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O Andarilho Das Estrelas - Jack London PDF
O Andarilho Das Estrelas - Jack London PDF
Michel Sokoloff
Trimurti, Saint Tropez, março/93
Toda a minha vida percebi outros tempos, outros lugares. Percebi outras pessoas
em mim. E acredite-me, você também os percebia, você, meu futuro leitor.
Lembre-se de seus dias de criança; esse senso de percepção de que estou falando
lhe voltará como uma experiência da infância. Naquela época você não estava
formado, não estava cristalizado. Você era plástico, uma alma fluida, uma
consciência e uma identidade em processo de formação... ah, de formação e
esquecimento.
Você esqueceu muito, meu leitor; mas mesmo assim, ao ler estas linhas, você
lembra vagamente cenários nebulosos de outros tempos e outros lugares que seus
olhos de criança espreitaram. Hoje você afirma que foram apenas sonhos. Mas
se foram apenas sonhos um dia sonhados, de onde veio sua substância? Nossos
sonhos são feitos das coisas que conhecemos. A substância dos nossos sonhos é a
substância das nossas experiências. Quando criança, pequenino, você sonhava
que caía de grandes alturas; sonhava que voava pelos ares como os pássaros dos
céus; você se assustava com as aranhas rastejantes e as viscosas centopéias;
ouvia outras vozes e via rostos estranhamente familiares; via auroras e
crepúsculos que hoje, ao olhar para o passado, você sabe jamais ter visto.
Pois bem. Esses lampejos infantis têm uma qualidade de um outro mundo, de
uma outra vida, de coisas que você jamais viu neste mundo específico desta sua
vida de agora. Mas de onde? De outras vidas? De outros mundos? Talvez, depois
de ler o que vou escrever, você receba respostas às indagações que estou lhe
propondo; talvez você, antes até de ler meu livro, já tenha feito essas perguntas a
si mesmo.
Wordsworth sabia. Ele não era vidente nem profeta, apenas um homem comum,
como você ou qualquer outro ser humano. O que ele sabia, você sabe, qualquer
homem sabe. Mas ele o afirmou com perfeição naquela passagem que começa
por
Passei todo aquele dia no calabouço espremendo meu cérebro em busca de uma
razão para esse novo e inexplicável castigo. Tudo o que eu podia concluir era que
algum dedo-duro tinha jogado em mim a culpa de alguma infração, para cair
nas boas graças dos guardas.
Enquanto isso, um nervoso Capitão Jamie preparava-se para a noite e Winwood
avisava os quarenta condenados para ficarem prontos para a fuga. E duas horas
depois da meia-noite todos os guardas da prisão estavam de prontidão, incluindo o
pessoal do turno do dia (que deveria estar dormindo). Quando bateram as duas
horas, eles invadiram as celas ocupadas pelos quarenta. A invasão foi simultânea.
As celas foram escancaradas ao mesmo tempo e, sem exceção, os homens
indicados por Winwood foram encontrados fora de seus beliches, completamente
vestidos, acocorados atrás das portas. É claro que essa foi a comprovação
absoluta da trama de mentiras que o poeta-falsário tinha impingido ao Capitão
Jamie. Os quarenta condenados foram pegos na mais flagrante prontidão para a
fuga. E o que aconteceu quando eles todos confirmaram que a fuga tinha sido
planejada por Winwood? A Junta Diretora da Prisão acreditou, por unanumdade,
que os quarenta homens estavam mentindo para se salvar. A Junta de Apelação
também acreditou: antes de se passarem três meses, Cecil Winwood, falsário e
poeta, o mais desprezível dos homens, foi indultado.
Ah, a prisão — ou “a gaiola”, na gíria dos condenados — é uma escola de
treinamento filosófico. Nenhum prisioneiro consegue sobreviver a anos de prisão
sem que suas mais caras ilusões e suas mais preciosas especulações metafísicas
se esfacelem. A verdade sempre aparece, é o que nos ensinam; o crime não
compensa. Bem, esta é uma demonstração de que não é sempre que o crime não
compensa. O Capitão da Guarda, o Diretor Atherton, a Junta Diretora da Prisão,
todos eles ainda acreditam até hoje na existência daquela dinamite que nunca
existiu exceto no cérebro traiçoeiro e fantasioso do degenerado falsário e poeta
Cecil Winwood. E Cecil Winwood ainda vive, enquanto eu, o mais inocente de
todos os homens envolvidos naquele caso, vou para a forca dentro de poucas
semanas.
E agora vou contar como os quarenta condenados quebraram o silêncio dos
calabouços. Eu estava dormindo quando a porta do corredor abriu-se com
estrondo e me acordou. “Algum pobre-diabo”, foi o que pensei; e meu
pensamento seguinte foi que o tal pobre-diabo deveria estar passando por um
mau momento, pois ouvi o arrastar de pés, o impacto surdo de golpes na carne,
os gritos de dor, os palavrões e o som de corpos sendo arrastados. É claro que
cada um daqueles homens foi arrastado à força por todo o caminho.
Uma após outra abriam-se as portas dos calabouços e, um após outro, os corpos
eram empurrados, jogados ou arrastados para dentro. E mais grupos de guardas
continuavam a chegar com mais prisioneiros espancados que continuavam a ser
espancados, e mais portas de calabouços se abriam para receber as carcaças
ensangüentadas de homens culpados de ansiar pela liberdade.
Sim, quando penso nisso, um homem precisa ser um grande filósofo para
sobreviver por anos a fio ao impacto contínuo de tais experiências brutais. Eu sou
um filósofo. Agüentei oito anos desse tormento e agora, por fim, não conseguindo
livrar-se de mim por outros meios, eles invocaram a máquina do Estado para pôr
uma corda em volta do meu pescoço e fazer o peso do meu corpo cortar minha
respiração. Ah, eu sei que os especialistas sustentam a abalizada opinião de que a
queda pelo alçapão quebra o pescoço da vítima. E as vítimas, como o viajante de
Shakespeare, nunca voltam para afirmar o contrário. Mas nós que vivemos na
prisão ouvimos falar de muitos casos, murmurados nas criptas da prisão, em que
o pescoço da vítima não estava quebrado.
É engraçado, isso de enforcar um homem. Eu nunca assisti a um enforcamento,
mas algumas testemunhas oculares contaram-me os detalhes de uma dúzia de
enforcamentos e eu sei, portanto, o que acontecerá comigo. De pé sobre o
alçapão, pernas amarradas, braços amarrados, o nó no pescoço, o capuz preto na
cabeça, eles me farão cair até que o ímpeto do meu peso em queda livre seja
abruptamente detido pelo retesamento da corda. Então os médicos se agruparão
à minha volta e farão rodízio sobre um banquinho, com seus braços passados ao
redor do meu corpo para impedir que eu balance como um pêndulo e a orelha
colada de encontro ao meu peito para contar as batidas do meu coração, as
batidas que irão aos poucos se apagando. Às vezes passam-se 20 minutos, depois
que o alçapão se abre, até que o coração pare de bater. Ah, acredite em mim,
eles ficam cientificamente certos de que um homem está morto, depois que o
penduram numa corda.
Vou me desviar da minha narrativa para fazer uma ou duas perguntas à
sociedade. Eu tenho o direito de me desviar e de perguntar, porque eles vão me
levar e fazer isso comigo muito em breve. Se o pescoço da vítima quebra por
causa do modo (pretensamente inteligente) como são feitos o nó e o laço; se o
pescoço da vítima quebra por causa do cálculo (pretensamente inteligente) entre
o peso de seu corpo e o comprimento da corda — então por que eles amarram os
braços da vítima? A sociedade, como um todo, é incapaz de dar uma resposta a
essa pergunta. Mas eu conheço a resposta; e também a conhece qualquer
carrasco amador que já tenha participado de um linchamento e visto a vítima
levantar as mãos, agarrar a corda e afrouxar o laço em volta do pescoço para
poder respirar.
E quero fazer outra pergunta ao bom e pacato membro da sociedade, cuja alma
nunca se desgarrou nos infernos sanguinários: por que eles cobrem a cabeça e o
rosto da vítima com um capuz preto antes de fazê-la cair pelo alçapão? Lembre-
se, por favor, de que muito em breve eles colocarão o capuz preto sobre a minha
cabeça. Tenho, portanto, o direito de perguntar. Seus carrascos, meu bom
cidadão, será que esses seus carrascos têm medo de olhar a face horrorosa do
horror que eles perpetram por você, por ordem sua?
Lembre-se, por favor, de que eu não estou fazendo essa pergunta no século doze
depois de Cristo, nem na época de Cristo, nem milhares de anos antes de Cristo.
Eu, que serei enforcado neste ano de 1913 — mil novecentos e treze anos depois
de Cristo — faço essa pergunta a você, que se diz seguidor de Cristo, a você,
cujos carrascos irão me levar e esconder meu rosto sob um pano negro porque
não se atrevem a olhar o horror que fazem a mim enquanto ainda estou vivo.
E agora, de volta à situação nos calabouços. Quando o último guarda saiu e a
porta externa se fechou, todos os quarenta homens, espancados e frustrados,
começaram a falar e a fazer perguntas. Mas de imediato, urrando como um
touro para ser ouvido, Sky sail Jack, um gigantesco marinheiro condenado à prisão
perpétua, exigiu silêncio para poder fazer um recenseamento. Os calabouços
estavam lotados e, uma por uma, na ordem, cada cela foi respondendo à
chamada. Ficou confirmado que cada cela estava ocupada por homens de
confiança e que não havia, portanto, nenhum dedo-duro escondido à escuta.
Os quarenta condenados só tinham dúvidas a meu respeito, pois fui o único que
não participou da trama. Interrogaram-me. A única coisa que eu tinha a dizer era
que mal acabara de sair do calabouço e da camisa-de-força naquela manhã
quando, sem razão alguma que eu pudesse perceber, fui jogado de volta no
calabouço após ficar fora dele umas poucas horas. Minha fama de incorrigível
pesou a meu favor e logo eles começaram a falar.
Enquanto eu lá estava deitado, escutando-os, ouvi mencionar pela primeira vez o
plano de fugir. “Quem nos delatou?” era a única pergunta daqueles homens e, ao
longo da noite, eles a debateram. Cecil Winwood não estava ali; a suspeita contra
ele era geral.
— Só mais uma coisa, rapazes — disse finalmente Sky sail Jack. — Logo é de
manhã e eles vão tirar a gente daqui e vai ser o diabo. Eles pegaram a gente
direitinho, todo mundo vestido. Winwood traiu a gente, foi ele que dedurou. Eles
vão nos pegar, um por um, e vão bater pra valer. A gente é quarenta. Qualquer
mentira eles descobrem logo. Por isso, cada um de nós, quando eles
interrogarem, vai dizer a verdade, toda a verdade, com a bênção de Deus.
E ali, naquele buraco sombrio da desumanidade humana, de cela em cela, com a
boca colada às grades, os quarenta condenados à prisão perpétua juraram
solenemente diante de Deus dizer a verdade.
Pouco lhes adiantou dizer a verdade. Às nove horas, os guardas — mercenários
pagos pelos bons cidadãos que constituem o Estado —, bem alimentados e depois
de uma noite bem dormida, caíram sobre nós. Não só não tivemos o café da
manhã, sequer tivemos água. E um homem espancado tem propensão à febre.
Eu me pergunto, meu leitor, se você pode fazer uma idéia, imaginar o que seja
um homem espancado. Mas não, não vou lhe contar. Basta dizer que esses
homens espancados e febris ficaram sete horas sem um gole d'água.
Às nove horas os guardas chegaram. Não eram muitos. Nem era preciso que
fossem muitos, pois abriam uma cela de cada vez. Estavam armados com cabos
de picareta — uma ferramenta bem conveniente para “disciplinar” um homem
indefeso. Uma cela de cada vez, e cela após cela, eles entravam e batiam
naqueles homens. Foram imparciais. Eu recebi um tratamento igual ao dos
outros. E isso foi apenas o começo, as preliminares para o exame que cada
homem iria enfrentar sozinho na presença dos brutos pagos pelo Estado. Para
cada homem, foi uma antecipação daquilo que ele poderia esperar na sala de
inquisição.
Eu passei pela maioria dos infernos sanguinários da vida da prisão; mas o pior de
tudo, muito pior do que aquilo que eles farão comigo em breve, foi o inferno dos
calabouços nos dias que se seguiram.
Long Bill Hodge, o endurecido montanhês, foi o primeiro a ser interrogado. Ele
voltou — ou melhor, eles o arrastaram de volta duas horas depois e o atiraram
sobre o chão de pedra da sua cela. E então levaram Luigi Polazzo; um bandido de
São Francisco, primeira geração de ascendência italiana nascida em solo
americano, que zombou deles e os desafiou a descarregar nele o que tinham de
pior.
Passou-se algum tempo até que Long Bill Hodge pudesse dominar a dor e falar
de modo coerente.
— Que história é essa de dinamite? — perguntou. — Quem é que está sabendo de
dinamite?
E é claro que ninguém sabia coisa alguma, embora o assunto dinamite tivesse
sido o refrão do interrogatório.
Luigi Polazzo voltou em menos de duas horas; voltou numa ruína delirante, a
balbuciar, incapaz de responder às perguntas feitas pelos homens que ainda
estavam por receber o que ele recebeu e queriam saber o que lhe tinha sido feito
e perguntado.
Nas 48 horas seguintes, Luigi foi levado e interrogado ainda duas vezes. Depois
disso, transformado num imbecil a balbuciar coisas sem nexo, foi transferido
para o Hospício. Ele tinha uma constituição forte. Ombros largos, narinas amplas,
peito forte, sangue puro. Ele continuará a balbuciar coisas sem nexo no Hospício
muito depois que eu morrer e escapar ao tormento das penitenciárias da
Califórnia.
Os homens eram levados, um a um, um após outro — e ruínas de homens eram
trazidas de volta, uma após outra, para delirar e uivar na escuridão. E enquanto
eu lá estava, ouvindo os gemidos e os lamentos e as palavras incoerentes das
mentes imbecilizadas pela dor... pareceu-me lembrar vagamente que em algum
lugar, em algum tempo, eu, cruel e orgulhoso, postava-me num lugar elevado e
ouvia um coro semelhante de gemidos e lamentos. Mais tarde, como você verá,
identifiquei essa lembrança e fiquei sabendo que os gemidos e lamentos eram
dos escravos a remar acorrentados a seus bancos; eu os ouvia lá de cima, na
popa, um soldado a bordo de uma galera da antiga Roma. Isso foi quando eu
navegava para Alexandria, um comandante de homens, a caminho de
Jerusalém... mas essa é uma história que contarei mais tarde. Enquanto isso...
CAPITULO 4
Este era o meu dilema. Eu sabia que dentro de mim havia uma Golconda, uma
mina de diamantes de lembranças de outras vidas, mas eu era incapaz de fazer
mais do que esvoaçar como um louco através daquelas lembranças. Eu tinha a
minha Golconda, mas não conseguia explorá-la.
Lembrei o caso de Stainton Moses, o clérigo que foi possuído pelas
personalidades de Santo Hipólito, Plotino, Atenodoro e do amigo de Erasmo,
Grocy n. E quando considerei os experimentos do Coronel de Rochas (que li
como mero passatempo em outros e mais ocupados dias), fiquei convencido de
que Stainton Moses tinha sido, em vidas anteriores, aquelas personalidades que às
vezes pareciam possuí-lo. Na verdade, elas eram ele, eram os elos da cadeia de
recorrência.
Dediquei-me com maior interesse aos experimentos do Coronel de Rochas.
Através do condicionamento hipnótico adequado, ele afirmava ter regredido no
tempo até os ancestrais de seus pacientes. Ele descreveu o caso de Josephine,
moça de dezoito anos que vivia em Voiron, departamento de Isre. Sob
hipnotismo, o Coronel de Rochas fez Josephine regredir aos dias da adolescência,
à infância, à primeira infância, aos dias de bebê de colo e à escuridão silenciosa
do útero materno; e regredir ainda mais, através do silêncio e das trevas do
tempo em que ela ainda não tinha nascido, até a luz e a vida de uma existência
anterior, na qual ela foi um velho rude, desconfiado e amargurado chamado
Jean-Claude Bourdon, que serviu na Sétima Artilharia em Besançon e morreu
entrevado aos setenta anos. Sim, e o Coronel de Rochas não hipnotizou, por sua
vez, essa sombra de Jean-Claude Bourdon para que regredisse no tempo, através
da infância e do nascimento e das trevas do não-nascido, até encontrar mais uma
vez luz e vida quando ele foi Philoméne Carteron, uma velha perversa?
Porém, por mais que tentasse com meu pedacinho brilhante de palha na luz
filtrada da solitária, eu não conseguia alcançar qualquer definição de uma
personalidade anterior. Convenci-me, com o fracasso dos meus experimentos, de
que só através da morte eu poderia ressuscitar com clareza e coerência as
lembranças dos meus eus anteriores.
Mas a maré da vida corria forte dentro de mim. Eu, Darrell Standing, estava tão
resolutamente decidido a não morrer que me recusava a deixar que o Diretor
Atherton e o Capitão Jamie me matassem. A pressão para viver sempre foi tão
inata em mim que às vezes acho que é por isso que ainda estou aqui, comendo e
dormindo, pensando e sonhando, escrevendo esta narrativa dos meus vários eus e
esperando a corda incontestável que dará um fim transitório a um dos elos da
minha longa existência.
E então veio a morte em vida. Aprendi o segredo. Ed Morrell ensinou-o para
mim, como você vai ver. Tudo começou através do Diretor Atherton e do
Capitão Jamie. Eles devem ter sentido o pânico crescer ao pensar na dinamite
que acreditavam estar escondida. Vieram a mim na minha cela escura e me
disseram, sem rodeios, que me poriam numa camisa-de-força até a morte se eu
não confessasse o esconderijo da dinamite. E me garantiram que fariam tudo de
modo oficial, sem qualquer risco para suas carreiras: minha morte seria
registrada como devida a causas naturais.
Ah, caro e pacato cidadão, por favor acredite em mim quando lhe digo que
homens são mortos nas prisões, hoje — do mesmo modo como sempre foram
mortos desde que as primeiras prisões foram construídas pelos homens.
Eu conhecia bem o terror, a agonia e o perigo da camisa-de-força. Ah, os
homens cujo espírito foi quebrado pela camisa-de-força! Eu os vi. Eu vi homens
aleijados para o resto da vida pela camisa-de-força. Eu vi homens, homens
fortes, homens tão fortes que seu vigor físico resistia a todos os ataques de
tuberculose — depois de uma sessão prolongada na camisa-de-força, sua
resistência se quebrava e se dissolvia e eles morriam de tuberculose em seis
meses. Houve o Slant-Ey ed Wilson, com seu fraco coração cheio de um medo
insuspeitado, que morreu na primeira hora dentro da camisa-de-força enquanto
aquele ineficiente e cético médico da prisão só olhava e ria. E eu vi um homem,
depois de meia hora na camisa-de-força, confessar verdades e mentiras que lhe
custaram muitos anos a mais na prisão.
Eu tive as minhas próprias experiências. Mil cicatrizes hoje marcam o meu
corpo. Elas me acompanharão ao cadafalso. E se eu vivesse cem anos, essas
mesmas cicatrizes iriam comigo para o túmulo.
Caro cidadão que permite e paga os carrascos que amarram a camisa-de-força,
talvez você não conheça a camisa-de-força. Deixe-me descrevê-la para que
você entenda o método pelo qual alcancei a morte em vida, tomei-me um
mestre temporário do tempo e espaço e saltei os muros da prisão para peregrinar
entre as estrelas.
Você já viu encerados de lona ou borracha, com ilhoses de metal por toda a
borda? Pois imagine um pedaço de lona grossa, com cerca de um metro e meio
de comprimento, com fortes ilhoses de metal em ambas as bordas. A largura da
lona é sempre um pouco menor do que o diâmetro do corpo humano que ela vai
envolver. E essa largura é irregular: a lona é mais larga nos ombros, um pouco
mais estreita nos quadris e bem mais estreita na cintura.
A camisa-de-força é estendida no chão. Eles mandam o homem que vai ser
punido — ou torturado para confessar alguma coisa — deitar-se de bruços sobre
a lona. Se ele recusa, é espancado. Depois disso, ele se deita sob a força de uma
vontade que é a vontade dos carrascos, que é a sua vontade, caro cidadão que
alimenta e paga os carrascos para fazerem isso por você.
O homem está deitado de bruços. As bordas da camisa-de-força são puxadas,
juntando-se o máximo possível ao longo de sua coluna vertebral. E então uma
corda, seguindo os mesmos princípios dos cadarços de sapatos, é passada pelos
ilhoses e, do mesmo modo que se amarra o sapato, o homem é amarrado dentro
da lona. Só que ele é amarrado com muito mais força do que qualquer pessoa
amarraria os cadarços dos seus sapatos. Eles chamam isso uma “apertada”, na
gíria da prisão. Às vezes, quando os guardas são cruéis e vingativos ou quando a
ordem vem de cima, o guarda pressiona os pés contra as costas do homem
enquanto vai apertando os nós, para garantir uma severa compressão.
Você alguma vez já apertou demais os cadarços do sapato e, depois de uma
meia hora, sentiu uma dor lancinante causada pelo corte da circulação no peito
do pé? E você lembra que depois de alguns minutos dessa dor você simplesmente
não conseguia dar mais um passo e precisou afrouxar os cadarços para aliviar a
pressão? Pois bem. Então tente imaginar todo o seu corpo amarrado desse jeito,
só que muito mais apertado; e o aperto, em vez de ser apenas no peito de um de
seus pés, é em todo o seu tronco, comprimindo até quase a morte seu coração,
seus pulmões e todos os seus órgãos vitais.
Lembro a primeira vez que me amarraram na camisa-de-força, lá no
calabouço. Foi no começo dos meus tempos de incorrigível, pouco depois que
entrei na prisão, quando eu fiava minha quota diária de dez metros de juta nas
salas de fiação e terminava duas horas antes do tempo médio. Sim, e minha
produção de sacos de juta estava bem acima da média exigida. Fui mandado
para a camisa-de-força aquela primeira vez, conforme mostram os registros da
prisão, por causa de “pontos pulados” e “malhas perdidas” na minha tecelagem;
em suma, porque meu trabalho era defeituoso. E claro que essa alegação era
ridícula. Na verdade, fui mandado para a camisa-de-força porque eu, um preso
recém-chegado, um mestre da eficiência, um especialista treinado na
eliminação de movimentos supérfluos, resolvi ensinar ao estúpido tecelão-chefe
algumas coisas que ele desconhecia sobre seu trabalho. E o tecelão-chefe, na
presença do Capitão Jamie, chamou-me à mesa onde uma tecelagem atroz, que
nunca poderia ter saído do meu tear, foi exibida contra mim. Por três vezes fui
chamado à mesa. O terceiro chamado significava punição, conforme as regras
das salas de fiação. Minha punição foi 24 horas na camisa-de-força.
Levaram-me para o calabouço. Mandaram-me deitar de bruços sobre a lona
esticada no chão. Recusei. Um dos guardas, Morrison, apertou-me a garganta
com os polegares. Mobins, o encarregado dos calabouços, ele próprio um
presidiário, socou-me várias vezes. Deitei-me por fim, como me ordenavam. E
eles, irritados com a minha resistência, me amarraram com força adicional. E
então me rolaram, como um pedaço de pau, para que eu ficasse de costas.
No começo não me pareceu tão ruim. Quando fecharam a porta com um
estrondo de ferrolhos e me deixaram na profunda escuridão, eram 11 horas da
manhã. Durante alguns minutos, tive consciência apenas de uma compressão
desconfortável; eu achava que iria passar tão logo me acostumasse a ela. Mas,
pelo contrário, meu coração começou a dar pancadas e meus pulmões pareciam
incapazes de inalar ar suficiente para o meu sangue. Essa sensação de sufocação
foi aterrorizante, e cada pancada do coração ameaçava explodir meus pulmões
em fogo.
Depois do que me pareceram horas — hoje, após minhas incontáveis
experiências bem-sucedidas na camisa-de-força, posso concluir que não foi mais
de meia hora — comecei a gritar, a berrar, a uivar, numa loucura mortal. O
problema era a dor que eu sentia no coração. Era uma dor aguda e definida,
como a da pleurisia, só que ela apunhalava diretamente o próprio coração.
Morrer não é difícil; mas morrer desse modo lento e horrível é enlouquecedor.
Como uma fera selvagem na armadilha, experimentei o êxtase do medo, gritei e
uivei até perceber que esse exercício vocal só servia para apunhalar mais meu
coração e para consumir grande parte do escasso ar dos meus pulmões.
Parei e fiquei quieto por um longo tempo — pareceu-me uma eternidade, mas
acredito, agora, que não durou mais do que uns 15 minutos. Fiquei tonto com a
semi-asfixia e meu coração batia tão forte que eu tinha certeza de que ele iria
arrebentar a lona que me prendia. Mais uma vez perdi o controle e me pus a
berrar loucamente por socorro.
No meio dos meus gritos, ouvi uma voz da cela vizinha.
— Cala a boca — gritou essa voz, embora ela apenas se filtrasse vagamente até
mim. — Cala a boca. Você está me cansando.
— Eu estou morrendo — gritei.
— Vê se dorme e esquece — foi a resposta.
— Mas eu estou morrendo — insisti.
— Então para que se preocupar? — disse a voz. — Você morre logo e se livra
dessa droga. Vai em frente e arrebenta logo, mas vê se não faz tanto barulho.
Você está atrapalhando meu sono de beleza!
Fiquei tão furioso com essa cruel indiferença que recobrei o autocontrole e
apenas emiti mais alguns gemidos sufocados. Isso durou um tempo infinito —
talvez dez minutos; e então um torpor formigante se apoderou do meu corpo. Era
como picadas de alfinetes e agulhas; enquanto doía como picadas de alfinetes e
agulhas, mantive a cabeça. Mas quando as picadas daquela infinidade de dardos
pararam de doer e só permaneceu o torpor que foi se transformando numa
dormência cada vez maior, fiquei novamente aterrorizado.
— Mas como é que a gente pode tirar uma soneca aqui? — reclamou meu
vizinho. — Eu não estou mais feliz que você, não. A minha camisa está tão
apertada quanto a tua e eu quero dormir pra me esquecer dela.
— Você está aqui há quanto tempo? — perguntei, pensando que ele tinha
acabado de chegar, enquanto eu sofria há séculos.
— Desde anteontem — foi a resposta.
— Quero dizer na camisa — corrigi.
— Desde anteontem, irmão.
— Meu Deus! — gritei.
— E isso aí, irmão, 50 horas direto e não estou fazendo nenhuma gritaria. Eles
enfiaram os pés nas minhas costas pra me amarrar. Estou bem apertado, pode
acreditar. Você não é o único que está encrencado, não. Não faz nem uma hora
que você está aí.
— Imagine, faz horas que eu estou aqui — protestei.
— Irmão, talvez você ache que é mas não é, não. Estou lhe dizendo que não faz
nem uma hora que você está aí. Eu ouvi eles te amarrando.
Era inacreditável. Em menos de uma hora, eu já tinha morrido um milhar de
mortes. E meu vizinho, calmo e equilibrado, com a voz tranqüila, quase bondoso
apesar da rudeza de suas observações iniciais, estava na camisa-de-força havia
50 horas!
— Quanto tempo eles ainda vão te deixar na camisa? — perguntei.
— Sabe Deus! O Capitão Jamie não vai com a minha cara e não vai me soltar
até eu estar quase morrendo. Agora, irmão, deixa eu te dar uma dica. O único
jeito é dormir e esquecer. Gritar e chorar não resolve a vida de ninguém aqui
nesse buraco. E o jeito de se esquecer é se esquecendo. Comece a se lembrar de
todas as garotas que você conheceu. Isso vai matar uma pilha de horas. Pode ser
que você fique meio zonzo. Bom, fique zonzo. Não tem coisa melhor pra passar o
tempo. E quando as garotas não funcionarem mais, comece a pensar nos caras
que te botaram aqui dentro e em tudo que você ia fazer com eles se tivesse uma
chance e em tudo que você vai fazer com eles quando tiver uma chance.
Aquele homem era Philadelphia Red. Por ter uma condenação anterior, ele
estava cumprindo pena de 50 anos por assalto à mão armada nas ruas de
Alameda. Ele já tinha cumprido 12 desses anos na época em que falou comigo,
ali na camisa-de-força, e isso foi há sete anos. Ele estava entre os quarenta
condenados que, um pouco mais tarde, foram traídos por Cecil Winwood. Por
causa daquela infração, Philadelphia Red perdeu os créditos de bom
comportamento. Hoje ele é um homem de meia-idade e ainda está em San
Quentin. Se ele sobreviver, será um velho quando o soltarem.
Eu vivi as minhas 24 horas e nunca mais fui o mesmo homem. Ah, não quero
dizer fisicamente; embora eu estivesse semiparalisado quando me
desamarraram na manhã seguinte e em tal estado de prostração que os guardas
tiveram de me chutar as costelas para me pôr de pé. Mas mentalmente,
moralmente, eu era um homem mudado. A brutal tortura física era uma
humilhação e uma afronta ao meu espírito e ao meu senso de justiça. Tal
disciplina não amacia um homem. Eu saí daquela primeira sessão na camisa-de-
força cheio de uma amargura e de um ódio apaixonado que só fizeram aumentar
ao longo dos anos. Meu Deus! Quando penso nas coisas que os homens me
fizeram! Vinte e quatro horas na camisa-de-força! Mal podia eu pensar, naquela
manhã em que me chutaram para me pôr de pé, que chegaria um tempo em que
24 horas na camisa-de-força nada significariam; em que cem horas na camisa-
de-força me deixariam sorrindo quando me desamarrassem; em que 240 horas
na camisa-de-força deixariam o mesmo sorriso em meus lábios.
Sim, duzentas e quarenta horas. Caro e pacato cidadão, você percebe o que isso
significa? Significa dez dias e dez noites na camisa-de-força. Ah, claro, tais coisas
não são feitas em parte alguma da Cristandade mil e novecentos anos depois de
Cristo. Não lhe peço para acreditar em mim. Nem eu acredito em mim mesmo.
Só sei que fizeram isso comigo em San Quentin e que eu vivi para rir deles e os
obriguei a se livrarem de mim me enforcando porque fiz sangrar o nariz de um
guarda.
Escrevo estas linhas hoje, no Ano de Nosso Senhor de 1913 e hoje, no Ano de
Nosso Senhor de 1913, homens estão amarrados numa camisa-de-força nos
calabouços de San Quentin.
Nunca esquecerei, enquanto viver e enquanto outras vidas me forem concedidas,
minha despedida de Philadelphia Red naquela manhã. Ele já estava havia 74
horas na camisa-de-força.
— Bom, irmão, você continua vivo e de boa saúde — disse-me ele enquanto eu
cambaleava da minha cela para o corredor.
— Cala a boca, Red — rosnou o sargento para ele.
— Vê se me esquece — foi a resposta.
— Ainda te pego, Red — ameaçou o sargento.
— Pega, é? — perguntou Philadelphia Red com doçura, e depois sua voz tomou-
se selvagem. — Seu lixo, você não pega droga nenhuma. Você não pega nem
comida de graça, quanto mais esse empreguinho aí se não é pela ajuda do teu
irmão. E todo mundo sabe a fedentina do lugar onde o teu irmão arruma ajuda.
Foi admirável; o espírito humano elevando-se além dos seus limites, sem temer
os castigos que qualquer bruto do sistema poderia lhe infligir.
— Bom, irmão, até a vista — continuou Philadelphia Red, dirigindo-se a mim —
Até a vista. Seja bonzinho e ame o Diretor. E quando encontrar com eles, diga
que você me viu mas que não me viu quebrado.
O sargento estava vermelho de raiva e eu, recebendo vários pontapés e
pancadas, paguei o gracejo de Red.
CAPITULO 8
Uma coisa de grande valor que aprendi nas longas e dolorosas horas de vigília foi
o domínio do corpo pela mente. Aprendi a sofrer passivamente como, sem
dúvida, aprenderam todos os homens que passaram pelo curso de pós-graduação
da camisa-de-força. Ah, não é fácil manter o cérebro em sereno repouso, tão
sereno que ele esquece os intensos e palpitantes queixumes dos nervos torturados.
E foi exatamente esse domínio da carne pelo espírito que me permitiu praticar
com tanta facilidade o segredo que Ed Morrell me ensinou.
— Você acha que é ponto final? — perguntou-me Ed Morrell uma noite, por
batidas.
Eu acabava de ser libertado de cem horas na camisa-de-força e estava mais
fraco do que nunca. Tão fraco que, embora todo o meu corpo fosse uma massa
de ferimentos e miséria, eu mal percebia que tinha um corpo.
— Parece que é — bati em resposta. — Eles me liquidam se continuarem assim
por mais tempo.
— Não deixe — aconselhou ele. — Tem um jeito. Eu aprendi aqui na cela uma
vez que o Massie e eu entramos numa pior. Deu certo comigo. Mas o Massie
estourou. Se eu não tivesse aprendido esse truque tinha estourado que nem ele.
Você tem que estar bem fraco antes de tentar. Se você tentar quando ainda está
forte, não dá certo e daí você fica com medo de tentar de novo. O meu erro foi
que contei o truque para o Jake quando ele estava forte. É claro que não
funcionou com ele e, depois, quando chegou a hora que ele precisou, já era tarde
demais, o primeiro fracasso deu medo nele. Agora ele não acredita. Ele acha
que estou brincando com ele... Não é verdade, Jake?
Da Cela 13, Jake respondeu com suas batidas:
— Não engula essa, Darrell. É um conto de fadas.
— Vai, me conta — pedi a Morrell.
— É por isso que eu esperei até você estar bem fraco de verdade — continuou
ele. — Agora você está precisando e eu vou te contar. Fica por tua conta. Se você
quiser, você consegue. Eu já fiz três vezes e sei como é.
— Bom, e o que é, afinal? — perguntei ansioso.
— O truque é morrer dentro da camisa-de-força, é querer morrer. Eu sei que
você ainda não está me entendendo, mas espere. Você sabe como a gente fica
entorpecido na camisa, o jeito que o braço ou a perna adormecem. Agora, você
não pode evitar isso, mas dá para entender a idéia e ir trabalhando nela. Você
não espera até as pernas ou outra parte irem ficando adormecidas. Você se deita
de costas, o mais confortável que der, e começa a usar a vontade.
— E é nessa idéia que você precisa ficar pensando e você precisa acreditar nela
o tempo todo. Se você não acreditar, não dá certo. O que você precisa pensar e
acreditar é que o teu corpo é uma coisa e o teu espírito é outra .coisa. Você é
você, e o teu corpo é uma outra coisa que não vale nada. O corpo não conta.
Você é que manda. Você não precisa do corpo. E quando pensar e acreditar
nisso, você vai em frente usando a vontade. Você faz o corpo morrer.
