidade
feminina no Rio de Janeiro em fins do século XIX e início do século XX.
Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: UFF, 1988;
BERNARDES, Maria Thereza CAIUBY Crescenti. Mulheres de Ontem? Rio
de Janeiro – século XIX. São Paulo: T.A.QUEIROZ, Editor, 1989;
DUARTE, Constância Lima. Nos primórdios do feminismo brasileiro: Direitos
das Mulheres e Injustiça dos Homens. In: GOTLIB, Nádia Battella. (org.) A
Mulher na literatura. Belo Horizonte, Imprensa da Universidade Federal de
Minas Gerais, 1990, p. 38.
DUARTE, Constância Lima. Nísia Floresta Brasileira Augusta. In: MUZART,
Zahidé Lupinacci. Escritoras brasileiras do século XIX: antologia.
Florianópolis: Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000. v. I., p.175.
FERREIRA, Luzilá Gonçalves. O discurso feminino possível: um século de
imprensa feminina em Pernambuco (1830-1930). In: GOTLIB, Nádia Battella.
(org.) A Mulher na literatura. Belo Horizonte, Imprensa da Universidade
Federal de Minas Gerais, 1990, p. 69.
FERREIRA, Luzilá Gonçalves. A Luta das mulheres pernambucanas. In:
FERREIRA, Luzilá Gonçalves, ALVES, Ívia. FONTES, Nancy Rita... et al.
Suaves amazonas: mulheres e abolição da escravatura no nordeste Recife:
Ed. Universitária da UFPE, 1999, p. 41- 110.
669
FONTES, Nancy Rita Vieira. A bela esquecida das letras baianas: a obra de
Anna Ribeiro. Dissertação de Mestrado. Salvador: Universidade Federal da
Bahia, 1998.
FONTES, Nancy Rita Vieira. A escritora Anna Ribeiro e a escravidão. In:
FERREIRA, Luzilá Gonçalves, ALVES, Ívia. FONTES, Nancy Rita... et al.
Suaves amazonas: mulheres e abolição da escravatura no nordeste. Recife:
Ed. Universitária da UFPE, 1999, p. 111- 122.
LEMAIRE, Ria. Repensando a história literária. In: HOLLANDA, Heloísa
Buarque de (org.) Tendências e Impasses: o feminismo como crítica da
cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 58-71.
MENDONÇA, Maria Helena Mendonça. Nísia Floresta: romantismo e
consciência reformadora. In: CUNHA, Helena Parente Cunha. Desafiando o
Cânone.
OLIVEIRA, Aline Paim. A Paladina do Lar: escrita feminina baiana – 1910/17.
Dissertação de Mestrado. Salvador: UFBA, 2000.
PAULAFREITAS, Ayeska. Presença: revista para moças – um lugar para
leitoras e escritoras do pós-guerra. Dissertação de Mestrado. Salvador:
UFBA, 2000.
PAIXÃO, Sylvia. A fala-a-menos: a repressão do desejo na poesia feminina.
Rio de Janeiro: NUMEM Editora, 1991.
SABINO, D. Ignez. Mulheres ilustres do Brazil. (Edição fac-similar).
Florianópolis: Mulheres, 1996.
SABINO, Ignez. Contos e Lapidações. Rio de Janeiro: Laemmert &
C.Editores, 1891.
SABINO, Ignez. Noites Brasileiras. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1897.
SABINO, Ignez. Luctas do Coração. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro Santos,
1898.
SABINO, Ignez. Lutas do Coração. Florianópolis: Mulheres; Santa Cruz do
Sul: EDUNISC,1999. As citações desse estudo foram retiradas dessa edição.
SABINO, Ignez. Impressões de leitura. Corymbo, Rio Grande, 01 jan. 1903, p.
01.
Sites:
http://escritoras baianas.ufba.br. Acesso em 04 de abril de 2009.
670
NAS ENTRELINHAS DE MULHER E BRUXA: identidade e sexualidade em
um conto de Sônia Coutinho
Lilian
Santana da Silva
Este artigo tem como objeto de estudo o discurso das
personagens do conto “Os venenos de Lucrécia” (1978) de Sônia Coutinho.
Considera-se aqui discurso aquilo que está no texto, no suporte, no próprio
material. Para Fairclough (2001, p. 91), texto é considerado como uma
dimensão do discurso: o produto escrito ou falado do processo de produção
textual. A compreensão da Análise do Discurso Crítica para o discurso está
centrada numa combinação de Análise Linguística e Teoria Social. Esse
conceito de discurso e análise de discurso é tridimensional. Qualquer evento
discursivo ou exemplo de discurso é considerado como simultaneamente um
texto, um exemplo de prática discursiva e um exemplo de prática social. A
dimensão do texto cuida da análise linguística. A dimensão da prática
discursiva especifica a natureza dos processos de produção e interpretação
textual. A dimensão de prática social cuida das circunstâncias institucionais e
organizacionais do evento discursivo e como elas moldam a natureza da
prática discursiva e os efeitos constitutivos / construtivos dos discursos.
O método de análise utilizado pela Análise do Discurso Crítica
(ADC), através do enfoque tridimensional do texto baseia-se na teoria
sistêmica da linguagem (Halliday, 1989) que considera a linguagem como
multifuncional, e que os textos representam a realidade, ordenam as relações
sociais e estabelecem identidades. Halliday (1989) registra três
macrofunções que atuam simultaneamente em textos: ideacional,
interpessoal e textual. Fairclough (2003) propõe no lugar das funções da
linguagem, os três tipos de significado: o significado acional, o significado
representacional e o significado identificacional. Esses significados têm o
mesmo valor das funções e atuam dialeticamente no discurso.
Com o objetivo de perceber o caráter ideológico do discurso que
contribui para legitimar uma relação assimétrica de poder entre a
personagem feminina e a personagem masculina do conto, as categorias
analíticas escolhidas para a análise do significado do discurso foram: a
intertextualidade, a metáfora e a representação de atores sociais. Esses
elementos discursivos servem para especificar como o processo de
construção das formas simbólicas atua na narrativa.
A ideologia é uma das maneiras de assegurar as lutas de poder.
Para operacionalizar a ideologia, a ADC baseia-se na concepção crítica de
Thompson (2002) que postula a natureza da ideologia como hegemônica, no
sentido de que ela serve para estabelecer e sustentar relações de dominação
_____________________________________________________________
80
PPGNEIM-UFBA
671
e, por isso, serve para reproduzir a ordem social que favorece indivíduos e
grupos dominantes. A importância dessa abordagem para a ADC é a
constituição de ferramentas para analisar linguisticamente construções
discursivas revestidas de ideologia.
No conto, o aspecto cultural e religioso que mobiliza os
conhecimentos e crenças constrói uma identificação híbrida entre as
personagens, o que veremos mais adiante. Portanto, para trabalhar essa
questão, utilizo os pressupostos de Castell (1999) sobre a identidade. A
análise também destaca a relação entre identidade e sexualidade das
personagens dos contos. A sexualidade entra nesse jogo porque se
transforma num ponto de encontro entre a auto-identidade e as normas
sociais, um dos aspectos trabalhados na análise.
A Crítica Feminista está diluída por toda a análise, e o ponto
central será a assimetria das relações de gênero e poder expressas pelo
discurso narrativo. Na primeira parte, faço considerações sobre a ADC e a
LSF e apresento as categorias de análise; em seguida, abordo o conto e os
seus pontos discursivos e literários.
PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS EM ADC
A vertente britânica da ADC, apresentada por Fairclough (2001,
2003) e Chouliaraki e Fairclough (1999), é uma abordagem multidisciplinar
para estudos da linguagem. Trata-se de um modelo teórico-metodológico que
dialoga com a Linguística Sistêmico-Funcional (LSF) de Halliday,
operacionalizando seus conceitos e categorias, o que será abordado mais
adiante. A Teoria Social do Discurso trabalha com um modelo que considera
três dimensões passíveis de serem analisadas. Fairclough (2001) propõe em
Discurso e Mudança Social, um modelo tridimensional de análise que
compreende a análise da prática discursiva, do texto e da prática social. O
modelo de análise é pormenorizado em categorias que compreende o uso da
linguagem como prática social
A ADC está preocupada com os efeitos ideológicos que os
sentidos dos textos possam ter sobre as relações sociais, ações,
conhecimentos, crenças, atitudes, valores e identidades. Ou seja, como os
discursos estão a serviço de projetos de dominação e exploração, que
sustentam a distribuição desigual de poder. (THOMPSON, 2002). Esta é uma
das questões centrais para os estudos feministas, o que justifica a utilização
desse aparato para a análise de textos narrativos de autoria feminina. Já que
tais textos tentam subverter as relações desiguais de poder na escrita.
A LSF aponta três macrofunções simultâneas da linguagem,
passíveis de serem identificadas nos textos: a ideacional (enfoque na oração
como processo); a interpessoal (enfoque na oração como ato de fala) e a
textual (enfoque na oração como mensagem). Ao dialogar com a FSF,
672
Fairclough (2003) sugere que um texto envolve simultaneamente as funções
ideacional, interpessoal (identitária e relacional) e textual, as quais devem ser
vista sob os três tipos de significados do discurso, ou seja, como ação (por
meio de gêneros textuais), representação (discursos) e identificação (estilos).
Nessa perspectiva, cada ordem do discurso encerra gêneros discursivos
característicos, que articulam discursos e estilos de maneira relativamente
estável num determinado contexto sócio-histórico e cultural.
Nos exemplos que apresento mais adiante, trabalho com
algumas categorias de análise que correspondem a formas e significados
acionais, representacionais e identificacionais. O significado acional é
abordado a partir da categoria intertextualidade. Bakhtin (2002) enfatiza a
dialogicidade da linguagem, e pressupõe que os textos são dialógicos em
dois sentidos: textos aparentemente monológicos, participam de uma cadeia
dialógica, no sentido que respondem a outros textos e antecipam respostas;
segundo, o discurso é dialógico devido à polifonia, todo texto articula diversas
vozes.
Em termos gerais, a intertextualidade é a combinação da voz de
quem pronuncia um enunciado com outras vozes que lhe são articuladas.
Fairclough (2003) define a intertextualidade como “a presença de elementos
atualizados de outro texto em um texto - as citações”. Para discutir a
intertextualidade, Fairclough (2001, p. 153) utiliza as categorias de
representação do discurso (discurso relatado direto ou indireto),
pressuposição, negação, metadiscurso e ironia. São elementos que podem
ou não estarem presentes na intertextualidade. Uma questão importante na
análise da intertextualidade é a presença ou ausência das vozes. Quando
uma voz externa é articulada em um texto, pode-se ter duas vozes que
representam diferentes perspectivas, interesses e objetivos. A relação entre
as vozes pode ser harmônica, de cooperação ou tensa, uma contra a outra.
Com respeito à categoria da representação de atores sociais,
discutida pelo analista crítico Van Leeuwen (1997), a sua relação ocorre com
o significado representacional e com o conceito de discurso como
representante dos aspectos do mundo e das diferentes “realidades”.
De acordo com Van Leeuwen (1997, p. 219) devemos buscar
as maneiras como os atores sociais são representados em textos, o que pode
indiciar posicionamentos ideológicos em relação e a eles e as suas
atividades. Trata-se de uma proposta que conjuga o social e o lingüístico, mas
com ênfase na “agência” sociológica. Segundo o autor, determinados atores,
por exemplo, podem ter sua “agência” ofuscada, ou enfatizada, em
representações; podem ser representados por suas atividades ou
enunciados; ou ainda podem ser referidos de modos que presumem
julgamentos acerca do que são ou do que fazem.
As representações incluem ou excluem atores sociais para
673
servir a interesses e propósitos particulares. A inclusão pode ser realizada de
diversas maneiras, como nomeação e categorização. Os atores podem ser
representados em termos de sua identidade única, sendo nomeados ou
categorizados. A nomeação realiza-se através de nomes próprios, ao passo
que a categorização ocorre por funcionalização e identificação. A primeira
ocorre quando os atores são referidos em termos de uma atividade, ocupação
ou função à qual estão ligados. Na identificação, os atores são representados
por aquilo que mais ou menos são, como sexo, idade, classe social, etnia, e
princípios religiosos.
Os atores podem ser incluídos também de forma não
individualizada, ou seja, de forma assimilada, por meio de referência genérica
ou específica. A primeira pode ser realizada linguisticamente através do plural
sem artigo e do singular como artigo definido ou indefinido. A segunda
representa os atores sociais em grupos e pode se realizar por meio de
especificação por agregação, quantificando grupos de atores como dados
estatísticos ou por coletivização.
Sobre a metáfora, uma categoria relacionada ao significado
identificacional, parto dos pressupostos de Lakoff e Johnson (2002) que
compreende a metáfora como um fenômeno da linguagem de valor cognitivo.
De acordo com estes autores, o processo metafórico estrutura o pensamento
e a ação humana. A metáfora é definida como um processo cognitivo próprio
do sistema conceitual humano, não apenas como uma função da linguagem.
Estes conceitos dirigem nossos pensamentos, regem as nossas atividades
cotidianas, exercendo um papel na definição de nossa realidade e de nossas
experiências. “Eles estruturam o que percebemos, a maneira como nos
comportamos no mundo e o modo como nos relacionamos com outras
pessoas” (LAKOFF e JOHNSON, 2002, p. 45-46).
Em sua teoria, os autores estabelecem uma classificação dos
conceitos metafóricos, agrupando-os em três grandes classes, a saber:
Metáforas estruturais ou conceituais - são aquelas nas quais “um
conceito é estruturado metaforicamente em termos de outro.”
Metáforas orientacionais ou espaciais - são as metáforas que,
diferentemente das primeiras, “recebem uma orientação espacial não-
arbitrária, pois é baseada na nossa experiência física e cultural”. Essas
metáforas recebem esse nome porque a maioria delas tem a ver com a
orientação espacial, por exemplo, feliz é para cima, que possibilita
expressões como “Estou me sentido para cima hoje.”
Metáforas ontológicas - essas metáforas surgem de nossa
experiência com substâncias e objetos físicos. Segundo os autores, as
experiências que vivenciamos (especialmente com o nosso corpo) fornecem
uma ampla base de metáforas ontológicas, ou seja, a maneira como
674
concebemos eventos, atividades, emoções, idéias, como entidades e
substâncias. Um exemplo é a metáfora a mente é uma máquina, de onde
surge a expressão “Estou um pouco enferrujado hoje.”
A ênfase dada pelos autores aos aspectos cognitivos pode
parecer que eles não estão inclinados a ver o caráter sociocultural das
metáforas. Entretanto, se observar o tratamento dado às metáforas
estruturais, os autores enfocam a importância da relação entre metáfora e
cultura: As metáforas “trabalho é um recurso” e “tempo é um recurso” não são
universais. Elas emergiram em nossa cultura devido à maneira como
concebemos o trabalho, à nossa paixão pela quantificação e à nossa
obsessão por fins específicos. Essas metáforas enfatizam aqueles aspectos
do trabalho e do tempo que têm importância central em nossa cultura.
(LAKOFF e JOHNSON, 2002, p. 140)
No trabalho com o significado identificacional, a investigação
abrange as identidades e diferenças que se ligam aos sistemas de poder e,
então questiona os modos legitimados que servem de suporte na atribuição
de sentidos para o corpo feminino da personagem.
Castells (1999) propõe três formas de construção da identidade:
a identidade legitimadora é introduzida por instituições dominantes a fim de
legitimar sua dominação; a identidade de resistência é construída por atores
em situação desprivilegiada na estrutura de dominação; a identidade de
projeto é construída quando atores sociais buscam redefinir sua posição na
sociedade e constitui recurso de mudança social. Esta discussão sobre
identidades é uma questão importante para a ADC. A luta hegemônica sobre
modos de identificação é a luta entre a fixação / estabilização e subversão /
desestabilização de construções de identidades que reconstitui identidades e
diferenças.
A relação entre identidade e sexualidade das personagens dos
contos baseia-se no encontro entre o corpo, a auto-identidade e as normas
sociais (GIDDENS, 1992, p. 22).
Giddens (1992) acredita que o eu (que inclui a sexualidade) é
resultado de um projeto reflexivo, de um questionamento contínuo do
passado, presente e futuro. Portanto, refletir sobre identidades e diferenças
põe em xeque os processos que concebem as identidades e a capacidade
das pessoas de transformarem sua condição como agentes sociais e
operarem escolhas.
ENTRE MULHER E BRUXA: Lucrécia
O conto Os venenos de Lucrécia de Sônia Coutinho, que teve sua
primeira edição em 1978 e a segunda em 2005, mantém sua inquietante
sensação de que a ficção transforma as realidades do sujeito. O narrador-
personagem da história condensa sonho, realidade e delírios na tentativa de
675
reconstruir seu passado e sua identidade, que passa por uma reflexão do eu
em contato com a cultura e o social.
Tudo começa com a chegada de nosso narrador-personagem na
cidade, e quando o seu amigo lhe apresenta uma bela viúva, madura, rica e
versada em ocultismo e Artes Divinatórias, Lucrécia é o que se pode chamar
uma dama com características do século XIX, a casa colonial e os objetos
decorativos garantem o aspecto misterioso e o ar de encantamento e ilusão
ao redor da personagem, sempre a receber amigos e conhecidos. A
personagem é nomeada e sua identidade marcada a partir da referência
histórica ao seu nome.
O narrador-personagem não tem um nome, parece ter uma
antiga profissão, foi (diz ser) um marinheiro britânico aposentado, que agora
viaja pelo mundo. Ao nomear a figura feminina, a autora deixa entrever que o
narrador-personagem é também o autor porque constrói e desconstrói a
narrativa ao sabor de seus desejos. O que chama a atenção para o fato de
que o texto escrito por uma mulher não marca a escrita com características
próprias, mas permite inferir que autoria e voz não precisam destacar
aparentemente o sexo/gênero de quem escreve. Sônia Coutinho costuma
escrever como um ser andrógino, flutuando de uma voz masculina para
feminina sem se fixar em nenhuma. O que lembra a definição de Donna
Haraway sobre a escrita cyborg, uma escrita em que as histórias recontadas
são “versões que revertem e deslocam os dualismos hierárquicos de
identidades naturalizadas”.(HARAWAY, 1994, p. 275).
No conto em questão, a voz masculina predomina na criação de
uma visão de mundo em que o feminino é instável, problemático e confuso, o
que se percebe nos relatos do narrador-personagem sobre os interesses de
Lucrécia pela Rainha do Vodu de Nova Orleans, Marie Laveau, e pelas artes
de adivinhação.
Com a personagem Lucrécia, o narrador-personagem desfia o
novelo de textos que se comunicam com a história do conto, primeiro é o
nome da personagem que lembra a figura histórica de Lucrécia Bórgia,
depois com as figuras de Marie Laveau e Isobel Goldie (bruxa confessa que
viveu no ano de 1662), além de Medusa, e o Barba Azul. Todas as figuras
recuperadas por intertextualidade em referência a identidade de Lucrécia,
são figuras de aspectos negativos e com características “pejorativas” na
História Social e na cultura, também são desprestigiadas pelo narrador,
principalmente quando diz não acreditar na descendência de Marie Laveau:
Marie Laveau, mulata livre, nascida em 1794, para alguns descendentes
da nobreza francesa, versão que, segundo outros, não passaria de uma
tentativa desnecessária de glorificar ainda mais aquela que ganhou fama
como possuidora de dotes mágicos quando, simples mulher do povo, ...
resolveu questões de amor, saúde e dinheiro para suas clientes.
676
(COUTINHO, 1978, p. 56)
680
REFERÊNCIAS
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681
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682
A MULHER E SUAS CONDIÇÕES DE EXISTÊNCIA NA AMAZÔNIA NA
FICÇÃO DE AUTORIA FEMININA NO ACRE.
- Ter, não tem nem bagulho. Você já viu a Chiquinha do finado Idroaldo?
Aquilo é que é ser canhão: vesga, manca, corcunda, e, além de tudo,
preta que nem tição. Pois ainda no velório, Simplício e seu Zé-dos-Bodes
armaram tal fuzuê que um foi pra casa sangrando, e o outro levou a
mulher, antes mesmo do defunto feder. Mas se tu tem coragem, faz como
o finado Cosme: um dia que Gumercindo viajou a Xapuri, ele foi no seu
barraco, agarrou a mulher, levou à força. E inda deixou recado: se vier
buscar, leva bala. Só que ele não contava cruzar com Gumercindo, no
meio do caminho. Foi bala, seu Severino. E do pobre do Cosme as
piranhas deixaram só o esqueleto (O empate, p.07).
692
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693
GT 7 – GÊNERO, RELAÇÕES DE TRABALHO E MEIO AMBIENTE
Coordenação: Profª. Dra. Isaura Rufino Fischer
APRESENTAÇÃO
A condição da mulher foi estruturada na sociedade de forma
particular, no tempo e no espaço, em cada civilização, assumindo traços e
peculiaridades, segundo os valores, a cultura, a religião e a tradição de cada
época. Como diz Saffioti, (1996), as mulheres, desde as sociedades a-
históricas, além de executarem tarefas domésticas, produziam para o
consumo de outros, tanto no artesanato quanto na agricultura. Apesar de
realizarem diversas atividades, oficialmente não trabalhavam, pois seu labor
não era considerado de natureza social, pelo fato de estar associado ao
espaço privado onde o trabalho é invisível.
No prenúncio da contemporaneidade, com o surgimento da
industrialização que lastreia o sistema burguês, as mulheres do mundo
considerado civilizado dão passos regulares na direção do espaço público, ao
serem convocadas para desenvolver atividades remuneradas. No novo
processo de trabalho são submetidas ao assalariamento e a exploração que
lhe é peculiar. Nessa condição triplicam suas atribuições na sociedade ao
serem responsabilizadas pelo cuidado da família, pela reprodução da força
de trabalho e, também pela participação na chamada produção social na
condição de assalariadas. É o início de uma era em que elas passam a
transitar em espaços que lhes são estranhos, a conviver com pessoas do
outro sexo e ter acesso ao dinheiro, o que ao longo de séculos foi um privilégio
masculino (FISCHER, 2006).
A feminização do trabalho coexiste com a reprodução da divisão
sexual daquele: na realidade, as fronteiras se deslocam, mas a divisão do
trabalho se mantém (HIRATA, 2002), servindo assim para indicar diferenças
de posicionamentos na estrutura ocupacional e para sinalizar que o trabalho
doméstico é próprio da mulher. A divisão social do trabalho contém a divisão
sexual do trabalho e nela está implícita a opressão dominação, que se
mantém através de uma hierarquia de poder entre os sexos. Essa condição
histórica está presente em todas as sociedades, mas sempre ligada a uma
estrutura em que o trabalho masculino tem valor superior ao
trabalho feminino.
Na trama da dinâmica social, o mundo do trabalho passa por
transformações movidas pela ampliação do capital no universo,
acompanhado pela metamorfose do sexo do trabalho. A globalização
modifica o lugar das mulheres na economia e nos espaços de trabalho, mas
também os papéis masculinos e femininos no âmbito da vida política e social,
alterando simultaneamente as formas de desigualdade entre mulheres e
homens. As mulheres são mais pobres, mais desempregadas, mais sujeitas a
violência. Têm menos acesso a tecnologia da informação, da comunicação
etc. embora desfrutem mais da educação hoje que no passado (HIRATA,
2004).
A efetivação do trabalho está centrada no uso dos recursos
naturais. Desse uso tem surgido a preocupação, a nível mundial, com as
questões ambientais atreladas as economias universais. Com a urbanização
697
da população mundial vem aumentando a preocupação quanto ao uso
racional dos recursos naturais, principalmente, nos aspectos das escolhas
tecnológicas, conservação da água, da terra, do planeta e da humanidade, de
um modo geral. As mulheres são chamadas a reduzir o nível de consumo dos
recursos naturais através da diminuição da taxa de natalidade.
A forma de uso dos recursos naturais tem gerado pois,
questionamentos quanto ao paradigma do desenvolvimento adotado que
prioriza o crescimento sem no entanto integrar questões sócio econômicas,
políticas e ecológicas considerando as relações de gênero, classe, etnia e
geração, ai estabelecidas.
Essas e outras referencias sobre o mundo do trabalho permeiam
a pauta da produção acadêmica do GT Gênero Relações de Trabalho e Meio
Ambiente, em sua atualização histórica do momento atual. Tal GT agrega,
pois trabalhos de pesquisa realizados através da metodologia qualitativa,
método predominantemente adotado nas pesquisas sobre a condição das
mulheres na sociedade.
O elevado número de trabalhos de pesquisas contidos neste GT,
como pode-se observar a seguir, dificulta o uso da prerrogativa de apresentar
cada pesquisa, isoladamente, além de que este foge ao objetivo desta breve
apresentação.
Este GT agrega predominantemente pesquisas sobre as
mulheres, no campo do trabalho remunerado, porém geralmente
desvinculado da obrigação empregatícia e da formalidade dos direitos. A
produção acadêmica do GT está alinhada a discussão sobre a invisibilidade
do trabalho feminino, os arranjos de sobrevivência adotados pelas mulheres,
as triplas jornadas de trabalho, a reivindicação do direito a terra, a visibilidade
política das mulheres nas políticas públicas (inclusive aquelas relativas ao
crédito, renda, conhecimento científico tecnológico e questão ambiental) e,
em órgãos classistas.
A principal explicação para os problemas apresentados nesses
trabalhos está pautada na divisão sexual do trabalho, constituída como forma
de dominação submissão que antecede o capitalismo e deriva da
propriedade privada (ENGEL, 1984). Ela não apenas permanece mas se
torna evidente com a emergência do capitalismo, que desarticula a indústria
doméstica, capitaliza a produção agrícola e submete o trabalho a condição de
assalariamento. A divisão sexual do trabalho é social, e não natural, e está em
permanente mutação. No espaço público, o trabalho da mulher se coloca
como extensão do trabalho doméstico de forma que são dedicadas a ela a
execução de tarefas secundárias que ideologicamente dispensa força física e
supostamente justifica a desvalorização do trabalho feminino na esfera da
produção. No manto de tal justificativa é atribuído salário mais baixo, e
tratamento diferenciado, inferior aos trabalhadores masculinos, cujos
encargos, em tese, exigem força física.
1
Professora Adjunta da Universidade de Brasília – UnB - neuza@unb.br
699
respeito à produção e alocação de bens e serviços e a busca do bem-estar
material das pessoas. a economia é muito mais que isso. Seus contornos
estão em contínua expansão em relação a novas pesquisas, interesses e
preocupações. No século XX o progresso da ciência econômica foi
importante. Saindo da academia para elaboração de leis, dos programas e
planos de ações nacionais e das organizações internacionais.
John Maynard Keynes, um dos economistas mais influentes
deste século, afirmou que a ciência econômica se tornaria redundante em
longo prazo, pois resolveria os problemas mais importantes com que se
defronta a economia. Outros autores acharam que a ciência econômica iria
desaparecer, pois seus fracassos seriam marcantes. Para alguns estudiosos
o desempenho da ciência econômica ficou entre duas previsões, a crescente
complexidade do mundo, a crise da dívida internacional, uniões monetárias.
As forças produtivas referem-se às capacidades produtivas da sociedade,
não apenas em sentido tecnológico, mas também no sentido social, e incluem
não apenas os meios materiais de produção, mas também as capacidades
humanas, tanto físicas quanto conceituais. As relações de produção referem-
se às relações sociais sob as quais a produção é organizada: como os
recursos e os trabalhos são alocados, como o processo de trabalho é
organizado e como os produtos são distribuídos. È a combinação específica
tanto das forças produtivas quanto das relações de produção que define o
padrão das relações de classe em qualquer sociedade.
Considerando o esquema circulatório acima, adotado por Castro
e Lessa,( onde demonstra que o aparelho produtivo é responsável pela
geração de fluxo real, que é composto de bens e serviços, e que por outro lado
dá origem ao fluxo nominal ao contratar o emprego de pessoas, utilização de
capitais e terras, tem-se, portanto o mercado de serviços gerando uma
contrapartida tais como: juros, aluguéis, salários do pessoal qualificado e não
qualificado, estabelecendo no mercado de serviços a existência de serviços
contratados. Neste esquema incluem-se o trabalho das mulheres, sendo elas
as proprietárias de fatores contribuindo com seu trabalho para o consumo das
famílias, enquanto grupo social que se tornará consumidor a procura de bens
e serviços e consequentemente contribuindo economicamente para a
sociedade. Sendo que nesta circulação vai aparecer o trabalho desenvolvido
pelas mulheres mo aspecto formal e regulamentado, enquanto que o trabalho
informal, as atividades do lar, o cuidado com os filhos, idosos e outras
atividades como preparar os alimentos, lavar, passar, se ocupar da
arrumação da casa, não são contadas, permanecendo na gratuidade e
invisibilidade.
As questões da análise sobre o trabalho indicam diferentes
atividades em diferentes sociedades e contextos históricos. Em sentido mais
amplo, o trabalho é o esforço humano dotado de um propósito e envolve a
transformação da natureza através do dispêndio de capacidades mentais e
700
físicas. Nas sociedades capitalistas, trabalho é sinônimo de emprego
remunerado, e muitas atividades que se qualificam como cuidar das crianças,
dos idosos são descritas e vivenciadas como ocupações em horas de lazer,
como algo que não significa verdadeiramente trabalho.
Nossa observação volta-se para a questão do trabalho
doméstico. Sendo essencial à sobrevivência, saúde, e perpetuação da
população humana, o trabalho doméstico (cozinhar, limpar, cuidar dos filhos
pequenos, dos doentes, dos idosos na família) tem baixo status social, é
preponderantemente executado por mulheres e não é remunerado.
Essas mesmas atividades podem ser desempenhadas como
trabalho pago em hotéis, residências, firmas, restaurantes, e diversos
serviços tais como limpezas em geral. È importante assinalar a grande
categoria de trabalhadoras domésticas no Brasil. Com muito poucas
exceções, as mulheres muito ricas, todas as mulheres realizam trabalhos
domésticos, mesmo quando trabalham em outras atividades fora da casa.
Não podemos dizer a mesma coisa dos homens, embora eles precisem e
usufruam de uma casa limpa e bem arrumada, de crianças bem cuidadas e
bem educadas, de refeições saudáveis e saborosas. Atualmente, muitas
mulheres vêem essa situação como injusta e gostariam que esse trabalho
fosse mais dividido e que houvesse outras condições sociais que facilitasse a
vida das pessoas. E, quando pensamos nas atividades domésticas
tradicionalmente realizadas pelas mulheres: indagamos é trabalho mal
remunerado.
Tentaremos entender alguns acontecimentos, para descobrirmos
o valor do trabalho doméstico. No debate das ciências sociais, existem
numerosas explicações sobre as questões que envolvem o tema trabalho. A
ciência econômica, no paradigma neoclássico dominante, refere-se que os
valores relativos atribuídos a diferentes atividades produtivas e serviços, e,
por conseguinte as recompensas e o status que resultam para os seus
fornecedores são governados pelo efeito recíproco das forças da oferta e
demanda no mercado. O fato de muitas mulheres se especializarem no
trabalho doméstico particular não remunerado é considerado uma resposta à
estrutura predominante de recompensas relativas. Esse trabalho pode
produzir um bom nível de satisfação para os seus consumidores à “família,”
mas para quem o executa no caso a “mulher” é gratuito, e faz jus a um baixo
salário quando é fornecido através do mercado.
Para entendermos o valor do trabalho doméstico precisamos
diferenciar algumas palavras: trabalho, emprego doméstico, mulheres que
realizam atividades domésticas. e trabalhadoras domésticas. Há muitas
diferenças entre cada uma destas coisas e é importante ter clareza sobre
elas. A primeira questão vem com a palavra trabalho. Afinal de contas, as
atividades que são feitas dentro de casa são ou não trabalho? Para os
701
economistas do trabalho, emprego, salário, preços, tudo o que gera renda
pode ser considerado trabalho. Como o trabalho doméstico é feito para uma
família e é consumido ali dentro mesmo, ele não gera renda, não sai de casa
para ser vendido. Trabalho seria, portanto produzir mercadorias ou serviços e
vende-los para fora da família trazendo dinheiro para dentro de casa.
Na visão econômica, o trabalho doméstico é improdutivo, ou seja,
não produz nada. È aquilo que as mulheres reconhecem: é um fazer e
desfazer contínuo, dificilmente percebido por alguém. Ou melhor, só se
percebe quando não é feito (ninguém percebe quando uma casa está
arrumada, mas enxerga muito bem, quando está desarrumada e suja).
A partir das análises da corrente feminista que defende o
reconhecimento pelo trabalho doméstico, nascida nos debates do neo
feminismo no ocidente e partindo do princípio de que os marxistas clássicos
se interessam pela produção de mercadorias, enquanto que os marxistas
desta corrente passam a interessar-se pelo trabalho da reprodução dos seres
humanos, logo esse trabalho é realizado geralmente pelas mulheres
principalmente na família . A casa aparece como o primeiro lugar de trabalho
das mulheres. Elas produzem o que há de mais precioso “os seres humanos”.
Elas reproduzem não somente a vida, mas permitem aos seres humanos de
funcionar durante toda a vida: aos homens de trabalhar, as crianças de serem
educadas, aos doentes e idosos de serem cuidados. Quanto vale este
trabalho?
Massivamente as mulheres se ocupam deste suporte material e
imaterial, o lado afetivo dos seres humanos. Ora esse trabalho é a chave
mestra da reprodução humana, o lugar das sociedades, que é também o lugar
da exploração das mulheres, portanto este trabalho é feito gratuitamente.
Esta condição de “domestica” constitui um denominador comum, em quase
todos os países. No nível mundial, o lugar das mulheres, onde estão, a que
classe elas pertencem.
TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS E CHEFIA FAMILIAR
FEMININA.
Uma das conclusões de nossas pesquisas em termos de
realidade brasileira, a identificação da presença feminina na
responsabilidade da manutenção da família.
De acordo com CARVALHO; 1996, a identificação de famílias
chefiadas por mulheres parece se justificar por três razões: 1) o crescente
aumento de famílias sem a presença masculina e a conseqüente ausência de
rendimentos masculinos; 2) o incremento de famílias e domicílios chefiados
por mulheres não se tem dado apenas pelo crescimento das famílias onde
não há a presença do chefe masculino, mas também pelo crescente
isolamento feminino na manutenção econômica da unidade familiar; 3) a
702
adoção do conceito “famílias chefiadas por mulheres” é útil para identificar e
selecionar um tipo de domicílio que normalmente não se beneficia das
políticas e projetos tradicionalmente concebidos e direcionados para o chefe
masculino.
As famílias que tem uma mulher como responsável principal
sempre existiu, mais particularmente nas culturas onde a mulher tem o direito
de herdar, de possuir a terra e de montar sua casa. Este fenômeno aumentou
depois diminuiu em certos períodos da história durante e depois de
acontecimentos como guerras, deslocamento de populações e migrações
massivas. Existem evidencias do seu crescimento nos últimos trinta anos,
mas esta tendência é mais antiga remontando às transformações sócias
econômicas iniciadas pelas colonizações. Na África sub-saahariana, a
migração dos homens para as minas e para as plantações deu á numerosas
mulheres a responsabilidade da exploração agrícola da família. No Caribe a
referencia ao modelo tradicional da família patriarcal enfraqueceu. Com
efeito, a separação residencial de homens e mulheres, imposta pela
economia escravagista, obrigou muitas mulheres a assumir seus
dependentes. Nova forma de união conjuga menos restritivas se
desenvolveram.
Trata-se então de visualizar mais precisamente as interações
entre dinâmicas coletivas, familiares e individuais e, se possível, de distinguir
as transformações estruturais e as perturbações conjunturais.
As transformações das economias, através da colonização, da
industrialização e da urbanização, desestabilizaram as bases econômicas do
patriarcado. As migrações de trabalhadores, para as cidades e para o
estrangeiro, tanto de homens como de mulheres, enfraqueceram,
freqüentemente, os laços conjugais. Por outro lado, nos últimos vinte anos, a
taxa de atividade dos homens estagnou ou regrediu em dois terços dos
países em desenvolvimento, a taxa de atividade das mulheres, ao contrário,
aumentou, principalmente na América Latina, no Caribe, no leste, sudeste e
oeste da Ásia, na África do Norte. Bem que o acesso das mulheres ao
mercado de trabalho se dá em condições de super exploração (atividades
formais ou informais pouco qualificadas e mal remuneradas, sem proteção
social) e de discriminação (remuneração inferior aquela dos homens para o
mesmo trabalho), cada vez mais as mulheres dispõem de uma renda própria
em dinheiro. Apesar do custo crescente das crianças em matéria de nutrição,
de saúde e de educação, assiste-se a uma desresponsabilização de um
número crescente de homens neste aspecto. Assim, as mulheres não
somente tem que enfrentar o desengajamento crescente dos homens, mais
igualmente dos Estados.
A severa recessão econômica não deteve um processo que se
acredita irreversível: a progressiva incorporação da mulher ao mercado de
703
trabalho. Em parte, esta tendência se explica pelas opções de política
econômica priorizando as exportações, de “maquilado as”, como é exemplo
mais divulgado, no México, abrem-se oportunidades para o emprego
feminino, preferindo-se as mulheres pela habilidade manual e o reduzido
nível de reivindicação. Não apenas o setor exportador vem empregando mais
mão de obra feminina, o setor formal da economia brasileira apresenta a
mesma tendência. No caso mexicano, os setores econômicos que empregam
mais mulheres – serviços pessoais, comércio e manufaturas tradicionais –
foram menos afetados pela crise do que os setores onde predomina a mão de
obra masculina.
È a unidade familiar que se recompõe para enfrentar a crise, com
a entrada de novos membros da família no mercado de trabalho, que antes
não trabalhavam, sendo que, em distintos tipos de família em diferentes
etapas do ciclo doméstico, aumenta a carga de trabalho, sobretudo nas
famílias cujo chefe é uma mulher, exceção feita no caso das famílias de forte
carga de trabalho doméstico. O atendimento das necessidades básicas das
famílias desfavorecidas se realiza pela mobilização das mulheres que, dentro
dos limites impostos pela situação econômica, acionam redes de
solidariedade que possibilitam uma redefinição dos papéis de gênero e o
incremento de sua participação política.
Os conflitos internos e externos aos Estados, as repressões
políticas internas são fortes fatores de desestruturações familiares.
Quaisquer que sejam as causas dos crescentes conflitos, nos últimos vinte e
cinco anos, o número de refugiados multiplicou-se por dez. Na medida onde o
envolvimento militar e a repressão política e armada atingem os homens,
80% dos refugiados são mulheres e crianças. A maior parte das mulheres
adultas, nesta população, são mulheres chefes de família.
Importantes perturbações econômicas e políticas destas últimas décadas
afetaram o funcionamento e a integridade das famílias. As repercussões
sociais e culturais destas perturbações se lêem, igualmente, no nível do
discurso dos atores sociais referentes à família. A manutenção do
reconhecimento jurídico do homem como chefe de família não basta, em
muitos casos, para ocultar a crise que afeta profundamente sua imagem em
termos econômicos e morais. A perda do poder econômico e da autoridade no
seio da família provoca, em muitos homens, reações de frustrações que se
exprimem de diversas maneiras: Por um comportamento paradoxalmente
consumista e ostenta tório (cigarros, roupas, outras mulheres, etc.), ele pode
esperar compensar a perda do status, ligado à perda do emprego, através de
jogo de aparências e da manipulação dos símbolos de prestígio masculino . A
conseqüência direta desta atitude é a formação de uma família cuja mulher
torna-se o principal sustentáculo. Outro tipo de déviance, voltado, desta vez,
para o álcool, assinala uma fuga da realidade e uma irresponsabilidade ainda
mais desastrosa. Produzindo uma imagem desfavorável junto à comunidade,
704
desentendimentos e violências no seio da família, este comportamento
conduz, num primeiro momento, à formação de uma família cuja mulher é a
chefe de fato. Podendo chegar, entretanto, à formação de uma família cuja
mulher torna-se chefe de direito, depois de uma separação ou um divórcio.
Ao nível coletivo, as perturbações econômicas, a ascensão do
individualismo e o relaxamento do controle social no âmbito das famílias são
fatores que interagem entre si. A crise econômica atinge as famílias pobres e
não somente aquelas cujo chefe é uma mulher de direito ou de fato. Os
mecanismos tradicionais de solidariedade são então ameaçados, dentre
eles, aquele que, durante longo tempo, assegurou a proteção das viúvas e
das mulheres divorciadas, mantendo-as na sua família ou reintegrando-as
nas suas famílias de origem, na não ocorrência de um segundo casamento.
Desde então, as mulheres viúvas e divorciadas, tradicionalmente assumidas
pelas famílias ampliadas, vem aumentar o número de mulheres chefes de
família de direito. A anomia social, que resulta da confusão de valores
coletivos e da perda de referencias individuais provoca movimentos
contraditórios: relaxamento dos controles sociais sobre a família e as normas
de comportamento dos indivíduos, de um lado, e apelo à ordem social de
outro. O primeiro movimento que nos interessa aqui, o movimento de
permissividade, se exprime em dois níveis: a elevada freqüência de
dissolução de casamentos por abandono, repúdio, separação ou divórcio e o
desenvolvimento de uma sexualidade adolescente fora do casamento. Este
último fenômeno revela a ausência cruel para os jovens duma educação
sexual e de meios contraceptivos, uma vez que a vida sexual é
temporalmente aumentada.
A predominância desta categoria nas faixas mais pobres da
população, não só no Nordeste urbano mais no Brasil e também na América
Latina. A condição de serem mulheres, pobres e habitarem em países e
regiões cujas estruturas sociais, econômicas e culturais, passaram por
transformações que só fizeram agravar suas características de exclusão,
constituindo uma resultante desse processo a ausência do homem como
provedor.
1. A noção de mulher chefe de família – MCF, não se identifica
direta e imediatamente com a idéia de “família mono parental”. Existem
MCF's casadas, solteiras, viúvas, outras coabita com seus
companheiros, outras recebem seus parceiros de quem recebem ajudas
eventuais ou são por eles exploradas, mas, elas trazem para a casa a
renda que garante a sobrevivência do grupo familiar, ali onde existe a
falha masculina como provedor econômico, à contrário dos padrões
culturais estabelecidos. A prática tradicional ligando o termo “chefe” ao
homem, a superioridade do masculino na hierarquia é assim contestada;
2. As mulheres chefes de famílias – MCF's. analisadas
705
mostraram uma percepção clara de seu papel como suporte econômico
principal da família, em conseqüência da ocupação de um espaço social
na esfera pública, no entanto, a representação que elas fazem dessa
situação, resulta numa percepção ambígua, resultado do habitus
patriarcal cuja ideologia reserva o estatuto de chefe o homem;
3. Um complexo de obstáculos (jurídicos, ideológicos,
culturais, sociais, econômicos, estatísticos, psicológicos e políticos)
impede o reconhecimento do estatuto de MCF, situação concreta que
estas mulheres assumem na vida cotidiana;
4. A necessidade, para esta categoria de mulher, de
estabelecer meio (ESTRATÉGIAS DE SOBREVIVÊNCIA) a fim de
realizar sua integração em contextos fora do mundo da casa, para fazer
face às insuficiências financeiras de seu grupo familiar, o que representa
uma ruptura nas estruturas instituidoras dos papéis do homem e da
mulher no mundo social;
Como ponto de partida da pesquisa, chegamos à seguinte
definição de Mulher Chefe de Família – MCF:
A mulher que é responsável pela manutenção econômica da
unidade doméstica (U.D.) e sobre a qual pesa a responsabilidade de
sobrevivência das pessoas sob seu encargo, tais como seus filhos, pais ou
terceiros (marido ou companheiro, irmãos, tios, primos, pessoas com quem
mantém laços afetivos ou de solidariedade). Por unidade doméstica (U.D.) se
entende uma ou várias pessoas habitando sob o mesmo teto e utilizando a
mesma infra-estrutura doméstica, ligados por laços conjugais, sanguíneas ou
outros .
Na prática estatística, a condição para que uma mulher seja
reconhecida como chefe de família, é que nenhum homem adulto esteja
presente ao lado dela. Tal não é, entretanto, a condição de simetria: para que
um homem seja reconhecido como chefe de família, não haja nenhuma
mulher adulta ao lado dele. Esta assimetria revela o caráter conservador
desta definição. Numa sociedade patriarcal as informações dos membros de
um domicílio (bem como as perguntas do recenseador) podem estar
influenciadas por posições subalternas que resultam na identificação do
homem como o chefe de família.
Segundo FOLBRE, conflitos internos e diversas realidades no
interior das famílias são homogeneizados na superfície, por esta definição, e
freqüentemente oculta, um sistema autoritário de liderança que o homem
assume na condução da família. Com freqüência, quando o parceiro
masculino está ausente do domicílio, filhos mais velhos ou outro adulto
homem podem ser contabilizados como os chefes de família. O fato de o
domicílio ser economicamente mantido pela mulher, raramente é
706
considerado razoável para a mulher assumir o comando da família quando o
homem está presente. Com efeito, num domicílio residindo o casal, mas
substancialmente mantido, economicamente, pela mulher, raramente é
identificado como chefiado por ela. Quando o conceito baseia-se na
contribuição da renda masculina, existe a tendência de considerar este o
único sustento da família, quando, na realidade, a renda da mulher e de
outros membros da família constituem importantes meios de sobrevivência
entre muitos grupos de baixa renda. Outro problema com este conceito de
chefia familiar é que ele tende a ocultar a existência de outras formas de
família instaladas em vários domicílios, sustentadas por uma mulher, vivendo
em grupos de família extensa ocultando a existência da mulher chefe de
família.
A manutenção de uma visão patriarcal da família, bastante
interiorizada na maior parte das formações sociais, segundo a qual, somente
o homem pode ser reconhecido como chefe de família e interlocutor
privilegiado dos poderes públicos, exceção aceita, apenas no caso da
ausência de um homem. A questão não é somente estatística mais,
igualmente política e econômica. Com efeito, o chefe de família pressupõe
ser o principal esteio da família, o mais apto a redistribuir os recursos
recebidos.
A contribuição econômica principal, em numerosos casos, nos
parece ser o critério mais claro. Teoricamente, é necessário avaliar os
rendimentos monetários e não monetários de cada membro da unidade
doméstica; o nível de consumo individual de cada um deles, a fim de calcular,
de cada um, a contribuição líquida nas despesas do domicilio.
Somente pesquisas de pequena dimensão, ou dotadas de meios
suficientes, poderão estabelecer precisamente quem é segundo este critério,
chefe de família. Na prática, é muito difícil de compatibilizar a multiplicidade
de ínfimos rendimentos monetários, obtidos de atividades informais que não
são alvo de uma contabilidade específica, de valorizar contribuições que não
são monetárias, como o trabalho doméstico, cuidar das crianças, a produção
doméstica. Foi sugerida a utilização de medidas aproximativas da
contribuição econômica principal.
É discutível se domicílios chefiados por homens ou domicílios
com múltiplos trabalhadores de fato assegurem um melhor nível de vida para
seus membros. Este aspecto é fundamental porque, apesar das
oportunidades de ganhos serem baixas, tanto para homens como para
mulheres de uma classe social de menor poder aquisitivo, existem evidências
de que uma melhor distribuição dos recursos entre membros de domicílios
chefiados por mulheres tende a anular os piores efeitos da pobreza e,
portanto, reduzir a vulnerabilidade do grupo domiciliar. De fato, gastos e
investimentos de homens e mulheres têm sido apontados como
707
diferenciados e ligados a diferentes prioridades dentro do domicílio, com uma
melhor distribuição e acesso mais democrático de todos os membros aos
recursos nos domicílios mantidos por mulheres. Em um estudo na cidade do
México, constatou-se que os recursos nestes domicílios eram mais
democraticamente distribuídos, comparados com os domicílios chefiados por
homens, uma das razões pelas quais muitas mulheres optaram por se
tornarem chefes de seus próprios domicílios e famílias. Por outro lado,
mulheres também podem não estabelecer relações conjugais e preferir criar
seus filhos sozinhas. Podem optar por fixarem residência autonomamente,
como uma questão de escolha. É importante, portanto, considerar as
condições para a emergência da chefia feminina como social e
historicamente fundada e não, necessariamente, como resultado direto do
aumento da pobreza.
Outro aspecto é que, enquanto os domicílios chefiados por
mulheres sozinhas podem resultar em menor opressão e maior autonomia
feminina devido à ausência de um parceiro, domicílios mantidos por
mulheres, mas chefiados por homens, podem significar pressão em dobro, já
que as mulheres se incumbem da geração de renda, mantém seu papel
doméstico e tem pouca autoridade sobre o orçamento e decisões
domiciliares.
Estabelecemos algumas dimensões quanto às
responsabilidades e papéis exercidos pelas mulheres com relação ao grupo
familiar:
Dimensão econômica - A mulher que é responsável pela
manutenção econômica da unidade doméstica (U.D.) e sobre a qual pesa a
responsabilidade de sobrevivência das pessoas sob seu encargo, tais como
seus filhos, pais ou terceiros (marido ou companheiro, irmãos, tios, primos,
pessoas com quem mantém laços afetivos ou de solidariedade). Esta
capacidade econômica é conseguida através do uso de sua força de trabalho
ou habilidades, saberes e competências ou outras dotações pessoais
capazes de gerar recursos tais como direitos adquiridos ou reconhecimentos
sociais.
Dimensão poder - Possuir autoridade suficiente sobre todos os
membros da unidade doméstica capaz de orientar atitudes e comportamento;
Dimensão liderança - Capacidade suficiente para decidir e
controlar, no cotidiano e no longo prazo, os recursos gerados para a
reprodução da unidade doméstica.
A mulher mantenedora, em contraste com a mulher chefe de
família, possui completamente, apenas a dimensão econômica. Á mulher
mantenedora falta ou é insuficiente à ocupação plena dos espaços da
autoridade e da liderança.
708
A noção de Unidade Doméstica (U. D) também se amplia: Por
unidade doméstica (U.D.) se entende uma ou várias pessoas habitando sob o
mesmo teto e utilizando a mesma infra-estrutura doméstica, ligados por laços
conjugais, sanguíneas ou outros. Podendo também compreender situações
internas e externas ligadas ao espaço mantido pela mulher mantenedora ou
chefe de família, podendo agregar outros tetos e infra-estruturas domésticas.
Relacionadas às “conexões econômicas e intra familiares, laços
ou redes e fluxos internos”.
Em breve análise sobre os debates teóricos referente ao trabalho
das mulheres no Brasil, revela-se uma preocupação inicial centrada na
incorporação ou expulsão da força de trabalho feminina no mercado, sob os
efeitos do capital. A produção teórica pouco a pouco vem mostrando maior
sensibilidade tanto para fatores culturais, como simbólicos que também
explicam a subordinação feminina quanto à inserção das mulheres no espaço
da reprodução familiar.
O Gráfico 1 a seguir indica a evolução da situação dos arranjos
familiares correspondente ao período de 1992\2007 onde se verifica que a
presença da mulher vem crescendo nestes arranjos, seja ela sozinha (de
6,2% para 8,5%), ou com filhos (de 12,3% para 15,5%). Ao mesmo tempo em
que o homem sozinho (de 5,4% para 7,5%), e pai com filhos (de 1,6% para
2,0%), está em patamar inferior em relação à mulher.
Segundo P. Laboissière (2008), as mulheres brasileiras chefiam a
família cada vez mais, participam do mercado de trabalho e continuam
acumulando a maioria das tarefas domésticas. Sendo o que mostra a série
PNAD 2007: Primeiras Análises que, desta vez, aborda os temas população,
família e gênero. De acordo com a pesquisa, os resultados indicam
'extensivas jornadas de trabalho - remunerado e não-remunerado - para as
mulheres. O IPEA constata que proporção de famílias chefiadas por mulheres
passou de 24,9%, em 1997, para 33%, em 2007, o que representa um total de
19,5 milhões de famílias brasileiras que identificam a mulher como principal
responsável.
Durante o mesmo período, famílias formadas por casais com
filhos e chefiadas por mulheres também representam um "fenômeno em
ascensão". Entre 1997 e 2007, os números passaram de 600 mil para quase
3,3 milhões. Em 1997, entre as famílias formadas por casais com filhos,
apenas,4% eram chefiadas por mulheres. Em 2007, a proporção subiu para
709
11,2%. A PNAD indica que o aumento de quase 8% pode estar
relacionado à maior longevidade das mulheres, aliada a um envelhecimento
geral da população. Em quase 27% dessas famílias, a mulher considerada
chefe tem 60 anos ou mais e, em muitos casos, mora sozinha. O aumento da
participação feminina no mercado de trabalho também é um dos fatores
responsáveis pelos índices, pois permite que as mulheres assumam
sozinhas ou com a presença de um companheiro, o sustento de um lar.
Homens
Urbana 10,7 45,3 25.553.995
Rural 10,1 41,6 4.692.780
Total 10,6 44,7 30.248.775
Mulheres
Urbana 27,0 89,3 55.723.287
Rural 28,2 93,7 9.581.545
Total 27,2 89,9 65.304.832
711
Tabela 1 - Média de horas semanais dedicadas aos afazeres domésticos e pessoas que realizavam
estas atividades, segundo situação domiciliar (1) - Brasil - 2002
Fonte: IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD. Microdados.
(1) Situação urbana: cidades (sedes municipais), vilas (sedes distritais), ou áreas urbanas isoladas.
Situação rural: abrange toda área situada fora dos limites acima descritos. Critério idêntico é utilizado
na classificação de população urbana e rural.
• O aumento da participação das mulheres no mercado de trabalho não
tirou delas a responsabilidade pelo afazeres domésticos estudos
com base nos dados estatísticos da Pesquisa Nacional por Amostra
de Domicílio referente ao período de 2001 a 2005, divulgada pelo
IBGE mostra que desde a infância as mulheres recebem a
incumbência de realizar atividades domésticas e que a participação
dos homens nos afazeres da casa aumenta entre os homens mais
velhos e os mais escolarizados.
• Na média, 90,6% das mulheres tinham afazeres domésticos em 2005,
enquanto entre os homens, essa proporção era de apenas 51,1%. Em
média, os brasileiros gastavam 19,9 horas semanais com trabalhos
nas residências. As mulheres dedicavam mais tempo a estas tarefas
25,3 horas semanais, enquanto os homens despendiam apenas 9,9
horas.
• A maior participação masculina acontecia em 2005, acima dos 60
anos, com a média de 13 horas semanais de trabalhos domésticos.
Entre as mulheres, na faixa de 50 a 59 ano, a média era de 31 horas
dedicadas á casa por semana.
TRANSFORMAÇÕES EM PORTUGAL
Desde os anos 90, o INE - Instituto Nacional de Estatística de
Portugal, divulga dados e informações desagregadas por sexo, conciliando-
se com os objetivos da plataforma de ação da Quarta Conferência Mundial
Sobre as Mulheres, ocorrida em Pequim, no ano de 1995.
Em 2000, ano em que ocorre uma série de avaliações da
execução da plataforma de ação de Pequim, o INE agendou estudos
contemplando o enfoque de gênero caracterizando a situação das mulheres
712
nos domínios demográfico, econômico e social.
Dentre os resultados em evidência destaca-se o fato que as
mulheres tendem a adiar a chegada dos filhos (através de métodos
contraceptivos), utilizando o seu tempo para aperfeiçoamento educacional e
independência financeira, ingressando na vida profissional.
Por obrigações familiares o INE define: Cuidar da casa, do marido
e das crianças e de parentes agregados.
Na Tabela 2 está descrito, de acordo com o INE/PT, segundo
publicação de : Amâncio & Lyonette, 2007, um quadro da distribuição,
segundo o sexo, situação familiar e grau de qualificação profissional
(qualificação manual como o nível mais baixo, intermediária e de qualificação
superior). Não foi encontrada referência sobre o número de pessoas
entrevistadas nem o percentual de respostas btidas como consta sobre a
realidade brasileira.
As informações obtidas, ressalvadas suas limitações, nos
permitem avançar que os portugueses do sexo masculino, dedicam entre 5,0
a 8 horas semanais aos afazeres domésticos. Ao passo que as mulheres
dedicam dedicam entre 17. a 26 horas semanais.
As mulheres portuguesas que vivem com um cônjuge ou
companheiro e exercem uma atividade a tempo integral despendem em
média 22 horas por semana em tarefas domésticas ,sendo que os homens
com cônjuge ou companheira e atividade profissional é de 5, 8 horas
semanais dedicadas as atividades domésticas. O total de horas globalmente
dedicadas á profissão e as tarefas domesticam é superior em Portugal,
sobretudo entre as mulheres. Em média juntando trabalho profissional e
trabalho doméstico, os homens portugueses com cônjuge ou companheira
empregados a tempo integral trabalham menos onze horas semanais do que
as mulheres nas mesmas circunstâncias. Esta diferença é mais acentuada
entre os trabalhadores manuais, com as mulheres desta classe a trabalharem
em média, mais quase dezesseis horas por semana do que os homens que
713
também têm profissões manuais Em análise sobre a situação
portuguesa em 1999 Perista (2004), mostrou que os empregados homens
gastavam, em média uma hora e meia por dia em tarefas não remuneradas,
contra uma média de quatro horas gastas diariamente pelas mulheres
empregadas (Amâncio apud R. Crompton, C. Lyonette,2007).
Quanto as tarefas desempenhadas por mulheres e homens que
vivem em casal, verifica-se que as atividades de tratar das roupas apresenta
um percentual de 25,7% para as mulheres e de 78,5%,
Tabela 2 - Média de horas semanais dedicadas aos afazeres domésticos por ocupação e sexo
Lisboa.2007
714
para os homens, enquanto que as compras para o lar são realizadas em
média 15% pelas mulheres e 20% pelos homens, outras atividades tais
como: limpeza da casa, cuidados com familiares doentes e pequenos reparos
são executados exclusivamente pelas mulheres. (Amâncio apud R.
Crompton, C. Lyonette,2007 )
Dados do ISSP (Internacional Social Survey Programme)
demonstram que as tarefas domésticas representam em média 39% do
tempo global de trabalho das trabalhadoras manuais, contra apenas 11% do
total das horas de trabalho gastas pelos homens com profissões
manuais.Para o conjunto de mulheres, o trabalho doméstico representa em
média cerca de 35 % do tempo global despendido a trabalhar, contra 11% no
caso do conjunto dos homens. (Amâncio apud R.
Crompton , C. Lyonette,2007).
