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A Narrativa e a Experiência em Walter Benjamin

Francine Oliveira
Universidade do Minho

Resumo
Este trabalho tem como objectivo apresentar uma análise do ensaio “O Narrador” do
filósofo alemão Walter Benjamin. O autor fez parte da Escola de Frankfurt e é considerado
por alguns estudiosos como um filósofo da melancolia. Em “O Narrador”, Benjamin
discute uma série de formas bastante díspares de narrativa, entre elas a historiografia
clássica (Heródoto), a epopeia grega, a crónica medieval, o romance de cavalaria e o conto
popular (Märchen) e a “desorientação” moral das formas especificamente modernas, cultas
e urbanas de narrativa (romance moderno, short-story, jornal). A contraposição entre o
moderno e o tradicional revela como a teoria benjaminiana da narrativa depende de uma
teoria da modernidade, na qual a cultura moderna é concebida através do desaparecimento
da figura do narrador tradicional. O tema da narrativa tornou-se central em muitas
discussões das ciências sociais e da filosofia no mundo contemporâneo. Esse ensaio de
Walter Benjamin é certamente um precursor das formulações actuais, tendo por isso, se
tornado um clássico em vários campos do conhecimento (filosofia, teoria da literatura,
teoria da comunicação, historiografia, etc.). Muitas foram as tentativas de instrumentalizar
os conceitos defendidos por Benjamin. Tentativas estas surgidas com intuito de justificar
uma visão folclórica ou neo-tradicionalista da literatura oral. Porém, esqueceram-se que,
para Walter Benjamin, a narrativa tradicional está irremediavelmente perdida e o autor não
propõe nenhuma forma de retorno à tradição. Sendo assim, qual a relação, na obra "O
Narrador", entre a “experiência” e a “narrativa”?

Este trabalho teve como objectivo analisar, através da leitura do ensaio “O


Narrador” (1936) do filósofo alemão Walter Benjamin, e de alguns comentários a este texto
clássico, o modo como o filósofo contemporâneo define a ideia de narrativa, dando-lhe um
significado inédito até então.

Nesse ensaio, Benjamin discute uma série de formas bastante díspares de narrativa,
entre elas a historiografia clássica (Heródoto), a epopeia grega, a crónica medieval, o
romance de cavalaria e o conto popular (Märchen). A hipótese central do texto consiste na
busca de um substrato comum a todas formas de narrativa percebidas por esse filósofo, a
saber, seu aspecto colectivo, oral e pedagógico, por oposição ao individualismo e a
“desorientação” moral das formas especificamente modernas, cultas e urbanas de narrativa

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(romance moderno, short-story, jornal). A contraposição entre o moderno e o tradicional
revela como a teoria benjaminiana da narrativa depende de uma teoria da modernidade, na
qual a cultura moderna é concebida através do desaparecimento da figura do narrador
tradicional. O tema da narrativa tornou-se central em muitas discussões das ciências sociais
e da filosofia no mundo contemporâneo. Esse ensaio de Walter Benjamin é certamente um
precursor das formulações actuais, tendo por isso se tornado um clássico em vários campos
do conhecimento (filosofia, teoria da literatura, historiografia). Poucas vezes, no entanto,
este texto foi lido com o devido cuidado. O mais frequente são as apropriações rápidas,
como, por exemplo, as tentativas de instrumentalizar os conceitos de Benjamin no sentido
de justificar uma visão folclórica ou neo-tradicionalista da literatura oral, esquecendo-se
que Walter Benjamin considera a narrativa tradicional como irremediavelmente perdida e
não propõe nenhuma forma de retorno à tradição.

O conceito de ‘narrativa’ aparece no dicionário Houaiss (2001: 308) como “história,


conto, narração, o por fim, modo de narrar”. Palavra ‘narrativa’ deriva do verbo ‘narrar’,
cuja etimologia provém do latim narrare, que remete ao ato de contar, relatar, expor um
fato, uma história. No entanto, Walter Benjamin percebeu que essa palavra – narrativa –
estava imbuída de muito mais sentido/significado. Esse conceito -‘Narrativa’- carrega um
significado histórico-sociológico. Não por acaso que o filósofo alemão dedicou um ensaio
inteiro a esse tema e o intitulou “O Narrador”.