— Você começa com os dedos do pés, um de cada vez. Você faz cada dedo
morrer. Você quer que o dedo morra. E se você acreditar e quiser, os dedos vão
morrer. Esse é o ponto mais importante: começar a morrer. Depois que você
fizer o primeiro dedo morrer, o resto é fácil, aí você não precisa mais ficar
acreditando. Aí você sabe. E aí você põe toda a vontade em fazer o resto do
corpo morrer. Estou te dizendo, Darrell, eu sei. Já fiz três vezes.
— Depois que você começa a morrer, tudo segue direto. E o engraçado é que
você está aí, você está aí o tempo todo. Quando um dedo morre, não é como
você estar morto. Vai indo devagar, a perna morre até o joelho e depois até a
coxa e você é exatamente o mesmo que sempre foi. É o corpo que está saindo da
jogada, um pedaço de cada vez. E você é exatamente você, o mesmo que você
era antes de começar.
— E daí o que acontece? — perguntei.
— Bom, quando o corpo está todo morto, mas você ainda está todo aí, você
simplesmente sai da pele e abandona o corpo. E quando você abandona o corpo,
você abandona a cela. Parede de pedra e porta de ferro servem para prender o
corpo. Elas não podem prender o espírito. Olha, isso já está provado. Você é
espírito fora do teu corpo. Você pode olhar para o teu corpo de fora dele. Eu te
digo, eu sei, porque eu já fiz três vezes: eu olhei para o meu corpo lá deitado e eu
estava fora dele.
— Há-há-há! — Jake Oppenheimer enviou sua gargalhada, de uma distância de
trezes celas.
— Olha, esse é o problema do Jake — continuou Morrell. — Ele não acredita.
Aquela vez que ele tentou, ele ainda estava muito forte e não funcionou. E ele
agora acha que eu estou brincando.
— Quando você morre você está morto, e um morto fica morto — replicou
Oppenheimer.
— Estou te dizendo que eu já morri três vezes — argumentou Morrell.
— E viveu pra nos contar — zombou Oppenheimer.
— Não esqueça uma coisa, Darrell — avisou-me Morrell — A coisa é difícil. O
tempo todo você tem uma sensação de que está indo longe demais. Não dá pra
explicar, mas sempre achei que se eu estivesse fora quando eles chegam e tiram
o meu corpo da camisa-de-força, eu não ia conseguir voltar para o meu corpo.
Quer dizer, o meu corpo ia estar morto de uma vez por todas. E eu não queria
que o meu corpo morresse. Não queria dar essa satisfação para o Capitão Jamie
e o resto da canalha. Mas estou te dizendo, Darrell, se você puder fazer o truque
funcionar, você pode rir do diretor. Se você fizer o corpo morrer desse jeito, não
interessa se eles te deixam na camisa-de-força um mês a fio. Você não sofre
nada e o teu corpo não sofre nada. Sabe, já teve gente que dormiu um ano direto.
E isso que vai acontecer com o teu corpo. Ele só fica ali na camisa-de-força,
sem dor nem nada, só esperando você voltar.
E concluiu:
— Tente, Standing. Estou te dando uma dica a sério.
— E se ele não voltar? — perguntou Oppenheimer.
— Aí azar dele, Jake — respondeu Morrell. — Ou, sei lá, talvez azar nosso por
continuar nesse buraco quando a gente podia escapar tão fácil.
E nesse ponto a conversa terminou porque Pie-Face Jones, acordando rabugento
de sua soneca, ameaçou dar parte de Morrell e Oppenheimer na manhã seguinte,
o que significaria a camisa-de-força para eles. A mim ele não ameaçou; ele
sabia que eu iria para a camisa-de-força de qualquer modo.
Durante um longo tempo fiquei deitado no silêncio, esquecido da miséria do meu
corpo enquanto pensava sobre a proposta de Morrell. Conforme expliquei, eu já
tinha tentado pela auto-hipnose mecânica regredir no tempo até os meus eus de
épocas passadas. Eu sabia que tinha conseguido um sucesso parcial; mas tudo o
que experimentei foi vim alvoroço de aparições que emergiam de modo errático
e sem nenhuma continuidade.
Mas o método de Morrell era tão claramente o oposto do meu método de auto-
hipnose que fiquei fascinado. Pelo meu método, a consciência era a primeira a
morrer. Pelo método de Morrell, a consciência permanecia até o fim; e quando o
corpo morria, ela se fundia em estágios tão sublimados que abandonava o corpo,
abandonava a prisão de San Quentin e viajava para longe — mas continuava a
ser consciência.
Concluí que valia a pena tentar. E, apesar do ceticismo do cientista que eu era,
acreditei. Não tive dúvidas de que poderia fazer aquilo que Morrell afirmava ter
feito por três vezes. Talvez essa fé que se apoderou de mim com tanta facilidade
fosse devida à minha fraqueza extrema. Talvez eu não estivesse forte o suficiente
para ser cético. Essa era a hipótese sugerida por Morrell. Era uma conclusão
puramente empírica e também eu, como você verá, demonstrei-a
empiricamente.
CAPITULO 10
A porta bateu e eliminou tudo, exceto uma réstia de luz, e fiquei sozinho, deitado
de costas. Usando os truques havia muito aprendidos na camisa-de-força,
consegui torcer-me pelo chão centímetro por centímetro até que a ponta do meu
pé tocou a porta. Que imensa alegria! Eu não estava tão absolutamente só. Se
fosse necessário, eu poderia pelo menos transmitir uma mensagem para Morrell.
Mas o Diretor Atherton certamente deu ordens estritas aos guardas, pois, embora
eu tenha conseguido chamar Morrell e dizer-lhe que eu pretendia tentar a
experiência, os guardas o impediram de responder-me. A mim eles só podiam
gritar palavrões, já que, amarrado na camisa-de-força para uma sessão de dez
dias, eu estava além de qualquer ameaça de punição.
Lembro-me de ter observado, naquele momento, a serenidade da minha mente.
Meu corpo sentia a dor costumeira da camisa-de-força, mas minha mente estava
tão passiva que eu não tinha mais consciência da dor do que do chão sob meu
corpo ou das paredes ao meu redor. Nunca um homem esteve em melhores
condições mentais e espirituais para uma tal experiência. É claro que isso se
devia muito à minha extrema fraqueza. Mas havia algo mais. Eu já tinha
aprendido a ser indiferente à dor. Eu não tinha dúvidas, não tinha medos. Todo o
conteúdo da minha mente parecia ser uma fé absoluta na predominância da
mente. Essa passividade era quase onírica, mas, a seu modo, era real até o ponto
de quase transformar-se em exaltação.
Comecei a concentrar minha vontade. Meu corpo já se entorpecia e eu sentia as
agulhadas causadas pela falta de circulação. Concentrei minha vontade no
dedinho do pé direito e desejei que ele deixasse de estar vivo na minha
consciência.
Quis que aquele dedo morresse — morresse no que se referia a mim, seu senhor
e algo inteiramente diferente dele. Essa foi a batalha mais difícil. Morrell me
avisou de que assim seria. Mas não havia sequer uma centelha de dúvida a
perturbar minha fé. Eu sabia que aquele dedo morreria e eu soube quando ele
morreu. Junta por junta, ele morreu sob a compulsão da minha vontade.
O resto foi fácil; mas admito que foi vagaroso. Junta após junta, dedo após dedo,
todos os dedos dos meus dois pés deixaram de existir. E junta após junta, o
processo continuou. Chegou o momento em que minha carne, dos tornozelos para
baixo, se extinguiu. Chegou o momento em que tudo, dos joelhos para baixo, se
extinguiu.
Tal foi o grau da minha perfeita exaltação que não senti a mínima vontade de me
alegrar com o meu sucesso. Eu nada sabia, exceto que estava fazendo meu corpo
morrer. Tudo aquilo que era eu foi devotado àquela única tarefa. Desempenhei o
trabalho com tanto rigor quanto um pedreiro a assentar tijolos e encarei o
trabalho como algo rotineiro, assim como o pedreiro encara seu trabalho.
Ao fim de uma hora meu corpo estava morto até a altura dos quadris e, dos
quadris para cima, junta após junta, continuei a querer a morte.
Foi quando cheguei à altura do coração que minha consciência começou a se
enevoar e sentir vertigens. Com medo de perder a consciência, quis suspender a
morte que já tinha alcançado e transferi minha concentração para os dedos. Meu
cérebro clareou-se novamente e a morte, dos braços até os ombros, foi
alcançada com extrema rapidez.
Nesse estágio, no que se referia a mim o meu corpo todo estava morto, exceto
minha cabeça e uma pequena região do meu peito. As batidas e o esmagamento
do coração comprimido não mais ecoavam em meu cérebro. Meu coração
batia, fraca mas firmemente. A alegria, se eu ousasse sentir alegria num tal
momento, teria sido a extinção de toda sensação.
Nesse ponto minha experiência difere da de Morrell. Continuando a impor minha
vontade de modo automático, comecei a sentir-me sonhador — como acontece
naquela terra fronteiriça entre o sono e o despertar. Também me parecia ocorrer
uma prodigiosa ampliação do meu cérebro, dentro do próprio crânio que não se
ampliava. Houve ocasionais cintilações e lampejos de luz como se eu, o mestre
supremo, tivesse me extinguido por um momento e no momento seguinte fosse
novamente eu mesmo, ainda o ocupante do receptáculo de carne que eu fazia
morrer.
O mais desconcertante era a aparente ampliação do cérebro. Mesmo sem ter
ultrapassado as paredes do meu crânio, parecia-me que a periferia do meu
cérebro já estava fora do meu crânio e continuava a se expandir. Junto com esta,
ocorreu uma das mais admiráveis sensações ou experiências que já encontrei.
Tempo e espaço, enquanto substância da minha consciência, passaram por um
enorme alargamento. Assim, sem abrir os olhos para verificar, eu sabia que as
paredes da minha cela estreita tinham recuado até que a cela se tomasse um
imenso salão. Enquanto contemplava, eu sabia que as paredes continuavam a
recuar. Por um momento, assaltou-me uma fantasia: se uma expansão
semelhante estivesse ocorrendo com toda a prisão, então os muros de San
Quentin estariam distantes no Oceano Pacífico, por um lado, e no outro lado
tocariam o deserto de Nevada. Uma outra fantasia: já que a matéria podia
permear a matéria, então as paredes da minha cela poderiam perfeitamente
permear os muros da prisão, ultrapassar os muros da prisão e assim colocar
minha cela fora da prisão e colocar-me em liberdade. É claro que tudo isso não
passava de fantasias da minha imaginação — e eu sabia, naquele instante, que
assim era.
O alargamento do tempo também era admirável. Meu coração só batia a longos
intervalos. Outra fantasia me ocorreu e contei os segundos, lentos e certos, entre
as batidas do meu coração. De início, como notei com clareza, mais de cem
segundos se passavam entre cada batida. Mas, conforme continuei a contagem,
os intervalos se alongaram tanto que me cansou contá-los.
E enquanto essa ilusão de alargamento do tempo e espaço persistia e aumentava,
refleti sonhadoramente sobre um novo e profundo problema. Morrell me disse
que se libertou de seu corpo matando seu corpo — ou eliminando-o de sua
consciência; o que, é claro, é a mesma coisa. Meu corpo estava agora tão perto
de estar inteiramente morto que eu soube, do modo mais absoluto, que a rápida
concentração da vontade na região ainda viva do meu tronco faria com que ela
também deixasse de existir. Mas aqui estava o problema... e Morrell não me
alertou sobre ele: deveria eu também querer que minha cabeça morresse? Se eu
o fizesse — não importa o que acontecesse ao espírito de Darrell Standing — não
estaria o corpo de Darrell Standing morto para sempre?
Tentei o peito, tentei o coração com suas batidas vagarosas. A rápida compulsão
da minha vontade foi recompensada. Eu não tinha mais peito nem coração. Eu
era apenas uma mente, uma alma, uma consciência — chame-a como quiser —
incorporada a um cérebro nebuloso que, embora ainda centrado dentro do meu
crânio, estava expandido e continuava a se expandir além do meu crânio.
E então, com lampejos de luz, eu estava fora, eu estava longe. Num salto, pulei o
teto da prisão e o céu da Califórnia e estava entre as estrelas. Digo “estrelas”
deliberadamente. Caminhei entre as estrelas. Eu era uma criança Eu vestia uma
túnica diáfana de algodão, de tons delicados, que tremeluzia à gélida luz estelar.
Essa túnica, é claro, baseava-se nas minhas observações infantis dos atores
circenses e na minha concepção infantil das roupas dos anjos.
Assim vestido pisei o espaço interestelar, exaltado pelo conhecimento de que
meu destino era a aventura infinita e que, em seu final, eu encontraria todas as
fórmulas cósmicas e esclareceria o segredo último do universo. Em minha mão,
eu levava uma varinha de cristal. Eu sabia que, ao passar pelas estrelas, devia
tocá-las com a ponta da varinha. E eu sabia, com absoluta certeza, que se
deixasse escapar uma única estrela, eu seria precipitado num abismo insondável
de punição e culpa eternas.
Por longo tempo continuei minha busca estelar. Quando digo “longo”, você não
deve esquecer o enorme alargamento do tempo que ocorreu no meu cérebro.
Durante séculos eu pisei o espaço, mirando cuidadosamente com a ponta da
varinha cada estrela pela qual passava. E o caminho tomava-se mais cada vez
mais luminoso. E o inefável objetivo da infinita sabedoria aproximava-se cada
vez mais. Mas não enganei a mim mesmo. Esse não era um outro “eu”. Essa não
era uma experiência que um dia foi minha. Eu sabia o tempo todo que era eu,
Darrell Standing, quem caminhava entre as estrelas e as tocava com uma
varinha de cristal. Em suma, eu sabia que aqui nada era real, nada que já tivesse
me acontecido ou que viesse a me acontecer. Eu sabia que essa experiência nada
mais era do que uma delirante orgia da imaginação — como os delírios das
drogas, da febre ou do sono.
E então, quando tudo era alegria e felicidade na minha busca celestial, a ponta da
minha varinha errou uma estrela e eu soube, de imediato, que era culpado de um
grande crime. De imediato uma pancada me atingiu — vasta e compulsiva,
inexorável e mandatória como a batida dos tacões de ferro da desgraça — e
reverberou através do universo. Todo o sistema sideral coruscou, oscilou e
tombou em chamas.
Fui rasgado por uma intensa e lacerante agonia. E num instante, eu era Darrell
Standing, o condenado à prisão perpétua, amarrado na camisa-de-força na
solitária. E percebi a causa imediata daquele chamado. Eram as batidas dos
dedos de Ed Morrell, na Cela 5, começando a soletrar uma mensagem.
Eu gostaria de explicar o alargamento de tempo e espaço que eu experimentava.
Muitos dias mais tarde, perguntei a Morrell o que ele tinha tentado me transmitir.
Era uma simples mensagem: “Standing, você está aí?” Ele a bateu rapidamente,
enquanto o guarda estava na outra extremidade do corredor. Como eu disse, ele
bateu a mensagem com muita rapidez. E agora veja só! Entre a primeira e a
segunda batida, eu estava viajando entre as estrelas, vestido com a singela túnica
de algodão, tocando cada estrela ao passar em busca das fórmulas que
explicariam o mistério último da vida. E prossegui nessa busca por séculos. Então
veio o chamado, a pancada dos tacões da desgraça, a intensa agonia lacerante...
e eu estava novamente na minha cela em San Quentin. Era a segunda batida dos
dedos de Ed Morrell. O intervalo entre ela e a primeira batida não poderia ter
sido mais longo do que um quinto de segundo. No entanto, tão
imponderavelmente vasto foi o alargamento do tempo para mim que, no decurso
daquele quinto de segundo, peregrinei entre as estrelas por longas eras.
Eu sei, meu leitor, que tudo o que relatei mais parece um amontoado de coisas
sem nexo. Concordo com você. É um amontoado de coisas sem nexo. Mas foi
experiência. Foi tão real para mim como a cobra que um homem vê no delirium
tremens.
E possível que Ed Morrell tenha levado dois minutos, no máximo, para transmitir
sua pergunta. Mas muitas eras transcorreram para mim entre a primeira batida e
a última das batidas dos seus dedos. E eu receava continuar a seguir meu
caminho estelar com a inefável alegria da inocência; pois temia o chamado
inevitável que iria me dilacerar quando me arrastasse de volta para o inferno da
camisa-de-força. Assim, minhas eras de peregrinação nas estrelas foram eras de
medo.
E o tempo todo eu sabia que eram os dedos de Ed Morrell que me mantinham tão
cruelmente amarrado à terra. Tentei comunicar-me com ele, pedir-lhe para
parar. Mas eu tinha eliminado meu corpo da minha consciência de modo tão
completo que agora era incapaz de fazê-lo ressuscitar. Meu corpo jazia morto na
camisa-de-força, embora eu ainda habitasse o crânio. Lutei, em vão, para
comandar meu pé a transmitir minha mensagem para Morrell. Eu sabia que
tinha um pé. Mas conduzi a experiência de modo tão completo que não tinha
mais um pé.
Mas depois — e hoje sei que foi porque Morrell terminou de soletrar sua
mensagem — continuei meu caminho entre as estrelas e não fui chamado de
volta. No caminho e durante a peregrinação eu percebia, modorrento, que estava
pegando no sono e que era um sono delicioso. De vez em quando, modorrento, eu
me mexia — por favor, meu leitor, note o verbo que eu uso — EU ME MEXIA.
Eu movia minhas pernas, meus braços. Estava consciente de lençóis limpos e
macios a tocar minha pele. Estava consciente do bem-estar físico. Ah, era
delicioso. Como o homem sedento no deserto sonha com uma fonte a jorrar
água, assim eu sonhava com a libertação da compressão da camisa-de-força,
com a limpeza no lugar da imundície, com uma pele saudável e macia no lugar
do meu pobre couro encarquilhado. Mas meu sonho tinha uma diferença, como
você vai ver.
Despertei. Ah, eu estava completamente desperto, embora não abrisse os olhos.
E note, por favor, que em tudo o que vou narrar não houve surpresa alguma para
mim. Tudo era natural, era o esperado. Eu era eu, fique certo disso. Mas eu não
era Darrell Standing. Darrell Standing nada tinha a ver com o ser que eu era
agora, assim como a pele encarquilhada de Darrell Standing nada tinha a ver
com a pele fresca e macia que agora era minha. Tampouco tinha eu agora
consciência de qualquer Darrell Standing — e nem poderia ter, já que Darrell
Standing ainda não era nascido e nem nasceria por mais alguns séculos. Mas
você verá.
Estou deitado com os olhos fechados, ocioso, só ouvindo. De fora vem o som de
muitos cascos movendo-se em ordem sobre as lajes. Pelo tinido metálico de
armaduras e arreios, sei que alguma tropa está passando pela rua debaixo da
minha janela. Pergunto-me, sem muito interesse, quem será. De algum lugar —
e eu sei que é do pátio da estalagem — ouço a batida de cascos e o relincho
impaciente que reconheço como sendo do meu cavalo.
Ouço passos e movimentos; passos que fingem ser silenciosos mas são
deliberadamente ruidosos, com a intenção secreta de me despertar se eu ainda
estiver adormecido. Sorrio ante o truque do velho malandro.
— Pons — ordeno, sem abrir os olhos —, quero água, água fria, depressa, um
dilúvio d'água. Minha goela queima, bebi demais essa noite.
— E dormistes demais essa manhã — repreende-me ele ao me estender a
caneca d'água.
Sento-me, abro os olhos e levo a caneca aos lábios com ambas as mãos.
Enquanto bebo, olho para Pons.
Note dois detalhes. Falei em francês; eu não tinha consciência de estar falando
francês. Só mais tarde, de volta à solitária, quando lembrei o que estou narrando,
foi que percebi que falava francês... e bom francês. Quanto a mim, Darrell
Standing, neste momento escrevendo estas linhas no Corredor da Morte da Prisão
de Folsom, bem, eu conhecia o francês de colégio, conhecia o suficiente para ler
esse idioma. Mas falar francês seria impossível. Eu mal poderia pronunciar
direito os nomes dos pratos de um menu.
De volta. Pons era um velhote ressequido. Ele nasceu em nossa casa — eu sei
porque isso foi casualmente mencionado no próprio dia que estou a descrever.
Ele tinha seus sessenta anos. Era quase desdentado e, apesar de uma coxeadura
que o fazia arrastar-se um pouco, era alerta e ágil de movimentos. E ele também
era impudentemente informal. Isso porque estava em nossa casa há sessenta
anos. Já era o valete de meu pai antes que eu aprendesse a andar e depois da
morte de meu pai (Pons e eu falamos disso nesse dia) tomou-se meu valete.
Aquela coxeadura, ele a ganhou num campo de batalha da Itália, numa carga de
cavalaria. Ele tinha acabado de salvar meu pai de ser pisoteado quando recebeu
uma lança na coxa, foi cuspido da sela e atropelado. Meu pai, consciente mas
enfraquecido pelos próprios ferimentos, testemunhou toda a cena. É assim, como
eu disse, Pons adquiriu o direito de ser impudentemente informal e esse direito
não poderia ser negado por um filho de meu pai.
Pons sacudiu a cabeça quando esvaziei a caneca.
— Ouvistes a água a ferver? — gracejei, devolvendo-lhe a caneca vazia.
— Sois como vosso pai — disse ele, desanimado. — Mas vosso pai viveu e
aprendeu e duvido que isso aconteça convosco.
— Ele tinha um problema no estômago — disse eu, provocando-o — e qualquer
trago de álcool o virava do avesso. É sinal de sabedoria não beber quando o
tanque não isenta a bebida.
Enquanto falávamos, Pons colocava aos pés da cama minhas roupas para o dia.
— Bebei, meu mestre — respondeu-me. — Não vos fará mal. Morrereis com
um estômago forte.
— Quereis dizer que meu estômago é forrado de ferro? — provoquei-o, fingindo
não ter entendido.
— Quero dizer... — começou ele rabugento, mas parou ao perceber que eu
gracejava e com um muxoxo de sua boca murcha arrumou minha nova capa de
marta sobre o encosto da cadeira. E desdenhou: — Oitocentos ducados. Mil
cabras e cem bois gordos numa capa para manter-vos aquecido. Uma dúzia de
ricas fazendas nas belas costas do meu senhor.
— E nisto aqui, uma centena de belas fazendas, com um castelo ou dois de
entremeio e até, quem sabe, um palácio — disse eu, estendendo a mão e tocando
o florete que ele colocava sobre a cadeira.
— Que vosso pai ganhou com seu poderoso braço direito —retrucou Pons. —
Mas o que vosso pai ganhou, ele conservou.
Pons fez uma pausa para levantar nas mãos e zombar do meu novo gibão de
cetim escarlate; uma maravilha, uma das minhas extravagâncias.
— Sessenta ducados por isto — acusou Pons. — Vosso pai teria feito todos os
alfaiates e judeus da Cristandade assarem no fogo do inferno antes de pagar tal
preço.
Uma vez aprendido o truque, o caminho foi fácil. E eu sabia que ele se tomaria
cada vez mais fácil quanto mais eu o trilhasse. Uma vez estabelecida a linha de
menor resistência, cada jornada subseqüente ao longo desse caminho encontraria
ainda menos resistência. E assim, como você vai ver, com o passar do tempo
minhas jornadas da vida de San Quentin para outras vidas foram alcançadas de
um modo quase automático.
Depois que o Diretor Atherton e seus asseclas me deixaram a sós, foi uma
questão de minutos querer que a porção ressuscitada do meu corpo retomasse à
pequena morte. Era morte em vida, mas era apenas uma pequena morte,
semelhante à morte temporária causada por um anestésico.
E assim, de tudo que era sórdido e vil, da solitária brutal e do inferno da camisa-
de-força, das moscas amigas e dos suores das trevas e da conversa com os nós
dos dedos dos mortos-vivos, eu saltei no tempo e no espaço.
Um instante de escuridão... e cresce a lenta percepção de outras coisas e de um
outro eu. Antes de tudo, nessa percepção, havia o pó. O pó nas minhas narinas,
seco e irritante. O pó na minha boca. O pó que cobre meu rosto e minhas mãos, e
eu o noto principalmente nas pontas dos dedos, quando as esfrego com o polegar.
Depois percebo o movimento incessante. Tudo à minha volta balança e dá
solavancos. Há vibrações, embates e ouço algo que reconheço, com
naturalidade, como o ranger das rodas sobre o eixo e a fricção e impacto dos
aros de ferro contra a areia e a pedra. E chegam até mim as vozes cansadas de
homens a praguejar e a gritar com os animais exaustos que avançam vagarosos.
Abro os olhos, inflamados pela poeira, e imediatamente eles se enchem de pó.
Sobre os cobertores ásperos onde estou deitado, a camada de pó tem cinco
centímetros. Acima da minha cabeça, através da teia de pó, vejo um toldo
abaulado de lona a sacolejar e se balançar e milhares de partículas de poeira a
pairar, pesadas, nos raios de sol que entram pelos buracos na lona.
Eu era uma criança, um garoto de oito ou nove anos, e estava cansado; e cansada
estava a mulher macilenta e empoeirada sentada ao meu lado, a ninar um bebê
que chorava em seus braços. Ela era minha mãe; isso eu sabia naturalmente,
assim como soube, quando olhei pelo túnel de lona do carroção, que os ombros
do homem na boléia eram os ombros do meu pai.
Quando comecei a rastejar pelas trouxas e pacotes que atravancavam o
carroção, minha mãe disse numa voz cansada e lamurienta:
— O Jesse, por que você não fica quieto um pouco, menino?
Esse era meu nome, Jesse. Eu não sabia meu sobrenome, mas ouvi minha mãe
chamar meu pai de John. Eu tinha uma vaga lembrança de ter ouvido os outros
homens tratarem meu pai por capitão. Eu sabia que ele era o chefe dessa
caravana e que todos obedeciam às suas ordens.
Rastejei pela abertura na lona e sentei na boléia ao lado do meu pai. O ar estava
sufocante com o pó levantado pelos carroções e pelos muitos cascos de animais.
Tão espessa era a nuvem de pó que mais parecia neblina ou nevoeiro, e o sol
poente brilhava vagamente através dela com um halo avermelhado.
Não só a luz desse crepúsculo era sinistra, mas tudo à minha volta me parecia
sinistro — esse lugar, o rosto do meu pai, o choro do bebê nos braços de minha
mãe que não conseguia acalmá-lo, os seis cavalos que meu pai conduzia e que
tinham de ser continuamente chicoteados e que já não tinham cor alguma, tão
espessa era a camada de pó sobre eles.
O lugar era uma desolação dolorosa que feria os olhos. Colinas se estendiam sem
fim em ambos os lados. Apenas aqui e ali, em suas encostas, crescia às vezes um
matagal enfezado e ressecado pelo calor. A maior parte das colinas era seca e
nua e feita de areia e rocha. Nosso caminho seguia o sopé arenoso das colinas. E
os sopés arenosos eram áridos, exceto pelas manchas de matagal com, aqui e ali,
pequenos tufos de grama seca e murcha. Água não havia nenhuma, nenhum
sinal d'água, exceto por ravinas cavadas por antigas chuvas torrenciais.
Meu pai era o único que tinha cavalos puxando o carroção. Os carroções
seguiam em fila indiana e quando a caravana serpenteou e fez uma curva vi que
os outros carroções eram puxados por bois. Três ou quatro parelhas de bois
lutavam e puxavam cansadas cada carroção, e ao lado delas, na areia funda,
caminhavam homens com aguilhões a incitar os animais relutantes. Numa curva
contei os carroções à frente e atrás. Eu sabia que havia quarenta, incluindo o
nosso; já tinha contado muitas vezes antes. E enquanto contava agora, num
desejo infantil de espantar o tédio, lá estavam todos os quarenta, todos eles
cobertos de lona, grandes e sólidos, toscos, rodando e vibrando, rangendo e
gemendo sobre a areia, a artemísia e as pedras.
A direita e à esquerda, espalhados ao longo da caravana, cavalgavam uns doze
ou quinze homens e rapazes. Atravessados nos arções das selas, os rifles de cano
longo. Sempre que algum deles se aproximava do nosso carroção, eu podia ver
que seu rosto sob a poeira estava tenso e ansioso como o do meu pai. E meu pai,
como eles, dirigia com um rifle ao alcance da mão.
E também a um lado se arrastavam uns vinte bois muito magros, machucados
pela canga, com as patas feridas, que volta e meia paravam para pastar tufos de
grama murcha e que eram sempre aguilhoados pelos meninos de rosto cansado
que os guardavam. Às vezes um ou outro desses bois parava e mugia, e seu
mugido parecia tão sinistro como todo o resto em volta de mim.
Longe, muito longe, tenho uma lembrança de ter vivido, garotinho mais novo, às
margens arborizadas de um riacho. E conforme o carroção vibra e sou sacudido
na boléia com meu pai, volto continuamente e demoro a lembrança naquela
água agradável a correr entre as árvores. Tenho a sensação de estar há um
tempo interminável num carroção, viajando, viajando sempre, com essa
caravana.
Mas a impressão mais forte sobre mim é aquela que também atinge toda a
caravana: a sensação de estar caminhando para a morte. Nossa marcha é como
uma marcha fúnebre. Nunca uma gargalhada. Nunca uma voz alegre. A paz e a
espontaneidade não viajavam conosco. O rosto dos homens e rapazes que
cavalgavam ao lado dos carroções eram sombrios, fechados, desesperados. E
enquanto abríamos caminho pela poeira sinistra do crepúsculo, muitas vezes
esquadrinhei o rosto de meu pai buscando inutilmente alguma mensagem de
alegria. Não vou dizer que o rosto de meu pai, com toda aquela tensão sob a
poeira, era desesperado. Era um rosto perseverante, mas, ah, tão sombrio e
principalmente tão ansioso.
Uma comoção pareceu percorrer a caravana. A cabeça de meu pai se levantou.
Também a minha. E nossos cavalos levantaram suas cabeças cansadas,
cheiraram o ar com um resfolegar profundo e pela primeira vez puxaram com
vontade. Os cavalos dos batedores apressaram o passo. E a manada de bois-
espantalhos partiu num tropel vigoroso. Chegava a ser quase engraçado. Os
coitados eram tão desajeitados na sua fraqueza e na sua pressa. Eram esqueletos
galopantes envoltos em couro sarnento e se distanciaram dos meninos que os
guardavam. Mas isso foi só no começo. Logo eles afrouxaram o passo, mas
ainda um passo apressado e cheio de sede, arrastado e dolorido; e não se
interessaram mais pelos magotes de grama ressecada.
— O que foi?—perguntou minha mãe de dentro do carroção.
— Água — foi a resposta de meu pai..— Deve ser Nephi.
E minha mãe:
— Graças a Deus! Tomara que eles vendam comida.
E em Nephi, através do pó vermelho-sangue, com rangidos e fricções e
vibrações e embates, entraram nossos enormes carroções. Uma dúzia de casas
ou cabanas espalhadas compunha o lugar. A paisagem era bem a mesma que
atravessamos. Não tinha árvores, só arbustos e a aridez da areia. Mas aqui havia
sinais de campos arados, com uma cerca aqui e ali. E também havia água. No
rio não corria água, mas seu leito estava úmido, com um e outro olho-d'água
onde os bois desatrelados e os cavalos de sela batiam os cascos e enfiavam os
focinhos até os olhos. Aqui também crescia um e outro salgueiro mirrado.
— Aquele deve ser o moinho do Bill Black de que falaram — disse meu pai,
apontando uma construção para minha mãe, tão ansiosa que veio espiar sobre
nossos ombros.
Um velho com uma camisa de pele de gamo e cabelos longos, emaranhados e
descorados pelo sol, cavalgou até nosso carroção e falou com papai. O sinal foi
dado e os carroções da frente da caravana começaram a fazer a formação em
círculo.
O terreno favorecia a evolução e, pela longa prática, ela foi executada sem
nenhuma dificuldade; assim, quando os quarenta carroções finalmente pararam,
eles formavam um círculo. Tudo era uma febre de atividade e uma confusão
organizada. Muitas mulheres, todas com o rosto cansado e empoeirado como
minha mãe, saltavam dos carroções. E também se despejou um batalhão de
crianças. Devia ter pelo menos umas cinqüenta e me parecia que eu conhecia
todas elas há muito tempo; e pelo menos umas quarenta mulheres, que
começaram a preparar o jantar.
Enquanto alguns dos homens cortavam artemísia que as crianças carregavam
para as fogueiras que estavam sendo acesas, outros homens desatrelaram os bois
e os deixaram desabalar para a água. Depois os homens, em grupos grandes,
moveram os carroções para a formação mais protegida. A lança de cada
carroção ficava do lado de dentro do círculo e na frente e atrás cada carroção
encostava-se firmemente nos carroções vizinhos. Os grandes freios foram
engatados e, não contentes com isso, as rodas de todos os carroções foram unidas
com correntes. Nada disso era novo para nós, crianças. Era o sinal de problemas
num acampamento em terra hostil. Um carroção apenas foi deixado fora do
círculo, formando um portão de entrada para o enclave. Mais tarde, como
sempre, antes que o acampamento adormecesse, os animais seriam trazidos para
dentro e aquele carroção acorrentado no lugar, como os outros. Enquanto isso, e
durante horas, os animais seriam guardados por homens e meninos, pastando
qualquer grama escassa que pudessem encontrar.
Enquanto a montagem do acampamento prosseguia, meu pai e vários outros dos
homens, incluindo o velho de cabelos compridos e descorados pelo sol, foram a
pé na direção do moinho. Lembro que todos nós, homens, mulheres e até mesmo
as crianças, pararam para vê-los partir; e parecia que sua missão era da maior
importância.
Enquanto eles estavam fora, outros homens, estranhos, habitantes do deserto de
Nephi, vieram ao acampamento, andando com arrogância. Eram homens
brancos como nós, mas tinham rosto duro, rosto sério e sombrio, e pareciam
furiosos com toda a nossa caravana. Havia hostilidade no ar e eles diziam coisas
calculadas para fazer os nossos homens perderem a calma. Mas a advertência
veio das mulheres e foi transmitida aos nossos homens e rapazes, de que não
deveria ser dita palavra alguma.
Um dos estranhos veio até nossa fogueira onde minha mãe estava sozinha
cozinhando. Eu tinha acabado de chegar com uma braçada de artemísia e parei
para ouvir e olhar fixa-mente o intruso que eu odiava porque odiar estava no ar,
porque eu sabia que cada uma das pessoas na nossa caravana odiava esses
estranhos que tinham a pele branca como nós e por causa deles fomos obrigados
a formar nosso acampamento num círculo.
Esse estranho ao lado da nossa fogueira tinha olhos azuis, duros e frios e
penetrantes. Seu cabelo era cor de areia. O rosto era barbeado até o queixo, e,
saindo de baixo do queixo e cobrindo o pescoço e indo até as orelhas, brotavam
as suíças cor de areia salpicadas de fios cinzentos. Mamãe não o cumprimentou,
nem ele a cumprimentou. Ele apenas ficou de pé e olhou ameaçador para ela
por algum tempo. Então ele limpou a garganta e disse com um sorriso de
desdém:
— Aposto que o que a senhora queria era voltar pro Missouri, não é, dona?