A situação em Portugal considerada no aspecto comparativo com
outros países da Europa resulta que a divisão sexual das tarefas domésticas
existindo um subseqüente peso deste trabalho no tempo das mulheres. De
acordo com estes estudos continua a existir tarefas marcadamente femininas
e masculinas. Sendo que esta diferenciação de gênero atravessa as
diferentes culturas. A divisão das atividades revela-se nas compras, sendo
uma tarefa realizada fora do espaço doméstico. Por outro lado os cuidados
com os filhos e os ascendentes ficam a cargo das mulheres. Quanto mais
elevada à escolaridade das mulheres, maior é a afirmação da igualdade ideal
entre os cônjuges, tanto na esfera doméstica como profissional. O sentido da
ajuda aparece nas mulheres sem escolaridade ou aquelas que são
portadoras de um nível de aprendizado primário.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando a realidade brasileira, as mulheres muito mais do
que os homens dedicam grande parte significativa de seu tempo ao trabalho
para a reprodução social, sendo elas as conjugues e, principalmente as mães
que dedicam um número mais elevado de horas semanais nos afazeres
domésticos e, entre as que tiveram filhos, e se esses filhos são
pequenos, aqueles cujo tempo semanal de dedicação aos afazeres
domésticos é o mais elevado. São esses as mulheres que estão adentrando
com mais vigor no mercado de trabalho e nele permanecendo mais tempo.
Ou seja, são aquelas que mais trabalham atualmente na atividade produtiva,
as que mais consomem seu tempo no domicílio, na atividade reprodutiva,
enfrentando sobre carga de trabalho e dificuldade de conciliação entre as
responsabilidades familiares e profissionais. Sendo necessário o
reconhecimento da importância de implantação de políticas sociais que
possam apoiar essa classe de trabalhadoras, sobretudo, aquela de baixos
rendimentos.
715
Na situação portuguesa, os estudos feministas tem mostrado que
a segregação no mercado de trabalho tem sido amplamente documentada.
Apresenta-se a questão da desigualdade na distribuição dos tempos entre
homens e mulheres. A Análise dos mecanismos de apoio às famílias
(maternidade, paternidade) objetiva facilitar o ingresso no mundo do
trabalho, tendo esses efeitos influenciados as decisões de oferta e de procura
de trabalho, assim como se verifica certo avanço quanto a um aspecto da
visibilidade do trabalho das mulheres, constando em publicação do Instituto
Nacional de Estatística incluindo o recorte gênero.
Nos dois contextos em estudo, verificam-se aspectos do oculto
trabalho doméstico e suas relações com o que se constitui a produção, sua
invisibilidade, seu valor como contribuição a sociedade, A condição de
doméstica constitui o que existe de comum entre todas as mulheres de todos
os países. As mulheres nos dois contextos analisados demonstram que
mesmo diante de todos os obstáculos encontram-se na luta por maiores
ganhos legítimos no que se refere a uma inserção econômica e social,
enquanto que os homens ainda não alcançaram à inserção no mundo
doméstico. No que se constitui a ampliação dos estudos feministas e de
gênero, assim como a capacitação técnica científica e acadêmica, a
organização de numerosos grupos redes e associações voltadas para
questões das relações de gênero e de toda a problemática envolvendo a
família trabalho e gênero no contexto desta sociedade, existe um campo
particularmente importante e similar nos dois países, que abre novos
horizontes para o avanço dos estudos econômicos que caminham em direção
crítica e analítica, quanto a invisibilidade da contribuição econômica das
mulheres para a família e a sociedade.
716
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718
MULHERES AGRICULTORAS E PRODUÇÃO DE ENERGIA
HIDRÁULICA: a Realidade da Região do Xingo
Izaura Rufino Fischer
1
FUNDAJ
719
geralmente necessitam liberar suas terras onde vivem e plantam. Ao
deixarem suas terras, algumas perdem a razão de ser como trabalhadoras e,
por conseguinte, a identidade. Junta-se a isto, a perda do seu referencial de
produtoras de alimento, de criadora de pequenos animais, além da ligação
com o meio ambiente do qual habitava e conservava para que ele lhe
possibilitasse viver melhor.
Sem condição de atuar no seu espaço e sem os recursos naturais
que auxiliavam a sobrevivência, algumas mulheres buscam um outro
caminho focado na defesa da família e do meio ambiente. Para tanto,
procuram introduzir-se na defesa da causa ambiental dirigindo-se para a
organização política. Nesse ambiente se coloca na discussão da geração de
energia e seus efeitos sobre a natureza, pesando na discussão as condições
de vida da família e a dívida computada para as gerações futuras.
Centrado no eixo referente à mulher rural, este texto faz parte de
um estudo maior realizado nos municípios de Canindé do São Francisco
(SE), Piranhas (AL) e Poço Redondo, que teve como objetivo apresentar
algumas referências sobre as condições de vida de mulheres rurais
residentes no entorno da Usina hidrelétrica do Xingo.
A pesquisa amparou-se em dados qualitativos levantados
através de entrevistas semi-estruturas que foram aplicadas junto às mulheres
rurais, lideranças rurais, antigos moradores das cidades, historiadores,
governantes municipais e todos aqueles que podiam trazer algum
esclarecimento capaz de auxiliar na compreensão da problemática
pesquisada.
A ENERGIA HIDRELÉTRICA NA POLÍTICA DESENVOLVIMENTISTA:
Um Paralelo com o Movimento Feminista
No chamado período desenvolvimentista, que tem inicio na
década de 1950, é acionada a construção da barragem de Três Marias, no rio
São Francisco, no Estado de Minas Gerais, considerada primeira obra de
grande porte, cuja conclusão se deu em 1961, no calor da inauguração de
Brasília e de outras ações do então governo Juscelino Kubscheque. Dentre
essas ações encontra-se a criação da Eletrobrás no Ministério de Minas e
Energia ao qual é atribuído o encargo de coordenar o setor elétrico brasileiro
sendo a Chesf transformada, portanto, em sua subsidiária. Naquele período
político, o complexo energético de Paulo Afonso é ampliado com a construção
da Usina Hidrelétrica Paulo Afonso II.
Também por volta dos anos de 1960, o então movimento
feminista ganha visibilidade com a ação das mulheres que lutam para ter
reconhecimento e respeito na sociedade. Em ato simbólico, queimam sutiãs
em praça pública na tentativa de chamar atenção para a condição de
subordinação vivenciada pelas mulheres. Espalha-se um movimento mundial
pela liberação da mulher com repercussão em várias partes do mundo. No
nordeste do Brasil, o movimento se fez presente, mas sem nenhuma
repercussão no direcionamento dos orçamentos públicos destinados à
720
construção de fontes energéticas até porque, naquele momento, o
movimento feminista nada apontava nessa direção. No Brasil, o movimento
feminista de acordo com suas vertentes, se manifestava politicamente
reforçando ações dos movimentos políticos que queriam, na época, assumir
a direção do país, a saber, o movimento dos militares e do chamado
movimento da esquerda. O chamado feminismo liberal fortalecia o
movimento dos militares ao participar, por exemplo, da passeata contra a
carestia (que refletia um desgoverno) enquanto um outro considerável
número de mulheres, principalmente aquelas comprometidas com o ideal
marxista, aderira ao movimento da esquerda em toda a sua extensão
temporal e amplitude. O movimento liderado pelos militares toma o poder,
submete o país a uma ditadura e adotam dentre as suas prioridades, a política
das grandes obras para geração de energia enquanto as mulheres militantes
da academia e da sociedade civil permaneciam indiferentes à temática
energética.
Os projetos de geração de energia baseados em grandes
barragens são intensificados na década de 1970, por todo o país. As
indústrias em implantação no Brasil demandavam energia eletrointensiva
naquela conjuntura nacional em que se colocava a posto o chamado “Milagre
Brasileiro”. Nesse momento histórico, o setor energético era conduzido e
administrado por consórcios de empresas estatais ou concessionárias. O
Estado assume o papel proeminente na implantação da indústria pesada e
investe maciçamente em infraestrutura, que o capacita a estabelecer,
simultaneamente, as bases de associação entre os interesses do capital
interno e externo (CARNEIRO, 1993 - a).
Para atender aquela perspectiva desenvolvimentista, são
implantadas hidrelétricas nas regiões Norte, Nordeste e Sul, a exemplo de
Itaparica, no Rio São Francisco /NE, Itaipu, no Rio Paraná/Sul, ITÁ no Rio
Uruguai/Sul e Tucurui, no Rio Amazonas/Norte. Os capitais interno e externo
se escudam no Estado para explorar o manancial de água doce existente no
país (CHESF, 2006).
A década de 1970, no entanto, é permeada por dois fenômenos
que se colocam como obstáculos no caminho da construção das barragens.
Um deles é a crise econômica que se instala na economia
mundial afetada pelo choque do petróleo explicitando o ensejo à
reestruturação global das economias centrais com a periferia capitalista
(CARNEIRO,1993) e o outro se manifesta através da organização das
populações das áreas ocupadas pelas barragens que se confrontam com a
proposta do modelo hidrenergético.
Enquanto o Estado direciona suas ações para geração energia,
as mulheres, particularmente, as nordestinas continuam a construir seu
mundo a partir de uma militância acadêmica e civil algumas vezes, baseada
em estudos pontuais e reivindicações consideradas por segmentos da
academia e a administração do estado, como dotada de caráter romântico,
721
permeado por inocência, inexpressão e de pouca importância no jogo do
poder econômico e político. Diante da reduzida valorização do que fazem,
como fazem e para quem fazem, as mulheres do Nordeste, vão, passo a
passo, consolidando o movimento feminista, à luz do movimento mundial que
estudiosos dotados de respeitabilidade reconhecida como Bobbio (1995),
Mezaros (2002), Castells (1999) e vários outros passam a aponta-lo como um
dos movimento de maior expressão na transformação da sociedade.
Desprovidas de prestígio político e econômico, as mulheres dividem suas
ações sem causar grandes incômodos à proposta de desenvolvimento
representada pelo setor energético.
Durante a construção de hidrelétricas, inicialmente, ocorrem
aumento de empregos, mas no seu final a redução de empregos é fatal,
criando-se, assim, verdadeiros nichos de desempregados que vêm se
organizando em movimentos sociais na tentativa de encontrar uma saída
política para a problemática do desemprego e do uso dos recursos naturais.
A partir desse movimento, as mulheres e a produção de energia
tendem a se cruzar. Alguns grupos de mulheres rurais estão inseridos no
movimento de barragens que reclamam os prejuízos causados pelas
hidrelétricas às famílias rurais e ao meio ambiente. Essa questão, ao
contrário da pura geração de energia que lhes era indiferente, lhes dizem
respeito diretamente. Dessa feita, a luta daquelas mulheres rurais
tende a significar um marco na luta das mulheres, ao aderirem publicamente à
questão ambiental em prol da preservação da vida no planeta. Os recursos
naturais tornam-se cada vez mais escassos e as barragens denotam
prejuízos a serem divididos, principalmente, com as mulheres.
No quadro de contingenciamento econômico, político, social,
somado a experiência vivenciada pelos trabalhadores e a empresa
responsável pela construção de usinas hidrelétricas no Nordeste, é
construída a Usina Hidrelétrica de Xingó que se coloca como destaque pelo
potencial de produção de energia (3000MW) (Chesf, 2006), gerando,
atualmente, cerca de um terço da energia elétrica consumida no território
nordestino.Xingó apresenta-se perpassada por um jogo de interesses que faz
parte da trajetória conjuntural capitalista, sem dúvida, orientada pela
concentração e centralização da riqueza mundial a partir da apropriação dos
recursos naturais.
Como toda obra que envolve grande capital, a barragem de Xingó
deixa o rastro da mudança de reprodução social permeada por conflitos
gerados pela destruição de meios de produção que se manifestam no
ambiente, na pobreza, migração, desemprego, violência, desestruturação
familiar, dentre outros.
AS MULHERES AGRICULTORAS DA REGIÃO DO XINGÓ
A implantação da usina de Xingó provocou mudanças diversas na
região, dentre outras, o desemprego. A ausência de uma política do governo,
através da Chesf, capaz de gerar emprego ou oportunidades de trabalho para
722
a população local afetada direta ou indiretamente da fase de construção obra
de engenharia, criou um dos maiores problemas para a região, segundo
depoimentos de pessoas entrevistadas.
O desemprego se revela como uma reserva de força de trabalho
sem emprego, inerente à sociedade capitalista, criado e reproduzido
diretamente pela própria acumulação de capital, a que Marx (1983) chamou
de exército de reserva ou exército industrial de reserva. Mesmo considerando
tal conotação, não se pode ignorar que dependendo das proporções, o
desemprego é sem dúvida o espelho que melhor reflete as dificuldades
econômicas e sociais de um país e suas relações com a insatisfação da
população manifestada através de conflitos. Além de criar um desajuste no
sistema produtivo causa desequilíbrio no sistema social e político. Esta é sem
dúvida uma contradição terrível para um sistema econômico porque o
desemprego se torna um mal necessário para o capitalismo, segundo o
pensamento de Marx. (BRAGA, 1999).
O fenômeno social do desemprego na área do Xingó, reduziu as
possibilidades, principalmente para os homens trabalhadores da construção
de obras e cujas conseqüências tiveram maior rebatimento nas famílias
rurais. Vários desses trabalhadores de obras sustentavam, na família,
desempregados que sequer conseguiam inserir-se no setor informal.
Refugiavam-se na rede de solidariedade familiar sob o comando das
mulheres que evitava o aumento da miséria entre aquelas famílias de
agricultores. Na rota do desemprego, conforme Rosanvallon (1998),
encontra-se implicações do tipo perda da moradia, dos colegas e dos amigos,
esfacelamento da família, corte crescente dos laços sociais e como diz a
socióloga Heleieth Saffiti (2004), o isolamento do próprio cidadão, chamado
por Aristóteles, no século IV a. C., de ser político.
Os municípios, principalmente, de Piranhas e Canindé do São
Francisco, que durante a construção da hidrelétrica estavam inseridos na rota
do emprego, convivem, na atualidade, com enorme contingente de
desempregados herdados das obras então consumadas. A cidade de
Canindé do São Francisco, então reconstruída, encontra-se cercada por um
cinturão de construções habitadas por miseráveis, do mesmo modo que
Piranhas, cidade cenográfica, ganha como adendo o chamado bairro do
Xingo, formado por um mesclado de habitações destinadas às famílias dos
técnicos responsáveis pela construção da obra e as residências de peões,
além de bairros improvisadas por prestadores de serviços.
A conseqüência desse desemprego nos municípios pesquisados
é tributada a homens e mulheres, mas os resíduos de ordem prática têm
rebatimento, sem dúvida, sobre o feminino que é cobrado, na família, pela
falta de alimento. Se ela mesma perde o emprego vê se desmoronar a sua
realização pessoal de permanecer como sujeito visível, pois, conforme a
prática adotada ao longo dos séculos, os primeiros a perder o emprego são as
mulheres (CASTELLS, 1999), sob a justifica de que o seu trabalho é
723
complementar, é ajuda. Esse fato se reflete nas próprias taxas de
desemprego no Brasil que, em 2008, segundo o Dieese (2007), os homens
somam 18,1% dos desempregados e as mulher 23,9%.
Na agricultura, o desemprego principalmente das mulheres é
cíclico e elas convivem com tal realidade sem sair do local. No caso dos
municípios pesquisados, o desemprego que mais causa sofrimento às
mulheres é o dos maridos que buscam a perspectiva de desemprego
friccional e saem deixando a família em seu local de origem. Periodicamente,
esses desempregados são constituídos, tanto pelos que partem em busca de
emprego (“os arrependidos” Expressão usada por entrevistada) quanto os
que ficam na localidade (“os inocentes” - Expressão usada por entrevistada).
A população da área pesquisada que vivenciou a prática da renda
fixa mensal se coloca como desolada e desamparada pelo poder público, ao
vivenciarem o desemprego e a falta de oportunidade de vender sua força de
trabalho. As mulheres rurais estão sempre apontando o desemprego como o
principal problema da região. Concorda-se com Saffioti (2004) que esse
problema atinge o país como um todo, mas na área pesquisada ele é mais
lembrado, pelo fato da abundante oferta de emprego que homens e mulheres
outrora vivenciaram.
Os depoimentos dessas mulheres retratam a situação:
A barragem deixou a construção no local e também a miséria. Hoje
os desempregados moram em locais desumanos. Até na bonita
cidade de Piranhas ficaram barrageiros desempregados e
marginais. Tudo analfabeto e semi-analfabeto.
O grande problema desse lugar é que não tem emprego pra
ninguém. Se viesse um ganho pros pais e mães de família, era
bom. Penso nos filhos que não podem ficar aqui. Aqui não tem pra
quem dá um dia de serviço, todo é mundo pobre.
O desemprego que atinge a população pesquisada reforça a tese
do aumento da pobreza que vem ocorrendo no país como um todo e está
sensibilizando os governantes a adotarem medidas para amenizar essa
problemática através de políticas públicas em níveis federal, estadual e
municipal.
725
trabalhos se viciou na bebida, e não trás um tostão pra casa porque não
quer. Só dos meninos ela ganha R$ 75,00 por mês (salário família). Ele
compra som e geladeira velha que depois vende. Se o marido fosse igual
a mim a gente ia ter as coisas. Se ele pensasse, com o dinheiro do feijão
(a produção comercializada da roça) tinha comprado dois garrotes. Eu
pedi que ele fizesse tudo, mas me desse R$ 50,00 pra fazer uma feira.
Ele fez somente uma “caranha” de feira (comprou poucas coisas). O
feijão, este ano (2006) ele plantou sozinho porque eu estava operada,
era dele, tirou 35 sacos.
As mulheres, além de aturarem a desilusão dos que retornam
devem prepará-los para reconduzir ao trabalho na unidade de produção. Elas
quase sempre se mostram contrárias à saída dos maridos, justificando que a
migração já não representa alternativa para sobrevivência e que não vale a
pena largar a família conforme revela o depoimento:
Daqui foi gente pra São Paulo, mas hoje ninguém quer ir mais. Lá não tem
emprego. Pra sobrar é melhor ficar aqui mesmo. São Paulo, hoje não
presta mais, só vai pra lá flagelado, a fé que tenho hoje em São Paulo é
muito fraca. Ninguém gosta de morar em São Paulo, fica lá porque aqui
não tem emprego. É uma pena que a dificuldade pra morar aqui é tão
grande.
Estes trabalhadores agrícolas adaptados ao assalariamento,
parecem sem muitas alternativas, uma vez que, se a migração se torna uma
possibilidade distante, na conjuntura neoliberal o desemprego sinaliza como
ingrediente básico desta conjuntura no país como um todo e no mundo. O
término do trabalho na UEHX culmina com a escalada de desemprego que
parece ter poupado apenas o tradicional trabalho das mulheres que
permaneceram na agricultura familiar.
A VIOLÊNCIA NA REGIÃO DO XINGO: o contexto de estruturação
Na atualidade, a violência se apresenta como um problema de
caráter urbano e com extensão em, praticamente, todo território nacional.
Pesquisas vêm apontando a violência como um dos maiores problemas do
momento que atinge o país. Aparece, com maior freqüência, nas áreas onde a
iniciativa capitalista se faz presente, a exemplo da construção da Usina
hidroelétrica do Xingo, iniciativa que concentrou abrangente volume de
capital. Na fase de implantação, essa usina absorveu considerável volume de
mão-de-obra e atraiu trabalhadores rurais e urbanos que funcionavam como
reserva formando uma massa de miseráveis que passaram a residir no
entorno da cidade. Muitos deles, na ilusão de participar da circulação do
dinheiro, lá permaneceram após o término das obras. No manto dessa
realidade emergiu um foco de violência com atuação, sobretudo, nas
localidades em que a segurança pública se mostra despreparada para atuar,
como a área rural dos municípios situados próximos à barragem, geralmente,
habitada por trabalhadores pacatos que retiram da agricultura o pão de cada
dia. Aquelas famílias rurais estão atônitas, diante da violência herdada da
726
barragem do Xingó.
Como forma de agressão social antiga, a violência vem atraindo a
atenção de estudiosos, particularmente brasileiros, principalmente a partir da
década de 1970. É consensualmente, entendida como afirmação de poder.
Hannah Arend (1993), afirma, no entanto, que a violência abdica do uso da
linguagem característica das relações de poder, baseado na persuasão,
influência ou legitimidade. É desprovida, geralmente, do espaço para o
aparecimento do sujeito da argumentação, da negociação ou da demanda. A
violência se constitui termo polifônico, uma vez que, se traduz como força,
vigor, emprego da força física ou recursos tecnológicos. Na sua essência,
pode-se entender a violência como um conjunto de comportamento que
causa dano à outra pessoa, uma vez que, suprime do outro a autonomia, a
integridade física ou psicológica e mesmo o direito mais essencial, o de viver.
Está sempre transvestida de ações que machucam indivíduos envolve
desrespeito ao próximo, a humanidade e a cidadania.
Estudiosos classificam a violência como estrutural, sistêmica e
doméstica que incorpora o viés dos contextos social, econômico e político de
cada momento histórico e institui-se em nível institucional, doméstica e
interpessoal.
No Brasil, até 1970, a violência parecia encontrar mais
explicações nas raízes históricas da civilização, como se pode observar no
entendimento de Sérgio Buarque de Holanda assinalada no livro Raízes do
Brasil (1963), segundo o qual a violência estaria intrínseca a cordialidade do
povo brasileiro que é bom entre os amigos e violento com os outros. Ancorada
a dinâmica da sociedade, a violência passa a ser analisada, principalmente, a
partir da década de 1970, como problema estrutural centrado ao eixo do
desemprego, da miséria, da qualidade do serviço público destinado à
população e da ausência de políticas sociais. Expressava, quase sempre, a
desigualdade, a exploração, a dominação, a exclusão, a segregação e outros
males associados à pobreza ou a dominação de cor e gênero.
Nos anos de 1980, os conflitos tomaram formas diversificadas no
Brasil, permeados por questões étnicas e ideológicas. A violência é
reconhecida como problema social nacional, uma vez que, se espalha nos
espaços público e privado. Naquele momento, a violência pública se incluiria
como institucional e a privada seria considerada interna a ser resolvida no
âmbito da família.
No final do século, o problema da violência no Brasil sofre mais
intensamente os reflexos da globalização e perde o caráter de classe social,
tornando-se problema social cada vez mais generalizado. Atinge a escala
ética e política gerada pelo modelo societário. Permeia a sociedade civil, o
poder público e o espaço privado, na contramão dos direitos universais e
_____________________________________________________________
2
Termo extraído de enciclopédias Projeto Renascer Brasil (2007). Classifica como mudança de emprego
ou atividade dos indivíduos (...).
727
direitos históricos.
Essa violência urbana estruturada na sociedade brasileira se
estende ao pequenos municípios, principalmente aqueles situados em áreas
próximas a centros de grande circulação de moeda ou em locais onde
ocorrem desmandos como grilagens de terras. A sociedade rural, de certa
forma mais ancorada a valores morais, étnicos e a solidariedade torna-se
vulnerável diante dessa violência, conforme pode-se observar na região
pesquisada, principalmente, nos municípios de Piranhas e Canindé do São
Francisco.
A ÁREA RURAL DE XINGÓ: um novo porto de chegada da violência
Os trabalhadores rurais da região do Xingó parecem vivenciar um
tipo de violência figurativamente semelhante ao dos movimentos sociais que
atuaram na região Nordeste nos anos 20/30, dotada, porém, de nova
roupagem. Segundo entrevistadas, ela é praticada por pequenos grupos de
indivíduos encapuzados que se locomovem através de motocicleta para
praticar assaltos contra as famílias dos agricultores.
Naqueles municípios homens e mulheres rurais, movidos pelo
medo da ação dos marginais, dizem se enclausurar em casa com a chegada
da noite como forma de se proteger da violência. Escolas de alfabetização e
de educação para adultos fecham as portas pela impossibilidade de os alunos
freqüentarem as aulas. A participação das crianças que fazem o segundo
grau no expediente noturno na sede do município causa preocupação para as
mães e pais de famílias que somente dormem quando, em grupo, pegam
seus filhos na parada do transporte cedido pela prefeitura do município.
Com esse legado proporcionado pela UHX, que trouxe
desenvolvimento, porém para outras áreas do Nordeste, os agricultores têm
dificuldade de usufruir da infraestrutura de estradas instaladas no município
visando aliviar o isolamento das famílias rurais. Se, por um lado, o governo
cria condição para que eles consigam mais visibilidade política como
cidadãos, por outro lado, essa oportunidade é anulada pela violência que está
roubando a tranqüilidade outrora vivenciada no campo. Uma das
entrevistadas coloca sua angustia através do seguinte depoimento:
À noite ninguém sai de casa porque tem medo dos bandidos. Não há
segurança. Há alguns anos a violência vem aumentando. Aqui ela ta
grande. Na semana passada o bar foi roubado. Esses que roubam por
aqui são ladrões “cuia”, é gente de fora que não quer trabalhar. Se não
vem essa gente, aqui é o lugar mais santo e mais quieto que tem nesse
município de Canindé. Aumentou depois do Xingo com esse movimento.
Quando parou a obra a desgraça aumentou.
O medo referido pelas entrevistadas tem fundamento objetivo.
Não se trata apenas prevenção, mas da precaução de quem
vivenciou situações constrangedoras direta ou indiretamente. Considerando-
_____________________________________________________________
3
Essa realidade referente aos movimentos sociais e messiânicos.
728
se órfãos da proteção do Estado não encontram saída para sobreviver. Se por
um lado não podem abandonar seus meios de produção e largar o local de
onde tiram o pão de cada dia, por outro lado, não vislumbram possibilidades
de frear aquela situação de violência. Sem saber como agir, famílias
entrevistadas apenas continuam vulneráveis a ação dos marginais que
assaltam sem piedade, tomando-lhes o mínimo que conseguem através do
trabalho na agricultura. O depoimento da entrevistada evidencia tal situação:
Já fui assaltada 14 vezes aqui dentro de casa. Acontece sempre no dia
ou próximo ao dia que vou pagar os trabalhadores. Eles chegam de
moto, armados de revolver e espingarda doze. Bota a arma, geralmente
na cabeça da mulher e manda o homem entregar tudo que tem. A gente
entrega tudo pra não morrer. Dizem que a polícia pegou um deles que
ficou foi mangando da gente na delegacia, dizendo que roubava tudo
daqueles bestas.
Apesar de apontarem várias faces da violência ocorridas no
campo, as trabalhadoras rurais entrevistadas não demonstraram
discernimento suficiente para conceber a violência doméstica em suas
variadas formas. Apenas reconhecem como violência doméstica a violência
física. A agressão psicologia, verbal e até o vício da bebida alcoólica dos
maridos, no entendimento delas não significa violência, mas trata-se de um
fato natural que perpassa a sua convivência de gênero através das gerações.
AS RELAÇÕES SOCIO AMBIENTAIS NA REGIÃO PESQUISADA
Em nome do desenvolvimento e crescimento do país e,
particularmente, da região Nordeste instalou-se na área da barragem Xingó
um desmonte do ambiente natural local que se inicia com a inundação de
grandes extensões de terras cobertas por vegetais, ação que provoca, por si
mesmo, danos consideráveis ao ecossistema e projeta desdobramentos
sobre as espécies da fauna e da flora. Estudos a esse respeito indicam que a
cobertura dos vegetais por inundações provoca a emissão de gases tóxicos
resultante do processo de decomposição do material orgânico imerso sob as
águas, além da proliferação de pragas, fenômenos que naturalmente criam
dificuldades ao desenvolvimento das espécies biológicas fundamentais
nesse ambiente (CASTRO, 2004; FREIRE, 2004).
Trata-se de mudanças impostas aos recursos naturais com
desdobramentos sobre as condições de vida das famílias ribeirinhas, onde
prevaleciam águas territoriais de pesca, de travessias, de cultura de várzeas
e espaços de lazer, permeadas por expressão de identidades conduzidas,
sobretudo, pelas mulheres rurais, desdobramentos que serão fatalmente
eliminados para atender interesses do mercado da água.
Com a construção da barragem Xingó suprimem-se meios de
subsistência das famílias pesquisadas sem que os governantes ofereçam
outras alternativas de sobrevivência aquela população que embora muito
_____________________________________________________________
4
O Cangaço e outros de cunho Messiânico, como o de Canudos
729
próxima de grande volume de água, lhes falta água para produzir.
Sem alternativas para a população sobreviver, a população apela
para o uso indiscriminado dos recursos naturais. A maioria das famílias rurais
entrevistadas, antes de pensar na conservação nos recursos naturais lutam
pela sobrevivência usando indiscriminadamente os recursos naturais mais
demandados pelo mercado. Como diz uma entrevistada: Essas barragens
mataram o rio e a terra.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A usina hidrelétrica do Xingó, ao mesmo tempo em que
proporciona “desenvolvimento” para a economia do país, deixa como
herança o desassossego e a pobreza para a população de áreas
circunvizinhas a barragem. Além disso, os danos causados à natureza e o uso
dos recursos naturais são irreparáveis ao longo do rio São Francisco. Para as
mulheres rurais da área ribeirinha ocorreu a redução na produção para o auto
consumo com o redirecionamento do rio de onde tiravam o peixe para o
alimento e que hoje não o fazem mais, bem como com a destruição das terras
de plantio inviabilizada pelo controle do volume de água do rio. As heranças
malditas da barragem são também manifestadas pelo desemprego, pela
migração e desestruturação das famílias e a presença da violência que ora se
instala naquela região. Estaria o desenvolvimento associado a degradação
da saúde, da alimentação, da paz, e a destruição dos recursos naturais? Será
esse o tipo de desenvolvimento que se deseja para homens e mulheres do
campo?
730
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731
O PAPEL DAS MULHERES NA ELABORAÇÃO DE ESTRATÉGIAS DE
SOBREVIVÊNCIA
Neuzeli Maria de Almeida Bezerra1
Nos anos 60 e 70, os questionamentos feministas surgiram em
decorrência do caráter e da prática social androcêntrica e, também de
estudos científicos a respeito da posição da mulher na sociedade. As
discussões feministas procuravam definir como as metodologias e as teorias
existentes deveriam ser modificadas para incorporar a realidade da mulher a
um novo campo de estudo. A tarefa prioritária era a de descobrir as
abordagens mais apropriadas para o estudo da mulher, para se entender a
realidade em que se situava a condição feminina.
De modo bastante geral, por serem formadas em escolas onde
predominavam teorias androcêntricas, as feministas acadêmicas
privilegiaram a esfera pública em suas pesquisas e dedicaram pouca atenção
à posição da mulher na esfera privada. Com o desenvolvimento da reflexão
feminista, descobre-se que as explicações baseadas nas teorias
androcêntricas existentes só explicavam parte da realidade da mulher - e é
daí que emerge a teoria de gênero (Marques e Cebotarev, 1994).
Segundo Scott (1990), essa teoria postula que a categoria gênero
é uma interpretação cultural dos atributos biológicos feminino e masculino.
Essa interpretação é construída por meio de processos socioculturais,
criando um universo simbólico que fica incrustado na estrutura social, nos
distintos estratos sociais e nas relações sociais. A partir desse panorama da
realidade feminina, essa autora discute uma nova maneira de estudar a
posição da mulher, através da articulação de três categorias, quais sejam, as
de classe, de raça e de gênero. Dessa forma, constrói - se um novo ponto de
observação do estudo de gênero, visto que as mulheres, com vivências
diferenciadas dos homens, constróem o conhecimento científico sobre as
novas dimensões a serem exploradas (Saffioti, 1991).
Os escritos feministas dos anos 80 estavam centralizados em um
sujeito constituído no gênero, não apenas pela diferença sexual, e sim por
meio de códigos lingüísticos e representações culturais - “um sujeito não só
com experiências de relações de sexo, mas com a dimensão de raça e de
classe, portanto múltiplo, em vez de único, e contraditório, em vez de
simplesmente dividido”. Para especificar esse novo tipo de sujeito, foi
necessário um novo conceito de gênero que não estivesse tão fortemente
vinculado à diferença sexual (Scott, 1990; Saffioti, 1991).
A partir da teoria foucaultiana, propõe-se que o gênero é produto
de diferentes tecnologias sociais e de diversos discursos, bem como das
práticas da vida cotidiana (Laurettis, 1994). Em outras palavras, gênero não é
sexo ou uma condição natural, e sim a representação de cada indivíduo em
733
termos de uma relação social preexistente e definida em relação à oposição
conceitual e rígida dos dois sexos biológicos. Essa estrutura conceitual é o
que as cientistas sociais feministas denominaram de “sistema de sexo-
gênero” (Rubin, 1975).
Da perspectiva psicanalítica, Gilligan (1993) discute as teorias
tanto da psicanálise, propostas por Freud e Erikson, como da epistemologia
genética, formuladas por Piaget e Kohlberg, estas não levam em
consideração a realidade da experiência feminina, em que as diferenças de
gênero são concebidas como problemas ou falhas no desenvolvimento da
mulher. Gilligan procurou explicar a gênese das diferenças de gênero através
da dinâmica interpessoal de meninos e meninas, vividos em seus primeiros
anos, considerando o fato de que geralmente em sua primeira infância ambos
(meninos e meninas) são cuidados por mulheres. Ao serem vistos e tratados
como opostos e diferentes, os meninos definem sua masculinidade a partir da
experiência da separação, enquanto as meninas mantêm uma relação de
continuidade e identificação com a mãe e, consequentemente, são vistas
como iguais, definindo assim, sua feminilidade a partir da experiência do
apego. A partir dessa experiência, haveria a tendência de os homens terem
dificuldades com os relacionamentos íntimos, enquanto as mulheres
estariam propensas a problemas com individuação. De acordo com essa
análise, as mulheres seriam construtoras de teia de relações e mantenedoras
de vínculos sociais, sobretudo os de parentesco.
Assim, neste trabalho, procura-se examinar o papel da mulher no
âmbito familiar e na esfera pública, considerando-a como sujeito múltiplo,
com características de gênero, raça e classe social. Além disso, investigar-
se-á quais as representações de gênero que são incorporadas por essas
mulheres.
Trabalhos como os de Montali (1990) e Bruschini (1990) revelam
as diferentes articulações construídas pelas famílias para a organização de
seu cotidiano e para a superação das dificuldades, tais como a insuficiência
de rendimentos e a instabilidade no emprego. A análise das diferentes fases
do ciclo de vida da família (constituição, maturação e velhice) possibilita
identificar os arranjos organizados nos diferentes momentos. Cada fase de
desenvolvimento constitui momento de maior ou menor dificuldade que a
família atravessa. Essas fases indicam as peculiaridades do momento de
vida das famílias, como, por exemplo, idade, vigor físico para o trabalho, filhos
menores que requerem cuidados e despesas, número de filhos que
trabalham e contribuem para o orçamento, etc.
Outros trabalhos lembram que no interior das famílias são
construídas as identidades e os papéis, que se caracterizam pela hierarquia
centrada na figura do “chefe provedor” (Zaluar, 1985; Telles, 1990). Isto quer
dizer que caberá ao chefe da família o exercício de uma ocupação, no
734
mercado formal ou informal de trabalho. Embora se constate que a mulher,
principalmente a esposa, venha ocupando um significativo espaço no
mercado de trabalho, isto não diminui a responsabilidade que sempre lhe foi
atribuída quanto aos afazeres domésticos e à educação dos filhos (Oliveira,
1990; Bruschini, 1994).
A contribuição da esposa para suprir as necessidades da família
ocorre através do trabalho doméstico, produtor de valores de uso e da
atividade profissional remunerada, no mercado formal ou informal de
trabalho. No entanto, em função da baixa qualificação da força de trabalho
das mulheres das classes populares e da desvalorização geral do trabalho
feminino, a remuneração que elas podem obter é, de modo geral, pequena.
Além disso, o trabalho remunerado, muitas vezes, é realizado
simultaneamente com as tarefas domésticas, acarretando assim uma dupla
jornada de trabalho. Em todas as fases do ciclo de desenvolvimento do grupo
familiar, a esposa continua sendo, direta ou indiretamente, a grande
responsável pelas tarefas domésticas, mesmo quando sua execução é
delegada a outros membros do grupo familiar (Fausto Neto, 1982).
A produção de valores de uso pelas esposas, como lavar, passar,
preparar alimento, cuidar de filhos e arrumar a casa, é fundamental para
assegurar certo bem-estar e a reposição da força de trabalho despendida
pelo trabalhador no processo de produção. É a partir dessa dependência
entre a produção e a economia doméstica que é estruturado o grupo familiar.
O exame de trabalhos sobre o tema mostra que a unidade
doméstica urbana está integrada em redes mais amplas de ajuda mútua,
envolvendo parentes e vizinhos. Essas redes são organizadas e mantidas
principalmente pelas esposas e contribuem para satisfazer as necessidades
dos membros da família e da vizinhança. Além disto, a integração das famílias
de classes populares nas “redes horizontais” de troca de favores e
solidariedade tem a função de assegurar socialmente essas famílias. A
importância dessas redes cresce à medida que as famílias vão criando
vínculos que as tornem próximas, e consequentemente, ocorre uma
dependência mútua entre elas. A inserção dessas famílias nas redes de
relações se torna importantes em função do tempo de residência no bairro ou
pela escassez de recursos durante as crises de recessão econômica (Jelin,
1994).
Segundo Fausto Neto (1982), o trabalho remunerado da esposa,
com a finalidade de proporcionar a sua emancipação econômica na luta pela
sobrevivência, faz surgir no seio familiar à necessidade de
esforços suplementares por parte de outros membros, sem que, entretanto,
deixem de realizar as atividades que antes já vinham exercendo. Por outro
lado, a necessidade de a esposa participar do mercado de trabalho pode
provocar um declínio do nível nutricional da família, de suas condições de
735
higiene e dos cuidados prestados aos filhos (Fausto Neto, 1982).
A procura de outras saídas para os momentos difíceis da vida
cotidiana faz com que as esposas sejam levadas a se descolar do âmbito
doméstico para o público, organizando-se e, inclusive, participando de ações
coletivas. Essas experiências implicam transformação do âmbito doméstico e
criam novas condições para a presença da mulher nos movimentos sociais.
Ao integrar-se no cenário público, a mulher estabelece vínculos entre o
público e o privado, contribuindo para processos de transformações
macrossociais (Jelin, 1994).
Conforme Romanelli (1995), apesar de tudo, a participação das
esposas na produção de rendimentos provoca mudanças no sistema de
autoridade interna da família, na divisão sexual e etária do trabalho e nas
relações entre marido e esposa e entre pais e filhos, pois o fundamento
econômico da autoridade do marido diminui na medida em que a mulher, e
também os filhos, colaboram com as despesas domésticas. Essa dinâmica
resulta em linhas de conflitos entre os membros da família, sobretudo entre
maridos e esposas, quando aumenta a participação destas na força de
trabalho. Apesar desse conflito, a esposa acaba assumindo a
responsabilidade das tarefas domésticas, aumentando assim sua jornada de
trabalho.
A situação de dupla jornada de trabalho é uma realidade na
América Latina, no entanto, existem contradições. Se, por um lado, ocorrem
reivindicações das mulheres, que demandam reconhecimento de sua
individualidade pessoal, por outro lado, elas continuam sendo os verdadeiros
suportes da ordenação da vida doméstica, em função de seus papéis de
esposa e mãe (Jelin, 1994).
Durham (1983) mostrou que a participação da esposa nas tarefas
do âmbito familiar, como dona-de-casa, e sua inserção no sistema produtivo,
como trabalhadora e produtora de rendimentos, tende a sobrecarregar e
enfraquecer a relação conjugal, gerando tensão e conflitos internos na
família.
METODOLOGIA
Esse trabalho foi desenvolvido no município de Sertãozinho – SP
localizado no interior de São Paulo. Segundo dados do C.I.S.S. (Cadastro de
Informações Sociais de Sertãozinho), o município de Sertãozinho foi fundado
em 1896 e conta hoje com uma população de 88.418 habitantes, sendo que
54,57% nasceram na cidade, enquanto o restante, 45,43%, migrou de
cidades vizinhas ou de outros estados.
A grande maioria da população de Sertãozinho encontra-se
empregada, pois 77,27% possui emprego com duração mínima de seis
meses. Já o número de indivíduos que trabalhou menos de seis meses
736
representa cerca de 5%. O restante inclui os indivíduos que nunca
trabalharam (13,81%) e os que estão procurando emprego (3,69%). Deve-se
levar em consideração que os dados do C.I.S.S. foram coletados no período
de entressafra da cana-de-açúcar, quando aumenta o desemprego. Sendo
assim, esses dados certamente devem ser diferentes durante a época da
safra de cana-de-açúcar.
Sinteticamente a história econômica de Sertãozinho que passou
por três períodos importantes: o ciclo do café, a formação da economia
agroindustrial açucareira e o Programa Nacional do Álcool (PROALCOOL).
Esses períodos, além de determinarem a estrutura econômica, política e
cultural do município, marcaram profundamente as relações sociais entre os
habitantes da cidade, causando também um forte impacto demográfico.
A COLETA DE DADOS
A coleta de dados foi realizada por meio de entrevistas gravadas,
orientadas por um roteiro semi - estruturado e transcritas na íntegra. Também
foi adotada a observação participante através das constantes visitas aos
bairros onde residem as famílias. Esses dados foram registrados no diário de
campo. As famílias foram contatadas por intermédio da Sra. Regina Furlan e
do Sr. Braz Carmona, coordenadores da Associação de Assistência e
Proteção ao Adolescente Trabalhador (ADOT), de Sertãozinho, que realizam
diversas atividades nos bairros onde foi feita a pesquisa.
PROCEDIMENTO
Foi realizada uma coleta inicial de dados secundários sobre as
condições dos bairros Alvorada e Jardim Paraíso I. Esses bairros foram
escolhidos por estarem localizados em uma área periférica da cidade onde se
concentram migrantes que trabalham na lavoura de cana-de-açúcar. Em
seguida, procedeu-se a um levantamento histórico de Sertãozinho, quando
foram coletados dados sociais e econômicos referentes às condições de
emprego, ao índice de desemprego, ao problema do desemprego na
entressafra, à violência e ao tráfico de drogas nos dois bairros.
As entrevistas foram realizadas na época da entressafra e na época
da safra, o que permitiu conhecer tanto as condições de vida dessas famílias
no período em que seus componentes têm maiores possibilidades de estar
empregado quanto no período em que o desemprego aumenta acarretando
maiores dificuldades para a sobrevivência.
RESULTADOS E DISCUSSÕES
Analisando os diversos depoimentos dos entrevistados, verifica-se
que, quando as esposas têm trabalho remunerado e, consequentemente,
contribuem para o orçamento doméstico, acabam adquirindo o direito de
participar das decisões familiares e, dessa forma, acabam sendo mais
737
valorizadas.
Quando as esposas executam apenas atividades domésticas,
afirmam que não participam das decisões familiares, apesar da importância
dessas atividades para a manutenção da família. No entanto,
independentemente de as esposas terem ou não trabalho remunerado, na
maioria dos casos analisados elas efetivamente participam de decisões
relacionadas às atividades domésticas cotidianas, que o marido não domina
inteiramente.
Por outro lado, os maridos julgam não ser importante o trabalho
remunerado da esposa, ou acreditam que o poder de decisão dentro da
família não está relacionado com a contribuição financeira da esposa. Os
maridos relatam que o trabalho remunerado das esposas funciona para a
família como uma ajuda secundária, não admitindo a importância desses
rendimentos para compor o orçamento doméstico.
Para as unidades matrifocais a contribuição da mulher chefe de
família é a principal fonte de renda para garantir as despesas domésticas.
Apesar disso, as mulheres chefes de família não conseguem que os filhos -
principalmente os homens - as respeitem em função de assumirem o encargo
de provedoras e mantenedoras da família. Mesmo trabalhando no mercado
formal de trabalho, Madalena, uma destas mulheres, nunca participou da
tomada de decisões referentes à vida doméstica e seu ex-marido, que a
submetia a violências físicas e psicológicas, sempre controlava o dinheiro
que ela ganhava. No entanto, apesar de Madalena ser a única provedora da
família no momento, seus filhos acredita que ela não tem o poder de tomar
decisões referentes ao conjunto de interesses familiares e que não deveria ter
deixado o marido ir embora.
Por outro lado, os filhos de Márcia, outra mulher chefe de família, não
aceitam sua decisão de ter novos parceiros. Este é um dos motivos geradores
de constantes conflitos domésticos, e que fazem com que ela acabe
desistindo de suas relações amorosas, que sempre têm curta duração.
Os filhos de Márcia têm valores e idéias que os levam a acreditar que
a mãe não se encontra mais em idade de unir-se a outros companheiros, pois
ela não está mais em idade de procriação, e sim no início na velhice, quando
deveria exercer a função de avó, cuidando dos netos, pois esta é a tarefa que
cabe a uma mulher de 50 anos. A tentativa dos filhos de imporem limites sobre
sua vida afetiva é acompanhada pela falta de controle que ela exerce sobre
eles, que são viciados no uso de maconha e crack.
Os dados indicam que os papéis de esposa e de marido estão muito
bem definidos, cabendo à esposa o desempenho das atividades domésticas
e os cuidados com a socialização dos filhos. Já o marido possui o papel de
trabalhador, sendo responsável pelo sustento da família, correspondendo à
738
“ética do provedor” descrita por Zaluar (1985).
Mesmo as esposas que têm alguma atividade profissional e
contribuem para o orçamento familiar também possuem a mesma concepção
da divisão sexual do trabalho, qualificando a atividade remunerada delas
como uma ajuda secundária para as despesas domésticas. Nas
representações dos maridos, a divisão sexual do trabalho está definida de
modo rígido, pois eles julgam que o lugar da esposa é no âmbito doméstico.
As representações sobre o que é um bom marido e uma boa esposa fundam-
se na mesma divisão de papéis. Nas falas masculinas, a boa esposa é aquela
que cuida da casa e dos filhos, enquanto o marido ideal deve trabalhar para
prover o sustento da família, além de respeitar e dar carinho à esposa e aos
filhos.
Este posicionamento deixa clara a posição dos homens a respeito do
que consideram atributos ideais do masculino e do feminino, conforme
esclarece Gilligan (1993). A masculinidade é definida a partir das
experiências de separação do âmbito familiar, enquanto que as mulheres
mantêm uma relação de continuidade com a mãe, definindo sua feminilidade
a partir da experiência do apego e do cuidado com os outros, sendo
responsáveis pela manutenção da teia de relações sociais no interior da
família e com parentes. Ao contrário das mulheres, os maridos estão mais
ligados à vida pública, em que participam do mercado formal de trabalho e, na
maioria das vezes, não encontram disponibilidade para se dedicar aos
cuidados com os filhos e à realização das tarefas domésticas. No entanto,
quando os maridos realizam essas tarefas, eles não as assumem de forma
definitiva.
Outro fato importante observado é que, na maioria das vezes, a
necessidade da esposa participar do mercado formal de trabalho pode
provocar um declínio nos cuidados com a alimentação, com as condições de
higiene e com os cuidados prestados aos filhos (Fausto Neto, 1982). Isto
ocorre com a maioria das famílias estudadas em que as esposas saem para
trabalhar e não têm a quem delegar as tarefas domésticas. Quando a esposa
trabalha fora, essas tarefas são realizadas à noite ou nos fins de semana.
Porém, quando essas famílias não possuem parentes ou vizinhos que
possam assumir os cuidados com os filhos, estes ficam na rua desprotegidos
e expostos a acidentes, ao uso de drogas e a outras situações perigosas. Na
maioria dos depoimentos observados as famílias acreditam que os cuidados
com os filhos e as tarefas da casa ficam prejudicadas quando a esposa sai
para trabalhar fora.
Por outro lado, foi observado que as esposas que possuem
atividades profissionais não deixam de realizar as tarefas domésticas,
principalmente os cuidados dos filhos (Oliveira, 1990; Bruschini, 1994). A
dupla jornada de trabalho está sempre presente em todas as fases do ciclo de
739
desenvolvimento do grupo familiar, cabendo à esposa a responsabilidade do
controle das tarefas domésticas, mesmo quando elas são desempenhadas
pelas filhas, parentes e vizinhos. É o que ocorre em três famílias, nas quais as
entrevistadas recebem ajuda dos filhos ou dos maridos na realização das
atividades domésticas. Em uma destas famílias, os filhos e o marido
preparam as refeições quando Tereza está trabalhando. Madalena trabalha
na lavoura de cana e realiza as atividades domésticas nas horas vagas ou nos
fins de semana. Porém, algumas vezes, os vizinhos e os filhos a ajudam,
preparando o alimento e freqüentemente seus filhos organizam a casa
enquanto ela está trabalhando ou, até mesmo, quando ela se encontra em
casa.
Quando a esposa não conta com parentes ou vizinhos para fazer as
tarefas domésticas, ela própria realiza a noite as que são indispensáveis no
dia-a-dia; já aquelas que podem ser adiadas, como limpar a casa, lavar e
passar roupa, é concluído nos fins de semana. Os resultados indicam que
mesmo as esposas que não trabalham fora de casa também recebem ajuda
de parentes e vizinhos nas atividades domésticas
Quanto às esposas que não têm atividade remunerada, os dados
mostram que elas deixaram de trabalhar após o casamento. Nas
representações dessas mulheres isto se justifica porque tiveram que se
dedicar aos filhos e aos cuidados com as tarefas domésticas e também
devido à imposição dos maridos, que “acreditam” que não vale à pena a
esposa trabalhar fora de casa, pois eles têm condições de serem os únicos
provedores da família.
A análise dos dados indica que o papel da esposa no âmbito familiar
e na esfera pública deve ser relacionado às redes de ajuda mútua e à
solidariedade de parentes e vizinhos, que são bastante importantes para as
famílias entrevistadas.
Das dez famílias entrevistadas, cinco são formadas por uniões livres
e duas apenas por união civil, enquanto que as mulheres chefes de família
são separadas dos maridos. Um único casal é constituído por união civil e
religiosa. Dois casais vivem consensualmente sua segunda união, enquanto
o primeiro casamento desses dois casais ocorreu no civil e no religioso. O que
se pode perceber nas famílias estudadas é que ocorrem separações
freqüentes, às vezes seguidas de novas uniões. Com isso, formam-se
arranjos familiares diversificados, que podem ser instáveis e transitórios.
Três casais estudados, na faixa etária entre 19 e 28 anos, estão
vivendo sua primeira união, fundada em termos consensuais. Esse fato
poderia ser explicado pela condição financeira que essas famílias vivem, ou
seja, o casamento legalizado implica em custos que são elevados para esses
casais.
740
Como pôde ser percebido no item anterior, são inúmeras as
dificuldades para que a família consiga manter um padrão adequado de
consumo contando unicamente com o rendimento do marido e dos filhos. A
inclusão da esposa no mercado de trabalho, para seis das famílias, ocasiona
algumas mudanças na estrutura familiar, sobretudo na divisão sexual do
trabalho. Nesse acaso, o marido contribui esporadicamente com trabalho
doméstico que, na maioria das vezes, se restringe ao cuidado com os filhos,
quando a esposa está realizando afazeres da casa ou quando ocorre alguma
eventualidade e a esposa não tem disponibilidade de desempenhar as
tarefas domésticas. No entanto, quando essas atividades são delegadas aos
maridos estão sempre relacionadas a uma ajuda eventual e sem a
responsabilidade diária de executar tais tarefas.
Apesar de essas famílias considerarem importante a participação do
marido nas tarefas domésticas, as esposas mostram uma tendência em
cumpri-las, mesmo quando trabalham fora de casa, o que indica a
permanência de uma divisão sexual do trabalho convencional. Por outro lado,
nas famílias de classes populares, a inserção das esposas no mercado formal
ou informal de trabalho é necessária como meio de complementar o
rendimento do marido. Portanto, apesar dos conflitos e mesmo contra a
vontade do marido, este acaba cedendo e permitindo que a esposa trabalhe
para ajudá-lo a cobrir as despesas da família.
Na maioria das vezes, a inserção das esposas de classes populares
no mercado de trabalho provoca conflitos conjugais, pois o marido tende a
seguir um padrão de autoridade e hierarquia (Zaluar, 1985), que consiste em
vincular o valor moral do trabalho ao status do trabalhador. Por outro lado,
além de realizar as tarefas domésticas, a esposa acredita ter possibilidade de
participar do mercado formal ou informal de trabalho para complementar a
renda familiar. Mesmo quando as esposas exercem trabalho remunerado, o
homem continua ser identificado, como a autoridade moral (Sarti, 1996), o
que confere respeitabilidade à família. Apesar disso, a esposa enfrenta
grande dificuldade na relação conjugal para exercer o trabalho remunerado.
Os depoimentos permitem constatar que os problemas financeiros
geram conflitos na relação conjugal em todas as famílias entrevistadas. A
interrupção do rendimento do marido, devido a desemprego, ou sua reduzida
remuneração contribuem para o acúmulo de dívidas em mercearias e
farmácias do bairro, o que gera tensão na vida doméstica. Conjugado ao
problema financeiro que, na maioria das vezes, está relacionado ao
desemprego e à baixa remuneração dos trabalhadores rurais, a bebida tende
a ser utilizada como tentativa para amenizar a situação de pobreza em que
vivem. Mas, ao contrário, o alcoolismo prejudica o relacionamento conjugal,
gerando violência doméstica contra as esposas e filhos menores. Além da
educação dos filhos como mais um dos motivos que pode provocar conflitos
no âmbito doméstico. E questões de ordem emocional, moral e econômica
741
assumem um papel relevante no relacionamento conjugal.
Juntamente com as dificuldades financeiras, a infidelidade aparece
como outro motivo importante das separações. Essas rupturas ocorrem, na
maioria das vezes, durante a fase inicial do ciclo de desenvolvimento do
grupo doméstico, quando os filhos estão na primeira infância (Neves, 1984;
Fonseca, 1987; Scott, 1990). Nessa fase, as famílias de classes populares
enfrentam maiores dificuldades financeiras, pois a esposa está envolvida
com os cuidados com os filhos e o consumo doméstico depende apenas do
rendimento do marido. Entretanto, a separação é considerada negativa
porque compromete a possibilidade de consumo, uma vez que a diminuição
nos rendimentos provoca redução do poder aquisitivo e dificulta a melhoria de
suas condições de vida (Romanelli, 1991).
As mulheres das famílias matrifocais que foram abandonadas pelos
maridos acreditam que a presença destes dentro de casa poderia ter ajudado
na educação dos filhos, já que eles são fonte de autoridade. Os depoimentos
dessas mulheres, que hoje são chefes de família e que assumiram a
responsabilidade financeira pela sobrevivência dos filhos, são bastante
importantes porque permitem constatar que o marido ainda continua a ser
identificado como a autoridade moral, necessária para exercer controle sobre
os filhos e para assegurar a respeitabilidade da família.
CONCLUSÃO
A maioria das mulheres está desempregada, o que se deve à
redução de trabalho durante a entressafra e, também porque os maridos
procuram evitar que elas tenham atividade profissional. No entanto, foi
verificado que, mesmo não participando do mercado formal de trabalho, as
mulheres estão envolvidas com trabalhos informais, além da produção de
valores de uso para o grupo familiar.
Apesar disso, as esposas tendem a naturalizar o trabalho
doméstico, o que inclui a criação de representações (idéias, sistemas,
símbolos), levando-as a acreditar que esse trabalho não possui o mesmo
valor que têm as atividades remuneradas. No entanto, sua contribuição é
fundamental para a sobrevivência da família. A produção de valores de uso e
a participação feminina nas redes de ajuda mútua são essenciais para
compor o orçamento doméstico. Além disso, os dados mostram que as
relações de parentesco e de vizinhança, mantidas, sobretudo pelas
mulheres, ainda constituem recurso essencial para assegurar a reprodução
social e biológica das unidades domésticas e para minimizar os conflitos da
divisão sexual do trabalho na vida conjugal e na fase de constituição dessas
famílias.
742
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744
O ACESSO AO CRÉDITO: uma peleja para as mulheres agricultoras
familiares
Lígia Albuquerque de Melo
O acesso ao dinheiro, desde o início, constituiu prática social
exclusiva do homem. Essa determinação, respaldada pelo sistema patriarcal
que historicamente orienta a sociedade, alijou a mulher das relações que
envolvem o dinheiro. Tal realidade, no entanto, está se modificando com a
participação crescente do feminino no mercado de trabalho e com a luta dos
movimentos feministas para inclusão irrestrita das mulheres na sociedade.
Porém, a dificuldade de acesso da mulher ao dinheiro persiste, quando se
trata de crédito bancário para a agricultura familiar, modo social de produção
predominante na agricultura brasileira e que ocupa significante contingente
de mulheres.
O objetivo desse estudo é o de analisar o acesso da mulher
agricultora familiar ao crédito oferecido pelo Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar – Pronaf. O estudo foi desenvolvido
nos municípios pernambucanos de Garanhuns, Águas Belas e Manarí, junto
a mulheres agricultoras beneficiadas e não beneficiadas pelo crédito do
Programa nas modalidades do Pronaf “B” e Pronaf “Mulher”. Fizeram parte da
pesquisa 25 mulheres agricultoras, sindicalistas, técnicos do órgão oficial que
presta assistência a agricultura, do Banco do Nordeste do Brasil e do Banco
do Brasil, dentre outros.
A metodologia empregada de teor qualitativo teve como técnica
de apreensão dos dados, entrevistas semi-estruturadas e análise
documental. Embora o Pronaf tenha sido criado em 1995, a participação das
mulheres agricultoras de forma visível, somente aconteceu no ano de 2003,
através da criação da categoria específica do Pronaf Mulher, conquista dos
movimentos feministas. Mesmo com essa modalidade a participação das
mulheres no Programa acontece principalmente no microcrédito (modalidade
B), por ser menos exigente com relação às condições financeiras do
solicitante e, portanto, mais acessível às mulheres.
O pouco acesso às informações sobre o Programa constitui uma
das dificuldades para as mulheres acessarem o Pronaf Mulher. Apesar disso,
o Programa é responsável pela inclusão das agricultoras no circuito
financeiro, no acesso ao dinheiro, há muito negado as mulheres. O estudo
está apresentado em quatro partes: na primeira se enfoca a realidade das
mulheres com relação ao acesso ao dinheiro, considerando que essa
constitui uma prática socialmente atribuída aos homens. Na segunda parte é
abordada a modalidade do microcrédito como uma possibilidade de acesso
ao empréstimo bancário para as mulheres agricultoras familiares. A terceira
parte do estudo apresenta o Pronaf B, que se caracteriza como microcrédito,
sendo a modalidade mais acessível a mulher e por isso tem a sua preferência,
inclusive em relação a modalidade Pronaf – Mulher que foi criada com o
objetivo de incluir as mulheres agricultoras no Programa. Finalmente a quarta
745
e última parte foi reservada as considerações finais.
AS MULHERES E O DINHEIRO: breve histórico
O modelo de organização sob a égide do patriarca, de dominação
masculina, em que a sociedade se ancorou, desde a sua formação, e ainda
prevalecente no mundo atual, coloca a mulher em múltiplas situações
desfavoráveis, sendo emblemático, o acesso ao dinheiro.