Percebemos no ensaio “O Narrador” a preocupação sempre presente de Walter


Benjamin em esclarecer e reafirmar a definição original que atribuiu a ‘narrativa’ e, assim,
realçar a distinção existente entre esta última e ‘romance’. Além disso, Benjamin critica
tanto a historiografia “progressista” da social-democracia alemã de Weimar que trata da
ideia de um progresso inevitável e cientificamente previsível como também, a historiografia
“burguesa” contemporânea. Esta última diz respeito ao historicismo, oriundo da grande
tradição académica que pretendia reviver o passado através de uma espécie de identificação
afectiva do historiador com o seu objecto.

Essa teoria sobre a relação de Benjamin com a historiografia seja, progressista ou


burguesa, foi explicitada por Jeanne Marie Gagnebin, no prefácio “Walter Benjamin ou a
história aberta” do livro Obras Escolhidas (Benjamin, 1993). Gagnebin percebe ainda que

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ao falar da relação do filósofo alemão com essas duas concepções de historiografia, ambas
se apoiam na concepção de tempo. As duas formas de tempo apontadas por Gagnebin
seriam: o cronológico e linear e o tempo homogéneo e vazio. Segundo Gagnebin, Benjamin
acredita que o ideal seria um historiador “materialista”, ou seja, aquele historiador capaz de
fundar um novo conceito, o do “tempo de agora”. Com esta afirmação, Gagnebin remete a
uma vasta teoria que inclui a tradição messiânica e a mística judaica. É importante destacar
que, toda a análise da obra de Benjamin realizada por Jeanne-Marie Gagnebin se
desenvolve em torno da ideia de experiência colectiva (Erfahrung).

O ensaio de Walter Benjamin inicia com a observação de que o "Narrador" não


consegue mais ser plenamente eficaz na sua proposta de narrar. Esse narrador agora se
mostra distante e tendencia a continuar a sê-lo.

É cada vez mais raro encontrar pessoas que saibam narrar qualquer coisa com correcção
(Benjamin, 1992: 28).

Para Benjamin, com o passar do tempo e com a chegada dos tempos modernos, foi-
se deixando de existir a ‘capacidade’ de contar história. Faculdade esta que para Walter
Benjamin parecia ser inalienável. E talvez seja essa constatação que acarreta a sua
‘decepção’ e a sua ‘melancolia’ (ou pelo menos parte delas).

De acordo com Benjamin, ao nos ser retirada essa faculdade, instaurou-se a


incapacidade de trocar “experiências”. Como exemplo disso veio a hipótese de que a
Guerra trouxe experiências desmoralizadas nunca antes vividas. A partir dessa conclusão,
Benjamin apresenta dois grupos de narradores arcaicos que, segundo afirma, existiam antes
do período da Guerra. São eles:

► Agricultor sedentário (que mantém as tradições)

► Mercador dos mares (que traz a novidade)

Para Walter Benjamin as melhores narrativas escritas eram aquelas que mais se
aproximavam das histórias orais contadas por inúmeros narradores anónimos. Benjamin
percebe em Lesskov características próximas ou similares àquelas existentes nos
narradores arcaicos. Lesskov utiliza o ‘Justo’ como a principal figura das suas narrativas.

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Esse personagem - o Justo - aparece como o homem simples e laborioso que se torna santo.
Lesskov escreveu vários escritos sobre a classe operária, o alcoolismo, os médicos da
polícia, os negociantes desempregados (Benjamin, 1992: 30), considerados por Benjamin
como ‘os precursores das narrativas’.

O filósofo alemão considera o advento da informação como demonstração da morte


da narrativa. Essa forma de ‘Narrativa’ existiu como um meio ‘artesanal’ de comunicação
que não resistiu às mudanças da modernidade. Na perspectiva de Benjamim existem
incompatibilidades inconciliáveis entre a narrativa e a informação. A primeira oferece
reflexão, espanto e nunca se exaure; a segunda surge de forma efémera e somente tem
validade enquanto novidade. Para Benjamin, a short-story aparece como comprovação da
sua denúncia em relação à efemeridade do mundo actual. Ela pode ser definida como uma
abreviatura da narrativa, um encurtamento necessário mediante a dinâmica do mundo
moderno.