Vi mamãe apertar os lábios para se controlar e depois ela respondeu:
— Somos do Arkansas.
— Acho que a senhora tem um bom motivo para negar de onde vem, dona —
disse ele a seguir —, vocês que expulsaram do Missouri o povo escolhido do
Senhor.
Mamãe não respondeu.
— ... e agora — continuou ele, vendo que ela nada dizia — agora vocês aqui vêm
choramingar e mendigar o pão da nossa mão que vocês perseguiram.
Diante disso, instantaneamente, criança que eu era, conheci a raiva, a velha e
intolerante fúria sanguinária, sempre irreprimível e indomável.
— O senhor está mentindo! — berrei. — A gente não é do Missouri. Não estamos
choramingando nem mendigando. A gente tem dinheiro para comprar comida!
— Cala a boca, Jesse! — gritou minha mãe, largando as costas da mão com
força na minha boca. E então, para o estranho: —Vá embora daqui! Vá embora
e deixe o menino em paz!
— Vou te encher de chumbo, mórmon maldito! — gritei soluçando para ele,
rápido demais para minha mãe dessa vez e pulando em volta da fogueira para
fugir do golpe de sua mão.
Quanto ao homem, minha conduta não o perturbou nem um pouco. Eu estava
preparado para sei lá que violenta reação desse terrível estranho e observei-o
com cautela enquanto ele me considerava com a maior gravidade.
Afinal ele falou e falou com solenidade, com uma solene sacudida da cabeça
como se estivesse pronunciando uma sentença.
— Tal pai, tal filho — disse ele. — A nova geração é tão ruim como a velha. A
raça toda é degenerada e amaldiçoada. Não há salvação, nem para os jovens,
nem para os velhos. Não há expiação. Nem o sangue de Cristo pode lavar suas
iniqüidades.
— Maldito mórmon! — foi tudo que consegui soluçar para ele. — Maldito
mórmon! Maldito mórmon! Maldito mórmon!
E continuei a amaldiçoá-lo e a pular em volta do fogo, fugindo da mão punitiva
de minha mãe, até que ele se foi a passos largos.
Quando meu pai e os homens que o acompanhavam voltaram, o trabalho no
acampamento parou e todos se reuniram ansiosos à sua volta. Ele sacudiu a
cabeça.
— Eles não vão vender? — perguntou uma mulher.
Ele sacudiu de novo a cabeça.
Um homem falou, um gigante de 30 anos, de olhos azuis e suíças louras, que
abriu caminho abruptamente até o centro do grupo.
— Eles dizem que têm farinha e provisões para três anos, Capitão — disse ele. —
Antes eles sempre vendiam para os imigrantes. Mas agora não querem vender.
O problema não é nós. A briga deles é com o governo e eles estão jogando a
culpa em nós. Não está certo, Capitão. Não está certo, a gente aqui com as
mulheres e crianças e a Califórnia a meses de viagem e o inverno chegando e
nada a não ser deserto no meio. A gente não tem comida pra enfrentar o deserto.
Ele parou por um instante e se dirigiu ao grupo todo.
— Amigos, vocês não sabem o que é o deserto. Isso aqui não é o deserto. Estou
dizendo, isso aqui é o paraíso e os campos do céu e aqui corre leite e mel perto do
que vocês vão ter de enfrentar.
— Estou dizendo. Capitão, a gente precisa conseguir farinha primeiro. Se eles não
quiserem vender, vamos lá tirar deles.
Muitos dos homens e mulheres começaram a gritar em aprovação, mas meu pai
os calou levantando a mão.
— Concordo com tudo que você disse, Hamilton — começou ele.
Mas os gritos abafavam sua voz e ele levantou novamente a mão.
— Fora uma coisa que você se esqueceu de levar em conta, Hamilton, uma coisa
que você e todos nós temos de levar em conta. Brigham Young declarou lei
marcial aqui e Brigham Young tem um exército. A gente pode destruir Nephi
enquanto uma cabra pisca um olho e pegar todas as provisões que der pra
carregar. Mas a gente não vai carregar até muito longe, não. Os Santos de
Brigham vão partir pra cima de nós e vão nos destruir enquanto a cabra pisca o
outro olho. Eu sei. Eu sei e vocês todos sabem.
Suas palavras traziam convicção a ouvintes já convencidos. O que ele dizia era
coisa sabida. Só que esquecida num instante de excitação e no desespero da
necessidade.
— Ninguém ia mais rápido lutar pelo que é direito do que eu — continuou o pai.
— Mas o que acontece é que a gente não pode se dar ao luxo de lutar agora. Se
chegar a ter luta, não temos a menor chance. E todos tem de lembrar que tem as
mulheres e as crianças. Temos de manter a paz a qualquer preço e agüentar o
que der e vier.
— Mas o que é que a gente vai fazer com esse deserto pela frente? — gritou uma
mulher com um bebê no colo.
— Tem muito povoado antes da gente chegar no deserto — respondeu papai. —
Fillmore é cem quilômetros ao sul. Depois tem Corn Creek. E Beaver fica a
outros 80 quilômetros. O seguinte é Parowan. Depois tem 30 quilômetros até
Cedar City. Quando mais longe a gente estiver de Salt Lake, é mais provável que
eles vendam provisões.
— E se não venderem? — insistiu a mesma mulher.
— Então a gente fica sem — disse meu pai. — Cedar City é o último povoado. O
que a gente tem é que ir em frente e agradecer nossa boa estrela por estar indo
pra longe deles. Dois dias de viagem adiante tem bom pasto e água. Eles
chamam o lugar de Montes Meadows. Ali não vive ninguém, e nesse lugar a
gente faz o gado descansar e deixa ele bem alimentado antes de se meter no
deserto. Talvez a gente consiga caçar alguma carne. E se a coisa piorar, a gente
continua enquanto der, daí abandona os carroções, empilha o que puder nos
animais e faz a última parte da viagem a pé. A gente pode comer o gado
enquanto vai andando. E melhor chegar na Califórnia sem um trapo em cima do
lombo do que deixar a ossada aqui. E é aqui que ela fica se a gente começar
numa luta.
Com novas advertências contra violência de palavra ou ato, a reunião
improvisada se encerrou. Demorei para pegar no sono aquela noite. Minha raiva
contra o mórmon tinha deixado meu cérebro em tal estado de agitação que eu
ainda estava acordado quando meu pai rastejou para dentro do carroção depois
de uma última inspeção dos vigias noturnos. Eles pensavam que eu dormia, mas
ouvi mamãe lhe perguntar se ele achava que os mórmons nos deixariam partir
em paz de suas terras. Ele estava de costas para ela, tirando as botas, e respondeu
com voz confiante que tinha certeza de que os mórmons nos deixariam partir se
ninguém da nossa caravana começasse a criar problema.
Mas vi seu rosto naquele momento à luz da vela de sebo e nele nada havia da
confiança que havia em sua voz. E foi assim que adormeci, oprimido pelo destino
terrível que parecia estar suspenso sobre nós e pensando em Brigham Young, que
crescia na minha imaginação infantil como um ser temível e mau, o próprio
demônio com chifres e rabo e tudo.
E despertei para a velha dor da camisa-de-força na solitária. A minha volta
estavam os quatro de sempre: o Diretor Atherton, o Capitão Jamie, o Doutor
Jackson e Al Hutchins. Rasguei o rosto com o sorriso da minha vontade e lutei
para não perder o controle sob o agudo tormento da volta da circulação. Bebi a
água que me trouxeram, abanei a cabeça diante do pão oferecido e me recusei a
falar. Fechei os olhos e lutei para voltar ao círculo fechado dos carroções em
Nephi. Mas enquanto meus visitantes ficavam ao meu redor e falavam, eu não
podia escapar.
Um fragmento de conversa não pude deixar de ouvir.
— O mesmo que ontem — dizia o Doutor Jackson. — Nenhuma mudança, nem
para melhor nem para pior.
— Quer dizer que ele pode continuar? — perguntou o Diretor Atherton.
— Sem se abalar. As próximas 24 horas tão fácil como as últimas. Ele é um
louco, estou dizendo, um louco perfeito. Se eu não soubesse que era impossível,
eu ia pensar que ele está dopado.
— Conheço a droga que ele toma — disse o Diretor. — É essa maldita vontade
dele. Aposto que se ele quisesse, podia caminhar descalço em cima de pedras
em brasa como aqueles sacerdotes kanaka dos Mares do Sul.
Foi talvez a palavra “sacerdotes” que levei comigo pelas trevas de um outro vôo
no tempo. Ela foi, talvez, a deixa. O mais provável é que tenha sido uma mera
coincidência. De qualquer modo, despertei sobre um áspero chão de pedras,
deitado de costas, meus braços cruzados de tal maneira que cada cotovelo
repousava na palma da mão oposta. Enquanto ali estava, olhos fechados,
semidesperto, esfreguei os cotovelos com as mãos e descobri que esfregava
enormes calosidades. Não houve surpresa nisso. Aceitei os calos como coisas
antigas e naturais.
Abri os olhos. Meu abrigo era uma pequena caverna, não mais que um metro de
altura e quatro de comprimento. Estava muito quente na caverna. Gotas de suor
cobriam toda a superfície do meu corpo. De vez em quando, várias gotas se
uniam e formavam pequenos regatos. Eu não vestia roupa alguma, exceto um
trapo imundo em volta dos quadris. Minha pele estava queimada até um marrom
de mogno. Eu era muito magro e contemplei minha magreza com uma estranho
sensação de orgulho, como se fosse um feito heróico ser assim tão magro. Eu
sentia um amor especial pelas minhas costelas dolorosamente salientes. A
simples vista das cavidades entre elas dava-me um sentimento de solene
exaltação — ou antes, para usar uma palavra melhor, de santificação.
Meus joelhos eram calosos como meus cotovelos. Eu estava muito sujo. Minha
barba, evidentemente um dia loura, mas agora de um marrom sujo e manchado,
caía sobre meu ventre numa massa desgrenhada. Meus cabelos, longos e
também manchados e emaranhados, cobriam meus ombros enquanto algumas
mechas viviam a me atrapalhar a visão, e eu era às vezes obrigado a afastá-las
para o lado com as mãos. A maior parte do tempo, no entanto, eu me contentava
em espiar através delas, como um animal selvagem a espreitar por trás de uma
moita.
Na boca estreita da minha caverna escura, o dia levantou-se como um muro de
luz ofuscante. Depois de algum tempo, rastejei até a entrada e, em nome de um
sofrimento maior, deitei-me ao sol inclemente sobre uma estreita saliência de
pedra. Ele realmente assava minha carne, aquele sol terrível, e quanto mais ele
me feria mais eu me alegrava com ele — ou melhor, comigo mesmo, pois eu
era assim o mestre da minha carne e superior às suas exigências e protestos.
Quando encontrava debaixo de mim uma projeção rochosa particularmente
afiada, mas não afiada demais, eu esmagava meu corpo sobre ela e supliciava
minha carne num verdadeiro êxtase de domínio e purificação.
Era um dia de calor estagnante. Nem um sopro de ar se movia sobre o vale do
rio, onde eu às vezes lançava o olhar. Centenas de metros abaixo de mim, o
grande rio fluía vagaroso. A praia da outra margem era plana e arenosa e se
estendia até o horizonte. Mais além, havia grupos esparsos de palmeiras.
Do meu lado havia altos penhascos a se desintegrar e onde a erosão das águas
cavou uma reentrância. Mais além, ao longo dessa curva, em plena vista da
minha morada panorâmica, escavadas na rocha viva, havia quatro figuras
colossais. A estatura de um homem chegava até a altura de seus tornozelos. Os
quatro colossos estavam sentados, as mãos repousando nos joelhos, os braços já
desmoronados, e lançavam o olhar sobre o rio. Isto é, três deles olhavam. Do
quarto, tudo o que restava eram as pernas e as mãos gigantescas repousando
sobre os joelhos. Aos pés desse colosso agachava-se uma esfinge, ridiculamente
pequena mas que, mesmo assim, era mais alta do que eu.
Olhei essas imagens esculpidas e cuspi com desprezo. Eu não sabia o que elas um
dia foram, se deuses olvidados ou reis caídos no esquecimento. Para mim elas
representavam a vaidade e a futilidade de homens mundanos e aspirações
mundanas.
E sobre toda essa curva do rio, sobre a vastidão das águas e a larga faixa de
areia, arqueava-se um céu de bronze latejante sem sequer uma nuvem.
As horas passavam enquanto eu me cozia ao sol. Muitas vezes, a intervalos
decentes, eu esquecia o calor e a dor em sonhos e visões e em lembranças. Isso
tudo, eu sabia — colossos se desintegrando, rio, areia, sol, céu metálico — iria
passar num piscar de olho. A qualquer momento, as trombetas dos arcanjos
soariam, as estrelas cairiam do firmamento, os céus se abririam como um
pergaminho e o Senhor Deus de todos os homens viria com Suas hostes para o
Julgamento Final.
Ah, eu o sabia, tão bem eu o sabia que estava pronto para esse dia tão sublime.
Era por isso que eu aqui estava, em trapos, na sujeira e na miséria. Eu fui manso
e humilde; eu desprezei as fraquezas e as tentações da carne. E eu pensava com
desprezo, e com certa satisfação, nas distantes cidades da planície que havia
conhecido, todas elas desatentas, em sua pompa e luxúria, ao dia do Juízo tão
próximo. Bem, elas logo veriam... mas seria tarde demais para elas. E eu
também veria... mas eu estava pronto. E ao som de seus gritos e lamentações eu
me levantaria, renascido e glorioso, e tomaria meu assento merecido e legítimo
na Cidade do Senhor.
Às vezes, entre sonhos e visões nas quais eu estava, verdadeiramente e antes da
minha hora, na Cidade do Senhor, eu repassava na mente antigas discussões e
controvérsias. Sim, Novatus estava certo quando defendeu que apóstatas
penitentes jamais deveriam ser recebidos novamente nas igrejas. Sim, e não
havia dúvida de que o sabelianismo foi concebido pelo demônio. Como também
o foi Constantino, o arquiinimigo, a mão direita do demônio.
Continuamente eu voltava a meditar sobre a natureza da unidade de Deus e
passava e repassava as afirmações de Noetus, o Sírio. No entanto, o que eu mais
apreciava eram as afirmações do meu amado mestre, Arius. Na verdade, se a
razão humana pudesse chegar a determinar alguma coisa, certa-mente houve
um tempo, na própria natureza da filiação, em que o Filho não existia. Na
natureza da filiação, deveria ter havido um tempo em que o Filho começou a
existir. Um pai precisa ser mais velho que seu filho. Sustentar o contrário seria
uma blasfêmia, seria diminuir Deus.
E relembrei meus dias de juventude, quando sentava aos pés de Arius, que fora
um presbítero da cidade de Alexandria e cujo bispado foi-lhe roubado pelo
blasfemo e herético Alexandre. Alexandre, o sabeliano, isso é o que ele era, e
seus pés se apoiavam no próprio inferno.
Sim, estive no Concilio de Nicéia e vi o assunto ser evitado. E lembro quando o
Imperador Constantino baniu Arius por sua retidão moral. E lembro quando
Constantino arrependeu-se por razões de estado, por razões políticas, e ordenou a
Alexandre — o outro Alexandre, três vezes maldito. Bispo de Constantinopla —
receber Arius em comunhão no dia seguinte. E, naquela mesma noite, não
morreu Arius nas ruas? Disseram que uma doença violenta o puniu em resposta
às preces de Alexandre a Deus. Mas eu afirmei, e assim afirmaram todos os
seguidores de Arius, que a doença violenta se devia a um veneno e que o veneno
se devia ao próprio Alexandre, Bispo de Constantinopla e diabólico envenenador.
E esmago meu corpo mais e mais contra as pedras agudas e murmuro,
embriagado de convicção:
— Deixai judeus e pagãos escarnecerem. Deixai-os triunfar, pois seu tempo é
curto. E para eles não haverá um tempo depois do tempo.
Eu falava bastante em voz alta comigo mesmo naquela plataforma rochosa
sobranceira ao rio. Eu estava febril e, às vezes, bebia frugalmente a água de um
fedorento odre de pele de cabra. Esse odre eu deixava pendurado ao sol, para
que o fedor do couro aumentasse e não houvesse nenhum frescor na água.
Comida havia, sobre a sujeira do chão da minha caverna: algumas raízes e um
pedaço mofado de bolo de cevada; e faminto eu estava, mas nada comia.
Tudo que fiz durante todo aquele dia abençoado foi suar e arder de calor ao sol,
mortificar minha carne magra sobre a pedra, olhar para a desolação, ressuscitar
antigas lembranças, sonhar sonhos e murmurar minhas convicções.
E quando o sol se pôs, na rápida luz do crepúsculo lancei um último olhar ao
mundo que logo chegaria ao fim. Aos pés dos colossos, eu podia entrever as
formas agachadas das bestas entocadas nos monumentos que foram, um dia,
orgulho dos homens. E ao som dos rosnados das bestas rastejei para o meu
buraco e, murmurando e dormitando, tendo visões de fantasias febris e rezando
para que o dia do Juízo chegasse depressa, escorreguei para as trevas do sono.
A consciência retomou a mim na solitária, com o quarteto de torturadores à
minha volta.
— Blasfemo e herético diretor de San Quentin, cujos pés se apóiam no próprio
inferno — zombei, depois de tomar um longo gole da água trazida aos meus
lábios. — Deixai carcereiros e encarregados triunfarem, pois seu tempo é curto.
E para eles não haverá um tempo depois do tempo.
— Perdeu o juízo — afirmou o Diretor Atherton.
— Ele está é fingindo — foi o seguro julgamento do Doutor Jackson.
— Mas ele recusa comida — protestou o Capitão Jamie.
— Bolas, ele podia jejuar quarenta dias que não acontecia nada — respondeu o
médico.
— E quarenta dias jejuei — exclamei — e também quarenta noites. Querem
fazer o favor de apertar a camisa-de-força e dar o fora daqui?
O encarregado-chefe tentou enfiar o polegar por baixo das Cordas.
— Não dá pra tirar nem um centímetro de folga, mas nem com um calço e uma
alavanca — garantiu ele.
— Você tem alguma queixa a fazer, Standing? — perguntou o Diretor.
— Sim — respondi. — Duas.
— E quais são?
— Primeiro — eu disse — a camisa-de-força está abominavelmente frouxa.
Hutchins é um idiota. Ele conseguiria tirar dois centímetros de folga se quisesse.
— E a outra? — perguntou o Diretor Atherton.
— Que o senhor foi concebido pelo demônio, Diretor.
O Capitão Jamie e o Doutor Jackson abafaram uma risadinha nervosa e o
Diretor, bufando, liderou o caminho para fora da minha cela.
Deixado sozinho, lutei para entrar nas trevas e voltar ao círculo de carroções em
Nephi. Eu estava interessado em saber o resultado daquele avanço fatídico dos
quarenta carroções através de uma terra desolada e hostil; e não estava nem um
pouco interessado no que teria acontecido ao eremita sarnento com suas costelas
arranhadas pelas pedras e seu odre fedorento. E voltei, não a Nephi nem ao Nilo,
mas ao...
Mas aqui preciso fazer uma pausa na narrativa, meu leitor, para explicar
algumas coisas e tomar o assunto mais acessível à sua compreensão. Isso é
necessário, porque meu tempo para completar minhas lembranças da camisa-
de-força é curto. Muito em breve, muitíssimo em breve, eles vão me levar e me
enforcar. Mesmo que eu tivesse todo o tempo de mil vidas, eu não poderia
completar os últimos detalhes das minhas experiências na camisa-de-força.
Preciso, portanto, abreviar minha narrativa.
Primeiro, Bergson está certo. A vida não pode ser explicada em termos
intelectuais. Como disse Confúcio há muito tempo: “Quando somos tão ignorantes
da vida, podemos conhecer a morte?” E ignorantes da vida somos quando, na
verdade, não podemos explicá-la em termos de compreensão. Conhecemos a
vida apenas como fenômeno (do mesmo modo que um selvagem conhece um
dínamo) e nada conhecemos da vida como número, nada conhecemos sobre a
natureza da substância intrínseca da vida.
Segundo, Marinetti está errado quando afirma que a matéria é o único mistério e
a única realidade. Eu digo — e como você, meu leitor, percebe, eu falo com
autoridade — eu digo que a matéria é a única ilusão. Comte queimou o mundo,
que é equivalente à matéria, o grande fetiche; e concordo com Comte. E a vida
que é a realidade e o mistério. A vida é totalmente diferente de mera matéria
química a fluir em elevadas manifestações de movimento. A vida permanece. A
vida é o fio de fogo que permanece através de todas as manifestações da
matéria. Eu sei. Eu sou vida. Eu vivi dez mil gerações. Eu vivi milhões de anos.
Eu habitei muitos corpos. Eu, o possuidor desses muitos corpos, permaneço. Eu
sou vida. Eu sou a chama inextinguível sempre a brilhar e a assombrar a face do
tempo, sempre a trabalhar minha vontade e a descarregar minha paixão nos
agregados terrenos de matéria, chamados corpos, que transitoriamente habitei.
Veja. Este dedo meu, tão rápido na sensação, tão sutil no tato, tão delicado em
suas múltiplas habilidades, tão firme e forte para dobrar e curvar as coisas ou
esticá-las com astuta destreza — esse dedo não é eu. Corte-o fora. Eu vivo. O
corpo é mutilado. Eu não sou mutilado. O espírito que sou eu está inteiro.
Pois bem. Corte fora todos os meus dedos. Eu sou eu. O espírito está inteiro. Corte
minhas mãos. Corte meus braços pelos ombros. Corte minhas pernas pelos
quadris. E eu, o eu inconquistável e indestrutível, sobrevivo. Serei menor por
causa dessas mutilações, dessas subtrações da carne? Certamente que não. Raspe
meu cabelo. Com navalhas afiadas, corte fora meus lábios, meu nariz, minhas
orelhas — ai de mim, e ar-ranque meus olhos das órbitas; e ali, confinado
naquele crânio sem feições ligado a um tronco mutilado e injuriado, ali, naquela
prisão da carne química, ainda estarei eu, não-mutilado, não-diminuído.
Ah, mas o coração ainda bate. Pois bem. Arranque o coração; ou melhor, jogue
esse resto de carne num moedor — e eu, eu, você entende?, todo o espírito e o
mistério e o fogo vital e a vida de mim, estarei fora dali. Eu não pereci. Apenas o
corpo pereceu, e o corpo não sou eu.
Acredito que o Coronel de Rochas estava certo quando afirmou que, sob a
compulsão de sua vontade, enviou Josephine, em transe hipnótico, de volta
através dos 18 anos que ela tinha vivido, de volta através do silêncio e das trevas
de antes de seu nascimento, de volta à luz de uma existência anterior onde ela foi
um velho entrevado, o ex-artilheiro Jean-Claude Bourdon. E acredito que o
Coronel de Rochas realmente hipnotizou essa sombra ressuscitada do velho
Bourdon e, pela compulsão da vontade, enviou-o de volta através dos 70 anos de
sua vida, de volta às trevas e, através das trevas, à luz do dia em que ele foi a
velha e perversa Philoméne Carteron.
Já não lhe mostrei, meu leitor, que em tempos anteriores, habitando vários
agregados terrenos de matéria, eu fui o Conde Guillaume de Sainte-Maure, fui
um eremita sarnento e sem nome no Egito, fui o garoto Jesse, cujo pai liderava
quarenta carroções na grande emigração para o Oeste? E também não sou
agora, enquanto escrevo estas linhas, Darrell Standing, sob sentença de morte na
Prisão de Folsom e antigo professor de agronomia na Escola de Agricultura da
Universidade da Califórnia?
A matéria é a grande ilusão. Isto é, a matéria se manifesta na forma e a forma é
apenas uma aparição. Onde estão agora os penhascos a se desintegrar do velho
Egito, onde uma vez me encavernei como uma besta selvagem, a delirar com a
Cidade do Senhor? Onde está agora o corpo de Guillaume de Sainte-Maure,
atravessado sobre a relva enluarada pelo florete do ruivo Guy de Villehardouin?
Onde estão agora os quarenta carroções em Nephi, e todos os homens e
mulheres e crianças e o gado esquelético que se abrigavam dentro daquele
círculo? Todas essas coisas não existem mais, pois foram apenas formas,
manifestações da matéria a fluir, antes de se dissolverem mais uma vez no fluxo.
Elas passaram, elas não mais existem.
E agora meu argumento fica claro. O espírito é a realidade que permanece. Eu
sou espírito, e eu permaneço. Eu, Darrell Standing, o inquilino de tantas
habitações de carne, escreverei mais algumas poucas linhas dessas memórias e
então seguirei meu caminho. A forma de mim que é meu corpo se desfará
quando for suficientemente pendurada pelo pescoço e dela nada restará no
mundo da matéria. No mundo do espírito, a memória dela permanecerá. A
matéria não tem memória, pois suas formas são evanescentes, e aquilo que está
gravado em suas formas com elas perece.
Uma palavra mais, antes que eu volte à minha narrativa. Em todas as minhas
jornadas através das trevas para outras vidas que foram minhas, nunca fui capaz
de guiar qualquer jornada a um destino específico. Assim, revivi muitas novas
experiências de antigas vidas antes de ter a chance de voltar ao garoto, Jesse, em
Nephi. Ao todo, talvez revivi as experiências de Jesse umas vinte vezes, ora
retomando sua carreira quando ele era pequenino nos povoados do Arkansas, ora
passando além do ponto em que o deixei em Nephi. Seria desperdício de tempo
detalhar todas elas; e assim, sem prejuízo da veracidade do meu relato, vou
omitir muita coisa que é vaga e tortuosa e repetitiva e contar os fatos na ordem
em que os coloquei, no todo e nos detalhes, depois de revivê-los.
CAPITULO 13
Fui um dia Adam Strang, um inglês. O período em que vivi, tanto quanto posso
imaginar, foi algo entre 1550 e 1650 e cheguei até uma idade bem avançada,
como você há de ver. Arrependo-me bastante, desde que Ed Morrell me ensinou
o caminho da pequena morte, de não ter sido um estudante mais aplicado da
História. Eu teria sido capaz de identificar e localizar muitas das coisas que são
obscuras para mim. O fato é que sou obrigado a andar às apalpadelas e a
imaginar meu caminho aos tempos e lugares das minhas existências anteriores.
Uma coisa peculiar sobre minha existência de Adam Strang é como me lembro
pouco de seus primeiros 30 anos. Muitas vezes, na camisa-de-força. Adam
Strang irrompeu, mas ele sempre emergia já adulto, músculos fortemente
desenvolvidos, um homem de seus 30 anos.
Eu, Adam Strang, invariavelmente assumo minha consciência num grupo de
ilhas planas e arenosas em algum lugar abaixo do Equador, naquilo que deve ser
a banda ocidental do Oceano Pacífico. Ali me sinto sempre em casa e parece
que ali estou já há algum tempo. Existem milhares de habitantes nestas ilhas, mas
sou o único homem branco. Os nativos são uma raça magnífica, musculosos,
ombros largos, altos. Um homem de um metro e oitenta e cinco é comum. O rei,
Raa Kook, tem pelo menos 15 centímetros além do metro e oitenta e cinco e
embora pese lá seus 140 quilos, é tão bem proporcionado que ninguém poderia
chamá-lo de gordo. Muitos dos seus chefes são tão grandes quanto ele e as
mulheres não são muito menores que os homens.
Existem inúmeras ilhas no arquipélago e sobre todas elas reina Raa Kook,
embora o grupo de ilhas ao sul seja insubmisso e ocasionalmente se revolte.
Esses nativos com quem vivo são polinésios, sei disso porque seus cabelos são
lisos e negros. Sua pele tem um cálido tom marrom-dourado. Sua língua, que falo
com admirável facilidade, é redonda, rica e musical; possui uma exigüidade de
consoantes e é composta principalmente por vogais. Eles amam as flores, a
música, a dança e os jogos e são infantilmente simples e felizes em suas
brincadeiras, mas cruelmente selvagens em suas raivas e suas guerras.
Eu, Adam Strang, conheço meu passado mas pareço não pensar muito sobre ele.
Eu vivo no presente. Não me preocupo com o passado nem com o futuro. Sou
descuidado, negligente, imprevidente, feliz com o puro bem-estar e a plenitude
da força física. Peixes, frutas, legumes e algas — uma barriga cheia, e estou
contente. Minha posição é tão elevada quanto a de Raa Kook, de quem ninguém é
mais elevado, nem mesmo Abba Taak, que é o mais supremo entre os
sacerdotes. Nenhum homem ousa levantar mão ou arma contra mim. Sou tabu
— sou sagrado como a sagrada casa da canoa, sob cujo assoalho repousam os
ossos sabem os céus de quantos antigos reis da linhagem de Raa Kook.
Sei muito bem como aconteceu de eu naufragar e estar aqui, o único de toda a
tripulação do meu navio — foi um grande naufrágio e um grande vendaval; mas
não fico a lembrar essa catástrofe. Quando chego a pensar no passado, prefiro
pensar mais lá atrás na minha infância às saias da minha bela mãe inglesa de
pele leitosa e cabelos cor de Unho. E numa pequena aldeia com uma dúzia de
cabanas cobertas de palha que eu vivia. Ouço ainda o melro e o tordo nas sebes e
vejo ainda as campânulas azuis se derramando dos bosques de carvalho sobre a
turfa aveludada, como espuma de águas azuis. E sobretudo lembro-me de um
grande garanhão de patas peludas, sempre levado a correr, escoicear e relinchar
pela rua estreita. Eu tinha medo do imenso animal e sempre corria aos berros
para minha mãe, onde quer que a encontrasse, agarrando suas saias e nelas me
escondendo.
Mas chega. A infância de Adam Strang não é o que me propus escrever.
Vivi muitos anos nessas ilhas que para mim não têm nome e onde estou certo de
que fui o primeiro homem branco. Casei com Lei-Lei, a irmã do rei, que tinha
alguns centímetros acima de um metro e oitenta e cinco e só por aqueles
centímetros me ultrapassava. Eu era uma figura esplêndida de homem, ombros
largos e peito forte, bem constituído. As mulheres de qualquer raça, como você
verá, olhavam para mim com interesse. Nas minhas axilas, protegida do sol,
minha pele era leitosa como a da minha mãe. Meus olhos eram azuis. Meu
bigode, minha barba e meus cabelos eram daquele amarelo-ouro que se vê nas
pinturas dos reis nórdicos dos mares. Ai de mim! Devo ter saído daquela velha
cepa há muito estabelecida na Inglaterra e, embora nascido numa cabana no
campo, o mar ainda corria tão salgado em meu sangue que cedo abri meu
caminho até os navios e tomei-me um marujo. E isso é o que eu fui — não
oficial nem cavalheiro, mas marujo, treinado, valente, resistente.
Eu era valioso para Raa Kook, daí sua proteção real. Eu podia trabalhar o ferro, e
nosso navio naufragado trouxe o primeiro ferro à terra de Raa Kook. Às vezes,
dez léguas a noroeste, íamos em canoas buscar ferro dos destroços. O casco tinha
se afastado dos recifes e se encontrava a uma profundidade de 15 braças. E da
profundidade de 15 braças trouxemos o ferro. Maravilhosos mergulhadores e
trabalhadores submarinos eram esses nativos. Aprendi a mergulhar minhas 15
braças, mas jamais consegui igualá-los, peixes eles, em suas proezas. Em terra
firme, devido ao meu treinamento inglês e minha força, eu podia vencer
qualquer um deles. Também lhes ensinei a lutar com bastões até que o jogo
tomou-se uma epidemia e cabeças rachadas deixaram de ser novidade.
Recolhido dos destroços havia um diário, tão rasgado, deformado e empastado
pela água do mar e com a tinta tão manchada que mal se decifrava alguma
coisa. No entanto, na esperança de que algum estudioso de coisas antigas possa
ser capaz de localizar mais definidamente a data dos eventos que vou descrever,
reproduzo aqui um trecho. A ortografia peculiar talvez dê a pista. Repare que,
embora a letra s seja usada, ela é freqüentemente substituída pela letra f.
Mas preciso me apressar, pois minha narrativa não é do Adam Strang marujo
naufragado numa ilha de coral, mas do Adam Strang mais tarde chamado Yi
Yong-ik, o Poderoso, que foi um dia favorito do poderoso Yunsan, que foi o
amante e marido de Lady Om da casa real de Min e que foi, por longo tempo,
mendigo e pária em todas as aldeias de toda a costa e de todas as estradas de
Cho-Sen. (Ah, aí está: Cho-Sen. Significa a terra da calma matinal. Em
linguagem moderna, é chamada Coréia.)
Lembre-se de que foi há três ou quatro séculos que eu vivi, o primeiro homem
branco nas ilhas de coral de Raa Kook. Naquelas águas, naquela época, quilhas
de navios eram raras. Eu bem poderia lá ter terminado meus dias, em paz e
fartura, sob o sol onde o frio não existia, se não fosse pelo Sparwehr. O Sparwehr
era um navio mercante holandês a se aventurar por mares inavegados em busca
das índias além das índias. Em vez delas, ele encontrou a mim, e eu fui tudo que
ele encontrou.
Pois já não disse que eu era um gigante de coração alegre e barba dourada, um
menino irresponsável que jamais cresceu? Com mal uma ponta de saudade,
quando as barricas de água do Sparwehr se encheram deixei Raa Kook e sua
terra aprazível, deixei Lei-Lei e suas irmãs com guirlandas de flores e, com uma
gargalhada em meus lábios e os cheiros familiares do navio a adoçar minhas
narinas, fiz-me ao mar, marujo uma vez mais, sob o Capitão Johannes Maartens.
Um vagamundear maravilhoso, aquele que se seguiu no velho Sparwehr.
Estávamos em busca de novas terras de sedas e especiarias. Na realidade,
encontramos as febres, a morte violenta e paraísos pestilentos onde a beleza e a
morte juntas guardavam seus ossários. Aquele velho Johannes Maartens, sem um
indício de romantismo na cara impassível e na grisalha cabeça quadrada,
buscava as ilhas de Salomão, as minas de Golconda — ai de mim! Ele buscava a
antiga Atlântida perdida que esperava encontrar ainda a flutuar à tona d'água.
Em vez dela, encontrou simiescos antropófagos caçadores de cabeças.
Aportamos em ilhas estranhas, com o mar a banhar suas praias e rolos de
fumaça a sair de seus picos, onde animalescos pigmeus de cabelo pixaim davam
urros grotescos na selva, cobriam os atalhos das matas com espinhos e covas
cheias de estacas e sopravam dardos envenenados sobre nós de dentro do silêncio
da selva crepuscular. E qualquer um de nós que fosse mordido por um daqueles
dardos sofria uma morte horrível, a uivar. E encontramos outros homens, mais
ferozes, maiores, que nos enfrentaram nas suas praias em combate aberto,
fazendo chover sobre nós lanças e flechas enquanto os grandes tambores e os
pequenos tom-toms ressoavam e rufavam a guerra através dos vales arborizados
e em todas as colinas víamos colunas de fumaça.