Lidar com o dinheiro constituiu, numa prática inerente aos
homens, desde o começo. Eles obtinham os recursos financeiros,
inicialmente, através de herança de família e, em seguida da venda da
produção, da força de trabalho. Para as mulheres o acesso ao dinheiro surge
de forma considerada pela sociedade imoral, pois é obtido por meio da
prostituição, que segundo o dicionário de Aurélio se refere ao comércio
habitual ou profissional do amor sexual. A prostituição surge como a mais
antiga das atividades femininas. Assim, desde o início, estigmas da
indignidade, de desprezo social pelas mulheres que lidavam com dinheiro
foram estabelecidos. As prostitutas foram as primeiras mulheres a
desenvolver atividades remuneradas e, portanto, a atuarem no espaço
público.
Com base nessa realidade a sociedade criou uma cultura do
dinheiro como instrumento impróprio e injusto à mulher, fantasmas que ainda
na contemporaneidade atormentam o imaginário de algumas mulheres que
denotam certo acanhamento no lidar com o dinheiro, ou carregam o
sentimento de culpa, quando dispõem de maior quantidade de dinheiro do
que seus pares masculinos. Ainda neste sentido de representação do
dinheiro, observa-se que ele, muitas vezes, tem conotação social própria,
para cada sexo. Assim, para o homem, o dinheiro pode significar poder, vigor,
potência, coragem, audácia e realização, enquanto que para a mulher pode
representar ambição, ou o atributo de “interesseira” e, até mesmo, sem pudor.
Além disso, as mulheres bem sucedidas financeiramente, por vezes, são
chamadas de masculinas ou desviadas do comportamento do gênero
feminino (FISCHER, MELO; 2009).
O reconhecimento social do dinheiro como uma ferramenta para
o uso do masculino reflete na dificuldade de acesso das mulheres, para além
da remuneração da força de trabalho, onde o mercado, na maioria das vezes,
oferece melhores condições financeiras aos homens, inclusive para o
exercício de atividades idênticas desempenhada por trabalhadores de ambos
os sexos. Outra forma de acesso ao dinheiro pelas mulheres refere-se ao
crédito, ao empréstimo de dinheiro.
O crédito, com origem no vocábulo latim creditum, significa
confiança. A confiança constitui ingrediente imprescindível nas interações
sociais, e exige dos agentes envolvidos na rede, respeito às regras do
contrato. Trata-se de uma relação entre o credor e devedor. O credor é quem
detém “os meios”, “o dono do jogo” -, e o devedor – aquele que aceita
participar do jogo -. A partir daí, as partes envolvidas, em acordo, vão cumprir
746
o que foi acertado.
O sentido da palavra crédito, é amplo, pois envolve uma gama de
relações, dentre elas, morais, afetivas, jurídicas e econômicas. Porém, a
concepção econômica, que está relacionada ao empréstimo de dinheiro é,
sem dúvida, a que demarca o significado do crédito, e no caso, assume o
papel substitutivo de moeda. Ao assumir o esse papel ele é controlado pelo
Estado, e nesse caso são os bancos, os agentes intermediários e mediadores
da negociação. Nas duas faces do empréstimo bancário, o solicitante e o
credor, estão sujeitos às regras do mercado financeiro. Aquele que requer o
crédito precisa oferecer, em geral, garantias de pagamento ao banco, como a
posse de bens materiais. Além disso, o credor requer do solicitante do
empréstimo, o preenchimento de ficha cadastral com seus dados pessoais
para garantir a transação financeira. Após aprovação do cadastro, o banco
estabelece os prazos para liberação dos recursos, as formas de pagamento,
as taxas de juros aplicadas sobre o capital solicitado, dentre outras
exigências.
A aquisição de dinheiro por empréstimo, atrelado à garantia
patrimonial ou ao aval governamental amparado no subsídio, teve como
destinatário, desde a sua criação, à classe abastada. Porém, ele preteriu não
somente a classe econômica dos pobres, pela ausência de garantia do
retorno do capital, mas as mulheres, por questão de gênero. As relações
sociais entre homens e mulheres, de modo geral, são desfavoráveis a mulher.
Ela, historicamente, está mais afastada do dinheiro. Nesse sentido, a
confiança, elemento imprescindível na transação do crédito, que tem como
básico o econômico, a posse de renda, o patrimônio das pessoas, distancia
as mulheres do acesso ao dinheiro por empréstimo. Porém, a desatenção
para com as mulheres no acesso ao crédito bancário, ao contrário dos
pobres, nunca foi posta de maneira explicita. Elas foram, de forma sutil,
colocadas à margem desse processo. Assim, a discriminação contra as
mulheres se estabelece, de forma imperceptível pela sociedade, e inclusive,
muitas vezes, por elas próprias. Isso decorre da realidade que envolve
gênero, recheada por relações sociais desiguais, entre homens e mulheres,
com lastro no patriarcado. Por isso, em várias situações, a participação
feminina não está expressa, e o homem é o destinatário “natural” das ações
provenientes. A ocorrência de tal procedimento descaracteriza a existência
de exclusão, descriminação da mulher, ao mesmo tempo em que a mantém
de fato afastada do processo.
Considerando as exigências econômicas impostas pelo crédito
ou empréstimo bancário, participar dessas transações torna-se inacessível
para determinadas categorias sociais, a exemplo dos produtores rurais
pertencentes à categoria dos agricultores familiares, modo social de
produção do qual participam as mulheres, sujeitas sociais centrais do estudo
em pauta. Essa categoria, até recentemente, não dispunha de uma política de
crédito diferenciada. As normas bancárias eram generalizadas para todos os
747
agricultores solicitantes do crédito, sem considerar as diferenças entre as
diversas categorias de agricultores existentes.
O MICROCRÉDITO: possibilidades para as mulheres agricultoras Na área
rural do Brasil, espaço em que o estudo em tela foi desenvolvido, a adoção do
crédito começa na década de 1930, para atender a produção cafeeira do
País. Entre os anos de 1960 e 1970 foi criado o Sistema Nacional de Crédito
Rural – SNCR, regulamentado pela Lei 4.829, para fortalecer o setor rural
através de incentivos financeiros para investimentos, comercialização e
custeio da produção rural. Esse crédito tem como finalidade estimular os
investimentos rurais dos seus clientes: o produtor rural, as suas associações
e cooperativas. Segundo o Brasil (2008) a modalidade de crédito, objetiva
fortalecer o setor rural, favorecer o oportuno e adequado custeio da produção,
e a comercialização de produtos agropecuários, dentre outros.
Atender a camada da sociedade capaz de participar de negócios
financeiros e, portanto, retornar ao banco o empréstimo obtido, constitui, sem
dúvida, o principal objetivo do crédito financeiro. É ilustrativo, nesse sentido, o
modelo de desenvolvimento rural recomendado na década de 1960, aos
países em desenvolvimento, pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento
- BID e Banco Mundial – BIRD. O padrão de desenvolvimento proposto era o
de aplicar tecnologias agropecuárias que reforçassem a política de crédito
subsidiado, que foi mantida até os anos de 1980. O crédito para a área rural foi
vinculado a pacotes tecnológicos que exigiam na produção o uso de insumos
químicos e industriais. Apesar de não excluir nenhum segmento da
sociedade, o modelo de crédito aplicado, eliminou a maior parte da população
rural, pois as instituições bancárias ofereciam os financiamentos somente a
aquelas pessoas em condições de devolver os empréstimos realizados.
Ainda na década de 1980, o mundo capitalista assistiu ao
redirecionamento do crédito. Nesta época o sistema financeiro foi abatido por
uma crise econômica que reduziu os empréstimos de dinheiro para os países
em desenvolvimento, o que decorreu na reformulação das políticas de
crédito.
Na América Latina a política passou por significativas alterações,
redundando, dentre outros, na liquidação de sistemas financeiros e na
extinção de créditos subsidiados. Surgem, porém, outros mecanismos para
viabilizar o acesso ao crédito às camadas mais populares da sociedade,
inclusive de áreas rurais, a exemplo dos agricultores familiares As formas
encontradas de acesso ao crédito foram lideradas por organizações não
governamentais, com a cooperação internacional. As alternativas de crédito
criadas se adequavam ao modelo da microfinança, desenvolvidas no século
XIX, e ganharam impulso mundial.
Os programas de microcrédito foram iniciados na Alemanha, em
meados dos anos de 1800. Os primeiros registros de operação de crédito
ficaram conhecidos por Associação do Pão. Esta ação, desenvolvida por
iniciativa particular, tinha como objetivo, livrar os produtores de pão da
748
dependência de agiotas. Assim, financiavam-se os custos da matéria-prima,
para que os produtores conseguissem criar capital de giro. Tal iniciativa
transformou-se numa cooperativa de crédito. Processo semelhante a este,
ocorreu no Canadá em 1900, com a criação das Caisses
populaires. Estabelecidas por um grupo de 12 amigos que juntaram seus
capitais e formaram uma agência para emprestar dinheiro à população
descapitalizada desejosa em montar negócios. A iniciativa se expandiu, e as
Caísses somam, atualmente, mais de 1.000 agências no País.
Nos Estados Unidos, o microcrédito surge em 1953, com a
criação dos “Fundos de Ajuda” nos departamentos das fábricas, com
recursos dos próprios operários. Esses Fundos prosperaram e
transformaram-se na “Liga de Crédito”, e hoje funcionam em vários países.
A idéia do microcrédito se estabeleceu como uma iniciativa
popularizada através da experiência de Bangladesh, em 1976, que teve como
idealizador o economista bengalês Muhammed Yunus. Em suas
experiências, Muhammed observou que os produtores financiavam seus
negócios com dinheiro de agiotas, e mesmo assim pagavam corretamente
suas dívidas. Partindo de tal realidade, Yunes estabeleceu uma
intermediação entre bancos, instituições privadas e produtores, criando em
1978 o Grameen Bank, no qual legitima o modelo do microcrédito. Para
Yunus (2002), o microcrédito possibilita a população que vive a margem da
sociedade, uma melhoria econômica e social, com vistas à mudança de
status. Atualmente o microcrédito é reconhecido como sistema de crédito
relacionado aos pobres. Tal iniciativa foi adotada por vários países, como uma
forma de combate à pobreza. No ano de 2005 a Organização das Nações
Unidas, elegeu como o Ano do Microcrédito. E em 2006 Muhammed Yunus,
conhecido como “banqueiro dos pobres”, ganhou o Prêmio Nobel da Paz.
O microcrédito surgiu para assistir as pessoas físicas e jurídicas,
com desejo de montar ou ampliar um pequeno negócio. A alternativa de
microcrédito apresenta características diferenciadas do sistema de
empréstimo tradicional. A principal característica, em relação aos demais
programas de financiamentos, é a política de juro baixo para atender a
população pobre, seu público alvo. Apesar desse objetivo, “o pequeno
crédito”, atinge atualmente somente 47,8% das famílias de baixa renda do
Planeta. Segundo estudo divulgado pelo PNUD, no ano de 2006, o
microcrédito beneficiou 133 milhões de famílias pobres. Desse total, quase
70% estava abaixo da linha de pobreza (PNUD, 2008).
Ao longo dos anos, o microcrédito tem se expandido no mundo.
Na atualidade essa modalidade tem uso freqüente, inclusive em países
considerados desenvolvidos, como França e Alemanha. É, porém, nos
países da América Latina que vem ocorrendo a maior propagação do
microcrédito com Bancos criados na Bolívia (Banco Sol), no Chile (Fosis), no
Peru (Fogapi), na Colômbia (Corposol), no Brasil (BNB) etc.
No Brasil, o sistema de microcrédito se instala em quatro
749
momentos. O primeiro se concretiza com as redes Centro de Apoio aos
Pequenos Empreendimentos CEAPE filiadas a Women's World Bank. A
segunda se dá através do banco Portosol de Porto Alegre que envolve
governos estaduais e municipais. O terceiro se expressa pelo Fininvest e o
quarto pelo CredAmigo do Banco do Nordeste do Brasil - BNB.
A política do microcrédito na agricultura brasileira é adotada
recentemente, pois o crédito rural, desde a sua criação, tinha uma política
aplicável aos produtores rurais cujos critérios de acesso (juros, garantias)
exigidos aos solicitantes, dependiam da condição econômica. Com base
nesses critérios, os agricultores familiares, categoria menos favorecida
dentre os produtores rurais, ficavam alijados do acesso aos recursos
financeiros para aplicação na produção.
O microcrédito, como o próprio nome sugere, oferece pequenos
recursos financeiros às pessoas demandantes de empréstimos. O valor
mínimo é R$100,00 e o máximo R$1.000,00, sendo de R$ 250,00 o valor
médio do crédito. A distribuição dos recursos por comunidade é em torno de
R$ 8.000,00. O prazo de reembolso é de até seis (6) meses, disponibilizados
em conta corrente ou poupança criada para o solicitante do crédito, e os juros
cobrados são de 1,95 ao mês (BNB, 2007).
Na modalidade de crédito do tipo Credamigo, por exemplo, as
mulheres representam 64% do total de pessoas que acessam essa
modalidade de empréstimo (BNB, 2007). Elas buscam recursos do banco
com o objetivo de ampliar ou obter a renda familiar, caso seja a provedora da
família. Com o dinheiro do crédito as mulheres adquirem pequenas
ferramentas de trabalho, a exemplo de máquina de costura, liquidificador,
secador de cabelos, pipoqueira, fogões, geladeiras e material de manicure.
Também aplicam os recursos em produtos para revenda, como roupas,
calçados e cosméticos.
No microcrédito a mulher tem maior participação do que o
homem, pois o número de contratos registrados em nome dela excede os
pedidos feitos pelo homem, segundo informação de técnicos do BNB, em
2008. A presença mais significativa das mulheres encontra explicação, dentre
outras, no baixo valor do empréstimo concedido. Nesse sentido, os homens
sentem-se menos atraídos em participar, frente ao compromisso que
assumirão com o Banco, impossibilitando-os de solicitar outros empréstimos
que venham a ser oferecidos, até saldar o débito contraído.
Além disso, no caso dos produtores rurais do Nordeste do Brasil,
contrair dívida, ainda constitui um tabu, principalmente aqueles que
pertencem a gerações mais velhas que, muitas vezes, preferem trabalhar
numa escala de produção suficiente para sobrevivência, do que “fazer
negócio com Bancos”. Porém, enquanto homens da Região pensam assim,
mulheres produtoras vêem o empréstimo bancário, como uma oportunidade
de se inserir no “mundo masculino dos negócios”. Os depoimentos de
mulheres entrevistadas ilustram essa realidade:
750
Meu marido não gosta de negócio com o Banco. Ele nunca quis tirar o Pronaf.
Quando o presidente da Associação (Associação Rural do município) ofereceu o
empréstimo do Pronaf para comunidade eu disse: eu quero fazer o crédito. E aí
ele, com espanto, falou pra mim: é? Você quer mesmo? Eu disse quero, e aí eu fiz.
Meu marido é muito desanimado. Quando falaram na Associação sobre o
empréstimo logo me interessei, mas ele não. Eu já tinha os documentos (de
identificação pessoal) e aí foi só dá entrada nos papéis. Quando a pessoa começa
a lidar com o Banco fica mais informada. Logo que entrei no Pronaf (Modalidade B)
não sabia negociar, depois fui ficando mais esperta para aprender a comprar e
vender gado, antes que fazia tudo era meu marido.
As mulheres hoje podem tudo, a mulher tem que ser mulher. Com o dinheiro elas
ficam mais fortes. Saber comprar, vender e quanto vão ganhar, elas estão
aprendendo. A gente tem que saber entrar e sair direitinho num empréstimo.
Foi a primeira vez que fui ao Banco tirar meu próprio dinheiro (Pronaf B). Quase
morri quando cheguei lá dentro. Fiquei tão nervosa que soltei o dinheiro todo no
chão, e disse: Ave Maria! Nunca peguei em tanto dinheiro! (R$1.500,00). Nunca
pensei que podia tirar um empréstimo num Banco. Apliquei na compra de animais
e já paguei tudo ao Banco.
Quando a discussão é sobre o crédito rural, torna-se
imprescindível destacar que os agricultores familiares ficaram excluídos da
política até meados da década de 1990. Tal realidade ocorreu, embora esse
modo de produção seja predominante na agricultura brasileira e responsável
por mais de 40% da produção rural do País. A produção familiar reúne o maior
número de produtores e ocupa significante contingente de mulheres.
A inclusão desses produtores na política de crédito acontece por
pressão dos movimentos sociais que, desde o início dos anos de 1990,
intensifica mobilizações por uma política de crédito agrícola diferenciada. Até
então, as normas do financiamento bancário eram praticamente as mesmas
para todos os agricultores, independentemente da sua condição no setor
agrícola. Diante dessa pressão o governo criou o Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar – Pronaf. Esse foi, portanto, o primeiro
programa de crédito voltado diretamente para a agricultura familiar.
O PRONAF E AS MULHERES AGRICULTORAS FAMILIARES
O crédito bancário, desde a sua criação, preteriu não somente a
classe econômica dos pobres, pela ausência de garantia do retorno do
capital, mas as mulheres por questão de gênero. Porém, a desatenção para
com as mulheres, ao contrário dos pobres, nunca foi posta de maneira
explícita. Elas foram, de forma sutil, colocadas à margem do processo, bem
como de outras políticas sociais. Desse modo, a discriminação contra as
mulheres se estabelece, de forma imperceptível pela sociedade, inclusive,
muitas vezes, por elas próprias. Isso decorre da realidade social que envolve
o gênero, recheada por relações sociais desiguais, entre homens e mulheres,
com lastro no patriarcado. Por isso, a realidade tem apontado que em várias
situações de decisões, de participação, não estando explicitada a
751
inclusão da mulher, o homem é certamente o destinatário “natural” da ação
proposta, e as mulheres ficam a margem. A adoção de tal procedimento, em
que fica embutida a participação da mulher, descaracteriza a existência da
exclusão feminina, fortalece a postura patriarcal, e ao mesmo tempo em que
mantém a mulher afastada de direitos garantidos a todos os cidadãos,
independe do seu sexo.
No crédito oferecido pelo Pronaf a situação das mulheres
agricultoras no acesso ao crédito oferecido pelo Programa não se apresenta
de forma diferente, pelo menos inicialmente.
O Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar –
Pronaf, criado apenas como uma linha de crédito para custeio em 1995, pelo
então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso. Estabelecido
pelo Ministério de Agricultura e Abastecimento através de uma Resolução do
Banco Central, o Pronaf foi oficializado em 1996 pelo Decreto n° 1.946 28 de
junho, onde permaneceu até o ano de 1999, quando passou para a esfera do
Ministério de Desenvolvimento Agrário – MDA, e aí se mantém até o presente.
Esse Programa contempla todas as regiões brasileiras e, quando de sua
criação desenvolvia além da linha de crédito, as seguintes ações: negociação
de políticas públicas com órgãos setoriais; financiamento de infra-estrutura e
serviços nos municípios, capacitação e profissionalização de agricultores
familiares. Atualmente a principal referência do Pronaf é a linha de crédito.
Nos seus 13 anos de existência, o Pronaf passou por grandes mudanças e
ampliou seus instrumentos de atualização. Como outros programas sociais, o
Pronaf vem apresentando no decorrer de sua existência, modificações para
alcançar melhor desempenho ou para melhor se adaptar a demanda dos
agricultores, dentre elas, no ano de 2000 A partir do ano de 2000 o crédito do
Pronaf foi distribuído nas modalidades A, B, C e D e consolidou a modalidade
E. Para obtenção de créditos, os beneficiários do Pronaf eram classificados
em 6 grupos: A, B, C, A/C, D
As mulheres não foram explicitamente excluídas, porém, o
Programa quando implantado, se referia ao público beneficiado como sendo
os agricultores familiares, o que a escrita convencionou chamar no caso,
homens e mulheres que labutam na agricultura familiar. Assim procedendo,
não estava explicitado o direito de participação das mulheres, fato que
contribuiu para a baixa procura delas pelo crédito oferecido pelo Pronaf,
sendo os homens agricultores, portanto os maiores demandantes.
Evidentemente que a postura do Pronaf em relação às mulheres agricultoras,
quando fica evidenciado a direção para os homens Acresce-se a isso, o fato
do ambiente da produção agrícola familiar, ser espaço de trabalho
tradicionalmente masculino, mesmo com a presença efetiva das mulheres no
desempenho das diversas atividades que compõem esse modo social de
produção. Porém, no ano de 2001, por pressão dos movimentos sociais de
mulheres as mulheres agricultoras familiares foram incluídas, de forma
explícita no Programa, através da política de cotas com no mínimo 30% dos
752
recursos do crédito destinados às mulheres agricultoras.
Essa medida de inclusão, no entanto, não alterou a realidade das
agricultoras, pois na avaliação dos movimentos sociais de mulheres, os
Bancos não garantiram, naquele momento, o acesso delas ao crédito.
Entendendo de forma diferente, agentes financeiros se colocavam afirmando
que, as mulheres que se enquadravam nas exigências do Pronaf não
demandaram o direito de participação na cota (MDA, 2004). Na avaliação de
Melo (2003), naquele momento, havia um desconhecimento quase
generalizado da cota de crédito no Pronaf para as mulheres, tanto por parte
das organizações de trabalhadores rurais, movimentos de mulheres rurais,
instituições governamentais e não governamentais, os agentes financeiros
etc.
A ineficácia da política de cotas levou a uma pressão sobre o
governo de criar novas medidas para incluir as mulheres no Pronaf. Assim, foi
criada no do Plano de Safra 2004-2005 a linha específica de crédito de
investimento exclusiva para as mulheres, o chamado Pronaf-
Mulher. Ela surge como uma linha de crédito a mais para a família,
independente, para a mulher, embora atrelada a uma das modalidades de
crédito (C/D) realizado pela família. O valor do empréstimo tem como piso o
montante de R$ 7.000,00 e limite de R$ 36.000,00 com juros escalonados,
variando de 1% a 5% de acordo com o valor do empréstimo. Com esse crédito
as mulheres podem, segundo o Programa, aplicar em atividades agrícolas e
não agrícolas.
Embora o Pronaf tenha criado a modalidade de crédito específico
para a mulher com o valor do empréstimo acima mencionado, na região
Nordeste, a principal demanda das mulheres é pela modalidade B que se
caracteriza como microcrédito, pois o valor total do empréstimo atualmente é
de até R$ 4.000,00, com valor máximo para cada solicitação de até R$
1.500,00, no caso de repetição. Os juros cobrados são de 0,5% a.a. com
bônus de inadimplência de 25%.
A procura das mulheres pelo Pronaf B, em detrimento do Pronaf
Mulher, encontra explicação, dentre outras, a carência de informação das
mulheres e agentes responsáveis pela operacionalização do Programa,
sobre essa linha de crédito, e até o desconhecimento da sua existência
(FISCHER; MELO, 2009).
Não somente as mulheres agricultora familiares do Nordeste
lideram as solicitações do microcrédito, a exemplo do oferecido pelo Pronaf,
mas essa realidade se estende para além da Região, pois segundo dados do
PNUD (2008) 85% da população mundial assistida pelo microcrédito eram
mulheres, no ano de 2006.
Nas solicitações de pequenos empréstimos, as mulheres lideram
a lista dos financiamentos. Esta realidade pode ser explicada porque a
maioria da população mundial é formada por pessoas em condições
precárias de pobreza, e ela pertence ao sexo feminino. Acrescido a isso, a
753
situação de subalternidade social imposta à mulher frente ao homem, desde o
início da História da Humanidade reflete, ainda nos dias atuais, de forma
negativa na vida das mulheres. Neste sentido, quando o assunto envolve
dinheiro, o homem lidera as negociações, é o que ocorre, por exemplo, com
empréstimos bancários. O público demandante das transações é, em grande
parte os homens, porém quando se trata de microcrédito surge a
oportunidade de participação das mulheres.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A mulher agricultora, apesar da efetiva participação na produção
familiar, não é pensada como agente do processo produtivo, quando da
criação de programas que compõem a política agrícola. Esses programas,
inspirados na histórica divisão sexual do trabalho que determina espaços
diferentes para homens e mulheres, são desenhados para atender ao homem
agricultor, o responsável pela produção familiar. Tal realidade torna-se mais
evidente quando a política é dirigida ao crédito, pois falar da participação da
mulher em programas que impliquem em investimentos, significa falar de
dinheiro, instrumento simbólico vinculado ao espaço público, sacramentado
pela ideologia patriarcal como lugar dos homens.
A criação de uma linha de crédito agrícola específica para as
mulheres agricultoras familiares, criada pelo Governo Federal dentro do
Pronaf, significa o reconhecimento de que as atividades agrícolas realizadas
pelas mulheres são de fundamental importância para a estabilidade
econômica e o bem estar da unidade familiar de produção. Essa iniciativa
inovadora do Governo, ao mesmo tempo em que significa reconhecimento do
trabalho da mulher na agricultura familiar, possibilita a ela a oportunidade de
exercer o controle sobre sua própria vida, historicamente dirigida pelo
homem.
A realidade acerca da informação do Programa é vivida não
somente pelos agentes, mas pelas próprias agricultoras participantes do
crédito. Trata-se, portanto, de uma ineficácia no repasse de informação para
a sociedade envolvida sobre o Pronaf, bem da questão complexa que envolve
a abordagem de gênero para a efetivação da linha específica do Pronaf-
Mulher.
O acesso ao crédito pode ainda significar para mulher agricultora,
o reconhecimento social da sua capacidade de gerar renda e de contribuir
para o bem-estar da família. A confiança depositada pelos agentes
financeiros quanto à aplicação e a devolução do empréstimo, repercute na
sua auto – estima. Contribuir também para o empoderamento da mulher nas
diferentes perspectivas social, econômica e política, por exemplo também
pode consubstanciar elementos positivos à mulher, proporcionados pelo
crédito.
A inclusão das mulheres produtos familiares como agentes do
processo no crédito rural, mesmo acessando pequenos recursos como o
proporcionado pelo microcrédito, abre possibilidades para o seu
empoderamento na sociedade.
754
REFERÊNCIAS
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Disponível em: http://www.bndes.gov.br. Acesso em: 19/03/2008.
FISCHER, Izaura Rufino; MELO, Lígia Albuquerque de. A participação da
mulher agricultora no crédito do Pronaf “b” e Pronaf “mulher”. Relatório
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2009. Digitado.
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(b)
MELO, Lígia Albuquerque de. Relações de gênero na agricultura familiar:
o caso do Pronaf em Afogados da Ingazeira- Pe. Recife, 2003. Tese de
Doutorado em Sociologia, UFPE.
755
NOVA DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO: uma leitura de gênero e novas
tecnologias
Aqui é o seguinte, aqui na SEFAZ somos todos terceirizados, por meio de um plano feito
com consultoria para as empresas que virou lei que especifica os deveres necessários
para cada função. A gente tem autonomia até certo ponto... ex. programador, pra ser
765
programador ele tem que ter tal, uma escolaridade específica, 1, programador 2 ,3, 4.
Depois analista 1, 2 ,3,4 e tal; tem pessoas que estão no topo em virtude de indicação por
estar dentro daquele quesito. Então, se você quer crescer, deve buscar se atualizar, fazer
outro curso, uma pós-graduação, tem que fazer por onde. (Gerente 2).
766
767
encaixam muito no suporte, mas a gente tem uma gerente de suporte, então eu não acho
que tem que ter uma diferenciação não, tipo, esse cargo é pra um, esse é pra outro, isso
depende da competência e habilidade de cada um. (Gerente 1).
Aqui a gente não tem nenhuma preferência nesse sentido não. A gente vê das mulheres
alguma resistência quando é aquela parte de suporte que tem que carregar máquina,
instalar máquina, mas mesmo assim elas acabam se adaptando. (Gerente 3).
Observam-se divergências entre as falas das mulheres analistas
de sistemas e dos homens gerentes: enquanto elas acreditam em
possibilidades iguais para ambos os sexos, os gerentes enfatizam que o
trabalho na parte de suporte é diferenciado quanto à realização de atividades
exercidas por homens e por mulheres. Para Krüger (2004), os estereótipos
podem ser de duas qualidades distintas: positivos e negativos; e são
definidos como crença compartilhada coletivamente acerca de característica
psicológica, moral ou física, atribuída a um grupo humano. De acordo com
Barros (2008), a mulher ainda continua agarrada às tradições patriarcais, e
leva para o campo de trabalho uma visão estereotipada destas, vistas muitas
vezes como impossibilitadas de exercer funções até então consideradas
como masculinas.
Entre os entrevistados de modo geral, o homem tem certo poder
sob a ação tecnológica, visto que é maioria, principalmente na gerência
considerada o posto de maior poder e status da Área tecnológica da
SEFAZ/SE. Hirata considera que “o controle masculino da tecnologia
desqualifica as mulheres da mesma maneira que os técnicos e os cientistas
do capital desqualificam os operários” (HIRATA, 2002, p.198). Melhor
dizendo, o predomínio da presença masculina nos espaços de trabalho com
novas tecnologias proporciona uma maior ação tecnológica produzida por
estes. Campo caracterizado como masculino, as novas tecnologias e
Engenharias, em suas múltiplas manifestações como: mecânica,
eletrotécnica, eletrônica, florestal, agronomia, industrial, madeireira, civil, de
alimentos, entre outras, evidencia um perfil androcêntrico, tornando-se um
campo tradicionalmente excludente às mulheres. Essa dicotomia de gênero
pode ser observada em seus múltiplos níveis, como: pesquisa, pós-
graduação, graduação, ensino médio profissionalizante e técnico, nos cursos
tecnológicos e engenharias da UFS.
No Brasil, em se tratando de Engenharia, constata-se que apesar
das mulheres terem conquistado o direito de cursarem o ensino superior –
adquirido em 1879 – a Engenharia, enquanto área de estudo e trabalho,
demorou a entrar nas perspectivas e/ou possibilidades profissionais das
mulheres. Para os entrevistados, a aproximação da mulher com a área
tecnologia é um processo considerado complexo, exigindo a elaboração de
políticas públicas capazes de incentivar, motivar as mulheres a entrarem em
um espaço marcadamente masculino, assim como trabalhar a questão do
preconceito e da discriminação com as mulheres despertadas pela
informática. Hoje, no mundo inteiro, já existem várias campanhas,
768
movimentos em busca da aproximação da mulher com as tecnologias de
informação e comunicação. É possível supor que a nova sociedade da
informação ainda reflete velhas estruturas de relações de poder sobre as
mulheres, apesar de já existir um alto crescimento das mulheres nas
universidades nas áreas de comunicação. Pequeno é o acesso a
organizações de poder decisório nos espaços de trabalho
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo objetivou analisar as diferenças de gênero e a
valorização de novas competências no trabalho com inovação tecnologia
voltado não só para os aspectos técnicos, mas, sobretudo, para formas de
gestão de mão-de-obra. Foram destacados alguns avanços e barreiras
encontradas para a ampliação dos direitos e da cidadania das mulheres no
setor da informática, a democratização das relações sociais mais
participativas e enriquecedoras do trabalho e enfraquecimento das relações
sociais patriarcais na instituição e na sociedade.
As transformações acarretadas pela tecnologia da informação e
da comunicação (TIC) têm criado novas oportunidades econômicas e sociais
no mundo inteiro, contudo, seu uso permanece sendo dirigido pelas relações
de poder existentes nas sociedades. Compreende-se que os padrões da
desigualdade de gênero estão sendo reproduzidos na economia da
informação (igualmente ao que ocorre em todos os âmbitos). Na situação
particular deste estudo, observa-se a existência de avanços pontuais, na área
de informática da SEFAZ/SE, em termos de igualdade gênero, indicando que
essas relações estão em lento processo de transformação sem, contudo,
romper os mecanismos que historicamente inviabilizaram a democratização
dos espaços tecnológicos. As(os) entrevistadas(os) no setor de tecnológico
apresentam tendência a naturalizar as diferenças de gênero na instituição,
com base em estereótipos que organizam as relações sociais no cotidiano do
trabalho: “As mulheres são mais comunicativas”, “as mulheres são aptas a
desenvoler serviços que exigem um maior zelo”. Em geral, os homens se
orientam por um padrão de masculinidade caracterizado por força,
disposição para a atividade física intensa, a exemplo da área de suporte,
assim como para o trabalho no setor operacional que exige muita lógica, a
exemplo dos programadores. Os homens apresentam certa aversão às
tarefas que envolvam o trabalho com documentos, que exige uma maior
racionalidade, interpretação e paciência, consideradas mais destinadas às
mulheres.
As competências são valorizadas constantemente no processo
de qualificação dos trabalhadores desta área, visto que as tecnologias estão
sempre em processo de transformação, e as mulheres frequentemente ficam
à margem deste processo, às vezes pelas barreiras familiares associadas
aos papéis reprodutivas. A igualdade entre homens e mulheres e a
autonomia das mulheres figuram entre os Objetivos de Desenvolvimento da
Organização das Nações Unidas Para o Milênio, que estabelecem objetivos
específicos claramente definidos em matéria de educação. A ONU adverte
769
sobre a necessidade de reforçar as possibilidades de se conseguir a
igualdade dos gêneros, o empoderamento econômico, político e social das
mulheres no contexto de uma utilização mais generalizada das TIC, incluindo
as infra-estruturas, embora reconhecendo que as mulheres são já
importantes consumidoras.
770
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772
MULHER E POLÍTICAS PÚBLICAS DE DESENVOLVIMENTO: a divisão
sexual do trabalho no arranjo produtivo local de confecções em Toritama
1
NUPEM – DCD - UFRPE – rosipereiraa211@yahoo.com.br
2
NUPEM – DCD- UFRPE - lsduquearrazola@uol.com.br
773
apresentam como estratégias hegemônicas, na medida em que dão
respostas a um conjunto de necessidades das classes e setores sociais
subalternos. Mas também, estão referendadas pela legislação e pelos
direitos sociais conquistados pelas classes subalternas. Contudo, as políticas
públicas, são de responsabilidade do Estado. Este as financia, planeja e
executa, com o aval e controle da sociedade (DUQUE-ARRAZOLA, 2004).
Entretanto, durante a década de 1990, fase em que o Brasil
priorizou a superação da crise econômica e o alavancamento do crescimento,
sob influência das mudanças em curso no cenário mundial, as políticas
neoliberais implantadas, reduziram a presença do Estado nas empresas
estatais, as que passaram a ser assumidas pela iniciativa privada. Aliado as
políticas neoliberais, o processo de globalização da economia e de liberação
dos mercados induziu a reestruturação das empresas. Das quais, passou a
exigir-se o aumento da eficiência, da produtividade, da modernização das
máquinas e incorporação de novas tecnologias, implantação de novos
processos de produção, melhoria da qualidade dos produtos, diminuição dos
custos, redução dos preços, atenção ao consumidor (BRUM, 2005).
Simultaneamente, esses novos processos agravaram as
condições de reprodução da força de trabalho masculina e feminina,
sobretudo por conta do uso intensivo de tecnologias que desempregaram
grande contingente de mão-de-obra. Surge então o chamado desemprego e
pobreza estrutural acrescida da concentração de renda e do retrocesso do
modelo de proteção social (CARVALHO, 2001). No bojo desse processo o
programa de apoio aos Arranjos Produtivos se apresenta como uma medida
anticrise de política pública com foco no desenvolvimento local.
De acordo com Clélio Diniz (2007), o modelo de dinamização dos
APLs, diferente dos modelos de desenvolvimento já experimentados no
Brasil, caracterizados como exógenos, parte do princípio do desenvolvimento
endógeno, ou seja, a partir da localidade. Considera também a existência de
uma atividade econômica especializada em determinada região geográfica,
onde exista uma rede de inter-relação entre os fatores econômicos, sociais e
institucionais. No caso de Toritama, a atividade endógena corresponde à
confecção e beneficiamento do jeans, se considerada que essas atividades
são anteriores a atuação governamental e das instituições no local.
DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO E INDÚSTRIA DE CONFECÇÕES.
No início do desenvolvimento do capitalismo, a principal força
produtiva eram os/as operários/as, cuja produção dependia de suas
habilidades. Porém, com o advento das máquinas as diversas operações
executadas por uma única pessoa começaram a ser separadas (divisão
técnica do trabalho). Cada máquina passou a fazer apenas parte do trabalho,
e, em decorrência os/as operários/as foram separados/as, classificados/a e
reunidos/a na produção de acordo com sua capacidade de adaptação à
máquina (CEDAC, 1982). Hoje, a organização da produção é baseada no
desenvolvimento do trabalho parcelado e; no desenvolvimento de um
774
sistema hierarquizado que reproduzem, também a divisão sexual do trabalho.
A dependência do processo produtivo à maquinaria tem se
agravado nas últimas décadas com o uso da tecnologia, base da
reestruturação produtiva uma das respostas à crise global do capital, que de
acordo com Géssika da Silva (2009), trouxe como conseqüência
o aumento do desemprego, sobretudo o estrutural e a redução dos postos de
trabalho. Isso induziu o surgimento de novas estratégias para a sobrevivência
e de organização do setor informal: trabalho autônomo, terceirização de mão-
de-obra, prestação de serviços; trabalhos sazonais e subemprego, que
atingem homens e mulheres. E muitos dos/as desempregados/as têm sido
reabsorvidos/as pelas atividades informais ligadas a indústria de confecções
em diferentes regiões do Brasil, a exemplo do agreste de Pernambuco.
A indústria de confecções surge durante a primeira fase da
Revolução Industrial (1750-1800), teve como conseqüência a concentração
de capital, homens, mulheres e máquinas nas fábricas. (BRUM, 2005). O
surgimento da máquina de costura nesse período vai também modificar o
trabalho em domicílio, que se converte na seção externa da fábrica.
Modalidade de trabalho que persiste ainda hoje, como uma atividade
terceirizada e descentralizada, sub-contratada nos momentos de maior
demanda. (ABREU, 1986).
No cenário atual, as indústrias de confecções são formadas em
sua maioria por empresas de pequeno porte e informais, mas que absorvem
uma grande quantidade de mão de obra (ANTERO, 2006), tanto feminina,
quanto masculina.
Todavia, nos últimos anos, diferentes estudos têm revelado, a
exemplo dos dados do DIEESE (2007) que o desemprego ligado a diferentes
setores, atinge mais mulheres chefes de família (14,9%), do que os homens
na mesma situação (11,2%). Elas (46%), mais do que eles (33,5%) têm
ocupado posições de trabalho vulneráveis. São dados como estes, dentre
outros estudos, que têm chamado a atenção das organizações
internacionais. É o caso, ressalta Vera Soares (2007), do Banco Mundial que
nos últimos anos tem recomendado políticas de combate à pobreza e do
trabalho com focalização em mulheres. Isso porque apesar das barreiras que
já foram derrubadas, a situação histórica das desigualdades e hierarquias
das relações de trabalho entre homens e mulheres, ainda reproduzem as
relações desiguais de gênero.
Joan Scott (1995) define gênero como um elemento constitutivo
das relações sociais baseada nas diferenças percebidas entre os sexos;
como uma forma primeira de significar as relações de poder. Apoiando-se
nesta autora, Graciete Santos e Cristina Buarque (2006) concebem o gênero
como um conjunto de atributos construídos social e culturalmente para
designar os “papéis sociais” que devem desempenhar homens e mulheres
como se fosse expressão de atributos naturais. Dessas históricas relações
decorre a divisão sexual do trabalho, que designa e atribui atividades e
775
responsabilidades diferentes para homens e mulheres em nome das
diferenças entre os sexos. E como tal são desigualmente hierarquizadas, a
exemplo da diferente valorização atribuída aos trabalhos reprodutivo
(feminino) e produtivo (masculino). Divisão sexual do trabalho que se
desdobra numa divisão sexual de poder.
Desse modo, apesar das mulheres terem entrado no mercado de
trabalho de forma intensa durante a Segunda Guerra Mundial, seu trabalho
apenas começa a sair da invisibilidade na década de 1970, sob influência do
movimento feminista (ÁVILA, 2007). Essa entrada e permanência da mulher
no espaço público da produção são vista com um fator de redução das
desigualdades de gênero, na medida em que valorizou a autonomia e
independência feminina e, juntamente com a redução da fecundidade e
aumento da escolaridade, conduziu a uma melhoria na qualidade de vida
dessas mulheres. Entretanto essa “simetria”, não tem ocorrido de modo
generalizado, por isso devem ser analisados os contextos nos quais
permanecem as desvantagens para as mulheres em termos de rendimentos
e da qualidade das ocupações exercidas. (GUIMARÂES, 2007).
METODOLOGIA
Os dados apresentados neste trabalho são provenientes de uma
pesquisa exploratória de caráter qualitativo e descritivo,
conforme recomenda Cecília Minayo (2007) para uma melhor apreensão dos
significados, atribuído ao trabalho por parte dos/das entrevistados/as. Desse
modo, os procedimentos metodológicos foram distribuídos e realizados em
três etapas complementares: 1) pesquisa e revisão bibliográfica; observação
in lócus em confecções, lavanderia, Feiras de Componentes Têxteis; 2)
aplicação de entrevistas semi-estruturadas a trabalhadoras/es, com faixa
etária entre 20 e 65 anos, e empresários/as das facções, fabricos e fábricas
do município de Toritama; 3) sistematização e análise dos dados.
RESULTADOS E DISCUSSÃO: a divisão sexual do trabalho no APL de
confecções em Toritama O município de Toritama está localizado no Agreste
Setentrional pernambucano a 180 km do Recife, de clima semi-árido e com
2,
uma área de aproximada de 31 Km possuía cerca de 29.900 habitantes no
ano de 2007. No passado havia sido uma fazenda de gado a margem do Rio
Capibaribe, chamada Torres. Emancipado em 1953 e de clima desfavorável
para a agricultura aliado ao pouco incentivo político ao setor primário da
produção, sua população teve a sobrevivência garantida até a década de
1970 com a fabricação manufatureira de calçados. (IBGE CIDADES, 2007).
Essa atividade entra em declínio no bojo da crise econômica brasileira do
início da década de 80, e faz a população buscar na atividade de confecção
do jeans uma nova estratégia de sobrevivência. Em função da capacidade
dessa atividade gerar grande quantidade de emprego e renda, mesmo que
em sua maioria informal. Em decorrência, este município ficou conhecido
como o lugar no Nordeste onde não existe desemprego e desencadeou um
processo de desenvolvimento no local e nas redondezas.
776
As entrevistas revelaram que as indústrias de confecções e
têxteis lavanderias de beneficiamento) em Toritama estão desde o início da
década de 1980 organizadas num processo de divisão de trabalho entre
empresas, por meio da contração e prestação de serviços complementares.
As fábricas (confecções ou lavanderias formais) e os fabricos
(pequenas empresas que atuam na informalidade) terceirizam parte, e
algumas todo o processo de produção. São as facções (micro empresas
informais responsáveis apenas por parte do processo produtivo) que prestam
serviço para as fábricas e os fabricos.
Há também uma divisão social e sexual do trabalho. Esta se fez
presente desde o surgimento das confecções e lavandeiras em Toritama. Os
homens se colocaram inicialmente como comerciantes, organizadores e
gestores dos empreendimentos, enquanto às mulheres foram locadas na
execução das costuras. Num processo de divisão hierárquica de atribuições
com base nos sexos, que também se desdobra numa relação de poder,
salientada por Joan Scott (1995), da maneira como revela a fala seguinte:
[...] Eu e meu irmão, pedimos para que ele (o patrão) cedesse um fardo de
tecido para que a gente pudesse confeccionar umas peças para nós. Ele
cedeu emprestado. Agente levou para casa, ele emprestou também os
moldes. Aí a minha mãe costurou, naquela época toda dona de casa tinha
uma máquina de costura. E levamos para feira de Santa Cruz e vendemos
as peças. Nossa tia foi o segundo funcionário da empresa (Empresário do
pólo de confecções do agreste, 2007).
Hoje, nas confecções, e principalmente nas lavanderias, o
processo de gestão continua sendo executado, em sua maioria pelos
homens. Nas lavanderias de beneficiamento em Toritama, as mulheres não
são admitidas em cargos de comando, pois os funcionários da produção,
todos homens, não aceitam ser comandados por mulheres, como revela a
fala seguinte do entrevistado.
[...] Parece que há uma resistência das pessoas, que às vezes não
toleram ser comandados por mulheres. Na lavanderia há uma restrição
quando a mulher vai comandar o homem. Numa atividade que é
eminentemente masculina... Aí você põe uma mulher para comandar,
eles ficam assim meio que ariscos. Diferente da confecção, que é uma
atividade eminentemente feminina, você põe a mulher para trabalhar e
não tem muito problema (Empresário do pólo de confecções do agreste,
2007)
A esse respeito, Helena Hirata (2002), já havia comentado da
dificuldade posta por tarefas de comando de homens por mulheres, que
podem redundar em exclusão do emprego em vez de promoção e carreira
ascendente para as mulheres. Andréa Puppim (1994) complementa que o
aumento da participação das mulheres no mercado de trabalho, não teve a
ressonância na mesma proporção na esfera dos cargos de topo das
empresas brasileiras.
777
Já na linha de produção, atualmente, o Arranjo Produtivo de
Confecção em Toritama, é integrado por trabalhadores e trabalhadoras,
apesar de historicamente a atividade de confecções estar associada ao
trabalho feminino. Enquanto tais atividades eram características do ambiente
doméstico, sem remuneração e sem fins lucrativos para as mulheres, era
uma atividade apenas feminina, fato que se modificou quando essas tarefas
passaram a ter valor de troca no mercado e gerar renda, atraindo para si a
mão de obra masculina, desempregada e precarizada.
Essa entrada masculina, além de valorizar a atividade laboral,
tem uma relação direta com o processo de reestruturação produtiva ocorrida
nos últimos vinte anos. Fase em que, segundo Iracema Guimarães (2007),
houve um deslocamento da população economicamente ativa-PEA do setor
industrial para o setor terciário. Onde as mulheres começaram a ser maioria e
passaram a dividir tal atividade de trabalho com os homens que,
pressionados pelo cumprimento de sua responsabilidade social como
provedor, determinada pela divisão sexual do trabalho, mas desempregados,
assumiram os desafios de seu ingresso laboral ao mundo das confecções
local, re-orientando uma nova divisão sexual do trabalho no APL de Toritama.
A divisão do trabalho com base nos sexos, hoje em Toritama,
favorece o sistema capitalista e o aumento da lucratividade. O capitalista usa
as características tidas como feminina e como masculina segundo uma
ideologia de gênero, adequando-as aos serviços e funcionalidade da
empresa. Os homens trabalham em serviços que requer menos detalhes de
desenho, por isso é uma atividade de maior rapidez, e, portanto, consome
menos tempo. Enquanto as mulheres usam máquinas que fazem detalhes
nas roupas que requerem mais tempo, paciência, dedicação. Esse trabalho
repetitivo esta relacionado segundo Helena Hirata (2002), com a não
qualificação profissional, com o aumento da precarização do trabalho em que
as mulheres estão inseridas.
[...] as mulheres saem melhor quando o serviço requer mais qualidade do
que força ou velocidade. E aí tem serviço tanto na confecção como na
lavanderia que não é a força ou a velocidade que vai fazer a diferença e
sim a atenção, as minúcias, os detalhes (Empresário do pólo de
confecções do agreste, 2007)
Quando surgem as lavanderias de beneficiamento em Toritama,
usando máquinas e técnicas específicas, são os homens que se inserem
nesta atividade. Isso se deve de acordo com Maria Ângela Araújo (2007), a
modernização de alguns setores em meio ao movimento de reestruturação
produtiva, que acarreta numa masculinização da força de trabalho. Essa
masculinização do trabalho nas lavanderias é justificada na fala do
entrevistado:
Porque o serviço da lavanderia é um serviço muito insalubre, muito
pesado. Trabalha com produtos químicos, tem que levantar peso. Na
verdade, as mulheres são mais inteligentes, elas não querem trabalhar
778
em lavanderia... Uma função que depende da força muscular, eu não
coloco uma mulher, porque agente sabe que a própria estrutura óssea e
muscular da mulher não dá para competir com um homem (Empresário do
pólo de confecções do agreste, 2007).
Quando as mulheres aparecem nas lavanderias de
beneficiamento do jeans no pólo de confecção do agreste de PE, são em
atividades que não precisam de mão de obra qualificada como a passadoria,
aplicação de pino, ou em atividades onde são requeridas características tidas
como femininas.
Nós fomos à primeira lavanderia que colocamos mulher para trabalhar.
Agente separou alguns serviços que eram adequados para mulher:
passadoria, aplicação de pino. Hoje dos 87 funcionários, 30 são mulheres
(Empresário do pólo de confecções do agreste, 2007).
Quanto ao procedimento de lavagem do jeans que envolve o
desgaste, o amaciamento, o tingimento, é executado pelos antigos
funcionários homens, os quais adquiriram com a experiência o conhecimento
de controle do tempo de cada operação, levando em consideração os demais
fatores de lavagem descritos por Maria Elisabeth Gervini (1995) como ação
mecânica, ação química e temperatura. Entretanto, com a automatização do
processo operacional das máquinas de lavar, estas passam a ter dosadores
automáticos com controladores de tempo e temperatura.
Esse processo de automatização se encontrava em andamento
em algumas lavanderias do pólo de confecção no final de 2007, nas quais o
emprego dos funcionários antigos encontravam-se ameaçados,
principalmente porque a mão de obra necessária passa a ser a não-
qualificada e em menor quantidade.
[...] automatizando o processo, poderia se colocar uma mulher ao invés de
um homem trabalhando nas máquinas. Automação do processo inteiro,
você põe a roupa dentro da máquina e ele começa e termina sem
intervenção do homem. Ele não precisa mais colocar água, tirar água,
colocar o vapor, tirar o vapor, programar o tempo, mandar parar a
máquina, soltar [...] Então todo o processo seria automatizado, isso
acarretaria numa necessidade de uma menor força de trabalho e uma
maior qualidade na reprodutividade das peças (Empresário do pólo de
confecções do agreste, 2007).
A automatização do processo produtivo se dá em meio à adoção de
tecnologias que segundo Inaiá Carvalho (2001), desempregam cada vez
mais a mão de obra. Trata-se de um artifício usado para aumentar a
concentração de renda, que se fortalece com o enfraquecimento das
instituições reguladoras.
Outro fator relevante encontrado durante a pesquisa foi o trabalho de
prestação de serviço de costura em domicílio, executado pelas mulheres,
cuja circunstância difere de quando o trabalho é realizado nas facções.
Nestas o espaço de trabalho é externo a moradia, ou seja, possui uma
779
aparente externalidade, num espaço destinado ou terraço ou ao quintal da
residência. Dessa forma quando se está nesse espaço da facção se está no
trabalho. No trabalho em domicílio não há diferenciação entre o espaço da
casa e do trabalho. E por a atividade de costura estar subordinada ao serviço
doméstico, a produção da trabalhadora domiciliar cai. A jornada de trabalho é
mais extensa e intensa, enquanto seus ganhos são menores, porque nela
está incluído o trabalho remunerado e o trabalho não remunerado. Além
disso, como afirma Karl Marx (1999) neste caso, a exploração do trabalho é
mais depreciativa do que nas empresas, pois falta nele o fundamento técnico
que existe nas fábricas, trata-se de uma luta travada contra a produção
mecanizada em meio à pobreza e a condições inadequadas de trabalho como
espaço, luz e ventilação.
No referente à organização do APL de Confecções, esse é um
fator que tem contribuído para o crescimento econômico de Toritama, apesar
de está marcado pelo desenvolvimento desigual, concentrador de renda,
onde os donos do conhecimento e dos meios de produção acumulam cada
vez mais capital. Enquanto a maioria dos/das trabalhadores/as assegura um
ganho, uma remuneração que supre as necessidades da reprodução e
sobrevivência da família e, até mesmo o consumo de bens domésticos.
Ilusoriamente trabalhadores/as empregados/as parecem ter acesso ao
capital, através do aumento do poder de compra, do acesso a bens
domésticos, como expressa a fala abaixo. Entretanto, esse dinheiro não
permite o acesso à educação e qualificação profissional, saúde, moradia e
transporte de qualidade, entre outras.
Minha vida mudou no aspecto financeiro. Não dependo mais de mãe e de
pai para comprar roupa, comprar o móvel da casa [...] Reformei a casa.
Ainda tem o gasto maior, que é filho. (Empregado formal de uma
confecção e informal de uma facção, 2007)
A empregabilidade é alta na cidade de Toritama, chega a absorver
toda a mão de obra do próprio município e da região circunvizinha, mas o
emprego é precário, como expressa a entrevistada.
[...] aí fora, falam que Toritama é a cidade do emprego e que rola muito
dinheiro, né? Realmente tem emprego. Para quem tem coragem de
trabalhar, tem emprego de toda qualidade: serviços gerais, costureira.
Agora, tem uma coisa, o dinheiro rola aqui, mas no bolso dos ricos, porque
dos pobres, não rola não. Porque o dinheiro que nós ganha trabalhando,
só dá para nós sobreviver (Empregada de uma facção, 2007).
Existe uma insatisfação em relação à educação oferecida pela
rede pública em Toritama. A alfabetização nem sempre ocorre em tempo real.
Muitas crianças precisam dividir seu tempo entre o trabalho nas facções e em
casa com os livros. O resultado é a evasão escolar e a opção pelo trabalho,
que lhes parece mais imediata à realidade de suas necessidades.
A maioria deixa de estudar porque começa a trabalhar cedo. Aí se
interessa mais pelo trabalho, porque está ganhando dinheiro, do que pelo
780
estudo. Só a pessoa da classe mais alta (média) é que tem mais
oportunidade e estuda (Empregada de uma facção, 2007).
A cidade também não tem opções de lazer. Tudo gira em torno do
trabalho. O transporte dentro da cidade é deficiente, não há ônibus
intermunicipal. A opção são as Toyota e o único transporte alternativo
existente dentro do município são as moto-táxi. Também não há uma
estrutura de serviço para os ônibus que trazem os/as sacoleiros de outros
Estados.
A região agreste é seca e tem escassez de água, como revela a
fala seguinte. E na visão empresarial a preocupação é com a necessidade de
comprar a água que a natureza não disponibiliza. Isso porque a atividade de
confecções em Toritama para atender a demanda do mercado, passou a
utilizar o serviço das lavanderias no beneficiamento do jeans. Processo que
requer muita água. Nesse contexto, percebe-se a existência de uma
disparidade entre o que a região disponibiliza naturalmente e o que precisa
para desenvolver economicamente. Todavia, o desenvolvimento local implica
desenvolvimento econômico e social com sustentabilidade, baseado, nos
territórios rurais e nos princípios da agroecologia.
[...] na lavanderia essencialmente a matéria-prima é a água. Eu gasto aqui
250-300 mil litros de água por dia, e não tem água. Cavamos um poço
artesiano, 62 metros e não deu água, somente deu pedra. E agente não
tem fornecimento da Compesa e tem que comprar água de caminhão pipa
(Empresário do pólo de confecção, 2007).
O processo de lavagem do jeans é uma atividade poluidora dos
rios e riachos, compromete todo o ecossistema e a vida da população. Porém,
trata-se de uma situação que pode ser minimizada com o uso de tecnologia
que trate a água antes da mesma ser expelida para o meio ambiente.
Tecnologia que possibilita também a reutilização de uma parcela da água
tratada no processo de produção. Segundo dados obtidos através de
entrevistas, desde 2003 todas as lavanderias são obrigadas a ter uma
estação de afluente por determinação do Ministério Público em conjunto com
a prefeitura, Vigilância Sanitária e Corpo de Bombeiro. E só recebem alvará
de liberação de operação, as lavanderias que se encontram regularizadas.
No entanto, nem todas funcionam como deveria.
Apesar da implantação de estação de afluentes, recentemente
houve uma audiência pública e foi divulgado na mídia que a maioria das
lavanderias de Toritama não tem estação de tratamento. Essa estação
encarece o preço do produto final e para se manter no mercado, muitas
lavanderias, mesmo possuindo o sistema de tratamento, não o utilizam
adequadamente, principalmente as de menor porte.
O cuidado que se deve ter com o meio ambiente no APL de
confecções em Toritama, não se restringe à água, mas envolve também a
atmosfera, o aterro sanitário. Pois, segundo Argemiro Brum (2005), a
estratégia do desenvolvimento local, busca superar a crise estabelecida
781
pelos processos capitalistas de globalização que concentrou riqueza,
restringiu a democracia, agrediu a natureza e comprometeu o meio ambiente.
Ao mesmo tempo percebemos através da fala do empresário que os
prejuízos no meio ambiente têm uma relação direta com as leis da
concorrência dos mercados:
[...] a questão atmosférica que você tem que tratar, tem que ter os
ciclones, os coletores. Tem a questão do próprio lixo, que tem que colocar
o lixo no local correto, num aterro, armazenar em sacos. Então tem toda
uma despesa ambiental que o concorrente não tem, despesa que
encarece o produto final (Empresário do pólo de confecção, 2007).
O programa APL se apresenta como um novo modelo de
desenvolvimento, que enfatiza o local. Local que deve ser pensado com a
participação de todos, empregados/as e empresários/as. Deve ainda no
âmbito do desenvolvimento local, enfatizar não só o desenvolvimento
econômico e estimular a competitividade, mas também, o desenvolvimento
social sustentável.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O discurso do Programa Organização dos Arranjos Produtivos
Locais, apresenta-se como um novo modelo de desenvolvimento endógeno,
a partir de uma atividade predominante na região. No caso de Toritama a
produção do jeans. É um programa federal, descentralizado e focalizado;
executado pelos governos estaduais. Nesse sentido, têm-se percebido um
esforço por parte deste, através de seus órgãos representativos e parceiros
em alavancar o desenvolvimento do APL de confecções no pólo do agreste.
Porém, diante da complexidade em que se encontra Toritama e de todo o
contexto mundial como a abertura dos mercados internacionais em meio a
um mundo globalizado, além da emergência de um desenvolvimento
sustentável, diante de um planeta preste a um colapso ambiental, todo esse
esforço não tem sido suficiente para garantir um desenvolvimento
sustentável do ponto de vista ambiental.
Embora a proposta de organização de APL vise aumentar a
competitividade das micros, pequenas e médias empresas, tendo como meta
o incentivo ao empreendedorismo, a diminuição da informalidade e a maior
utilização de tecnologia. Em contrapartida, temos constatado que em meio
aos processos de reestruturação produtiva local o que tem ocorrido é a
adoção de tecnologias que desempregam a mão-de-obra masculina e
feminina e intensificam o crescimento da informalidade.
Essa informalidade e a falta de qualificação profissional em
Toritama atingem trabalhadores e trabalhadoras. Porém, mais do que os
homens, as mulheres se encontram em condições ainda mais desvantajosas.
