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A MORDOMIA NA BÍBLIA

Filipe Dunaway

“Coisa mais bem-aventurada é dar do que receber”


(palavras de Jesus, conforme Paulo em Atos 20.35)

O Dízimo

A palavra dízimo vem do termo latino decimus (= décimo) e significa “a décima parte.”
Ela é usada na Bíblia para traduzir o vocábulo que se refere à exigência na Lei Mosaica
que diz que todos os israelitas deveriam dar uma décima parte de sua colheita e animais
para a manutenção de seus líderes religiosos e para ajudar os pobres. Os principais textos
no Antigo Testamento sobre o dízimo são Números 18.21-26 e Deuteronômio 14.22-29,
os quais destacam aspectos diferentes sobre a obrigação de contribuir este tributo
religioso. Citamos apenas o trecho de Deuteronômio, pois ele expressa claramente os
aspectos mais importantes sobre a lei do dízimo:

“22 Certamente darás os dízimos de todo o produto da tua semente que cada ano se
recolher do campo. 23 E, perante o Senhor teu Deus, no lugar que escolher para ali fazer
habitar o seu nome, comerás os dízimos do teu grão, do teu mosto e do teu azeite, e os
primogênitos das tuas vacas e das tuas ovelhas; para que aprendas a temer ao Senhor teu
Deus por todos os dias. 24 Mas se o caminho te for tão comprido que não possas levar os
dízimos, por estar longe de ti o lugar que Senhor teu Deus escolher para ali por o seu
nome, quando o Senhor teu Deus te tiver abençoado; 25 então vende-os, ata o dinheiro na
tua mão e vai ao lugar que o Senhor teu Deus escolher. 26 E aquele dinheiro darás por
tudo o que desejares, por bois, por ovelhas, por vinho, por bebida forte, e por tudo o que
te pedir a tua alma; comerás ali perante o Senhor teu Deus, e te regozijarás, tu e a tua
casa. 27 Mas não desampararás o levita que está dentro das tuas portas, pois não tem parte
nem herança contigo. 28 Ao fim de cada terceiro ano levarás todos os dízimos da tua
colheita do mesmo ano, e os depositarás dentro das tuas portas. 29 Então virá o levita
(pois nem parte nem herança tem contigo), o peregrino, o órfão, e a viúva, que estão
dentro das tuas portas, e comerão, e fartar-se-ão; para que o Senhor teu Deus te abençoe
em toda obra que as tuas mãos fizerem.” (Deuteronômio 14.22-29).

Os antigos judeus, no período após o Antigo Testamento, interpretaram estes textos como
exigindo três dízimos diferentes a serem pagos pelo povo israelita: (1) o primeiro dízimo
dos produtos agrícolas, pago anualmente para sustentar o ministério no Templo, isto é, os
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levitas que não possuíam terras como os outros israelitas (os levitas, por sua vez, pagaram
um dízimo deste dízimo para sustentar os sacerdotes e o culto no Templo [Núm 18.26;
Neemias 10.37-39]) ; (2) o segundo dízimo dos produtos agrícolas, a ser consumido pelo
proprietário com sua família, dependentes e convidados, numa festa em Jerusalém (veja
acima Dt 14.23); e (3) o dízimo destinado aos pobres (veja acima Dt 14.29), o qual tomou
o lugar do segundo dízimo nos terceiros e sextos anos de cada período de sete anos.1

Vista que as leis sobre o dízimo não dizem nada sobre os métodos a serem usados para
colher o dízimo, tudo dependia da consciência do contribuinte. Sabemos que isto não
funcionou muito bem, pois houve uma necessidade de fazer um pacto que dizia que os
levitas, acompanhados por um sacerdote, deveriam visitar as comunidades agrícolas para
colecionar os dízimos: “eles, os levitas, recebem os dízimos em todas as cidades por onde
temos lavoura. E o sacerdote, filho de Arão, deve estar com os levitas quando estes
receberem os dízimos” (Ne 10.37-38). Contudo, este pacto não resolveu o problema, pois
quando Neemias fez sua segunda visita a Jerusalém (432 a.C.), ele descobriu que os
dízimos não estavam sendo pagos e os levitas haviam abandonado o Templo para tentar
ganhar a vida na roça (Ne 13.10). Esta situação lamentável se manifesta bem claramente
na pregação do profeta conhecido como Malaquias. Veja o que ele diz sobre a infidelidade
do povo em negligenciar o dízimo em Malaquias 3.6-12.