Hendrik Hamel era oficial comercial e co-proprietário da aventura do Sparwehr,
o que não era dele pertencia ao Capitão Johannes Maartens. O capitão mal falava
inglês, Hendrik Hamel apenas um pouco mais. Os marujos, aos quais me juntei,
falavam apenas holandês. Mas confie num marujo para aprender holandês — e,
ai de mim! Também coreano, como você verá.
Finalmente chegamos ao país do Japão, como mostravam nossas cartas náuticas.
Mas o povo não quis negociar conosco e dois oficiais com espadas, envoltos em
quimonos de seda que fizeram salivar a boca do Capitão Johannes Maartens,
vieram a bordo e polidamente pediram que nos fôssemos. Sob suas maneiras
suaves havia o ferro de uma raça guerreira; percebemos e seguimos nosso
caminho.
Cruzamos o Estreito do Japão e estávamos entrando no Mar Amarelo a caminho
da China quando o Sparwehr foi lançado sobre as rochas. Era uma pobre
banheira, o velho Sparwehr, tão desajeitado e com tantas barbas de vida marinha
em seu casco que não conseguiu sair por conta própria. Mudamos o curso para
deixá-lo a favor do vento, mas o máximo que ele girou foi 67 graus; e então ficou
a se balouçar sem rumo, como um nabo abandonado em alto-mar. Uma galeota
era ágil comparada com o Sparwehr. Aproá-lo era impensável; virá-lo com a
popa a favor do vento exigiu todas as mãos e metade da noite. Assim estávamos
quando fomos lançados a sotavento sobre a costa por uma mudança de 90 graus
do vento no olho de um furacão que nos atormentava a alma havia dois dias.
Fomos atirados na costa à luz gélida de uma aurora tempestuosa no dorso de
cruéis vagalhões da altura de montanhas. Era o auge do inverno e, na
obscuridade da violenta nevasca, podíamos vislumbrar a costa aterrorizante, se
costa podia ser chamada, tão quebrada era. Havia sombrias ilhas e ilhotas
rochosas além da conta, vagos espaços cobertos de neve além; por toda parte,
rochedos a prumo, íngremes demais para a neve, e de súbito surgiam
promontórios e pináculos e estilhaços de rocha jogados para o alto pelo mar em
fúria.
Não havia nenhum nome para esse país ao qual chegamos, nenhum registro de
que tivesse sido jamais visitado por navegadores. Sua linha costeira estava apenas
sugerida nas nossas cartas náuticas. E daquilo tudo, só podíamos ter razões para
esperar que os habitantes fossem tão inospitaleiros quanto o pouco de sua terra
que podíamos ver.
O Sparwehr bateu de proa num rochedo. Havia água funda no pé do tombadilho e
nosso gurupés inclinado para cima rachou com o impacto e se partiu. O mastro
do traquete saiu pela amurada, com um grande estardalhaço de enxárcias e
estais, e caiu para a frente contra o rochedo.
Sempre admirei o velho Johannes Maartens. Varridos e arrancados do castelo de
popa por um súbito vagalhão, fomos atirados no meio do navio, de onde lutamos
para abrir caminho até o sólido castelo de proa. Outros uniram-se a nós.
Amarramo-nos com firmeza e contamos as cabeças. Éramos dezoito. O resto
tinha perecido.
Johannes Maartens cutucou-me e apontou para cima através da cachoeira de
água salgada da arrebentação no rochedo. Percebi o que ele queria. Seis metros
abaixo do cesto da gávea, o mastro do traquete apoiava-se e se esmagava contra
uma saliência do rochedo. Acima dessa saliência havia uma fenda. Ele queria
saber se eu ousaria pular do topo do mastro na fenda. Às vezes a distância era de
apenas dois metros. Às vezes era de seis metros, pois o mastro andava à roda
como um bêbado com os balanços e pancadas violentas no casco onde repousava
sua base rachada.
Comecei a escalada. Mas eles não esperaram. Um a um, se desamarraram e me
seguiram pelo perigoso mastro acima. Havia razão para a pressa, pois a qualquer
momento o Sparwehr podia escorregar para águas profundas. Sincronizei meu
salto e saltei, aterrissando de quatro na fenda e pronto para dar uma mão àqueles
que pulariam depois. Foi um trabalho vagaroso. Estávamos molhados e
semicongelados na força do vento. Além disso, o salto tinha de ser sincronizado
com os movimentos do casco e o balanço do mastro.
O cozinheiro foi o primeiro a ir. Ele foi arrancado do mastro e seu corpo deu
uma cambalhota no ar ao cair. A arrebentação apanhou-o e esmagou-o contra o
rochedo. O taifeiro, um homem barbado de uns vinte anos, perdeu a mão,
escorregou, rodou em volta do mastro e foi esmagado contra a saliência do
rochedo. Esmagado? A vida foi espremida dele num instante. Dois outros
seguiram o caminho do cozinheiro. O Capitão Johannes Maartens foi o último a
pular, completando os quatorze de nós que se agarravam na fenda. Uma hora
mais tarde, o Sparwehr escorregou e afundou em águas profundas.
Dois dias e duas noites nos viram próximos de perecer naquele rochedo, pois não
havia caminho nem para cima nem para baixo. Na terceira manhã, um barco de
pesca nos achou. Os homens estavam vestidos inteiramente num branco sujo,
com os longos cabelos amarrados num nó curioso no alto da cabeça — o nó
matrimonial, como vim a saber mais tarde, e também, como vim a saber, uma
coisa prática para ser agarrada com uma mão enquanto você batia com a outra,
quando uma briga degenerava além das palavras.
O barco voltou à aldeia para buscar ajuda, e a maior parte dos aldeãos, a maior
parte de seus petrechos e a maior parte do dia foram necessários para nos trazer
para baixo. Era um povo pobre e miserável, sua comida difícil até mesmo para o
estômago de um marujo tolerar. Seu arroz era marrom como chocolate. Metade
da casca permanecia nele, junto com pedaços de palha, lascas e sujeira
inidentificável que nos fazia freqüentemente parar de mastigar para enfiar o
polegar e o indicador na boca e apanhar a substância intrusa. Eles também
comiam uma espécie de painço e uma assombrosa variedade de picles
impiamente apimentados.
Suas casas tinham paredes de barro e tetos de palha. Sob o assoalho corriam os
canos da chaminé pelos quais escapava a fumaça da cozinha que, de passagem,
aquecia o dormitório. Aqui deitamos e descansamos vários dias, acalmando-nos
com seu tabaco suave e sem gosto, que fumávamos em pequenas tigelas com
tubos de um metro de comprimento. Também havia uma bebida quente, amarga
e leitosa, que só subia à cabeça quando tomada em doses enormes. Depois de me
empanturrar com, juro, litros dela eu ficava bêbado a ponto de cantar, que é o
que fazem os marujos no mundo inteiro. Encorajados pelo meu sucesso, os
outros continuavam a beber e logo estávamos todos aos berros, pouco ligando
para a nova rajada de neve a zumbir lá fora e pouco nos preocupando por
estarmos perdidos numa terra fora dos mapas e esquecida por Deus. O velho
Johannes Maartens ria e trombeteava e dava palmadas na coxa como todos nós.
Hendrik Hamel, frio e formal holandês moreno com pequenos olhos negros, fazia
tantas estripulias quanto o resto do grupo e desovava prata como qualquer
marinheiro bêbado para comprar mais da beberagem leitosa. Nosso
comportamento era um escândalo; mas as mulheres traziam a bebida enquanto
toda a aldeia se espremia na casa para contemplar nossas extravagâncias.
O homem branco dominou o mundo, acredito, por causa de sua estúpida
despreocupação. Essa tem sido a maneira como ele age, embora, é claro, ele
seja guiado pela sua inquietação e sua sede de pilhagem. E assim foi que o
Capitão Johannes Maartens, Hendrik Hamel e os doze marujos fazíamos
algazarra e berrávamos na aldeia dos pescadores enquanto as rajadas do inverno
assobiavam através do Mar Amarelo.
Do pouco que tínhamos visto da terra e do povo, não estávamos impressionados
por Cho-Sen. Se esses pescadores miseráveis eram uma boa amostra dos nativos,
podíamos entender por que sua terra não era visitada por navegadores. Mas
veríamos que não era assim. A aldeia ficava numa ilha interior e seu chefe deve
ter enviado uma mensagem para o continente; pois uma manhã, três grandes
juncos de dois mastros com velas triangulares de cetim-de-arroz ancoraram ao
largo.
Quando as sampanas chegaram à terra, o Capitão Johannes Maartens interessou-
se todo, pois aqui havia sedas novamente. Um coreano robusto, vestido em sedas
pálidas de várias cores, rodeava-se por meia dúzia de fâmulos obsequiosos
também envoltos em seda. Kwan Yung-jin, como vim a saber seu nome, era um
yang-ban, ou nobre; era também o que se poderia chamar magistrado ou
governador do distrito ou província. Isso significa que seu cargo era de nomeação
e que ele extorquia dízimos ou arrendava terras.
Durante quarenta anos fui um mendigo de Cho-Sen. Dos quatorze de nós que
naufragamos, apenas eu sobrevivi. Lady Om era da mesma fibra indomável e
envelhecemos juntos. Ela se transformou numa velhinha enrugada e desdentada;
mas sempre foi a mulher maravilhosa e levou meu coração no seu até o fim.
Para um velho, três vintenas mais dez, eu ainda conservava uma força enorme.
Meu rosto se encovou, meus cabelos loiros embranqueceram, meus ombros
largos se curvaram; mas muito da força dos meus dias de marujo se conservou
nos músculos que me sobraram.
Por isso fui capaz de fazer aquilo que irei agora relatar. Foi numa manhã de
primavera nos rochedos de Pusan, perto da estrada, que Lady Om e eu nos
sentamos para nos aquecer ao sol. Vestíamos nossos trapos de mendigos, nosso
orgulho perdido na poeira e, ainda assim, eu gargalhava com algum dito
espirituoso murmurado por Lady Om, quando uma sombra caiu sobre nós. Era a
grande liteira de Chong Mong-ju, carregada por oito cules, com batedores
adiante e atrás e flâmulas esvoaçando em ambos os lados.
Dois imperadores, uma guerra civil, a fome e uma dúzia de revoluções
palacianas tinham vindo e passado e Chong Mong-ju permanecia, ainda o grande
poder em Kei-jo. Ele devia estar por volta dos 80 anos naquela manhã de
primavera nos rochedos de Pusan quando fez sinal com a mão trêmula para que
a liteira fosse abaixada para que ele pudesse mirar os dois que ele tinha punido
por tão longo tempo.
— Agora, ó meu rei — murmurou Lady Om baixinho para mim, e então voltou-
se para choramingar uma esmola a Chong Mong-ju, que ela fingiu não
reconhecer.
E eu entendi qual foi seu pensamento. Pois não o compartilhamos por 40 anos? E
o momento de sua consumação chegava por fim. Por isso também fingi não
reconhecer meu inimigo e, aparentando uma senilidade imbecil, também
rastejei no pó em direção à liteira, choramingando por piedade e caridade.
Os fâmulos teriam me feito retroceder mas, com uma voz que a idade tomava
trêmula, Chong Mong-ju os deteve. Ele levantou-se sobre um cotovelo trêmulo e
com mão trêmula afastou os cortinados de seda. Seu velho rosto encovado
transfigurou-se de prazer quando seu olhar caiu sobre nossa miséria.
— Ô meu rei — suplicou-me Lady Om em sua cantilena de mendiga.
E eu sabia que todo o seu amor, tão posto à prova, e toda sua fé em mim estavam
naquela cantilena.
E a fúria sanguinária cresceu dentro de mim, rasgando e dilacerando na ânsia de
ser libertada.
Não é de admirar que eu tremesse com o esforço para me controlar. Felizmente
eles tomaram meus tremores pela fraqueza da idade. Levantei minha tigela de
mendigo e choraminguei com voz ainda mais lastimosa e enchi meus olhos de
lágrimas para esconder o fogo azul que eu sabia haver neles e calculei a distância
e o impulso para o salto.
E então fui arrastado pelas labaredas de sangue. Houve um estrépito de varais e
cortinados e os gritos e berros dos fâmulos quando minhas mãos se fecharam
sobre a garganta de Chong Mong-ju. A liteira virou e nossos corpos se
emaranharam, mas meus dedos não soltaram a presa.
Na confusão de almofadas e cortinados, os golpes dos fâmulos mal me
atingiram. Mas logo os cavaleiros acorreram e os cabos pesados de seus chicotes
começaram a cair sobre minha cabeça, enquanto uma multidão de mãos me
laceravam e me cortavam. Fiquei atordoado mas não perdi a consciência, e senti
a bênção de ter meus velhos dedos enterrados naquele velho pescoço magro e
enrugado que eu buscava havia tanto tempo. Os golpes continuaram a chover
sobre minha cabeça e pensei, confuso, que eu era um buldogue com os caninos
firmemente enterrados na presa. Chong Mong-ju não me escaparia. Eu sabia que
ele estava morto antes que a escuridão descesse sobre mim nos rochedos de
Pusan à beira do Mar Amarelo.
CAPÍTULO 16
O Diretor Atherton, quando pensa em mim, deve sentir tudo menos orgulho.
Ensinei-lhe o que é espírito, humilhei-o com o meu próprio espírito que se elevou
invulnerável, triunfante, sobre todas as suas torturas. Estou aqui em Folsom, no
Corredor da Morte, esperando minha execução; o Diretor Atherton ainda
mantém seu cargo político e reina sobre San Quentin e todos os desesperados
dentro de seus muros; mas mesmo assim, no fundo do seu coração ele sabe que
sou maior que ele. Em vão tentou o Diretor Atherton quebrar meu espírito. E
houve momentos, além de qualquer sombra de dúvida, em que ele teria ficado
satisfeito se eu tivesse morrido na camisa-de-força. Assim a longa inquisição
continuou. Como ele havia me dito, e como me dizia repetidamente, era dinamite
ou ponto final.
O Capitão Jamie era um veterano dos horrores do calabouço e, ainda assim,
chegou uma hora em que ele se vergou sob a tensão que eu impunha sobre ele e
os outros dos meus torturadores. Tão desesperado ficou que ousou discutir com o
Diretor e lavou suas mãos sobre o caso. Daquele dia até o fim da minha tortura,
ele não voltou a pôr os pés na solitária.
Sim, e chegou a hora em que o Diretor Atherton começou a ter medo, embora
ainda insistisse em tentar arrancar de mim o esconderijo da dinamite inexistente.
Ele acabou ficando bastante abalado com Jake Oppenheimer. Oppenheimer era
destemido e descarado. Passou intacto por todos os infernos da prisão e, pela
força de uma vontade superior, podia desafiá-los abertamente. Morrell
transmitiu-me um relato completo do que aconteceu. Eu estava inconsciente na
camisa-de-força naquele dia.
— Diretor — foi o que disse Oppenheimer —, o senhor está abocanhando mais
do que pode engolir. Não é o caso de matar o Standing. É o caso de matar nós
três, porque se o senhor liquida o Standing, pode ficar certo de que mais cedo ou
mais tarde o Morrell e eu damos um jeito de espalhar a notícia e isso que o
senhor fez todo mundo vai ficar sabendo de uma ponta da Califórnia até a outra.
O senhor tem uma escolha. Ou o senhor larga o Standing ou mata nós três. O
Standing irritou o senhor. Eu também. O Morrell também. O senhor é um maldito
covarde e não tem peito nem tripa pra fazer o trabalho sujo de açougueiro que
queria fazer.
Oppenheimer pegou cem horas na camisa-de-força por causa disso e, quando o
desamarraram, cuspiu na cara do Diretor e recebeu uma segunda sessão de cem
horas. Quando o desamarraram dessa segunda vez, o Diretor teve o cuidado de
não estar presente na solitária. Não há dúvida de que ele ficou abalado com as
palavras de Oppenheimer.
Mas o arquiinimigo era o Doutor Jackson. Para ele, eu era uma novidade e ele
estava ansioso por ver quanto mais eu poderia agüentar antes de quebrar.
— Ele pode agüentar vinte dias seguidos — gabou-se ele ao Diretor, na minha
presença.
— O senhor é conservador — atalhei. — Posso agüentar quarenta dias. Droga,
posso agüentar até cem quando vêm de um tipo como o senhor.
E lembrando minha paciência de marujo que esperei quarenta anos até cravar
minhas mãos na goela de Chong Mong-ju, acrescentei:
— Seus cães de cadeia, vocês não sabem o que é um homem. Vocês pensam
que um homem é feito à imagem da própria covardia de vocês. Pois olhem, eu
sou um homem. Vocês são poltrões. Eu sou seu mestre. Vocês não conseguem
me fazer confessar coisa nenhuma. E acham isso admirável, porque vocês
sabem como iria ser fácil fazer vocês dedurarem a própria mãe.
Ah, insultei-os, chamei-os de filhos de sapos, lacaios do inferno, escória das
sarjetas. Pois eu estava acima deles, além deles. Eles eram escravos. Eu era
espírito livre. Minha carne, e só ela, estava aprisionada ali na solitária. Eu não
estava aprisionado. Eu tinha dominado a carne; e a vastidão do tempo era minha
para nela peregrinar enquanto minha pobre carne, deixando de sofrer, repousava
na pequena morte na camisa-de-força.
Transmiti grande parte das minhas aventuras aos meus dois companheiros.
Morrell acreditou, porque já tinha, ele próprio, sentido o gosto da pequena morte.
Mas Oppenheimer, embora encantado com as minhas histórias, continuou cético
até o fim. Ele lamentava, ingênuo e às vezes até patético, que eu tivesse dedicado
minha vida à agricultura em vez de escrever romances.
— Mas, homem — tentei fazê-lo raciocinar —, o que é que eu sei, por mim
mesmo, dessa Cho-Sen? Sou capaz de identificar Cho-Sen com esse país que a
gente chama de Coréia, e é só. Tudo que eu vi na vida só vai até aí. Por exemplo,
com a experiência desta minha vida atual como que eu poderia saber alguma
coisa sobre kimchi? E no entanto eu sei o que é kimchi. E um tipo de chucrute.
Quando estraga, fede como o diabo. Te digo, quando eu era Adam Strang, comi
kimchi milhares de vezes. Conheço o kimchi bom, o kimchi ruim, o kimchi
estragado. Sei que o melhor kimchi é feito pelas mulheres de Wosan. Agora,
como é que eu sei disso? Não está no conteúdo da minha mente, da mente de
Darrell Standing. Está no conteúdo da mente de Adam Strang e ele, através de
vários nascimentos e mortes, legou essas experiências para mim, Darrell
Standing, junto com todas as outras experiências de todas as outras vidas que
vieram depois. Você não vê, Jake? É assim que os homens se formam, é assim
que eles crescem, é assim que o espírito se desenvolve.
— Bah! Deixa disso — ele rebateu, com aquelas rápidas pancadas autoritárias
que eu conhecia tão bem. — Escuta o titio agora. Eu sou Jake Oppenheimer. Eu
sempre fui Jake Oppenheimer. Nenhum outro cara entrou pra fazer eu ser eu. O
que eu sei, eu sei como Jake Oppenheimer. Agora, o que é que eu sei? Te digo
uma coisa. Eu sei o que é kimchi. Kimchi é um tipo de chucrute feito num país
que costumava se chamar Cho-Sen. As mulheres de Wosan fazem o melhor
kimchi e quando o kimchi estraga, ele fede como o diabo... Você fica de fora, Ed.
Espere até eu acabar com o professor.
— Agora, professor, como é que eu sei toda essa história de kimchi. Não está no
conteúdo da minha mente.
— Está sim — exultei. — Eu botei aí.
— Perfeito, burro velho. E quem botou na tua cabeça?
— Adam Strang.
— Mas nem por fotografia! Adam Strang é um sonho maluco. Você leu isso em
algum lugar.
— Nunca — assegurei. — O pouco que eu li da Coréia foram as manchetes dos
correspondentes de guerra na época da Guerra Russo-Japonesa.
— Você se lembra de tudo que lê?—perguntou Oppenheimer.
— Não.
— Tem coisa que você esquece?
— Tem, mas...
— Isso é tudo, muito obrigado — interrompeu ele, à moda de um advogado
concluindo abruptamente o interrogatório depois de ter arrancado a confissão
fatal da testemunha.
Foi impossível convencer Oppenheimer da minha sinceridade. Ele insistia que eu
inventava conforme ia narrando, embora aplaudisse aquilo que chamava de
“continua no próximo capítulo” e, nos momentos em que descansávamos da
camisa-de-força, ele vivia a me pedir e me estimular a contar mais alguns
capítulos.
— Agora, professor, corta esse papo de intelectual — ele interrompia minhas
discussões metafísicas com Ed Morrell — e conta mais um pouco sobre as ki-
sang e os marujos. Anda aí, conta pra gente o que aconteceu com Lady Om
quando aquele marido cabeça-dura dela esganou o bode velho e bateu as botas.
Tenho afirmado com freqüência que a forma perece. Deixe-me repetir: a forma
perece. A matéria não tem memória. Só o espírito relembra; como aqui, nas
celas da prisão, depois de séculos, o conhecimento de Lady Om e Chong Mong-
ju persistia em minha mente, foi transmitido por mim à mente de Jake
Oppenheimer e foi, por ele, retransmitido à minha mente na língua e na gíria do
Ocidente. E agora eu o transmiti à sua mente, meu leitor. Tente eliminá-lo de sua
mente. Você não pode. Enquanto você viver, aquilo que eu disse habitará sua
mente. Mente? Não há nada perene exceto a mente. A matéria flui, se cristaliza e
flui novamente e as formas nunca são repetidas. As formas se desintegram no
nada eterno do qual não há retomo. A forma é aparição e passa, como passaram
as formas físicas de Lady Om e Chong Mong-ju. Mas a memória delas
permanece, permanecerá sempre enquanto o espírito perdurar, e o espírito é
indestrutível.
— Uma coisa salta aos olhos — foi a crítica final de Oppenheimer à minha
aventura de Adam Strang. — Foi que você andou se metendo pelas espeluncas e
bocas de ópio de Chinatown mais do que devia um respeitável professor
universitário. Más companhias, você sabe. Acho que foi por isso que você veio
parar aqui.
Antes de voltar às minhas aventuras, sou obrigado a contar um incidente
admirável que ocorreu na solitária. Admirável em dois sentidos. Mostra o
assombroso poder mental daquele filho das sarjetas, Jake Oppenheimer; e é, em
si, prova convincente da veracidade das minhas experiências no coma da
camisa-de-força.
— Diga, professor — Oppenheimer bateu suas pancadinhas um dia. — Quando
você estava desfiando aquelas lorotas do Adam Strang, lembro que você disse
que jogou xadrez com aquele beberrão real do irmão do imperador. Agora,
aquele xadrez deles era igual ao nosso?
Fui obrigado a responder que não sabia, que não lembrava os detalhes depois que
voltava ao meu estado normal, e ele, é claro, riu bem-humorado diante do que
chamava minhas invenções. Mas eu me lembrava claramente de ter jogado
xadrez muitas vezes na minha aventura de Adam Strang. O problema era que,
quando eu voltava à consciência na solitária, os detalhes não-essenciais e
intrincados se apagavam da minha memória.
Lembre-se de que, por conveniência, organizei minhas intermitentes e repetitivas
experiências na camisa-de-força em narrativas coerentes e consecutivas. Eu
nunca sabia de antemão para onde minhas viagens no tempo iriam me levar. Por
exemplo, umas vinte vezes em tempos diferentes voltei a Jesse Fancher no
círculo de carroções nos Montes Meadows. Numa única sessão de dez dias na
camisa-de-força, recuei de vida em vida — pulando séries completas de vidas
que havia revivido em outras sessões — até os tempos pré-históricos e continuei a
recuar até os dias que antecederam os primórdios da civilização.
Resolvi que na próxima vez que voltasse às experiências de Adam Strang — onde
quer que pudessem ser — eu iria, logo que recuperasse a consciência, me
concentrar sobre quaisquer visões e lembranças que tivesse trazido comigo do
jogo de xadrez. Quis a sorte que eu precisasse suportar as zombarias de
Oppenheimer durante todo um mês até que isso acontecesse. E tão logo me vi
fora da camisa-de-força e com a circulação restaurada, comecei a bater com os
nós dos dedos a informação.
Além disso, ensinei a Oppenheimer o xadrez que Adam Strang jogou em Cho-
Sen há séculos. Era diferente do xadrez ocidental, embora não pudesse deixar de
ser fundamentalmente o mesmo, já que ambos remontam a uma origem
comum, provavelmente a Índia. Em vez das nossas 64 casas, eles têm 81. Temos
8 peões de cada lado, eles têm 9 e, embora suas limitações sejam semelhantes, o
princípio de seu movimento é diferente.
No jogo de Cho-Sen há 20 peças e peões contra as nossas 16 e elas são colocadas
em três filas em vez de duas. Os 9 peões ficam na fila dianteira; na fila do meio,
ficam duas peças que se parecem às nossas torres; e ao fundo, no meio, fica o
rei, flanqueado de cada lado por “moeda de ouro”, “moeda de prata”, “cavalo
voador” e “lança”, nessa ordem. Repare que no xadrez do Cho-Sen não existe a
dama. Outra variação ainda mais radical é que uma peça ou peão capturado não
é removido do tabuleiro. Ela se toma propriedade do captor e é, dali em diante,
jogada por ele.
Bem, ensinei esse jogo a Oppenheimer — uma façanha bem mais difícil do que
ensinar-lhe o nosso próprio jogo, como você pode imaginar quando considera a
captura, recaptura e movimentação contínua de peças e peões. A solitária não é
aquecida. Seria uma maldade livrar um convicto das agruras dos elementos. E
muitos dias tristes de frio cortante Oppenheimer e eu esquecemos, naquele
inverno e no inverno seguinte, absortos no xadrez de Cho-Sen.
Mas não houve meio de convencê-lo de que eu tinha realmente trazido esse jogo
a San Quentin através dos séculos. Ele insistia que eu tinha lido a respeito dele em
algum lugar e que, embora tivesse esquecido a leitura, a substância dela
permanecia no conteúdo da minha mente, pronta para ser trazida à tona em
qualquer sonho fantasioso. Assim, ele voltou contra mim os dogmas e o jargão da
psicologia.
— E o que impede que você tenha inventado esse jogo bem aqui na solitária? —
foi sua próxima hipótese. — O Ed não inventou a conversa com os nós dos dedos?
E a gente não está aqui, você e eu, aprimorando esse jogo? Te peguei, velhinho.
Você inventou o jogo. Puxa vida, homem, patenteia ele. Lembro quando eu era
mensageiro, um cara inventou uma coisa idiota chamada Porcos no Trevo e
ganhou uma fortuna com ela.
— Não tem como patentear — respondi. — Os asiáticos vem jogando esse
xadrez há milhares de anos, tenho certeza Por que você não me acredita quando
te digo que não fui eu que inventei?
— Então você leu em algum lugar ou viu os chinas jogando em alguma boca de
ópio que você andava sempre rondando — foi sua última palavra.
Mas a última palavra é minha. Há um assassino japonês aqui em Folsom — ou
havia, porque foi executado na semana passada. Discuti o assunto com ele; e o
xadrez que Adam Strang jogava e que ensinei a Oppenheimer é muito parecido
com o xadrez japonês. Eles têm mais semelhanças entre si do que qualquer um
deles com o xadrez ocidental.
CAPITULO 17
Você, meu leitor, lembrará que no começo desta narrativa, eu —garotinho numa
fazenda de Minnesota — olhei as fotografias da Terra Santa e reconheci lugares
e apontei mudanças naqueles lugares. E lembrará também que, ao descrever a
cura dos leprosos, afirmei ao missionário que eu era um homem grande,
Eumado com uma grande espada e montado num cavalo, a observar aquela
cena. Aquele incidente da infância foi apenas um trilhar nas nuvens de glória,
como diz Wordsworth. Não em completo esquecimento vim eu, o pequeno
Darrell Standing, a este mundo. Mas aquelas lembranças de outros tempos e
lugares que me afloraram à consciência infantil logo se desvaneceram e
apagaram. Na verdade, assim como acontece com todas as crianças, as sombras
aprisionadoras fecharam-se sobre mim e deixei de lembrar meu extraordinário
passado. Todo homem nascido de mulher tem um passado tão extraordinário
quanto o meu. Poucos homens nascidos de mulher foram afortunados o
suficiente para sofrer anos de solitária e o tormento da camisa-de-força. Essa foi
minha bênção. Foi-me permitido voltar a lembrar; e a lembrar, entre outras
coisas, a época em que, montado em meu cavalo, testemunhei a cura dos
leprosos.
Meu nome era Ragnar Lodbrog. Eu era, isso é verdade, um homem imenso.
Uma cabeça mais alto que os romanos da minha legião. Mas foi mais tarde, foi
depois da minha viagem de Alexandria a Jerusalém que vim a comandar uma
legião. Foi uma vida movimentada, aquela. Livros e mais livros e anos a escrever
não poderiam registrá-la toda. Devo, assim, resumi-la e não mais que sugerir
como ela começou.
Tudo é claro e nítido, exceto o começo. Não cheguei a conhecer minha mãe.
Disseram-me que nasci em meio à tempestade, num navio pontudo no Mar do
Norte, de uma mulher capturada, depois de um combate naval e do saque a uma
fortaleza litorânea. Nunca soube o nome de minha mãe. Ela morreu no auge da
tempestade. Era uma danesa, disse-me o velho Lingaard. Ele me contou muitas
coisas que eu era jovem demais para lembrar e, ainda assim, pouco tinha ele a
me contar. Um combate naval e um saque, batalha e pilhagem e chamas, uma
fuga para o alto-mar nos navios pontudos para escapar à destruição nos rochedos,
uma índole assassina e a luta contra os perigosos mares gelados — quem, nessa
situação, iria se importar ou notar uma mulher estrangeira em sua hora de dar à
luz e com os pés já no caminho da morte? Muitas morreram. Os homens
notavam as mulheres vivas, não as mortas.
Gravados a ferro na minha memória de criança estão os incidentes logo após
meu nascimento, como me foram contados pelo velho Lingaard. Lingaard, velho
demais para trabalhar nos remos, foi médico, coveiro e parteiro das cativas
amontoadas nos conveses abertos. Assim vim à luz na tempestade, com o sal dos
mares encapelados sobre mim.
Poucas horas de vida eu tinha quando Tostig Lodbrog bateu os olhos sobre mim.
Dele era este navio pontudo; dele, os sete outros navios pontudos que fizeram a
incursão, fugiram com a rapina e venceram a tempestade. Tostig Lodbrog
também era chamado Muspell, que significa “o homem de fogo” — pois estava
sempre incendiado pela fúria. Bravo ele era, cruel ele era, sem misericórdia
alguma no coração que batia dentro daquele seu peito largo. Antes que o suor da
batalha em Hasfarth secasse em seu corpo, ele, apoiado em seu machado,
comeu o coração de Ngrun. Ele, enlouquecido pela raiva, vendeu seu próprio
filho Garulf como escravo aos jutos. Lembro que ele, sob as vigas enfumaçadas
de Brunanbuhr, exigia o crânio de Guthlaf como caneca. A calva, o vinho
apimentado, ele não tomaria de outro copo que não o crânio de Guthlaf.
E a ele, no convés balouçante depois que a tempestade passou, o velho Lingaard
me trouxe. Eu tinha poucas horas de vida, estava nu, enrolado numa pele de lobo
curtida pelo sal. E, nascido prematuro, eu era muito pequeno.
— Olhem! Um anão! — berrou Tostig e, para me olhar, afastou dos lábios um
canecão de hidromel, bebido até a metade.
O frio era cortante, mas dizem que ele me arrancou da pele de lobo e,
segurando-me por um pé com o polegar e o indicador, balançou-me à fúria dos
ventos.
— Uma carpa! — gargalhou. — Um camarão! Uma pulga-do-mar! — e fez o
gesto de me esmagar entre seus dedos imensos, cada um dos quais, assegurou-
me Lingaard, era mais grosso que minha perna ou minha coxa. Mas outro
capricho lhe ocorreu.
— A cria tem sede. Que beba!
E me enfiou de cabeça no canecão de hidromel. E eu teria me afogado naquela
bebida de homens — eu, que não conhecera o leite da mãe naquelas poucas
horas de vida — se não fosse por Lingaard. E quando Lingaard me puxou para
fora da bebida, Tostig Lodbrog derrubou-o com raiva. Rolamos pelo convés e os
grandes cães caçadores de ursos, capturados na recente batalha contra os
daneses, pularam sobre nós.
— Olhem! Olhem! — rugia Tostig Lodbrog enquanto o velho, eu e a pele de lobo
éramos mordidos e caçados pelos cães.
Mas Lingaard conseguiu pôr-se de pé e me salvou, embora perdesse a pele de
lobo para os cães.
Tostig Lodbrog terminou o hidromel e me olhou, enquanto Lingaard já sabia que
não adiantava pedir clemência onde clemência não havia.
— Menor que o meu polegar — resmungou Tostig. — Por Odin, as danesas são
uma raça desprezível. Elas parem anões e não homens. Para que serve essa
coisa? Nunca vai virar um homem. Ouça, Lingaard, crie esse anão para ser meu
criado-de-copo em Brunanbuhr. E fique de olho nos cães para não comerem o
anão por engano, pensando que é carne que sobrou da mesa.
Não conheci colo de mulher. O velho Lingaard foi parteira e nutriz e, como
berço, tive os conveses balouçantes e o estrondo e o atropelo de homens na luta
ou na tempestade. Sabe Deus como sobrevivi ao desamparo da primeira
infância. Devo ter nascido de ferro num dia de ferro, pois sobrevivi e desmenti a
profecia de Tostig de que seria um anão. Ultrapassei todos os copos e canecões e
logo ele não mais podia me mergulhar em seu canecão de hidromel. Era sua
façanha favorita. Era seu senso de humor bárbaro, um gracejo que ele
considerava muito espirituoso.
Minhas primeiras lembranças são dos navios pontudos e dos guerreiros de Tostig
Lodbrog e do salão de festim em Brunanbuhr quando nossos barcos ancoravam
ao lado do fiorde congelado. Pois fizeram de mim um criado-de-copo e entre
minhas mais antigas lembranças estou a andar vacilante levando o crânio de
Guthlaf cheio de calva até a cabeceira da mesa onde Tostig fazia tremer com
seus urros as vigas do teto. Eles eram loucos, todos completamente loucos, mas
parecia o modo normal de vida para mim que não conhecia nada mais. Eram
homens de fúrias rápidas e batalhas rápidas. Seus pensamentos eram ferozes;
assim como eram ferozes seu comer e seu beber. E cresci como eles. De que
outro modo poderia eu crescer, quando servia a bebida ouvindo os urros dos
homens embriagados e os bardos cantando as façanhas de Hialli, do intrépido
Hogni, do ouro dos Nibelungos e a vingança de Gudrun contra o rei Atli, quando
ela lhe deu de comer os corações dos filhos enquanto a chacina corria o castelo,
rasgava as tapeçarias roubadas das praias do sul e cobria a mesa do festim com
cadáveres?