No programa APL, não há menção específica à mulher, portanto não se
constitui em uma política pública com inclusão da agenda de gênero. É um
programa criado sem considerar a histórica desigualdade de oportunidades
entre homens e mulheres em Toritama. Principalmente em relação a políticas
782
que viabilizem condições para as mulheres manterem-se no mercado de
trabalho, desde uma maior capacitação como um aparato que garanta um
lugar adequado para os/as filhos/as como creches e escolas, enquanto as
mães trabalham. Como isso não acontece, a conseqüência é o trabalho a
domicílio para as mulheres, crianças e idosas.
O trabalho a domicílio, por seu caráter exploratório, já era motivo
de preocupação por parte das organizações sindicais dos governos e da
opinião pública, no início do século XX. Hoje em Toritama parece não haver
nenhuma preocupação com a regulamentação desse tipo de trabalho, ao
contrário, ele cresce e emprega muita gente. Expande-se longe da
invisibilidade pública e faz parte de uma informalidade alimentada pelas
políticas neoliberais.
Mesmo tendo havido uma inserção masculina nas confecções e
lavanderias, como resposta ao desemprego na região, isso se soma ao fato
de tais atividades, terem passado a gerar renda. Inserção que não anulou as
relações desiguais de gênero, mas criou uma reformulação local da divisão
sexual do trabalho nos moldes do capitalismo, de tal forma que serve para
aumentar a lucratividade. Nesta nova divisão sexual do trabalho, o trabalho
exercido pelas mulheres se tornou ainda mais precário, pois os homens
passaram a fazer parte do trabalho feminino, no mundo público da produção.
Ainda mais, na área operacional, nas atividades relativas à confecção e
lavanderias, eles passaram a ocupar os postos que precisam de maior
qualificação profissional e conseqüentemente são ocupações mais bem
remuneradas. As mulheres nesse contexto, mesmo fazendo parte desse
trabalho realizado no espaço público da produção, ocupam os postos menos
qualificados e dificilmente atingem os cargos de comando.
Diante do crescimento econômico em Toritama, o que se percebe
é um acúmulo de capital com distribuição desigual de renda. Fenômeno que
tende a perpetuar-se diante da ausência de uma educação de qualidade, de
estímulos para que as crianças possam ir à escola e permaneçam nela. Além
disso, o fato de existir o trabalho infantil, revela também que o trabalho
dos/das adultos/as não é suficiente para garantir uma boa qualidade de vida.
É preciso que toda a família trabalhe para obtenção de uma renda maior.
Portanto, não podemos dizer que estamos diante de uma
situação de desenvolvimento local sustentável, porque este engloba o
acesso das pessoas ao conhecimento (técnico, qualificação profissional), à
educação, o que não está garantido a todas as pessoas em Toritama, menos
ainda para as mulheres, salvo os empregados das fábricas ou
empreendimentos de médio e grande porte. Ainda mais, o desenvolvimento
econômico se dá sem distribuição eqüitativa de renda e sacrificando o meio
ambiente.
783
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p.129-141
786
A MULHER RURAL NOS ESPAÇOS PÚBLICO E PRIVADO: INTERFACES
COM AS POLÍTICAS DE ÁGUAS
Roberta Alves dos Santos
Lígia Albuquerque de Melo
Tradicionalmente, nossa sociedade vive no modelo patriarcal
onde as mulheres se inserem no meio público sob o viés da divisão sexual do
trabalho. Partindo disso, a pesquisa se insere no estudo de gênero esteado
dentro do assunto da política pública de recursos hídricos, que é
caracterizada como espaço público em que culturalmente as mulheres não
fazem parte. A participação feminina, nesse sentido, ocorre de acordo com a
perspectiva do patriarcado defendida por Rousseau, em que a mulher é
propriedade masculina e, por isso, cabe ao homem representá-la
publicamente (citado por Fischer, 2008).
Objetivando contribuir com essa questão, a pesquisa busca analisar
a dicotomia homem/mulher/público/privado e as implicações desses
processos na inclusão das mulheres na política de água. Pretende-se com tal
iniciativa analisar a contradição de como as mulheres rurais são apontadas
como gerenciadoras ideais do uso da água na esfera do lar e de entorno são,
ao mesmo tempo, desqualificadas para a gestão desse recurso no espaço
público. Analisa-se também o posicionamento de órgãos financiadores de
programas de desenvolvimento rural quanto à inclusão das mulheres na
política de recursos hídricos.
O estudo realizado se esteia aos moldes delineados por Santos
(2002) e Fachin (2003). A pesquisa tem caráter Explicativo, base bibliográfica
e com a realização de entrevistas. Também foi sustentada em dados
secundários, com o apoio da revisão bibliográfica e documental.
No desenvolvimento da pesquisa, inicialmente, foi realizado o
levantamento bibliográfico de materiais que abordavam as temáticas de
gênero, água, público e privado nas bibliotecas da Fundação Joaquim
Nabuco - Fundaj e da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Em
seguida, realizaram-se leituras, discussões com a orientadora dos textos
selecionados e foram elaborados resenhas de acordo com a Associação
Brasileira de Normas Técnicas – ABNT.
Para melhor entender os procedimentos da administração de
água, realizou-se uma visita ao Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio
Capibaribe, em Recife, e efetuou-se entrevistas com o presidente do comitê e
a secretária executiva suplente desse órgão, que forneceram também as Atas
e a composição atual dos membros do comitê. No fechamento do trabalho,
_____________________________________________________________
1
Estudante do Curso de Serviço Social – CCSA - UFPE; Bolsista Pibic/CNPq/Fundaj.
E-mail: beta_dossantos@hotmail.com,
2
Docente/pesquisadora da Diretoria de Pesquisas Sociais da Fundação Joaquim Nabuco – Fundaj -
Coordenação Geral de Estudos Ambientais e da Amazônia.
E-mail: ligia.melo@fundaj.gov.br
787
realizou-se a análise dos dados e a sistematização dos resultados obtidos.
Verificou-se que a condição imposta às mulheres pela divisão sexual
do trabalho representa um dos entraves para que assumam o gerenciamento
da água no espaço público e que a incorporação da perspectiva de gênero na
política de recursos hídricos consiste em um desafio.
A pesquisa pode contribuir para que as mulheres sejam
reconhecidas na política pública de recursos hídricos como competentes
colaboradoras e gestoras na implementação de programas de água para o
alcance de uma política sustentável e democrática.
O CONCEITO DE GÊNERO: RELAÇÃO HOMEM E MULHER
O conceito de gênero corresponde a uma relação socialmente
construída entre homens e mulheres num sistema de hierarquia e poder que
determina práticas sociais e dita o modo de agir e pensar nas sociedades
(FARIA; NOBRE, s/d).
De acordo com a perspectiva do conceito de gênero e de sexo,
as relações são construídas de forma desigual, fundamentada na
diferenciação biológica, desconsiderando seu aspecto histórico e social. Ao
considerar as relações de gênero construídas ao longo da história, pode-se
dizer que elas se manifestam de forma diferenciada dependendo do lugar, da
cultura, da sociedade e da época (IBAMA, 2000). No Brasil, o conceito de
gênero foi incorporado pelo feminismo e pela produção acadêmica sobre
mulheres a partir dos anos de 1980 e, desde então tem sido interpretado de
formas distintas por diferentes correntes. O debate de gênero tem sido
realizado por diferentes abordagens que justificam a subordinação das
mulheres e hegemonia masculina (FISCHER, 2006).
A primeira abordagem de estudos sobre a condição das
mulheres se refere ao Patriarcado que significa poder do pai, ou seja, a
superioridade masculina na maioria das instituições da sociedade. Tendo em
vista que a nossa sociedade vive no molde patriarcal, historicamente, os
homens exercem o poder nas diversas esferas da sociedade, determinando a
conduta das categorias sociais. Entre essas formas de categorização estão,
principalmente, às mulheres (SAFFIOTI, 2002). Weber diz que o patriarcado
é a situação onde as instituições familiares e econômicas são exercidas por
apenas uma pessoa de acordo com certas regras fixadas pela sociedade
(Citado por Fischer, 2006).
Outra abordagem corresponde à divisão sexual do trabalho,
que se manifesta através de uma hierarquia de poder entre os sexos, onde o
trabalho masculino é superior ao feminino. Essa inferioridade é justificada ao
associar o trabalho da mulher fora de casa como um complemento do
trabalho no lar, reafirmando sua posição no trabalho doméstico (FISCHER,
2006).
788
As relações de gênero são sustentadas e estruturadas por uma rígida
divisão sexual de Trabalho. O papel masculino idealizado é de
responsabilidade pela subsistência econômica da família e a isso
corresponde designar o trabalho do homem na produção. A atribuição do
trabalho doméstico designa as mulheres para trabalho na reprodução: ter
filho, criá-los, cuidar da sobrevivência de todos no cotidiano (FARIA;
NOBRE, s/d, p.12).
O PÚBLICO E O PRIVADO
Tradicionalmente o terreno público, de acordo com DaMatta
(1985), é um ambiente do povo, considerado um local onde estão diversas
categorias sociais em conflito. Por isso, tendo em vista esses aspectos, cria-
se um espaço que tem um ponto de autoritário, impositivo, falho,
fundado no descaso e na linguagem da Lei que, igualando, subordina e
explora. Já no espaço privado, a casa, representa a própria sociedade com
seus múltiplos códigos e também uma fortaleza contra valores de fora, do
mundo, da rua onde se deve manter a boa ordem numa relação de harmonia
onde a disputa deve ser evitada. A mulher tem o papel de intermediária entre a
rua e a casa, onde dentro do lar ela assume a posição de comandante e, fora
do ambiente privado, o marido ou pai é quem a representa (DAMATTA, 1985).
As transformações da atual sociedade patriarcal, que submete
a mulher ao homem vem se modificando, ao longo do tempo, com a iniciativa
do movimento feminista que é importante agente na transformação da
sociedade, pois luta para que as mulheres conquistem visibilidade e
transformem certos costumes através de sua inserção na escola, no mercado
de trabalho, ou seja, por igualdade no acesso aos direitos civis, políticos e
sociais para as mulheres rurais e urbanas de todas as classes (FARIA;
NOBRE, s/d).
Quanto à área rural, segundo Fischer (2006) a mulher sempre
participou na esfera pública, porém sem visibilidade. Esse fato encontra
suporte devido à divisão sexual do trabalho ser ainda mais intensa, pois os
costumes são mais arraigados e por isso a desconstrução da desigualdade
nas relações de gênero ocorre de forma mais lenta, mesmo com a
participação das mulheres rurais no espaço produtivo na agricultura de
subsistência da família. O fato é que as atividades realizadas pelas
agricultoras no meio produtivo são computadas ao trabalho doméstico. Além
de que, historicamente, os homens são responsáveis pela produção. Assim, a
atividade agrícola da mulher é considerada apenas como uma ajuda ou
complemento ao trabalho do marido ou pai (MELO, 2006). Somado a isso,
elas não têm poder de decisão quanto à aplicação do dinheiro conseguido na
agricultura. E o que vai ser reservado ao mercado, geralmente, é negociado
pelo homem sem qualquer tipo de participação da mulher o que contribui para
789
o não reconhecimento da trabalhadora rural (ABREU E LIMA,
2006). Apesar de, segundo Abreu e Lima (2006, p.104),
[...] o trabalho da mulher no meio rural não ser reconhecido, ser
desvalorizado, encarado como humilhação e atribuído à extrema
necessidade; ter sido, geralmente, mediado pelos homens e significar, na
prática, um peso maior para a mulher, que, no dia-a-dia, passava a
enfrentar um tripla jornada de trabalho (casa, roça e produção), pôde
contribuir para seu crescimento como pessoa e sua maior inserção no
espaço público, para vivenciar outras relações, lidar com outras
realidades, viver outras experiências, capacitar-se melhor, situar-se como
integrante de uma classe social, adquirir maior autonomia, construir sua
própria identidade.
791
(BRASIL, 1997, Art. II).
A política pública de recursos hídricos destinada a região Semi-árida,
é idealizada, planejada, conduzida e efetuada a partir de uma visão de mundo
androcêntrica que tem, de modo geral, o viés masculino (FISCHER, 2008).
Tradicionalmente, a política pública de recursos hídricos, por se remeter ao
meio público, tende a ignorar a perspectiva de gênero na sua implementação
e gerenciamento (FISCHER, 2008). No entanto, de acordo com GWA (s/d,
p.1), “uma gestão efetiva, eficaz e equitativa dos recursos hídricos só é
alcançada quando mulheres e homens estão igualmente envolvidos nos
processos consultivos e também na gestão e implantação dos serviços
relacionados à água”.
Quando mulheres e homens partilham decisões na gestão da água os
resultados são: uma melhor utilização do tempo do dinheiro e dos
recursos, incluindo os recursos humanos, um grande e genuíno
envolvimento e compromisso com os usos múltiplos da água, aumento da
criatividade para conservar recursos escassos. Baixo custo, soluções
sustentáveis podem ser identificadas. Quando empoderadas, as
mulheres os usuários de água mais pobres se farão ouvir, o que é
necessário para uma gestão integrada da água” (GWA, s/d, p.1).
A gestão de recursos hídricos, de forma integrada e sustentável,
pode contribuir significativamente para a melhoria da eqüidade de gênero,
ampliando o acesso de mulheres e de homens aos serviços relacionados à
água. Isso significa o envolvimento de homens e mulheres em papéis
influentes em todos os níveis de decisões a respeito dos recursos hídricos
(GWA, 2003).
Reconhecer o papel do gênero na política de recursos hídricos
requer uma ampla base de participação e de consulta aos interessados para
que haja a gestão sustentável do recurso. Além do que, o desenvolvimento de
uma política de gestão de recursos hídricos pode ter diferentes impactos em
homens e mulheres, pois cada um utiliza-se da água de maneira diferenciada
(GWA, 2003).
Com relação ao Nordeste Semi-Árido, onde a mulher rural,
geralmente, está envolvida na questão da água, sobretudo, para o consumo
doméstico, uma análise dos aspectos do ambiente se faz necessária. “O
Semi-Árido brasileiro apresenta clima quente e seco com temperatura
elevadas com chuvas escassas e irregulares. Os solos da região são rasos,
de baixa fertilidade e a vegetação característica é a caatinga” (MELO, 2006,
p.176).
O Semi-Árido possui uma área geográfica de 982.563,3 Km²,
constituída por 1.133 municípios, população de 20.858.264 habitantes,
engloba maior parte da região Nordeste do Brasil mais parte do território dos
Estados de Minas Gerais e Espírito Santo (MELO, 2006).
De acordo com Superintendência de Desenvolvimento do
792
Nordeste – Sudene, o Semi-Árido é caracterizado pelas
precipitações médias anuais iguais ou inferiores 800 mm; Insolação
média de 2.800 h/ano; Temperaturas médias anuais 23 a 27 C; Solos,
maioria, areno-argilosos e pobres em MO; Cristalino – substrato
dominante; Limitações pluviométricas e baixa retenção dos solos; rios
temporários; Águas subterrâneas – bacias sedimentares ou cristalino
(SUDENE, s/d).
795
Fonte: Elaboração própria fundamentada nos dados da Siapreh (2002/2003).
* Número de instituições pesquisadas.
Fonte: Elaboração própria fundamentada nos dados do Comitê da Bacia Hidrográfica do Capibaribe.
798
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801
802
AS MULHERES MARISQUEIRAS: vida e trabalho nas comunidades
ribeirinhas
Vanda Maria Campos Salmeron Dantas
O interesse de conhecer o trabalho das catadoras de mariscos,
mulheres simples, que têm no seu trabalho o sustento da família, decorre da
sua relevância na linha de pesquisa que desenvolvemos, e busca identificar,
hoje, a centralidade da categoria trabalho para os diversos grupos sociais,
observados os diferentes contextos; já estudamos essa questão na rede
pública de ensino, nas escolas da educação do campo, e agora junto a
populações ribeirinhas, sob o recorte de gênero. A pesquisa analisa o
cotidiano dessas trabalhadoras invisíveis que lutam para a sobrevivência da
família.
É nesta abordagem, que a pesquisa retratará a vida das mulheres
que pescam na lama do mangue, considerando sua relação com a natureza,
seus saberes para lidar com o manguezal: a natureza presente na sua vida
como fonte de alimento, trabalho, além de retratar todo um ritual presente na
busca do marisco: os mitos, os contos, as músicas, as vestimenta e o preparo
para a mariscagem.
É na representação da relação entre mulheres e o manguezal que
investigamos os saberes que envolvem a mariscagem. Saberes que não
estão relacionados aos bancos escolares, mas sim construídos através da
relação familiar, do contato com a comunidade, observações da natureza
valorizando uma aprendizagem prática e repassada, através da oralidade, de
pai para filho, pois muitas não tiveram acesso à escola. De acordo com Morin
(2004, p.26), devemos ter em conta o valor das culturas, a sabedoria, o
saber, os modos de fazer, de conhecimentos muito sutis sobre o mundo
vegetal e animal.
Os saberes locais ligados à população tradicional envolvem a
relação entre a mulher e a natureza. Todo o trabalho da mariscagem é feito de
acordo com o movimento da noite, do dia, do tempo e das marés. A influência
dos saberes não científico é primordial para o equilíbrio entre o mangue e a
mulher marisqueira, como é chamada pela comunidade.
Portanto, a pesquisa tem como campo investigativo os povoados
de pescadores denominados Pontal, Preguiça e Terra Caída no município de
Indiaroba, Estado de Sergipe, banhados pelo Rio Real divisa com o Estado da
Bahia, cujas populações vivem da mariscagem.
A metodologia adotada é do tipo etnográfico, direcionada para
_____________________________________________________________
1
UNIT – Universidade Tiradentes – Se - Grupos De Pesquisa; Políticas Públicas, Gestão Sócio
Educacional e Formação de Professor (Gpgefop) - Vandasalmeron@Yahoo.Com.Br
803
observações, descrições, análises das atividades realizadas no cotidiano,
complementadas pela história de vida, imagens, além de pesquisa
bibliográfica, entrevistas, reuniões com os grupos. O princípio metodológico
da pesquisa parte do cotidiano e trabalho das mulheres catadoras de marisco
observando os meios utilizados para a pesca do aratu. A partir dessas
observações empíricas, analisaremos os saberes de que se valem as
mulheres para lidar com a natureza, no intuito de respeitá-la, e, ao mesmo
tempo, adquirir sucesso nas pescarias, para, dessa forma, compreender o
seguinte: como é a história de vida delas; de que modo é pensada e
executada a arte de capturar o aratu; como se dá a relação da divisão sexual
do trabalho, levando em conta as diferenças de gênero; e qual o lugar
ocupado pela mulher na divisão do trabalho no seu contexto social.
A justificativa da escolha desse objeto de estudo deve-se ao
interesse que surgiu ao trabalhar na escola da região, na qualidade de
professora de estágio do curso de Pedagogia, como também a uma pesquisa
realizada pela professora da Universidade Federal de Sergipe, Assistente
Social, Poeta e Romancista Núbia Marques na década de 80 (século XX) que
sempre procurou mostrar à sociedade e aos seus alunos da Universidade o
trabalha das mulheres, as dificuldades pelas quais passavam e o descaso
dos poderes públicos, além de divulgar a cultura da comunidade através de
seus livros. Além dos relatos dos professores e alunos sobre a vida dos pais.
Nos depoimentos dos alunos, professores abordavam que a
mariscagem é uma prática contínua entre as mulheres da comunidade, vinda
de um contexto histórico transmitido de geração a geração, através do qual
aprenderam com os pais os saberes, as técnicas, a relação com o manguezal
para usufruir do momento adequado para a pesca, destacando-se, ainda, a
falta de opção de trabalho, além dos respectivos companheiros estarem
envolvidos com o alcoolismo ou as abandonarem; estes são os fatos que as
obrigaram a pensar em novas alternativas .
Essas mulheres com déficit no nível de escolaridade têm uma
tarefa árdua no decorrer de suas vidas, devido aos fatos mencionados, que as
fazem procurar outros meios de sobrevivência, pois sexo frágil é apenas o
estereótipo inserido na sociedade capitalista implantada numa divisão social
cruel para elas que ainda lutam pelos direitos de uma vida digna.
Na pesquisa, observamos que muitas ainda moram em casa de
taipa ou palha, dormem em redes ou mesmo no chão coberto por uma esteira
e não têm acesso ao ensino formal, devido a abandonarem os estudos no
intuito de contribuir para a renda familiar. Reclamam da ida ao mangue, pois
sentem dores - o reumatismo é freqüente principalmente nas mais velhas, por
ficarem muito tempo na lama.
Assim, embasamo-nos teórica e metodologicamente a fim de
analisar e refletir sobre o cotidiano destas mulheres no seu contexto social, de
804
onde retiram seu sustento no manguezal: um complexo vivo, como fonte de
alimento, relação dos saberes que ocorrem entre a natureza e a mulher
marisqueira, pois envolve um trabalho árduo, porém o único meio para ela de
sobrevivência e a sua compreensão de que foi uma bênção de Deus ter
nascido nas localidades do manguezal.
A base teórica que fundamenta nossa posição circunscreve–se
aos estudos de Beauvoir (1980), Mead (1967), Marques (1983), Morian
(2003), Lévi-Strauss (1989).
Este estudo tem também como objetivo a denúncia, como forma
de sensibilização, de que não é apenas na zona urbana que as
mulheres sofrem preconceitos e lutam para ocupar seu espaço; na zona rural
o silêncio sobre a vida destas mulheres marisqueiras tem condições de
opressão e miséria. De acordo com Marques (1983, p. 16), “chegam à idade
madura completamente gastas, mulheres que, com a idade de 40 anos,
aparentam 60 ou mais anos. Não têm segurança nem social, nem afetiva, a
vida é de uma brutalidade total com elas”.
Dessa forma, a pesquisa deve interessar-se também pela
individualidade e como esta se adapta e dinamiza o processo social, levando
em conta, para isso, os aspectos instintivos e racionais que determinam a
relação indivíduo–sociedade e o ambiente analisado.
Neste trabalho, o objeto de estudo não é totalmente estranho,
justamente por conhecer a realidade, devido a ter acompanhado de perto,
quando Secretária de Educação do município em 2004, o contexto cultural
abordado na pesquisa de campo.
Indiaroba, palavra indígena que significa Índia Bela, situa-se na
zona geográfica do litoral Sul do Estado de Sergipe, distando 100 km de
Aracaju, foi marcada pelas disputas entre Sergipe e Bahia. Limita-se ao Norte
e ao Sul, respectivamente, pelos rios Sagüi e Real. Município de porte médio,
clima quente no verão e úmido e frio no inverno. Toda a extensão dos 32 km
do rio Real no município de Indiaroba é moldurada por belos manguezais, um
dos principais do Estado de Sergipe. Eles representam um aglomerado de
árvores e arbustos que se equilibram sobre raízes expostas e fincadas nas
águas pastosas do mar e do rio, que ali se juntam e fervilham mil formas
minúsculas de vida, dando origem a quase toda a vida do mar.
A primeira região é denominada Pontal. É um povoado de
pescadores onde vivem da pesca e da agricultura, como também do turismo
devido à proximidade com o Mangue Seco-BA, o distrito é banhado pelo rio
Real e faz divisa com a Bahia, sendo uma região rica em manguezal
constituindo uma fauna diversificada de mariscos, crustáceos e peixes. A
outra região é denominada Preguiça e vive da pesca e da agricultura, também
é banhada pelo rio Real. As duas regiões apresentam características comuns
805
em relação à pesca do aratu, porém são diferenciadas no seu relevo. Já Terra
Caída é um pequeno povoado que também vive da pesca, da agricultura e do
turismo.
Neste breve relato que apresentamos o município onde estamos
realizando a pesquisa a qual conta as histórias de vida das marisqueiras que
dali tiram seu sustento; esta apresentação se torna fundamental para
compreendermos o contexto e direcionarmos as etapas do trabalho científico,
proporcionando a percepção da complexidade que envolve os saberes
presentes nos diálogos entre os grupos de marisqueiras: a relação mulher-
natureza, mulher-trabalho, mulher – companheira, mulher-mãe.
Um contexto diversificado de saberes construído por
observações, análises e invenções, como citou Seu Clóvis, velho pescador,
“São a sobrevivência da pescaria, tem que inventar - são invenções do
marisqueiro” “Inteligência sofredora”. É nesse contexto encantador, e ao
mesmo tempo melancólico, que desenrolaremos o nicho de conhecimento e
saberes que envolvem a mulher marisqueira.
MULHER MARISQUEIRA: complexidade no papel de ser mulher
Durante muito tempo, as diferenças biológicas foram usadas para
inferiorizar a mulher. O fato das mulheres terem o corpo diferente do dos
homens foi interpretado como sinal de fraqueza física e de incompetência
intelectual. Na sociedade perpetuou-se um sistema em que a população
feminina era vista como incapaz de cuidar de si própria, de seus negócios, de
sua vida. De acordo com Beauvoir (1949, p.125), desde o feudalismo até os
nossos dias, a mulher casada é deliberadamente sacrificada à propriedade
privada.
No contexto social pesquisado, a supremacia dos homens em
relação à mulher é presente na divisão do trabalho. O homem pesca e a
mulher, além de mariscar, é responsável por ajudar o companheiro no retorno
da pescaria, cuidar da administração do lar e da educação dos
filhos. Algumas, para complementar o orçamento familiar, fazem cocadas,
moqueca de aratu para vender aos turistas e nas feiras de Indiaroba-SE e em
Estância - SE, como também catam mangaba quando está no tempo e
prestam serviços domésticos para as pessoas que têm casa de praia na
comunidade.
As mulheres apresentam tarefas múltiplas no decorrer do seu
cotidiano, as responsabilidades como organizadoras do lar, educar os filhos e
servir aos companheiros persistem nas comunidades em que estão
inseridas, assinalando que a questão cultural persiste em qualquer meio
social: tanto urbano como rural.
Nas comunidades a divisão do trabalho na pesca é
806
representativa: o trabalho de pegar o aratu é sempre da mulher, a maioria dos
homens não pesca o aratu, eles pegam o caranguejo, o siri, camarão e o
peixe. O aratu ficou determinado para as mulheres. De acordo com o
depoimento de Seu Clóvis, “Toda vida foi assim”. “Para a mulher pegar aratu é
mais fácil”. Na opinião das marisqueiras é porque o homem não tem paciência
de ficar esperando horas para que o aratu pegue a isca e tem que ser de um
por um.
Isto mostra a influência dos papéis numa cultura de dominação
masculina: Mulher tem paciência, homem não! Como aborda Mead (2003,
p.26), a padronização do comportamento dos sexos à luz do temperamento,
com as presunções culturais de que certas atitudes temperamentais são
“naturalmente” masculinas e outras “naturalmente” femininas.
Assim, determinado pela cultura dos contextos, pegar aratu é um
trabalho destinado as mulheres. É uma tarefa árdua no decorrer das suas
vidas, mas representa a luta para sobreviver. Quem determina o horário do
trabalho na pesca do aratu é a maré: é a natureza presente numa relação de
respeito e combinação. Para a pesca do aratu, é utilizada uma vara feita dos
galhos de árvores, da qual tiram todas as folhas e amarram um cordão; na
outra extremidade colocam a isca que pode ser o próprio aratu morto, um
pedaço de caju ou mesmo retalho de pano molhado de lama e
uma lata para pôr o aratu, quando eles pegam a isca. As marisqueiras agem à
maneira do bricoleur, vocábulo utilizado por Lévi-Strauss (1976, p.32) para
designar “aquele que trabalha com suas mãos, utilizando meios indiretos se
comparados com os artistas” se faz valer do material existente para criar suas
invenções e facilitar o seu trabalho. Vão de barco remando em grupo de três
ou quatro e no manguezal se separam cada uma para um canto, também vão
andando pelo manguezal.
O solo do manguezal é salino e apresenta deficiência de
oxigênio, portanto predominam os vegetais halófilos, as suas longas raízes
permitem a sustentação das árvores no solo lodoso.
Devido ao convívio frequente com o mangue, as marisqueiras
sabem identificar o tipo de solo propício para mariscar.
O mangue duro é o que não atola e o mangue mole atola e é muito ruim
para sair. Como já estou mais velha não aguento o mangue mole, pois
sinto dores na coluna e nos braços, devido ao tempo que fico nos
galhos,sentada esperando o aratu pegar a isca. É ruim para sair com a
lata cheia de aratu.
Também tem o mangue branco que tem o pico - pico é uma raiz do
mangue manso. Essa raiz tem que ter cuidado, pois se pisar inflama o pé
porque fura. Mas, mesmo assim eu só vou catar aratu descalça, já estou
acostumada e tenho cuidado para não pisar no pico – pico. Inflama fica
807
sem poder pisar. A gente esquenta a vela e pinga no lugar ou passa
doutorzinho, usa chá de canudinho, usa a planta “anador” para aliviar a
dor. ( MARIZETE, 67 anos, 2009)
A gente vive disso. A enxada e o mangue. Desde os sete anos que vivo da
pesca e quem me ensinou foi minha mãe, porque teve mais paciência do
que meu pai. A minha mãe é que pegava o aratu. (MARIA LÚCIA, 2009)
809
Ururu, uru, ururu aratu ( MARIZETE, 2009)
811
A GESTÃO SOCIAL TEM DOIS SEXOS
Luciene Assunção da Silva
Desde a publicação dos trabalhos da antropóloga norte-
americana Margareth Mead (1901 – 1978), a antropologia feminista vem
discutindo a divisão sexual do trabalho e as relações de gênero. Buscando
mostrar que essas divisões não são conseqüência de heranças biológicas,
mas de uma organização cultural, ou seja de “um sistema integrado de
padrões de comportamento apreendidos, os quais são característicos dos
membros de uma sociedade e não resultado de herança biológica” (FROST:
1976, p 04).
Mead (1962) ao apresentar a obra Sexo e Temperamento em
Três Sociedades Melanésias - Arapesh, Mundugumor e Tchambuli, da Nova
Guiné em 1935 objetiva mostrar a divisão dos papéis sexuais masculino e
feminino que organiza as sociedades a partir da diferença entre homens e
mulheres. Essa divisão não incide em uma única forma de organização social
presente em todas as sociedades, mas a partir da seleção do “arco cultural”
de possibilidades da vida humana, cada cultura escolhe comportamentos,
eliminando outros, dando a eles significados simbólicos específicos,
encontrados tanto na especificidade das instituições quanto nos
comportamentos dos grupos e indivíduos. Incorrendo na riqueza da
diversidade cultural.
A diferença sexual (sexo), segundo Mead (1962), foi à causa do
agrupamento das atitudes “sociais em relação ao temperamento em torno
dos fatores evidentes das diferenças sexuais” (p 22). Portanto, atribui-se à
fisiologia dos sexos os elementos constitutivos que são vestidos pela
“roupagem” da cultura. Assim, todas as culturas tem “de algum modo
institucionalizado os papéis dos homens e das mulheres” (p. 25).
Na divisão do trabalho, no vestuário, nas maneiras, na atividade social e
religiosa – Às vezes em alguns destes aspectos, outras vezes em todos
eles – homens e mulheres são socialmente diferenciados, e cada sexo, é
forçado a conforma-se ao papel que lhe é atribuído. (MEAD, 1962, p. 25).
822
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824
A DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO E SEUS REBATIMENTOS PARA O
ACESSO DAS MULHERES AOS DIREITOS PREVIDENCIÁRIOS
1
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio Grande
do Norte – UFRN. E-mail: amandakellyuf@hotmail.com
2
Graduanda do Curso de Serviço Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN.
E-mail: cristinadias24@yahoo.com.br
825
sociedade capitalista, não se configura como um fim em si mesmo, devido às
limitações inerentes a este sistema, mas como um meio para o alcance de
novas relações sociais e de produção, pautadas sobre as bases de uma
emancipação humana.
Discorrendo sobre as relações de gênero e patriarcado, e as
conseqüências destas relações que colocam a mulher em uma situação de
subalternidade, dominação e exploração em relação ao homem, para a
inserção desta nos espaços de trabalho. Posteriormente discorremos sobre a
divisão sexual do trabalho na contemporaneidade, inserida nos moldes da
reestruturação produtiva do capitalismo ocorrida a partir da década de 1970,
fazendo uma relação entre esta divisão sexual do trabalho e o acesso das
mulheres aos benefícios da previdência social.
Delineamos assim a pesquisa prioritariamente através de
consultas bibliográficas, documentais além da aplicação de questionários
com 14 mulheres atendidas pelo Centro de Referência Especializado da
Assistência Social - CREAS como instrumento de coleta de dados referente a
temática acima exposta, objetivando a realização de uma pesquisa empírica.
A escolha desta instituição para a realização de nossa pesquisa
em loco se deu devido ao fato de esta ser um local de atendimento a mulheres
com seus direitos violados representando assim um espaço rico para a
aplicação de nossos questionários.
BREVE RESGATE HISTÓRICO SOBRE A PREVIDÊNCIA SOCIAL
A Previdência Social na configuração que conhecemos hoje é
fruto de um processo histórico, que caminhou em consonância com as
mudanças no conceito e papel do Estado. É possível observar que com o
desenvolvimento da humanidade os indivíduos passaram a se preocupar
cada vez mais com a sua proteção contra riscos e necessidades sociais,
passando a desenvolver técnicas de proteção. No Brasil, inicialmente com a
solidariedade social, posteriormente com a incorporação desta proteção
como responsabilidade pública.
As hipóteses sobre o surgimento dos sistemas estatais de proteção social
se apóiam em relações de causalidade e, dentre elas, destaca-se a que
aponta a industrialização e a urbanização como responsáveis pela
generalização dos riscos sociais como acidentes de trabalho,
desemprego, doenças, velhice e morte, sem que as redes primárias de
proteção social, família e comunidade e associações de mútuos possam
atendê-los (ARAÚJO, 2004, p. 88).
Dessa forma, são criadas as primeiras medidas de proteção
social pública. Inicialmente como instituições voltadas para categorias
específicas que só beneficiavam algumas profissões mais influentes e
reivindicatórias à época, como as Caixas de Aposentadoria e Pensões em
1923, institucionalizadas pelo Decreto 4.682 conhecido como a Lei Eloy
Chaves, que com o passar dos anos, foi sendo expandida e passou a abarcar
outras categorias.
826
Nesse contexto, a Lei Eloy Chaves não traz diferenças
significativas quanto aos benefícios de homens e mulheres, mas também não
as exclui. As mulheres trabalhadoras passaram a ser regulamentadas pela
mesma legislação previdenciária que regia o trabalho masculino. O que não
contemplava suas especificidades, da mesma forma que não reconhecia a
opressão a que esta é submetida nos espaços de trabalho.
A previdência passou por diversas reformas, que optaram por
fundi-la aumentando o controle do Estado sobre os/as trabalhadores (as),
como a transformação de todas as caixas de aposentadorias e pensões em
institutos no período entre 1933 e 1960; e a unificação das instituições
previdenciárias em 1966 dando forma ao Instituto Nacional de Previdência
Social (INPS).
Ou fragmentá-la quando necessário, para uma forma mais eficaz
de controle de gestão. Como aconteceu em 1977 quando a base organizativa
da previdência foi descentralizada em três grandes entidades: o Instituto
Nacional de Previdência Social – INPS, o Instituto Nacional de Assistência
Médica da Previdência Social – INAMPS e o Instituto de Administração
Financeira da Previdência Social – IAPAS, melhorando segundo Araújo
(2004), o controle administrativo e permitindo uma melhor coordenação na
prestação de serviço aos usuários.
Nesse ínterim é importante perceber que a década de 1960 foi de
grande importância para as mulheres brasileiras. Tornou-se esta um período
de efervescência do movimento feminista, com grande aprofundamento de
reivindicações na década de 1970, questionando as desigualdades de
oportunidades e acesso entre homens e mulheres e o poder exercido pelos
homens em vários níveis sociais. A partir desse período e devido à
organização civil das mulheres a legislação trabalhista passou a enfatizar o
trabalho feminino e a previdência direcionou-se para a regulamentação
dessas conquistas.
Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, em um
contexto de redemocratização do estado, a previdência social passou a
integrar a seguridade social, juntamente com a saúde e assistência social. O
conceito de seguridade abrange a definição de seguro social, que limita o
acesso aos direitos a uma contribuição e a de assistência que busca a
universalização desses direitos. A previdência mais especificamente vincula-
se a uma lógica de seguro social, na qual a contribuição é que garante o
acesso.
Dessa forma, a previdência social brasileira visa a garantir
direitos elencados no artigo 201 da Constituição Federal. Exerce a cobertura
de determinados riscos e situações sociais (doença, morte, invalidez, idade
avançada, maternidade, desemprego, reclusão e necessidade de amparo à
família) aos indivíduos contribuintes e suas famílias, por meio da concessão
de benefícios e serviços, cobertos pelo Regime Geral da Previdência Social.
A previdência, nesse sentido de cobertura dos riscos sociais,
827
considerando as peculiaridades da mulher, devido a sua inserção nos espaços
públicos de trabalho e reivindicação por direitos, incluiu em seu sistema uma
legislação voltada para as suas necessidades, algumas ligadas a maternidade
e outras devido às relações construídas pela própria sociedade que relegaram
historicamente a mulher para uma situação de subalternidade e opressão, que
para uma relativa transformação necessitam ser incluídas na legislação
brasileira.
Direitos como, o salário maternidade que se tornou benefício
previdenciário em 1974, garantindo descanso remunerado antes e após o
parto, a inclusão da empregada doméstica entre os segurados obrigatórios da
previdência em 1972, a diferenciação de aposentadoria para homens e
mulheres assegurada na Constituição Federal de 1988, e as possibilidades de
contribuição como segurada facultativa, pelas donas de casa a partir de 1991 e
em 2001 com uma alíquota reduzida de 20 para 11%, nos despertam para a
regulação previdenciária da mulher considerando as suas especificidades,
regulamentando espaços de trabalho mais ocupados por mulheres, devido as
suas responsabilidades com o trabalho de reprodução social, e historicamente
com menos acesso a direitos.
Paralelo a isso, com o advento do neoliberalismo no Brasil, mais
precisamente na década de 1990, e a crise no avanço da proteção social, a
previdência passou por novas reformas que, adequando-se aos ajustes
necessários ao desenvolvimento neoliberal, visando o corte de gastos
públicos, restringiram direitos sociais conquistados.
Embora a previdência tenha incluído a mulher desde seus
primórdios e muitos direitos tenham sido conquistados ao longo da história, o
princípio da igualdade entre homens e mulheres ainda está distante de ser
aplicado ao mercado e às relações de trabalho. A divisão do trabalho utilizando
o critério do sexo se constitui uma barreira para a igualdade de acesso e
permanência na previdência.
GÊNERO E A DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO
Desenvolvendo um breve resgate histórico dessas relações, é
importante ressaltar que gênero é o termo utilizado na contemporaneidade
para se definir, discutir e questionar a construção histórica, social e cultural
dos papéis, do “ser homem” e do “ser mulher”, sendo possível perceber que,
historicamente, foi construída uma diferenciação entre esses papéis
masculinos e femininos.
Cada feminista enfatiza determinado aspecto do gênero, havendo um
campo, ainda que limitado, de consenso: o gênero é a construção social
do masculino e do feminino (SAFFIOTI, 2004, p. 45).
As mulheres, nessas relações de gênero, possuem uma posição
de subalternidade em relação aos homens que pode ser visualizada na
_____________________________________________________________
3
As disposições da Lei Eloy Chaves, regulamentavam a proteção de homens e mulheres. Foram criadas
para os empregados das estradas de ferro sem grandes distinções relativas ao gênero;
828
exclusão ou no acesso desigual a oportunidades.
Algumas feministas não se sentido contempladas apenas pelo
termo analítico gênero – que compreende também relações igualitárias –
trouxeram ainda para a pauta de discussão o conceito de Patriarcado, termo
que vem da palavra pai ou de chefe da família, no intuito de desvelar as
relações de poder e dominação do homem sobre a mulher com base material,
lhes renegando a uma interação subordinada no convívio social abrangendo
não apenas a família, mas a sociedade como um todo.
Para os estudiosos das diferenciações de gênero, a propriedade
privada fortalece e perpetua as estruturas familiares que se formam sob a
ideologia patriarcal de opressão feminina. Nela ocorre a privatização do
trabalho socialmente considerado feminino, destinando-o a realização na
esfera do lar.
Dessa forma, o capitalismo – modo de produção ao qual estamos
inseridos – mescla-se ao patriarcado, e tira proveito dele, uma vez que
destina as mulheres ao desempenho de funções importantes para a sua
manutenção.
O trabalho da mulher no interior do lar, ou seja, na esfera de
reprodução da vida social e humana, é invisibilizado no que se refere a sua
importância e desconsiderado como produtor de riquezas. Isso ocorre,
devido a este ser um trabalho que se desenvolve fora dos contornos do
mercado, que de acordo com Nobre e Farias (2003), não produz valores de
troca, portanto é um trabalho não mercantil.
No entanto, produz valor de uso, exigindo da mulher um grande
dispêndio de tempo e esforço físico para desempenhar tarefas concernentes
à alimentação, vestimenta, segurança social, cuidados, dentre outros, que
consideramos representar um esforço reprodutivo extremamente necessário
para a subsistência da sociedade capitalista.
O capitalismo possibilita também a inserção da mulher no setor
de produção de riquezas, direcionando-as prioritariamente para trabalhos
considerados de natureza feminina, ou seja, trabalhos que necessitam das
habilidades atribuídas primordialmente as mulheres, considerando seu
trabalho inferior ao do homem e com características específicas que
remontam a desigualdade de oportunidade entre os diversos trabalhos como:
a relação entre as atividades do trabalho produtivo e o trabalho de reprodução
_____________________________________________________________
4
A proposta neoliberal foi ganhando terreno no mundo a partir da década de 1970 com a crise do
capitalismo e do Estado de Bem Estar que vigorou nos países capitalistas desenvolvidos. O mundo passou
por uma profunda recessão e as idéias neoliberais ganharam terreno como uma das saídas para essa
crise, em conjunto com a reorganização da produção. No entanto, devido a muitas resistências da classe
trabalhadora organizada esta ideologia só passou a ser implementada no Brasil a partir da década de
1990, com a instauração de uma desesperança na eficácia do Estado. A ideologia neoliberal centra-se em
manter um Estado forte no controle do dinheiro, mas fraco nos gastos sociais e nas intervenções no
mercado. Traz dessa forma a exigência de diversos ajustes estruturais objetivando restringir gastos com o
social e o trabalho. Para um maior aprofundamento sobre a discussão ver Pós-neoliberalismo: As políticas
sociais e o Estado democrático, Emir Sader e Pablo Gentile (org.), 1995.
829
social.
Quem está na esfera pública tem necessidades privadas. São as
mulheres, no modelo capitalista de duas esferas dicotomizadas, as
responsáveis pela satisfação dessas necessidades. Portanto, estando ou
não no mercado de trabalho e na atividade política, as tarefas domésticas
continuam sendo, basicamente, de sua responsabilidade (Ávila, 2005, p.
76).
É importante observar que essa divisão do trabalho baseada no
sexo possui origens anteriores ao sistema capitalista, e passa a ter novas
configurações quando inserida nesse modo de produção. É um fenômeno
histórico e social, que se transforma e reestrutura de acordo com a sociedade,
o tempo o qual faz parte, e os interesses que o envolvem.
5
Ressaltamos que a busca por estes direitos na sociedade capitalista não deve se configura como um fim
em si mesmo, devido às limitações inerentes a este sistema, mas como um meio para o alcance de novas
relações sociais e de produção, pautadas sobre as bases de uma emancipação humana.
6
Utilizamos desta divisão entre público e privado por compreendermos que esta divisão auxilia no
entendimento da discussão de gênero, embora compreendamos que ela em muitos, se configura como
universal e a-histórica;
830
nós observarmos aqui, é o lado obscuro que essa flexibilização trouxe.
As mudanças geradas no interior do processo produtivo se
caracterizaram essencialmente por uma intensificação da exploração da
força de trabalho de homens e mulheres, uma vez que flexibiliza a compra e a
venda desta força de trabalho. As mutações ocorridas resultaram em uma
enorme desregulamentação dos direitos trabalhistas e previdenciários, uma
vez que estes dependem de uma relação de trabalho formal, regulamentado
pelas leis vigentes no país (com uma intensa modificação dessas relações de
assalariamento, devido a flexibilização na compra da força de trabalho).
Resultaram também em uma maior fragmentação no interior da classe
trabalhadora e na precarização e terceirização do trabalho.
Outra característica dessa reestruturação que é a substituição da
mão de obra formal pelo trabalho informal, devido a onda de desemprego
resultante do crescimento tecnológico e da diminuição de mão de obra nas
empresas, que passam a buscar cada vez menores vínculos de
trabalhadores em sua empresa.
Nesse contexto, as mulheres são as mais atingidas por essa
desregulamentação e informalização do mundo do trabalho. Na verdade, a
precariedade sempre esteve associada ao trabalho feminino. Os trabalhos
mais voltados para as mulheres historicamente sempre tiveram um caráter de
maior desvalorização e desregulamentação.
Um importante fator a destacar é que na década de 1990 e no
início dos anos 2000 aconteceu um considerável crescimento da atividade
feminina. De acordo com o IBGE, citado por Hirata (2008), as taxas de
atividade feminina aumentaram de 47% para 50,3% o que significou que mais
da metade da população feminina, estava trabalhando ou procurando
emprego em 2002.
No entanto, como citamos anteriormente, sempre direcionadas a
trabalhos mais precarizados. É válido ressaltar também que isso ocorre de
forma bipolarizada, por um lado, existe uma pequena elite de mulheres
ocupando postos extremamente qualificados e valorizados. De outro,
mulheres que ocupam postos informais, precários quanto as relações e
condições de trabalho, desvalorizados representando estas a grande
maioria.
O acirramento desta situação é fruto da reestruturação produtiva.
Onde a precarização pode ser descrita tanto em relação às novas formas de
emprego criadas, quanto em relação às condições de trabalho em função do
enfraquecimento ou perda de direitos sociais, de prevenção e de reparação
dos riscos. De acordo com Hirata (2008, p. 66) “No que tange à ocupação da
mão-de-obra brasileira na década de 1990, os dados das Pnads sinalizam
para a persistência dos já conhecidos padrões diferenciados de inserção
feminina e masculina segundo setores ou grupos de atividades econômicas.”
O principal setor responsável pela inserção da mão-de-obra
feminina na contemporaneidade é o setor de serviços, com maior
831
concentração na educação, saúde, serviços sociais, serviços domésticos e
outros serviços coletivos. Uma considerável parcela destes situados em
situações de informalidade e precariedade extrema.
De fato, nos períodos mais recentes, observou-se além do
crescimento de formas mais flexíveis de contratação de trabalho, a queda dos
níveis de geração de emprego e renda formais, o que leva as/os
trabalhadoras (es) a se refugiarem em atividades ou empregos informais,
sendo possível afirmar que, no Brasil, é significativa a presença de mulheres
nesse setor, no qual trabalham sem proteção trabalhista, sem carteira
assinada, com tempo prolongado, executando as atividades nas ruas ou a
domicílio. É um trabalho sem regulamentação e, portanto sem direitos
trabalhistas e previdenciários.
Dessa forma apreendemos que o fato da mão de obra feminina
inserir-se nos espaços de trabalho principalmente no setor de serviços, esta
participa do setor da produção capitalista prioritariamente através de uma
relação de terceirização, trabalho autônomo e precário. Apreendemos
também que devido a grande ausência de um trabalho formal, muitas
mulheres refugiam-se em trabalhos assalariados que situam-se na
ilegalidade, ou seja, sem carteira de trabalho assalariada e sem vínculo
empregatício. Esses fatores prejudicam o acesso destas aos benefícios da
previdência social.
No entanto o acesso não é o único entrave para a mulher relativo
aos direitos da previdência social. A própria legislação previdenciária quando
regulamenta o trabalho feminino, e as desigualdades deste, fruto das
construções históricas discorridas anteriormente (a divisão do trabalho
baseado no sexo), o faz sob uma perspectiva da subalternidade deste.
Devido o aprofundamento das lutas do movimento feminista e de
mulheres, muitas reivindicações destas foram abarcadas pela legislação
previdenciária, no entanto não segundo uma perspectiva da classe
trabalhadora, mas sim sob a perspectiva da ideologia dominante. Mantendo
sempre as preocupações com a manutenção dos privilégios desta classe e
com a retenção nos gastos com o social e o trabalho Consideramos como
ganhos neste âmbito a regulamentação do benefício salário maternidade que
se tornou benefício previdenciário em 1974, que prevê de 4 a 6 meses de
descanso remunerado a mulher no período de gestação e parto. Como
também a conquista da diferenciação na aposentadoria entre homens e
mulheres assegurada na Constituição Federal de 1988, no que se refere a
idade e ao tempo de serviço. A luta pela manutenção dessa diferenciação
refere-se hoje à compreensão da intensificação do trabalho da mulher
causada pela dupla jornada de trabalho desenvolvida por esta, trabalho
público e privado.
A inclusão da empregada doméstica entre os segurados
obrigatórios da previdência em 1972 é outro ganho que pode ser citado, uma
vez que de acordo com Hirata (2008), este trabalho é realizado em 90% dos
832
casos por mulheres. No entanto esta é uma segurada obrigatória diferente
das demais. É apenas em 2001 que as empregadas domésticas passam a ter
direito a receber o Fundo de Garantia Por Tempo de Serviço – FGTS e
também ter acesso ao Segura Desemprego, mas o fazem ainda apenas se o
empregador fizer a opção por esta contribuição, o que se percebe fortemente
e que na maioria dos casos isso não ocorre.
Discutindo sobre a situação das “donas de casa”
compreendemos que estas podem contribuir para a previdência desde 1991,
como seguradas facultativas, ou seja no mesmo patamar que estudantes e
desempregados. Em abril de 2007 é promulgada uma Emenda Constitucional
que regulamenta que a alíquota de contribuição passe de 20 para 11 %. Para
as “donas de casa”
Mediante o exposto apreendemos algumas formas sob as quais a
divisão sexual do trabalho na sociedade capitalista afeta o acesso e direitos
das mulheres relativo a previdência social brasileira.
Resultados da Pesquisa Empírica
No sentido de desvendar a realidade desejada, buscando a
obtenção de dados mais consubstanciais para embasar nossos
argumentos, realizamos uma pesquisa empírica objetivando desvendar
especificidades da inserção desigual da mulher nos espaços de trabalho,
fator acirrado na contemporaneidade pela reestruturação produtiva e seus
rebatimentos para o acesso destas aos benefícios da previdência Social.
Utilizamos para tanto a aplicação de questionários, formado pela combinação
de perguntas fechadas – perguntas com alternativas de respostas fixas e
preestabelecidas – e abertas – perguntas que levam ao entrevistado a
responder com frases ou orações – com um grupo de 14 mulheres atendidas
pelo Centro de Referência Especializado da Assistência Social - CREAS, no
município de Parnamirim, situado na Grande Natal, selecionadas de forma
espontânea.
Do total de mulheres entrevistadas 50% delas encontravam-se
empregadas, o que revela uma forte participação da mulher no trabalho
remunerado. A pesquisa nos revelou que 55,55 % das mulheres que
possuíam um trabalho remunerado, situavam-se no setor formal de trabalho,
assegurando dessa forma, os direitos previdenciários e do trabalho. Das
mulheres que entrevistamos possuidoras de um trabalho remunerado, 44,45
% situavam-se no setor da informalidade.
Das mulheres inseridas no mercado de trabalho formal,
percebemos que as principais funções desempenhadas por elas
_____________________________________________________________
7
Esse binômio fordismo/taylorismo é entendido como o processo de trabalho que se consolidou e perdurou
forte até meados da década de 1970. Possuía como elementos básicos a produção em massa e
homogênea; o emprego também em massa e concentrado em grandes fábricas, através do controle dos
tempos e movimentos dos operários pelo cronômetro Taylorista, com produção em série, caracterizada
pela fragmentação das funções operárias.
833
concentravam-se em torno de profissões como, professora, enfermeira,
recepcionista e vendedora de loja. Se nos detivermos nessas profissões para
análise, poderemos afirmar que consecutivamente elas são profissões que
se vinculam a atividades, que ressaltam prioritariamente (não unicamente)
qualidades femininas desenvolvidas no interior do próprio lar.
Dentre as que estavam inseridas no mercado de trabalho informal
as atividades desenvolvidas concentraram-se no trabalho doméstico e no
setor da estética (cabeleireiras). Analisa Boschetti (2006), que em 1990 o
maior índice de trabalhadores sem carteira assinada encontrava-se entre a
população com baixo rendimento, acontecendo o inverso entre os
trabalhadores com salários mais elevados.
Dessa forma é possível perceber que parte das mulheres, com
condições de vida mais pobres e trabalhos e remunerações mais precárias,
com grande necessidade de proteção social, estavam excluídas desses
direitos devido ao trabalho não ser regulamentado.
A previdência estabelece como lógica de acesso aos direitos
previdenciários à necessidade de efetivação de uma contribuição. Em nossa
pesquisa descobrimos que 71,42 % das mulheres não contribuem para a
previdência. Desse percentual, 22,22 % por estarem desempregadas, 33,33
% por serem “dona de casa”,e não possuírem renda para contribuir como
seguradas facultativas.
Na nossa pesquisa descobrimos que 71,42 % das mulheres não
contribuem para a previdência. Desse percentual, 22,22 % por estarem
desempregadas, 33,33 % por serem “dona de casa”, seu trabalho em casa
não ser considerado um trabalho economicamente ativo, e não terem
possibilidade de contribuir como seguradas facultativas. Das entrevistadas
11,11 % trabalham como autônomas, no entanto, não contribuem
individualmente para a previdência. Delas 33,33 % trabalham como
empregadas, no entanto no mercado informal (nesta situação se
concentraram 100% das empregadas domésticas entrevistadas.
Através da aplicação dos questionários, perguntamos as
mulheres entrevistadas se conheciam os benefícios concedidos pela
previdência, e descobrimos que 57,14 delas declararam conhecer alguns
benefícios, enquanto outras 42,86 % afirmaram não conhecer nenhum deles.
Dessa forma, através da realização desta pesquisa empírica,
compreendemos a importância dos direitos previdenciários para a proteção
da vida e do trabalho da mulher. A previdência, passou a abarcar direitos
conquistados pelas mulheres vinculados ao trabalho, em suas lutas por
igualdade entre os sexos, sem desconsiderar as especificidades destas.
Mesmo sob uma perspectiva utilitária ao capital esses direitos alcançam na
contemporaneidade um grande contingente de mulheres inseridas no
trabalho formal e contribuintes da previdência.
Percebemos também que a forte precarização do trabalho
feminino, seguido dos grandes níveis de informalidade e os encargos da
834
mulher com o trabalho de reprodução social, trouxe uma série de
especificidades para a inserção da mulher na previdência.
Estas especificidades propiciaram a existência de um grande
número de mulheres sem possibilidades efetivas de contribuição à
previdência e que, portanto não tem acesso à esses direitos e ainda mulheres
que desconhecem a existência e o objetivo desses benefícios.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pesquisar essa temática possibilitou-nos desvendar a posição de
subalternidade da mulher em relação ao homem, historicamente construída,
e sua desigual ocupação nos espaços de trabalho na sociedade capitalista
contemporânea, bem como os rebatimentos dessas relações para o acesso
das mulheres aos direitos previdenciários.
É importante considerar que muitas conquistas foram alcançadas
pelas mulheres referentes ao mercado de trabalho e aos benefícios da
previdência como foram citados ao longo desta pesquisa. A luta dos
movimentos de mulheres, por igualdade de inserção nos espaços públicos e
justiça nas relações de trabalho, provocou uma maior visibilidade sobre a
questão fazendo com que as reivindicações expostas fossem abarcadas pela
Lei.
No entanto, tivemos a oportunidade de constatar que, embora
muitos direitos tenham sido conquistados ao longo da história, o princípio da
igualdade ainda está distante de ser aplicado ao mercado, às relações de
trabalho entre homens e mulheres, e ao acesso à direitos. A
divisão sexual do trabalho continua se constituindo uma barreira para a
construção de relações de igualdade e autonomia para as mulheres.
No âmbito da produção e reprodução social, foi possível ainda
observar que a globalização e a reestruturação produtiva agravam ainda
mais a situação de subalternidade das trabalhadoras, implicando na perda de
direitos trabalhistas e previdenciários. Percebemos que esses dados são
agravados ainda quando existem variáveis como a classe social, a
escolaridade, o estado civil, a raça e a aparência.
Entendemos ainda que o fato dos serviços do lar serem, devido
as construções históricas, primordialmente de responsabilidade das
mulheres trazem sérias desvantagens para estas que ou não se inserem no
setor do trabalho produtivo, ou o fazem desdobrando-se entre o trabalho do
lar e o trabalho fora deste.
Consideramos que muitos avanços ainda são necessários para
uma inserção da mulher nos espaços de trabalho e de direitos de uma forma
mais igualitária, e ressaltamos que a busca por direitos em uma sociedade
capitalista possui as suas limitações características, assim este não se
_____________________________________________________________
8
Consideramos que embora muitos avanços tenham ocorrido no que se refere a divisão entre os gêneros
do trabalho privado, esta relação ainda não acontece de forma igualitária, ficando preferencialmente como
obrigação da mulher os serviços referentes a esfera da vida privada, ocasionando a intensificação do
trabalho desta.
835
configura como o fim de nossos objetivos, devido a apreensão de que as
desigualdades precisam ser eliminadas em sua essência.
Entendemos que a história continua e muitos avanços ainda
serão alcançados pelas mulheres, bem como pela sociedade no todo. Diante
do que foi exposto, permanece uma grande motivação para a continuidade
deste estudo e consciência da importância do aprofundamento das temáticas
trabalhadas. De forma o estudo aqui iniciado fornece apenas um
direcionamento para o começo desse processo.
836
REFERÊNCIAS
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837
A PARTICIPAÇÃO DA MULHER RURAL NA POLÍTICA DE RECURSOS
HÍDRICOS: a perspectiva ambiental
845
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www.udp.pt/textos/comuna4/serfem.htm. Acesso em: 07 de jan. 2008.
847
MULHERES AGENTES PENITENCIÁRIAS: breve estudo sobre a presença
feminina na área de segurança das Unidades Prisionais de São Luís.
Sheila Cristina Rocha Coelho
A presença feminina na área de segurança, seja como agente
penitenciário ou como policial militar ainda é recente, visto que ingresso nas
policias militares ocorreu a partir da década de 1970, ampliando-se no início
da década de 1980. Esta inserção feminina visava à realização de um
trabalho de policiamento preventivo, principalmente no trato com crianças,
adolescentes e mulheres autores de infração.
Entretanto, o trabalho que ora apresentamos não trata das
mulheres policias, mas, especificamente, da incorporação da mulher em
outro espaço que tem como objetivo manter a ordem e a segurança – os
Estabelecimentos Prisionais.