“6 Pois eu, o Senhor, não mudo; por isso vós, ó filhos de Jacó, não sois consumidos. 7
Desde os dias de vossos pais vos desviastes dos meus estatutos, e não os guardastes.
Tornai vós para mim, e eu tornarei para vós diz o Senhor dos exércitos. Mas vós dizeis:
Em que havemos de tornar? 8 Roubará o homem a Deus? Todavia vós me roubais, e
dizeis: Em que te roubamos? Nos dízimos e nas ofertas alçadas. 9 Vós sois amaldiçoados
com a maldição; porque a mim me roubais, sim, vós, esta nação toda. 10 Trazei todos os
dízimos à casa do tesouro, para que haja mantimento na minha casa, e depois fazei prova
de mim, diz o Senhor dos exércitos, se eu não vos abrir as janelas do céu, e não derramar
sobre vós tal bênção, que dela vos advenha a maior abastança. 11 Também por amor de
vós reprovarei o devorador, e ele não destruirá os frutos da vossa terra; nem a vossa vide
no campo lançará o seu fruto antes do tempo, diz o Senhor dos exércitos. 12 E todas as
nações vos chamarão bem-aventurados; porque vós sereis uma terra deleitosa, diz o
Senhor dos exércitos.” (Malaquias 3.6-12).

No Novo Testamento, o dízimo é mencionado apenas em três ocasiões: Duas vezes


Jesus fala sobre o dízimo ao repreender os fariseus, que eram bem rigorosos no
pagamento deste tributo (Lc 18.12; Mt 23.23 [= Lc 11.42]).

1G. F. Moore, Judaism in the First Centuries of the Christian Era (Cambridge: Harvard University
Press, 1954) Volume II, pág. 163, note 4. Veja também Samuel Sandmel, Judaism and Christian
Beginnings (New York: Oxford University Press, 1978) pág. 449, note 32.
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“Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! porque dais o dízimo da hortelã, do endro e
do cominho, e tendes omitido o que há de mais importante na lei, a saber, a justiça, a
misericórdia e a fé; estas coisas, porém, devíeis fazer, sem omitir aquelas.” (Mateus
23.23).

A terceira ocasião surgiu com a redação da Epístola aos Hebreus, na qual o autor
menciona o dízimo numerosas vezes no seu argumento acerca da superioridade de
Melquesideque, e portanto de Cristo, sobre Levi e os sacerdotes judaicos (Hb 7.6-9).

“6 mas aquele cuja genealogia não é contada entre eles, tomou dízimos de Abraão, e
abençoou ao que tinha as promessas. 7 Ora, sem contradição alguma, o menor é
abençoado pelo maior. 8 E aqui certamente recebem dízimos homens que morrem; ali,
porém, os recebe aquele de quem se testifica que vive. 9 E, por assim dizer, por meio de
Abraão, até Levi, que recebe dízimos, pagou dízimos.” (Hebreus 7.6-9).

À luz destes textos, devemos concluir que Jesus e os primeiros cristãos reconheceram que
o dízimo era uma prática judaica válida para a manutenção do culto do Templo e o
ministério ligado a ele. Entretanto, não há nenhum texto no Novo Testamento que diz que
os cristãos devem pagar o dízimo dos produtos agrícolas de suas terras ou o dízimo dos
seus salários para sustentar o culto da igreja e o ministério cristão. Por outro lado, não há
nada no Novo Testamento que diz que o cristão não deve dizimar. O Novo Testamento
fala bastante sobre a importância de contribuirmos generosamente ao trabalho do Senhor e
darmos alegremente para aliviar as necessidades dos outros. Portanto, uma igreja ou
denominação pode adotar a prática veterotestamentária de dar o dízimo como um meio de
suprir as necessidades financeiras de seus ministérios. Contudo, isto deve ser feito de um
modo coerente com a teologia do Novo Testamento, a saber, não legalisticamente, mas
como uma expressão voluntária de nosso compromisso com o Senhor e Sua Igreja. O ato
de dizimar deveria ser enraizado na graça e amor de Deus e, em consequência disto,
deveria ser uma expressão sincera de nossa gratidão por tudo que Deus fez por nós em
Cristo Jesus. Paulo expressa esta convicção nitidamente no trecho onde ele exorta os
coríntios a participar liberalmente da coleta para os santos em Jerusalém: “cada um
contribua segundo propôs no seu coração; não com tristeza, nem por constrangimento;
porque Deus ama ao que dá com alegria” (2 Co 9.7). 2