Ah, mas eu também tinha raiva — e bem aprendida em tal escola. Eu tinha
apenas oito anos quando mostrei os dentes numa bebedeira entre os homens de
Brunanbuhr e os jutos que vieram como amigos com o Jarl Agard, o nobre, em
seus três navios pontudos. Eu estava ao pé de Tostig Lodbrog, segurando o crânio
de Guthlaf que fumegava e fedia com a calva fervente. E eu esperava Tostig
terminar seus insultos contra os homens daneses. Mas ele continuava com seus
insultos e eu continuava esperando, até que ele se pôs, cheio de fúria, a insultar as
mulheres danesas. E então lembrei-me de minha mãe danesa e a fúria
sanguinária me subiu aos olhos e golpeei-o com o crânio de Guthlaf. Ele ficou
encharcado de calva e a calva fervente o cegou e queimou. E enquanto ele
girava os braços sem enxergar, lançando seus enormes punhos às cegas pelo ar,
esgueirei-me e apunhalei-o três vezes, na barriga, na coxa e nas nádegas, pois eu
não alcançava mais alto que isso naquele seu corpo imenso.
E a tempera de aço do Jarl Agard surgiu e seus jutos se uniram a ele gritando:
— Um filhote de urso! Por Odin, que lute o filhote de urso!
E ali, ante os urros dos homens sob o teto de Brunanbuhr, o enraivecido criado-
de-copo danês lutou contra o poderoso Lodbrog. E quando um golpe me fez voar,
atordoado e sem fôlego, por metade daquela enorme mesa, destroçando jarras e
canecões, Lodbrog ordenou aos berros:
— Fora com ele! Joguem-no aos cães!
Mas o Jarl não aceitou esse desfecho e, com uma palmada no ombro de
Lodbrog, pediu que eu lhe fosse dado como penhor de amizade.
E segui para o Sul, quando o gelo derreteu sobre o fiorde, nos navios do Jarl
Agard. Fui seu criado-de-copo e carregador de espada e, em lugar de outro
nome, fui chamado Ragnar Lodbrog. O país de Agard era vizinho aos frísios e
era uma terra triste e baixa de nevoeiro e pântanos. Fiquei com ele por três anos,
até sua morte, sempre às suas costas, seja caçando raposas nos pântanos ou
bebendo no grande salão onde Elgiva, sua jovem esposa, sentava-se muitas vezes
entre suas damas. Acompanhei Agard em sua incursão ao sul com seus navios,
ao longo do que seria hoje a costa da França, e lá aprendi que mais ao sul havia
estações mais quentes e climas e mulheres mais suaves.
Mas trouxemos Agard de volta, mortalmente ferido e numa lenta agonia. E
queimamos seu corpo numa grande pira, com Elgiva, em seu corselete de ouro,
cantando a seu lado. E muitos servos em argolas douradas ali queimaram com
Elgiva, e também as nove cativas e os oito escravos anglos, de nascimento nobre
e capturados em combate. E havia os falcões a serem queimados vivos e os dois
meninos falcoeiros com suas aves.
Mas eu, o criado-de-copo, Ragnar Lodbrog, não fui queimado. Eu tinha 11 anos,
era destemido e nunca tinha usado uma roupa de tecido sobre meu corpo, só
peles. E quando as chamas se elevaram e Elgiva cantava a canção da morte e as
cativas e os escravos gritavam, sem vontade de morrer, soltei minhas amarras,
pulei da pira e ganhei os pântanos com o colar de ouro da minha escravidão
ainda a balançar em volta do meu pescoço e com os cães lançados em meu
encalço para me destroçar.
Nos pântanos viviam homens selvagens, homens sem dono, escravos fugidos e
foras-da-lei, que eram caçados por esporte, como as raposas.
Durante três anos não conheci teto nem fogo, cresci duro como o gelo e teria
roubado uma mulher dos jutos mas, por azar, os frísios, numa caçada de dois
dias, me capturaram. Roubaram-me meu colar de ouro e me trocaram por duas
raposas com Edwy, o saxão, que pôs em mim um colar de ferro e mais tarde fez
de mim e de cinco outros escravos um presente para Athel, o anglo do leste. Fui
escravo e lutador até que, perdido numa infeliz incursão a leste de nossas
fronteiras, fui vendido aos visigodos e guardei porcos até escapar para o sul pelas
grandes florestas e fui recebido como homem livre pelos teutos, que eram
numerosos mas viviam em pequenas tribos e migravam para o sul ante o avanço
dos visigodos.
E subindo do sul para as grandes florestas vinham os romanos, bravos lutadores,
que nos empurraram de volta sobre os visigodos. Os povos se esmagavam por
falta de espaço. E ensinamos aos romanos o que era luta, embora na verdade
também muito tenhamos aprendido com eles.
Mas eu lembrava sempre o sol das terras do sul que vislumbrara nos navios de
Agard e foi meu destino, preso nessa migração dos teutos para o sul, ser
capturado pelos romanos e levado de volta ao mar que eu não via desde que me
perdi dos anglos do leste. Tornei-me um remador, um escravo nas galés, e foi
nas galés que finalmente cheguei a Roma.
É muito longa a história de como me tomei um homem livre, um cidadão e um
soldado e como, aos 30 anos, viajei para Alexandria e, de Alexandria, para
Jerusalém. Mas o que contei desde o dia em que fui batizado no canecão de
hidromel de Tostig Lodbrog fui obrigado a contar para que você pudesse
entender que tipo de homem cavalgou pela Porta de Jaffa e atraiu sobre si todos
os olhares.
E forçoso era que me olhassem. São raças pequenas, de ossos mais leves e
músculos menos desenvolvidos, esses romanos e judeus, e um gigante loiro como
eu eles nunca tinham visto antes. Ao longo das ruas estreitas, eles abriam
caminho para mim mas paravam para olhar com os olhos esbugalhados esse
homem dourado do norte, ou sabe Deus de onde, pelo que eles conhecem do
assunto.
Praticamente todas as tropas de Pilatos eram auxiliares, exceto um punhado de
romanos no palácio e os vinte romanos que cavalgavam comigo. Descobri que as
tropas auxiliares são, com freqüência, bons soldados; mas nunca são tão
confiáveis quanto os romanos. Na verdade, o romano é, a qualquer momento,
um bom e confiável soldado; enquanto nós, homens do Norte, ora lutamos cheios
de entusiasmo, ora afundamos em crises de melancolia.
Havia uma mulher da corte de Herodes Ântipas que era amiga da mulher de
Pilatos e que conheci no palácio de Pilatos na noite da minha chegada. Vou
chamá-la Miriam, pois Miriam foi o nome pelo qual eu a amei. Se fosse apenas
difícil descrever o encanto feminino, eu descreveria Miriam. Mas como
descrever a emoção com palavras? O encanto da mulher não tem palavras. E
diferente da percepção que culmina na razão, pois surge na sensação e culmina
na emoção; a qual, admita-se, nada mais é que supra-sensação.
Em geral, qualquer mulher tem encanto fundamental para qualquer homem.
Quando esse encanto se individualiza, nós o chamamos amor. Miriam tinha esse
encanto particular para mim. Na verdade, eu era co-autor de seu encanto.
Metade desse encanto era a própria vida do homem em mim que saltava a seu
encontro de braços abertos e a tomava desejável para mim, mais todo o meu
desejo por ela.
Miriam era uma mulher magnífica. Uso essa expressão deliberadamente. Corpo
esbelto, autoritária, acima da média da mulher judia em estatura e porte. Uma
aristocrata pela casta social; uma aristocrata por natureza. Suas maneiras eram
grandiosas, generosas. Ela tinha cérebro, tinha sagacidade e, acima de tudo, tinha
feminilidade. Como você verá, foi sua feminilidade que acabou traindo a ela e a
mim. Morena, de pele azeitonada, rosto oval, seu cabelo era azulado de tão negro
e seus olhos eram escuros poços. Nunca se encontraram tipos mais pronunciados
de loiro e moreno em homem e mulher do que em nós dois.
E encontramo-nos instantaneamente. Não houve discussão interior, não houve
espera nem indecisão para termos certeza Ela foi minha no momento em que a
vi. E, do mesmo modo, ela soube que eu, acima de todos os homens, lhe
pertencia. Caminhei a passos largos para ela. Ela se soergueu do diva como que
atraída para mim. E nos fitamos no fundo dos nossos olhos, olhos azuis e olhos
negros, até que a esposa de Pilatos, uma mulher magra, tensa e agitada, riu com
nervosismo. E enquanto eu me inclinava para a esposa e a cumprimentava,
pensei ver Pilatos lançar a Miriam um olhar significativo, como a dizer: “Ele não
é o que prometi?” Pois ele soube de minha chegada por Sulpicius Quirinius, o
legado da Síria. Além disso, Pilatos e eu nos conhecíamos desde antes que ele
viesse a ser o procurador romano sobre o vulcão semítico de Jerusalém.
Muito conversamos aquela noite, especialmente Pilatos, que falou em detalhes
sobre a situação local; ele parecia solitário e desejoso de compartilhar suas
ansiedades com alguém e mesmo pedir conselho. Pilatos era do tipo sólido de
romano, com imaginação suficiente para fazer valer com inteligência a política
férrea de Roma, e não era um homem facilmente excitável sob tensão.
Mas naquela noite era evidente que ele estava preocupado. Os judeus o
enervavam. Eram demasiado vulcânicos, excitáveis, explosivos. E, além disso,
eram ardilosos. Os romanos têm uma maneira direta e objetiva de resolver as
coisas. Os judeus nunca se aproximam de nada diretamente, exceto quando
empurrados para trás. Deixados a si mesmos, sempre se aproximam por vias
indiretas. A irritação de Pilatos se devia, como ele explicou, ao fato de que os
judeus viviam a conspirar para fazer dele — e, através dele, de Roma — um
instrumento a serviço de suas dissensões religiosas. Como eu bem sabia, Roma
não interferia com as crenças religiosas dos povos por ela conquistados; mas os
judeus viviam a complicar as coisas e a dar coloração política a eventos
totalmente apolíticos.
Pilatos discorreu com eloqüência sobre as diversas seitas e o fanatismo dos
levantes e agitações que ocorriam continuamente.
— Lodbrog — disse ele —, com eles nunca se sabe se uma pequena nuvem de
verão não irá se transformar numa tempestade a urrar e assobiar em nossos
ouvidos. Estou aqui para manter a ordem e a tranqüilidade. Apesar de mim, eles
fazem do lugar um ninho de vespas. Eu bem preferia governar os citas ou os
selvagens bretões a esse povo que nunca está em paz a respeito de Deus. Ainda
agora há um homem ao norte, um pescador que virou pregador e fazedor de
milagres, que logo pode ter todo o país a lhe dar ouvidos e Roma a me convocar
para dar explicações.
Essa foi a primeira vez que ouvi falar no homem chamado Jesus, e pouco prestei
atenção nessa época. Só mais tarde me lembrei dele, quando a pequena nuvem
de verão já se tornara uma tempestade a urrar e assobiar em nossos ouvidos.
— Recebi relatórios sobre ele — continuou Pilatos. — Ele não é político. Não há
dúvida alguma disso. Mas pode se confiar em Caifás, e em Anás por trás de
Caifás, para fazer desse pescador um espinho político com o qual cutucar Roma
e me arruinar.
— Esse Caifás, ouvi dizer que ele é o sumo-sacerdote. Quem é então esse Anás?
— perguntei.
— O verdadeiro sumo-sacerdote, uma astuta raposa — explicou Pilatos. —
Caifás foi nomeado por Gratus, mas Caifás é apenas a sombra e a boca de Anás.
— Eles nunca te perdoaram aquele pequeno incidente dos escudos votivos —
provocou Miriam.
Com isso, como faz um homem quando sua ferida é tocada, Pilatos pôs-se a falar
sobre o incidente, que foi um incidente e nada mais no começo, mas que quase o
destruiu. Em toda inocência, ele mandara afixar diante de seu palácio dois
escudos com inscrições votivas. Antes que a tempestade que explodiu sobre sua
cabeça amainasse, os judeus enviaram suas queixas a Tibério, que lhes deu razão
e repreendeu Pilatos.
Fiquei feliz, um pouco mais tarde, quando pude conversar com Miriam. A
mulher de Pilatos achara uma oportunidade de falar-me sobre ela. Miriam
pertencia a uma antiga raça de reis. Sua irmã era mulher de Filipe, tetrarca da
Ituréia e Betânia. Esse Filipe era irmão de Ântipas, tetrarca da Galiléia e Peréia,
e ambos eram filhos de Herodes, chamado “o Grande” pelos judeus. Miriam,
conforme entendi, era recebida nas cortes dos dois tetrarcas, sendo ela própria do
sangue. Quando menina fora prometida a Arquelaus, então monarca de
Jerusalém, mas como ela possuía imensa fortuna própria aquele casamento não
foi obrigatório. Além disso, ela tinha vontade própria e era, sem dúvida, difícil de
agradar num assunto tão importante como maridos.
A coisa devia estar no próprio ar que respirávamos, pois, num instante, Miriam e
eu estávamos a falar de religião. Na verdade, os judeus daquela época
devotavam-se à religião com tanta avidez quanto nós às lutas e à mesa. Durante
toda minha estada naquele país, nunca houve um momento em que minha
cabeça não fosse atormentada pelas infindáveis discussões sobre vida e morte, lei
e Deus. Pilatos não acreditava em deuses nem em demônios nem em coisa
alguma. A morte, para ele, era a escuridão do sono ininterrupto; e mesmo assim,
durante seus anos em Jerusalém ele foi sempre atormentado pela inescapável
exaltação das coisas da religião. Ora, tive um cavalariço em minha viagem a
Iduméia, uma criatura miserável que não conseguia aprender a montar, mas que
falava com toda erudição e sem parar para respirar, desde o cair da noite até o
nascer do sol, sobre as mais ínfimas diferenças entre os ensinamentos de cada
rabi, de Seméias a Gamaliel. Mas voltando a Miriam.
— Acreditas ser imortal — ela logo estava me desafiando. — Então por que tens
medo de falar a respeito?
— Por que sobrecarregar minha mente com pensamentos sobre certezas? —
revidei.
— Mas, tens certeza? — insistiu ela. — Conta-me a respeito. Como é ela, tua
imortalidade?
E depois que lhe contei sobre as trevas do Nuflheim e o fogo do Muspelsheim,
sobre o nascimento do gigante Ymir nos flocos de neve, a vaca Audumla, o lobo
Fenrir, o descarado Loki e os Gigantes de Gelo; depois que lhe falei sobre tudo
isso e sobre Tor e Odin e o nosso Valhalla, ela bateu palmas e exclamou, com os
olhos a brilhar:
— Ah, bárbaro! Criança grande! Gigante dourado do gelo! Crês em velhas
lendas e na satisfação do estômago! Mas teu espírito, esse que não morre, para
onde ele irá quando teu corpo morrer?
— Como eu disse, para o Valhalla — respondi. — E meu corpo lá estará
também.
— Comendo? Bebendo? Lutando?
— E amando — acrescentei. — Precisamos ter mulheres no paraíso... senão,
para que serve o paraíso?
— Não gosto do teu paraíso — disse ela. — É um lugar louco, um lugar bestial,
um lugar de gelo, de tempestade e de fúria.
— E o teu paraíso? — perguntei.
— Ah, é sempre um verão sem fim, sempre a estação em que os frutos e flores
amadurecem e as coisas crescem.
Sacudi a cabeça e murmurei:
— Não gosto do teu paraíso. É um lugar triste, um lugar suave demais, um lugar
para poltrões e eunucos, para sombras chorosas de homens gorduchos.
Minhas observações devem tê-la excitado, pois seus olhos continuaram a reluzir e
percebi que ela estava a me provocar.
— O meu paraíso—ela disse — é a morada dos abençoados.
— O Valhalla é a morada dos abençoados — afirmei. — E quem liga para flores
quando as flores estão sempre ali? Na minha terra, quando o rigor do inverno se
desfaz e o sol dissipa a longa noite, os primeiros botões que desabrocham nas
bordas do gelo a se derreter são coisas de alegria e os olhamos e olhamos. E o
fogo! — exclamei. — O grande e glorioso fogo! Beleza de paraíso esse teu, onde
um homem não pode acender uma grande fogueira sob um teto sólido, com o
vento e a neve a zumbir lá fora.
— Gente simples, a tua — ela voltou a me provocar. — Vocês fazem um teto e
uma fogueira num banco de neve e chamam a isso paraíso. No meu paraíso não
precisamos fugir do vento e da neve.
— Não — objetei. — Nós fazemos o teto e a fogueira para sair deles para o gelo
e a neve, e para voltar a eles do gelo e da neve. A vida do homem foi feita para
batalhar o vento e a tempestade. Seu próprio fogo e seu próprio teto ele constrói
com sua luta. Eu sei. Uma vez, durante três anos, eu não conheci nem teto nem
fogo. Eu tinha 16 anos e já era um homem quando usei pela primeira vez roupas
de tecido sobre o meu corpo. Nasci na tempestade, depois de uma batalha, e
meus cueiros foram uma pele de lobo. Olhe para mim, é esse o tipo de homem
que vive no Valhalla.
E ela olhou, encantada e sedutora, e exclamou:
— Ah, homem gigantesco e dourado! — e então acrescentou, pensativa: —
Quase me entristece que não possa haver homens assim no meu paraíso.
— O mundo é bom — consolei-a. — O plano do mundo é bom e amplo. Há lugar
para muitos paraísos. Parece que a cada um é dado o paraíso que seu coração
deseja. Uma boa terra, na verdade, aquela para lá do túmulo. Não duvido que
vou deixar nossos festins e saquear as costas ensolaradas e floridas do teu paraíso,
e roubar-te de lá. Como minha mãe foi roubada.
Calei-me e olhei para ela e ela olhou para mim. E como ela ousou olhar! Meu
sangue correu em fogo. Por Odin, eis uma mulher!
O que poderia ter acontecido eu não sei, pois Pilatos, que encerrara a conversa
com Ambivius e por algum tempo estivera a sorrir, quebrou o silêncio.
— Um rabi, um rabi das terras germânicas! — ele riu. — Um novo pregador e
uma nova doutrina chegam a Jerusalém. Agora haverá mais dissensões, mais
distúrbios, e mais profetas serão apedrejados. Salvem-nos os deuses, é uma casa
de loucos. Lodbrog, não esperava isso de ti. Pois aí estás a gritar e esbravejar
sobre o que te acontecerá quando morreres, de modo tão selvagem quanto
qualquer louco do deserto. Uma vida de cada vez, Lodbrog. Evita-nos problemas.
Evita-nos problemas.
— Continue, Miriam, continue — exclamou sua esposa.
A mulher de Pilatos ficara em transe durante a conversa, com as mãos
fortemente entrelaçadas, e me ocorreu o pensamento de que ela já fora
corrompida pela loucura religiosa de Jerusalém. De todo modo, como vim a
saber nos dias que se seguiram, ela tinha uma profunda inclinação para tais
assuntos. Era uma mulher magra, como que consumida pela febre. Sua pele se
esticava sobre os ossos. Parecia que se poderia olhar através de suas mãos se ela
as levantasse contra a luz. Era uma boa mulher, mas muito nervosa e, às vezes,
dada a vôos de fantasia sobre sombras e sinais e presságios. E ela também tinha
visões e ouvia vozes. Quanto a mim, eu não tinha paciência com tais fraquezas.
Mesmo assim, ela era uma boa mulher, sem maldade no coração.
Eu estava em missão para Tibério e tive o azar de ver pouco de Miriam. Quando
voltei da corte de Antipas, ela fora para a corte de Filipe na Betânia, onde estava
sua irmã. Uma vez mais eu estava de volta a Jerusalém e, embora meus
negócios não exigissem que eu me encontrasse com Filipe — que, apesar de
fraco, era fiel à vontade de Roma — viajei para Betânia na vã esperança de
encontrar Miriam.
E houve a viagem à Idimiéia. Também viajei para a Síria em obediência às
ordens de Sulpicius Quirinius que, como legado imperial, estava curioso para
ouvir meu relatório de primeira-mão sobre os assuntos de Jerusalém. Assim,
viajando bastante e por vários lugares, tive oportunidade de observar a estranheza
desses judeus que se interessavam tão loucamente por Deus. Essa era sua
peculiaridade. Não lhes bastava deixar tais assuntos para seus sacerdotes; eles
próprios se transformavam em sacerdotes e se punham a pregar sempre que
encontravam um ouvinte. E ouvintes eles encontravam em abundância.
Eles abandonavam suas ocupações para vaguear pelo país como mendigos,
discutindo e se altercando com os rabinos e talmudistas nas sinagogas e nos
pórticos dos Templos. Foi na Galiléia, distrito de pouca importância, cujos
habitantes eram tidos como néscios, que cruzei com a pista daquele homem
Jesus. Parece que ele fora um carpinteiro e depois um pescador, e que seus
companheiros pescadores deixaram de puxar suas redes e o seguiram em sua
vida de andanças. Alguns poucos o encaravam como um profeta, mas a maioria
achava que era um louco. Aquele meu mísero cavalariço, ele próprio clamando
possuir um insuperável conhecimento talmúdico, zombou de Jesus, chamando-o
rei dos mendigos, chamando sua doutrina ebionismo; o ebionita, como ele me
explicou, afirmava que só os pobres podem conquistar o paraíso, enquanto os
ricos e poderosos hão de queimar para sempre em algum lago de fogo.
Percebi que era costume daquele país que todo homem chamasse todos os outros
homens de loucos. Na verdade, na minha opinião, eles eram todos loucos. Havia
uma epidemia de loucos. Espantavam demônios com amuletos mágicos,
curavam doenças com a imposição das mãos, incólumes bebiam poções
venenosas e incólumes brincavam com cobras venenosas — ou assim
afirmavam, pelo menos. Retiravam-se para passar fome nos desertos. Voltavam
berrando uma nova doutrina, reunindo multidões ao seu redor, formando novas
seitas que dividiam a doutrina e formavam ainda mais seitas.
— Por Odin — afirmei a Pilatos. — um pouco do nosso gelo do norte iria esfriar
suas cabeças. Este clima é ameno demais. Em vez de construir tetos e caçar
carne, eles estão sempre a construir doutrinas.
— E a alterar a natureza de Deus — Pilatos concordou com amargura. —
Maldita seja a doutrina.
— O mesmo digo eu — concordei. — Se eu sair com a cabeça inteira desta terra
de loucos, corto ao meio qualquer homem que ousar me dizer o que pode me
acontecer depois da morte.
Nunca houve intrigantes como eles. Tudo sob o sol era sagrado ou herético para
eles. Eles, que eram tão inteligentes na discussão dos mais ínfimos detalhes da
doutrina, pareciam incapazes de apreender a idéia romana de Estado. Todas as
coisas políticas eram religiosas; todas as coisas religiosas eram políticas. Assim,
as mãos do procurador estavam cheias. As águias romanas, as estátuas romanas,
até mesmo os escudos votivos de Pilatos, eram insultos deliberados à sua religião.
A tomada do recenseamento pelos romanos foi uma abominação. Mas tinha de
ser feita, pois era a base da taxação. E lá estavam eles de novo. Taxação pelo
Estado era um crime contra sua Lei e seu Deus. Ah, aquela Lei! Não era a lei
romana. Era a Lei deles, aquilo que chamavam a Lei de Deus. Havia os zelotes,
que matavam qualquer um que quebrasse essa Lei. E um procurador punir um
zelote apanhado em flagrante significaria começar um distúrbio ou uma
insurreição.
Tudo, com esse estranho povo, era feito em nome de Deus. Havia aqueles que
nós romanos chamávamos de thaumaturgi. Eles faziam milagres para provar a
doutrina. Sempre me pareceu néscio provar as tábuas de multiplicação
transformando um bastão numa serpente, ou mesmo em duas serpentes. Mas
eram essas as coisas que os thaumaturgi faziam e sempre excitavam a populaça.
Céus, quantas seitas e mais seitas! Fariseus, essênios, saduceus — uma legião
deles! Mal surgia um novo desvio, ele já se tomava político. Coponius, quarto
procurador antes de Pilatos, teve um trabalho considerável para esmagar a
sedição que começou como uma dissensão religiosa em Gamala e se espalhou
pelo país todo.
Em Jerusalém, aquela última vez que entrei a cavalo, foi fácil notar a crescente
excitação dos judeus. Eles circulavam em grupos, conversando e gritando.
Alguns proclamavam o fim do mundo. Outros se contentavam com a iminente
destruição do Templo. E havia os militantes revolucionários que anunciavam o
fim do domínio romano e o início do novo reino judaico.
Pilatos, notei, também mostrava muita ansiedade. Estava patente que eles o
faziam passar um momento difícil. Mas afirmo que ele, como você verá,
correspondia à sutileza dos judeus com igual sutileza; e pelo que dele vi, não
duvido que ele teria confundido muitos dos doutores nas sinagogas.
— Meia legião de romanos apenas — lamentou-se ele para mim — e eu tomaria
Jerusalém pela garganta... e seria chamado de volta a Roma como punição,
suponho.
Como eu, ele não tinha muita fé nas tropas auxiliares e de soldados romanos
tínhamos apenas um punhado.
De volta, alojei-me no palácio e para minha grande alegria lá encontrei Miriam.
Mas pequena foi minha satisfação, pois a conversa girou sobre a situação. Havia
razão para isso, porque a cidade zumbia como o vespeiro furioso que era. A festa
chamada Páscoa — um assunto religioso, é claro — estava próxima e milhares
vinham do país todo, conforme o costume, para celebrar a festa em Jerusalém.
Esses recém-chegados eram, naturalmente, pessoas excitáveis, caso contrário
não teriam se lançado em tal peregrinação. A cidade estava apinhada deles e
muitos acampavam fora de seus muros. Quanto a mim, eu não conseguia
distinguir quanto da agitação devia-se aos ensinamentos do pescador errante e
quanto devia-se ao ódio dos judeus por Roma.
— Um décimo, não mais, e talvez nem tanto assim, deve-se a esse Jesus —
Pilatos respondeu à minha indagação. — Procure em Caifás e Anás a principal
causa da excitação. Eles sabem o que fazem. Estão provocando os distúrbios,
sabe-se lá com que finalidade, exceto causar-me problemas.
— Sim, é certo que Caifás e Anás são os responsáveis — disse Miriam —, mas
tu, Pôncio Pilatos, és apenas um romano e não compreendes. Se fosses um
judeu, perceberias que o assunto envolve mais do que meras divergências
sectárias ou vontade de causar problemas a ti e a Roma. Os sacerdotes e os
fariseus, todos os judeus de posição ou riqueza, Filipe, Ântipas, eu mesma,
estamos todos lutando por nossas próprias vidas... Esse pescador pode ser apenas
um louco. Se assim é, existe astúcia em sua loucura. Ele prega a doutrina dos
pobres. Ele ameaça nossa Lei e nossa Lei é nossa vida, como já aprendeste
antes. Somos ciumentos de nossa Lei, como serias
ciumento do ar negado a teu corpo por uma mão a te apertar a garganta. Há de
ser Caifás e Anás e tudo o que eles representam... ou o pescador. Eles precisam
destruí-lo, senão ele os destruirá.
— Não é estranho, um homem tão simples, um pescador? — a mulher de Pilatos
arquejou. — Que tipo de homem pode ser para possuir tal poder? Eu gostaria de
vê-lo. Gostaria de ver com meus próprios olhos um homem tão admirável.
A fronte de Pilatos enrugou-se diante dessas palavras e ficou claro que, à carga
imposta aos seus nervos, somava-se o estado de agitação nervosa de sua mulher.
— Se queres vê-lo, procura-o nos antros da cidade — Miriam riu com escárnio.
— Tu o encontrarás a se encher de vinho ou então na companhia de mulheres de
má vida. Nunca tão estranho profeta entrou em Jerusalém.
— E o que há de tão estranho nisso? — perguntei, forçado contra minha vontade
a tomar o partido do pescador. — Eu por acaso também não me enchi de vinho e
não passei estranhas noites nas províncias? Homem é homem e age como
homem... ou então eu sou um louco, e isso sei que não sou.
Miriam sacudiu a cabeça ao falar.
— Ele não é louco. Pior, ele é perigoso. Todo ebionismo é perigoso. Ele destruiria
todas as coisas que estão estabelecidas. Ele é um revolucionário. Ele destruiria o
pouco que nos foi deixado do estado judaico e do Templo.
Pilatos sacudiu a cabeça.
— Ele não é político. Tive relatórios sobre ele. Ele é um visionário. Não há
sedição nele. Ele afirma até mesmo os tributos romanos.
— Continuas a não entender — Miriam insistiu. — Não é o que ele planeja... é o
efeito de seus planos, se esses planos forem alcançados, que faz dele um
revolucionário. Duvido que ele preveja esse efeito. Mas ainda assim ele é uma
praga e, como qualquer praga, precisa ser exterminado.
— Pelo que ouvi, ele é um homem simples e de bom coração, sem nenhuma
maldade — comentei.
E então contei a cura dos dez leprosos que testemunhei na Samaria, na minha
passagem por Jerico.
A mulher de Pilatos ouvia em transe o que eu relatava. Chegavam aos nossos
ouvidos os gritos distantes de alguma multidão e sabíamos que os soldados
mantinham as ruas limpas.
— E acreditas nesse milagre, Lodbrog? — perguntou Pilatos. — Acreditas que no
piscar de um olho as feridas ulceradas deixaram o corpo dos leprosos?
— Eu os vi curados — respondi. — Eu os segui para ter certeza. Não havia
nenhuma lepra neles.
— Mas chegaste a vê-los cheios de úlceras... antes da cura? — insistiu Pilatos.
Meneei a cabeça.
— Só o que me contaram — admiti. — Quando eu os vi depois, eles todos tinham
a aparência de homens que antes foram leprosos. Estavam atordoados. Um deles
ficou sentado ao sol examinando seu corpo e olhando e olhando para sua carne
limpa como se fosse incapaz de acreditar em seus olhos. Ele não falou nem olhou
para nada mais, senão sua carne, quando o interroguei. Ele estava assombrado.
Ele ficou sentado ao sol e olhava e olhava.
Pilatos sorriu com desprezo e notei que o sorriso tranqüilo no rosto de Miriam
também era de desprezo. E a mulher de Pilatos estava como se fosse um
cadáver, mal respirando, seus olhos muito abertos e nada vendo.
Falou Ambivius:
— Caifás sustenta, ele me disse ainda ontem, que o pescador afirma que trará
Deus à terra e construirá aqui um novo reino sobre o qual Deus reinará...
— O que significaria o fim do domínio romano — atalhei.
— E nisso que Caifás e Anás conspiram para confundir Roma — Miriam
explicou. — Não é verdade. É uma mentira que eles inventaram.
Pilatos confirmou com a cabeça e perguntou:
— Não existe em algum lugar em seus antigos livros uma profecia que esses
sacerdotes distorceram para alterar as intenções desse pescador?
Ela concordou e deu-lhe a citação. Relato o incidente para evidenciar a
profundidade do estudo de Pilatos sobre esse povo que ele lutava tão arduamente
para manter em ordem.
— O que ouvi — continuou Miriam — é que esse Jesus prega o fim do mundo e o
começo do reino de Deus, não aqui, mas no céu.
— Tive relatórios a esse respeito — disse Pilatos. — É verdade. Esse Jesus
sustenta a justiça da taxação romana. Ele sustenta que Roma governará até que
todos os governos deixem de existir com o fim do mundo. Vejo muito
claramente o estratagema que Anás está a armar para mim.
— Alguns de seus seguidores chegaram a afirmar — acrescentou Ambivius —
que ele é o próprio Deus.
— Não tenho nenhum relatório de que ele tenha dito isso — respondeu Pilatos.
— Por que não? — arquejou sua mulher. — Por que não? Os deuses já desceram
à terra antes.
— Li em relatórios dignos de toda confiança — disse Pilatos — que depois que
esse Jesus operou um milagre de alimentar uma multidão com alguns poucos
pães e peixes, os loucos galileus quiseram fazê-lo rei. Contra sua vontade,
queriam fazê-lo rei. Para escapar deles, ele fugiu para as montanhas. Nenhuma
loucura aí. Ele era sábio demais para aceitar o destino que eles teriam forçado
sobre ele.
— Ainda assim, esse é exatamente o estratagema que Anás forçaria sobre ti —
Miriam repetiu. — Os sacerdotes afirmam, pelo pescador, que o pescador quer
ser o rei dos judeus... uma ofensa contra a lei romana e, portanto, é Roma que
deve cuidar dele.
Pilatos encolheu os ombros.
— Um rei dos mendigos, não mais; ou um rei dos sonhadores. Ele não é nenhum
tolo. Ele é um visionário mas suas visões não são do poder deste mundo. Que toda
a sorte o acompanhe no outro mundo, que está além da jurisdição de Roma.
— Ele sustenta que a propriedade é um pecado e é isso que atinge os fariseus —
falou Ambivius.
Pilatos deu uma gargalhada.
— Esse rei dos mendigos e seus companheiros mendigos ainda respeitam a
propriedade — explicou. — Pois veja, não faz muito tempo eles tinham até um
tesoureiro guardando suas riquezas. Judas era seu nome e diz-se que ele roubou
da bolsa que guardava.
— Jesus, ele roubou? — perguntou a mulher de Pilatos.
— Não — respondeu Pilatos. — quem roubou foi Judas, o tesoureiro.
— E quem era esse João? — perguntei. — Esse que causou problemas lá em
Tiberíades e que Antipas executou.
— Outro deles — respondeu Miriam. — Nascido perto de Hebron. Era um
fanático, um habitante do deserto. Ou foi ele mesmo ou então seus seguidores
que afirmaram que ele era Elias renascido dos mortos. Elias, sabes, foi um dos
nossos antigos profetas.
— Ele pregava a sedição? — perguntei.
Pilatos sorriu e sacudiu a cabeça, dizendo:
— Ele se desentendeu com Antipas por causa de Herodíades. João era um
moralista. É uma história muito longa, mas ele pagou com a cabeça. Não, não
tinha nada de político no assunto.
— Alguns também afirmam que Jesus é o Filho de Davi — disse Miriam. — Mas
isso é absurdo. Ninguém em Nazaré acredita. Tu vês, toda sua família, incluindo
suas irmãs casadas, vivem lá e todo mundo os conhece. São gente simples,
apenas pessoas comuns.
— Eu gostaria que fosse assim tão simples, o relatório de toda essa complexidade
que preciso enviar para Tibério — grunhiu Pilatos. — E agora esse pescador vem
para Jerusalém, o lugar está apinhado de peregrinos prontos para tudo e Anás
mexe e remexe o caldo.
— E antes de terminar, Anás fará do jeito que quer — previu Miriam. — Ele
preparou uma tarefa para ti e tu a desempenharás.
— E qual seria? — perguntou Pilatos.
— A execução desse pescador.
Pilatos sacudiu a cabeça com teimosia e sua mulher gritou:
— Não! Não! Seria um erro vergonhoso. O homem não fez mal algum. Ele não
cometeu ofensa contra Roma.