É importante frisar que agente penitenciário e policial militar são
carreiras diferentes. O policial militar e civil atua diretamente na segurança e
repressão do crime de toda natureza, mas igualmente são consideradas
profissões de risco.
No Brasil, segundo dados estatísticos do Sistema Integrado de
Informação Penitenciária – InfoPen, do Departamento Penitenciário Nacional
existem 1.134 estabelecimentos penais, nos quais atuam cerca de 20.000
Agentes Penitenciários dentre homens e mulheres. No Estado do Maranhão,
segundo dados da Secretaria de Segurança Cidadã, atuam 415 agentes
penitenciários em 12 instituições penais da capital e do interior, dos quais 94
são mulheres.
Este artigo faz parte da pesquisa, em andamento, sobre a
educação formal de mulheres no ambiente prisional e de reflexões acerca de
um trabalho de formação realizado com agentes penitenciários no qual pude
perceber que a presença feminina ainda é bem inferior em relação à
corporação de agentes masculinos.
Primeiramente trataremos sobre a profissão de agente
penitenciário, a origem, a legislação vigente e as dificuldades relativas ao
cumprimento das funções a ele atribuídas. Em seguida discorreremos sobre
a presença feminina na área de segurança, a partir de entrevistas realizadas
com 05 agentes penitenciárias que atuam em presídios masculinos e
femininos e das informações coletadas durante a realização de 07 encontros
de formação continuada durante o ano de 2006 com 210 agentes
penitenciários.
_____________________________________________________________
1
Mestranda em Educação – UFMA - rochascc@uol.com.br
849
Desse modo, pretende-se contribuir para as discussões sobre a
incorporação da mulher em profissões que socialmente foram ocupadas por
homens devido a estereótipos criados sobre a identidade feminina,
evidenciando como vem sendo a atuação das agentes femininas, das
expectativas em torno dessa presença em uma instituição penal, observando
as relações de gênero presentes neste espaço.
A PROFISSÃO: ser agente penitenciário/a O/a Agente Penitenciário,
segundo o artigo 76 da Lei Nº. 7.210/84 de Execução Penal - LEP integra o
quadro do pessoal penitenciário de assessoramento do estabelecimento
penal. Dentre as atribuições do/a Agente Penitenciário incluem-se atividades
práticas ou rotineiras, tais como: apoio aos técnicos e ao preso/a.
A figura do agente penitenciário aparece na LEP, mas
fundamenta-se no surgimento da prisão, como instituição destinada a exercer
o poder de punir os indivíduos que cometem delitos.
Para Foucault (1987) a prisão é menos recente do que se pensa,
e não decorre do nascimento dos códigos penais. Ela existe desde a
antiguidade, época em que a prisão tinha um caráter essencialmente de
custódia do preso, a fim de manter sua integridade física até o julgamento,
condenação e aplicação da pena de suplicio do corpo – a prisão custódia.
Mesmo antes de usar denominação e a forma – prisão já
funcionava modelos de detenção penal nos quais os indivíduos eram
repartidos e fixados espacialmente, de forma a melhor poderem ser
observados, controlados e treinados.
Então, que novidade representou o surgimento da prisão? Para
os reformadores juristas do século XVIII, a do sentido de justiça social,
imagem que a burguesia, classe dominante pretendeu instaurar .
Conforme Foucault (1987), a prisão voltou-se à correção de
apenados, quando da utilização do castelo de Bridwell para corrigir
pequenos delinqüentes, marcando, por conseguinte, a passagem da “prisão-
custódia” para a “prisão-pena”.
Essa reforma no poder de punir é explicada por Foucault (1987)
como conseqüência do processo de humanização da pena que até o fim do
século XVIII e início do século XIX centrava-se no suplício do corpo e
instaurando uma nova moral do ato de punir não mais pelo suplício do corpo,
e prevê uma outra política no poder de punir fazendo da...
punição e da repressão uma função coextensiva à sociedade não punir
menos, mas punir melhor; punir talvez com uma severidade atenuada,
mas para punir com mais universalidade e necessidade; inserir mais
profundamente ” ( Foucault, 1987, p 70).
857
REFERÊNCIAS
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influência em todas as esferas, da política à comunicação. Forbes Brasil, São
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Disponível em: <www.mj.gov.br⁄InforPen>. Acesso em 20 mar. 2009.
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<http:/_Hlt123840061/_Hlt123840061www.planalto.gov.br/ccivil/leis>.
Acesso em 20 mar. 2009.
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presença feminina na polícia do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005.
859
GT 8 – FEMINISMO E POLÍTICA
Coordenação: Profª. Drª. Mary Ferreira
Política e Feminismo no Norte e Nordeste
Mary Ferreira
Coordenadora do Grupo de Trabalho Feminismo e Política da REDOR
864
REFLEXÕES ACERCA DO PODER, DO PATRIARCADO E DA
CIDADANIA DAS MULHERES,
Ana Alice Alcantara Costa
* Uma primeira versão desse texto foi escrito durante meu estagio pos-doutoral no Instituto Universitário de
Estudios la Mujer da Universidad Autonoma de Madrid, com bolsa de estudos proporcionada pela CAPES.
Registro também meus agradecimentos ao Instituto Universitário de Investigaciones Feministas da
Universidad Complutense de Madrid pelo apoio e disponibilidade.
1
Professora Associada do Departamento de Ciência Política da UFBA, pesquisadora do Neim e atual
coordenadora do Programa de Pós-graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e
Feminismo - PPGNEIM
2
Costa. Ana Alice. O feminismo acabou? O feminismo no Brasil: Trajetórias e perspectivas para o próximo
milênio.. Bahia - Análise e Dados. Salvador: , v.7, n.2, p.30 - 35, 1997
3
“As pessoas carentes de poder são aquelas que carecem de autoridade ou poder ainda que em um
sentido de mediação, aquelas pessoas sobre as quais se exercem o poder sem que elas o exerçam; os
indivíduos carentes de poder se situam de tal modo que devem aceitar ordens e rara vez tem direito a dá-
las. A carência de poder designa também concomitantemente, uma posição na divisão de trabalho e na
posição social que deixa ás pessoas poucas oportunidades para desenvolver e usar suas capacidades.
Quem carece de poder tem pouca ou nenhuma autonomia no trabalho, dispõe de poucas oportunidades
para a criatividade e quase não utiliza critérios próprios no trabalho, não tem conhecimentos técnicos, nem
autoridade, se expressa com dificuldade especialmente em âmbitos públicos ou burocráticos, e não impõe
respeito” (YOUNG, 2000:99).
865
novos padrões estéticos e da ideologia da feminilidade. Na família seguimos
sob a tutela dos maridos, noivos, pais irmãos ou do homem mais próximo.
Enfim... seguimos subalternas.
Apesar das muitas conquistas, entre elas a igualdade formal
nas leis, seguimos excluídas do poder. Historicamente essa tem sido a
posição das mulheres, em geral temos estado do outro lado do poder, na
subalternidade, somos “pessoas carentes de poder”(2000:99). A maioria das
mulheres ainda não pode decidir sobre suas próprias vidas, não se
constituem enquanto sujeito histórico e político, não exerceram ou exercem o
poder, seguem oprimidas vivenciando as mais diversas formas de opressão.
Opressão aqui entendida na perspectiva apresentada por Iris Marion Young,
como um condicionante social que define o conceito de injustiça social.
Segundo essa autora:
“A opressão consiste em processos institucionais sistemáticos que
impedem a uma pessoa aprender e usar habilidades satisfatórias e
expansivas em meios socialmente conhecidos, ou processos sociais
institucionalizados que anulam a capacidade das pessoas para atuar e
comunicar-se com outras pessoas ou para expressar seus sentimentos e
perspectivas sobre a vida social em contextos onde outras pessoas
podem escutá-las. As condições sociais da opressão geralmente incluem
a privação de bens materiais ou sua incorreta distribuição”(2000: 68).
individual: não é por isso que o coletivo “mulheres” deixe de ser visto como
um coletivo sem-poder. Mais ainda, o não-poder, a submissão, são
considerados tradicionalmente encantos que definem a 'feminilidade' (o
poder da mulher não resulta nada erótico)” (Petit. 1996:11-12).
868
869
Hannah Arendt vai mais além nessa perspectiva ao afirmar que
4
Como exemplo dessa dinâmica do poder Galbraith se refere ao poder dos homens sobre as mulheres:
“Algo no exercício da autoridade masculina deve ser atribuído ao maior acesso do homem ao poder
condigno, a utilização pelo marido de sua maior força física para impor sua vontade a uma esposa
fisicamente mais débil e suficientemente equiescente. Ninguém duvida da eficácia freqüente do poder
compensatório na forma de vestidos, jóias, carros, hotéis, diversão e participação nas cerimônias sociais
(...). Mesmo com pouca reflexão, fica evidente que o poder masculino e a submissão feminina se
fundamentam muito mais na crença de que esta submissão pertence a uma ordem natural das coisas. Os
homens podiam amar, honrar e mimar, durante muito tempo se aceitou que as mulheres deveriam amar,
honrar e obedecer. Parte disso era fruto de uma educação especifica (...) que se ensinavam as artes
domésticas as mulheres, mas não aos homens, com a implicação de isto era relevante para uma
submissão normal a vontade masculina”. (1985:48)
5
Na perspectiva marxista, o poder só existe enquanto poder de uma classe, o individuo é mero
instrumento de uma classe e exerce o poder em nome e em função dos interesses dessa classe.
870
grupos políticos, o poder não está nunca na exterioridade, mas sim cruza os
corpos e os produz e reproduz (Foucault. 1980).
“... para Marx os problemas das mulheres são resultado de sua posição
como meros instrumentos para a reprodução e daí que virá a solução da
revolução socialista (...) A mulher é considerada somente como uma
vítima a mais, indistinguível do proletariado em geral, da perniciosa
divisão classista do trabalho. Nem a divisão sexual do trabalho, nem a
definição sexual dos papeis, propósitos , atividades etc., tinham uma
existência diferenciada para Marx, que tinha pouca ou nenhuma idéia de
que a reprodução biológica da mulher ou as funções da maternidade eram
fundamentais para a criação de uma divisão sexual do trabalho dentro da
família. Marx percebia a exploração de homens e mulheres como
derivada da mesma raiz e considerava que sua opressão podia ser
entendida nos mesmos termos estruturais. A consciência revolucionária
se limitava à compreensão da relação de classe da exploração” (1980:20).
6
Sobre a critica feminista a perspectiva marxista ver:
EISENSTEIN, Zillah (org) Patriarcado capitalista e feminismo socialista. México: Siglo Veintiuno, 1980
LARGUIA, Isabel. Contra el trabajo invisible de la mujer. In: La liberación de la mujer. Año Cero. Buenos
Aires: Granica, 1975;
WEINBAUM, Batya. El curioso noviazgo entre feminismo y socialismo. Madrid: Siglo Vientiuno, 1978;
COSTA: Ana Alice. As donas no poder. Mulher e política na Bahia. Salvador: NEIM-UFBa/Assembléia
Legislativa da Bahia.
872
mulheres. O patriarcado se constitui na base da força e da violência sexual
exercida contra as mulheres, na qual a violação é seu mecanismo principal de
domínio (1975).
7
“O trabalho, é para o marxismo, como a sexualidade é para o feminismo. São socialmente construídos
enquanto construtores, universais como atividades historicamente específicas, construídas ao mesmo
tempo de matéria e espírito. Assim como a apropriação organizada do trabalho de alguns em beneficio de
outros define uma classe (trabalhadores), a expropriação organizada da sexualidade de uns para o uso de
outros define o sexo para as mulheres. A heterossexualidade é sua estrutura: Gênero e família são suas
formas cristalizadas, papéis dos sexos são suas qualidades generalizadas para a pessoa social; a
reprodução é uma conseqüência: o controle é seu problema”(MACKINNON:1982:516)
873
divididas entre liberais, socialistas e radicais buscavam respostas para essa
questão considerada central. As liberais colocavam sua ênfase na força dos
preconceitos, na tradição cultural que persistiam em estabelecer diferentes
funções para mulheres e homens. As feministas socialistas apontavam o
sistema que se beneficiava dessa opressão, dando ênfase na exploração em
detrimento dos preconceitos sexistas, mais na estrutura social do que nos
indivíduos, mais nos benefícios materiais que o capitalismo obteria com essa
opressão. Já as feministas radicais partindo de questões ligadas à
sexualidade e à violência masculina, à reprodução, direcionavam seu foco
para o homem e não para o capital, o homem seria “... um fator relativamente
inocente da opressão capitalista” (Barrett e Phillips.2002:17).
8
“Resultou difícil incorporar o terceiro eixo da desigualdade nos modelos estruturais da sociedade,
organizados em torno dos sistemas sexo e classe; as dificuldades já de por si espinhosa de elaborar uma
analise dos 'sistemas duais' desembocaram no reconhecimento tardio de que não tinham tomado em
conta a diferença e a desvantagem étnicas” (BARRETT e FHILLIPS. 2002:18).
875
hoje pela maioria das feministas em relação ao feminismo radical dos anos
70, é a necessidade de pensá-lo integrado a estrutura sócio-econômica de
qualquer sociedade. A opressão das mulheres é fruto de uma integração de
um sistema de poder patriarcal, capitalista e racista, como diria Saffiotti, uma
espécie de simbiose dessas três estruturas. Para ela, o patriarcado é:
Esse poder dos homens se realiza nas dimensões sociais e pessoais a partir
da capacidade de dar e tirar bens, status, prestígio, valor, espaço social,
referência de sentido e até mesmo sentido a vida da maioria das mulheres. O
uso destes poderes junto com a ameaça e a chantagem, quando não a
própria violência sexual e doméstica, são recursos constantes para manter as
mulheres sob controle e garantir-lhes a obediência, são recursos políticos de
domínio patriarcal sobre as mulheres. (Lagarde:1997:71).
9
Os homens constroem as normas e elas devem cumpri-las. Constituídos em juízes, podem avaliar seus
atos, suas condutas, seus pensamentos e suas obras, estão em possibilidade de descriminá-las,
considerá-las culpáveis, castigá-las e até perdoá-las. Eles as julgam através da crítica social e pessoal,
publica e privada, e podem coagi-las através das leis, até do erotismo e do amor, a supressão dos bens ou a
violência” (LAGARDE.1997:70-71).
877
“inferioridade patriarcal”é o impedimento de auto-representação das
mulheres ou que enquanto gênero as mulheres tenham uma representação
própria. Essa representação das mulheres considerada redundante ou
desnecessária, pois elas são “... representadas simbólica, jurídica e
politicamente pelos homens, invisibilizadas em suas necessidades e na sua
condição de sujeitos sociais” Por outro lado, os homens, por sua condição de
gênero têm o poder/capacidade de auto-representar-se, de falar em nome
próprio ou da coletividade (humanidade), de reivindicar seus interesses e
necessidades legitimados como de interesse geral. Os homens falam, atuam
e decidem também em nome das mulheres, enquanto representantes
universais de ambos os gêneros, são os legítimos porta-vozes do povo, da
cidadania, da humanidade (Lagarde.1997:72-73). As mulheres
invariavelmente permanecem invisíveis.
As mulheres e o político
10
“ As ideologias sexuais se definem como sistema de crenças que explicam como e porque se diferenciam
os homens e as mulheres; sobre essa base específica de direitos, responsabilidades, restrições e
recompensas diferentes ( e inevitavelmente desiguais) para cada sexo; e justificam reações negativas ante
os inconformismos. As ideologias sexuais se baseiam praticamente sempre em princípios religiosos (Deus
disse...) e/ou concepções referentes as diferenças entre os sexos biologicamente inerentes, 'naturais'”
(SALTZMAN. 1992:44)
11
Sobre a questão da invisibilidade da mulher nas várias instancias da vida social ver entre outros:
Costa, Ana Alice. Op. Cit. 1998
SARDA, Amparo Moreno. En torno al androcentrismo en la história. Cuadernos inacabados. El
arquétipo viril protagonista de la história. Exercícios de lecturas no andocentricas. Barcelona: La
Sal. 1987;
SCOTT, Joan Wallach. El problema de la invisibilidad. In. ESCANDÓN, C.R. (org). Género e História.
México: Instituto Mora/UAM. 1992. p.38-65
878
especificidade. Unidos no público, os indivíduos criam e recriam,
mediante palavras e fatos contingentes, as leis e instituições que
estruturam a vida coletiva, regulam seus conflitos e desacordos
recorrentes e tecem as narrativas da sua história”(2001:693).
“... chamou a atenção das mulheres sobre a maneira como somos levadas
a contemplar a vida social em termos pessoais, como se tratasse de uma
questão de capacidade ou de sorte individual (...) As feministas fizeram
finca-pé em mostrar como as circunstâncias pessoais estão estruturadas
por fatores públicos, por leis sobre a violação e o aborto, pelo status de
'esposa', por políticas relativas ao cuidado das crianças, pela definição de
subsídios próprios do estado de bem estar e pela divisão sexual do
trabalho no lar e fora dele. Portanto, os problemas 'pessoais' só podem
ser resolvidos através dos meios e das ações políticas” (1996:47)
Esta separação entre a vida privada das mulheres e o mundo público dos
homens está na base do liberalismo patriarcal desde sua origem. Foi Locke
no Segundo Tratado o primeiro teórico político a fundamentar essa separação
_____________________________________________________________
10
“ As ideologias sexuais se definem como sistema de crenças que explicam como e porque se diferenciam
os homens e as mulheres; sobre essa base específica de direitos, responsabilidades, restrições e
recompensas diferentes ( e inevitavelmente desiguais) para cada sexo; e justificam reações negativas ante
os inconformismos. As ideologias sexuais se baseiam praticamente sempre em princípios religiosos (Deus
disse...) e/ou concepções referentes as diferenças entre os sexos biologicamente inerentes, 'naturais'”
(SALTZMAN. 1992:44)
11
Sobre a questão da invisibilidade da mulher nas várias instancias da vida social ver entre outros:
Costa, Ana Alice. Op. Cit. 1998
SARDA, Amparo Moreno. En torno al androcentrismo en la história. Cuadernos inacabados. El
arquétipo viril protagonista de la história. Exercícios de lecturas no andocentricas. Barcelona: La
Sal. 1987;
SCOTT, Joan Wallach. El problema de la invisibilidad. In. ESCANDÓN, C.R. (org). Género e História.
México: Instituto Mora/UAM. 1992. p.38-65
879
ao afirmar que o poder político só pode ser exercido sobre indivíduos adultos,
livre e iguais e com seu consentimento. Esse poder político não deve ser
confundido com o poder exercido pelo pai sobre os filhos na esfera privada e
familiar (Pateman.1996:34).
12
Em outra obra, YOUNG, apresenta de uma forma mais abrangente o conceito de política como “...todos
os aspectos da organização institucional, a ação publica, as práticas e os hábitos sociais, e os significados
culturais, na medida em que estão potencialmente sujeitos a avaliação e tomada de decisões coletivas.
Nesse sentido inclusivo, a política compreende, naturalmente, as iniciativas e ações do governo e o
Estado, e em principio pode também compreender regras, praticas e ações que aconteçam em qualquer
outro contexto institucional.” (2000:62)
880
processo de formação do estado nacional e a constituição dos chamados
direitos individuais e a garantia da igualdade formal. Uma igualdade que
desde seus primórdios, mesmo no campo formal, manteve as mulheres
alijadas. Segundo Pateman, a sociedade civil patriarcal esta dividida em duas
esferas, mas a história do contrato social somente trata de uma delas, a
pública, a da liberdade civil. A outra, a privada, “não é vista como
politicamente relevante” (1993:18). Para esta autora,
13
“A liberdade natural do homem consiste em estar livre de qualquer poder superior, e não sob a vontade ou
a autoridade legislativa do homem, tendo somente a lei da natureza como regra. A liberdade do homem na
sociedade não deve ficar sob qualquer outro poder legislativo senão o que se estabelece por
consentimento na comunidade, nem sob o domínio de qualquer vontade ou restrição de qualquer lei senão
o que esse poder legislativo promulgar de acordo com o crédito que lhe concedem (...) a liberdade dos
homens sob governo importa em ter regra permanente pela qual viva, comum a todos os membros dessa
sociedade e feita pelo poder legislativo nela erigido: liberdade de seguir a minha própria vontade em tudo
quanto a regra não prescreve, não ficando sujeita à vontade inconstante, incerta e arbitrária de qualquer
homem; como a liberdade de natureza consiste em não estar sob qualquer restrição que não a lei da
natureza”(LOCKE, 1979:43).
881
obstáculos ao seu envolvimento em atividades públicas e as excluí do
exercício dos direitos civis; por não disporem de ingresso financeiro próprio,
estão submetidas à vontade e às ameaças do marido; 4) a ideologia da
feminilidade é contraditória com a racionalidade do mundo político; 5) a dupla
jornada de trabalho lhes deixa com menor disponibilidade para participar da
vida política na qualidade de cidadã (Suzan James Apud Costa:1998:71-72).
883
REFERENCIA BIBLIOGRAFICA
YOUNG, Iris Marion. Teoría política. Una visíon general. In. GOODIN, Robert
E. e KLINGEMANN, Hans-Dieter.(org) Nuevo manual de Ciencia Política.
Madri: Istmo. 2001;
886
MULHERES NA POLÍTICA:
AS FILHAS HERDEIRAS E A FORÇA DO NOME DA FAMÍLIA
Gloria Rabay - Nipam / UFPB
1
Iraê Heusi de Lucena Nóbrega, nascida em 01/07/1958, casada, dois filhos, publicitária, filha do falecido
senador Humberto Lucena. Estreou na política em 1998, pelo PMDB, conquistando uma cadeira na
Assembléia Legislativa da Paraíba, com 20.622 votos. Em 2002 e 2006, conquistou 20.370 e 22.641 votos
respectivamente, reelegendo-se deputada estadual.
887
de verdadeiras dinastias políticas” (BOURDIEU, 1996b, p.30). No entanto, o
direito de ser o herdeiro não é líquido e certo para os descendentes ou
parentes próximos. O capital político e social a ser transmitido precisa ser
conquistado pelo herdeiro.
No Brasil, durante todo o período colonial e o império, existiam sérias
restrições ao direito de herança das mulheres. Mesmo no século XX, até
1962, quando foi instituído o Estatuto da Mulher Casada, Lei 4.121, vigorava o
Código Civil de 1916, que determinava que a mulher, mesmo empresária ou
trabalhadora, não podia, sem autorização do marido, aceitar ou repudiar
herança ou legado; nem exercer profissão ou aceitar mandato (CORTÊS,
2003). De maneira que, até recentemente, apenas os filhos varões herdavam
o patrimônio da família sem que se gerasse debate a respeito desse direito,
fosse patrimônio de natureza material ou não.
Com as transformações sociais ocorridas nas últimas décadas, as
mulheres passaram a disputar o direito à herança, em geral, material. Mas há
motivos para se acreditar que ainda são poucos os investimentos familiares
na preparação das mulheres para o êxito do “empreendimento de sucessão”
(BOURDIEU, 1997), no âmbito político. Assim, com raras exceções, é através
de suas próprias iniciativas que as mulheres surgem como herdeiras de
legados políticos. Uma vez que mesmo em suas famílias, em geral, não se
espera, nem se preparam as mulheres para assumirem a liderança política do
grupo, é depois de um longo processo de convivência e “treinamento”
informal que as mulheres surgem como possibilidades para os processos
eleitorais, muitas vezes enfrentando resistências internas.
Para Bourdieu (1997, p. 10), a identificação com o pai, e com o seu
“projeto”, constitui, sem dúvida, uma das condições necessárias para a boa
transmissão da herança. Desta forma, foi preciso que as transformações
sociais afetassem também a psique feminina para que as mulheres
pudessem criar mecanismos de identificação com o pai político e adquirissem
o status de herdeira.
[...] Não cheguei a participar do movimento estudantil [...] comecei mesmo a
me envolver com a política foi com meu pai, ouvindo suas conversas... no
trabalho diário, nas vindas aqui ao estado... Nunca houve divergências
entre nós. Ele sempre foi o meu mestre e meu herói. (Iraê Lucena –
deputada estadual, PB).
888
inconscientemente na sua maneira de ser, e também, explicitamente, por
ações educativas orientadas para a perpetuação da linhagem. Herdar é
substituir essas disposições imanentes, perpetuar esse conatus, aceitar
fazer-se instrumento dócil desse “projeto de reprodução” (BOURDIEU,
1997, p.09).
orienta, é uma pessoa muito experiente, e isso foi fundamental para mim,
aproveitar essas experiências. [...] E Vilma é um bom referencial, ela tinha
uma experiência administrativa na prefeitura era conhecedora de toda
problemática social e econômica, não somente da cidade, mas da região e
ela prestou uma assessoria muito competente [...] Ela é a maior influência,
e eu faço questão de dizer isto. (Olenka Maranhão – deputada estadual,
PB).
2
Nascida em 03/01/1970, foi eleita prefeita de Cacimba de Dentro - PB, aos 22 anos, em 1992. Sobrinha de
José Maranhão, ex-governador da Paraíba, reeleito em 1998, ano em que Olenka alcançou 43.738 votos,
pelo PMDB, a maior performance eleitoral, na história do estado, até então. Reelegeu-se deputada
estadual em 2002, com 33.740 votos e, em 2006, com 28.669 votos.
3
Os relatos autobiográficos referidos farão parte de uma publicação (no prelo) em co-autoria com a
professora doutora Maria Eulina Pessoa deZ Carvalho, do Centro de Educação da UFPB.
889
herdeiras” e só esse tipo de legado será analisado.
A partir de Bourdieu (2004a, pp. 190-194), podemos inferir alguns tipos,
ou espécies, de capital político para tentar uma classificação. Para o autor, o
político deve sua autoridade no campo específico à força de mobilização que
ele detém “quer a título pessoal, quer por delegação”. Desta forma, pode-se
falar em: a) capital pessoal de notável, produto da reconversão de um
capital acumulado em outros domínios, e, em particular, em profissões que,
como as profissões liberais, permitem tempo livre e supõem um certo capital
cultural, ou no caso dos advogados, um domínio profissional da eloqüência;
b) capital pessoal heróico, produto de uma ação inaugural, realizada em
situação de crise, no vazio e no silêncio deixados pelas instituições, [...] se
fundamenta e se legitima ela própria, retrospectivamente, pela confirmação
conferida pelo seu próprio sucesso [...] e c) capital delegado (de uma
autoridade política) “como o do sacerdote, do professor e, mais geralmente,
do funcionário, produto da transferência limitada e provisória (apesar de
renovável, por vezes vitaliciamente) de um capital detido e controlado pela
instituição e só por ela [...]” (BOURDIEU, 2004, p. 191).
Pinheiro (2007, p. 87), a partir da classificação de Bourdieu, adotou
outra tipologia que desagrega os tipos propostos por Bourdieu, para analisar
o tipo de capital político que as mulheres levam para a Câmara dos
Deputados, chegando, assim, a uma tipologia que abarca quatro
possibilidades de capital político: a) capital familiar – delegado das famílias
que têm tradição política; b) capital oriundo da participação em movimentos
sociais; c) capital delegado da ocupação de cargos públicos/políticos em
função de um saber técnico especializado, e d) capital convertido de outros
campos que não o político.
Mesmo utilizando as categorias criadas por Pinheiro, que têm
considerável proximidade com o que se observa nesse estudo, não é fácil
categorizar a espécie de capital político com o qual as mulheres entram no
campo. Parece que qualquer tentativa é limitante e reduz a realidade. Ainda
assim, arriscando uma redução, observa-se que a maioria (11) entre as
quinze entrevistadas acumulou capital político para a primeira candidatura
através da rede de parentesco. Entre elas, três (03) são filhas de político
influentes.
Mas, além do “capital familiar”, dez (10) das mulheres com vínculos de
parentesco com políticos também tinham “capital delegado” da ocupação de
cargos públicos. Entre as parentas, apenas Olenka Maranhão não havia
ocupado algum cargo importante antes de se lançar pela primeira vez em um
pleito eleitoral, aos vinte e dois (22) anos. Oito (08) haviam sido primeira-
dama, das quais apenas três não ocuparam cargos públicos. A respeito delas,
pode-se afirmar que a força e a influência no papel de esposa do político foi
marcante.
890
Quanto ao capital oriundo da participação em movimentos sociais ou
convertido de outros campos, que não o político, só foi encontrado em
mulheres sem vínculos familiares políticos. Três delas se referiram ao
movimento estudantil como um local de formação política, embora não tenha
sido esse espaço o imediatamente ocupado antes da primeira candidatura.
Duas se referiram ao movimento sindical, e uma, a atuação no rádio. Apenas
para duas das entrevistadas, o partido foi um local importante para a
conquista de capital político, tendo sido, nesse grupo, as únicas que se
mantiveram no mesmo partido durante toda a trajetória política.
Nascidas em famílias de nível cultural, número de membros e classes
sociais diversas, a origem familiar permite poucas conclusões a respeito da
influência da herança familiar no destino político das mulheres. Ela só é clara
nos casos de Olenka Maranhão e Iraê Lucena, ainda que nas outras
trajetórias haja “coincidência” entre as mais pobres e a ausência de legados
familiares concretos.
Pouco menos da metade (sete) das entrevistadas herdaram, de suas
famílias de origem, algum capital monetário, político e/ou sócio cultural
passível de contribuir para a construção de uma rede de contatos e
articulações facilitadoras para o sucesso eleitoral. Além disso, nem todas as
heranças procedentes das famílias de origem contribuíram diretamente para
a constituição do capital político. As mulheres herdaram um patrimônio
bastante diverso, tanto no que se refere ao seu tamanho, quanto à sua
qualidade.
Utilizando a categoria proprietário para discutir a classe social da
família de origem das políticas, vê-se que cinco mulheres, pertenciam a
famílias de proprietários (pequenas indústrias ou comércio e propriedade
rural). No entanto, a categoria, nesse estudo, não é elucidativa porque, nos
casos citados, o que era revertido em capital econômico para suas famílias,
advindo desta propriedade, parece, pelas narrativas, insignificante ou apenas
suficiente para um padrão de vida simples, em cidades de pequeno e médio
porte no interior do nordeste. Ressaltamos, no entanto o caso de Socorro
Marques que, apesar de sua mãe ser uma proprietária de terras empobrecida
no sertão paraibano era fundadora da cidade e certamente influenciou no
primeiro pleito eleitoral para a prefeitura da cidade onde Socorro Marques
iniciou sua carreira política
Entre as cinco entrevistadas que podem ser classificadas como
pertencentes à classe média (funcionários públicos, profissionais liberais,
políticos profissionais), a família de origem de três delas não possuíam
história de participação política partidária, entretanto receberam de suas
famílias incentivo e estrutura para viverem em ambiente de considerável
cultura letrada, herdando capital social e cultural, portanto, uma rede de
articulação que facilitou sua entrada na política. O legado familiar teve
891
influência política direta na carreira de apenas duas das entrevistadas, Iraê
Lucena e Olenka Maranhão, já que as duas são filhas de políticos.
Entre as seis nascidas em famílias mais humildes pode-se dizer que
não houve qualquer tipo de herança política, social ou cultural direta que
contribuísse para uma inserção política partidária, salvo se considerarmos
que as difíceis condições de vida, na infância, serviram como lastro para a
vida política. Mesmo nesta hipótese, apenas uma refere-se às condições em
que viveu como parte do processo que a fez entrar na política.
Como eu não tinha obrigação para voltar para casa, não gostava de voltar
para casa – porque casa de pobre ninguém gosta de voltar, o que meu pai
ganhava como alfaiate mal dava para a alimentação, não tinha que o fazer,
não tinha televisão, não tinha rádio, o almoço era ruim – e eu tinha muita
ânsia por leitura, passei a freqüentar assiduamente a biblioteca de
Jaguaribe (bairro de classe média baixa), minha fonte de inspiração. Foi lá
que eu peguei o hábito da leitura. E por isso eu aprendi a escrever bem [...].
Aprendi com eles (líderes do movimento estudantil) que as pessoas iam
melhorar de vida se pudessem partir para uma luta. Dessa forma, eu achei
melhor entrar numa luta do que ficar apática. (Aracilba Rocha – candidata a
deputada federal em 1998, PB).
Até no caso de uma das entrevistadas, cujo pai foi vereador de sua
cidade natal, por três vezes, e cabo eleitoral do dono do engenho onde
trabalhava, não é possível atribuir, ao legado paterno, qualquer sucesso
eleitoral, uma vez que o último mandato do pai foi em 1965, e a entrevistada
declarou que seu envolvimento na política iniciou em 1982, quando, já
casada, se envolveu na campanha do marido para prefeito da cidade de
Santa Rita-PB. Além disso, sua primeira candidatura para o executivo
municipal aconteceu em 1992, depois de ter assumido a Secretaria do Bem-
Estar Social, durante o mandato de prefeito do cônjuge. Embora aluda, com
freqüência, aos ensinamentos do pai na política, para demonstrar que seu
aprendizado teve início ainda criança “[...] Foi essa política que eu aprendi
com meu pai”, não se pode assegurar uma herança paterna concreta e
influente.
Nesse caso, consideramos que a influência do esposo e de sua família
supera e anula o legado paterno na construção de sua trajetória política. já
que o legado paterno se deu mais no âmbito do aprendizado do que em forma
de prestígio e voto, de maneira que foi o casamento com um membro de uma
família política poderosa que decidiu sua carreira parlamentar. Ou seja, foi
como esposa que se deu o percurso até o palanque e não como filha.
_____________________________________________________________
4
Maria do Socorro Marques Dantas, nascida em 19/03/1934, oito filhos, economista, ex-prefeita de Vista
Serrana (por dois mandatos de 1993 a 1996). Em 1998, conquistou uma vaga na Assembléia Legislativa,
pelo PSDB, com 13.932 votos. Em 2002, tentou a recondução, mas não obteve sucesso. Foi secretária
adjunta de Acompanhamento de Gestão no estado da Paraíba. Em 2006, foi reeleita para a Assembléia
Legislativa da Paraíba, pelo PPS.
892
A força do nome
No pensamento mágico, ou no popular, em muitas culturas, os nomes
pessoais são carregados de uma “energia” capaz de influenciar o destino e a
personalidade de seu possuidor. Offroy (2004/2005, p.120) assinala que ante
tais crenças, a atitude positivista foi de suprema ignorância e desprezo, de
maneira que o pensamento científico, em geral, vai tratar o nome e o prenome
apenas como um identificador, tal qual um número em um cadastro. No
entanto, segundo Offroy, essas idéias sobre o nome dado devem ser
pensadas como uma metáfora de certa realidade, pois,
o prenome vai inscrever o indivíduo no Livro de sua comunidade e na sua
história, vai inseri-lo na cadeia das gerações. O prenome que nos é
atribuído quando nascemos vai exprimir a posição que deveremos ocupar,
o lugar que nos é fixado pelo grupo social e familiar, o destino que é
Eu voltei (para a capital) ainda na dúvida se voltaria ou não para lá, mas eu
tive tanta pena da minha mãe, já idosa, praticamente só naquela mesma
casa onde nós nos criamos, já que todos os irmãos saíram de lá para poder
sobreviver. Porque numa cidadezinha pequena não tem como, né? Ela
tinha vergonha, porque a cidade sempre atrasadinha, sem nada, não saia
do canto. Os prefeitos, ninguém sabe o que eles faziam, que não dava nada
895
certo. Ela tinha tanto desejo de ver aquela cidadezinha crescer! No
caminho de volta, dentro do ônibus, vim escrevendo, planejando o que
deveria fazer já como prefeita. Eu pensei: 'são só quatro anos... e se a coisa
pesar demais eu passo para o vice-prefeito'. Mas eu tive muita pena da
situação do povo e vi que eu tinha o que oferecer para a cidade, pela minha
experiência, e talvez só tivesse eu com coragem de voltar pra ali. (Socorro
Marques, deputada estadual, PB,1999).
5
Humberto Lucena nasceu em João Pessoa, em 1928. Seu avô, Solon Barbosa de Lucena, foi presidente
da Paraíba em 1916 e de 1920 a 1924. No pleito de 1950, Humberto elegeu-se deputado estadual na
Paraíba, pelo Partido Social Democrático (PSD). Reeleito em 1954. Em 1958, elegeu-se deputado federal
pela mesma legenda, tendo sido reconduzido à Câmara dos Deputados por mais três vezes. Com a
extinção dos partidos políticos pelo Ato Institucional nº 2, (27-10-65) e instauração do bipartidarismo, filiou-
se ao MDB. No pleito de novembro de 1978, foi eleito senador, tornando-se Líder do MDB e da Minoria em
1979. Em 1979, na reformulação partidária, ingressou no PMDB. Faleceu em 1998, no exercício de seu
terceiro mandato de senador da República. (<http://www.senado.gov.br/comunica/museu/lucena.htm>.
Acesso em: 26/jul. 2007)
896
para construir meu espaço. Acho que esta questão de política ninguém
herda, existem grandes políticos que não conseguiram passar prestígio
para seus familiares. Então, acho que cada um deve construir seu espaço
consciente disto. [...] Não existe esta história de herança política, cada um
tem que fazer seu papel e fazer bem. Claro que ter familiares na política
influencia, influencia muito. (Olenka Maranhão).
Quando Iraê Lucena anuncia que, nas próximas eleições, “não poderá
ser 'em nome do pai'”, ou quando Olenka reluta em admitir a existência da
herança, mesmo anunciando em seu material de propaganda que é
“Maranhão até no sangue”, talvez seja porque ambas saibam que o capital
político herdado, o projeto familiar, nesse campo, não pode sobreviver com
“herdeiros sem história”. Para Bourdieu (1996, p. 27), o herdeiro sem história
é aquele que se contenta em herdar porque, dada a natureza da sua herança
e de sua inteligência, não tem nada mais a fazer do que isso ou para isso,
sendo esses os herdeiros que são herdados pela herança. Ao se disporem a
construir a própria história, as herdeiras na política herdam a herança, sem
serem simplesmente herdadas por ela.
Se os constrangimentos, por parte dos parentes, para que os filhos
varões assumam a herança do líder político familiar podem ser freqüentes e
mais reconhecidos, no que se referem às mulheres, filhas de políticos, os
constrangimentos não são tão claros. Com mais freqüência assumem uma
feição emocional, um compromisso assumido em nome do “amor” pelo outro,
ou é mesmo um desafio conquistar a legitimidade de reivindicar a herança.
Na maioria dos casos, a opção pela carreira política é narrada pelas
filhas herdeiras como uma preferência pessoal e, em geral, são apontados
motivos no âmbito da individualidade (gosto, personalidade, vocação etc.)
como responsáveis pela opção com relação à vida política, embora se
reconheça uma disposição forjada no habitus familiar.
_____________________________________________________________
6
Fundada em 1963, Desterro de Malta mudou o nome para Vista Serrana, em 1991. Situada no sertão
paraibano, tem, hoje, pouco mais de 3.000 habitantes. Disponível em
<http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/paraiba/vistaserrana.pdf> .Acesso em: 03.mar.2008.
898
Eu não fui criada para ser política, não existe isto, foi questão de decisão
pessoal. [...] Esse apoio, essa estrutura política da minha família, contou
para mim, mas existe muito mérito próprio nessa questão. Fazer política é
uma opção minha. A convivência e o envolvimento que eu tenho desde
cedo com a política fez despertar esse desejo, mas é uma opção pessoal,
como é para qualquer cidadão optar pela profissão de médico, advogado...
(Olenka Maranhão) (grifo meu).
[...] Meu pai costumava dizer que não era de fazer política em família.
Sabendo disso, mesmo assim, eu vinha cavando o meu espaço. Ele sabia
que eu me interessava muito por política e que, dos quatro filhos, era a que
mais gostava [...] Cavar o meu espaço era mostrar ao meu pai, e a todos
aqueles que o rodeavam, o meu interesse pela política – porque quem não
é visto, não é lembrado. (Iraê Lucena).
7
Localizada no agreste paraibano, na microrregião do Curimataú Oriental faz fronteira com o Rio Grande
do Norte. De acordo como o IBGE, Araruna tinha, em 2006, uma população estimada em 17. 456
habitantes. Sua área territorial é de 246 km². < http://www.ararunapb.com/site/ > . Acesso em: 2/ago.2008
899
flexibilidade às diferentes situações encontradas.” (LAHIRE, 2004, p.30).
É certo que o projeto parental pode esconder formas de
constrangimento que forçam os herdeiros a assumirem o legado familiar. Na
narrativa de Socorro Marques, realizar o desejo da mãe implicava em
renunciar certos confortos que sua posição social lhe garantia. Mas a
compaixão pela mãe fê-la “instrumento dócil” ao projeto materno. Já os
depoimentos das “herdeiras” políticas, Olenka Maranhão e Iraê Lucena,
sugerem que, de um modo geral, no caso das mulheres, as preferências
pessoais não se opõem a esses possíveis constrangimentos. As disposições
alimentadas pela influência do habitus político parental, antes de se tornarem
constrangimento, tornam-se desafios a serem vencidos.
Para elas, ao nível manifesto, as disposições criadas no ambiente
familiar não se transformaram clara e “naturalmente” em obrigações. Pelo
contrário, embora na atualidade as mulheres recebam formalmente as
mesmas oportunidades educacionais que os homens, no campo da política
elas precisam mostrar algo a mais para herdar essa herança. Iraê Lucena
teve que “cavar o espaço”, “mostrar a todos o seu interesse”. Associar a
disposição herdada ao “gosto pela política” e à opção pessoal, longe de
parecer às mulheres uma obrigação familiar, tem, para elas, sabor de
conquista.
O desejo e a realização de inclinações pessoais para a política são
expressos nos depoimentos das mulheres e, apesar das contradições nessas
trajetórias, indicam que pode haver acordo entre o exercício da subjetividade
própria e possíveis imperativos de ordem social, familiar e política, já que para
as mulheres o gosto pela política não é o “amor fati” que propõe Bourdieu
(1988, p.177), que escapa à consciência e leva o sujeito a amar seu destino
social. No entanto, não sendo obra de pura coerção, as disposições familiares
não permitem alegar seu contrário, ou seja, que seja fruto de autêntica
liberdade.
Oriundas de famílias com tradição política, a escolha pelo campo não
pode ser pensada de maneira totalmente livre das engenharias que
reproduzem as posições sociais a partir da tendência dos sujeitos a adotarem
práticas (mesmo de forma inconsciente) consoantes com seu pertencimento,
ou, como afirma Bourdieu, (1997, p.7) da tendência a “perseverar no ser, a
perpetuar a posição social que nele reside”. Mas, como é necessário que o
“herdeiro aceite herdar a herança” e todas as regras para instituir-se herdeiro,
nem todo filho/a ou esposa de político torna-se política. Como bem lembra a
deputada paraibana Francisca Motta:
Existem muitas mulheres no Nordeste que entram na política em nome da
família ou de um homem político, mas existem muitas que o marido
desaparece e acaba tudo, não fica mais nada. As que entram no lugar do
marido são porque elas já ajudavam, já participavam do processo. Nem
todas as mulheres de prefeitos continuaram o trabalho, algumas
aprenderam, outras não. (Francisca Motta,1999).
900
Referências
BARREIRA, Irlys, Imagens ritualizadas: Apresentação de mulheres em
cenários eleitorais. Fortaleza, CE: Universidade Federal do Ceará/ CNPq-
Pronex; Campinas, SP: Pontes Editores, 2008.
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902
Ativismo político e voto entre os condicionantes da carreira política
de mulheres: estudo de caso no Pará
Maria Luzia Miranda Álvares
GEPEM/IFCH/UFPA
RESUMO
A competitividade das mulheres paraenses no período de 1945 a
2002 é examinada neste texto nas duas instâncias parlamentares: a
estadual e a federal. Apresenta quatro perfis de mulheres que, de certa
forma, ajudaram a garantir o quociente eleitoral dos partidos aos quais se
filiaram, com os votos alcançados em sua trajetória de competição. O
estudo demonstra que a trajetória pessoal (política, profissional ou familiar),
com ênfase, principalmente, no ativismo político e no voto nominal, tem
peso significativo na composição das listas partidárias para a disputa
eleitoral.
Introdução
O formato e a evolução do subsistema partidário paraense podem ser
avaliados em estudos sobre dois ciclos eleitorais da história política do
Estado – 1945-1962 e 1985-1998 – emergindo disputas entre os grupos
hegemônicos que se formaram nesses períodos tomando consistência em
termos do número e da força dos partidos constituídos em nível eleitoral e
parlamentar. Nesse cenário político, o registro da presença das mulheres
paraenses é quase inexistente, o que motivou Álvares (1990; 1998) a
recompor o padrão de inserção de gênero neste desenho, tendo em vista a
necessária avaliação sobre a circulação das mulheres elegíveis na
representação parlamentar, convivendo no jogo político local desde 1945.
Neste sentido, este artigo focaliza uma revisão sobre a candidatura
das primeiras parlamentares paraenses e eleitas naqueles ciclos referidos.
Para isso, a distribuição dos dados configura quadros comparativos de
evolução do número e do percentual de candidatas e eleitas nos parlamentos
brasileiros desde 1945 E do cenário paraense, tem-se quatro perfis de
mulheres cujo percentual de votos é significativo na trajetória política aos
seus respectivos partidos. Para demonstrar essa contribuição, avalia-se a
contribuição de seus votos pessoais aos partidos pelos quais concorrem,
demonstrando-se o diferencial pelo padrão de carreira apresentado e o
incentivo à captação de votos no mercado eleitoral, com a indicação nominal
_____________________________________________________________
1
Texto extraído e reelaborado do Capítulo 4 da tese de doutorado “Mulheres na Competição Eleitoral:
Seleção de Candidaturas e o Padrão de Carreira Política no Brasil”, ago. 2004/IUPERJ, orientação de Jairo
Nicolau.
2
Tupiassu, 1962; 1969; 1974; Veiga (1999) toma como base analítica as seguintes variáveis: participação
eleitoral, fragmentação eleitoral e parlamentar, volatilidade eleitoral, tamanho dos partidos em nível
eleitoral. Tupiassu constrói o cenário das eleições estaduais evidenciando o jogo de poder entre as
lideranças do período.
903
à lista favorecendo-se, em alguns casos, do desempenho da candidata na
competição pelos votos ao partido, num demonstrativo do cálculo da força
dos votos nominais.
As mulheres paraenses em três ciclos eleitorais: fase da criação
e formação dos partidos (1945-1962)
Este ciclo representa a fase da criação e formação de partidos
nacionais, contabilizando 14 siglas partidárias. As disputas, tanto para o
executivo quanto para o legislativo, estavam polarizadas entre dois grupos
hegemônicos – o Partido Social Democrático (PSD) e a Coligação
Democrática Paraense (CDP), esta com aliança feita entre seis partidos
menores (UDN, PSP, PTB, PST, PL e PRP). Reorganizando-se nas
subseqüentes eleições majoritárias (1955 e 1960), o PSD coligou-se com o
PTB sempre que o interesse em garantir a posição eleitoral se fez necessário.
Os dados relativos às candidaturas deste período estão agregados
em gênero neutro, dificultando o levantamento do percentual de mulheres
candidatas. O número de filiados, também é uma informação não disponível.
Em vista disso, para o registro do número de mulheres eleitas, os estudos de
Álvares (2000) são esclarecedores quanto à presença feminina na
representação parlamentar paraense do período.
3
As siglas partidárias: PSD; PSP; UDN; PTB; PR; PRP; PRT; PSB; PST; PPS; PCB, até 1947, depois foi
cassado; PDC; PL.
4
Os dados das parlamentares eleitas no Pará são parte do acervo do projeto de pesquisa “Cidadania,
Participação Política e Gênero: Pará , 1932-1998”, coordenado por Álvares (de 1996 a 2000) e utilizados
em Trabalhos de Conclusão de Curso (monografias dos alunos do Curso de Ciências Sociais/UFPA) e
artigos etc.
5
Até 1962, não há registro de mulher eleita para a instância federal, o que só ocorreu somente em 1978,
conforme será visto mais tarde.
6
A Legião Feminina Magalhães Barata conforme Álvares (1990) .
7
Tabak e Toscano (1982, p. 95) apontam a criação, pelas mulheres, dos Comitês pró-candidaturas
encontrados em todos os partidos, “eram mistos ou exclusivamente femininos e cuidavam de recrutar
novas eleitoras, resolver os problemas surgidos nas juntas eleitorais, realizavam comícios, distribuíam
toda espécie de propaganda, organizavam campanhas de finanças e, sobretudo, traziam as
reivindicações dos bairros até os candidatos”. Estas tarefas são as mesmas das mulheres da Legião
Feminina Magalhães Barata, no Pará desse período.
905
avançarem em busca de um cargo eletivo. No meio do caminho, entretanto,
outras intercorrências, como o golpe de 1964, criaram instabilidade política e
fratura no assédio partidário inicial, confirmando-se, neste período, um
parlamento estadual e federal com uma presença feminina insignificante.
Candidatas e eleitas no período militar, no Pará – 1966- 1982
Com a extinção dos partidos (out.1965) e a formação do
bipartidarismo, as novas agremiações herdaram o espólio político de líderes
do quadro anterior, com a ARENA organizando suas bases entre os adeptos
da Coligação Democrática Paraense (CDP) e o Movimento Democrático
Brasileiro (MDB), agregando a maioria das lideranças do PSD.
A partir de 1974, o quadro político paraense evidencia a presença de
mulheres parlamentares eleitas à Assembléia Legislativa. Para uma idéia do
tamanho da bancada, do número e percentual de candidaturas dos partidos
paraenses, nas duas casas e, também, o lugar ocupado pelas mulheres
eleitas, a Tabela 1 é sugestiva.
_____________________________________________________________
8
Álvares (1990) recuperou a trajetória da Legião Feminina Magalhães Barata (1935-1959) e fez as ligações
entre as candidatas e o partido do Interventor, conexão vantajosa para o então PSD, cujo chefe era
Magalhães Barata, que recrutava as candidatas do magistério público estadual. Cf. também Álvares, 1999,
p. 105-135, que analisa as forças auxiliares criadas pelo PSD e pela Coligação Democrática Paraense,
envolvendo tanto as mulheres quanto os demais segmentos profissionais e estudantis da sociedade
paraense.
9
A Professora Rosa Rebelo Pereira foi indicada candidata à eleição de 1947,pelo chefe do partido,
Magalhães Barata. Seu pedido para a reeleição, não foi aceito, criando-se conflito com a sua saída do
partido ingressando no PTB. Por esse fato foi considerada traidora e seu nome enxovalhado entre os
partidários do PSD. A primeira vereadora eleita no Pará, Professora Francisca do Céu Ribeiro Souza,
também indicada por Barata como candidata do PSD, ao apresentar-se para a reeleição, não foi aceita
com alegação da indicação de outro candidato para o cargo. Cf. Álvares, 1999.
10
O estudo de Álvares (1990) identifica o formato de seleção imposto por Magalhães Barata a todos os
correligionários dele.
11
Entre as primeiras mulheres candidatas e eleitas no Pará aos cargos parlamentares do legislativo
municipal e estadual nenhuma foi identificada entre as sufragistas dos anos 1930. A liderança deste
movimento, Elmira Lima, que criou e dirigiu o Departamento Paraense pelo Progresso Feminino, em 1931,
participara de outra Liga Feminina, a “Lauro Sodré” (1912) , e em 1950 se aproxima do PSD e da campanha
eleitoral de Magalhães Barata ao governo estadual, sem, contudo, ser candidata. Os dados referentes às
Ligas partidárias, conflitos políticos do período, cf. Álvares, 1990.
906
Tabela 1. – Distribuição de candidatos pelo tamanho da bancada,
ano, cargo e sexo - Pará – 1966 a 1982
12
Cf. Tupiassu, 1969. Este trabalho é o único desenho que se tem sobre a desintegração das forças
pessedistas e baratistas do período e a formação do novo núcleo de poder no Pará centrado em Jarbas
Passarinho e nas lideranças formadas a partir de 1964, inclusive o esboço de um perfil das principais
figuras que controlaram a política no Estado, neste período.
907
votos), Terezinha Sussuarana (eleita com 7.024 votos), Angélica
Oliveira Barbosa (suplência, com 654 votos); e uma do MDB – Vera Lúcia
Albuquerque (suplência com 3.943 votos). Em 1982, sete mulheres
candidatam-se à Assembléia Legislativa: Anazilda Sequeira (PT); Jaciara
Aragão e Maria Emidia (PTB); Maria Zenaide Martins, Terezinha Sussuarana,
Maria Brito Maia e Maria de Nazaré Barbosa (PMDB). Esta última sendo eleita
para o terceiro mandato, com 33.818 votos. Para a Câmara de Deputados,
foram candidatas nesse ano: Lúcia Viveiros, agora no PDS, eleita com 69.384
votos; Ermelinda Garcia, do PT (1.238 votos) e Odete Garcia, do PTB (216
votos).
A Tabela 2 demonstra o avanço das mulheres paraenses eleitas nos
dois parlamentos, no período do bipartidarismo (ARENA e MDB) e em 1982,
quando as leis eleitorais de 1979 extinguiram este sistema e possibilitaram a
criação de cinco partidos novos – PDS, PMDB, PT, PDT e PTB.
Fonte: Dados extraídos das Atas da Assembléia Legislativa do Estado do Pará; LEEX/ IUPERJ; Álvares (1996-2000)
13
O perfil dessas mulheres será apresentado oportunamente, com mais detalhes.
908
disputa (ARENA e MDB) apresentam e elegem suas candidatas. Com
a retomada do multipartidarismo, em 1982, sete mulheres concorrem à AL,
mas somente uma é eleita: Maria de Nazaré Barbosa, agora no PMDB. Trata-
se de uma figura que já vem de outras eleições, concorrendo pela ARENA,
sendo conhecida do eleitorado. Ocorre o mesmo na CD, com a eleição de
Lucia Daltro de Viveiros, antes do MDB e em 1982, no PDS. Ambas já haviam
constituído um eleitorado próprio.
Comparativamente, o quadro brasileiro das candidaturas femininas
aos cargos parlamentares, no período de 1945 a 1982, evidenciado na Tabela
4.4, acompanha a evolução instável ocorrida no Pará.
Fonte: Tabela composta a partir de dados do TSE; do LEEX/IUPERJ, e de Nicolau (on line 2002), no agregado,
daí sendo extraído o percentual de candidatos. Para as candidatas: Toscano, 1976; Tabak & Toscano (1982);
Avelar (2002).
¹As eleições ocorreram somente no plano estadual.
² Os dados não estavam disponíveis.
³ O percentual das eleitas é igual à divisão entre o nº de eleitas/ nº de candidaturas femininas;
e o percentual de candidatas, do N de candidatas/ N de candidatos.
14
Cf. Tabak & Toscano, 1982, p. 68. Situação semelhante também ocorreu em Taiwan, conforme relato de
Bey-Ling Sha (1998). Cf. Álvares, 2004.
910
(MDB) e membros da ação militar de 1964 encabeçados por Alacid Nunes e
Jarbas Passarinho (ARENA), passam a racionalizar as adesões intragrupos
afastando o insulamento propício às derrotas para ambos. As eleições de
1982 favoreceram a presença de outros partidos formados desde as
mudanças em 1979 com o multipartidarismo formalmente implantado, em
nível eleitoral e parlamentar, conduzindo a representação da Assembléia
Legislativa e da Câmara de Deputados. O PMDB (ex-MDB) elegeu 20
deputados estaduais e 8 federais; e o PDS (ex-ARENA) 19 e 7,
respectivamente.
A avaliação da fragmentação multipartidária, nestas duas casas de
representação, no período estudado, demonstra que, apesar de muitas siglas
criadas, o partido que realmente contou no período de 1986 a 1994 e
apresentou força eleitoral e representação, tanto na Assembléia Legislativa
quanto na Câmara de Deputados, foi o PMDB (ex-MDB), embora tenha
sofrido perdas em 1990.
Diante de tal contexto e seguindo os objetivos deste estudo, cabe
perguntar: quais os partidos que ofereceram mais candidaturas femininas e
elegeram mais mulheres? Sem esta equação é difícil reconhecer o nível de
inclusão possibilitado pela política partidária no cenário paraense.
O quadro estabelecido nesse período importante da política brasileira,
quando a redemocratização e o engajamento das mulheres nos movimentos
sociais e no ativismo político é moto continuo, parece dar uma nova cor à
participação eleitoral. No caso do Pará, se expressa através do aumento
significativo de candidaturas femininas, embora não na mesma proporção
entre eleitas, como mostra a Tabela 4.
Tabela 4 – Distribuição de candidaturas e eleitos/as
Assembléia Legislativa e Câmara de Deputados - Pará –1986-1994
Fonte: T R E /PA – Dados Estatísticos. Assembléia Legislativa do Estado do Pará; LEEX; e Álvares (1996-2000) ¹O
percentual das eleitas foi extraído da divisão entre o N de eleitas pelo N de candidaturas femininas. E o percentual de
candidatas, do Nº abs. de candidatas dividido pelo N de candidatos. ² No Boletim do T R E -1990, o registro total de
candidaturas é 108. Nos dados do LEEX, o registro é de 133.
_____________________________________________________________
15
Cf. Veiga, 1999, p. 112-15.
16
A Lei nº 6767 de 20/12/1979 alterou a Lei Orgânica dos Partidos Políticos de 1971, formulando o
quadro partidário em seis novos partidos – o PMDB, o PDS, PT, PTB, PP e PDT.
911
No período mencionado, houve maior demanda das mulheres para as
cadeiras da Assembléia Legislativa e a Câmara de Deputados apresentou
baixa e instável procura. Em 1986, das 6 (10,3%) candidatas que
concorreram a uma das 17 cadeiras, nenhuma atingiu o quociente eleitoral
para eleger-se, sendo que, em 1994, três ocuparam esses assentos.
Levando em conta o número de candidatas competindo (9) o percentual é
expressivo posto que o cargo provoca o deslocamento das mulheres de sua
base familiar para outro Estado.
Neste ciclo, se comparado aos percentuais de mulheres candidatas
do período anterior, há maior concorrência. Este fenômeno está ligado ao
crescimento dos movimentos de mulheres, a partir do final dos anos 70, em
todo o Brasil e no Pará provocado pelos grupos feministas identitários
(prostitutas – GEMPAC; domésticas – MOPROM), grupos feministas
governamentais (Conselho Municipal da Condição Feminina - CMCF) e a
grupos feministas dos núcleos de base partidários (Centro de Estudos,
Debates e Participação da Mulher – CEDEPAM, União de Mulheres de Belém
–UMB e Movimento de Mulheres do Campo e da Cidade – MMCC). Essa
junção de forças transformou as lideranças destas entidades – as quais
mantinham vínculo com os movimentos nacionais pela anistia e contra a
exploração e o conflito no campo, aos direitos humanos, contra a violência
doméstica etc. – na espinha dorsal dos partidos de oposição como o PC do B,
o PT, o PSB e o MDB (quando este se opunha ao regime militar). O trabalho de
recrutamento político para os movimentos sociais nascentes conferiu
_____________________________________________________________
17
Nas eleições subseqüentes – 1998 e 2002 – não houve mais esta performance feminina no Pará para as
cadeiras à CD. Sobre a questão do deslocamento, há estudo de Ana Alice Costa (1998) que aponta para
uma demanda maior das mulheres aos cargos do legislativo municipal onde estas não têm que se afastar
do espaço doméstico.