2Este parágrafo sobre o dízimo no Novo Testamento está baseado em Frank Stagg, New Testament
Theology (Nashville: Broadman Press, 1962), pág. 292-293.
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O Cristão e Seus Bens

Como é que o cristão deveria se relacionar com as coisas que lhe pertencem? Um dos
destaques do ensino de Jesus sobre a mordomia, isto é, o uso das cosias criadas por Deus
que, durante nossa vida terrestre, ficam sob nosso cuidado, é que
deveríamos ser livres da “tirania das coisas.” Esta expressão se refere à
tendência de deixar as coisas dominar nossa vida ao invés de nós dominar
as coisas e usá-las com responsabilidade perante Deus. Para Jesus, a
única maneira de evitar a “tirania das coisas”, este materialismo
destrutivo sem controle, é aceitar plenamente o senhorio de Deus em
nossas vidas:

✧ “Acautelai-vos e guardai-vos de toda espécie de cobiça; porque a vida do homem não


consiste na abundância das coisas que possui” (Lucas 12.15).

✧ “Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de odiar a um e amar o outro, ou


há de dedicar-se a um e desprezar o outro. Não podeis servir (douleuein)3 a Deus e às
riquezas” (Mateus 6.24).

✧ “Mas buscai primeiro o seu rein e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão
acrescentadas” (Mateus 6.33).

Tal advertência sobre o perigo da “tirania das cosias” se encontra não somente no Sermão
do Monte (veja embaixo), mas também nas parábolas de Jesus. Veja a Parábola do Rico
Insensato, em Lucas 12.16-21.

“16 Propôs-lhes então uma parábola, dizendo: O campo de um homem rico


produzira com abundância; 17 e ele arrazoava consigo, dizendo: Que farei? Pois não
tenho onde recolher os meus frutos. 18 Disse então: Farei isto: derribarei os meus
celeiros e edificarei outros maiores, e ali recolherei todos os meus cereais e os meus
bens; 19 e direi à minha alma: Alma, tens em depósito muitos bens para muitos anos;
descansa, come, bebe, regala-te. 20 Mas Deus lhe disse: Insensato, esta noite te
pedirão a tua alma; e o que tens preparado, para quem será? 21 Assim é aquele que
para si ajunta tesouros, e não é rico para com Deus.” (Lucas 12.16-21).

3O verbo usado aqui, douleúein (δουλεύειν), quer dizer “ser o escravo de” alguém. Jesus pressupõe
que todo ser humano se submeta a algum senhor, se fazendo escravo do mesmo. O indivíduo pode se
submeter a Deus, às riquezas, ao poder do mal ou a qualquer outra coisa, mas o que ele não pode fazer
é evitar ser um servo de algo maior do que ele mesmo.
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Onde Está o Teu Coração?

No Sermão do Monte, Jesus deu orientação bem específica sobre o problema que
estamos discutindo:

“19 Não ajunteis para vós tesouros na terra; onde a traça e a ferrugem os consomem,
e onde os ladrões minam e roubam; 20 mas ajuntai para vós tesouros no céu, onde
nem a traça nem a ferrugem os consumem, e onde os ladrões não minam nem
roubam. 21 Porque onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu
coração.” (Mateus 6.19-21).

E tudo indica que muitos dos primeiro cristãos seguiram este conselho com seriedade,
ajuntando tesouros no céu e, assim, demonstrando onde estavam seus corações. Algumas
semanas atrás, estudamos um exemplo disto, no caso da coleta que Paulo e seus
assistentes colheram para os crentes pobres em Jerusalém. Agora, vamos considerar mais
um bom exemplo da igreja primitiva no tocante à relação do cristão para com as coisas
materiais: o impressionante compartilhamento dos bens em Atos 4.32-37.

“32 Da multidão dos que criam, era um só o coração e uma só a alma, e ninguém
dizia que coisa alguma das que possuía era sua própria, mas todas as coisas lhes eram
comuns. 33 Com grande poder os apóstolos davam testemunho da ressurreição do
Senhor Jesus, e em todos eles havia abundante graça. 34 Pois não havia entre eles
necessitado algum; porque todos os que possuíam terras ou casas, vendendo-as,
traziam o preço do que vendiam e o depositavam aos pés dos apóstolos. 35 E se
repartia a qualquer um que tivesse necessidade. 36 então José, cognominado pelos
apóstolos Barnabé (que quer dizer, filho de consolação), levita, natural de Chipre, 37
possuindo um campo, vendeu-o, trouxe o preço e o depositou aos pés dos apóstolos.”
(Atos 4.32-37).

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