Walter Benjamin cita Paul Valery: (...) já lá vai o tempo em que o tempo não
contava. O homem de hoje já não se dedica a coisas que não possa abreviar (1992: 38).
Benjamin faz, também, uma distinção entre o historiador que ‘escreve histórias’ e o
cronista que ‘narra histórias’.

O historiador é obrigado a explicar, de uma forma ou de outra, os acontecimentos a que se


refere; não se pode limitar, de modo algum, a apresentá-los como modelos do devir do
mundo. Essa tarefa é do cronista (1992: 42).

O filósofo alemão lembra a definição de memória como uma capacidade épica. A


Mnemosia, deusa da reminiscência, era a musa do género épico entre os gregos. Segundo o
autor, existe uma diferença de actuação da lembrança na narrativa e no romance, sendo
ambos advindos da epopeia. Segundo Benjamin, o romance emancipou-se da epopeia. As
epopeias homéricas dividem-se em dois momentos: o da memória perenizante do
romancista em oposição à memória de entretenimento do narrador (Benjamin, 1983: 67).

Portanto, podemos dizer que:

► Romance – existência de heróis, odisseia, luta, recordação.

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► Narração – acontecimentos dispersos, memória.

Para Benjamin, o romance se move em torno do ‘sentido da vida’ enquanto a


narrativa se detém na ‘moral da história’:

Acção interna do romance não é outra coisa senão a luta contra o poder do tempo (1983: 67).

Segundo a perspectiva benjaminiana Dom Quixote representa o primeiro modelo


perfeito de romance e Educação Sentimental o mais recente. Benjamin acha que quem
ouve a história narrada está acompanhado pelo narrador, mas o leitor do romance é sempre
um solitário. O romance possibilita o leitor ‘viver’ a morte através da leitura.

Benjamin tem uma posição particular em relação ao conto de fadas que aparece
como o primeiro conselheiro das crianças, assim também como da humanidade, e
permanece vivo na narrativa. As aflições e conflitos podem ser resolvidos a partir do conto
de fadas que oferece uma ajuda/auxílio através do conselho. Lesskov quase se rende ao
mítico quando vai falar do ‘Justo’, colocando em perigo a pureza do conto de fadas. Para
Benjamin, Lesskov demonstra uma visão aproximada do mundo místico e revela traços de
um narrador nato.

O narrador é a forma na qual o Justo se encontra a si próprio (Benjamin, 1992: 57).

O autor diz ainda que o ‘Narrador’ tem como sua matéria a vida humana e
estabelece com ela uma relação artesanal. Esse ‘Narrador’ sabe, por isso, dar conselhos (no
sentido de conselho verdadeiro - Rat) como um sábio, podendo basear-se na experiência
(Erfahrung) de toda uma vida, de uma vida de todos.

Percebemos que por trás da preocupação recorrente de Walter Benjamin em definir


‘o narrador’ e ‘narrativa’ existe uma intenção maior. Benjamin sente ainda a necessidade
em comparar esses conceitos e diferenciá-los com outros como o ‘romance’ e o ‘autor de
romance’. Entendemos ainda que a preocupação de Walter Benjamin está, antes de mais
nada, em demonstrar a perda do carácter de experiência colectiva, e de denunciar os

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problemas que surgem devido a esse acontecimento. O problema percebido por Benjamin
está na impossibilidade da comunicação. O autor enxerga a morte da ‘comunicabilidade’
através do enfraquecimento/declínio da Erfahrung (experiência colectiva). E devido a esse
acontecimento e paralelamente a ele, que se dá o fim da narração tradicional.

Jeanne Marie Gagnebin considera que Benjamin deposita um certo tom nostálgico
em sua obra quando se refere a questões que remetem a memória e passado, mas segundo
Gagnebin, seria uma postura muito aceitável quando se trata de teóricos do
“desencantamento do mundo”. Porém, Benjamin não se retém a esse posicionamento e vai
muito além de uma mera crise melancólica. Benjamin denuncia a perda da nossa
capacidade de ‘contar’ e de ‘compartilhar experiências’, surgindo assim, o fim da arte da
narrativa tradicional, que dependia dessa habilidade.