18
Cf. Hellmann, 1995; Alvarez & Dagnino & Escobar, 2000; Pinto, 1992. Segundo Sonia Alvarez , 2000, p.
383-423, estes grupos de mulheres se articularam durante as décadas de 1960-1970, sendo a maioria
fundadora da segunda onda do feminismo latino-americano. Reagindo às políticas estatais neoliberais
opressivas engajando-se em organizações clandestinas de esquerda e nos partidos legais de oposição,
concentradas no ativismo das mulheres operárias e pobres, dos grupos de mulheres comunitárias, lutas de
sobrevivência, sindicatos e movimentos pelos direitos humanos, trabalhando junto às mulheres dos
setores populares. Estes grupos ficaram conhecidos como movimento de mulheres. Há detalhes mais
aprofundados do descentramento do movimento feminista latino-americano. Salvo uma referência a
ONGs feministas articuladas em rede e incluindo nesta os partidos políticos, não há referência ao formato
destes grupos que chamo “grupo de feministas de núcleo partidário”. Delgado & Soares (1995), entretanto,
se referem a eles.
19
A categorização é desta autora. Considerei grupos dos núcleos de base partidários os movimentos de
mulheres do CEDEPAM (do PMDB, então agregador dos partidos de oposição aos militares em 1981),
MMCC (PT) e a UMB (PC do B) porque na reorganização dos partidos, os movimentos de mulheres ficaram
polarizados entre as várias propostas surgidas. A perspectiva feminista era a mesma, mas a polarização se
dava nas questões gerais em que cada um pensava a reconstrução da democracia liberal. Algumas
militantes feministas são filiadas aos partidos e, segundo Delgado & Soares (1995, p. 85): “... muitas
mulheres deixaram seus grupos feministas ou passaram a privilegiar a atuação nos partidos. A partir de
então viu-se uma nova militante nos partidos políticos, as feministas, e, nestes espaços o tema “mulher”
tornou-se alvo de debate, item obrigatório dos programas e plataformas eleitorais dos partidos
progressistas”.
912
respeitabilidade às demandas das mulheres nos bairros urbanos, na zona
rural, nos sindicatos e nas fábricas. Mas sobre o ativismo político das
mulheres feministas dos núcleos de base partidários, é preciso esclarecer
que ele se alargava em tempo de campanha eleitoral, como se observa do
depoimento de Luzia Alves, liderança rural do MMCC: “....a gente trabalhou
muito na campanha do Humberto Cunha. É geralmente assim, quando surge
um companheiro que a gente sabe que trabalha, se interessa pelo nosso
problema, a gente trabalha”.
Há outros depoimentos de mulheres desse grupo que negam a
atividade eleitoral do movimento. Isabel Tavares da Cunha diz que o MMCC é
não-feminista, não-partidário e tem como diretriz a luta pela justiça social: “Na
verdade, nós não temos um trabalho feminista, nós temos um trabalho mais
de cunho social e até mesmo político. (...) Algumas mulheres do MMCC são
militantes do PT, outras são do PSB, outras do PMDB e tem simpatizantes do
PDT. (...) Nós somos um movimento autônomo e quem se ligar a partido se
liga sem que o movimento seja comprometido com programas partidários,
mesmo porque estes programas não contêm mais as questões feministas”.
Este depoimento é do inicio da década de 1990, época em que os
movimentos de mulheres se negavam a considerar que realizavam também
atividade eleitoral como parte de sua militância. Em todo caso, o movimento
de mulheres crescia no Pará, como também nos demais Estados; alguns
integrados aos núcleos de base do partido embora ainda fosse incipiente o
número de mulheres líderes que se candidatavam.
No cenário nacional, a efervescência dos movimentos de mulheres
também não se vincula à demanda por candidaturas nas duas casas
parlamentares. A Tabela 5 mostra o crescimento das candidaturas femininas
nesse período, em termos de Brasil, que não se diferencia proporcionalmente
do quadro paraense.
Fonte: Tabela composta a partir de dados do LEEX/ IUPERJ, e de Nicolau (on line 1982- 2002), sem a configuração de
gênero, daí sendo extraído o percentual de candidatas; TSE; Toscano, 1976; Tabak & Toscano (1982); Avelar (2002).
¹O percentual das eleitas é igual à divisão entre o nº de eleitas pelo nº de candidaturas femininas x 100.; e o percentual
de candidatas, ao N abs. de candidatas dividido pelo nº de candidatos x 100. ²Os dados não estavam disponíveis para
as candidaturas à Assembléia Legislativa desse ano.
913
Em 1986, a bancada da Câmara de Deputados detinha a incumbência
de elaborar a nova Constituição. Desde 1985, os grupos organizados de
mulheres encaminharam propostas de mudança sobre a situação feminina,
reivindicando melhores condições de vida e melhores oportunidades para o
desempenho das suas atividades, entre outras demandas. Elas participaram
dos debates da Constituinte (1986), opinando sobre os pontos que queriam
modificar, reivindicando um novo enfoque sobre os direitos sociais das
mulheres. Nesse sentido, apresentaram propostas encampadas por um
comitê de feministas, incorporadas ao texto da Constituição de 1988. Sobre a
cidadania eleitoral com a demanda pela igualdade de acesso ao processo
decisório, apesar dos debates entre esses grupos, não houve avanços. Silvia
Pimentel, a coordenadora do comitê assessor, levantou algumas hipóteses a
respeito da baixa presença das mulheres na competição eleitoral:
organização incipiente das mulheres e da falta de apoio político-eleitoral; falta
de experiência política (prática específica deste “agir”); insensibilidade do
eleitorado à contribuição da mulher no legislativo; dificuldades no
entrosamento entre o partido e as mulheres e insensibilidade destes para
superação do problema; discriminação contra a mulher candidata; falta de
recursos financeiros para a campanha. Mesmo assim, representando 5,3%
(1986), 5,8% (1990) e 6,2% (1994), as mulheres eleitas à CD constituíram
discreto crescimento entre os diversos partidos e Estados da Federação.
Quanto às candidatas: quem eram e em que partidos militavam?
Quantos votos teriam recebido as que competiram? Para uma primeira
avaliação, a Tabela 6 registra dados referentes aos partidos que mais
candidataram mulheres no período 1986-1994, no Pará, sendo utilizada a
_____________________________________________________________
20
Pergunta-se qual o motivo de tão poucas destas mulheres e as lideranças dos movimentos pleitearem
candidatura nos partidos de esquerda se, conforme seus relatos, elas conseguiam agregar mais de mil
mulheres em seus encontros e congressos? Leila Mourão, aquela altura do CEDEPAM (depois ela se
integra à UMB) , informa que num encontro de mulheres, no Pará, em 1981, havia 800 a 1200 mulheres
presentes. Cf. Duarte, 1993. Sobre o ressurgimento dos movimentos de mulheres e sua relação com os
partidos, no Pará Cf. Duarte, 1993.
21
Entrevista concedida a Juliete Duarte, em 1992.
22
Isabel Tavares da Cunha, presidente do MMCC, foi candidata pelo PT à Assembléia Legislativa, em 1994,
mas não se elegeu (1% dos votos do partido). Faleceu em setembro de 2002. Entrevista concedida a
Juliete Duarte, em 1992.
914
variável bloco ideológico.
Tabela 6 – Distribuição das candidatas por ano, partido e bloco ideológico - CD e AL - Pará -1986 - 1994
23
Silvia Pimentel tem dois textos importantes que tratam destas questões e analisa os textos
constitucionais brasileiros em nível comparado. Cf. Pimentel, 1988, p. 65-102; e Pimentel, 1985.
24
Os percentuais encontrados são resultado da extração do N de eleitas pela bancada. Para as ALs
encontrou-se 3,3% (1986), 5,5% (1990) e 3,1% (1994).
915
agregadas a este bloco. Foram ao todo 20 candidatas na disputa para
a Câmara de Deputados e 56 para a Assembléia Legislativa em três períodos
eleitorais estaduais. O PC do B que mantinha um movimento integrado de
mulheres, a União de Mulheres de Belém, com atividades regulares entre os
grupos identitários, não fugiu à média dos demais partidos, ao indicar
candidatas.
No geral, confere o indicativo do maior número de mulheres
pleiteando um lugar parlamentar no local de moradia (AL) e com custos
menores de campanha, além do quociente eleitoral menor exigido para atingir
o número de votos necessários para eleger-se. Mas outras variáveis se
interpõem, como a representatividade local da concorrente e a campanha
eleitoral deflagrada.
Quanto aos votos obtidos por estas candidatas, é possível visibilizar o
interesse do eleitorado e, também, medir o grau de popularidade delas entre
este selecionador heterogêneo. O Quadro 1 registra a indicação nominal das
mulheres que competiram neste período, o partido e o número de votos que
tiveram nos dois âmbitos parlamentares.
916
Quadro 1 – Distribuição nominal de candidatas por ano, partido e votos – Pará 1986-1994
Fonte: T R E/PA – Dados Estatísticos; TSE; Álvares (1996-2000); Raiol da Costa, 1999.
(Fórmula para extrair o iFcand em relação ao Npart: Ncand ÷Npart x 100) * Candidatas eleitas
917
candidaturas prospectivas, dando a visão geral da racionalidade
partidária na hora da indicação /seleção dos demandantes de cargos, pelas
lideranças.
A comparação entre a votação obtida pelas mulheres em dada eleição
e a dos partidos que as candidataram expressaria uma equação diferencial
interessante sobre quem ganha e quem perde no jogo político na hora em que
as circunstâncias colocarem de frente os dois selecionadores (selectorate) –
o dirigente partidário e o eleitorado. Nesse caso, tanto as regras da política
eleitoral avançariam para estrangular as demandas femininas pelo cargo
eletivo quanto a cultura sexista teria peso, visto que a sociedade (que
condiciona o eleitorado) mantêm reservas sobre a prática política feminina.
Num survey realizado nas eleições de 1994, em Belém (PA), sobre
comportamento eleitoral - embora 86,3% dos/as entrevistados/as
afirmassem não haver diferença no sexo do candidato na hora de votar e
35,5% considerassem que a administração feminina melhoraria os
problemas do país – 78,0% informaram não saber o ano em que a mulher
conquistou o direito do voto e 53,5% nunca tinham votado em mulher.
23
A pesquisa foi realizada no dia da eleição de 1994 para o projeto “ Mulheres e Processos Eleitorais no
Pará: 1986-1994” (Fundação Ford/REDOR/GEPEM) em seções eleitorais de 10 bairros de Belém , com
729 entrevistados, sendo 52,95% mulheres e 46,91% homens. Cf. Álvares, M.L.M. Relatório de Pesquisa:
Comportamento Eleitoral em 1994, UFPA, 1994
918
votos nominais para os partidos pelos quais competiram; a decisão do
voto do eleitorado selecionou à CD candidatas do centro e da esquerda, e,
dos três blocos, à AL (ver Tabela 7).
Tabela 7 – Distribuição das mulheres eleitas por ano, partido,
bloco ideológico e cargo - Pará – 1986 - 1994
26
Estes dados de Maria de Nazaré Barbosa foram levantados da Biografia dos Deputados. 9ª Legislatura -
1979-1983. Assessoria de Divulgação e Relações Públicas. Belém, Pará, 1980.
921
&&&&&&&
&&&&&&&&
_____________________________________________________________
27
Há um episódio vivido por Lucia Viveiros que mostra o seu enfrentamento à cultura sexista da CD. Certo
dia ela adentra o Congresso Nacional vestida com um terninho em calça comprida. Houve conflito à sua
entrada, com o protocolo do Congresso querendo barrá-la alegando que ela “não estava vestida
condignamente para uma mulher”. Houve discussão no plenário. Mas ela não se intimidou e conseguiu
transformar o episodio em mais uma conquista feminina. A mídia acompanhou em comentários às vezes
favoráveis outras vezes de censura, a postura “ousada” da deputada paraense.
28
Alguns dados de Lucia Viveiros foram extraídos de Abreu & Beloch & Lattman-Weltman & Lamarão
(orgs.), 2001. Outras informações são de uma entrevista da Deputada concedida a Álvares (1986).
924
Pará. Foi professora e líder sindical na área da Gleba CIDAPAR
(Companhia de Desenvolvimento Agropecuário Industrial e Mineral do
Estado do Pará), em Vizeu, onde também se incorporou à luta pela reforma
agrária. Fundou, em 1962, com algumas colegas de partido, a União de
Mulheres de Belém (UMB). Em 1983, tornou-se vice-presidente do
Movimento Nacional de Entidades Emancipacionistas de Mulheres. De 1985
a 1988, teve atuação destacada em vários movimentos sociais e de
mulheres, participando da direção executiva da Federação dos Centros
Comunitários do Pará (FECAMPA), sendo vice-presidente da Confederação
Nacional das Associações de Moradores da Região Norte (CONAM) e da
executiva do Conselho Municipal do Direito da Mulher, em Belém. Em 1986,
candidatou-se, mas, não se elegeu para uma vaga na Assembléia Legislativa,
segundo ela, por estratégia do partido, que tinha como objetivo eleger o
candidato Paulo Fonteles (que viria a ser assassinado no ano seguinte). Em
1988, candidatou-se e elegeu-se pelo PC do B à Câmara Municipal de Belém
tornando-se membro de várias Comissões Legislativas (Meio Ambiente,
Defesa do Consumidor), além de ter participado da elaboração da Lei
Orgânica Municipal. Em 1990, candidata-se à CD, sendo a parlamentar mais
votada no Estado, com 60.317 votos. Assumiu a cadeira após renunciar ao
mandato de vereadora, em janeiro de 1991. Participou como titular de muitas
Comissões parlamentares, nessa legislatura, como a de Defesa do
Consumidor, Meio Ambiente, Projeto Calha Norte, CPIs sobre violência no
campo, sobre exploração e prostituição infanto-juvenil. Ausentou-se de
votações sobre cujos temas não concordava e/ ou nem seu partido era
favorável, como o projeto de criação do IPMF, FSE e o fim do voto obrigatório.
Participou das sessões de discussão e votou pelo impeachment de Fernando
Collor. Em 1992, Socorro Gomes foi indicada candidata à prefeitura de
Belém, num acordo com os partidos coligados com o PC do B (PPS, PSDB,
PSB e PDT), após a renúncia do então candidato dessa aliança, Almir
Gabriel, sendo derrotada. Retornou, então, ao exercício de seu mandato na
925
CD. Nas eleições de 1994, seu partido indicou-a para concorrer e ela
se reelegeu deputada federal. Fez parte de varias comissões parlamentares
que antes já havia assumido, além de votar emendas constitucionais
propiciadas pelas discussões do momento (fim do monopólio estatal das
telecomunicações etc.). Em 1997, tornou-se vice-líder do seu partido na CD e
em outubro do ano seguinte disputou o terceiro mandato, mas não conseguiu
a reeleição ficando na suplência. Em 2002, candidatou-se novamente, mas
também não se reelegeu permanecendo suplente, sendo indicada, pelo
governo Lula para a direção da Delegacia Regional do Trabalho –PA.
O padrão de carreira de Socorro Gomes privilegiou o ativismo político,
no meio estudantil e no movimento social e de mulheres. Esses recursos
favoreceram a candidata num período em que havia uma maior tensão
movimentando o discurso dos partidos de esquerda contra a direita. Porém, à
medida que o PC do B ia fazendo coligações com os partidos de centro, ela
perdia votos entre o eleitorado (municipal e estadual) que a sufragou em três
eleições consecutivas. Nas duas últimas eleições, não conseguiu alcançar o
coeficiente eleitoral para eleger-se, ficando na suplência que a favoreceu em
1996 para ocupar uma cadeira na CD. Contudo, permaneceu como a líder de
contribuição em votos para o seu partido, no Pará. A Tabela 10 demonstra os
recursos acumulados na carreira política da candidata, desde 1986,
seguindo-se daí o registro nas demais eleições e a extração da força nominal
dos seus votos para o PC do B. Certamente a maior motivação do partido para
a indicação desta líder em todas as eleições em que a mesma concorreu é o
desempenho eleitoral que ela apresentou até agora.
926
Tabela 10 – Cálculo da força dos votos nominais de Socorro Gomes
PA – 1986- 2002
&&&&&&&&&
29
Alguns dados de Socorro Gomes foram extraídos de Abreu & Beloch & Lattman-Weltman & Lamarão
(orgs.), 2001; outras informações foram extraídas de entrevistas concedidas pela deputada à Álvares, em
2000 e 2002.
927
em todo o Estado. Em 2002, seu partido indicou-a para concorrer a uma
cadeira no Senado, mas sua votação não atingiu o coeficiente necessário
para eleger-se. Em 2004, concorreu a uma vaga na Câmara de Vereadores
de Belém, elegendo-se com um percentual significativos de votos. Em 2006
candidatou-se e elegeu-se para a Câmara de Deputados onde
presentemente exerce mandato.
A situação de Elcione Barbalho teve um diferencial significativo das
outras três candidatas. Sua carreira política esteve colada à projeção familiar,
com uma trajetória em que o ativismo político não se deu através do
movimento estudantil ou movimentos sociais ou de mulheres, mas prendeu-
se à sua condição de primeira-dama, e aos cargos públicos que assumiu,
durante a gestão do marido à frente do governo do Estado, por dois períodos.
Mas seu mérito próprio também deve ser contabilizado no desempenho
dessas atividades em função do status político, conseguindo traduzir-se em
captação de votos, proporcionando-lhe estabilidade política em quatro
períodos consecutivos. Apesar de não ter alcançado o coeficiente eleitoral
para o cargo senatorial, sua votação favoreceu o partido. Na Tabela 11 um
demonstrativo da força dos votos nominais de Elcione Barbalho ao PMDB,
nas três eleições em que concorreu para um assento na CD e à senatoria.
Tabela 11 – Cálculo da força dos votos nominais de Elcione Barbalho
PA – 1994- 2002
30
Alguns dados de Elcione Barbalho foram extraídos de Abreu & Beloch & Lattman-Weltman & Lamarão
(orgs.), 2001; e completados através de informações extraídas de uma entrevista concedida pela deputada
a uma seção de um site local.
929
dedireita com 25% e os de esquerda com 12,5% dos resultados da
competição feminina.
Os níveis da competição eleitoral nos períodos estudados apontam
para o avanço gradual do percentual de candidaturas e eleição de mulheres,
apesar da precária difusão da cultura política e dos baixos incentivos para
este avanço. Evidenciam, também, a importância do ativismo político em
eixos diferenciados e a emergência dos movimentos de mulheres que se
agregaram aos núcleos de base dos partidos. Outro fator importante é o papel
partidário de algumas competidoras com desempenho eficaz para a captação
de votos para os seus partidos, permanecendo nas listas até ao
esvaziamento de sua força competitiva (demonstrada pelo baixo percentual
de votos conseguidos em dada eleição e o gradual distanciamento dos
mandatos), em demanda para diversos cargos eletivos. O padrão de carreira
política que apresentam e os incentivos à captação de votos no mercado
eleitoral se tornam um diferencial entre as candidatas. A indicação nominal à
lista partidária valeu-se, em alguns casos, do desempenho do/a candidato/a
na competição pelos votos ao partido.
Conclui-se considerando que este recorte temporal expressou a
hipótese cada vez mais presente nos estudos sobre a competição eleitoral
feminina demonstrativa de ampliação do número de mulheres pleiteando
candidaturas e sendo eleitas, apresentando forte tendência a concentrarem
recursos políticos pessoais agregando o êxito profissional, político e familiar.
930
Referências Bibliográficas
DOCUMENTOS
932
TRAJETÓRIAS POLÍTICAS DE CANDIDATAS AO CARGO DE
VEREADORAS DA CÂMARA MUNICIPAL DE BELÉM.
1
Este texto foi desenvolvido como trabalho de classe da disciplina Estágio Supervisionado em Ciência
Política, no Curso de Ciências Sociais, primeiro semestre de 2009. Houve inserção no projeto de pesquisa:
Os movimentos de mulheres e feministas e sua atuação no avanço das carreiras feministas nos
espaços de poder político, do GEPEM (Grupo de Estudos e Pesquisa Eneida de Moraes sobre Mulher e
Relações de Gênero) como formalização do referido estágio junto à faculdade de Ciências
Sociais/IFCH/UFPA. As atividades de pesquisa para a complementação do processo ao qual nos
inserimos, ainda está em andamento. Uma primeira versão foi apresentada no simpósio “Mulheres e
movimentos: participação e Representação Política nas democracias contemporâneas”, em 28/08/2009,
promovido pelo GEPEM/UFPA.
2
Alunos da Graduação do Curso de Ciências Sociais e bolsistas do Grupo de Estudos e Pesquisas
“Eneida de Moraes” Sobre Mulher e Relações de Gênero – GEPEM.
933
gradualmente enfrentada pela crítica dos movimentos feministas e de
mulheres ao lutarem pela emancipação de direitos e a inserção feminina na
esfera publica. A mulher conquistou seu espaço em numero significativo no
mercado de trabalho e em atividades culturais, mas a sua ausência em
espaços da política ainda é muito marcante em nossa sociedade. “E essa
marginalização reflete a sub-representação feminina, como o exemplo mais
flagrante da sub-representação de vários grupos sociais”. (VARIKAS, 1996)
Nessa perspectiva, foram impostas, pela permanente critica
feminista, medidas drásticas, afim de que essa participação seja ampliada
visando atender os novos percursos para a implementação do ideal
democrático para garantir a presença desse gênero em plena igualdade com
os homens. Entre essas medidas mais recentes, as ações afirmativas ou
discriminação positiva levou a criação de leis eleitorais para garantir a
presença das mulheres na competição eleitoral como as cotas partidárias
prevendo o aumento do número de parlamentares que mesmo assim se
mantém sub-representadas.
Os resultados de uma pesquisa empírica nas eleições de 2008,
no Pará e as metodologias aplicadas
Este texto revela parte de um estudo que está sendo desenvolvido
sobre a presença das mulheres no âmbito do parlamento municipal no Pará ,
tomando-se as eleições municipais de 2008 para demonstrar o nível de
participação e o perfil de algumas candidatas aos cargos legislativos na
cidade de Belém.
Entende-se a importância do município como Keurbay (2005) que diz
sobre isso: “O Brasil tem hoje 5.563 municípios dos quais 1.363 foram criados
a partir de 1989 graças as regras flexíveis estabelecidos pelo artigo
18, § 4º, da constituição de 1988 definidas para preservar a “continuidade e
unidade histórico cultural do ambiente urbano, obedecidos os requisitos
previstos em lei complementar estadual e mediante a consulta previa as
populações diretamente envolvidas” o resultado visível do aumento do
numero de municípios na ultima década é o fato de 90% deles terem menos
de 50 mil habitantes e de 80% de sua despesas serem cobertas por
transferência institucionais.
Segundo a pesquisadora da UFBA Ana Alice Costa (1998) que trata da
carência de produção nessa área, “O município representa um valioso
espaço para o estudo da participação política da mulher. Todavia tem sido
pequena a produção teórica nesse espaço do exercício do poder formal.”
Devido a abrangência da atuação das Câmaras Municipais após a
constituição de 1988, nas últimas décadas, a competição entre as elites
políticas locais para o controle do poder executivo e legislativo tem sido muito
acirrada em algumas unidades territoriais brasileiras gerando a necessidade
934
de novos estudos que consigam atualizar o debate sobre esse assunto.
Levando em consideração que a maioria dos estudos é dedicada a entender a
construção e o funcionamento do poder executivo e legislativo na esfera
estadual e federal, vê-se que ainda há muito a se avaliar sobre a
operacionalização das eleições municipais e o padrão de competição que
ocorre na esfera local.
Por isso, torna-se necessário a produção de estudos reveladores que
consigam evidenciar as características, o perfil e as diferenças e similitudes
das eleições que ocorrem na esfera municipal com as ouras esferas de
competição política. Entende-se, com isso, a importância dos estudos sobre a
trajetória política de mulheres que se candidatam na esfera municipal. Avaliar
quem são essas mulheres que se integram na carreira partidária em busca de
um cargo no legislativo municipal norteou esta pesquisa e empreendeu a
captura de dados empíricos que facilitassem assegurar o reconhecimento de
um percurso nesse campo de embate publico e político das mulheres
paraenses.
A escolha de nosso campo de levantamento de dados deu-se,
primeiramente, na extração do número de candidaturas femininas nas
eleições municipais de 2008 no Pará, extraindo-se desse núcleo mais amplo,
as concorrentes do município de Belém. O interesse era criar uma rede de
contatos para ampliar ainda mais o nosso campo de integrantes de
depoentes, pois o problema que se colocava era criar expectativas num perfil
mais específico sobre quem eram as mulheres que participavam dessas
eleições. As técnicas metodológicas nos levaram, primeiramente, a uma
candidata de nosso conhecimento e através dela esperávamos criar uma
rede de conhecimentos para chegarmos a outras. Contudo essa estratégia
mostrou-se inviável devido ao fato de nossas interlocutoras na maioria das
vezes indicarem candidatas do mesmo partido, que não trariam um resultado
diversificado. Então optamos em ir aos partidos na tentativa de conseguir
contatos, o que nem sempre era possível devidos estes manterem sigilos
acerca dos dados pessoais de seus filiados. Ainda assim foi possível saber de
uma reunião do Núcleo de Mulheres desse partido ao qual nos dirigimos para
uma primeira entrevista.
Outras estratégias nos levaram a novas interlocutoras. A técnica da
utilização de questionários foi uma das técnicas para extrair subsídios da
trajetória das mulheres no momento da competição eleitoral. Em vários locais
conseguimos o contato e a permissão de abordagem com as nossas
interlocutoras, quer nas suas residências, quer na Câmara Municipal de
Belém.
O questionário aplicado foi organizado pela equipe do GEPEM.
Divide-se em quatros seções. A seção “A” trata da identificação da depoente,
a seção “B” da Trajetória Política, a seção “C” trajetória nos Movimentos de
935
Mulheres e seção “D” Trajetória nos Partidos Políticos. No caso da
abordagem sobre a trajetória política, leva-se em consideração aspectos
como a trajetória familiar, a profissional e a política o que significa a atuação
vivenciada em entidades da sociedade civil organizada (partidos,
movimentos sociais, entidades classistas e etc.). Houve priorização de
valorizarmos o item referente à trajetória dessas mulheres nos Movimentos
de Mulheres, pois, para a equipe do GEPEM que está procurando avaliar a
responsabilidade desses movimentos no processo de escolha e indicação de
associadas era um fator de supra importância para perceber o nível do
empoderamento das mulheres a ponto de chegaram a buscar espaço nos
meios de decisão política da sociedade.
Para preservar a identidade de nossas interlocutoras, resolvemos
identificá-las como o termo “Candidata” e enumerá-las a partir do número 1.
Esta técnica garantiria a descrição do perfil de nossas entrevistadas e criar
um demonstrativo em duas tabelas onde sistematizamos os dados colhidos
nos questionários aplicados.
As falas das candidatas e a formação de um perfil político
Nossa primeira interlocutora, Candidata 1, possui mais de 60 anos de
idade, pós-graduada em Sociologia pela Universidade Federal do Pará,
natural do Estado de Goiás, divorciada, mãe de três filhos, funcionaria
publica aposentada, com uma renda de 2 (dois) a 4 (quatro) salários mínimos.
E sua principal ocupação, atualmente, e dentro do partido e se considerando
média conhecida dentro do seu circulo de atividades.
Iniciou sua carreira política fundando um grêmio estudantil em sua
terra natal. Ajudou a fundar, na década de 1980, a União de Mulheres de
Castanhal bem como a Federação Metropolitana dos Centros e Associações
de Moradores e atualmente integra o Sindicato dos Sociólogos do Estado do
Pará. Dentro do Movimento de Mulheres destaca a sua participação atual
dentro da União Brasileira de Mulheres, fundada em 1987 em São Paulo, mas
com representação no Estado do Pará. Movimento este que agrega na sua
maioria mulheres profissional urbana (trabalhadoras, lideres comunitárias). É
filiada ao PC do B, faz parte do mesmo, pois se identifica com a ideologia do
partido e pela compreensão da estar filiada a um partido que represente a
classe operaria. Ocupa a Secretária Estadual da Questão da Mulher dentro
do partido e se candidatou as Eleições Municipais 2008 a um cargo
proporcional na Câmara Municipal de Belém por entender que se tratava de
uma tarefa partidária. Enquanto aspirante ao cargo concorreu às eleições
municipais de 2008 e obteve 777 votos, não se elegendo.
A Candidata 2 possui mais de 50 anos de idade, na escolaridade tem
duas graduações de nível superior, sendo uma em Ciências Contábeis e
outra em Licenciatura em Letras. É natural da cidade do Tocantins vindo a
morar em São João do Araguaia no Pará aos 3 (três) anos de idade. Solteira e
936
sem filhos é bancária e coordenadora regional do Programa de Inclusão
Digital sendo esta sua principal ocupação, com renda de 6 (seis) a 8 (oito)
salários mínimos. Integra o Fórum de Mulheres da Amazônia Paraense e da
Articulação Nacional de Mulheres Brasileiras bem como o Sindicato dos
Bancários da qual esteve a frente do mesmo por muitos anos. É filiada ao
Partido dos Trabalhadores desde 1987 do qual se aproximou através de
amigos e parentes e se identifica com o mesmo pelo programa e objetivos.
Ofereceu sua candidatura para as eleições em 2008 do qual era aspirante ao
cargo de vereadora. Os movimentos do qual integra como o de Mulheres bem
como o sindicato do qual participa incentivaram a sua candidatura, porém
este se encontrava dividido por haver outro candidato representando os
bancários. Obteve 791 votos não sendo eleita.
O perfil da Candidata 3 revela que ela é separada, possui mais de 3
(três) filhos, tem mais de 50 anos. Natural do Estado de Goiás e vive em
Belém desde 1965. Possui ensino superior completo com Bacharelado em
Farmácia, sendo sua principal ocupação a de sindicalista, tendo como renda
salários entre 2 (dois) a 4 (quatro) mínimos. Teve na sua trajetória política
efetiva participação no Movimento de Mulheres do Campo e da Cidade –
MMCC, em associações comunitárias de bairro (Marambaia) e atualmente
dirige o Sindicato dos Trabalhadores no Serviço Publico Federal no Estado do
Pará. Esteve presente no MMCC durante muito tempo, contudo hoje
se encontra afastada não sabendo informar sobre a situação atual do
movimento. Filiou-se a primeira vez a um partido político em 1985 – Partido
dos Trabalhadores – e em 2003 ao PSOL. Sua aproximação com o PT foi
através de parentes e o motivo da mudança foi devido a ideologia do novo
partido lhe interessar mais. Ocupou, tanto no PT como atualmente no PSOL,
o cargo de tesouraria. Com relação à candidatura, revela que foi indicada pela
corrente política que integra dentro do partido. Obteve 821 votos não
logrando uma vaga na CMB.
A Candidata 4 possui ensino médio completo, encontra-se na faixa
etária de idade entre 40-50 anos. É divorciada, paraense da capital. Possui
mais de 3 (três filhos). Era gerente de vendas, mas atualmente tem como
ocupação principal a de assessora parlamentar. Em termos de trajetória
política iniciou-se no Centro Estudantil do Colégio Augusto Montenegro.
Participa da Associação de Mulheres de Outeiro e do Movimento AGAPE de
Restauração – Rede de Mulheres (movimento religioso). Movimento este que
se sustenta com os recursos da igreja (AGAPE) e congrega, na sua maioria,
donas de casa. Iniciou sua trajetória partidária em 1986, no antigo PFL,
através de serviços partidários (cabo eleitoral, bandeirola, panfletagem e
etc.). Trocou de partido, indo para o PSDB, na ocasião acompanhando seu
“padrinho”, partidário, depois se afastou do mesmo e hoje se encontra filiada
ao PRB a convite do Presidente regional do partido. Ofereceu sua
candidatura ao partido e recebeu apoio das entidades de mulheres. Alcançou
937
257 votos e não se elegeu.
A quinta interlocutora, Candidata 5, é casada sem filhos, pós-
graduada em Comunicação Social. Sua principal ocupação é a de
parlamentar, onde possui uma media salarial acima de 10 (dez) salários
mínimos. Encontra-se entre os 30-40 anos de idade. Na adolescência
integrou um movimento de jovens católicos e participou do sindicato dos
radialistas por conta da profissão. Também é membro do Corpo de Oficiais da
Policia Militar do Estado do Pará. E nunca fez parte de nenhuma
associação ou movimento de mulheres. Filiou-se a um partido político, pela
primeira vez, em 2002, na ocasião ao PSB, a convite do líder do partido.
Trocou de legenda a convite de outra liderança partidária. Desfiliou-se
voltando à vida de caserna, quando se sentiu perseguida politicamente,
somente retornando integrada ao PMDB e a convite de liderança do partido.
Foi candidata a reeleição a câmara de vereadores alcançando 5.891 votos,
sendo reeleita.
A Candidata 6, é piauiense e reside no Pará desde 1980. Solteira,
mãe de 3 (três) filhos, possui o ensino o 1º grau incompleto. Encontra-se na
faixa etária entre 40-50 anos. Com uma renda familiar em torno de 2 (dois) a 4
(quatro) salários mínimos sua ocupação atual é guia turística, já havendo
trabalhado como recepcionista de hotel. Em sua trajetória política destaca a
sua participação no PSDB Mulher, citando também participação em
Pastorais, em conselhos de segurança publica, associação comunitária de
bairro (Tapanã). Está filiada a um partido político desde aproximadamente o
ano de 2003, ao qual se aproximou através das reuniões de comunidade e se
identificou com a ideologia do partido. Dentro do partido integra a executiva
municipal. Foi candidata na ultima eleição municipal a convite da presidência
municipal do PSDB, alcançando 203 votos e não se elegendo.
A Candidata 7, natural do Estado do Paraná, possui Mestrado em
Lingüística pela Universidade Federal do Pará – UFPA. Sua ocupação
anterior era da docência na universidade, sendo atual vereadora. Está na
faixa etária 40-50 anos de idade. Possui como renda uma media acima de 10
(dez) salários mínimos. Na sua trajetória política não menciona participação
em nenhum setor da sociedade civil organizada (associação classista,
estudantis, sindicatos, movimentos sociais). Menciona sua filiação ao PDT
em 2003 através de um parente e por possuir afinidade com a ideologia do
partido. É membro partidário nato, participando das decisões da executiva em
nível municípal. Menciona também em relação ao movimento de mulheres do
PDT que“é ainda insignificante”. Ofereceu sua candidatura como aspirante a
938
vereadora. Alcançou 6.049 votos sendo eleita.
Os dois quadros abaixo são demonstrativo do que foi relatado acima,
evidenciando a trajetória das entrevistas em movimentos sociais e em
partidos políticos.
Quadro 1 - Trajetória Política em Movimentos Sociais
3
Outros partidos mencionados como sendo de filiação anterior aos atuais foram: PFL (atual
DEMOCRATAS), PTB, PT e PSDB.
939
Seguindo a linha de raciocínio do quadro anterior, verifica-se que as
interlocutoras na sua maioria possuem mais de 20 (vinte) anos de militância
ou filiação a algum partido, sendo apenas 3 (três) com filiação já nesse
século. Ainda se tratando de filiação ressaltamos que a maioria (quatro) já
esteve filiada a outro partido diferente do atual.
Nossas interlocutoras, com exceção de uma, todas integram as
executivas (municipal pelo menos) de seus partidos. Esse dado evidencia
que se trata de mulheres com liderança e reconhecimento dentro dos
partidos. Liderança esta que na sua maioria é oriunda dos movimentos
sociais que integram ou das atividades desenvolvida dentro do partido.
Das nossas interlocutoras, todas mencionaram conhecer os estatutos
de seus respectivos partidos e que o mesmo menciona registros de setores
que agreguem a participação das mulheres no partido e com exceção de
uma, todas ofereceram suas candidaturas ao cargo legislativo municipal na
Cidade de Belém.
Considerações Finais
Com base no que já foi dito e na análise dos resultados parciais
obtidos em nossa pesquisa, demonstram que o ingresso de algumas
mulheres na política partidária, os resultados apontam que o envolvimento
de algumas candidatas com o movimento de mulheres somente duas
conseguiram ocupar as 35 cadeiras da CMB, embora não sejam oriundas
dos movimentos de mulheres. Esses dados revelam que a participação social
e política dessas mulheres na política formal não implica em ganhos aos
cargos legislativos. Não é possível detectar que seja devido ao baixo
empodramento das mulheres, mas a outros aspectos que não detectáveis por
ora, salvo o desinteresse do eleitorado em sufragar os seus nomes.
940
REFERÊNCIAS
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Tradução Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos. – São Paulo: Editora
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Capitulo XXI: A Doutrina Clássica da Democracia. Ed. Zahar, Rio
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941
Mulheres e Participação Política nas Eleições Municipais de
2008: Microrregião Parauapebas
INTRODUÇÃO
O estudo da participação política da mulher tem levantado grande
interesse de muitos pesquisadores nas diversas ciências, em especial nas
Ciências Sociais e Humanas. Esse fato deve-se, principalmente, ao evidente
aumento da participação da mulher na sociedade, em especial nas esferas de
poder decisório político (esferas deliberativas), geralmente, associado como
conseqüência das mudanças sociais advindas e das demandas dos
movimentos sociais, principalmente do movimento feminista.
Em vista disso, este artigo objetiva analisar, mostrando resultados
parciais da participação da mulher nas eleições municipais de 2008 na
Microrregião Parauapebas-PA, além de traçar perfil das candidatas e eleitas
por grau de instrução, ocupação, faixa etária, partido e situação.
Este estudo integra o plano de atividades do Projeto de Pesquisa “Os
movimentos de mulheres e feministas e sua atuação no avanço das carreiras
feministas nos espaços de poder político” – CNPq/SPM, pertencente à Linha
de Pesquisa “Mulheres e Participação Política” do Grupo de Estudos e
Pesquisas “Eneida de Moraes” Sobre Mulher e Relações de Gênero –
GEPEM/UFPA. A escolha da área para estudo deu-se pelo fato da
microrregião possuir o segundo maior PIB do Pará, visto que a primeira
colocada no PIB_ranking do estado, a Microrregião Metropolitana de Belém,
já está sendo estudada pelos demais bolsistas do GEPEM.
Analisaremos, a partir de dados estatísticos disponíveis no acervo do
GEPEM, cuja fonte foi extraída do sitio do TSE (Tribunal Superior Eleitoral),
as fichas cadastrais das candidatas e eleitas por sexo, grau de instrução,
ocupação, faixa etária, partido e situação. Os dados sobre PIBs municipais
foram coletados no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística de Belém/PA
(IBGE), o que nos ajudou a optar pelo estudo da Microrregião Parauapebas.
Trata-se de uma pesquisa exploratória e descritiva, onde os dados
nos ajudaram a estabelecer prioridades para futuros estudos e pesquisas
complementares, além de nos possibilitar descrever e analisar o fenômeno
através do método de análise estatística descritiva.
1. Mulheres, Voto e Participação Política
Marco inicial das conquistas femininas à participação política e porta
de entrada para vida pública das mulheres foi o direito do voto, assegurado,
inicialmente, para as brasileiras, para mulheres casadas, desde que tivessem
943
a autorização dos maridos e solteiras ou viúvas, desde que tivessem renda
própria. Tal fato ocorreu em 24 de fevereiro de 1932 – Decreto do Código
Eleitoral nº 21.076/1932. Em 1934, a Assembléia Nacional Constituinte
reafirmou o direito assegurado no Código Eleitoral - art. 109, eliminando
algumas restrições e tornando o voto obrigatório apenas àquelas mulheres
que exercessem funções remuneradas em cargos públicos.
A Constituição de 1946 generalizou o direito ao voto, mantendo
algumas poucas restrições: analfabetos (homens e mulheres), estrangeiros,
pessoas privadas dos direitos políticos, e aos praças de pré, salvo os
aspirantes a oficial, os suboficiais, os subtenentes, os sargentos e os alunos
das escolas militares de ensino superior. Somente na Constituição de 1988 foi
instituída a obrigatoriedade plena do voto às mulheres e homens, tendo
somente restringido a candidatura de analfabetos homens e mulheres.
Mesmo que a Constituição de 1988 tendo assegurada à participação
política feminina como eleitora e elegível, isso não garantiu o maior
percentual de mulheres nas esferas de poder decisório político (esferas
deliberativas), isto porque, segundo Ana Alice COSTA (1998, p. 84):
A mudança nas leis não é suficiente, por si só, para promover uma
mudança nos comportamentos, na estrutura social. Com o sufrágio
universal, as mulheres permanecem submetidas à estrutura patriarcal
da sociedade. (...) a cidadania conquistada foi uma cidadania de
segunda categoria, estruturada à imagem masculina.
1
Cabe informar que no IBGE/Belém/PA somente coletamos dados de PIB_2006 por Municípios, tendo
posteriormente realizado contagem por Mesorregião e Microrregião, além do PIB-ranking_2006,
informações disponíveis no Banco de Dados do GEPEM.
944
são atividades tipicamente masculinas, nas quais as mulheres somente
participam de forma secundária e complementar”.
Com as mudanças sociais e no sistema produtivo, a mulher
evidenciou sua presença no mercado de trabalho, onde já participava,
ampliando seu papel na sociedade, mas ainda numa estrutura patriarcal.
Com a “saída” do espaço doméstico a mulher além de ampliar seu papel, deu
início a uma mudança de mentalidade enquanto ser social, achando-se como
“grupo” com problemas estruturais próprios e capaz de unir-se enquanto
grupo para reivindicar igualdade de gênero no espaço público.
2. Microrregião Parauapebas
A Microrregião Parauapebas - localizada na Mesorregião Sudeste
Paraense, Estado do Pará, Região Norte – é composta por cinco
Municípios: Água Azul do Norte, Canaã dos Carajás, Curionópolis, Eldorado
dos Carajás e Parauapebas. Esses municípios originaram-se,
principalmente, em torno da exploração de minério e outros produtos
extrativistas, tais como madeira; além da criação de gado leiteiro e para corte.
A emancipação política dessas cidades foi um processo conquistado
gradativamente como conseqüência do crescimento econômico e
populacional das mesmas, tendo como principal influência a implantação de
grandes projetos com a intervenção direta e indireta da Companhia Vale do
Rio Doce, atual VALE.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
em 2006 o Produto Interno Bruto - PIB da Microrregião Parauapebas era de
4.089,747 milhões de reais, o segundo maior PIB a nível de Microrregião no
Pará. A contagem populacional realizada em 2007 contabilizou 232.036 mil
habitantes, distribuídos em 23.058 Km2 de território. A seguir podemos
visualizar quadro com os dados gerais por município que totalizam a
microrregião.
945
3. As Eleições Municipais na Microrregião Parauapebas
3.1 Candidaturas na Microrregião Parauapebas
O total de candidaturas na Microrregião Parauapebas nas Eleições
Municipais de 2008 foi de 539, sendo 403 masculinas e 136 femininas, o que
equivale a 75% de candidaturas masculinas e 25% femininas, como
946
podemos visualizar no gráfico abaixo. Do total de candidaturas
contabilizadas, 52 candidaturas, somente para vereador (as) eram inaptas,
restando 487 candidaturas aptas. Neste total incluem-se também as
candidaturas para Vice-Prefeitos que não analisaremos neste trabalho, vale
ressaltar que para o referido cargo não houve nenhuma candidatura
feminina.
2
Em anexo podemos visualizar quadro geral das candidaturas a Prefeitos (a) por Sexo e por Município que
totalizam a Microrregião (Quadro 1).
3
Em anexo podemos visualizar quadro geral de candidaturas a vereadores(as) por sexo, situação,
faixa etária e por municípios que totalizam a microrregião (Quadro 2 e Quadro 3).
948
mulheres da política, como se fosse algo natural ou biologicamente
condicionado.
3.3 Perfis das Candidatas da Microrregião Parauapebas
O maior número de candidaturas a Prefeitos (a) ocorreu na faixa etária de 45 a
59 anos de idade, com total de 12 candidaturas, sendo 11 masculinas e 01
feminina. A única candidata a Prefeita da Microrregião, Ana Isabel Mesquita
de Oliveira, tem 57 anos de idade, pertence ao PMDB - maior partido do país
em numero de filiados - possui ensino superior completo e já ocupava um
cargo público no Poder Legislativo como deputada federal.
Quanto às Vereadoras, pode-se dizer que as candidatas da Microrregião, em
sua maior parte, pertencem ao PMBD (17 candidatas) e PT (16 candidatas),
na faixa etária que vai dos 35 a 44 anos de idade; possuem Ensino Médio
Completo e declararam como ocupação Comerciante (22% do total).
Das 114 candidatas, 04 estavam tentando a reeleição ao legislativo de suas
cidades, como Vereadoras. Interessante porque elas indicam como
ocupação o trabalho legislativo e não outra atividade de seu espaço social. Se
houver um estudo mais detalhado das trajetórias de vida destas mulheres da
microrregião é possivel encontrar subsídios que desmontem certas
assertivas de que o “mundo da política” não as recebe. Sem dúvida estão
passando por um processo de identificação com as demais atividades que
realizam, embora não se possa negar a existência ainda de uma estrutura de
patriarcado como objeto de permanência/manutenção do poder naquela
microrregião. Pois, segundo COSTA (1998) as mulheres quando inseridas no
meio político para concorrerem às eleições, geralmente, representam
interesses privados de seus grupos familiares, maridos, pais, parentes
homens, etc, que por alguma impossibilidade não podem concorrer às
eleições e lançam as candidaturas de seus pares femininos, mantendo a
imagem masculina sempre associada à feminina, ou seja, as candidatas
mulheres que seguem esse padrão não têm autonomia na sua candidatura,
ficando sempre à sombra da figura masculina que já possui um espaço na
esfera de poder e por esse fato acabam mantendo o poder através da mulher,
mesmo que não lancem a própria candidatura. Entretanto responder ao
questionamento levantado, só será possível na próxima etapa de nossa
pesquisa, onde realizaremos entrevistas com as candidatas e eleitas na
Microrregião Parauapebas.
3.4 As Eleitas
A Microrregião Parauapebas tem 45 cadeiras nas suas Câmaras Municipais
(09 cadeiras nos municípios: Água Azul do Norte, Canaã dos Carajás,
_____________________________________________________________
4
Em anexo podemos visualizar quadro geral com perfil das eleitas na Microrregião Parauapebas (Quadro
4).
949
Curionópolis e Eldorado dos Carajás e 11 cadeiras em Parauapebas).
O resultado das eleições foi algo pouco representativo para a inserção
significativa das mulheres na política local. Foram 06 candidatas eleitas,
equivalente a 13,33% das cadeiras ocupadas por elas, em contrapartida ao
número de candidatos eleitos que chegou a 39, o que equivale a 86,67% das
cadeiras disponíveis nas Câmaras Municipais da Microrregião Parauapebas.
Canaã dos Carajás, com 29 candidatas teve 01 eleita; Curionópolis com 20
candidatas teve 03 eleitas; Parauapebas, com 43 candidatas teve 02 eleitas,
os municípios de Água Azul do Norte com 15 candidatas e Eldorado dos
Carajás com 28 candidatas não tiveram nenhuma eleita. Por que essa pouca
expressividade política feminina na microrregião?
Das 06 candidatas eleitas 03 pertencem ao partido PMDB, com uma
candidata em cada município. O restante pertence ao PP, PSDB e PRTB, o
grau de instrução dessas candidatas fica no Ensino Médio Completo (50%) e
Ensino Superior Completo (50%). No que diz respeito à Faixa Etária, 49% das
eleitas estão entre 40 a 49 anos de idade.
Mas fato interessante é que ao observarmos a ocupação dessas candidatas
constatamos que duas foram reeleitas, a candidata de Canaã dos Carajás,
Tatiane Oliveira Silva Gaspar - PMDB e a candidata de Parauapebas, Percília
Rosa Martins – PRTB. 5 Considerações Finais
Perante o cenário político (parcial) apresentado das Eleições
Municipais de 2008 na Microrregião Parauapebas, vê-se constatado a sub-
representatividade feminina evidenciada pela análise dos dados utilizados.
Hipóteses acerca desse cenário podem ser lançadas, estando vinculadas ao
“fator maior” patriarcalista social local em que vivemos, tais como a suposição
das candidaturas terem sido estabelecidas apenas com finalidade de
preencher a cota dos 30% de representatividade feminina nessa microrregião
e o nível de conscientização de gênero das mulheres na microrregião,
enquanto grupo socialmente excluído das esferas de poder e como
lideranças que possam lutar pela igualdade de gênero e mudança real de
mentalidade da reprodução patriarcal, sendo outro fator relevante na sub-
representação dessas mulheres, pois, segundo COSTA (1998, 88), isso se
deve ao fato de as mulheres “...na esfera pública ainda não conseguiram
romper as determinações do mundo doméstico...”, e “...não participam
diretamente do jogo de poder, mas relacionam-se com ele através dos
homens aos quais se encontram vinculadas(,,,)” (PASSOS, 2001, p. 23)
Entretanto, para se chegar a uma conclusão precisa do porque há tanta
disparidade no número de candidaturas e eleitas, entre homens e mulheres, é
necessário também uma análise histórica mais abrangente dos partidos, da
participação política feminina e da trajetória de vida dessas candidatas
(através de entrevistas), para assim percebermos que:
950
• Como se deu a inserção dessas mulheres no espaço público, na
política local;
• Se essas mulheres estão passando por um processo de reavaliação
de identidade ou se estão apenas defendendo interesses pessoais (como o
fato de manter a família no poder). Esse fator é citado pela autora Ana Alice
Costa (1998), um dos referenciais teóricos analisados.
• É importante também analisarmos, em que nível se dá a questão do
patriarcado na sociedade e na cultura do local pesquisado e como é sentido
ou em que nível é reproduzido pelas próprias mulheres;
• Se essas mulheres ao entrarem na vida pública continuam
reproduzindo os papéis socialmente atribuídos as mulheres, como por
exemplo, mãe e esposa. Desse modo tratando e defendendo assuntos
ligados à assistência social, tais como saúde e qualidade de ensino. Esses
vão ser nossos próximos objetos de investigação para continuidade dessa
pesquisa, com intuito de saber qual a influência do contexto sócio-cultural na
inserção política feminina, pois segundo BEAUVOIR (1967, p. 09) “Ninguém
nasce mulher: torna-se mulher”
951
Referências Bibliográficas
953
Anexos
Quadro 1 – Demonstrativo das candidaturas a Prefeitos(a) por sexo e por municípios que totalizam a Microrregião
954
Quadro 2 – Demonstrativo das candidaturas a Vereadores(as) por sexo,
situação e por municípios que totalizam a Microrregião
955
Quadro 3 – Demonstrativo das candidaturas a Vereadores(as) por sexo,
faixa etária e por municípios que totalizam a Microrregião.
956
Quadro 4 – Perfil das Eleitas na Microrregião Paraupebas.
957
AÇÃO POLÍTICA DAS/OS VEREADORAS/ES DE IMPERATRIZ NO
MARANHÃO
Mary Ferreira
1 Introdução
1
Professora Adjunta da Universidade Federal do Maranhão. Mestra em Políticas Públicas – UFMA.
Doutora em Sociologia UNESP/FCLAr. Pesquisadora do CNPq. Coordenadora da REDOR.
Esta pesquisa foi aprovada pelo Consepe sob o processo nº se encontra em andamento. Teve apoio da
FAPEMA no financiamento de uma bolsa de iniciação científica em nome da estudante de serviço social
Conceição Amorim que levantou os dados referentes ao Município de Imperatriz.
959
preocupações da pesquisa se inserem na necessidade de refletir a condição
das mulheres na sociedade brasileira e em especial na sociedade
maranhense considerando a sua situação política e sub-representação nos
espaços de poder.
2
Questionário elaborado como roteiro para as entrevistas dos/as vereadoras/es. As questões levantadas
no questionário dizem respeito a dados pessoais, familiares, filiação partidária, motivações que levaram as
vereadoras a entrar na política, sua compreensão sobre o poder as dificuldades que encontra no exercício
do legislativo.
962
Parte dos estudos sobre mulher e política no Brasil tem nos últimos
anos dado ênfase aos desdobramentos da Plataforma de Ação de Pequim
que definiu em 1995 como uma das prioridades a garantia da mulher no
exercício do poder e nas tomadas de decisões. A plataforma, aprovada no
Congresso Mundial de Mulheres apontou medidas concretas que deveriam
ser adotadas pelos governos, setor privado, instituições acadêmicas e
organizações não-governamentais para que as mulheres passassem a ter
maior acesso e participação nas diferentes instâncias de poder e na tomada
de decisões. (FERREIRA, 2006, ÁLVARES, 2005, COSTA, 2002).
3
A Câmara Municipal e o próprio município de Imperatriz foram oficialmente instalados em 25 de setembro
de 1858.
963
Os estudos desenvolvidos pela União Interparlamentar aponta uma
tendência de crescimento da participação feminina nos legislativos em
diversos países, os dados levantados em 2005, dez anos após a deliberação
da Conferência Mundial de Mulheres, era que de cinco parlamentares eleitos,
uma era mulher. Alguns países superaram, a exemplo de Ruanda cujos
indicadores recentes apontam 56% de mulheres assumindo as cadeiras do
parlamento. Os dados, porém, apontam o contraditório dessa divisão quando
observamos a situação de países como Egito com apenas 1,8%, Irã com
2,8%, Haiti com 4,1%, Albânia (antiga República comunista) com apenas
7,1% e o Brasil com apenas 9,0%.
966
Inclui até as eleições de 2008 – para o Pleito atual
967
para as mulheres na política, sobre a visão que tem sobre o poder e
democracia e sobre o que pensam sobre a participação da mulher nos
espaços de poder.
A preocupação nítida em deixar claro que aceitam naturalmente as
mulheres naquele espaço de poder, considerando a sua importância para a
sociedade, foi enfatizada por todos/as as/os entrevistadas/os. As falas, no
entanto, deixam transparecer visões preconceituosas, tanto no que se refere
a visão dos vereadores como das vereadoras:
a participação da mulher é importante, mas vejo o poder como um todo,
não olho a particularidade, temos três legisladoras que atuam cada uma
na sua especificidade. Todas fazem um bom trabalho, tiveram um bom
desempenho dentro da sua especialidade, há algumas que fazem o papel
de assistência social para que sejam eleitas/os. Eu sempre vejo as
pessoas falando mal das mulheres no trânsito, eu digo, infelizmente elas
não boas no trânsito, mas podem ser boas em outras coisas, mas aqui no
parlamento não há esse preconceito. (Vereador/a 1)
970
Estas assertivas têm sido de certa maneira reforçadas por visões
romantizadas da atuação das mulheres. Isso é percebido tanto na fala da
vereadora Mary Pinho, quando enfatiza que “é na mulher que está o
verdadeiro amor, sentimento, emoção, compromisso, porque vive o dia-a-
dia”, quanto na fala do vereador Manasses Santos, que ao analisar a
participação da mulher na Câmara considera “muito salutar, até porque as
vereadoras são muito atuantes e nos dão muita força quando estamos numa
situação meio delicada, então faltam mais mulheres para nos fazer
companhia aqui”, ou seja, as vereadoras são vistas apenas para fazer
companhia aos vereadores.
Dos vereadores/as entrevistados/as na atual legislatura, nenhum
enfatizou a importância das mulheres como responsáveis por trazer para o
debate as questões de gênero, e o combate às desigualdades, haja vista que
em Imperatriz é visível os índices cada vez maiores de violência contra as
mulheres. Há clareza por parte de grande parte dos entrevistados sobre o
papel político de um/a vereador/a, porém a questão de gênero e a
necessidade de construção da igualdade e paridade não parecem ser
compreendidas pelos parlamentares.
Conclusões
A ação das mulheres no mundo público pensado a partir de suas
mobilizações em diversos movimentos sociais: moradia, pela saúde, na luta
contra a violência, na luta pela terra para citar alguns movimentos de grande
apelo da sociedade imperatrizense demonstram o quão de desafios esperam
as vereadoras e como ainda são equivocados os estudos que não
consideram a participação as mulheres nos diversos movimentos sociais
como participação política. São esses movimentos que em Imperatriz é
representado por diversas organizações entre as quais citamos: Pastoral da
Mulher, Clube de Mães, Centro de Promoção da Cidadania e Defesa dos
Direitos Humanos Padre Josimo, Sindicatos dos Trabalhadores dos
Estabelecimentos de Ensino de Imperatriz – STEEI, Associação das Donas
de Casa de Imperatriz, Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, Sindicato
dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais, Associação de Artesãos de
Imperatriz os responsáveis pela ação efetiva na luta constante por melhoria
da sociedade.
Dessas organizações destacamos o Centro de Promoção da Cidadania
e Defesa dos Direitos Humanos que tem feito um trabalho ininterrupto na
reivindicação de direitos da mulher. Embora estes movimentos tenham feito
denúncias, eventos para tornar a questão da mulher uma questão política,
muitos desafios ainda se apresentam, entre eles o de tornar a política um
espaço acessível às mulheres.
Os dados apresentados e as visões dos vereadores e das poucas
vereadoras demonstram os muitos equívocos para com a presença feminina
971
nos espaços de poder. Parte desses equívocos está na dificuldade e
ausência de debate nos partidos políticos no Brasil, no Maranhão e em
especial no Município de Imperatriz que não criam alternativas para favorecer
a presença das mulheres no debates e atividades partidárias. Isso foi
percebido na fala de todos os entrevistados que reconhece a necessidade de
maior apoio, definição de políticas partidárias que favoreçam a participação
das mulheres. Os vereadores entrevistados ressaltam a importância dos
departamentos de mulheres no partido como caminho de fortalecimento das
mulheres na política partidária, mais no geral a compreensão da ausência das
mulheres nas instâncias de decisão é visto como se elas tivessem medo,
vergonha, e por não terem formação política, quando o certo é que todos
esses mecanismos foram forjados para afastá-las.
As cotas vista como uma forma de construção gradativa da paridade de
participação dos gêneros na política, não tem surtido o efeito desejado. Os
resultados apresentados demonstram que da forma como foi pensada não
atende as expectativas das mulheres. A maioria dos entrevistados
reconhecem a necessidade dos seus partidos investirem mais na
participação das mulheres e no fortalecimento de organismos internos no
partido que favoreçam sua participação em departamentos, femininos.