Ela olhou suplicante para Pilatos, que continuava a abanar a cabeça.
— Que eles façam suas próprias decapitações, como fez Antipas — grunhiu ele.
— O pescador nada vale, mas não serei o instrumento de suas intrigas. Se
precisam destruí-lo, que o destruam eles mesmos. É assunto deles.
— Mas não o permitirás — gritou a mulher de Pilatos.
— Um belo momento eu passaria me explicando a Tibério, se interferisse — foi
sua resposta.
— Não importa o que acontecer—disse Miriam —, já posso ver-te a escrever
tuas explicações, e muito em breve, pois Jesus já veio para Jerusalém e alguns de
seus pescadores com ele.
Pilatos demonstrou a irritação que essa informação lhe causava.
— Não tenho interesse algum em seus movimentos — afirmou. — Espero
jamais vê-lo.
— Confia em Anás para encontrá-lo para ti — Miriam respondeu — e para
trazê-lo até tuas portas.
Pilatos sacudiu os ombros e aí a conversa terminou. A mulher de Pilatos, nervosa
e agitada, tinha de exigir Miriam em seus aposentos; e assim, nada me restava
senão ir para a cama e dormir com o zumbido e murmúrio dessa cidade de
loucos.
Os acontecimentos se atropelaram. Da noite para o dia, a cidade queimava sob a
intensa tensão. Por volta do meio-dia, quando cavalguei com meia dúzia dos
meus homens, as ruas estavam apinhadas e o povo mostrava-se mais relutante do
que nunca em abrir-nos caminho. Se olhares matassem, eu seria um homem
morto aquele dia. Eles cuspiam abertamente à minha passagem e por toda parte
ouviam-se rosnados e gritos.
Hoje eu não causava assombro, hoje eu era a coisa odiada porque vestia a
odiada armadura de Roma. Fosse qualquer outra cidade, eu teria dado ordens aos
meus homens para espalmar suas lâminas sobre esses fanáticos rosnadores. Mas
esta era Jerusalém, no calor da febre; e este era um povo incapaz, em seu
pensamento, de divorciar a idéia do Estado da idéia de Deus.
Anás, o saduceu, fizera bem o seu trabalho. Não importa o que ele e o Sinédrio
pensassem sobre a verdadeira essência da situação, estava claro que essa
gentalha fora manipulada para acreditar que por trás de tudo estava a mão de
Roma.
Encontrei Miriam no meio da multidão. Ela estava a pé, acompanhada apenas
por uma serva. Não era momento, em tal turbulência, para que ela saísse às ruas
vestida como convinha à sua posição. Afinal, ela era, por parte da irmã, cunhada
de Ântipas, por quem poucos tinham amor. Assim, ela estava discretamente
vestida e com o rosto encoberto e podia passar por qualquer mulher judia de uma
classe mais baixa. Mas não aos meus olhos poderia ela esconder aquela sua
estatura, aquele seu porte, aquele seu andar, tão diferentes dos das outras
mulheres e com os quais eu já sonhara mais que uma vez.
Poucas e rápidas foram as palavras que pudemos trocar, porque a rua ficava
cada vez mais apinhada e logo meus homens e cavalos estavam sendo
empurrados e acotovelados. Miriam abrigava-se num ângulo de parede.
— Eles já pegaram o pescador? — perguntei.
— Não. Mas ele está ali fora dos muros. Ele chegou a Jerusalém montado num
jumentinho e com uma multidão a rodeá-lo, e quando ele passou alguns, pobres
tolos, saudaram-no como o Rei de Israel. Esse será o pretexto com que Anás
forçará Pilatos. Em verdade, embora ainda não tomada, a sentença já está
escrita. Esse pescador é um homem morto.
— Mas Pilatos não o prenderá — aleguei.
Miriam meneou a cabeça.
— Anás cuidará disso. Eles o trarão ante o Sinédrio. A sentença será a morte.
Podem apedrejá-lo.
— Mas o Sinédrio não tem o poder de executar—argumentei.
— Jesus não é um romano — ela respondeu. — Ele é um judeu. Pela lei do
Talmude ele é culpado de morte, porque blasfemou contra a Lei.
Continuei a menear a cabeça.
— O Sinédrio não tem o direito.
— Pilatos está preferindo que tenha.
— Mas é uma questão de legalidade — insisti. — Sabes como são os romanos
nesse ponto.
— Então Anás evitará a questão — ela sorriu — obrigando Pilatos a crucificá-lo.
Para ele, de todo modo, tudo estará bem.
As marés da multidão quase arrastavam nossos cavalos e apertavam nossos
joelhos. Algum fanático caiu e senti meu cavalo escoicear e erguer a traseira ao
pisoteá-lo, e ouvi o homem gritar e os rosnados ameaçadores que nos envolviam
tornarem-se um bramido. Mas minha cabeça estava firme quando gritei para
Miriam:
— És dura com um homem que disseste não ter maldade.
— Sou dura com a maldade que virá dele se ele viver — ela respondeu.
Mal entendi suas palavras porque um homem pulou, agarrou minhas rédeas e
minha perna e tentou arrancar-me da sela. Com a mão espalmada, inclinei-me e
golpeei-o em cheio na face e no queixo. Minha mão cobriu sua cara e o golpe
trazia o peso vigoroso da minha vontade. Os habitantes de Jerusalém não estão
acostumados a uma bofetada de homem. Muitas vezes fiquei me perguntando se
não quebrei o pescoço daquele homem.
A próxima vez que vi Miriam foi no dia seguinte. Encontrei-a no átrio do palácio
de Pilatos. Ela parecia em transe. Seus olhos não me viam. Sua mente não
percebia minha presença. Tão estranha estava ela, tão entorpecida e
assombrada, tão distantes estavam seus olhos, que me lembrei dos leprosos que vi
curados em Samaria.
Ela se tomou ela mesma com esforço, mas apenas seu ser exterior. Em seus
olhos havia uma mensagem ilegível. Nunca antes eu tinha visto olhos de mulher
assim.
Ela teria passado por mim sem me cumprimentar se eu não tivesse bloqueado
seu caminho. Ela parou e murmurou algumas palavras mecanicamente, mas
todo o tempo seus olhos sonhavam, através de mim e além de mim, com a
imensidão da visão que os preenchia.
— Eu O vi, Lodbrog — murmurou — Eu O vi.
— Queiram os deuses que ele também não esteja assim tão afetado por te ver,
quem quer que seja ele — gracejei.
Ela não tomou conhecimento do meu pobre gracejo e seus olhos permaneciam
plenos daquela visão, e ela teria passado por mim se eu não tivesse, mais uma
vez, bloqueado seu caminho.
— Quem é esse ele? — perguntei. — Algum homem renascido dos mortos para
pôr tão estranha luz em teus olhos?
— Um homem que fez outros renascerem dos mortos — respondeu ela. — Em
verdade, acredito que Ele, esse Jesus, ressuscitou os mortos. Ele é o Príncipe da
Luz, o Filho de Deus. Eu O vi. Em verdade, acredito que Ele é o Filho de Deus.
Pouco fui capaz de ajuntar de suas palavras, exceto que ela encontrara esse
pescador errante e fora arrastada por sua insensatez. Pois certamente esta
Miriam não era a Miriam que o chamara de praga e exigira que ele fosse
exterminado como qualquer outra praga.
— Ele te encantou — gritei furioso.
Seus olhos pareceram umedecer-se e ficar mais profundos enquanto ela
confirmava.
— Ah, Lodbrog, Seu encanto está além de todo pensamento, além de qualquer
descrição. Olhar para Ele é saber que ali está a essência da bondade e da
compaixão. Eu O vi. Eu O ouvi. Darei tudo que tenho aos pobres e O seguirei.
Tamanha era sua certeza que a aceitei por completo, tal como aceitara o
assombro dos leprosos de Samaria olhando para suas carnes limpas; e irritou-me
que uma mulher tão brilhante pudesse ser tão facilmente enredada por um vadio
fazedor de milagres.
— Segui-lo — zombei. — Sem dúvida usarás uma coroa quando ele conquistar
seu reino.
Ela acenou a cabeça confirmando e eu poderia tê-la esbofeteado por sua
insensatez. Cedi-lhe passagem e, enquanto se adiantava vagarosamente, ela
murmurou:
— Seu reino não é deste mundo. Ele é o Filho de Davi. Ele é o Filho de Deus. Ele
é tudo, bom e grande, que disse ser ou que tenha sido dito d'Ele.
— Um sábio do Oriente — encontrei Pilatos a murmurar. — Ele é um filósofo,
esse pescador iletrado. Busquei mais fundo dentro dele. Tenho relatórios
recentes. Ele não precisa fazer milagres. Ele é mais sofisticado que os mais
sofisticados doutores da lei. Eles lhe armaram ciladas e ele riu de suas ciladas.
Olhe. Olhe para isto.
E ele me contou como Jesus confundiu aqueles que quiseram confundi-lo
trazendo-lhe, para que ele a julgasse, uma mulher encontrada em adultério.
— E os tributos — Pilatos exultava. — “A César o que é de César e a Deus o que
é de Deus”, foi sua resposta a eles. Essa era uma cilada de Anás e Anás está
confuso. Eis que surge, afinal, um judeu que entende a nossa concepção romana
de Estado.
A seguir, vi a mulher de Pilatos. Ao olhar seus olhos entendi num instante, depois
de ter visto os olhos de Miriam, que esta mulher tensa e perturbada também vira
o pescador.
— O Divino está n'Ele — murmurou-me ela. — Há dentro d'Ele uma percepção
pessoal da existência de Deus.
— Ele é Deus? — perguntei com suavidade, porque era preciso que eu dissesse
alguma coisa.
Ela meneou a cabeça.
— Não sei. Ele não disse. Mas uma coisa eu sei: é dessa substância que são feitos
os deuses.
“Um encantador de mulheres”, foi o que pensei, quando deixei a mulher de
Pilatos com seus sonhos e visões.
Os últimos dias são conhecidos de todos vocês que lêem estas linhas e foi
naqueles últimos dias que descobri que esse Jesus também era um encantador de
homens. Ele encantou Pilatos. Ele encantou a mim.
Depois que Anás enviou Jesus a Caifás e depois que o Sinédrio, reunido na casa
de Caifás, condenou-o à morte, Jesus, escoltado por uma multidão vociferante,
foi enviado a Pilatos para execução.
Por respeito a si mesmo e por respeito a Roma, Pilatos não queria executá-lo.
Pilatos estava pouco interessado no pescador e muito interessado na paz e na
ordem. O que importava a Pilatos a vida de um homem? A vida de muitos
homens? A escola de Roma era o ferro, e os homens enviados por Roma para
governar os povos conquistados eram, do mesmo modo, homens de ferro. Pilatos
pensava e agia em abstrações governamentais. Mas... quando Pilatos saiu,
carrancudo, ao encontro da multidão que trouxera o pescador, ele foi
imediatamente conquistado pelo encanto do homem.
Eu estava presente. Eu sei. Era a primeira vez que Pilatos o via. Pilatos saiu
furioso. Nossos soldados estavam de prontidão para limpar o átrio daqueles
vermes barulhentos. E logo que pôs os olhos no pescador, Pilatos foi conquistado
— não, não só conquistado, Pilatos foi tomado de apreensão. Ele negou ter
jurisdição sobre o caso, exigiu que eles julgassem o pescador por sua Lei e o
tratassem pela sua Lei, já que o pescador era um judeu e não um romano. Ah,
mas nunca se viram judeus tão submissos à autoridade romana! Eles gritaram
que seria ilegal que eles, sob o domínio de Roma, executassem qualquer homem.
No entanto, Antipas decapitou João e não se arruinou por isso.
E Pilatos deixou-os no átrio a céu aberto e levou Jesus, sozinho, à sala de
julgamento. O que aconteceu lá dentro eu não sei, mas, quando Pilatos saiu, ele
estava mudado. Antes, ele não queria a execução para não se tomar um
instrumento das intrigas de Anás; agora, ele não queria a execução por respeito
ao pescador. Seus esforços, agora, visavam salvar o pescador. E o tempo todo a
multidão gritava: “Crucifica-o! Crucifica-o!”
Você, meu leitor, conhece a sinceridade dos esforços de Pilatos. Você sabe
como ele tentou, primeiro, enganar a multidão dizendo que Jesus era um louco
inofensivo; e depois oferecendo-se para libertá-lo conforme o costume de
libertar um prisioneiro na época da Páscoa. E você sabe como os rápidos
murmúrios dos sacerdotes instigaram a multidão a gritar pela libertação do
assassino Barrabás.
Em vão Pilatos lutou contra o destino que era lançado sobre ele pelos sacerdotes.
Com zombarias e galhofas, ele esperava transformar tudo aquilo numa farsa.
Rindo, ele chamou Jesus de Rei dos Judeus e ordenou que fosse flagelado. Sua
esperança era que tudo acabasse em gargalhadas e em gargalhadas fosse
esquecido.
Tenho a satisfação de dizer que nenhum soldado romano tomou parte no que se
seguiu. Foram os soldados das tropas auxiliares que coroaram Jesus e lhe
vestiram o manto e lhe puseram na mão a vara da realeza e, ajoelhando-se,
saudaram-no como Rei dos Judeus. Embora tenha falhado, foi um jogo de
conciliação. E eu, assistindo, conheci o encanto de Jesus. Apesar da cruel
zombaria de sua situação, ele era um rei. E eu olhava em silêncio. Era sua
própria quietude que me invadia. A paz estava comigo, a plenitude, eu não me
sentia confuso. Isso tinha de ser. Assim tinha de ser. A serenidade de Jesus no
coração do tumulto e da dor tomou-se a minha serenidade. Mal fui movido por
qualquer pensamento de salvá-lo. Por outro lado, eu vira demasiados milagres do
ser humano em minha vida selvagem e variada para ser induzido a alguma
loucura por este milagre em particular. Eu estava sereno. Eu não tinha palavras a
dizer. Eu não tinha julgamentos a fazer. Eu sabia que as coisas estavam
ocorrendo além da minha compreensão e que elas precisavam ocorrer.
E Pilatos ainda lutava. O tumulto aumentava. O brado por sangue circundava o
átrio e todos gritavam por crucificação. Mais uma vez Pilatos voltou à sala de
julgamento. Tendo falhado sua tentativa de transformar tudo numa farsa, ele
tentou negar jurisdição. Jesus não era de Jerusalém. Nascera súdito de Antipas e
para Antipas Pilatos queria enviá-lo.
Mas o tumulto já se espalhava à cidade. Nossas tropas fora do palácio eram
arrastadas pela multidão. Começavam distúrbios que num piscar de olhos
poderiam se transformar em guerra civil e revolução. Meus vinte legionários
estavam à mão e de prontidão. Eles amavam os fanáticos judeus tanto quanto eu
e teriam recebido alegremente uma ordem minha para limpar o átrio a fio de
espada.
Quando Pilatos saiu novamente, suas palavras alegando a jurisdição de Antipas
não foram ouvidas, pois toda a multidão gritava que Pilatos era um traidor, que se
soltasse o pescador ele não era amigo de Tibério. Eu estava apoiado ao muro e à
minha frente um fanático sarnento de longos cabelos e barbas pulava sem cessar
e gritava sem cessar: “Tibério é imperador, não existe rei! Tibério é imperador,
não existe rei!” Perdi a paciência. O barulho do homem perto de mim era uma
ofensa. Inclinando-me, como que por acidente, esmaguei seu pé sob meus
tacões. O louco pareceu nem notar. Estava demasiado enlouquecido para sentir a
dor e continuou a gritar: “Tibério é imperador, não existe rei!”
Vi Pilatos hesitar. Pilatos, o governador romano, naquele momento era Pilatos, o
homem, com uma raiva de homem contra as miseráveis criaturas a bradar pelo
sangue de um espírito tão doce e simples, tão corajoso e bom como esse Jesus.
Vi Pilatos hesitar. Seu olhar vagueou na minha direção, como se ele estivesse a
ponto de me fazer sinal para o ataque; e meio que avancei, libertando o pé
esmagado sob o meu. Preparei-me para saltar e concluir aquele desejo semi
formulado de Pilatos e lavar em sangue e limpar o átrio da escória imunda que
nele gritava.
Não foi a indecisão de Pilatos que me decidiu. Foi esse Jesus que decidiu a Pilatos
e a mim. Esse Jesus olhou para mim. Ele me ordenou. Eu lhe digo, esse pescador
vadio, esse pregador errante, esse rebotalho da Galiléia, ordenou-me. Nenhuma
palavra ele pronunciou. E ainda assim sua ordem ali estava, inequívoca como um
toque de trombeta. E sustive meu pé e detive minha mão, pois quem era eu para
contrariar a vontade e o caminho de um homem tão imensamente sereno e tão
docemente seguro como esse? E enquanto eu me detinha, conheci todo o encanto
dele — tudo aquilo nele que encantara Miriam e a mulher de Pilatos, que
encantara o próprio Pilatos.
Você conhece o resto. Pilatos lavou suas mãos do sangue de Jesus. Seu sangue
caiu sobre a cabeça daquele povo. Pilatos deu ordens para a crucificação. A
turba estava contente; e contentes, por trás da turba, estavam Caifás, Anás e o
Sinédrio. Não Pilatos, não Tibério, não soldados romanos, crucificaram Jesus. E
sim os sacerdotes governantes e os sacerdotes políticos de Jerusalém. Eu vi. Eu
sei. E contra seus próprios interesses Pilatos teria salvo Jesus, como eu teria, se
não fosse pelo próprio Jesus que não quis ser salvo.
Sim, e Pilatos fez uma última afronta a esse povo que ele detestava. Em
hebraico, grego e latim ele fez afixar uma inscrição à cruz de Jesus, que dizia: “O
Rei dos Judeus”. Em vão os sacerdotes protestaram. Foi com esse pretexto que
eles forçaram a participação de Pilatos; e foi por esse pretexto, um escárnio e
um insulto à raça judaica, que Pilatos tomou a responsabilidade. Pilatos
materializou uma abstração que nunca existiu na realidade. Essa abstração era
uma fraude e uma mentira engendrada na mente dos sacerdotes. Nem os
sacerdotes nem Pilatos nela acreditaram. Jesus negou-a. Essa abstração era “O
Rei dos Judeus”.
No átrio, a tempestade passou. A excitação cedeu. A revolução foi evitada. Os
sacerdotes estavam contentes, a multidão satisfeita, e Pilatos e eu profundamente
enojados e cansados com o caso todo. Mas para ele e para mim ainda havia
tempestade, e mais imediata. Antes que Jesus fosse levado, uma das servas de
Miriam chamou-me para ir até ela. E vi Pilatos, chamado por uma das servas de
sua mulher, também obedecer.
— Ah, Lodbrog, eu ouvi — disse Miriam ao me encontrar. Estávamos a sós e ela
se aproximou de mim, buscando abrigo e força em meus braços. — Pilatos
fraquejou. Ele vai crucificá-Lo. Mas ainda há tempo. Teus homens estão de
prontidão. Cavalga com eles. Apenas um centurião e um punhado de soldados O
acompanham. Eles ainda não partiram, E logo que partirem, segue-os. Eles não
devem chegar ao Gólgota. Mas espera até que estejam fora dos muros da
cidade. Então revogas a ordem. Leva um cavalo a mais para Ele montar. O resto
é fácil. Foge com Ele para a Síria ou Idiunéia, ou qualquer outro lugar desde que
Ele se salve.
Ela concluiu com os braços em volta do meu pescoço, o rosto voltado para mim,
tentadoramente próximo, os olhos solenes e cheios de promessas.
Não é de admirar que eu estivesse lento de palavras. Nesse instante só havia um
pensamento em meu cérebro. Depois de todo o estranho jogo que eu vira se
desenrolar, ser atingido por uma coisa dessas! Entendi muito bem. A coisa estava
clara. Uma grande mulher seria minha se... se eu traísse Roma. Pois Pilatos era o
governador; sua ordem fora publicada; e sua voz era a voz de Roma.
Como eu disse, foi a mulher em Miriam, sua própria feminilidade, que acabou
traindo a ela e a mim. Ela sempre fora tão clara, tão racional, tão segura de si
mesma e de mim, que eu esquecera — ou melhor, eu ali aprendi novamente a
eterna lição aprendida em todas as vidas: a mulher é sempre mulher; nos grandes
momentos de decisão, a mulher não raciocina, ela sente; o santuário supremo, a
mais íntima força motivadora, está no coração da mulher e não em sua cabeça.
Miriam entendeu mal meu silêncio, pois seu corpo apertou-se docemente contra
o meu enquanto ela acrescentava, como se a idéia acabasse de lhe ocorrer:
— Leva dois cavalos a mais, Lodbrog. Eu cavalgarei o outro... contigo... contigo,
pelo mundo afora, para onde quer que vás.
Era um suborno de reis; era uma comédia, mesquinha e desprezível, que se
exigia de mim em retribuição. E continuei mudo. Não que eu estivesse confuso
ou em dúvida. Eu estava apenas triste, profunda e subitamente triste, pois sabia
que tinha em meu braços alguém que nunca voltaria a abraçar.
— Existe apenas um homem em Jerusalém que pode salvá-Lo hoje — ela me
estimulava — e tu és esse homem, Lodbrog.
Como não respondi de imediato, ela me sacudiu, como se tentasse aclarar uma
mente que julgava turva. Ela me sacudiu até que minha armadura ressoou.
— Fala, Lodbrog, fala — ordenou, — És forte e destemido. És um homem de
verdade. Sei que desprezas os vermes que querem destruí-Lo. Tu, e só tu, podes
salvá-Lo. Tens apenas que dizer uma só palavra e a coisa será feita. E muito te
amarei e sempre te amarei pelo que fizeste.
— Sou um romano — disse com vagar, sabendo muito bem que com essas
palavras abandonava qualquer esperança de tê-la.
— És um escravo de Tibério, um cão de Roma — ela inflamou-se —, mas nada
deves a Roma, pois não és romano. Os gigantes louros do Norte não são romanos.
— Para nós, filhos do norte, os romanos são nossos irmãos mais velhos —
respondi. — E eu uso a armadura de Roma, eu como o pão de Roma.
E acrescentei, gentilmente:
— Mas por que toda essa exaltação pela simples vida de um homem? Todos os
homens devem morrer. Morrer é simples e fácil. Hoje ou daqui a cem anos,
pouco importa. Estamos certos, todos nós, de que o mesmo fim nos espera.
Ela vibrava com a paixão de salvar o pescador e tremia em meus braços.
— Não entendes, Lodbrog. Ele não é um simples homem. Digo-te que Ele é um
homem além dos homens... um Deus vivo, não de homens, mas acima dos
homens.
Apertei-a em meus braços e, sabendo que com isso renunciava a toda sua doçura
de mulher, murmurei-lhe:
— Somos um homem e uma mulher, tu e eu. Nossa vida é deste mundo. Os
outros mundos são loucura. Deixa os loucos sonhadores seguirem o caminho de
seus sonhos. Não negues a eles o que desejam acima de todas as coisas, acima
da carne e do vinho, acima da música e da batalha, acima até do amor de uma
mulher. Não negues a eles o que seus corações desejam, isso que os atrai através
da escuridão do túmulo até seus sonhos de vidas além deste mundo. Deixa-os
morrer. Mas tu e eu vivemos aqui toda a doçura que descobrimos um no outro.
Muito depressa chegará a escuridão e partirás para teu paraíso ensolarado e
florido e eu partirei para o ruidoso festim do Valhalla.
— Não! Não! — ela gritou, quase arrancando-se dos meus braços. — Não
entendes. Toda a grandiosidade, toda a bondade, todo o divino estão nesse
homem que é mais que um homem. E é uma morte vergonhosa a que Ele
morrerá. Só escravos e ladrões morrem assim. Ele não é escravo nem ladrão.
Ele é um imortal. Ele é Deus. Em verdade, digo-te que Ele é Deus.
— Ele é imortal, dizes — argumentei. — Então morrer hoje no Gólgota em nada
encurtará sua imortalidade na extensão do tempo. Ele é um deus, dizes. Deuses
não morrem. Por tudo que deles ouvi, é certo que os deuses não podem morrer.
— Ah! — gritou ela. — Não queres entender. És apenas um gigante de carne.
— Pois não é dito que esse acontecimento foi há muito profetizado? — perguntei,
pois aprendera com os judeus aquilo que eu considerava suas sutilezas de
pensamento.
— Sim, sim — ela concordou —, as profecias messiânicas. Esse é o Messias.
— E quem sou eu — perguntei — para fazer dos profetas mentirosos? Para fazer
do Messias um falso Messias? Serão assim tão frágeis as profecias do teu povo
que eu, um estrangeiro estúpido, um guerreiro nórdico numa armadura romana,
posso falsear uma profecia e obrigar a que não se cumpra uma coisa desejada
pelos deuses e prevista pelos sábios?
— Não entendes — ela repetiu.
— Entendo até demais — respondi. — Serei eu maior que os deuses para
contrariar a vontade dos deuses? Então os deuses seriam coisas vãs, brinquedos
dos homens. Eu sou um homem. Eu também me prostro diante dos deuses, de
todos os deuses, pois acredito em todos os deuses. Senão, como teriam surgido
todos os deuses?
Ela afastou-se de mim e meus braços famintos ficaram vazios de seu corpo.
Ficamos separados, a ouvir o tumulto na rua quando Jesus e os soldados saíram e
se puseram a caminho. E meu coração se amargurava; como podia uma mulher
tão brilhante ser assim tão tola? Ela queria salvar Deus. Ela queria ser maior que
Deus.
— Não me amas — disse ela devagar. E devagar cresceu em seus olhos uma
promessa de si mesma, mais profunda e ampla que quaisquer palavras.
— Amo-te além do teu entendimento, parece — foi minha resposta. — Tenho
orgulho de te amar, pois sei que sou digno de te amar e sou digno de todo o amor
que me possas dar. Mas Roma é minha mãe adotiva e, se eu lhe for infiel, de
pouco orgulho e de pouco valor seria meu amor por ti.
O tumulto que envolvia Jesus e os soldados dissipou-se ao longo da rua. E quando
não restou nenhum som, Miriam virou-se para partir, sem uma palavra, sem um
olhar para mim.
Senti um último ímpeto de louco desejo por ela. Num salto, agarrei-a. Eu queria
jogá-la sobre um cavalo e fugir com ela e meus homens para a Síria, para longe
dessa amaldiçoada cidade de loucos. Ela resistiu. Apertei-a. Ela me esbofeteou,
mas continuei a agarrá-la e apertá-la, pois seus golpes eram doces. E então ela
deixou de lutar. Ficou fria e imóvel; e entendi que não havia amor de mulher no
corpo que meus braços apertavam. Para mim ela estava morta. Vagarosamente
soltei-a. Vagarosamente ela recuou. Como se não me visse, ela voltou-se,
atravessou a sala silenciosa e, sem olhar para trás, passou pelos cortinados e se
foi.
Eu, Ragnar Lodbrog, nunca aprendi a ler ou a escrever. Mas, em meus dias, ouvi
muitas histórias. Vejo agora que nunca aprendi os grandes discursos; os discursos
dos judeus, versados na sua Lei, ou dos romanos, versados na sua filosofia e na
filosofia dos gregos. Por isso, falei com a simplicidade e a objetividade com que
pode falar um homem que começou a vida nos navios de Tostig Lodbrog e sob o
teto de Brunanbuhr e que correu o mundo ate Jerusalém e voltou. E foi um
discurso direto e simples que fiz a Sulpicius Quirinius quando fui relatar-lhe os
incidentes ocorridos em Jerusalém.
CAPITULO 18
A animação suspensa não é nada novo, não só no mundo vegetal e nas formas
inferiores de vida animal como também no organismo altamente evoluído e
complexo do próprio homem. Um transe cataléptico é um transe cataléptico, não
importa como seja induzido. Desde tempos imemoriais, o faquir da Índia tem
sido capaz de induzir voluntariamente tais estados a si mesmo. Um dos velhos
truques dos faquires é ser enterrados vivos. Outros homens, em transes similares,
enganaram os médicos, que os declararam mortos e deram as ordens que os
puseram vivos sob a terra.
Conforme prosseguiam minhas experiências com a camisa-de-força em San
Quentin, dediquei-me bastante a esse problema da animação suspensa. Lembrei
ter lido que os camponeses do extremo norte da Sibéria costumavam hibernar
durante os longos invernos, assim como fazem os ursos e outros animais
selvagens. Alguns cientistas estudaram esses camponeses e descobriram que,
durante esses períodos do “longo sono”, a respiração e a digestão praticamente
cessavam e o coração pulsava tão fraco que desafiava a detecção pelo exame
comum do leigo.
Num tal transe, os processos corporais estão tão próximos da suspensão absoluta
que o ar e o alimento consumidos são praticamente insignificantes. Nesse
raciocínio baseava-se, em parte, meu desafio ao Diretor Atherton e ao Doutor
Jackson. Foi assim que ousei desafiá-los a me darem cem dias na camisa-de-
força. E eles não ousaram aceitar meu desafio.
Em todo caso, eu conseguia passar sem água, e também sem alimento, durante
minhas sessões de dez dias. Eu achava um aborrecimento intolerável ser
arrancado das profundezas de minhas peregrinações pelo espaço e tempo e ser
trazido de volta ao sórdido presente por um desprezível médico de prisão a enfiar
água em minha boca. Assim, primeiro avisei ao Doutor Jackson que eu pretendia
ficar sem água enquanto estivesse na camisa-de-força; e depois, que eu resistiria
a quaisquer esforços para me obrigar a beber.
É claro que tivemos nossa pequena batalha; mas, depois de diversas tentativas, o
Doutor Jackson desistiu. Dali em diante, o espaço ocupado na vida de Darrell
Standing por uma sessão na camisa-de-força era pouco mais que alguns tique-
taques do relógio. Logo que me amarravam, eu me dedicava a induzir a pequena
morte. Com a prática, tornou-se simples e fácil. Eu suspendia a animação e a
consciência tão depressa que escapava ao terrível sofrimento causado pela
suspensão da circulação. E muito depressa vinham as trevas. E o que eu, Darrell
Standing, via a seguir era novamente a luz e os rostos inclinados sobre mim
enquanto me desamarravam; e o conhecimento de que dez dias haviam se
passado num piscar de olhos.
Mas, ah, a maravilha e a glória daqueles dez dias passados por mim em algum
outro lugar! As jornadas através da longa cadeia de existências! As longas trevas,
o surgimento de luzes nebulosas e a alvoroçada aparição dos eus que irrompiam
através da luz crescente!
Muito pensei sobre a relação desses outros eus comigo mesmo — e sobre a
relação dessa experiência, como um todo, com a moderna doutrina da evolução.
Posso dizer, na verdade, que minha experiência está de pleno acordo com nossas
conclusões sobre a evolução.
Eu, como qualquer homem, sou um produto em crescimento. Não comecei
quando nasci, nem quando fui concebido. Tenho estado a crescer, a me
desenvolver, através de um número incalculável de milênios. Todas essas
experiências de todas essas vidas, e de incontáveis outras vidas, entraram na
composição da alma ou do espírito que é eu. Você entende? Elas são minha
substância. A matéria não lembra, pois o espírito é a memória. Eu sou esse
espírito composto pelas memórias das minhas infindáveis encarnações.
De que fonte veio a mim, Darrell Standing, a sanguinária pulsão de fúria que
arruinou minha vida e me lançou às celas dos condenados? Ele certamente não
surgiu, nem foi criado, quando o bebê que viria a ser Darrell Standing foi
concebido.
Aquela antiga fúria sanguinária é muito mais antiga que minha mãe, muito mais
antiga que a primeira e mais antiga mãe dos homens. Minha mãe, ao me
conceber, não criou aquela apaixonada ausência de medo que é minha. Nem
todas as mães de toda a evolução do homem fabricaram o medo ou o destemor
nos homens. Muito antes, além dos primeiros homens, existiam o medo e o
destemor, o amor, o ódio, a raiva, todas as emoções — a crescer, a se
desenvolver, a se tomar a substância que se tomaria o homem.
Eu sou todo o meu passado, como qualquer defensor da Lei de Mendel há de
concordar. Todos os meus eus anteriores têm suas vozes, seus ecos, seus apelos,
em mim. Todo o meu modo de agir, calor de paixão, lampejo de pensamento, é
matizado e tonalizado — infinitesimalmente matizado e tonalizado — pelo vasto
rol de outros eus que me precederam e que entraram na minha composição.
A substância da vida é plástica. Ao mesmo tempo, essa substância nunca
esquece. Molde-a como quiser... as velhas lembranças persistem. Todos os tipos
de cavalos, do enorme reprodutor ao pequeno pônei, foram desenvolvidos a
partir daqueles primeiros potros selvagens domesticados pelo homem primitivo.
E, no entanto, até hoje o homem não eliminou o coice do cavalo. E eu, que sou
composto por aqueles primeiros domadores de cavalos, não eliminei de mim sua
fúria sanguinária.
Eu sou homem nascido de mulher. Meus dias são poucos, mas minha substância
é indestrutível. Fui mulher nascida de mulher. Fui mulher e fiz nascer meus
filhos. E nascerei novamente. Ah, incontáveis vezes ainda nascerei; mas os
pobres tolos à minha volta acreditam que ao esticar meu pescoço com uma
corda me farão deixar de existir.
Sim, eu serei enforcado... em breve. Estamos no fim de junho. Muito em breve
eles tentarão me enganar. Serei levado desta cela para o banho semanal, de
acordo com o costume da prisão. Mas não serei trazido de volta a esta cela. Serei
vestido em roupas novas e levado para a cela da morte. Lá estabelecerão a
vigilância da morte sobre mim. Noite ou dia, desperto ou adormecido, serei
vigiado. Não me será permitido pôr a cabeça sob os cobertores, por medo que eu
possa antecipar o Estado sufocando a mim mesmo.
Haverá sempre uma luz brilhante sobre mim. E então, quando me tiverem
deixado bem cansado, eles me levarão uma manhã numa camisa sem colarinho
e me lançarão pelo alçapão. Ah, eu sei. A corda que eles usarão está bem
esticada. Já há muitos meses, o carrasco de Folsom tem estado a esticá-la com
fardos pesados, para tirar sua elasticidade.
Sim, cairei fundo. Eles possuem engenhosas tábuas de cálculos, como as tábuas
de juros, que mostram a distância da queda em relação ao peso da vítima. Estou
tão emaciado que eles precisarão me fazer cair muito fundo para poder quebrar
meu pescoço. E então os circunstantes tirarão o chapéu e, enquanto meu corpo
balança, os médicos apertarão o ouvido contra o meu peito para contar as batidas
definhantes do meu coração e declararão, por fim, que estou morto.
É grotesco. É a ridícula insolência de homens-vermes que pensam que podem
me matar. Eu não morro. Eu sou imortal, assim como eles são imortais; a
diferença é que eu sei disso e eles não sabem.
Bolas! Eu já fui, uma vez, um carrasco — ou melhor, um executor. Lembro-me
muito bem. Eu usava a espada, não a corda. A espada é o modo mais corajoso,
embora todos os modos sejam igualmente ineficazes. Qual! Como se o espírito
pudesse ser decepado pelo aço ou esganado pela corda!