Mas Benjamin não se restringe a essa denúncia. Por trás de toda essa preocupação o
autor percebe que o problema da ‘narração’ está directamente vinculado aos das mudanças
e paradoxos da sociedade moderna. Essa seria, pois, a verdadeira questão, a problemática
central. Portanto, a impossibilidade da narração e a exigência de uma nova história, que
surge com o aparecimento do ‘romance’ são sintomas de uma sociedade que mudou.
Desponta, então, por trás de toda essa temática, o problema que Walter Benjamin percebe e
quer revelar.

O contraponto está em uma “tradição perdida que era compartilhada e retomada na


continuidade de uma palavra transmitida de pai para filho, continuidade e temporalidade
das sociedades artesanais” em oposição a uma sociedade que vive “o tempo deslocado e
entrecortado do trabalho no capitalismo moderno”26. A partir dessa mudança os indivíduos
de uma mesma colectividade já não têm a Bildung (a verdadeira formação) e não podem e
não conseguem escutar e seguir as histórias. Acarreta, portanto, a perda da orientação
prática, e resta-nos a ‘des-orientação’ (Rat-losigkeit), ou seja, a incapacidade em dar e
receber um verdadeiro conselho (Rat)27.

26
Fragmento adaptado do texto “Não contar mais?” autoria de Jeanne Marie Gagnebin que se encontra na
obra História e Narrativa em Walter Benjamin. p. 66.
27
Idem.

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Concluímos que a tese defendida por Benjamin nesse ensaio é a de que a única
‘experiência’ que pode ser transmitida/ensinada nos dias de hoje seria a da
impossibilidade/inexistência da experiência (Erfahrung). Portanto, ao nosso ver, no texto o
‘Narrador’, Walter Benjamin nos convida a reflectir sobre o fim da experiência e das
‘narrativas tradicionais’ e para a substituição da antiga tradição por um novo
comportamento da sociedade. Para o autor, surge uma nova forma de ‘narrativa’, que abre
espaço para o romance clássico, para o jornal, aceitando a solidão do autor, assim como da
personagem e do leitor, ou seja, do homem na sociedade. Perpetua-se a falsa sensação de
colectividade enquanto, na verdade, ampliam-se as distâncias espaço-temporais entre os
indivíduos da sociedade contemporânea.

O importante é percebermos que, ou, resta a nós, indivíduos solitários dessa


sociedade capitalista, viver experiências individuais efémeras, ‘experiências vividas
isoladamente’ (Erlebnis) por causa de um esfacelamento social, ou, ao contrário disso,
conseguirmos inverter essa situação e evitar uma acomodação. Assim, poderemos
modificar sistemas falidos e criar estruturas mais sólidas para as nossas sociedades a partir
das nossas próprias experiências individuais (Erlebnis).

Referências Bibliográficas

Benjamin, W. (1992) Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Tradução de Maria


Amélia Cruz et al. Lisboa: Relógio D´Água.
Benjamin, W. (1993) Magia e Técnica, Arte e Política: Ensaios sobre Literatura e História
da Cultura. Obras Escolhidas. Volume I. 5. Ed. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São
Paulo: Brasiliense.
Benjamin, W. (1983) Textos Escolhidos – Walter Benjamin et al. Tradução de Modesto
Carone et al. São Paulo: Abril Cultural, (coleção Os Pensadores).
Benjamin, A.; Osborne, P. (orgs.). (1997) A Filosofia de Walter Benjamin – Destruição e
Experiência. Tradução de Maria Luiza de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar.
Gagnebin, J. M. (1994) História e Narrativa em Walter Benjamin. São Paulo:
Perspectiva/FAPESP, (coleção estudos: 142).
Gagnebin, J. M. (1982) Walter Benjamin: os cacos da História. Tradução de Sónia
Salzstein. São Paulo: Brasiliense.

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Houaiss, A. (2001) Minidicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
Objetiva.

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