Houve um consenso entre os vereadores/as entrevistados/as do
reconhecimento e importância da mulher no parlamento local, entretanto
esse consenso é recheado de contradições, pois embora afirmem que as
relações se dão no mais alto nível de companheirismo e reconhecimento do
papel das colegas, no entanto, as sessões na câmara não refletem o discurso
dos mesmos, considerando inclusive que já houve agressão física e moral de
vereador contra vereadora. Porém os casos não foram apurados ou punidos
pela mesa diretora. Por outro lado as atuais vereadoras entrevistadas, não
reconhecem qualquer tipo de descriminação contra a atuação e participação
no parlamento. Para as mesmas falta força de vontade das mulheres de
participar da política, inclusive uma é contra a lei das cotas e a considera
discriminatória.
Os vereadores e vereadoras até agora contatados para as entrevistas
demonstraram muito pouco conhecimento quanto ao debate das relações de
gênero no espaço público, sempre de maneira solícita, se esmeram em
elogios as mulheres, se colocam absolutamente favorável a participação da
mulher na política, no entanto a questão do “estar preparada” da
necessidade das mulheres precisarem “se capacitar” parte até mesmo dos
vereadores com graus de escolaridades inferiores aos das mulheres que
hoje tem mandato na câmara, é como se a aceitação da mulher neste espaço
de poder, passe, obrigatoriamente por um curso de “saber fazer política” pois
este não é o campo natural de atuação da mulher, apesar delas serem “muito
bem vindas” por todos que foram convidados a participarem da pesquisa.
972
È muito acentuada a lógica dos papéis sociais previamente
estabelecidas para cada sexo, no espaço de poder da câmara, mulheres e
homens tem grande dificuldade de perceberem esta lógica.
Existe um sentimento de impotência por parte dos que foram ouvidos,
quanto às demandas sociais, tanto homens e mulheres externam a angústia
de serem procurados em seus gabinetes para atender solicitações pessoais,
doações de todos os tipos, que desqualifica a atuação do parlamento
municipal.
Uma das etapas da pesquisa é compreender como se dão as
demandas sociais encaminhadas as Câmaras de Vereadoras pelos
movimentos organizados de mulheres. Nessa parte ainda serão consultados
os Grupo para analisar como se dão as demandas e como estas são
atendidas ou não pelos parlamentares.
973
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976
Demonstrativo Quantitativo da Situação
das Cotas Partidárias nas Eleições
Municipais do
Pará
Thiago Paiva Sales
GEPEM/UFPA
977
Demonstrativo Quantitativo da Situação das Cotas Partidárias nas
Eleições Municipais do Pará.
Thiago Paiva Sales*
979
ELEIÇÃO MUNICIPAL DE ANANINDEUA (RESULTADO_ VEREADOR_ 2008)
980
Demonstro, nas tabelas, apenas alguns dados que comprovam como o
domínio masculino na política é intenso e desigual. Também fica claro o
não cumprimento da lei de cotas (9504/97) nas eleições, pois segundo o
TRE-PA (Tribunal Regional Eleitoral do Pará) A Câmara Municipal de
Belém é composta por 35 Vereadores (Resolução. - TSE nº 21.803/2004)
no qual cada partido poderá registrar até 53 candidatos à Câmara
Municipal de Belém (cento e cinquenta por cento do número de vagas a
preencher). Portanto, segundo os cálculos de TRE-PA:
35X150%=52,5=53 ( Candidaturas)
53X30%=15,9=16 (Lei nº 9.504/97, art. 10)
Das 53 candidaturas ficariam reservadas 16 vagas para o sistema de lei de
cotas. Sendo apenas utilizado tal mecanismo somente para partidos sem
coligações. Quando há partidos coligados há uma mudança nos cálculos.
Segundo TRE-PA “Cada coligação poderá registrar até 70 candidatos à
Câmara Municipal de Belém (o dobro do número de vagas a preencher)”:
2X35=70 ( Candidaturas )
70X30%=21 (Lei nº 9.504/97, art. 10)
Das 70 candidaturas ficariam reservadas 21 vagas para o sistema de lei de
cotas. Ficando evidente no seguinte estudo o não cumprimento da lei, pois
em Belém, nas as eleições municipais ocorridas em 2008, o PTN (PARTIDO
TRABALISTA NACIONAL) apresentou duas candidaturas sendo tais
candidaturas somente masculinas, dessa forma, desrespeitando a
obrigatoriedade presente na lei de cotas.
Cabendo fazer as seguintes indagações: existe uma solução real
para inclusão dessas mulheres na vida política, ou seja, que elas deixem de
ocupar somente os espaços de deliberação dos partidos e passem realmente
a assumir os espaços de poder e decisão via processo eleitoral? Qual é a
posição dos partidos políticos para reduzir esse nível de desigualdade? E o
sistema eleitoral brasileiro também é um fator decisivo para manutenção
dessa estrutura?
Para tentar mudar esse quadro a Secretaria Especial de Políticas para
Mulheres formulou o que ela própria chama, de uma mini-reforma eleitoral,
tentando promover e fortalecer a participação igualitária das mulheres na vida
política na tentativa de democratizar o processo eleitoral. Diante de tais
medidas vamos destacar duas delas que tentam reafirma a participação da
mulher: “reservar do Fundo Partidário cinco por cento do total na criação de
programas para a difusão de participação políticas de mulheres e caso o
partido não respeite na eleição subseqüente aumentará mais 2,5%
totalizando 7,5% reservado a elaboração de tais programas; a outra medida
esta ligada diretamente a lei de cotas, pois cada partido ou coligação
981
preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e máximo de 70% (setenta
por cento) para candidaturas para ambos os sexos” (MIGUEL, Sônia
Malheiros, Subsecretaria de Articulação Institucional da Secretaria de
Políticas para as Mulheres-SEPM-). A questão levantada sobre o
comportamento dos partidos é extremamente relevante dentro da discussão,
pois hoje existem vinte e sete partidos políticos registrados no TSE (tribunal
superior eleitoral) dos quais a Secretária de Políticas para as Mulheres afirma
em seus estudos que somente cinco partidos incluíram em seus estatutos
uma cota mínima para a representação das mulheres em cargos de direção
do partido ou em suas listas de candidaturas. Sendo esses os seguintes
partidos: PT, PDT, PPS, PP e PV.
O PT (Partido dos Trabalhadores) coloca entre as exigências para a
eleição dos delegados e das direções em todos os níveis que “no mínimo 30%
(trinta por cento) dos integrantes das direções partidárias deverão ser
mulheres” (Artigo 22, V). O PDT (Partido Democrático Trabalhista) assegura
no Artigo 26 de seus estatutos que todos os seus órgãos dirigentes e as
nominatas de candidatos a cargos eletivos devem incluir um mínimo de 30%
de mulheres. No art. 83 do Título VI, “Das disposições gerais e transitórias”, já
flexibiliza a redação anterior e diminuí a porcentagem: “De acordo com as
prioridades inscritas no Programa do Partido e as condições locais serão
incluídos, em todas as listas para disputa de mandatos legislativos e
de direção partidária (...) garantindo sempre um mínimo de vinte por cento
(20%) para as mulheres”. O PPS (Partido Popular Socialista) coloca entre as
diretrizes básicas da estrutura e funcionamento do partido que a “eleição para
preenchimento de todos os órgãos dirigentes e cargos do Partido assegurar a
cota por sexo, de no mínimo 30% (trinta por cento) e no máximo 70% (setenta
por cento), para a composição das direções partidárias em todos os níveis
(Art. 14, II)”. PP (Partido Progressista) PP assegura, conforme o Art. 116 de
seus Estatutos, que na formação das chapas partidárias para as eleições
proporcionais cada Movimento tem o direito de indicar candidatos em número
correspondente a no mínimo 20% (vinte por cento) de lugares a que o partido
tenha direito. O PV (Partido Verde) não assegura proporcionalidade para a
executiva nacional, mas afirma no Art. 19, § 1º de seus estatutos que “Todos
os órgãos do partido deverão ser formados com a participação de ambos os
sexos”. A última questão a ser levantada é como o próprio sistema eleitoral
brasileiro pode contribuir para manter esse quadro de desigualdade entre
homens e mulheres dentro do processo de competição eleitoral que resulta
na dominação dos homens nos espaços de poder e dominação, pois de uma
maneira bem resumida o nosso sistema eleitoral de lista aberta faz com que
essa competição tenha um caráter mais personalizado resultando nesse
processo extremamente desigual.
Apesar das conquistas das últimas duas décadas, as mulheres
permanecem, em sua maioria, afastadas dos palanques, pois as mulheres
982
representam apenas 8,9% do total de deputados e federais e senadores
(Levantamento feito pela Secretaria Especial de Políticas para Mulheres da
Presidência da República). Portanto, o objetivo do estudo é tentar mostrar
esse nível de desigualdade na sociedade e buscar a formação de novos
valores e atitudes em relação à autonomia e o empoderamento das mulheres.
983
REFERÊNCIAS
985
FINANCIAMENTO DE CAMPANHA DAS CANDIDATAS AOS CARGOS
DE VEREADORAS NO MUNICÍPIO DE BELÉM NAS ELEIÇÕES DE
2008.
Murilo Cristo Figueira
GEPEM/UFPA
RESUMO
O presente estudo descreve e analisa o processo de financiamentos
públicos e privados de campanhas, no município de Belém do Pará, nas
eleições de 2008, para a Câmara dos vereadores. Explora como ocorre esse
procedimento entre as mulheres candidatas, com base em dados coletados
do TSE e do acervo do GEPEM/UFPA. Diante de alguns avanços teóricos
sobre esse estatuto do financiamento de campanha, verifica-se que se trata
de um processo em construção e experimentos a respeito de qual deles será
a melhor para o nosso país. E nesse teor, procura-se observar como a mulher
candidata se organiza para arrecadar fundos financeiramente. O sistema
político brasileiro em construção sistemática principalmente por sua
redemocratização recente apresenta ainda figuras que representam o
coronelismo e o patrimonialismo ainda em cidades do interior e capitais das
regiões norte-nordeste. Então, o financiamento de campanhas políticas é um
item ainda controverso e se constitui num dos fatores que está dificultando
ainda mais as mulheres na participação política de fato. Trata-se de um
processo com base principalmente na troca de favores, relações pessoais,
sendo, para muitos, a única forma de se fazer política no Brasil. Essa forma de
troca de favores já pode ser observada no processo de financiar campanhas.
Este trabalho espera fazer uma breve especificação desses procedimentos
na situação das mulheres paraenses que competiram nas eleições de 2008,
em Belém/Pará.
PALAVRAS CHAVES: financiamento público e privado, partidos políticos,
demonstrações de receitas de financiamento do TSE, candidaturas
femininas.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho está em construção, pois pesquisas sobre
financiamento de campanha política no país é bastante rara, e também
devido as sempre e constantes atualizações dos dados do TSE. O estudo
buscará também apoio em exames bibliográficos e documentais, visando
colher resultados que propiciem uma análise empírico-descritiva e depois
analítica.
Primeiro será abordado um breve entendimento do financiamento
_____________________________________________________________
1
Graduando do Curso de Ciências Sociais/IFCH/UFPA. Bolsista do GEPEM/UFPA.
987
publico e privado no País, os princípios do financiamento, e a lei que
regulamenta hoje o financiamento no país, lei n° 9.096/95. E discussões
referentes à importância do financiamento de campanhas políticas nas
democracias modernas.
E debates acerca do financiamento de campanha política no país
atualmente. E a cerca das candidaturas femininas para cargos legislativos. E
fatores que dificultam as candidaturas femininas para cargos legislativos
(proporcional) nos municípios. E um demonstrativo dos resultados do
financiamento privado e público no município de Belém.
1. Financiamento Público E Privado No Brasil
O financiamento público no Brasil surge em 1971 com o fundo
partidário, e com a lei orgânica dos partidos políticos. Esta lei se refere à
criação interna dos partidos e continha normas sobre as finanças e
contabilidade dos partidos. E já aparece além do financiamento público
provinientes do fundo partidários recursos de doações privadas. Com a
constituição de 1988 se introduz o direito ao fundo partidário e o direito ao
acesso aos meios de comunicação para todos os partidos políticos
cadastrados no TSE.
1.1 Princípios Do Financiamento De Partidos
Os partidos deverão prestar, anualmente e de forma pública, contas
de suas finanças;
Os filiados deverão contribuir financeiramente aos seus partidos;
Os aportes públicos aos partidos deverão respeitar o princípio da
igualdade e compensação das oportunidades e refletir a importância de uma
eleição e o rsultado eleitoral obtido pelos diferentes partidos;
Os subsídios públicos deverão ser concedidos levando em conta as
doações que os partidos recebem;
As doações efetuadas aos partidos deverão ser publicadas a partir de
certo montante mínimo que, se possível, não deve ser muito elevado.
A lei n° 9.096/95 acabou instituindo duas classes de partidos com
direito ao fundo partidário, finciamento público. A primeira composta por
aqueles que possuem funcionamento parlamentar, no qual estão as
organizações partidárias que obtiveram, nas eleições para a câmara dos
deputados federais com no mínimo de cinco por cento dos votos validos,
distribuido por no mínimo um terço dos Estados com pelo menosdois por
cento do total de cada um deles. Na segunda classe estão os partidos que
possuem registro no TSE, Tribunal Superior Eleitoral. No qual é estabelecido
por lei, que todos os partidos que tenha seus estatutos registrados no TSE
têm direito a um por cento do total do fundo partidário, e dividido em partes
988
iguais. O percentual restante, os noventa e nove por cento do total será
distribuido na proporção dos obtidos na última eleição geral para a câmara
dos deputados federais.
No que concerne a prestação de contas à justiça eleitoral busca,
principalmente, estabelecer mecanismos que possam evitar o abuso do
poder econômico nos processos eleitorais. Por causa desse requisito
constitucional, os partidos políticos ficam obrigados a prestar contas das
doações financeiras recebidas e de todos os gastos realizados nos processos
eleitorais, porém na prática esse requisito acaba ficando prejudicado em
decorrência de dois problemas básicos: a) a carência de aparelhamento
estrutural da justiça eleitoral, que não dispõe de mecanismos técnicos
adequados para fiscalizar as contas dos partidos; e b) a diversidadede
contribuições, muitas das quais não aparecem na contabilidade apresentada
pelos partidos. Um exemplo de contribuição não declarada é a prática
conhecida como “caixa dois”.
O Brasil utiliza um sistema misto de financiamento de campanhas:
parte dos recursos vem do orçamento da União, parte de doações privadas.
Os recursos orçamentários chegam às campanhas por dois caminhos. O
primeiro é o Fundo Partidário. Os recursos do Fundo (113 milhões de reais em
2004) têm sido fundamentais para viabilizar a estrutura dos partidos.
Hoje os/as candidatos/as podem gastar recursos próprios para fazer
as campanhas ou podem receber apoio de empresas ou de pessoas físicas.
Caso utilizem recursos próprios o único limite é o valor definido como teto pelo
partido antes das eleições. Para os cidadãos e as empresas a legislação
estabelece limite para as doações. Um indivíduo pode doar até 10% dos
rendimentos brutos auferidos no ano anterior à eleição; uma empresa até 2%
do faturamento bruto do ano anterior à eleição.
2. Financiamento e as Democracias Modernas
A tendência na maioria das democracias é adotar um sistema misto
para financiamento das campanhas. Pois nas democracias modernas o
financiamento de campanha eleitoral é influenciado e influi, de maneira direta,
não só nos efeitos eleitorais, mas pode representar em maior ou menor grau.
Formas com as quais uma sociedade, através de suas estruturas legais,
decidiu cumprir algum papel, seja o de buscar alguma conciliação de
interesses, redução de assimetrias e igualdade de condições competitivas,
ou o de provocar efeitos inversos, que tenham nos privilégios e na
manutenção do status quo seus maiores objetivos, sejam eles claros ou
velados.
O desenvolvimento da democracia não só as formas de vocalização
de preferências eleitorais vieram sendo enriquecidas, como os custos de
campanha também vieram sendo incrementados. Já que a complexidade das
989
campanhas eleitorais, entre outros fatores, pelos custos agregados
necessários para que um candidato possa construir plataforma eleitoral
realmente competitiva.
As atividades eleitorais já são em há algumas décadas, um jogo que
envolve todos os aspectos inerentes ao exercício eleitoral, mas, também, em
larga medida, uma competição que também se disputa nos campos da
organização empresarial, da comunicação de massa, da logística e, em
última análise, no campo da disponibilidade de recursos financeiros.
Portanto, as eleições modernas requerem um aparato de recursos
que se organizam em torno dos objetivos competitivos dos candidatos e tais
recursos, naturalmente, demandam capital para serem adquiridos, geridos e
focados para os interesses estabelecidos.
3. Debates Acerca do Financiamento no Brasil
Diante dos debates sobre qual é o melhor tipo de financiamento de
campanha para partidos políticos, se o público ou privado, para o sistema
político brasileiro. Na entrevista de Fátima Anastacia ao PNUD, defende que
“O controle público de gastos Partidários é essencial”, pois para ela isso
combaterá de forma muito ainda no Brasil, e grande responsavel pelos
inumeros escândalos políticos, que é o “caixa dois”. Fátima Anastasia em
entrevista diz que não é contra o financiamento de campanha com dinheiro
público, mas que deve-se ter um controle atravês de mecanismos no qual o
TSE seja orgão fiscalizador, para se obter todas transações financeiras dos
partidos não somente em períodos eleitorais, e sim todos os dias. E Fátima
utiliza o exemplo norte americano, em que existe um site sobre prestações de
contas das doações de pessoas jurídicas e físicas.
Fátima Anastasia em entrevista comenta que os parlamentares
contrários à proposta do financiamento público, ao argumentarem que isso
seja dinheiro disperdiçado em vez de investir o dinheiro em políticas sociais
como educação, saúde e etc. Ela diz que nosso sistema político de ter
o fundo partidário, já é uma maneira de termos a vigência do financiamento
público. Acerca do financiamento privado Anastasia diz que o velho
argumento liberal de que todos os cidadãos devem participar da política é
valido também para o financiamento das campanhas partidárias, o que se
deve é atribuir um valor máximo para a contribuição de cada pessoa ou
empresa.
Diante do artigo, Karla Correa diz que “tudo começa no
financiamento” no qual ela afirma que a generalização das práticas ilicitas nas
campanhas eleitorais é o primeiro passo para a corrupção no país. Até
mesmo porque as procedências do dinheiro de um candidato para
campanha, muita vezes indica as trocas de favores, a chamada cultura
política brasileira. E numa pesquisa sobre finaciamento campanha política,
990
em 2005, dos 3,5 mil empresários ouvidos em pesquisa da ONG
Transparência Brasil sobre corrupção, 52,7 % citaram a contribuição
financeira em campanhas eleitorais como caminho certeiro para se obter
vantagens na administração pública. Na radiografia revelada pelo estudo
dessa ONG, os setores da economia mais dependentes de regulamentação
governamental ou de contratos com o governo aparecem como os principais
contribuidores em campanhas políticas. Candidatos à Presidência da
República, por exemplo, recebem mais recursos do setor financeiro e da
indústria pesada, como os de petroquímica e aço. Os interesses na definição
dos marcos regulatórios setoriais, concessão de subsídios, obras de grandes
dimensões e na condução da política econômica explicam a preferência.
Instituições financeiras dão prioridade a candidatos ao Senado, Casa que
supervisiona o Banco Central e autoriza empréstimos para entidades do setor
público. As empreiteiras se voltam para as campanhas de governadores,
detentores dos recursos públicos para obras
As contribuições chamadas legais feitas no TSE, dá uma sensação de
“compra”, mostrando assim a desconfiança publica, que muita vezes faz
inúmeras empresas a se incluir em esquemas ilegais de financiamento, o
“caixa-dois”, gerando assim inúmeros escândalos políticos, como ocorreu
recentemente em torno de empreiteiras da construção civil, como a empresa
Camargo Côrrea. E isso fez voltar a tona discussões em torno de
financiamentos para partidos políticos em tempo de eleições. E se fez valer
um projeto de lei no Senado relatada pelo Senador José Eduardo Dutra e
aprovada por unanimidade pela comissão. A proposta de lei proíbe a doação
de recursos financeiros por partes de pessoas jurídicas, físicas e também de
recursos próprios, sendo o financiamento público de campanha exclusivo
para os partidos políticos. Por cada eleitor seriam destinados R$ 7 para o
financiamento das campanhas. Se esse sistema fosse adotado nas eleições
passadas, por exemplo, considerando-se o eleitorado de 115 milhões de
pessoas, o valor destinado à campanha teria sido de R$ 805 milhões. O
dinheiro será distribuído aos diretórios nacionais dos partidos, observando-se
o seguinte critério: 1% em parcelas iguais para todos os partidos políticos
existentes e 99% para os partidos com representação na Câmara dos
Deputados, proporcionalmente ao número de integrantes das bancadas.
Pesquisas mostram que a população brasileira como um todo não
sabe identificar qual seja o melhor tipo de financiamento para os partidos
políticos. O povo brasileiro em sua maioria é contra o financiamento privado
devido principalmente aos casos de corrupção e favorecimento de empresas
principalmentes empreiteiras da construção civil. Mas observa-se também
que diante de uma reforma política no qual existirá somente financiamneto
público de campanha, a grande maioria não sabe ou não tem argumentos.
Como é mostrado na pesquisa de opnião pública nacional feita em 2007 pelo
CNT, Confederação Nacional de Transportes:
991
REFORMA POLÍTICA
No livro da Ana Alice Costa “As donas do poder” (1998) ela evidencia
que os partidos nos municípios principalmente não criam as condições para a
participação feminina e até mesmo dificultam a atuação das mulheres no
partido, uma vez que geralmente os partidos que atuam nos municípios não
possuem uma política de integração dos seus filiados. E as mulheres que
conseguem romper os bloqueios impostos pelos partidos e desenvolvem
uma militância partidária buscam criar dentro das estruturas do partido,
integrações femininas e de formação política orientada pelas mulheres, como
os chamados departamentos femininos. Essas agencias não têm a mesma
desenvoltura de direitos que os ouros departamentos. O departamento
trabalhista, por exemplo, tem o direito de indicar candidatos, enquanto em
alguns estatutos não há registro de que o departamento feminino tenha essa
função e se vê obrigado a enviar abaixo-assinado à direção nacional.
994
Quadro 1 – demonstrativo do financiamento entre
candidatas e candidatos – 2008/Belém/PA
996
7. Bibliografia
997
Movimentos Feministas e Partidos Políticos: Uma Análise Transversal
e Histórica de Candidaturas Femininas
Ana Luiza Coelho Araújo da Silva Ferreira
GEPEM/UFPA
Introdução
A participação política das mulheres ainda é uma conquista recente no
cenário brasileiro. O direito ao voto foi o primeiro direito eleitoral conquistado
por algumas mulheres em 1932, diz-se algumas, pois para votar era
necessário agregar algumas características impostas para esta participação
feminina, inscritas no novo Código Eleitoral incorporado à Constituição de
1891 e aprovado em 1934.
Esta luta se constituiu através do movimento feminista sempre
presente na busca pelo espaço das mulheres e o empoderamento destas. O
olhar para a situação das mulheres se dava para uma perspectiva que as
considerava pouco objetivas e mais relacionadas à natureza, em relação ao
homem tido por sua objetividade e relacionado à cultura (cf.. Ortner, 19 )
sempre apareceram distantes do cenário político, o que não quer dizer que
estavam de fato. O simbólico que ronda a imagem feminina ainda persiste no
que diz respeito a muitas esferas da sociedade e ainda mais com relação à
participação política.
Tomando uma variável importante que se configurou como elemento
de controle e de disseminação da cultura anti-patriarcal ao longo dos anos –
os movimentos de mulheres e feministas – o GEPEM/UFPA formulou um
projeto de pesquisa aprovado pelo CNPq com a finalidade de observar qual
era a representatividade desses atores sociais para as conquistas das
mulheres na esfera da participação política.
Com resultados parciais, este trabalho apresenta alguns dados dessa
pesquisa que evidenciam a relação entre o formato de atribuições dos
movimentos de mulheres no Pará, em relação à formação de lideranças e
conseqüente carreira político-partidária das suas associadas. Tomando-se
como elemento-base às direções dos movimentos de mulheres, chegou-se a
22 mulheres entrevistadas desses movimentos dos diversos municípios
paraenses, no ano de 2007. Como base teórica para esse assunto específico,
foram determinantes as contribuições de Avelar (2004), Álvares (2004), Costa
(1998) dentre outros que puderam auxiliar na compreensão deste processo
de democracia e participação política para prosseguir com os estudos sobre a
questão de mulher e política.
Dessa forma, buscamos entender como se dá o processo de
participação política feminina e como atuam junto às candidaturas os
movimentos de mulheres travando uma discussão sobre a questão das cotas,
visando compreender este fato através de um olhar histórico.
Democracia e Participação Política
999
A democracia deve ser vista como um “processo de organização do
sistema político com engrenagens que favorecem a participação do cidadão
na polis” (Álvares (2004:10). Este sistema tem seus cidadãos formados pelo
direito à igualdade e à liberdade de participação política, mais enfática na
democracia contemporânea, ao trazer uma discussão sobre os direitos
humanos e a própria diferença de participação entre os homens e mulheres.
É neste contexto que se deve entender o que é participação política,
para então seguirmos com as discussões sobre gênero. Assim, para Avelar
(2004) a idéia de participação política está relacionada à idéia de soberania
popular, o que significa que é “instrumento de legitimação e fortalecimento
das instituições democráticas e de ampliação dos direitos de cidadania”.
Neste sentido, a participação política é a ação de indivíduos na tentativa de
intervir no processo político.
Avelar (2004) sistematiza três grandes canais de participação:
“O canal eleitoral, que abrange todo tipo de participação eleitoral e
partidária, conforme as regras constitucionais e do sistema eleitoral
adotado em cada país; os canais coorporativos que são instancias
intermediarias de organização de categorias e associações de classe para
defender seus interesses no âmbito fechado dos governos e do sistema
eleitoral; e o canal organizacional, que consiste em formas não
institucionalizadas de organização coletiva como os movimentos sociais, as
subculturas políticas etc.”. (Avelar, 2004:225)
1002
Esse sistema – de cotas – torna a mulher elegível, mas não significa
que atue de modo a mudar o sistema partidário e cultural. No entanto, apesar
dos argumentos contra a presença da mulher a introdução da política de
cotas partidárias fez com que as mulheres pudessem adentrar no campo
político de modo a estar na mesma esfera de poder que os homens.
“Como se observa, as ações feministas da 'igualdade de oportunidades'
para a 'igualdade de resultados' definiu-se por uma ação direta para o
reequilíbrio da participação política das mulheres, agora mais diretamente
conjugada ao formato estabelecido pelas instituições políticas
democráticas na redistribuição de direitos para garantir a paridade -
aumento do número de mulheres na representação política e no
compartilhamento nas decisões e implementações de políticas”. (Álvares,
2004:44)
1005
que se quebrem as barreiras machistas e patriarcais. Metade (50%) das
entrevistas disseram já haver candidaturas nos movimentos, tornando-se
importante perceber como agem os movimentos junto as suas associadas
nestes casos.
1007
absorção dessa parcela significativa do eleitorado”. (Costa, 1998:202)
1008
Fonte: Banco de Dados GEPEM, 2007.
1009
Fonte: Banco de Dados GEPEM, 2007.
Considerações Finais
Para Mary Ferreira (2001) “as primeiras organizações de mulheres no
Brasil surgiram após 1850, quando as mesmas lutavam pelo direito à
instrução e ao voto”. Estas organizações, os movimentos feministas,
ganharam força com o direito da mulher ao voto, conquista sua.
“A partir da conquista do voto, as mulheres iniciaram um longo caminho para
adentrarem o mundo publico. A participação das mulheres no parlamento
tem sido marcada por grandes dificuldades. A visão do feminino visto como
algo frágil, sensível, delicado, emotivo e submisso se contrapunha a visão
do masculino considerado racional, frio, inteligente, forte e dominador,
portanto mais preparado para a política”. (Mary Ferreira, 2001:106)
1010
Dessa forma, observa-se que os movimentos sempre estiveram junto
às lutas das mulheres, não se pode desvincular esta luta do contexto
partidário, pois a maior conquista das mulheres está na questão do
empoderamento e esta discussão sobre o poder está relacionada aos cargos
parlamentares, pois somente através destes se torna possível exercer a
participação política para modificação na estrutura social.
Todavia o ingresso das mulheres no âmbito de poder não significa
ainda uma vitória completa, ainda há muitas limitações, como coloca
Carvalho e Rabay:
“A conquista do voto não resultou ainda no ingresso massivo das mulheres
na política. Por sua vez, o ingresso de algumas mulheres na política não
significa que tenham abraçado a causa feminina, isto é, a luta por igualdade
e equidade de gênero”. (Carvalho e Rabay, 2001:129)
1011
Referências
1013
JUVENTUDE, POLÍTICA E EXCLUSÃO SOCIAL: UMA ANÁLISE A
PARTIR DE JOVENS FEMINISTAS NO RIO DE JANEIRO
JUSTIFICATIVA
Tendo atuado como psicóloga e atuante dos direitos humanos
desde a graduação, ainda me sinto distante das dificuldades enfrentadas
pelos sujeitos da minha pesquisa. Trabalhei durante três anos em um projeto
denominado JovEMovimento, cujo objetivo era engajar jovens de
comunidades populares de quatro regiões do Brasil em atividades de
prevenção de violência e monitoramento de políticas públicas. No Rio de
Janeiro, um grupo de jovens de cinco favelas ( Rocinha; Complexo do
Alemão; Nova Holanda, Santa Marta e Vila Aliança), se reuniam com o
objetivo de definir atividades que envolvessem o monitoramento de políticas
de prevenção de violência.
Apesar de não lidarem com temáticas de gênero diretamente, por
_____________________________________________________________
1
Segundo dados da pesquisa do IPP – Instituto Pereira Passos (2008): A cidade do Rio de Janeiro na
PNAD: Condições de vida, educação, renda e ocupação entre 2001 e 2006.
2
Os movimentos sociais anteriores a decada de 80 tinham o foco na crítica marxista aos meios de
produção, logo, os sujeitos seriam os “explorados” pelo sistema capitalista, com o foco no proletariado.
1015
se tratarem de atividades que buscavam fomentar o ativismo juvenil para a
violência de uma forma geral, esse ponto definiu meu interesse. Estabeleci
meu recorte de forma a circunscrever as atividades de ativismo às jovens
engajadas na política, em ações focadas em questões feministas e de
gênero. Foi a partir dessas idéias e de minhas investigações que escolhi
como sujeitos as jovens militantes do movimento feminista.
As características demográficas da juventude no Rio de Janeiro
demonstram que os jovens são uma parcela significativa da população, já que
as tendências demográficas demonstram que o município continua sendo
composto, eminentemente, por pessoas de até 30 anos. Entre os anos de
2001 e 2006, o maior contingente populacional carioca era representado por
jovens entre 20 e 24 anos.Entretando, ressalto a colocação de Pasini e
Pontes (2008) sobre a arbitrariedade e relatividade social das classificações
de juventude, já que:
[...] é importante ressaltar que essa marcação se dá muito mais por uma
demanda coletiva – o reconhecimento de que estrutural e
hegemonicamente há certos grupos etários que são mais atingidos por
estas construções sociais-do que por uma possibilidade de determinação
individual sobre a condição juvenil (PASINI; PONTES, 2008, p.56-57).
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Guattari (1986) a respeito dos novos movimentos sociais,
menciona que os mesmos não possuem novos na nomenclatura
simplesmente devido ao fato de terem surgido recentemente, mas sim, por
estruturarem seus objetivos e formas de intervenção política a partir das
questões relativas à autonomia. Sobre a inovação no campo político: “A
problemática desses novos movimentos sociais é a de um deslocamento de
finalidades da produção e da vida social em direção a questões mais
próximas da vida existencial dos indivíduos, um processo de
singularização”(GUATTARI, 1986, p.40.
Segundo Santos (1996), a palavra opressão teria se tornado um
mote entoado por todos, e os protagonistas das ações se oporiam as
diferentes “constelações de poder” que constituem as práticas sociais. A partir
da década de 80, as novas demandas de militância começam a se articular e
obter espaços para causas comuns. Isso se deveu principalmente aos novos
sujeitos em cena, mulheres e ecologistas, que marcaram sua diferença dos
movimentos cujo foco residia apenas nas contradições e injustiças das
classes sociais.
O que se observou então, foi uma crescente chamada de atenção
para comportamentos como o machismo enquanto forma de opressão. Esse
extravasaria as relações de produção, logo, não poderia ter sua explicação
reduzida a uma consequência da luta de classes.
[...] as assimetrias das relações sociais são a outra face da alienação e do
desequilíbrio interior dos indivíduos; e finalmente, essas formas de
opressão não atingem especificamente uma classe social e sim grupos
1016
sociais transclassisistas ou mesmo a sociedade no seu todo (SANTOS,
1996, p.258).
A sociologia feminista teria sido a responsável por criticar a
primazia da opressão de classes sobre as demais, buscando demonstrar
suas muitas faces, uma das quais é a sofrida pelas mulheres através da
discriminação sexual. “Ao privilegiar a opressão de classe, o marxismo
secundarizou e, no fundo, ocultou a opressão sexual e, nessa medida, o seu
projeto emancipatório ficou irremediavelmente truncado” (SANTOS, 1996,
p.41). É nesse sentido que ganha força o objeto de pesquisa
dessa dissertação, no escopo de um movimento recente (menos de 30 anos),
teriam sido reveladas opressões que diriam respeito ao universo feminino,
para além de questões sócio-econômicas.
Para Boaventura Santos (1999), outra novidade residiria “no
alargamento da política para além do marco liberal da distinção entre Estado
e sociedade civil” (SANTOS, 1996, p.263). Isso posto, a politização do social,
cultural e pessoal abriria novas possibilidades de exercício da cidadania e
revelaria as limitações da cidadania liberal ou social, inscritas no Estado.
A década de 90 assiste à mudança de referências dos sujeitos
históricos predeterminados, homogêneos em termos de inserção de
demandas e modos de vida, para “[...] pobres e os excluídos, apartados
socialmente pela nova estruturação do mercado de trabalho. A grande tarefa
política será incluí-los” (GOHN, 2008, p.35) Nesse sentido, a cidadania
coletiva ganha destaque como categoria a partir do advento da Constituição
Federativa de 1988. A participação política e o exercício da cidadania coletiva
teriam sido legitimados, exigindo uma qualificação no seu cumprimento, não
bastando mais somente reivindicar, pressionar ou demandar.
Dentro dos movimentos sociais que visam dar conta da temática
proposta neste estudo, utilizaremos a abordagem proposta por Gohn (2008),
que trata de uma corrente culturalista-identitária. Os movimentos abordados
nesse capítulo se encaixariam nessa última linha, pois deram espaço para
atores (mulheres, jovens, índios e negros) outrora invisíveis na esfera
pública. Estes atores trouxeram novas clivagens de gênero, classe social,
idade e etnia que tornariam a identidade aspecto organizador.
Passando para o feminismo, é importante que suas nuances
sejam considerados, tanto no Brasil, quanto no Rio de Janeiro. Todavia, a
pesquisa visa apenas contextualizar a história da qual começam a fazer parte
as jovens feministas. Para Sarti (2001) as experiências retratadas como
feminismos são, evidentemente, plurais e polissêmicas, dependendo do
ângulo a partir do qual se olhe. Como Pinto (2003) afirma:
[...] (o feminismo) tem sido por natureza um movimento fragmentado, com
múltiplas manifestações, objetivos e pretensões diversas. Sua história,
desde os primeiros momentos, mas principalmente após os anos 1960,
quando de sua grande vaga, foi pautada por esta multiplicidade, em que
os momentos unitários fora efêmeros e com objetivos muito específicos
1017
(PINTO, 2003, p.9).
Apesar disso, Pinto (2003) aponta que um dos aspectos da
realidade brasileira que são transversais nas lutas femininas, é a presença de
mulheres das classes médias e populares desde a década de 30. O período
entre 1975 a 1985 ficou conhecido como a década da mulher, com a
emergência de diversos movimentos, que assumiam as características
formatadas por seus contextos específicos e o Brasil, e o Rio de Janeiro,
especificamente, não foram exceções.
A formatação brasileira, com seu contexto de autoritarismo
político, e a forma adquirida pelo movimento, revelam que, embora
influenciado pelas experiências européias e norte-americana, sua atuação
nos anos 1970 foi significativamente marcada pela contestação à ordem
política instituída pela ditadura militar em 1964. Nesse período, uma parte
expressiva dos grupos encontravam-se articulados a organizações de
influência marxista, clandestinas à época, comprometidas com a oposição à
ditadura militar, imprimindo ao movimento características próprias. O período
contou com dificuldades adicionais:
O feminismo brasileiro nasceu e se desenvolveu em um dificílimo
paradoxo: ao mesmo tempo que teve de administrar as tensões entre uma
perspectiva autonomista e sua profunda ligação com a luta contra a
ditadura militar no Brasil, foi visto pelos integrantes desta mesma luta
como um sério desvio pequeno-burguês (PINTO, 2003, p.45)
A cidade do Rio de Janeiro foi palco, assim como São Paulo, em
1972, dos primeiros grupos feministas de reflexão, informais, com reuniões
entre mulheres que se conheciam previamente, com laços de amizade, ou
afinidades políticas e intelectuais. (PINTO, 2003). Já em Março de 1979,
aconteceu o 1º Encontro Nacional de Mulheres, organizado pelo Centro da
Mulher Brasileira, que teve seu embrião em reuniões na casa da feminista
Ingrid Stein e foi a principal referência no cenário carioca entre os anos de
1975 e 1979 (Teixeira, 1991).
Na década de 80 houve a atomização do movimento, quando no
III Congresso da Mulher Paulista, em 1981, há a recusa da formação de uma
Federação de Mulheres. Dai em diante, há espaço para um feminismo mais
amplo e diverso, com a atuação em grupos menores preocupados com
questões específicas e concretas da realidade feminina. A cisão do
movimento nacional ocorre quando já se constituia como uma força política e
social consolidada.
Essa fragmentação, como demonstrada por Schumaher (2005)
falaria do resultado de um debate político sobre a polarização entre luta geral
e luta específica dos anos 70 que resultou, no início da década de 1980, em
inúmeros grupos de mulheres espalhados pelo país, num amplo leque de
movimentos feministas. Nesse momento, a cisão diria respeito a uma
ampliação, com o surgimento de grupos acrescida da incorporação de novos
segmentos e realidades, como os grupos de mulheres negras, lésbicas,
1018
trabalhadoras urbanas e rurais, entre outras.
Essa inclusão de outros grupos não ocorreu sem críticas, alguns
movimentos afirmaram, na época, que: ao alegar a prioridade de combater o
autoritarismo e as desigualdades existentes na sociedade brasileira, algumas
organizações teriam relegado a um plano secundário a problemática
feminista. Ao mesmo tempo, os diferentes grupos feministas alastraram-se
pelo país, com uma penetração em associações profissionais, partidos e
sindicatos, legitimando a mulher como sujeito social particular. A respeito
dessa cisão, Pinto (2003) afirma:
A questão política parecia dominar o feminismo em 1982, quando das primeiras
eleições gerais no país (exceto para presidente da república). Com o processo de
redemocratização mais avançado surgia uma nova divisão entre as feministas: de um
lado ficaram as que lutavam pela institucionalização do movimento e por uma
aproximação da esfera estatal e, de outro, as autonomistas, que viam nessa
aproximação um sinal de cooptação (PINTO, 2003, p. 68).
Teixeira (1991) aponta para a criação do Forum Feminista do Rio
de Janeiro, em 1987, quando dessa desarticulação e atomização da maioria
dos grupos: “dai em diante os movimentos de aglutinação e vitalização do
movimento feminista passaram a ser os encontros nacionais” (TEIXEIRA,
1991, p.37). Já a década de 90 teria contado com o diferencial de uma maior
participação da classe operária, que, embora ainda atuasse nas
mobilizações, encontrava-se organizada de forma inédita, pois haveria o
interesse adicional de participação na sociedade de consumo. A coexistência
de lutas sindicais com lutas contra as múltiplas discriminações (negros,
homossexuais e mulheres) seria acompanhada de um sentimento
generalizado de ausência de resultados.
As decorrências nos movimentos feministas brasileiros, é que os
mesmos esvaziaram-se de uma forma geral, principalmente os formados em
torno da bandeira da opressão feminina. Sendo assim, ganharam força os
cuja atuação era mais especializada, com uma perspectiva mais técnica e
profissional. Disso decorre a buca de muitos grupos pela organização em
ONGs, de forma a influenciar as políticas públicas em áreas específicas,
utilizando-se dos canais institucionais (SARTI, 2001).
Pinto (2003) não vê o movimento de crescimento das ONGs e
consequente institucionalização da militância como um fenômeno que
esvarizaria o movimento social em questão. A autora afirma que o terceiro
setor seria o responsável, a partir da década de 90, pela continuação da
existência do feminismo no Brasil, “tanto na ponta de lança da defesa das dos
interesses das mulheres no campo da política como na articulação de redes
nacionais de mulheres”(PINTO, 2003, p.98).
Tratando agora do conceito de exclusão, sem pretender esgotá-
lo, a mesma começou a se destacar como temática no Brasil, substituindo a
noção de marginalidade, a partir da década de 80. Oliveira (1997) chama
atenção para uma necessária “decantação terminológica” do conceito, que a
1019
partir da sua incorporação ao discurso do senso comum, já é usado para falar
das mais díspares realidades sociais. Diferença também marcada por
Maiolino (2008) quando afirma que, atualmente, a exclusão abarcaria uma
ampla gama de problemas. “Fala-se de exclusão e há uma autorização
praticamente consensual para que aí estejam inseridas, de forma
amalgamada, exclusões cultural, espacial, social e econômica” (MAIOLINO,
2008, p.108).
Castel (1997) menciona que a abrangência dos que “suscitaram
formas específicas de tomada de consciência” é grande, logo, questiona se
seria necessário antes recompor o panorama da questão social para definir
uma problemática nova para questionamentos contemporâneos inéditos. O
grande grupo considerado socialmente excluído teria em comum um modo
particular de dissociação do vínculo social, característica do quadro francês,
que o autor conceitua como desfiliação.
Essa nova terminologia se daria, pois, na França (e podemos
estender ao Brasil também) a exclusão tem sido relacionada a uma camada
muito heterogênea de pessoas; não se trata de uma situação estanque, como
o termo pretende definir. Além disso, sua demarcação seria equivocada, na
medida em que nos faz centrar as análises nas margens de um problema
originado em outros espaços. Em contrapartida, a desfiliação levaria em
consideração a trajetória do sujeito, que, ao contrário do que é percebido pelo
senso comum, não está fora da sociedade, não foi “cortado” do social. O
termo levaria em conta o processo, segundo o autor:
[...] passar da exclusão à vulnerabilidade que precede a exclusão, e até
mais, ao foco mesmo da vida social, no espaço de trabalho, onde são
produzidas políticas que desencadeiam esta espécie de onda de choque
que por intermédio da flexibilização e da precarização do trabalho, que, no
final das contas, levam à “exclusão” (CASTEL, 1997, p 5).
Em 1998, na obra “As metamorfoses da questão social”, ele
menciona que para que a noção de exclusão social pudesse ser utilizada,
“seria necessário que ela correspondesse a situações caracterizadas por
uma localização geográfica precisa, pela coerência mais ou menos relativa
de uma cultura ou de uma subcultura e, mais frequentemente, por uma base
étnica” (CASTEL, 1998, p.26).
É importante então, pensarmos em análises que levem em
consideração outros fatores, além dos aspectos sócio-econômicos. Além de
diferentes fatores, são múltiplos também os significados dos
processos de exclusão, que são expostos por Denise Jodelet da seguinte
forma :
[...] exclusão induz sempre uma organização específica de relações
interpessoais ou intergrupos, de alguma forma material ou simbólica,
através da qual ela se traduz: no caso da segregação, através de um
afastamento, da manutenção de uma distância topológica; no caso da
marginalização, através da manutenção do indivíduo à parte de um grupo,
1020
de uma instituição ou do corpo social; no caso da discriminação, através
do fechamento do acesso a certos bens ou recursos, certos papéis ou
status, ou através de um fechamento diferencial ou negativo. Decorrendo
de um estado estrutural ou conjuntural da organização social, ela
inaugurará um tipo específico de relação social (JODELET, 1999, p. 53).
Na mesma linha de Castel (1997), Martins (2003) também discute
criticamente a abrangência e banalização do termo “exclusão social”. Para o
autor, nossa sociedade precisa ser considerada como contraditória em sua
totalidade e compreender essa contradição torna-se essencial a essa
discussão, afinal, o entendimento da origem e circunscrição do fenômeno é
essencial para observar seus “modos de manifestação, os desastres sociais
a que se associa, seu lugar na dinâmica social” (MARTINS, 2003, p.13).
O autor também afirma que o conceito pressuporia uma
sociedade acabada, cujo resultado final não é por inteiro acessível a todos,
sendo excluídos aqueles que não a acessariam por inteiro. A sociedade,
todavia, está em processo contínuo de desestruturação e re-estruturação, ou
seja, não haveria exclusões consumadas. “A vivência real da exclusão é
constituída por uma multiplicidade de dolorosas experiências cotidianas de
privações, de limitações, de anulações, e também, de inclusões
enganadoras” (MARTINS, 2003, p.21).
Martins (1997), afirma que uma mudança da nomenclatura da
palavra “pobreza” para “exclusão”, seria a responsável por uma ocultação do
processo que leva pessoas a serem consideradas excluídas. Já Paugam
(2003) pensa em uma relação entre a desqualificação social e os efeitos do
estigma no conjunto da sociedade. Central no pensamento do autor é pensar
o descrédito dos que não participam da vida econômica e social de forma
plena, suas identidades e sentimentos subjetivos acerca das situações que
esses sujeitos enfrentam nas suas experiências e nas relações travadas com
os outros.
O questionamento de Alain Touraine (1989) sobre a política nas
sociedades latinoamericanas, é o que move essa discussão no âmbito dessa
dissertação: “Como chamar para o afrontamento de classses quando uma
parte da população pobre é mais excluída que explorada e quando as classes
médias, importantes em toda parte, conclamam a uma participação ampla
mais que à violência política?” (TOURAINE, 1989, p.16-17).
Isso posto, o grau de dificuldade de inserção em atividades
políticas aumentaria em sociedades com reduzido nível de participação
econômica, caso agravado pela exclusão. Dessa forma, o embrião de
situações revolucionárias se daria por uma constante mistura de “todos os
níveis da experiência, a presença simultânea da pobreza e da experiência da
exclusão” (TOURAINE, 1989, p.270). O autor afirma:
Não é o papel dos pobres como trabalhadores, como cidadãos ou como
membros de uma comunidade que dá a este tema a importância que tem;
não é o que eles fazem, mas o que sofrem; não é o que possuem, mas
1021
aquilo de que são privados; não é, pois, a sua identificação com uma
classe ou com uma nação que dá força ao seu protesto, mas sim, a sua
miséria, a exclusão e a repressão que eles sofrem é que dão ao seu
protesto um valor fundamental. Porque é quando os problemas da vida
privada e os da vida pública se unem da forma mais intensa para dar
origem a um protesto cujo único objetivo é a defesa da vida (TOURAINE,
1989, p.276).
Se, em grande parte, são organizações políticas e profissionais
que realizam a integração dos sujeitos, que dizem o que esses devem ou não
fazer para não ferir ou desorganizar a sociedade a que pertencem, “a
participação ativa no funcionamento de grupos sociais organizados é,
portanto, uma condição para integrarem-se” (PAUGAM, 2003, p.275). Castel
destaca que esse déficit de cidadania, e o respectivo sentimento de injustiça
vivenciado por jovens, é ainda mais grave se considerarmos que estamos em
presença de uma sociedade que clama pela igualdade de direitos e chances.
A juventude também sofreria com um processo que “cristaliza nas margens
as rachaduras do centro” e responsabiliza pelas “disfunções aqueles que são
justamente suas maiores vítimas” (CASTEL, 2008, p. 59-60).
No que tange a metdologia, as histórias de vida, partindo da
história oral, tem como efeito principal o ato de “sublinhar a presença do
sujeito na história” (RODRIGUES, 2004, p.25), e foi nesse sentido que
vislumbramos o maior interesse de ouvir a trajetória de vida dos sujeitos da
pesquisa. O nexo entre uma metodologia que afirma a vitalidade da
identidade é algo de suma importância, quando se considera a temática da
militância feminista, cuja afirmação identitária é parte constituinte da própria
centralidade do movimento.
Abramo (2008) afirma que, enquanto alguns grupos não buscam
na identidade juvenil a constituição de uma posição e atuação social e
política, embora sejam compostos principalmente por jovens, outros, como
os grupos feministas, tornam a afirmação da identidade diferencial seu mote
de luta. No caso específico desse trabalho, o objetivo das histórias de vida é
focar a atenção sobre os sujeitos, investigando as diversas dimensões de
suas vidas (lazer, família, lugar de trabalho, grupos de referência), seus
projetos e valores que orientaram suas escolhas ao longo das trajetórias de
militância.
SEGUINDO OS PASSOS DA MÃE: a história de Maria
Maria foi entrevistada numa sexta-feira, no começo de 2009. Na
troca de emails que antecedeu o nosso encontro, ela pedia que nos
encontrássemos na mesma semana, já que estava a caminho do Fórum
Social Mundial. Percebo que há uma atmosfera de familiaridade no ambiente
onde se desenrola a entrevista, um escritório no Rio de Janeiro, local onde ela
trabalha. Maria circula com desenvoltura, e também não faz questão de
privacidade no nosso encontro: uma menina senta ao seu lado durante toda a
entrevista e as portas permanecem abertas. Descubro posteriormente que
1022
essa menina é sua irmã. Sua mãe, fundadora da ONG na qual milita, está no
outro cômodo desse escritório, onde funciona a ONG CAMTRA – Casa da
Mulher Trabalhadora.
Maria nasceu no Nordeste, em Fortaleza, no ano de 1984. De
origem pobre, frisa que viveu e vive uma vida simples, estudou, já no Rio de
Janeiro, em escolas públicas durante todo o período que antecedeu sua
graduação. Se a entrevistada não pode ser considerada em uma situação
excludente quando considerada sua situação atual, é imprescindível que
situemos seu passado e também especulemos a respeito de uma possível
relação entre sua atividade de militância com uma relativa ascenção social.
A entrevistada morou com ambos os pais, até o final do
casamento destes, enquanto era pequena, na cidade de Fortaleza e
posteriormente em Brasília, até o começo da sua adolescência, quando veio
para o Rio de Janeiro. Na cidade, passou por vários lugares, começando por
Campo Grande, São Cristovão até, enfim, se estabelecer no Centro. Morou
com sua mãe e irmãs até os 23 anos, quando se casou e, atualmente,
continua residindo no mesmo bairro.
O lema do movimento feminista da década de 60, “o social é
político” me parece apropriado para a história de vida contada por Maria. No
decorrer da entrevista, percebo uma não-divisão de suas atividades diárias
com as atividades do movimento feminista, a começar pelo fato de vir
trabalhando, nos últimos 10 anos (ou seja, desde os 14 anos de idade) na
ONG fundada por sua mãe.
Seus pais, ex-militantes do MR-8 Movimento Revolucionário 8 de
Outubro, se conheceram no movimento social e mais tarde vieram a se
separar. Sua mãe se envolveu com outros militantes da causa social
posteriormente, e teve duas outras filhas, de quem Maria cuidou desde muito
pequena. Segundo ela: “E ai depois minha mãe se separou de novo, ai grande
parte do tempo também eu fui responsável por cuidar das minhas irmãs, a
minha mãe sempre tentava ter alguém, mas nunca dava pra ser assim
certinho. Às vezes não tinha”.
Suas memórias do tempo de infância não são muito detalhadas,
os depoimentos não se detêm muito sobre esse aspecto, priorizando a vida
profissional. Sua trajetória, como ela mesma define, é muito ligada à
trajetória da sua mãe, “assim, a minha trajetória tem muito a ver com a
trajetória da minha mãe, então sempre foi à gente e as minhas irmãs quando
nasceram, então tava muito ligada a isso”, algo que a entrevistada deixa claro
em diversos momentos.
[...] acho que minha trajetória tem muito a ver com a trajetória aqui dentro
então eu como pessoa, como mulher, aprendi muita coisa..muita coisa
que eu sei assim eu me sinto sobre determinadas coisas [..] segura pra
falar [..] contribuir pro despertar que eu acho que tem uma grande barreira
que a gente encontra hoje no feminismo que é a naturalização. Tanto a
naturalização das desigualdades quanto a naturalização de que “as
1023
mulheres já conquistaram tudo”, já tudo dado, não é pra querer mais nada.
Então você conseguir de alguma forma, discutir, levar outras pessoas a
pensarem um pouquinho sobre a sua condição, né..que eu acho que tem
muito a ver com a sua condição na sociedade, se perceber e perceber as
coisas que falam pra você, como te olham, assim e tentam te faixar o
tempo todo, tem muito a ver com isso, assim, tentar ganhar pessoas.”
Suas relações pessoais, quando indagada, revelam a
centralidade da ONG na qual sua mãe é fundadora, e em que trabalha há 10
anos, na sua vida. Podemos inferir, a partir desse ponto, que Maria não teve
muitas escolhas no sentido de conhecer outras realidades. No entanto ela
não se mostra acrítica em relaçao ao movimento social e político, na medida
em que demonstra consciencia que as questões de militância acabam sendo
confundidas com as questões pessoais, por isso busca afastar conflitos, mas
não a “mistura” com a militância.
“Nas questões de trabalho, de movimentos sociais, as minhas
relações são mais as que trabalham na CAMTRA, ou que já trabalharam. E os
outros que você encontra sempre, mas às vezes fica mais restrito, ta tendo
um evento, ai a gente sai, não tipo..marcar de fazer alguma coisa. Eu vejo que
sou diferente de outras pessoas até do movimento, [..] acho que de alguma
forma é saudável. [...] na questão dos movimentos tem muito
desentendimento, então às vezes a pessoa é sua amiga hoje e por questões
políticas..até acaba. Então eu tento não misturar.”
Ao mesmo tempo em que Maria observa a militância dos seus
pais, é também cobrada por seu pai, mesmo morando longe: “Eu tinha uma
cobrança [...], meus dois pais sempre foram militantes e ai principalmente
meu pai, acho que meu pai, talvez por não me ver, na verdade ele
só me vê nas férias, sempre tinha um tipo..de ficar catucando...” que que você
vai fazer? Vai participar de alguma coisa?”.
Sua trajetória, como ela observa, se inicia com a observação da
mobilização em prol de uma causa no ensino fundamental com “uma
movimentação em prol de alguma coisa..uma mobilização ”. Já na faculdade,
ela começa a frequentar o movimento estudantil, mas sua vivência no
movimento feminista a impede de aprofundar suas relações com as questões
trazidas pelo novo ambiente: “como eu já participava do movimento
feminista..e [..] nisso eu tenho um pouco de preconceito, talvez, e como já
tivemos vários momentos juntos com movimento de partido..e por não gostar
de determinadas práticas, eu sempre tentei ficar mais distante.”. Apesar
disso, ela se envolve no começo, “assim eu participava de algumas reuniões”
e “eu cheguei a ir numas mobilizações que teve pra tirar o diretor”
Apesar do envolvimento de ambos os pais com a militância (o pai
milita atualmente em um partido político de esquerda em Belém – PA), a
apropriação da política em sua vida aparece de forma gradual. Ela considera
que, no início, não tinha a devida consciência do que seria, algo que só veio a
adquirir posteriormente:
1024
E ai assim, eu não sei, eu não me via muito participando do movimento
partidário assim .. .então quando eu vim pra CAMTRA eu fui descobrindo
outras formas de participação. [..] De quão diferente era o trabalho e do
que eu estava me envolvendo mas às coisas foram acontecendo e eu fui
ao mesmo tempo ganhando mais consciência e mais formação.
Surge o interesse em “passar para a frente” os conhecimentos adquiridos, e a
questão geracional aparece, de uma forma aparentemente sem conflito, já
que é incentivada por sua mãe a levar para a frente o projeto de fundar uma
área jovem na organização. Essa experiência parece diferenciar a
organizaçao na qual Maria é engajada de tantas outras, onde as jovens são
olhadas com desconfiança por não terem a legitimidade de anos de militância
que o movimento exigiria.
E ai começou a ter alguns seminários e algumas jovens foram se
aproximando da CAMTRA também assim..e a gente começou a participar
de formação, assim. E ai na época [...]a gente chamava de núcleo de
adolescentes e agora chamamos de núcleo de jovens..a gente começou a
questionar um pouco..a indagar um pouco “ah, gostei muito de muitas
informações aqui que são legais..e que a gente passa pra outras
mulheres, mas as jovens não sabem disso” Foi muito tipo assim “minhas
amigas não tem acesso as informações que a gente tem aqui”. Então a
gente começou a se questionar e questionar dentro da instituição
também.
A gente começou a pensar o que a gente pode fazer pra ta..ai a gente teve
a idéia de fazer um seminário..e ai tinha acabado de ter tido um seminário
de formação de 1 semana pra equipe que tava trabalhando no Saara e a
gente falou “a gente quer fazer um igual pras jovens, pras nossas amigas,
pra ter essas informações”. E ai a Eleutéria, que é a fundadora falava
muito assim : “tá, vocês vão fazer o seminário e aí..?”E eu lembro que na
época a gente ficou muito revoltada” como assim e aí?”“ A gente quer
fazer um seminário e você tá questionando?”Mas muito de instigar a
gente sobre e o depois, né. Não basta a gente dar informação e cada um
volta pra casa, mas na época que pra gente,eu lembro que foi muito
conflitante. E ai a gente pensou..e no último dia do seminário a gente
pensou..”a gente conversa um pouco com elas pra ver o que acha..”E
nesse primeiro seminário as jovens que participaram foram nossas
amigas, conhecidas..que a gente achou que seria legal estar, como
também algumas outras jovens de comunidades que a CAMTRA já tinha
contato, que eventualmente participavam no Saara de algumas
atividades que a gente chamava de “ação”, que as vezes vinha muitas
voluntárias.
O espaço dinâmico de atuação do núcleo iniciado por Maria
também é objeto de sua fala. Os espaços utilizados para a militância são
_____________________________________________________________
3
Nome trocado para manter a privacidade da entrevistada.
1025
pensados, dentre outros fatores, segundo os atores existentes e a
capacidade de levar a mensagem adiante.