CAPITULO 19
Ali estava a inscrição, bastante clara. Por meio dela, descobri muito a respeito de
mim mesmo. Um ponto humilhante, no entanto, jamais consegui esclarecer.
Estava essa ilha situada nos confins do Pacífico Sul ou nos confins do Atlântico
Sul? Não conheço o bastante das rotas de navegação para estar certo se o brigue
Negociator velejaria para as Ilhas da Amizade pelo Cabo Horn ou pelo Cabo da
Boa Esperança. Para confessar minha própria ignorância, não foi senão até ser
transferido para Folsom que soube em qual oceano estão as Ilhas da Amizade. O
japonês assassino, que já mencionei antes, serviu como marinheiro a bordo dos
navios de Arthur Sewall e me disse que o curso de navegação mais provável
seria pelo Cabo da Boa Esperança. Se assim era, então a data da partida de
Filadélfia e a data do naufrágio determinariam com facilidade em qual oceano
estaria minha ilhota. Infelizmente, a data da partida é apenas 1809. O naufrágio
tanto poderia ter ocorrido num oceano como no outro.
Uma única vez consegui, em meus transes, obter uma pista do período anterior
ao tempo que passei na ilha. Começa no momento da colisão do brigue com o
iceberg e vou narrá-lo, quando mais não seja para explicar minha conduta
curiosamente fria e deliberada. Essa conduta em tal momento foi, como você
verá, o que me permitiu ser o único sobrevivente de toda a tripulação do navio.
Fui despertado em meu beliche na cabine de proa por um terrível impacto. Na
verdade, como também ocorreu com os outros seis homens adormecidos na
cabine, despertar e pular do beliche para o chão foi simultâneo. Sabíamos o que
havia acontecido. Os outros não esperaram e correram seminus para o convés.
Mas eu sabia o que esperar e fiquei para trás. Eu sabia que, se chegássemos a
escapar, seria no bote salva-vidas. Nenhum homem poderia nadar em mar tão
gelado. E nenhum homem, com poucas roupas, viveria muito tempo no bote
aberto. E eu também sabia quanto tempo levaria para que o bote fosse lançado
ao mar.
Assim, à luz do lampião que balançava violentamente e ouvindo o tumulto no
convés e os gritos de “Estamos afundando!”, comecei a vasculhar meu baú em
busca das roupas adequadas. E, já que eles nunca mais voltariam a usá-las,
também saqueei os baús dos meus companheiros. Trabalhando com rapidez, mas
com critério, peguei apenas as roupas mais quentes e reforçadas. Vesti as quatro
melhores camisas de lã que a cabine tinha a oferecer, três pares de calças e três
pares de grossas meias de lã. Tão grandes ficaram meus pés, assim envolvidos,
que não consegui calçar minhas melhores botas. Em seu lugar, enfiei as botas
novas de Nicholas Wilton, que eram maiores e até mesmo mais reforçadas que
as minhas. Vesti a japona grossa de Jeremy Nalor sobre a minha e, por cima
delas, o resistente oleado de Seth Richard, que eu lembrava ter sido
impermeabilizado pouco tempo antes.
Dois pares de luvas grossas, o cachecol de John Robert, tricotado por sua mãe, e
o gorro de castor de Joseph Dawes sobre o meu próprio gorro, ambos com
proteção para as orelhas e o queixo, completaram meu vestuário. Os gritos de
que o brigue estava afundando redobraram, mas ainda me demorei um minuto
para encher os bolsos com todo o fumo de rolo de que pude lançar mão. Então
subi para o convés e já não era sem tempo.
A lua, irrompendo por uma fresta nas nuvens, mostrou um quadro selvagem e
desolador. Por toda parte havia equipamento destroçado, por toda parte havia
gelo. As velas, cabos e botalós do mastro principal, que se agüentava de pé,
estavam cobertos por pingentes de gelo; e assaltou-me uma sensação quase de
alívio por saber que eu nunca mais teria de mourejar nas estralheiras
endurecidas ou martelar gelo para que cabos congelados pudessem correr por
roldanas congeladas. O vento, soprando forte, cortava com aquela aspereza que
indica a proximidade de icebergs; e a vastidão do oceano era de um frio cortante
ao luar.
O bote salva-vidas estava sendo baixado a bombordo e vi homens, lutando com
barris de provisões no convés coberto de gelo, abandonar a comida em sua
pressa de fugir. Em vão o Capitão Nicholl tentava detê-los. Uma onda,
irrompendo debarlavento, resolveu a questão e lançou-os aos trambolhões pela
amurada. Cheguei-me ao capitão e, agarrando-me a ele, gritei em seu ouvido
que se ele embarcasse no bote salva-vidas e evitasse que os homens se fizessem
ao largo, eu cuidaria das provisões.
Pouco tempo foi-me dado, no entanto. Mal tinha conseguido, ajudado pelo
segundo-contramestre, Aaron Northrup, baixar meia dúzia de barris e barricas
quando gritaram do bote que estavam largando. Boa razão tinham eles para isso.
Avançando de barlavento vinha sobre nós uma imensa montanha de gelo,
enquanto a sotavento, diante de nós, havia outra montanha de gelo para a qual
estávamos sendo arrastados.
Aaron Northrup foi rápido em seu salto. Demorei-me um instante, mesmo com o
bote começando a se afastar, para escolher um ponto entre a proa e a popa onde
os homens estivessem mais agrupados, para que seus corpos amortecessem
minha queda. Eu não pretendia embarcar com um membro fraturado na
arriscada viagem no bote salva-vidas. Para que os homens tivessem espaço nos
remos, abri caminho rapidamente para a cordoalha da popa. Por certo que tive
outras, e boas razões. Seria mais confortável na popa do que na proa estreita. E,
além disso, seria bom estar perto do capitão nos momentos de dificuldades que,
sob tais circunstâncias, certamente surgiriam nos dias vindouros.
Na popa estavam o contramestre, Walter Drake, o cirurgião de bordo, Arnold
Bentham, Aaron Northrup e o Capitão Nicholl, que comandava o leme. O
cirurgião inclinava-se sobre Northrup, que estava deitado no fundo do bote a
gemer. Ele não foi feliz em seu salto irrefletido e quebrou a perna direita na
articulação do quadril.
Mas não havia tempo para ele, pois remávamos num mar violento exatamente
entre as duas ilhas de gelo que se aproximavam uma da outra. Nicholas Wilton,
no remo de ginga, não tinha espaço; assim, ajeitei melhor os barris e,
ajoelhando-me diante dele, pude acrescentar meu peso ao remo. À frente, eu
podia ver John Roberts gemendo sob o remo de proa. Empurrando por trás de
seus ombros, Arthur Haskins e o menino, Benny Hardwater, acrescentavam seu
peso ao dele. Na verdade, tão ansiosos estávamos todos em ajudar que acabamos
nos estorvando uns aos outros e atrapalhando os movimentos dos remadores.
Foi por pouco, salvamo-nos por questão de uns dez metros e consegui virar a
cabeça e ver o fim prematuro do Negociator. Ele foi pego em cheio e esmagado
entre os blocos de gelo — como um cubo de açúcar esmigalhado entre os dedos
de um garoto. Com o zunir do vento e o troar das águas nada ouvimos, mas o
barulho do esmagamento das costelas reforçadas do brigue e das vigas do convés
deve ter sido suficiente para acordar um vilarejo numa noite tranqüila.
Em silêncio, com facilidade, os lados do brigue foram esmagados e o convés
dobrou-se para cima. Os destroços afundaram e desapareceram; o lugar onde
esteve o navio foi ocupado pelas ilhas de gelo a se triturar. Senti pesar pela
destruição daquele abrigo contra os elementos mas, ao mesmo tempo, fiquei
bastante satisfeito ao pensar no meu conforto dentro das minhas quatro camisas e
três casacos.
Foi um noite cruel, mesmo para mim. Eu era o mais agasalhado a bordo. Não
me preocupei muito em pensar no que os outros devem ter sofrido. Por medo de
nos defrontarmos com mais gelo na escuridão, viramos a direção do bote e o
mantivemos de proa para o alto-mar. E continuamente, ora com uma luva, ora
com a outra, eu esfregava meu nariz para que não se congelasse. E também,
com as lembranças do círculo familiar em Elkton vividas em mim, rezei a Deus.
De manhã examinamos a situação. Para começar, todos, exceto dois ou três,
sofreram geladuras. Aaron Northrup, incapaz de mover-se devido ao quadril
fraturado, estava muito mal. O cirurgião era de opinião de que ambos os pés de
Northrup estavam irremediavelmente congelados.
O bote salva-vidas afundava-se na água, carregado que estava com todos os vinte
e um homens da tripulação do navio. Dois deles eram meninos. Benny
Hardwater tinha apenas 13 anos; Lish Dickery, cuja família era vizinha da minha
em Elkton, acabara de fazer dezesseis. Nossas provisões consistiam de 150 quilos
de carne bovina e cem quilos de carne de porco. A meia dúzia de pães trazida
pelo cozinheiro não contava, encharcada que estava de salmoura. E havia três
pequenos barris de água e uma barriquinha de cerveja.
O Capitão Nicholl admitiu com franqueza que, nesse oceano desconhecido, ele
não tinha conhecimento de qualquer terra próxima. A única coisa a fazer era
buscar um clima mais clemente; e foi o que fizemos, içando nossa pequena vela
e seguindo, com a popa ao vento forte, para nordeste.
O problema da comida era simples aritmética. Não contamos Aaron Northrup
pois sabíamos que ele logo se iria. Com uma ração de meio quilo por dia, nossos
250 quilos durariam vinte e cinco dias; com uma ração de um quarto de quilo,
cinqüenta dias. Assim, um quarto de quilo por dia havia de ser. Eu repartia e
distribuía a carne sob o olhar atento do capitão e Deus é testemunha de que eu
conseguia fazê-lo razoavelmente bem, embora alguns dos homens reclamassem
desde o início. E, de tempos em tempos, eu fazia uma divisão justa do fumo de
rolo estocado em meus muitos bolsos — uma coisa que eu só tinha a lamentar,
especialmente quando percebia que o fumo estava sendo desperdiçado neste ou
naquele homem que, eu estava certo, não viveria mais que um dia ou, quando
muito, dois ou três dias.
Pois logo começamos a morrer no bote aberto. Não à fome, mas à exposição ao
frio cortante deveram-se aquelas primeiras mortes. Era uma questão da
sobrevivência dos mais rijos e dos mais afortunados. Eu era rijo por constituição
e afortunado por estar bem agasalhado e não ter quebrado minha perna como
Aaron Northrup. E mesmo assim ele era tão forte que, apesar de ser o primeiro a
sofrer severas geladuras, demorou dias para morrer. Vance Hathaway foi o
primeiro. Nós o encontramos no lusco-fusco da madrugada, dobrado de cócoras
na proa e totalmente congelado. O menino, Lish Dickery, foi o segundo a ir. O
outro menino, Benny Hardwater, durou dez ou doze dias.
Estava tão frio no barco que a água e a cerveja se solidificaram e era uma tarefa
difícil repartir com justeza os pedaços que eu quebrava com o canivete de
Northrup. Púnhamos esses pedaços na boca e ficávamos a chupá-los até se
derreterem. E quando nevava, tínhamos toda a neve que podíamos desejar. Mas
essas coisas não nos faziam bem; provocavam uma febre inflamatória que
atacava toda a boca e, assim, as mucosas da boca estavam sempre secas e
irritadas. E não havia como saciar a sede que essa febre provocava. Chupar mais
gelo ou neve significaria apenas agravar a inflamação. Mais do que qualquer
outra coisa, acho que foi isso que causou a morte de Lish Dickery. Ele esteve
fora de si e delirante por 24 horas antes de morrer. E morreu pedindo água,
embora não tenha morrido por falta de água. Resisti, tanto quanto possível, à
tentação de chupar gelo; contentei-me com um pedaço de fumo na bochecha e
me saí razoavelmente bem.
Despíamos todas as roupas dos nossos mortos. Nus eles vieram ao mundo e nus
passaram pela amurada do bote salva-vidas e mergulharam no escuro oceano
gelado. Tirávamos a sorte pelas roupas. Isso por ordem do Capitão Nicholl, para
evitar brigas.
Não era momento para tolices sentimentais. Não havia nenhum de nós que não
sentisse uma secreta satisfação com a ocorrência de cada morte. O mais
afortunado de todos ao tirar a sorte era Israel Stickney e quando ele por fim
morreu, foi como encontrar um verdadeiro tesouro, de roupas. Ele emprestou
vida nova aos sobreviventes.
Continuamos a rumar para nordeste adiante dos ventos fortes do oeste, mas nossa
busca por um clima mais quente parecia vã. A espuma continuava a congelar no
fundo do bote e eu ainda cortava a cerveja e a água potável com o canivete de
Northrup. Meu próprio canivete eu preservava. Era de bom aço, com uma
lâmina afiada e de modelo sólido, e eu não queria arriscá-lo de tal maneira. Pela
época em que metade da tripulação já havia se ido, o bote ficou com o costado
razoavelmente mais acima da linha-d'água e menos traiçoeiro de manejar nas
tempestades. E também havia mais espaço para um homem se esticar com
conforto.
Uma fonte de reclamação constante era a comida. O capitão, o contramestre, o
cirurgião e eu discutimos o assunto e resolvemos não aumentar a ração diária de
um quarto de quilo de carne por pessoa. Os seis marinheiros, dos quais Tobias
Snow proclamou-se porta-voz, argumentavam que a morte de metade de nós
equivalia a dobrar nossas provisões e que, portanto, a ração deveria ser
aumentada para meio quilo. Em resposta, explicamos que o que havia sobrado
era nossa chance de viver e que continuaríamos com a ração de um quarto de
quilo.
É verdade que 250 gramas de carne salgada por dia mal nos permitiam viver e
resistir ao frio intenso. Estávamos muito enfraquecidos e, devido à nossa
fraqueza, congelávamos facilmente. Narizes e bochechas estavam negros com a
geladura. Era impossível manter-nos aquecidos, embora tivéssemos agora o
dobro das roupas com que partimos.
Cinco semanas após a perda do Negociator, o conflito por causa da comida
atingiu seu ápice. Eu dormia naquele instante — era noite — em que o Capitão
Nicholl apanhou Jud Hetchkins roubando carne de porco do barril. Que ele estava
acumpliciado com os outros cinco homens ficou provado por suas ações. Logo
que Jud Hetchkins foi descoberto, todos os seis atiraram-se sobre nós com suas
facas. Travamos uma luta corpo-a-corpo à pálida luz das estrelas e foi uma
bênção o bote não ter virado. Tive motivos para agradecer minhas muitas
camisas e japonas, que me serviram de armadura. Os golpes de faca pouco mais
fizeram que me arranhar através de tamanha espessura de roupas, embora eu
tenha sangrado em uma dúzia de lugares.
Os outros também estavam protegidos pelas roupas e a luta teria terminado em
não mais que um espancamento generalizado se não fosse pelo contramestre,
Walter Drake, um homem muito forte, ter a idéia de encerrar o assunto jogando
os amotinados pela amurada. Nisso ele foi acompanhado pelo Capitão Nicholl,
pelo cirurgião e por mim e, num instante, cinco dos seis estavam dentro d'água e
se agarrando à amurada. O Capitão Nicholl e o cirurgião tentavam atirar na água
o sexto deles, Jeremy Nalor, enquanto o contramestre batia com um remo nos
dedos que se agarravam à amurada. Por um instante eu nada tive a fazer e assim
pude testemunhar o trágico fim do contramestre. Quando ele levantou o remo
para bater nos dedos de Seth Richard, Seth Richard mergulhou de repente e jogou
o corpo para cima, quase saltando dentro do bote, agarrou o contramestre e,
quando caiu para trás, puxou o contramestre consigo. Acho que ele nunca soltou
sua presa e ambos se afogaram juntos.
Portanto, sobreviventes de toda a tripulação do Negociator estávamos nós três: o
Capitão Nicholl, o cirurgião Arnold Bentham e eu. Sete homens tinham se ido
num piscar de olhos, como conseqüência da tentativa de Jud Hetchkins de roubar
provisões. E a mim parecia uma pena que tantas e tão boas roupas quentes
fossem desperdiçadas no fundo do oceano. Nenhum de nós as teria desprezado.
O Capitão Nicholl e o cirurgião eram homens bons e honestos. Com bastante
freqüência, quando dois de nós dormíamos, o terceiro, acordado no leme,
poderia ter roubado alguma carne. Mas isso nunca aconteceu. Confiávamos
plenamente uns nos outros e teríamos preferido morrer a trair aquela confiança.
Continuamos a nos contentar com um quarto de quilo de carne cada um por dia e
nos aproveitamos de cada vento favorável para seguir para o norte. Não foi
senão aos quatorze de janeiro, sete semanas depois do naufrágio, que chegamos
a uma latitude mais quente. Mesmo então não era realmente quente. Apenas não
era tão dolorosamente frio.
Aqui os ventos fortes do oeste nos abandonaram e ficamos a balouçar na
calmaria por muitos dias. Na maior parte do tempo havia apenas leves ventos
contrários, mas às vezes uma rajada de vento, como que saída do nada, durava
algumas horas. Em nosso estado de fraqueza e com um bote tão grande, remar
estava fora de questão. Podíamos apenas proteger nossa comida e esperar que
Deus mostrasse uma face mais amistosa. Nós três éramos cristãos praticantes e
adotamos a prática de rezar todos os dias antes de distribuir a comida. Sim, e
cada um de nós rezava em particular, com freqüência e longamente.
Pelo fim de Janeiro, nossa comida estava quase no fim. A carne de porco acabou
e usamos o barril para coletar e estocar água de chuva. Não restavam muitos
quilos de carne bovina. E, em todas aquelas nove semanas no bote, não vimos
uma vela nem vislumbramos terra. O Capitão Nicholl admitia francamente que,
depois de sessenta e três dias a navegar às cegas, ele não sabia onde estávamos.
O dia 20 de fevereiro viu o último bocado de comida ser devorado. Prefiro omitir
os detalhes de muitas coisas que aconteceram nos oito dias seguintes.
Mencionarei apenas os incidentes que servem para mostrar que tipo de homens
eram os meus companheiros. Passávamos fome havia tanto tempo que não
tínhamos reservas de forças a explorar quando a comida se acabou
definitivamente e ficamos cada vez mais fracos com muita rapidez.
Em 24 de fevereiro discutimos calmamente a situação. Éramos três homens de
espírito forte, cheios de vida e dureza, e não queríamos morrer. Nenhum de nós
se sacrificaria voluntariamente pelos outros dois. Mas concordamos com três
coisas: precisamos de comida; vamos decidir o assunto tirando a sorte; e vamos
tirar a sorte na manhã seguinte se não houver vento.
Na manhã seguinte houve vento, não muito mas razoável, e fomos capazes de
avançar uns indolentes dois nós em nosso curso para o norte. As manhãs de 26 e
27 trouxeram vento semelhante. Estávamos terrivelmente fracos mas
mantivemos nossa decisão e continuamos a navegar.
Mas, na manhã do dia 28 soubemos que o momento tinha chegado. O bote salva-
vidas balouçava-se monotonamente num mar vazio e sem ventos, e o céu parado
e nublado não dava promessa de qualquer brisa. Cortei três pedacinhos de tecido,
do mesmo tamanho, da minha japona. Na trama de um deles havia uma
pontinha de fio marrom. Quem o tirasse, perdia. Coloquei os três pedaços dentro
do meu gorro, cobrindo-o com o gorro do Capitão Nicholl.
Tudo estava pronto, mas ficamos a rezar em silêncio por um longo tempo, pois
sabíamos que estávamos deixando a decisão nas mãos de Deus. Eu não
desconhecia minha própria honestidade e meu valor, mas estava igualmente
consciente da honestidade e do valor dos meus companheiros; e assim, o que me
deixava perplexo era como Deus poderia decidir um assunto tão equilibrado e
delicado.
O capitão, como era seu direito e dever, foi o primeiro.
Com a mão dentro do gorro, ele ficou algum tempo de olhos fechados, seus
lábios movendo-se numa última prece. E ele tirou um pedaço limpo. Estava certo
— uma decisão correta, não pude deixar de admitir comigo mesmo; pois a vida
do Capitão Nicholl era-me bem conhecida e eu o sabia honesto, íntegro e
temente a Deus.
Restavam o cirurgião e eu. Seria um ou o outro; e, de acordo com a hierarquia
naval, era seu dever ser o próximo. Mais uma vez rezamos. Enquanto rezava,
esforcei-me por passar a limpo minha vida pregressa e fazer um balanço dos
meus méritos e deméritos.
Eu segurava o gorro sobre os joelhos, com o gorro do Capitão Nicholl sobre ele.
O cirurgião enfiou a mão no gorro e apalpou por algum tempo, enquanto eu me
perguntava se o tato poderia distinguir aquele fio marrom na trama do tecido.
Finalmente ele retirou a mão. O fio marrom estava em seu pedaço de tecido.
Senti-me, de imediato, cheio de humildade e gratidão pela bênção divina que me
era concedida; e tomei a resolução de obedecer, com mais fé do que nunca, a
todos os Seus mandamentos. No instante seguinte não pude deixar de sentir que o
cirurgião e o capitão estavam mais ligados um ao outro por laços de posição e
relacionamento do que comigo e que eles estavam, até certo ponto, desapontados
com o resultado. Mas, junto com aquele pensamento, vinha-me a convicção de
que eles eram homens tão honestos que o resultado não iria interferir com nosso
plano.
Eu estava certo. O cirurgião desnudou o braço, pegou a lâmina e preparou-se
para abrir uma veia. Mas antes pronunciou algumas palavras.
— Sou natural de Norfolk, Virgínia — disse ele —, onde espero ter agora uma
esposa e três filhos vivos. O único favor que tenho a lhes pedir é que se pela
graça de Deus qualquer um de vocês se salvar desta terrível situação e tiver a
sorte de voltar a alcançar nossa terra natal, que informem minha infeliz família
do meu destino cruel.
A seguir ele nos pediu a cortesia de alguns minutos para acertar seus assuntos
com Deus. Nem o Capitão Nicholl nem eu conseguíamos pronunciar uma
palavra, mas, com os olhos marejados, acenamos nosso consentimento.
Não há dúvida de que Arnold Bentham era o mais tranqüilo de nós três. Minha
angústia era imensa e estou certo de que o Capitão Nicholl sofria como eu. Mas o
que se poderia fazer? A coisa era justa e adequada e tinha sido decidida por
Deus. Mas quando Arnold Bentham completou seus últimos arranjos e se
aprontou para realizar o ato, não consegui mais me conter e gritei:
— Espere! Nós que já agüentamos tanto podemos certamente agüentar mais um
pouco. Estamos no meio da manhã. Vamos esperar até o crepúsculo. Aí, se nada
acontecer para alterar nosso terrível destino, o senhor, Arnold Bentham, fará
conforme combinamos.
Ele olhou para o Capitão Nicholl buscando confirmação da minha sugestão e o
Capitão Nicholl concordou com um aceno. Ele não conseguia pronunciar uma
palavra, mas em seus olhos azuis, úmidos e frios, havia tanta gratidão que não
pude deixar de entender.
Eu não considerava, não podia considerar um crime — tendo sido determinado
por sorteio justo — que o Capitão Nicholl e eu tirássemos proveito da morte de
Arnold Bentham. Eu não acreditava que o amor à vida que nos impelia tivesse
sido implantado em nossos peitos por outro que não Deus. Era a vontade de Deus,
e nós, Suas pobres criaturas, podíamos apenas obedecer e cumprir Sua vontade.
Mas Deus é bom. Em Sua bondade, Ele nos salvou daquele ato tão terrível,
embora tão certo.
Mal tinha se passado um quarto de hora quando uma lufada de vento do oeste,
com vestígios de geada e umidade, encrespou-se em nossas faces. Mais cinco
minutos e tínhamos lançado toda a vela e Arnold Bentham estava nos remos.
— Economizem a pouca energia que lhes resta — disse-nos. — Deixem-me
consumir a pouca energia que me ficou para poder aumentar suas chances de
sobrevivência.
E assim ele remou a favor do vento frio enquanto o Capitão Nicholl e eu nos
deitávamos no fundo do bote e, em nossa fraqueza, sonhávamos sonhos e
tínhamos visões das coisas queridas da vida, longe de nós, do outro lado do
mundo.
A rajada de vento frio foi ficando cada vez mais forte e violenta. As nuvens
correndo no céu prenunciavam um temporal. Pelo meio-dia, Arnold Bentham
desmaiou sobre o remo e antes que o bote virasse de direção no mar já
encapelado, o Capitão Nicholl e eu nos agarramos ao remo da ginga com nossas
quatro mãos enfraquecidas. Concordamos em fazer turnos e, assim como o
Capitão Nicholl foi o primeiro a tirar o pedaço de tecido em virtude de seu cargo,
ele agora tomou o primeiro turno nos remos. Dali em diante, nós três nos
revezamos a cada 15 minutos. Estávamos muito fracos e não conseguíamos fazer
turnos mais longos.
Pelo meio da tarde o mar tornou-se perigoso. Se nossa situação não fosse tão
desesperada, teríamos virado o bote a favor do vento e o deixado flutuar de proa
com uma âncora improvisada feita com o mastro e a vela. Mas se perdêssemos
o controle naquelas ondas imensas que se elevavam acima de nós, o bote entraria
a girar em círculos.
Muitas vezes durante aquela tarde, Arnold Bentham suplicou-nos, para o nosso
próprio bem, que lançássemos âncora. Ele sabia que continuaríamos a correr
apenas na esperança de que o decreto da sorte não tivesse de se cumprir. Ele era
um homem nobre. Também era nobre o Capitão Nicholl, cujos olhos frios se
transformaram em agulhas de aço. E, em tão nobre companhia, como podia eu
ser menos nobre? Agradeci a Deus repetidas vezes, durante aquela longa tarde de
perigos, pelo privilégio de ter conhecido dois homens assim. Deus e a retidão
habitavam dentro deles e, não importa qual pudesse ser meu pobre destino, eu
não podia deixar de me sentir recompensado por tal companhia. Como eles, eu
não queria morrer; mas, mesmo assim, não tinha medo da morte. A rápida
dúvida inicial que tive sobre esses dois homens havia muito se dissipara. Dura é a
escola, duros os homens; mas eles eram homens nobres, homens de Deus.
Fui o primeiro a vê-la. Arnold Bentham, na aceitação de sua própria morte, e o
Capitão Nicholl, quase aceitando a morte, rolavam como cadáveres no fundo do
bote e eu remava — quando a vi. O bote, espumando e correndo com a pressa do
vento em sua cauda, foi levantado numa crista e, bem à minha frente, vi a ilhota
rochosa batida pelo mar. Não estava a mais de um quilômetro de distância. Gritei
e eles, ajoelhando-se e cambaleando e buscando um apoio, olharam e viram
aquilo que eu vi.
— Direto para ela, Daniel — o Capitão Nicholl murmurou a ordem. — Deve
haver uma enseada. Deve haver uma enseada. É a nossa única chance.
E ele repetiu essas palavras quando estávamos sobre aquela terrível costa sem
nenhuma enseada.
— Direto para ela, Daniel. Não podemos passar direto, pois estamos fracos
demais para lutar contra o mar e o vento e voltar.
Ele estava certo. Obedeci. Ele tirou o relógio, olhou-o e lhe perguntei as horas.
Eram cinco horas. Ele estendeu a mão para Arnold Bentham, que a pegou e
apertou fracamente; e ambos olharam para mim, seus olhos estendendo até mim
aquele aperto de mão. Era o adeus, eu sabia; pois que chances teriam criaturas
tão enfraquecidas como nós para lutar contra aquelas rochas batidas pelas ondas
e chegar vivos às rochas mais altas além delas?
A seis metros da costa perdi o controle do bote. Num átimo, ele emborcou e eu
estava lutando na água salgada. Nunca mais vi meus companheiros. Por sorte fui
mantido à tona pelo remo que ainda agarrava e, por sorte, uma onda — no
instante exato, no lugar exato — atirou-me sobre o declive suave da única rocha
achatada em toda aquela costa terrível. Não me feri. Não me machuquei. E com
o cérebro rodando de fraqueza, consegui engatinhar e me afastar para longe do
repuxo das ondas.
Fiquei de pé, tremendo, sabendo que estava salvo e agradecendo a Deus. O bote
foi reduzido a mil fragmentos. E embora não visse seus corpos, eu podia
imaginar a crueldade com que o Capitão Nicholl e Arnold Bentham foram
destroçados. Vi um remo na arrebentação e, com certo risco, resgatei-o. Então
caí de joelhos, sabendo que ia desmaiar. E mesmo assim, antes de desmaiar,
com o instinto do marinheiro, arrastei meu corpo até o alto das rochas escarpadas
para, finalmente, desmaiar fora do alcance do mar.
Eu estava praticamente morto e passei a maior parte daquela noite em estupor,
apenas vagamente consciente dos extremos de frio e umidade que sofria. A
manhã me trouxe o assombro e o terror. Nenhuma planta, nem uma folha de
grama, crescia naquele mísero rochedo que se projetava do fundo do oceano.
Quatrocentos metros de largura e oitocentos metros de comprimento, não era
mais que uma pilha de pedras. Nada descobri que atendesse as exigências da
natureza exausta. Eu estava consumido pela sede e ali não havia água fresca. Em
vão testei, até ficar com a boca ferida, cada cavidade, cada depressão nas
pedras. A espuma lançada pelo temporal tinha envolvido de tal modo a ilha que
todas as depressões estavam tão cheias de água salgada quanto o próprio mar.
Do bote nada restou — nem mesmo uma lasca para mostrar que um bote existiu.
Conservei minhas roupas, meu sólido canivete e aquele remo que resgatei da
arrebentação. O temporal passou. Aquele dia todo, cambaleando e caindo,
engatinhando até que as mãos e os joelhos sangrassem, em vão busquei água.
Naquela noite, mais perto da morte do que nunca, abriguei-me do vento atrás de
uma rocha. Um aguaceiro pesado fez com que me sentisse miserável. Despi
minhas japonas e estendi-as para que se encharcassem na chuva; mas quando
espremi o tecido na boca fiquei desapontado, porque o tecido estava totalmente
impregnado com o sal do oceano no qual eu afundara. Deitei de costas, com a
boca aberta para recolher as gotas de chuva que caíssem diretamente dentro
dela. Era tantalizante, mas manteve minha boca úmida e a mim, longe da
loucura.
No segundo dia eu estava muito doente. Eu, que já não comia havia tanto tempo,
comecei a inchar e a ficar de uma gordura monstruosa — minhas pernas, meu
braço, todo meu corpo. Com a mais leve pressão meus dedos afundavam dois ou
três centímetros na minha carne, e essas depressões demoravam muito a
desaparecer. Mesmo assim, trabalhei duro para cumprir a vontade de Deus de
que eu vivesse. Cuidadosamente, com as mãos, limpei da água salgada as
cavidades nas pedras, até os menores buracos, na esperança de que as próximas
pancadas de chuva as enchessem com água que eu pudesse beber.
Minha triste sina e a lembrança dos entes queridos em Elkton deixaram-me
melancólico e eu perdia a consciência por horas a fio. Isso foi uma bênção, pois
afastou-me dos meus sofrimentos; caso contrário, eles teriam me matado.
Durante a noite fui despertado pela batida da chuva e engatinhei de buraco em
buraco, apanhando a chuva ou lambendo-a das pedras. Era salobra, mas potável.
Foi isso que me salvou, pois, pela manhã, despertei para me encontrar
transpirando em profusão e totalmente livre do delírio.
E então veio o sol, pela primeira vez durante minha permanência na ilha, e
estendi minhas roupas para secar. Tomei minha dose de água com cautela e
calculei que havia um suprimento para dez dias, se eu o controlasse
cuidadosamente. Era surpreendente como eu me sentia rico com essa fortuna de
água salobra. E nenhum grande mercador, com seus navios a voltar de prósperas
viagens, seus depósitos cheios até o teto e seus cofres transbordando, jamais teria
se sentido tão rico como eu quando descobri, lançado sobre as pedras, o corpo de
uma foca morta havia muitos dias. Mas não deixei, primeiro, de cair de joelhos e
agradecer a Deus por essa manifestação de Sua sempre infalível bondade.
Estava claro para mim que Deus não queria que eu morresse. Desde o início, Ele
não queria que eu morresse.
Eu conhecia o estado debilitado do meu estômago e comi com moderação,
sabendo que minha voracidade natural teria certamente me matado se eu me
rendesse a ela. Nunca bocados mais doces passaram pelos meus lábios, e tomo a
liberdade de confessar que derramei lágrimas de alegria ao contemplar aquela
carcaça putrefata.
A esperança voltou a bater forte dentro do meu coração. Cuidadosamente,
guardei o restante da carcaça. Cuidadosamente, cobri minhas cisternas com
pedras achatadas para que os raios do sol não evaporassem o precioso líquido e
também como precaução contra alguma ventania durante a noite e uma súbita
golfada de espuma. Colhi fragmentos de algas e sequei-os ao sol, para forrar as
rochas ásperas sobre as quais dormia e dar um pouco de alívio ao meu pobre
corpo. E minhas roupas secaram — a primeira vez, em dias, que dormi o sono
pesado da exaustão e da volta da saúde.
Quando despertei para um novo dia, eu era outro homem. A ausência de sol não
me deprimiu e depressa percebi que Deus, não esquecendo de mim enquanto eu
dormia, tinha preparado outras e maravilhosas bênçãos para mim. Esfreguei os
olhos e olhei de novo — e, tão longe quanto meus olhos alcançavam, as rochas
beirando o oceano estavam cobertas de focas. Havia milhares delas nas rochas e
outros milhares brincavam na água, e o som que saía de suas gargantas era
prodigioso e ensurdecedor. E eu sabia que aquela carne estava ali para ser
apanhada, carne suficiente para a tripulação de uma vintena de navios.
De imediato agarrei meu remo — não havia, além dele, nenhum outro pedaço
de madeira na ilha — e avancei com cautela sobre toda aquela imensidão de
comida. Logo percebi que aquelas criaturas do mar não conheciam o homem.
Não mostraram nenhum sinal de medo à minha aproximação, e descobri que era
um brinquedo de criança bater em suas cabeças com o remo.
E depois de ter matado a terceira e a quarta, fui tomado por uma loucura que me
era estranha. Na verdade, foi privado do meu juízo que massacrei e massacrei e
continuei a massacrar. Durante duas horas afadiguei-me sem cessar com o remo
até estar a ponto de desfalecer. Não sei de que excessos de massacre eu poderia
ter sido culpado, mas, ao cabo daquelas duas horas, como que por sinal, todas as
focas ainda vivas atiraram-se à água e rapidamente desapareceram.