E aí como a gente foi trabalhando só com Instituto de Educação, com o
tempo a gente foi percebendo que a gente tinha jovens ... que a proposta
do núcleo era o protagonismo das jovens, de não ter hierarquia, que não
vai ser o adulto que vai falar e tal..e aí a gente foi percebendo que a gente
falava em escola de formação de professores, então a gente às vezes
discutia coisas com elas pra vida delas, mas que pra sala de aula talvez
elas não levassem aquilo. Era uma coisa distante, porque a formação que
é passada pra elas de professoras.”
A discussão do feminismo é somada à questão das
desigualdades sociais, e a atividade de militância de Maria pode também ser
encarada como uma tentativa de despertar nos outros a vontade de política.
Tentar a transformação [..] a gente tenta também..tem o foco no
feminismo, mas tenta aliar com uma discussão maior, a questão da
desigualdade de classe, a desigualdade social..uma transformação
maior. Então a gente tenta um pouco despertar..trazer discussões nesse
sentido..acho que é isso, a gente acha que contribuindo de alguma forma
elas participem de processos mais coletivos, mesmo que não fiquem
participando da CAMTRA, do movimento feminista, mas que sigam, sei lá
de repente no movimento estudantil, mas vai ter uma outra postura, outra
visão com relação a situação das mulheres, um pouco isso.”
“Tem alguns avanços, principalmente da questão racial..nesse momento
ta crescendo a aliança entre a questão feminista e a questão econômica.
1026
1027
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Latina. São Paulo: Trajetória Cultural – Editora da Universidade Estadual de
Campinas, 1989.
1030
Jovens Mulheres Feministas: Novas articulações?
1. Introdução
Estudar a participação das jovens no Movimento Feminista remete a
compreensão do papel político das jovens e das novas formas de mobilização
que na atualidade as organizações sociais estão construindo. Embora as
mulheres jovens sempre estivessem presentes em associações e
movimentos diversos, somente nos últimos anos elas começam a ter
visibilidade. No Brasil vive-se um momento ímpar em relação a questão de
gênero e juventude, o Estado criou uma Secretaria de Juventude e uma
Secretaria de Mulheres, realizou Conferências de Política para Mulheres, o
que resulta em ações específicas com recorte de gênero e juventude.
A nossa pesquisa foi realizada com movimentos sociais do Brasil e de
Portugal, e, para este trabalho, fizemos o recorte do movimento feminista,
precisamente através da Marcha de Mundial de Mulheres- MMM. O caminho
da pesquisa inicia com o mapeamento de movimentos sociais que tem
setores/comissões de gênero e juventude. Com relação a jovens feministas,
começamos a desenhar a cartografia, para tanto, utilizamos Internet por ser
um recurso útil, dinâmico, para pesquisa. Realizamos um levantamento do
histórico, das lutas e estruturas de cada movimento, fizemos contato através
de correio eletronico e comunicação por telefone. As novas tecnologias foram
meios de comunicação, pontes de linguagem (LEVY, 2004) com as
entrevistadas.
A investigação sobre a participação de mulheres jovens no
Movimento Feminista e em outros movimentos tem o sentido de entender o
que mobiliza essas jovens a desenvolver práticas coletivas e qual o significado
político e social dessas práticas.
O ativismo das jovens visibilizado no Fórum Social Mundial e na
Marcha Mundial de Mulheres abre novas possibilidades para ações coletivas,
potencializa formas de fazer política através de ações de esfera pública. A
política de conjunto expressa no Fórum e na Marcha cria espaços de conexão
e agrega organizações e movimentos.
Os primeiros de grupos de jovens feministas emergem no início do
século XXI, reapresentando lutas feministas históricas sob o olhar geracional.
As questões e demandas das jovens já nascem articuladas a outros
movimentos e lutas mais gerais, isso de certa forma pode permitir que sejam
criadas possibilidades de produzir e inventar novos desejos, novas
associações no campo da luta pelos direitos das mulheres.
1031
Essa articulação é facilitada pelas novas tecnologias de informação e
comunicação, pois em rede cada participante tem trânsito, proximidade e
torna-se criadora e receptora ativa de informação. A participação de uma
nova geração política coloca questões fundamentais para a organização do
Movimento Feminista: O que mobiliza o ativismo político das jovens? Que
campos de possíveis estão sendo inventados por essas ativistas? Como o
Movimento tem se tornado um pólo de resistência para diversas gerações?
2. O Movimento Feminista e as Mulheres Jovens
Desde as primeiras décadas do século XX o Movimento Feminista luta
pela igualdade de direitos entre mulheres e homens, em termos políticos e
sociais, introduziu novos aspectos na luta política, abordando temas
importantes como sexualidade, família, trabalho doméstico. Ao agir contra as
práticas de poder, critica paradigmas, valores, normas, desafiando regimes
de verdade que instituem o mundo e suas significações.
No seu percurso, o feminismo demarca mudanças e rupturas com
valores instituídos e, segundo Bandeira (2000), pode ser retratado em três
períodos. O primeiro se inicia ainda no século XIX (1850-1950), o segundo de
1960 a 1980 e o terceiro de 1990 se estendendo até o presente. Cada
periodização tem suas próprias características, conforme Bandeira:
1º Ato: A mulher como sujeito irrepresentável - a construção
histórica da emancipação feminina pelas mulheres pioneiras; 2º Ato: A
conquista de territórios e de espaços plurais: la nouvelle vague do
feminismo como movimento social e a emergência dos estudos de
º
gênero; e 3 Ato: A consolidação da categoria de gênero nos diversos
espaços e as indagações sobre o feminismo prospectivo diante das
novas demandas e lutas sociais (2000, p. 17).
O feminismo tem sido historicamente um espaço de ação política, de
inovação de estrutura de participação. Se na sua gênese o Movimento
Feminista é caracterizado pelo sufragismo e luta pelo direito a educação, em
momento seguinte parte para rupturas de cunho cultural e moral que irão
atribuir a imagem de movimento radical, é somente na sua fase mais recente
que o Movimento faz uma política de articulação.
No período de estruturação e expansão do Movimento Feminista
(1960-1980), surgem diversos jornais feministas trazendo para a sociedade
discussões importantes sobre violência, sexualidade e direitos das mulheres.
As feministas acadêmicas produziram estudos sobre a mulher com o objetivo
de denunciar a invisibilidade ou ausência das mulheres em diversos campos.
Os estudos feministas, até então concentrados nas mulheres, se expandem
com diferentes perspectivas analíticas, de modo que posteriormente vão ser
substituídos pela discussão de gênero.
A problemática de gênero colocada pelos feminismos mudou formas
de pensar, trouxe contribuições e questionamentos importantes, como diz
Louro (1977), passa-se a analisar a construção social e cultural do feminino e
do masculino. Scott (1995) destaca o caráter relacional das definições de
1032
feminino-masculino e transforma gênero em uma categoria de análise. Para a
autora, gênero refere-se às relações sociais baseadas nas diferenças que
distinguem os sexos, é uma forma primária de relações significantes de
poder.
Na concepção de Butler (2003) “se tornou impossível separar a noção
de 'gênero' das interseções políticas e culturais em que invariavelmente ela é
produzida e mantida” (2003, p.20). Sua abordagem traz críticas ao binarismo,
ao essencialismo, à unidade da categoria mulher, a base natural para a
constituição do gênero e se permite pensar em termos de pluralidades e
diversidades. Para a autora, os estudos sobre o gênero durante longo tempo
viram a heterossexualidade como uma realidade dada, natural, sem
questionamento, ligada ao sexo biológico, enquanto gênero era concebido
como construto.
As explicações teóricas sobre gênero durante essas últimas décadas
compreendem uma multiplicidade de percepções que servem de referência
para se perceber os vínculos entre o que é local, interno, micro e universal,
externo, macro.
A importância da militância política é inegável quando se trata da
expansão da discussão de gênero para diversos espaços de ação política
como sindicatos, associações, como também na sua inserção em
movimentos que tratam de questões fundamentais para democratização do
país, como foi o movimento pela anistia.
Outro aspecto importante que denota o papel articulador do
Movimento Feminista é quando o mesmo incorpora questões específicas de
diversos grupos de mulheres, como as lésbicas, negras e mais recentemente,
as mulheres jovens.
A dinâmica e a atualidade das reivindicações do movimento feminista
se fortalece pela construção de redes sociais, que tornam-se pontos de
resistência. As redes permitem que diversos movimentos sociais interajam e
criem um novo tipo de articulação, que tem como princípio a formação de
estruturas rizomáticas capazes de ampliar contatos, veicular informações
com rapidez e encaminhar lutas comuns.
No caso das jovens feministas percebe-se que as mesmas estão
conectadas as redes, principalmente as virtuais. A luta das jovens feministas
contempla o encontro entre as questões de gênero e juventude, e por isso
suas ações, seus discursos e as paisagens que ocupam, conseguem reunir
grupos, associações e outros movimentos para traçar um território, e, como
dizem Deleuze e Guattari (1997), há um lugar no território onde as forças se
reúnem, e é nesse lugar que os movimentos em redes, em manifestações
públicas, protestos, trazem uma questão tão importante a todos, o “comum”
(PELBART, 2002).
O Movimento Feminista, neste início de século, faz a política de
conjunto em mobilizações de esfera pública (SCHERER-WARER, 2006)
como, por exemplo, a Marcha Mundial de Mulheres.
1033
A visibilidade e a repercussão da Marcha pode ser observada através
da sua presença em 159 países, com cerca de 600 grupos participantes.
Funciona com comitês, grupos de trabalho e uma coordenação local, em
cada país formada por grupos feministas afiliados.
A Marcha Mundial de Mulheres é um exemplo de espaço de conexão
que agrega diversos movimentos e, no Brasil, sua coordenação reflete essa
multiplicidade quando na sua composição reúne grupos feministas, setores
ou comissões de mulheres do movimento sindical do campo e da cidade, do
movimento popular e do movimento de moradia. Essa articulação é facilitada
pelas novas tecnologias de informação e comunicação, pois em rede cada
participante tem trânsito, proximidade e torna-se um criador e receptor ativo
de informação.
No Brasil a Marcha é um espaço que estimula a criação de grupos de
jovens feministas, onde estas ativistas podem traçar seus percursos, compor
seus mapas, demarcar seus territórios. A presença das jovens feministas na
Marcha, marca seus espaços, aqui espaço tem o sentido de lugar praticado,
cruzamento de móveis (CERTEAU, 1999). Nesse sentido mobilizações como
a Marcha e o Fórum Social incentivam a repensar as ações coletivas.
O Fórum Social Mundial (FSM) é uma tentativa de colocar os
problemas políticos, económicos e sociais em uma escala global, sem reduzir
os movimentos a uma frente com um único programa, mas fazer emergir lutas
coletivas que fortaleçam suas táticas ofensivas e organização.
(www.forumsocialmundial.org.br).
Desde a sua primeira versão, em 2001, o FSM teve também o sentido
de interação, de desenvolver uma agenda comum, mas respeitando o
diverso, o diferente, além de restabeler os sonhos com o tema de reflexão
“Um Outro Mundo é Possível”.
A multiplicidade e pluralidade tornam-se então a mola-mestra do
Fórum Social Mundial, aglutinam grupos, movimentos sociais e ONGs.
O Acampamento Intercontinental da Juventude, dentro do Fórum
Social é um espaço coletivo onde a diversidade se expressa através dos
pensamentos políticos, do gênero, cor/etnia, orientação sexual,
indumentária, bandeiras, e representações partidárias.
Os protestos da juventude durante o Fórum no início do século XXI,
contra a globalização, nos remete aos anos de 1960, lembrando de um marco
do papel político da juventude, e das mulheres, mas também nos conduz ao
mundo virtual, apresentando novas táticas utilizadas na comunicação via
internet, apontando assim como as mulheres jovens se apropriam de novas
tecnologias para organizar-se em redes e para recriar os recursos a favor de
ações afirmativas.
3. As Jovens Feministas e as Novas Formas de Comunicação
As redes como espaços públicos possibilitam formas de interação
política, social, mas também tornam-se um espaço de atuação cidadã,
militante, consumidor, produtor, distribuidor (MACHADO, J., 2005). A rede
1034
das jovens feministas denominada “Articulação Brasileira de Jovens
Feministas” anuncia seu caráter democrático e diverso quando se declara
suprapartidária, anti-capitalista, anti-racista, anti-patriarcal, anti-lesbofóbico,
não sexista, não adultocêntrica, não confessional, não hierárquico e não
governamental. Sua estrutura inovadora articula mulheres jovens de diversas
organizações e movimentos: negras, lésbicas, indígenas, quilombolas,
rurais, da periferia, sindicalistas e de populações tradicionais e provenientes
de diferentes regiões do Brasil.
Esses formatos de organização e mobilização mostram que, tanto ao
nível local como global, os movimentos sociais estão presentes nas diversas
realidades, mas com uma nova estética. Para CALLE (2007) existe um novo
ciclo de mobilização, com uma renovação profunda do sentido das ações
coletivas, e isso é visível na linguagem, nos símbolos, discursos, propostas,
nas ações, nas ferramentas de comunicação e até mesmo nas novas
estruturas.
Ao analisar os impactos dos movimentos sociais Calle (2007) observa
que os movimentos são construtores de novas culturas políticas e de
socialização para seus ativistas. E, através das redes e campanhas
internacionais, os movimentos globais estão tendo um papel importante na
alteração do mundo de referência das pessoas quando propõem por
exemplo, um consumo alternativo ou uma linguagem não sexista.
As redes sociais são sistemas organizacionais com capacidade de
reunir indivíduos e instituições, em torno de objetivos e/ou temáticas comuns.
Alguns movimentos juvenis têm se caracterizado por se afirmar sob
outro domínio. A rede pode ser um espaço propício para articular novas
formas de organização, pois cria possibilidades de abertura para articulação
de saberes e partilha de interesses e informações.
Na rede, os movimentos aprendem uma nova linguagem, uma outra
forma de comunicar-se, criam canais de interação, expandem vínculos
sociais. Como diz Pinheiro, “as redes trazem com elas o sonho de democracia
plena onde tudo se conecta e qualquer um pode ser o nó em algum momento,
seja na emissão ou na recepção” (2007, p:19), mas, esse modelo de
comunicação de muitos para muitos, como afirma Castells, tem diferentes
formas de usos e propósitos, assim como, “diferentes alcances da variação
social e contextual dos seus utilizadores” (2002, p.476).
Os movimentos sociais em rede utilizam a internet como ferramenta
para disseminar informação, divulgar suas ações, comunicados, denúncias,
para promover campanhas, mobilizar coletivos, mas também para se
conectar com outras redes e movimentos internacionais que, de outra forma
seria muito difícil acontecer. Embora Castells coloque que os movimentos
sociais estão cada vez mais integrados em redes e também com formas de
organização e intervenção menos centralizadas.
O uso das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) tem
redimensionado o sentido de tempo e espaço. As novas mídias, a
1035
apropriação de novas tecnologias, tem de certa forma democratizado alguns
meios de comunicação, e isso permite divulgação, criação e produção de
idéias e trabalhos individuais e coletivos. Através desses meios as
associações se conectam em circuito e de forma rizomática rompem as
fronteiras da sua comunidade, da sua cidade.
Ao romper fronteiras as jovens persistem na busca de espaços de
interação, e a Internet com seus recursos cria possibilidades de
comunicação, informação através do blog, por exemplo ou de formação de
“comunidades virtuais”. Nestes espaços, o encontro das pessoas ocorre a
partir de interesses comuns, quando tem oportunidade de participar,
conforme a comunidade, de discussões sobre os mais variados temas, tudo
feito através da comunicação por meio eletrônico.
O blog é um site com enfoque em um determinado tema que permite a
atualização rápida de notícias, comentários, que são organizados de forma
cronológica inversa, combina imagens, textos e links. O Blog “Diálogo Jovem”
é uma agência de notícia que veicula informações sobre eventos, idéias das
jovens feministas, vinculado a Articulação Brasileira de Jovens Feministas.
As denominadas “comunidades virtuais” oferecem aos seus
participantes um lugar, independente da geografia, um espaço virtual que se
“concretiza” de qualquer computador com Internet, que por sua vez, permite o
uso ágil do tempo, pois a comunicação é rápida e ainda, de baixo custo.
Apropriadas desse espaço, as jovens conseguem manter uma comunicação
diversa e percorrer uma multiplicidade de temas.
Ao percorrer as comunidades relacionadas ao feminismo,
encontramos no Brasil grande número delas, e percebemos, pelas
fotografias, que essas comunidades são formadas essencialmente por
jovens, destacando-se a quantidade de membros das mesmas. Para
reforçar a afirmação, selecionamos sete comunidades: Jovens Feministas
que possui 1.195 membros, Feminismo e feminista 12.089 membros, Prática
Feminista 3.459 membros, Feminismo 3.741 membros, Feminismo e
Libertação 1.349 membros, Feminismo não é sexismo 1.229, Feminismo
para mudar o mundo 1.080 membros.
Esses novos espaços têm viabilizado a comunicação entre
movimentos, grupos, pessoas, pois a partir deles se desenvolvem teias de
relações, redes de discussões, lugar para compartilhar experiências,
conhecimentos, emoções, sensações.
Essa noção de comunidade virtual não se aplica a comunidade com
sentido de solidariedade, do “tipo ideal” de Weber (1987), mas também não
exclui o pertencimento e a relação entre seus participantes.
Recupero (2001) problematiza o conceito sociológico clássico de
comunidade em Weber, Tönies, e Durkheim e a concepção de comunidade
virtual. A autora trabalha as mudanças do sentido de comunidade na
sociedade moderna e evidencia os fatores para mudança do sentido de
comunidade que ocorrem na prática no decorrer da história, identificados por
1036
diversos autores, como o advento da urbanização, industrialização e o
individualismo cultivado nas cidades modernas.
Sobre a comunidade virtual e sua influência na vida real Recupero
(2001) afirma em seus estudos que:
(…) grande parte dos laços sociais forjados no ciberespaço sejam
transpostos para a vida offline das pessoas. No entanto, esses laços
continuam a ser mantidos prioritariamente no local onde foram forjados:
na comunidade virtual. E mesmo assim, alguns destes laços podem
nunca passar para o plano offline, devido à distância geográfica. O que
nos interessa, e que cremos que é importante, é não somente analisar
como se formam esses laços on-line, mas também em que medida
afectam a vida offline das pessoas. A comunidade virtual pode ser
estendida ao espaço concreto, mas continuará tendo seu virtual
settlement no ciberespaço. E continuará como um espaço social onde as
pessoas poderão reunir-se para formar novos laços sociais (p.7).
A proliferação da internet propicia um novo sentido de encontro, ela se
torna convidativa para as jovens pela sua facilidade de comunicação, pelo
fascínio de romper barreiras e fronteiras, e ainda por se sentir acolhida em
uma comunidade por identificação de idéias, estilo, credos.
A comunidade virtual compartilha informações, e, de certa forma, se
coloca entre o espaço real e o virtual, seus formatos permitem encontros
presenciais ou não. As listas de discussão, por exemplo são ferramentas que
viabilizam a troca de mensagens via e-mail entre todos os membros do grupo.
Esse grupo tem suas normas de acesso, a entrada no grupo requer um
cadastramento, a aceitação do moderador. A comunicação tem flexibilidade
em vários aspectos, inclusive no tempo, pois para receber as informações
não é necessário que os participantes estejam conectados ao mesmo tempo.
Tem ainda a opção de bate-papo, mas só ocorre com adesão de cada
membro.
Além da lista de discussão tem o fórum de discussão, a árvore, sites
de relacionamento como orkut, MSN, MySpace, redes para criar amizades e
manter relacionamentos com grande adesão de jovens. A internet é uma
ferramenta para mobilizar protestos, articular reuniões e festas. Como por
exemplo, no convite a seguir:
Dia 12 de outubro vai rolar a terceira edição da festa "SOMOS TODAS
PECADORAS". Em breve informaremos todos os detalhes!
AGUARDE!!!! Saudações Feministas,
Jovens Feministas de São Paulo e Associação Frida Kahlo
(http://jovensfeministasdesp.blogspot.com/).
O acesso e domínio das novas ferramentas de comunicação estimula
a articulação das jovens feministas a desenvolver atividades diversas, como,
por exemplo, três Seminários Virtuais de discussão. O primeiro seminário
teve como tema: “Existe um projeto feminista para a transformação social?
(22 de outubro a 5 de novembro de 2007), o segundo: “Existe um projeto
1037
feminista para a transformação social? Interculturalidade e Feminismos” (11 a
17 de agosto de 2008) e o III Seminário Virtual REPEM para Jovens
Feministas:” Existe um projeto feminista para a transformação social?
Jovens, diversidades e projeto feminista. Encontros e Desencontros”
(17 e 26 de julho de 2009).
A divulgação de eventos torna-se muita mais rápida e a convocação
mais eficiente. O I Encontro Nacional das Jovens Feministas ocorrido em
2009 no Ceará mostra como é possível veicular informação em todo país.
Como podemos perceber, as jovens feministas estão rompendo
fronteiras, ocupando diferentes espaços, mantendo interlocução com
organizações governamentais e não governamentais, interagindo em dois
campos: gênero e juventude.
4. Significado Político do Ativismo das Jovens Feministas
O que mobiliza o ativismo político, ou a militância política, são
principalmente, dois fatores. Por um lado, as situações cotidianas que mexem
diretamente com a vida, o intolerável que atravessa a sociedade e se
concretiza na experiência da exclusão, da exploração, opressão, divisão,
preconceito, discriminação, injustiça, desigualdade social. Por outro lado é a
crença no poder do coletivo, como disse a entrevistada:
“Eu acredito que a opressão das mulheres e as desigualdades da
sociedade não são processos individuais, mas uma forma de organização
da sociedade que está toda errada. Por isso eu não acho que a solução
pode ser uma solução individual, tem que ter um processo coletivo, tem
que ter um movimento, sujeito coletivo, um sujeito histórico, pra fazer com
que todas as mudanças que nós queremos aconteçam. E eu acho que a
construção de um movimento social, pra ser mais forte, maior, e conseguir
atingir os objetivos, deve ser muito coletiva e bastante horizontal. As
praticas coletivas são um caminho pra fortalecer essa idéia de sujeito
coletivo. Ao mesmo tempo em que quando a gente constrói os processos
de maneira coletiva, a gente se fortalece como grupo, mas também como
indivíduos, e no caso do feminismo, eu acho que as práticas coletivas são
fundamentais pra gente conseguir construir uma prática feminista em
nossas próprias vidas... ” (Entrevistada da MMM – BR).
Essa percepção é um ponto de partida na busca de espaços de
passagem, ela suscita questões fundamentais para intervir, para pensar o
novo, romper com determinados discursos que naturalizam a miséria, a
violência, a dominação, mas tudo isso não seria no plano individual, e sim, em
um projeto coletivo.
Ao perguntar sobre o significado político e social de sua participação,
as respostas por diversos caminhos apresentam um discurso sobre a
potência do coletivo que converge para um mesmo desejo – construir uma
nova sociedade. “Não sei se o meu pequeno contributo ajuda a melhorar
coisa alguma. As estruturas que quero derrubar são demasiado poderosas.
Sozinha não consigo”. (Entrevistada da MMM - PT).
1038
O Movimento Feminista representa, para as ativistas, espaços de
construção de desejos, de recusa a exclusão, desigualdades, espaço onde
conseguem expandir-se, podem agir, lutar e produzir realidades novas,
modos de relação consigo e com o outro e de sentir-se parte da
transformação social.
Mesmos os sonhos pessoais fazem conexão com suas lutas, e, como
diz Deleuze (1997), nunca se deseja algo sozinho, o desejo é sempre em um
conjunto, portanto estudar é algo que vem associado a outras questões, pois
desejar tem o sentido de construção, de construir um conjunto. As
entrevistadas ao mencionar o desejo de ter uma pós-graduação, autonomia,
ou um trabalho que lhes dêem prazer, além de condições financeiras, esses
projetos não estão dissociados das lutas nas quais acreditam.
Nos sonhos, denominados nas próprias entrevistas como sonhos
coletivos, reaparece a transformação social, o desejo de uma sociedade
diferente da atual e, como militantes, se sentem parte da construção dessa
mudança. “Quero continuar sempre a ter esperança numa sociedade
(portuguesa/transnacional) mais justa e solidária” (Entrevistada da MMM –
PT).
Para finalizar trazemos a luta pelo direito à felicidade dos militantes,
expresso nos desejos e sonhos de uma das entrevistadas.
“Eu realmente quero contribuir pra mudar o mundo, porque eu não vejo
como ser totalmente feliz em um mundo capitalista e machista; e eu quero
construir minha autonomia pessoal, que passa por ter relações
igualitárias com amigos e companheiros, passa por ter liberdade, mas
acho que passa muito também por superar algumas contradições”
(Entrevistada da MMM- BR).
O desejo de que fala Deleuze, não é necessariamente falta, o desejo
pode ser força, fuga, ele é relacionado a uma forma de ser e uma forma de
sociabilidade.
5. Breves Considerações
A participação das mulheres jovens não está apenas no movimento
feminista, mas em outros movimentos sociais. Ao pesquisar sobre essa
participação, pudemos verificar que as mulheres jovens ativistas dos
movimentos ainda não estão suficientemente envolvidas em ações voltadas
para as questões de gênero, e isso é retratado no nível de envolvimento,
apontado por militantes, ainda como muito tímido. A participação das
mulheres jovens se caracteriza principalmente pelo ativismo político, ainda é
uma minoria que chega a liderar os movimentos.
Uma situação que nos chamou atenção na pesquisa é que os
movimentos têm trabalhado separadamente as questões ligadas a gênero e
juventude. Dessa forma, as mulheres militantes, quando jovens, ou estão
voltadas para lutas específicas da juventude ou das mulheres. Essa questão
é importante porque a juventude não pode ser vista como una, homogênea,
universal, da mesma forma, as mulheres tem questões singulares com
1039
relação a classe, etnia, geração. Nos próprios movimentos sociais onde
predominam homens, há dificuldades de participação das mulheres e isso se
agrava quando elas são jovens,
As mudanças ocorridas com relação aos direitos das mulheres no
século passado caminham lentamente nos movimentos sociais, mas novos
formatos, novas mobilizações estão surgindo para revitalizar os movimentos
sociais.
No movimento feminista as jovens tiveram como ponto de partida a
Marcha Mundial de Mulheres. Mesmo com todas as dificuldades impostas
pela geração, pela cor, pelo sexo, pela orientação sexual, por ser do campo
ou da periferia das cidades, há um crescimento de grupos de mulheres jovens
trazendo questões como violência, discriminação, sexualidade, e tem havido
uma interface com o tema juventude. No site da Articulação Brasileira de
Jovens Feministas escrevem que “as mulheres jovens possuem
especificidades que devem ser visibilizadas nos movimentos feministas e de
juventudes” (http://dialogoj.wordpress.com/2008/03/20/jovens-feministas-
sim-com-muito-orgulho/).
Essas questões no interior dos movimentos possibilitam a ampliação
de limites, questionam as estruturas de poder dos movimentos, os saberes
constituídos e desenham novos espaços e áreas de atuação. É inegável
reconhecer a participação da juventude e o crescimento do número de
mulheres na direção dos movimentos.
1040
6. Referências Bibliográficas
1 Introdução
A história das mulheres passou muito tempo desconfigurada no contexto
histórico social. Na percepção masculina as mulheres não tinham presença
significativa, não eram figuras marcantes e muito menos desempenhavam
funções importantes no meio social, menor ainda merecedora de qualquer
registro histórico social que pudesse registrar no tempo seus feitos, tais como
a figura masculina possuía.
A mulher em sua totalidade não tinha liberdade para nada, apenas ao que lhe
era proposto fazer pela figura masculina, o qual se refere a pai ou a marido em
sua maioria, não correspondia à mulher opinar, votar, expressar em público
entre muitas outras coisas que poderiam envergonhar a figura central, a
masculina. Ao esposo deviam total submissão, respeito, dedicação, não se
sabe se o motivo de tanta afeição seria por contextos do momento ou seria por
fator educacional familiar, a tradição. Contudo às mulheres não passavam
despercebidas do olhar de algum familiar do gênero masculino tão pouco do
social crítico.
Até meados do século XIX muitas mulheres resumiam-se no espaço da casa
o qual é tido como sendo um espaço privado, restrito designado
especialmente para a mulher e o público para o homem. A mulher desse
período dominava-se rainha do lar, pois cumpria com suas atividades
domésticas, os quais encontravam o ato de cuidar, limpar, cozinhar, educar as
filhas, ou melhor, transmitir aos filhos toda a tradição familiar. Entre o cuidado
doméstico cabia-lhe a função de saciar os anseios sexuais de seus
respectivos maridos, as mulheres solteiras e viúvas realizavam atividades
correspondentes as vossas condições encontradas no contexto social.
A figura masculina voltava-se para o âmbito do público, da exposição, o que
lhe era normal, já para a mulher não, somente a mulher pública que vem ser a
mulher que atua como uma sombra, ou seja, aquela que não tem nenhum
amparo da figura masculina, esta mulher dita pública transita sem ser citada
na história, por ser uma simples lavadeira, cozinheira, ou passadeira nas
casas de família burguesa.
A luta feminina dentre estes anos todos buscou encontrar um lugar para a
mulher no espaço público, lugar de reconhecimento da sua figura no social,
anteriormente esta se restringia ao privado. Contudo não se vê uma
inquietação em buscar compreender qual a definição real de espaço público e
privado na perspectiva feminina. A luta por afirmação de seu espaço, de sua
presença tomou o primeiro passo foi no século XIX, quando houve a
_____________________________________________________________
1
Acadêmica do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão – UFMA
1042
necessidade de substituição da pessoa masculina nas fábricas, indústrias e
também no social político, quando estes foram direcionados para a guerra
mundial.
Esse foi um ponto de partida que a mulher precisou para colocar-se em cena
na sua própria história. Muito tempo foi vista como ser frágil, não pensante,
em termos é verdade, pois quando são se tem motivos para se permanecer
lutando, em busca de conquista, torna-se tanto o homem quanto a mulher ser
fragilizado, até mesmo inútil e fora de cena na história.
Partindo dessa perspectiva histórica de lutas e conquista pela categoria
feminina que se buscou desenvolver este trabalho tomando como foco a
análise da definição desses espaços públicos e privados, o que nos remete a
algo muito mais abrangente que simples definições teóricas.
A invisibilidade e o silêncio das mulheres eram elementos determinantes na
constituição de muitas sociedades. Está reservado para elas o espaço dito
privado, ou seja, o confinamento em casa. Sua aparição e fala no público
segundo Perrot (2007) causava medo fora que é visto como ato indecente;
espaço designado aos homens, às mulheres não eram mais que uma
penumbra posta.
As relações entre os gêneros feminino e masculino começam a ter suas
primeiras coalizões em meados do século XVIII, no qual as mulheres estão
mais relevantes a ocupar o espaço dos homens, o público devido a ter uma
crescente parcela de mulheres da elite com um grau de conhecimento mais
aberto que outras. Produzindo assim em suas mentes pensamentos
relacionados com seu cotidiano, suas inquietações perante a sua posição
ocupada na sociedade, sua condição de indivíduo invisível em frente ao
homem.
A presença dessas mulheres burguesas nesses espaços masculinos foram
motivos de afronta a pessoa de respaldo familiar. Para a categoria masculina
a presença feminina no público sempre foi um problema, para eles quando
esta se faz presente em seu meio causa desordem, produz incômodo, e foi
isso que fizeram estas mulheres e continuam a fazer incomodar para bens
comuns a sua categoria.
2 Perspectiva de espaço público e privado
Na perspectiva de Perrot o público tem dois sentidos, primeiro recorre a
“esfera pública”, por posição à esfera política privada, que designa o conjunto,
jurídico ou consuetudinário dos direitos e deveres de uma cidadania, em outra
significância mais concreta o “espaço público”, é um espaço sexuado no qual
tanto homem quanto as mulheres ao mesmo tempo em que se encontram se
evitam e também anseiam por uma procura, que é constituída por interesses
de se promover uma relação de dualidade de corpo, ou seja, uma relação
amorosa tanto conflituosa, dinâmica e indiferente, porém bem presente, ou
1043
seja, a mulher nesse aspecto tem uma significância.
Perrot nos fala em Mulheres Públicas (2007), que os homens são os senhores
do privado em especial da família os quais ele próprio designa as mulheres o
que devem fazer no cotidiano. Aqui se percebe não há um espaço definido
para a mulher, no qual esta deveria ser a única a opinar, dar voz, já que é seu
espaço, isso não acontece nem no público e nem no privado, devido sempre
existir por trás de uma fala feminina ter um eco masculino de modo direto ou
indireto que a interfere.
Nem mesmo o corpo da mulher é um âmbito privado, sob ela o homem teve
domínio por um bom período de tempo por ser figura de segundo plano no ato
da história, isso em percepção masculina. Busca-se mostrar que a mulher
precisou primeiramente cortar o vínculo sexual com o sexo masculino para
depois iniciar sua luta em afirmação de seu espaço em ambas as categorias.
O público em outras pesquisas literárias refere-se a tudo aquilo que se faz
necessário ser mostrado, ou seja, que possui valor, independente de tempo
cronológico ou contexto social. O qual produz uma transcendência por parte
dos indivíduos. O privado diz respeito como são sendo digno de ser revelado,
posto em exposição, e sim necessário permanecer guardado, reservado.
Embora a história tenha representado, por longo tempo, a mulher sob o olhar
androcêntrico, temos assistido e participado de outro momento na história
onde as mulheres tomam o cenário e escrevem sobre si. Com isso,
materializa-se a desconstrução deste olhar que é segundo Bourdieu (2007)
um produto da história reproduzido pela educação a qual é elemento pilar do
surgimento feminista, ou seja, a educação das mulheres deu a elas a
oportunidade de enxergar a sociedade com um novo olhar social crítico.
Contudo, a partir do feminismo difunde-se que a pessoa mulher é um
indivíduo histórico e particular.
3 As mulheres e seus espaços
Posterior a educação feminina veio a tomar espaço também, o trabalho
feminino que aos poucos passou a ter sua importância, mesmo que somente
ao olhar feminino. Com a existência do movimento feminista o
reconhecimento de seus avanços sociais tornou-se mais estruturado,
causando a cisão da imagem de seres invisíveis posta pelos homens a estas.
O movimento feminista está relacionado com a quebra de espaços, ou seja, o
público é algo livre, porém o privado é relevante a algo que se encontra
encurralado, aprisionado, assim é com a existência do movimento. Promoveu
um rompimento entre esses respectivos setores.
Segundo Bourdieu (2005) a diferença biológica entre os sexos, ou seja, entre
o corpo feminino e masculino justifica naturalmente a posição social e de
trabalho que cada um deve assumir. Acredita-se que não é elemento
1044
suficiente para afirmar ou mesmo promover tal divisão dos gêneros e nem sua
posição nos âmbitos sociais. Caso fosse assim, a mulher não teria a
necessidade de por se em luta por afirmação de seu espaço, esta cumpriria
com seu dever de ser obediente e conformista na visão masculina, o que
deixou de ser a muito tempo.
No olhar de Michelle Perrot as mulheres sempre tiveram lugar mesmo,
trabalhando sem ser assalariadas, é pertinente saber que o salário
corresponde à menor parcela do trabalho desenvolvido, o que não foi tão
almejado pelas mulheres, mas sim o reconhecimento a afirmação de seus
espaços pelos sexos. Possuem reconhecimento de Perrot desde as mais
simples funções, como as camponesas, as donas de casa, a empregada
doméstica, as operárias, até o surgimento de novas profissões.
No século XIX as mulheres tornam-se figuras progressistas, em busca muitas
conquistas, o mercado de trabalho muito as atraia, profissões modestas,
porém de grande relevância na história. Os espaços que as mulheres da elite
passaram a presenciar correspondiam aos salões de chás, aos magazines e
a igreja. Com o tempo foram progredindo ao espaço masculino, no qual
causaram movimentação e certos entraves contra a presença da figura
feminina nesses espaços.
A partir dessa entrada da mulher nesses setores pelo meio do trabalho
propiciou o início do movimento de mulheres em busca de seus ideais
igualitários aos homens. Para falar do movimento feminista tem-se que
conhecer sua definição, o qual na perspectiva de Auad (2003) é um processo
de liberação de homens e mulheres, numa perspectiva dinâmica de crítica
global ao sistema dominante na sociedade, na economia, na política, na
cultura em geral. O feminismo tem com objetivo o compartilhar do poder entre
mulheres e homens e não a centralização por uma das partes.
A invisibilidade feminina no âmbito público é pertinente a não participação
desta, cuja é garantia marcante da presença do individuo. E a relação de
poder sustentada pelo androcentrismo que há entre a esfera pública e privada
tem tomado contrapartida o privado, fazendo com que este se-torna elemento
fundamental de sua existência. Na teoria e na prática ocorre o mesmo com os
gêneros.
O ser humano que vive na esfera privada, “não se dá a conhecer e,
portanto, é como se não existisse. O que quer que ele faça permanece
sem importância ou conseqüência para os outros, e o que tem importância
para ele é desprovido de interesse para ele.” (Arendt, 1975, p.68)
1052
7 Referências
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1053
MULHER E POLÍTICA: UM BREVE BALANÇO HISTORIOGRÁFICO NA
PRODUÇÃO DO SÉCULO XX.
Introdução
A história da luta das mulheres pela equidade de gênero afirma que o
caminho em busca da emancipação da mulher passa pela conquista e
garantia de seus direitos civis, políticos e sociais, no âmbito da família, da
sociedade e na esfera pública e, no plano cultural e ideológico, pelo combate
aos preconceitos e discriminações a que são submetidas.
As ações das feministas, voltadas para conquistas de direitos políticos
para a mulher, intensificaram-se em torno de 1918, quando Berta Lutz e um
grupo de colaboradoras como Maria Lacerda de Moura criaram, no Rio de
Janeiro, uma organização chamada Liga para Emancipação Intelectual da
Mulher, que, posteriormente, passou a denominar-se Liga pelo Progresso
Feminino. Em 1919, o senador Justo Chermont apresentou projeto de lei
estendendo o direito de voto às mulheres, não conseguindo, porém, sua
aprovação. Em 1922, devido a novas estratégias de luta, a Federação das
Ligas pelo Progresso Feminino converteu-se na Federação Brasileira para o
Progresso Feminino, cujos objetivos eram: Promover a educação da mulher
para a elevação do nível de instrução feminina; obter garantias legislativas e
práticas para o trabalho feminino; orientação às mulheres na escolha de uma
profissão; estimular e tornar interessante as questões sociais e de alcance
público para participação feminina; assegurar os direitos políticos que a
Constituição confere as mulheres e preparar-las para o exercício desses
direitos e não esquecendo a proteção as mães e a infância (HAHNER, 1981).
Neste mesmo ano, organizou o I Congresso Internacional Feminista,
no Rio de Janeiro. Coube às mulheres do Rio Grande do Norte, o pioneirismo
na conquista do direito de voto, ainda em 1927, havendo, porém, um
retrocesso nas conquistas eleitorais femininas no ano seguinte. Apenas em
1932, com o Decreto nº 21.076, as mulheres tornaram-se eleitoras efetivas no
Brasil. Conquista que, para a grande população feminina representava um
desdobramento mais que justo e coerente com os ideários da Revolução de
1930 (HAHNER, 2003).
Uma característica historiográfica dos estudos que contemplam o
período de 1930-40 é o protagonismo dos homens na história. São eles que
fazem e detém o poder de fazer, sobretudo no que tange à legislação social,
assistencial, trabalhista, os homens aparecem como os principais agentes
das mulheres sociais e políticas. Entretanto é importante salientar que para a
_____________________________________________________________
1
Formada em História pela Universidade do Estado da Bahia. Mestranda em Estudos Interdisciplinares
sobre Mulheres, Gênero e Feminismo pela Universidade Federal da Bahia (PPGNEIM). Atualmente
desenvolve pesquisa sobre a participação feminina na política com o apoio da Bolsa da FAPESB.
1055
história das mulheres, as décadas iniciais do século XX, período em que
Getúlio Vargas caminhava na política foram decisivas as lutas femininas por
direitos sociais e políticos, marcando um importante momento e uma
relevante etapa das reivindicações feministas (HAHNER, 2003).
No Estado Novo os líderes do novo regime acreditavam nos papéis
diferenciados de maneira profunda entre homens e mulheres, e por isso se
mostram hostis às demandas femininas por mais igualdade. Segundo Hahner
(2003), com o Estado Novo, a reação antifeminista teria ganhado força, e às
mulheres (e os homens também) foi negada a oportunidade de exercerem
seus direitos eleitorais, mas só para elas os setores do governo se
encontrariam fechados, visto que foram proibidas de ingressar no serviço
público, espaço de atuação que havia sido conquistado pelas mulheres no
início dos anos 30.
No que tange à luta das mulheres pela emancipação social e política,
a implantação do Estado Novo pôs fim ao movimento feminista dos anos 1920
e 1930. A luta das feministas, iniciada nos anos 20, havia sido coroada na
década seguinte com várias conquistas, como o direito ao voto em 1932,
ratificado na Constituição de 1934. Esse direito permitiu que as mulheres
fossem representadas na Câmara dos Deputados por Carlota Perreira de
Queiroz, eleita deputada federal em 1933, e por Bertha Lutz, candidata pela
legenda do Partido Autonomista do Distrito Federal, como representante da
Liga Eleitoral Independente, entidade por ela criada também em defesa dos
direitos da mulher, em 1932, obteve a primeira suplência e, em 1936, ocupou
uma cadeira na Câmara, em virtude da morte do titular, deputado Cândido
Pessoa (HAHNER, 2003).
A desigual participação dos sujeitos na história política do Brasil dos
anos trinta e quarenta reflete-se na historiografia. Os homens aparecem
movimentando a história, como os protagonistas da produção historiográfica
e como os objetos mais estudados no campo histórico e no biológico. Essa
atenção maior ao sexo masculino está presente na vasta produção biográfica
sobre Getúlio Vargas e nos estudos sobre a sua trajetória política, e na
considerável produção sobre o seu governo e nos estudos biográficos sobre
os homens públicos que participavam do poder. Segundo Levi (1996, p. 180),
“a repartição desigual do poder, por mais e mais coercitiva que seja sempre
deixa alguma margem de manobra para os dominados; estes podem então
impor aos dominadores mudanças nada desprezíveis”.
As mulheres permaneceram em luta, organizadas em suas
associações, buscando avançar em suas conquistas por direitos civis,
políticos, trabalhistas. Em 1937, porém, com o golpe de Estado que instalou a
ditadura no Brasil, Getúlio Vargas extinguiu os partidos políticos do país,
incluindo, nos dispositivos legais, as organizações civis nos termos da
_____________________________________________________________
2
Ver GOMES (1989); MUNAKATA (1981); SILVA (1990); MARTINS (1998) e Revista Estudos Histórico
(1997), quanto ao aspecto biográfico.
1056
hipótese expressa de registro civil. Em conseqüência, foram dissolvidas
diversas associações civis, dentre as quais a Federação Pernambucana para
o Progresso Feminino, assim permanecendo até que passasse a existir sob
diferente denominação, dentro da finalidade que voltasse apenas ao aspecto
cultural e beneficente. As mulheres da classe média e da elite urbanas se
manteriam unidas e organizadas em associações, sob inspiração da Igreja
Católica ou diretamente tutelada por ela, lutando, sobretudo pela moralização
dos costumes, pelo fortalecimento da família e pela difusão dos princípios
éticos e valores católicos, a exemplo da Campanha Pró-Decência na Praia,
iniciada no Recife, em 1939 (FAUSTO, 1981).
Um dos problemas destacado por aqueles que estudam mulher e
política é a desigual presença e participação dessas personagens no cenário
nacional e, por conseqüência, a dificuldade enfrentada para a obtenção de
fontes de pesquisa que permitem conhecer e avaliar as experiências
femininas e políticas do passado. O Governo Provisório se autodefinia como
um poder passageiro na vida política do país, havendo de ser substituído
pelos legítimos representantes da nação – segundo determinasse a
Assembléia Nacional Constituinte. A revisão da legislação eleitoral e a
elaboração de um novo código eleitoral, compromisso assumido por Getúlio
Vargas, constituíram um dos atos políticos mais importantes do Governo
Provisório. O Decreto nº 21.076, de 24 de fevereiro de 1932, regulamentava o
alistamento e o processo eleitoral no país, nos âmbitos federal, estadual e
municipal, trazendo uma série de inovações, dentre as quais se destacava o
estabelecimento do sufrágio universal e secreto. Mais ainda, o novo código
ampliava o corpo político da nação, concedendo o direito de voto a todos os
brasileiros maiores de vinte e um anos, alfabetizados e sem distinção de
sexo. As mulheres brasileiras adquiriam assim, pela primeira vez e após
árdua luta, cidadania política, contribuindo para o aumento significativo do
número de votantes no país (TABAK & TOSCANO, 1982).
Para os historiadores (as) da política, os conceitos mais
imprecisos e importantes são o de poder e de política. Segundo Foucault
(1985), o poder deixou de ser concebido como algo localizável em um
determinado centro (por exemplo, no Estado), ou pertencente e detido por
alguns. Na concepção do autor, não há, de um lado, os possuidores do poder
e, do outro, os destituídos dele, uma vez que o poder é caracterizado como
exercício e, como tal, está em constante movimento. Com base nessa
concepção de poder, Soihet (1997), elabora um aparato teórico-metodológico
para a análise da relação mulher e poder. Apoiada no argumento de Arlete
Farge (1991) que preconiza ser necessário, na análise das relações de poder,
equacionar a idéia de dominação, concebendo-a como uma relação dialética,
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3
June E. Hahner. A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850-1937. A pesquisadora frisa que “a
história das mulheres desilude-nos da noção de que a história da mulher seja a mesma que a história dos
homens, e de que os pontos de mudança significativos na história exercem o mesmo impacto num sexo
como no outro” (1981, p. 15 e 21).
1057
Soihet a interpreta afirmando que a autora evita o binômio
dominação/subordinação como único terreno de confronto para colocar no
seu lugar os complexos contra-poderes femininos: poder maternal, social,
poder sobre outras mulheres e as subseqüentes compensações no jogo das
seduções e do reinado feminino.
No que tange ao conceito de política, para Scott (1992), a
palavra carrega diversos significados e ressonâncias. A autora identifica três
deles: o primeiro pode ser uma atividade dirigida para ou em governos ou
outras autoridades poderosas, atividade esta que envolve um apelo à
identidade coletiva, à mobilização de recursos, à avaliação estratégica e à
manobra tática; o segundo é também utilizado para referir-se às relações de
poder mais gerais e às estratégias visadas para mantê-las ou contestá-las; no
terceiro, a palavra política é aplicada ainda mais amplamente às práticas que
reproduzem ou desafiam o que, às vezes, é chamado de ideologia e que, por
isso, são encarados como naturais, normativas ou auto-evidentes. Para
Scott, o emprego da palavra, em qualquer sentido, tem múltiplas
ressonâncias, produzindo narrativas políticas.
Um dos estudos pioneiros sobre o tema mulher e política é o de June
Hahner, no final do século XIX e início do XX, “a mulher brasileira e suas lutas
sociais e políticas” (1981). A pesquisadora norte-americana que se dedicou
ao exame dos movimentos pelos direitos da mulher e do movimento
sufragista no Brasil, alerta para pontos importantes no seu estudo sobre
assuntos relacionados à mulher. Considera que a desatenção ou negligência
ao sexo feminino é motivada pela história tradicional e por aqueles que a
escrevem. Desde que a cultura na sociedade sempre foi transmitida pelos
homens, a seleção dos fatos e o registro histórico obedeceram,
conseqüentemente, a uma perspectiva masculina. E tudo o que se relaciona
às atividades do segundo sexo, sem falar no seu modo de pensar e agir, seria
considerado sem significado e até indigno de menção. Sua obra é apoiada
teoricamente no feminismo e na história social, a autora apreende na
imprensa feminista do século XIX a insatisfação das mulheres como o
tratamento não igualitário presente nas leis e nos costumes que regulavam a
sociedade brasileira, bem como as estratégias de participação criadas pelas
mulheres em dois momentos; o abolicionista e o sufragista. No sufragismo, a
injustiça e a desigualdade presentes nas leis e nos costumes que regulavam
a sociedade se transformaram em bandeira de luta das mulheres, mediante o
seu efetivo envolvimento.
Nos anos de 1990, a história política e das mulheres passaram
a compartilhar alguns pressupostos que as aproximam. No que tange à
história política, a renovação verificada nesse campo do saber supressão dos
objetos e temas tradicionais, como os partidos, as grandes figuras, as
_____________________________________________________________
4
Sobre o assunto ver “Nova história política”, REMOND (1996) e FALCON (1997).
1058
instituições, mas quanto à forma de trabalhá-los, que está sendo enriquecida
por novas perspectivas de análises e abordagens.
No âmbito da história das mulheres, M. Perrot (1995, 1998) e J.
Scott (1990, 1992, 1994) são algumas das defensoras da ampliação do
campo de análise da relação das mulheres como o poder e com a política.
Esses estudos, embora partam de interpretações diferentes acerca do
feminismo na história e na historiografia, norteiam esta investigação.
As estratégias desenvolvidas pelas mulheres para a conquista
de direitos políticos ou da cidadania constituíram um dos principais eixos dos
estudos sobre a atuação feminina na vida pública e na participação política.
Na produção acadêmica, sobretudo a partir da década de 1980, observa-se a
utilização da vertente biográfica nos estudos. São vários os trabalhos
produzidos nessa perspectiva metodológica, dentre os quais o de Rachel
Soihet (1974); “Bertha Lutz e a Ascensão social da mulher”; Miriam Lifchitz M.
Leite (1984), “Outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura”; e ainda o
de Mônica R. Schpun (1997), “Carlota Pereira de Queiróz: uma mulher na
política”. Por intermédio das personagens, todas vinculadas ao feminismo e
que se destacaram na cena histórica pela luta e participação na política, as
autoras aproximam-se dos debates e dilemas enfrentados por essas
mulheres na conquista dos direitos políticos, nas organizações feministas e
no exercício do poder, já que algumas foram deputadas.
E é nesse contexto que as mulheres organizam-se em
associações, fazem pronunciamentos públicos, utilizando-se fartamente da
imprensa, buscam o apoio de lideranças nos diversos campos, constituindo
grupos de pressão visando garantir apoio de parlamentares e de outras
autoridades, da imprensa, da opinião pública. Apesar disso, em sua maioria,
buscam revestir o seu discurso de um tom moderado, na minha concepção,
por razões táticas. Pois, questões inovadoras para a época, não deixam de
ser focalizadas por Bertha, que se contrapõe à intocável divisão de esferas
entre mulheres e homens, ao enfatizar o exercício do trabalho extra-
doméstico, mesmo para as mulheres casadas, independentemente da
condição do marido.
Ao final da luta, as feministas tiveram suas reivindicações
concretizadas na Constituição de 1934. Nela foram incorporadas muitas das
sugestões de Bertha Lutz como membro da Comissão que elaborou o
anteprojeto. Através delas constata-se que a referida líder revela interesse
marcante pelos aspectos básicos da sociedade brasileira, ao mesmo tempo
em que se preocupou em propiciar às mulheres condições de se integrar nos
vários planos da vida nacional e internacional. Bertha Lutz foi a candidata
indicada para representar o movimento feminista na Câmara Legislativa
Federal, obtendo o apoio do Bispo de Niterói, aspecto expressivo das táticas
utilizadas, no sentido de buscar alianças entre os grupos que
tradicionalmente a elas se opunham e inúmeros eram os católicos adversos
ao feminismo. Nas eleições de 1933, apesar de receber 39.008 votos, Bertha
1059
Lutz ficou como suplente integrando a Câmara Federal em 1936, ao falecer o
deputado titular, destacando-se pela sua intensa e profícua atuação
(SOIHET, 1974).
Mas não apenas entre parlamentares manifestaram-se
acirradas manifestações de oposição à participação feminina. Na imprensa, a
situação não se afigurava mais favorável ao feminismo. Ao longo do tempo,
este vinha sendo objeto de caricaturas pejorativas em crônicas e charges,
nas quais se busca passar a mensagem do pavor e do cômico que
representaria a participação de mulheres em esferas consideradas próprias
dos homens. Uma das conseqüências seria a desordem familiar, mulheres
passariam todo o dia no escritório ou em assembléias, vendo-se os maridos
envolvidos nos cuidados com os filhos, atividade para a qual não
apresentariam quaisquer habilidades, daí decorrendo a péssima qualidade
da alimentação, não cumprimento de horários, o caos doméstico. Nesse
sentido, para muitos homens, as recentes conquistas femininas na política,
no direito, no trabalho, representavam uma ameaça. Mais que uma possível e
indesejada concorrência com o elemento masculino nos domínios agora
compartilhados, temiam que as novas ocupações as fizessem desinteressar-
se pelos assuntos domésticos. Tinham medo que a desestruturação da
família, célula base da sociedade, a desintegração do lar, a desmoralização
dos costumes, o abandono dos princípios éticos e religiosos católicos
(CHARTIER, 1995).
As próprias mulheres, porém, ao menos aquelas que buscam
as mudanças, as mais e as menos empolgadas com a luta e as conquistas da
mulher, com o seu direito ao voto e participação na política, afirmavam que as
mudanças não significavam uma ruptura brusca e completa com o passado,
com a forma de organização da vida social e com os valores tradicionais que
nortearam suas existências até então. Não viam incompatibilidade entre ter
uma casa, marido e filhos e exercer a cidadania política, materializada pelo
exercício do voto livre, ou atuar profissionalmente fora do lar.
Neste contexto de mudança da mentalidade e emancipação da mulher,
Miriam Moreira Leite trouxe à tona, em rica biografia, suas reflexões sobre os
diversos aspectos da condição feminina. Assinalou suas posições
avançadas, 21 em muitos aspectos similares àquelas das feministas da
década de 1960. Mostra-a como uma severa crítica da dupla moralidade
vigente, da hipocrisia reinante na organização da família com seu
complemento: a prostituição, preocupando-se com questões interditadas na
época como a. sexualidade e o corpo (MOREIRA LEITE, 1984).
Permaneceriam as mulheres sem poder dispor livremente de
sua sexualidade. Manter-se virgem, enquanto solteira e fiel quando casada,
era sinônimo de honra feminina; a qual se estendia a toda família,
constituindo-se num conceito sexualmente localizado, violência que se
constituiu em fonte de múltiplas outras violências. Enquanto aos homens
estimula-se o livre exercício da sexualidade, símbolo de virilidade, na mulher
1060
tal atitude é condenada, cabendo-lhe reprimir todos os desejos e impulsos
dessa natureza. Pois, mulheres solteiras que se deixassem desvirginar
perdiam o direito a qualquer consideração e, no caso de uma relação
ilegítima, não se sentiam os homens responsabilizados por sua atuação,
devendo àquelas arcar com o peso das conseqüências dos seus erros. Afinal,
a pureza, a candura e fragilidade eram virtudes fundamentais para a mulher,
constituindo-se o desconhecimento do corpo em signo de alto valor, em um
contexto em que a imagem da Virgem Maria era exemplar para as mulheres.
E, assim, mulheres abandonadas expunham suas vidas em práticas
abortivas toscas e apressadas, Outras suspeitas de arriscarem viver sua
sexualidade fora do casamento foram assassinadas em nome da "legítima
defesa da honra" (SOIHET, 1989). No que tange ao último aspecto,
reconheço a dificuldade, naquele momento, de mulheres dos segmentos
médios elevados assumirem uma postura dessa natureza, quanto a um
assunto considerado como tabu. Havia a questão política, pois consideravam
as outras demandas como prioritárias. E face às preocupações com a
aceitação do movimento pela opinião pública não ousaram sequer mencionar
tal questão.
Embora a conquista dos direitos formais, inscritos na
Constituição e nas leis, tenha a sua atualidade e a sua importância para a luta
das mulheres, fica claro que a superação das desigualdades entre os
espaços de homens e mulheres é uma questão política — e só com este
ponto de vista é que se pode, de fato, abrir novos caminhos. O discurso sobre
os direitos da mulher, sua integração à economia, é hoje generalizado. Resta
saber com que perspectiva isto vem se dando. Assim, definir o papel do
Estado e defender o modelo que queremos, é o tema central para a agenda
dos movimentos de mulheres. Retomando Brenner, a quebra da divisão por
gênero irá requerer a reorganização de como nós, mulheres e homens, nos
organizamos e realizamos as necessidades humanas (BRENNER, 1993).
Considerações
A partir desse balanço na produção historiográfica é que encontramos
argumentos que sinalizam tantas mulheres trilhando seu percurso,
construindo uma história, seja no espaço público ou privado, tornando-se
agentes de sua própria história, sujeitos dela. Afinal penetrar na esfera
pública era um velho anseio por longo tempo vedado às mulheres. Significava
uma conquista, possibilitando-lhes, segundo Hannah Arendt (2005), assumir
sua plena condição humana através da ação política, da qual por longo tempo
permaneceram violentamente excluídas. Passavam as mulheres a garantir
sua transcendência, pois o espaço público, afirma aquela filósofa, não pode
ser construído apenas para uma geração e planejado somente para os que
estão vivos: deve transcender a duração da vida dos homens mortais, aos
quais acrescentamos, também, a das mulheres mortais.
A atividade política é eminentemente um processo público
1061
porque atinge questões que afetam o interesse de um grupo e não apenas de
algumas pessoas em particular. Por outro lado, o campo político refere-se às
dimensões de espaço-tempo onde as atividades políticas ocorrem e à sua
acentuada mobilidade. Pode, portanto, existir mais de um campo político ao
mesmo tempo, conforme os limites estabelecidos pelos interesses e
envolvimento de seus participantes. É sob esta perspectiva que podemos
compreender as múltiplas possibilidades de participação das mulheres na
arena política
Em suas múltiplas possibilidades de participação pode ser
colocada em xeque a sub-representação feminina nos processos de tomada
de decisão. Embora não seja possível analisar os diversos processos sociais
que incidem sobre a exclusão das mulheres no campo político, é possível
observar que a luta das mulheres em busca de direitos tem contribuído para
aumentar o número de mulheres em cargos políticos, bem como em outras
conquistas no espaço público. A descentralização administrativa inaugurada
pela Constituição Federal, e a inclusão de instrumentos de gestão
participativa e de controle social, a institucionalização de conselhos gestores
de políticas públicas, a adoção de estratégias de ação afirmativa, são alguns
dos mecanismos que vem contribuindo para a ampliação da participação
feminina. Contudo, fica uma questão para reflexão: em que medida o
aumento da participação feminina será traduzido em políticas voltadas para a
redução das desigualdades de gênero ou para construção de relações
simétricas e não discriminatórias?
1062
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