Vi que o número de focas abatidas excedia duzentas e fiquei chocado e assustado
por causa da loucura assassina que me possuiu. Eu pequei pela devassidão do
desperdício e, depois de estar bem alimentado com aquela boa carne saudável,
pus-me na medida do possível a reparar meu pecado. Mas primeiro, antes de
começar a trabalhar, rendi graças àquele Ser por cuja bondade fui tão
milagrosamente preservado. Depois trabalhei até à noite e, noite adentro, tirando
a pele das focas, cortando a carne em fatias e colocando-as no topo das rochas
para secarem ao sol. Também encontrei pequenos depósitos de sal nas frestas e
cavidades das pedras no lado ventoso da ilha. O sal, esfreguei-o na carne como
preservante.
Quatro dias trabalhei e no fim enchi-me de orgulho diante de Deus por nenhum
pedaço de todo aquele suprimento de carne ter sido desperdiçado. O trabalho
árduo foi bom para o meu corpo, que se recuperou rapidamente com essa dieta
saudável que eu não precisava racionar. Outra evidência da mercê de Deus:
nunca, nos oito anos que passei naquela ilha estéril, houve um período tão longo
de tempo limpo e sol firme como no período imediatamente seguinte ao
massacre das focas.
Meses se passariam até que as focas voltassem a visitar minha ilha. Mas,
enquanto isso, o que eu não estava era ocioso. Construí uma cabana de pedras e,
ao lado, um depósito para meu estoque de carne curada. Fiz um teto com peles
de foca para minha cabana, de modo que ela ficou razoavelmente à prova
d'água. E eu nunca deixava de me maravilhar, quando a chuva batia naquele
teto, que nada menos que o resgate de um rei no mercado peleteiro de Londres
protegia dos elementos um marinheiro naufragado.
Logo me conscientizei da importância de manter algum tipo de
acompanhamento do tempo, sem o qual eu sentia que logo perderia qualquer
controle dos dias da semana e seria in-capaz de distinguir um dia do outro e não
saberia qual era o Dia do Senhor.
Relembrei cuidadosamente o registro cronológico mantido no bote salva-vidas
pelo Capitão Nicholl; e cuidadosamente, dia a dia, para ter certeza além de
qualquer sombra de dúvida, repassei os dias e noites que vivi na ilha. Então,
através de sete pedras diante da minha cabana, mantive meu calendário
semanal. Numa ponta do remo eu entalhava uma pequena chanfradura para
cada semana; na outra, eu marcava os meses. E ainda tinha a cautela de contar,
além das quatro semanas, os dias adicionais de cada mês.
E foi assim que fiquei capacitado a render o devido tributo ao domingo. Como
única forma de culto que eu poderia adotar, entalhei no remo um hino curto,
apropriado à minha situação, e nunca deixei de cantá-lo aos domingos. Deus, em
sua infinita bondade, não esqueceu de mim; nem eu, naqueles oito anos, deixei de
lembrar de Deus em todos os momentos apropriados.
Era espantoso o trabalho exigido sob tais circunstâncias para suprir as simples
necessidades de alimento e abrigo de uma pessoa. Na verdade, raramente estive
ocioso naquele primeiro ano. A cabana, uma mera toca de pedras, mesmo assim
levou seis semanas do meu tempo. A vagarosa cura e a infindável raspagem das
peles de foca, para torná-las macias e adequadas para vestimentas, ocuparam
meus momentos livres por meses a fio.
E havia a questão do meu suprimento de água. Depois de qualquer temporal,
meus estoques de água da chuva se perdiam com os jorros de espuma salgada e,
muitas vezes, fui obrigado a sobreviver sem água até que novas chuvas
chegassem sem ser acompanhadas por ventos fortes. Sabendo que o gotejar
contínuo acaba por furar uma pedra, selecionei uma pedra grande, de textura
delicada e firme, e, usando pedras menores, comecei a escavá-la. Em cinco
semanas do mais árduo trabalho, consegui escavar um recipiente que eu
estimava poder conter de cinco a seis litros. Mais tarde, pelo mesmo método,
escavei um recipiente de 15 litros. Levou-me nove semanas. Eu fazia recipientes
de todos os tamanhos. Um deles, que teria contido 30 litros, apresentou uma
rachadura depois que trabalhei sete semanas nele.
Mas não foi senão no meu quarto ano na ilha, quando eu já tinha me reconciliado
com a possibilidade de que poderia continuar a viver ali até o fim da minha vida
natural, que criei minha obra-prima. Levou-me oito meses, mas era sólida e com
capacidade para mais de cem litros. Esses recipientes de pedra eram, para mim,
uma imensa gratificação — tanto que às vezes eu esquecia minha humildade e
me enchia de orgulho. Na verdade, eles eram mais elegantes para mim do que a
mais custosa peça de mobiliário para qualquer rainha. Também fiz um pequeno
copo de pedra, com capacidade não superior a um litro, para transportar a água
dos diversos locais de coleta até meus recipientes maiores. Se eu lhe disser que
esse copo de um litro pesava bem uns 12 quilos, você perceberá que a simples
coleta da água da chuva não era nenhuma tarefa leve.
Portanto, tomei minha situação solitária tão confortável quanto possível.
Completei para mim um abrigo confortável e seguro. Quanto às provisões,
mantive sempre um suprimento de seis meses, preservado por salgadura e
secagem. Por essas coisas — tão essenciais para a manutenção da vida e que
mal se esperaria obter numa ilha deserta — eu sentia que jamais poderia ser
suficientemente grato.
Embora negado do privilégio de desfrutar da companhia de qualquer criatura
humana, nem sequer de um cão ou um gato, eu estava muito mais reconciliado
com minha sina do que milhares de homens provavelmente estariam. Sobre o
lugar desolado onde meu destino me lançou, eu me julgava mais feliz do que
muitos homens que, por seus crimes hediondos, são condenados a arrastar suas
vidas em confinamento solitário, com a consciência sempre a mordê-los como
um câncer corrosivo.
Por mais terríveis que fossem minhas perspectivas, não perdi a esperança de que
a Providência — que, no momento em que a fome me ameaçava no bote salva-
vidas e eu poderia ter sido engolido pelas entranhas do mar, lançou-me sobre
estas rochas nuas—iria finalmente enviar alguém em meu socorro.
Mesmo privado da companhia de criaturas irmãs e dos confortos da vida, eu não
podia deixar de refletir que minha situação de abandono apresentaria, ainda
assim, algumas vantagens. De toda a ilha, embora pequena, eu tinha a posse
pacífica. Não era provável que alguém um dia surgisse para disputar meus
direitos sobre ela, a menos que fossem os animais anfíbios do oceano. Já que a
ilha era quase inacessível, à noite meu repouso não era perturbado pelo medo da
aproximação de canibais ou de feras selvagens. Eu agradecia sempre a Deus, de
joelhos, por essas muitas bênçãos.
Mas o homem é uma criatura estranha e inexplicável. Eu — que não tinha pedido
à bondade de Deus mais do que carne podre para comer e água salobra para
beber — tão logo fui abençoado com uma abundância de carne curada e água
doce, comecei a me sentir descontente com minha sina. Comecei a querer o
fogo e o sabor da carne cozida em minha boca. E continuamente me descobria
ansiando por certas delicadezas do paladar, como aquelas que compunham o
cotidiano da mesa familiar em Elkton. Por mais que eu lutasse, minha fantasia
sempre iludia minha vontade e ousava sonhar com as coisas boas que eu já
comera e com as coisas boas que eu voltaria a comer se fosse resgatado do meu
isolamento.
Era o Adão imemorial em mim, suponho — a mácula daquele primeiro pai que
foi o primeiro a se rebelar contra os mandamentos de Deus. Muito estranho é o
homem, sempre insaciável, sempre insatisfeito, nunca em paz com Deus ou
consigo mesmo, seus dias cheios de inquietude e esforços inúteis, suas noites uma
fartura de sonhos vãos cheios de ambição e pecado. Sim, e eu também me
preocupava com meu anseio pelo fumo. Minhas horas de sono eram um
tormento para mim, pois meus desejos se manifestavam — mil vezes sonhei que
possuía barris de fumo; ai de mim, depósitos cheios de fumo, navios carregados
de fumo e enormes plantações de tabaco.
Mas eu me vingava de mim. Eu rezava a Deus sem cessar pedindo um coração
humilde; eu castigava minha carne com trabalho árduo. Incapaz de melhorar
minha mente, determinei-me a melhorar minha ilha nua. Trabalhei quatro meses
para construir um muro de pedras com nove metros de comprimento, incluindo
as asas laterais, e quatro metros de altura. Esse muro protegia a cabana durante
os fortes temporais, quando minha ilha parecia um pequeno albatroz nas
mandíbulas do furacão. E não foi tempo mal empregado. Dali em diante, fiquei
abrigado no coração da calma enquanto tudo ao meu redor e acima de mim era
uma única torrente turbilhonante de água.
No terceiro ano comecei a construir um pilar de rocha. Ou melhor, uma
pirâmide, quadrada, larga na base e subindo numa inclinação até o topo. Fui
forçado a construí-la desse modo, pois na ilha não havia nenhum instrumento
nem madeira para a construção de andaimes. A pirâmide só ficou pronta no fim
do quinto ano. Construí-a no topo da ilha. Agora, se eu lhe disser que o topo da
ilha ficava apenas 12 metros acima do mar e que o topo da minha pirâmide
ficava 12 metros acima do topo da ilha, você compreenderá que eu, sem
ferramentas, dupliquei a altura da ilha. Algumas pessoas, mais precipitadas,
poderão pensar que interferi com o plano de Deus na criação do mundo. Mas
não, sustento. Pois não era eu também uma parte do plano de Deus, juntamente
com essa projeção rochosa na solidão do oceano? Os braços que usei para
trabalhar, as costas que usei para me inclinar e levantar as pedras, as mãos aptas
a segurar e prender as coisas — não eram essas partes de mim também uma
parte do plano de Deus? Pensei muito sobre o assunto. E sei que eu estava certo.
No sexto ano aumentei a base da minha pirâmide, e foi assim que nos 18 meses
seguintes a altura do meu monumento chegou a 15 metros acima da altura da
ilha. Não era uma Torre de Babel. Ela servia a dois justos propósitos. Dava-me
um mirante de onde escrutar o horizonte em busca de um navio; e aumentava as
probabilidades de que minha ilha fosse avistada pelo olhar descuidado de algum
homem do mar. E mantinha meu corpo e minha mente saudáveis. Com mãos
jamais ociosas, havia poucas oportunidades para Satã naquela ilha. Apenas em
meus sonhos ele me atormentava, principalmente com visões de comidas
variadas e entregando-me, na minha imaginação, à pérfida erva daninha
chamada tabaco.
No oitavo dia do mês de junho, no sexto ano da minha permanência na ilha, vi
uma vela. Mas ela passou longe a estibordo, distante demais para me descobrir.
Ao invés de ficar desapontado, a própria aparição daquela vela causou-me a
mais viva satisfação. Convenceu-me de um fato de que eu, até certo ponto,
duvidava: esses mares eram ocasionalmente visitados por navegadores.
Entre outras coisas, no local onde as focas saíram do mar, construí com pedras
uma vasta estrutura de muros baixos que se estreitavam num cul-de-sac onde eu
poderia matá-las sem excitar suas companheiras lá fora e sem permitir que
qualquer foca ferida ou assustada escapasse e espalhasse o alarme. Sete meses
foram devotados apenas a essa estrutura.
Conforme o tempo passava, eu aceitava mais e mais minha sina e o demônio
vinha menos e menos, no meu sono, atormentar o velho Adão em mim com
visões incontroláveis de tabaco e comidas saborosas. E continuei a comer minha
carne de foca e dar-lhe o devido valor, a beber a doce água da chuva de que
sempre tinha o bastante e a ser grato a Deus. E Deus me ouvia, eu sei, porque
durante toda a sentença que cumpri naquela ilha jamais conheci um momento de
doença — exceto dois, ambos causados pela minha gula, como relatarei mais
tarde.
No quinto ano, antes que eu me convencesse de que quilhas de navios sulcavam
ocasionalmente esses mares, comecei a entalhar no meu remo um relato dos
incidentes mais notáveis que me ocorreram desde que deixei as tranqüilas praias
da América. Sendo as letras tão pequenas, tomei esses relatos tão inteligíveis e
duráveis quanto possível. Seis letras, ou mesmo cinco, constituíam um dia de
trabalho para mim, tão minucioso eu era.
E, a menos que meu destino cruel fosse o de jamais ter a oportunidade, havia
muito almejada, de voltar aos meus amigos e à minha família em Elkton,
entalhei, ou melhor, escavaquei na ponta larga do remo o relato da minha triste
sina — que já reproduzi no início desta narrativa.
Eu fazia de tudo para preservar esse remo, que se mostrou tão útil para mim em
minha situação de desamparo e que agora continha um registro do meu destino e
do destino dos meus companheiros. Não mais o arriscava batendo com ele na
cabeça das focas. Ao invés disso, equipei-me com um porrete de pedra, com
cerca de um metro de comprimento e um diâmetro adequado, que levou todo
um mês para ser feito. E para proteger o remo da ação do tempo (pois, quando
havia uma brisa suave, eu o usava como mastro no alto da minha pirâmide, nele
fazendo revoar uma bandeira que fiz com uma das minhas preciosas camisas),
elaborei para ele uma capa de peles de foca bem curadas.
No mês de março do sexto ano do meu confinamento, enfrentei uma das mais
tremendas tempestades talvez jamais testemunhadas pelo homem. Ela começou
por volta das nove horas da noite, com a aproximação de nuvens negras e um
vento gélido do sudoeste que se transformou, lá pelas onze horas, num furacão
acompanhado pelo estrépito incessante do trovão e o mais forte relampejar que
vi em toda minha vida.
Fiquei apreensivo quanto à segurança da ilha. Por toda parte arrebentavam os
vagalhões, exceto no topo da minha pirâmide. Lá, a vida quase foi arrancada do
meu corpo pela força do vento e das ondas. Não pude deixar de perceber que
minha existência foi salva apenas por causa da minha diligência em erigir a
pirâmide e assim duplicar a altura da ilha.
Apesar de tudo, na manhã seguinte ainda tive motivos para render graças. Todo o
meu estoque de água da chuva perdeu-se, exceto o do recipiente maior, que
estava ao abrigo do vento num lado da pirâmide. Fazendo cuidadosa economia,
eu sabia que tinha água suficiente até as próximas chuvas, mesmo que elas
demorassem. Minha cabana foi lavada pelas ondas; do meu grande estoque de
carne de foca restava apenas uma pequena porção reduzida a polpa. No entanto,
fiquei agradavelmente surpreendido ao encontrar as rochas cobertas de peixes —
um peixe mais parecido com a carpa do que qualquer outro que eu tivesse
observado. Apanhei não menos que mil duzentos e dezenove peixes, que fatiei e
curei ao sol, como se faz com o bacalhau. Essa bem-vinda mudança de dieta não
deixou de ter suas conseqüências. Pequei por gula e durante toda a noite seguinte
estive às portas da morte.
No sétimo ano da minha permanência na ilha, também no mês de março,
ocorreu uma tempestade semelhante, de grande violência. Depois dela, para
meu assombro encontrei uma enorme baleia morta, bem fresca, que foi lançada
sobre as rochas pelas ondas. Imagine minha felicidade ao encontrar,
profundamente encravado nas vísceras da baleia, um arpão de tipo comum preso
a algumas braças de linha ainda nova.
Com isso renasceu minha esperança de que eu finalmente encontraria uma
oportunidade de abandonar a ilha desolada. Não havia dúvida de que esses mares
eram freqüentados por baleeiros e, desde que eu mantivesse a força do coração,
mais cedo ou mais tarde seria salvo. Durante sete anos comi apenas carne de
foca e por isso, à vista daquela enorme abundância de uma carne diferente e
suculenta, fui vítima da minha fraqueza e comi tais quantidades que, uma vez
mais, estive quase a morrer. E afinal de contas, esse caso e o dos peixes foram
apenas indisposições causadas pela estranheza dessas carnes no meu estômago,
que tinha aprendido a se sustentar com carne de foca e nada mais que carne de
foca.
Daquela baleia, preservei um suprimento de provisões para um ano. E também,
sob os raios do sol, nas cavidades das rochas, extraí uma boa quantidade de óleo
no qual embeber minhas fatias de carne de foca ao jantar. Dos preciosos
andrajos das minhas camisas consegui fazer um pavio para, com o arpão como
aço e uma pedra como pederneira, poder ter luz à noite. Mas isso era uma
futilidade e logo abandonei tais idéias. Eu não precisava de luz quando a
escuridão de Deus descia, pois tinha me educado para dormir desde o pôr-do-sol
até o nascer do sol, inverno e verão.
Eu, Darrell Standing, não posso deixar de interromper essa narrativa de uma
existência anterior para anotar uma conclusão a que cheguei por mim mesmo. Já
que a personalidade humana é um produto em crescimento, já que ela é o
somatório de todas as existências anteriores, que possibilidades tinha o Diretor
Atherton de quebrar meu espírito na inquisição da solitária? Eu sou vida que
sobreviveu, eu sou uma estrutura construída através de eras do passado — e que
passado! O que eram dez dias e dez noites na camisa-de-força para mim? —
para mim, que fui uma vez Daniel Foss e que durante oito anos aprendi a
paciência naquela escola rochosa nos confins dos mares?
Ao final do meu oitavo ano na ilha, no mês de setembro, quando eu acabava de
esboçar o plano ambicioso de elevar minha pirâmide a dezoito metros acima do
topo da ilha, despertei uma manhã para ver um navio com todas as velas abertas
e quase ao alcance dos meus gritos. Para que se apercebessem da minha
presença, agitei meu remo no ar, pulei de pedra em pedra e pequei por todas as
formas de atividade desenfreada até que consegui ver os oficiais no convés,
olhando para mim com seus óculos de alcance. Eles responderam apontando
para a extremidade ocidental da ilha, para onde me apressei e descobri o bote
tripulado por meia dúzia de homens. Parece, como vim a saber mais tarde, que o
navio foi atraído pela minha pirâmide e alterou seu curso para examinar mais de
perto aquela estrutura tão estranha que era mais alta que a ilha selvagem na qual
se levantava.
Mas a ressaca era forte demais para permitir que o bote ancorasse na minha
praia inóspita. Depois de diversas tentativas frustradas, eles me fizeram sinais de
que precisavam voltar ao navio. Imagine meu desespero ao me ver incapacitado
de abandonar a ilha desolada. Agarrei meu remo (que eu decidira, havia muito,
presentear ao Museu de Filadélfia se fosse salvo) e com ele mergulhei de cabeça
nas ondas espumantes. Tal foi minha sorte, e minha força e agilidade, que
alcancei o bote.
Não posso deixar de contar aqui um curioso incidente. O navio, por essa altura,
tinha sido arrastado para tão longe que levamos uma hora para chegar a bordo.
Durante esse tempo cedi às minhas propensões que me foram negadas por oito
longos anos e supliquei ao segundo-contramestre, que comandava o bote, um
pedaço de fumo para mascar. O segundo-contramestre deu-me o fumo e
também me estendeu seu cachimbo, cheio de excelente fumo da Virgínia. Mal
se passaram dez minutos quando fiquei violentamente enjoado. A razão para isso
era clara. Meu organismo estava inteiramente purgado do tabaco e o que eu
agora sofria era o envenenamento do fumo, como o que aflige qualquer menino
por ocasião de seu primeiro cigarro. Mais uma vez tive razões para agradecer a
Deus e, desse dia até o dia da minha morte, não usei nem desejei aquela pérfida
erva daninha.
Eu, Darrell Standing, preciso agora completar os detalhes espantosos dessa
existência que revivi enquanto inconsciente na camisa-de-força na prisão de San
Quentin. Muitas vezes me perguntei se Daniel Foss tinha sido fiel à sua resolução
e entregado o remo ao Museu de Filadélfia.
É difícil para um prisioneiro na solitária comunicar-se com o mundo exterior.
Uma vez a um guarda, outra a um hóspede temporário da solitária, eu confiei,
por memorização, uma carta endereçada ao curador do Museu indagando sobre
esse assunto. Embora sob as mais solenes promessas, ambos esses homens me
falharam. Não foi senão depois que Ed Morrell — por uma estranha volta do
destino — foi libertado da solitária e nomeado encarregado-chefe de toda a
prisão, que fui capaz de ter a carta enviada. Reproduzo agora a resposta, enviada
a mim pelo curador do Museu de Filadélfia e contrabandeada até mim por Ed
Morrell:
É verdade que existe aqui um remo como V.Sa. descreveu. Mas poucas
pessoas sabem de sua existência pois ele não está em exibição ao público.
Na verdade, e ocupo este cargo já há dezoito anos, eu próprio não sabia de
sua existência. Mas, consultando nossos antigos registros, descobri que tal
remo foi-nos doado por um certo Daniel Foss, de Elkton, Maryland, no ano
de 1821. Não foi senão depois de longa busca que encontramos o remo,
numa sala de madeirames diversos num sótão em desuso. As chanfraduras e
o relato estão entalhados no remo, exatamente do modo descrito por V.Sa.
Está também em nossos arquivos um livreto, doado na mesma época, escrito
pelo dito Daniel Foss e impresso em Boston pela firma N. Coverly, Jr. Esse
livreto descreve oito anos da vida de um náufrago numa ilha deserta. É
evidente que esse marinheiro, em sua velhice e passando necessidades, fez
circular o dito livreto entre as almas caridosas.
Tenho muita curiosidade em saber como V.Sa. tomou conhecimento desse
remo, cuja existência nós, do Museu, ignorávamos. Estarei correto em
assumir que V.Sa. teria lido esse relato em algum documento posteriormente
publicado por esse Daniel Foss? Terei a maior satisfação em receber
quaisquer informações sobre o assunto e comunico a V.Sa. que estou
tomando providências imediatas para recolocar o remo e o livreto em
exibição. Sem mais, firmo-me mui atenciosamente, Hosea Salsburty {3}.
CAPITULO 20
Foi Pascal quem disse: “Ao considerar a marcha da evolução humana, a mente
filosófica deve ver a humanidade como um único homem e não como um
aglomerado de seres individuais.”
Estou aqui no Corredor da Morte em Folsom, com o zumbido tedioso das moscas
em meus ouvidos e reflito sobre esse pensamento de Pascal. Como é verdadeiro!
Assim come o embrião humano em seus dez breves meses lunares, com
espantosa rapidez e numa infinidade de formas e imagens multiplicadas infinitas
vezes, repete toda a história da vida orgânica desde o vegetal até o homem; assim
como o jovem ser humano, em seus breves anos de adolescência, repete a
história do homem primitivo em atos de crueldade e selvageria, desde a maldade
de infligir dor a criaturas menores até a consciência tribal expressa pelo desejo
de andar em grupo; assim eu, Darrell Standing, repeti e revivi tudo aquilo que o
homem primitivo foi, fez e se tomou, até transformar-se em você, em mim e no
restante da nossa espécie numa civilização do século vinte.
Na verdade carregamos em nós, cada ser humano hoje vivo no planeta, a
história espiritual da vida desde o início da vida. Essa história está escrita em
nossos tecidos e nossos ossos, em nossas funções e nossos órgãos, nas nossas
células cerebrais, no nosso espírito e em todos os tipos de impulsos e compulsões
atávicas, físicas e psíquicas. Fomos uma vez peixes, você e eu, meu leitor, e nos
arrastamos do mar para explorar a grande aventura na terra firme e hoje nos
encontramos no topo dessa aventura. As marcas do mar ainda estão em nós,
assim como as marcas da serpente ainda estão em nós, antes que a serpente se
tomasse serpente e nós nos tomássemos nós, quando pré-serpente e pré-nós era
uma só coisa. Uma vez voamos nos ares, uma vez moramos na copa das árvores
e tivemos medo da escuridão. Os vestígios permanecem, gravados em você e
em mim, e gravados na nossa semente que virá depois de nós até o fim dos
nossos tempos sobre a Terra.
Aquilo que Pascal vislumbrou com a visão do visionário, eu vivi. Eu vi aquele
único homem contemplado pelo olhar filosófico de Pascal. Ah, tenho uma
história que é a mais verdadeira, mais maravilhosa e mais real para mim; mas
duvido ter a capacidade de contá-la e duvido que você, meu leitor, possa
entendê-la quando eu a contar. Afirmo que vi, eu mesmo, aquele único homem
suspeitado por Pascal. Vivi os longos transes da camisa-de-força e vislumbrei, eu
mesmo, milhares de homens vivos vivendo as milhares de vidas que são, elas
próprias, a história do ser humano ascendendo através dos tempos.
Ah, como são ricas as minhas memórias quando flutuo através das eras remotas!
Nos transes da camisa-de-força, vi-vi as muitas vidas envolvidas nas odisséias
milenares das primeiras migrações humanas. Céus, antes que eu fosse o loiro
aesir que habitava o Asgard, antes que eu fosse o ruivo vanir que habitava o
Vanaheim, desde muito antes desses tempos eu guardo lembranças (lembranças
vivas) de migrações ainda mais primitivas, quando, como cardos ao vento, fomos
afugentados pelo deslizamento da calota polar.
Morri de frio e de fome, de luta e inundação. Colhi frutos na gélida espinha dorsal
do mundo e escavei raízes em férteis pântanos e campinas. Entalhei a imagem
da rena e a imagem do mamute peludo em presas de marfim ganhas em
caçadas; entalhei-as nas paredes rochosas das cavernas onde me abrigava
enquanto as tempestades hibernais rugiam lá fora. Quebrei ossos para chupar o
tutano, em locais onde cidades de reis pereceram séculos antes de mim ou
seriam construídas séculos depois da minha passagem. E deixei os ossos das
minhas carcaças transitórias em fundos de lagos, em calcários glaciais, em poços
de betume.
Vivi nas eras hoje conhecidas pelos cientistas como o Paleolítico, o Neolítico e a
Idade do Bronze. Lembro-me de nós, com nossas raposas domesticadas, a
pastorear nosso rebanho de renas em pastagens na costa norte do Mediterrâneo,
onde hoje é a França, a Itália e a Espanha. Isso foi antes que a calota de gelo se
derretesse e retrocedesse para o pólo. Por muitas sucessões de equinócios eu vivi,
meu leitor, e nelas morri... só que eu lembro, e você não.
Fui um Filho do Arado, um Filho do Peixe, um Filho da Árvore. Todas as
religiões, desde o início dos tempos religiosos do homem, habitam em mim. E
quando o Pastor, na capela aos domingos aqui em Folsom, adora a Deus à sua
própria maneira moderna, eu sei que nele, no Pastor, ainda vive o culto do
Arado, do Peixe, da Árvore — ai de mim, e todos os cultos de Astarté e da Noite.
Fui um governante ariano no antigo Egito e meus soldados rabiscaram
obscenidades nas tumbas esculpidas de reis mortos e idos e há muito esquecidos.
E eu, o governante ariano no antigo Egito, fiz construir para mim duas sepulturas
— uma falsa, a enorme pirâmide de que foi testemunha toda uma geração de
escravos; a outra, humilde, modesta, secreta, escavada na rocha de um vale
deserto por escravos que foram mortos tão logo seu trabalho se completou... E eu
me pergunto, aqui em Folsom, enquanto a democracia sonha cativar o mundo do
século vinte, se lá, na cripta escavada na rocha daquele vale secreto e desértico,
ainda estarão os ossos que um dia foram meus e que sustentaram meu corpo vivo
quando fui um governante ariano nascido para exercer a tirania.
E na grande migração para sul e leste sob a fornalha do sol que destruiu todos os
descendentes das casas de Asgard e Vanaheim que nela tomaram parte, fui um
rei no Ceilão, um construtor de monumentos arianos sob reis arianos na antiga
Java e na velha Sumatra. E morri uma centena de mortes na grande migração
para o Mar do Sul antes que o renascimento dos homens viesse a erigir
monumentos, que apenas os arianos erigiram, em ilhas vulcânicas de trópicos
que eu, Darrell Standing, não consigo nomear apesar de hoje conhecer bem a
geografia daqueles mares longínquos.
Ah, se eu ao menos fosse capaz de pintar, com o frágil meio de expressão das
palavras, aquilo que vejo e conheço e possuo incorporado à minha consciência
sobre a grande migração dos povos em tempos anteriores ao início da nossa atual
história escrita! Sim, porque tínhamos nossa História mesmo então. Nossos
anciãos, nossos sacerdotes, nossos sábios, contavam nossa História em fábulas e
escreviam aquelas fábulas nas estrelas para que nossa semente, depois de nós,
não as esquecesse. Do céu vinha a chuva doadora da vida e a luz do sol. E
estudamos o céu, aprendemos com as estrelas a calcular o tempo e a separar as
estações; e demos às estrelas os nomes dos nossos heróis, dos nossos alimentos e
dos utensílios que inventamos para obter o alimento; os nomes das nossas
peregrinações, migrações e aventuras; os nomes das nossas ocupações e das
nossas fúrias de impulso e desejo.
Ah, desgraça suprema! Acreditávamos imutáveis os céus onde escrevíamos
nossos humildes anseios e as humildes coisas que fazíamos ou sonhávamos fazer.
Quando fui um Filho do Touro, lembro uma vida que passei a fitar as estrelas. E
mais tarde, e mais cedo, houve outras vidas nas quais cantei com os sacerdotes e
os bardos as canções proibidas das estrelas, nas quais acreditávamos estar escrita
nossa história indestrutível. E aqui, depois de tudo isso, debruço-me sobre os livros
de astronomia da biblioteca da prisão (aqueles que eles permitem que os
condenados leiam) e descubro que até mesmo os céus são fluxos passageiros, tão
perturbados pelas andanças das estrelas quanto a terra é perturbada pelas
andanças dos homens.
Equipado com esse conhecimento moderno, ao retomar através da pequena
morte de minhas vidas anteriores, fui capaz de comparar os céus daquelas
épocas com o céu de hoje. E as estrelas mudam! Vi estrelas polares e estrelas
polares e dinastias de estrelas polares. A estrela polar hoje está na Ursa Menor.
No entanto, naqueles dias remotos eu vi a estrela polar em Draco, em Hércules,
em Vega, em Cy gnus e em Cepheus. Não, nem mesmo as estrelas
permanecem; mas a memória e o conhecimento delas permanece em mim, no
espírito em mim que é memória e que é eterno. Só o espírito permanece. Tudo o
mais, sendo mera matéria, passa... e precisa passar.
Ah, eu vejo hoje aquele único homem que surgiu naquele mundo mais remoto,
louro, selvagem, matador e amante, comedor de carne e catador de raízes, um
cigano e um ladrão, que, com o porrete nas mãos, atravessou os milênios
vagando pelo mundo em busca de carne para comer e ninhos seguros para suas
crias e filhotes.
Eu sou aquele homem, a soma dele, o todo dele, o bípede sem pêlos que lutou
para se elevar do lodo, e que criou o amor e a lei a partir da fértil anarquia que
gritava e grunhia nas selvas. Eu sou tudo que aquele homem foi, tudo que ele se
tomou. Vejo a mim mesmo através de dolorosas gerações, perseguindo e
matando a caça e o peixe; limpando as primeiras clareiras na floresta;
fabricando rudes ferramentas de pedra e osso; construindo casas de madeira e
cobrindo seu teto com folhas e palhas; domando o capim selvagem e as raízes do
prado e desenvolvendo-as para que se tomassem os ancestrais do arroz, do
painço, do trigo, da cevada e de todos comestíveis nutritivos; aprendendo a rasgar
o solo, a semear, a ceifar e a armazenar o grão; desfiando as fibras das plantas
para trançar o fio e tramar o tecido; imaginando sistemas de irrigação; forjando
os metais; abrindo mercados e rotas comerciais; construindo barcos e criando a
navegação — e, ai de mim, organizando a vida na aldeia, ligando aldeias a
aldeias até se tomarem tribos, ligando as tribos até se tomarem nações, sempre
buscando as leis das coisas, sempre fazendo as leis do ser humano para que os
seres humanos pudessem conviver em harmonia e, pela união de seus esforços,
pudessem derrotar e destruir todas as coisas que rastejam, que andam de quatro
e que urram, senão elas os destruiriam.
Eu fui aquele homem em todos os seus nascimentos e esforços. Eu sou aquele
homem hoje, esperando minha morte pela lei que ajudei a construir há muitos
milhares de anos e pela qual morri muitas vezes antes desta, muitas vezes. E
enquanto contemplo essa minha vasta história passada, encontro muitas grandes e
esplêndidas influências e, a principal entre elas, o amor da mulher, o amor do
homem pela mulher de sua espécie. Vejo a mim mesmo, o único homem, o
amante, sempre o amante. Sim, fui também o grande guerreiro, mas, de algum
modo, enquanto estou aqui na prisão tentando avaliar com precisão isso tudo,
acho que fui, mais do que qualquer outra coisa, o amante. Foi porque muito amei
que me tomei o grande lutador.
Penso, às vezes, que a história do homem é a história do amor da mulher. Essa
lembrança de todo o meu passado, que agora escrevo, é a lembrança do meu
amor pela mulher. Sempre, nos dez milhares de vidas e formas, eu a amei. Eu a
amo agora. Meu sono é repleto dela; minhas fantasias na vigília, não importa
onde comecem, levam-me sempre para ela. Não há como fugir dela, aquela
figura eterna, esplêndida, sempre resplandecente, da mulher.
Ah, não me entenda mal. Não sou nenhum rapaz imaturo e apaixonado. Sou um
homem envelhecido, quebrado na saúde e no corpo, e logo devo morrer. Sou um
cientista e um filósofo. Eu, como todas as gerações de filósofos antes de mim,
conheço a mulher pelo que ela é — suas fraquezas, suas mesquinharias, sua
presunção, sua abjeção, seus pés presos à terra e seus olhos que jamais olharam
as estrelas. Mas... a verdade duradoura e irrefutável permanece: Seus pés são
belos, belos são seus olhos, seus braços e seu seio são o paraíso, seu encanto tem
poder além de todo o encanto que jamais ofuscou o homem; e, assim como o
alvo forçosamente atrai o dardo, ela forçosamente atrai o homem.
A mulher me fez rir da morte e da distância, zombar da fadiga e do sono.
Massacrei homens, muitos homens, pelo amor da mulher; em sangue batizei
nossas núpcias e com sangue lavei a nódoa de seus favores a outro homem.
Desci aos abismos da morte e da desonra, traí os companheiros e as estrelas do
céu, por amor à mulher — ou melhor, por amor a mim mesmo, que tanto a
desejava. E escondi-me entre as espigas de cevada, doente de desejo por ela,
apenas para vê-la passar e encher os olhos com sua ondulante formosura, com
seus cabelos negros como a noite ou castanhos ou cor de linho ou com todo o
ouro do sol.
Pois a mulher é bela... para o homem. Ela é doce ao paladar do homem, ela é
perfume em suas narinas. Ela é fogo em seu sangue, é o toque das trombetas.
Sua voz é a mais pura música em seus ouvidos. E ela pode abalar a alma do
homem, que, de outro modo, mantém-se inabalável diante da terrível presença
dos Titãs da Luz e das Trevas. E além de suas estrelas, nos distantes paraísos de
sua imaginação, valkíria ou houri, o homem faz, de bom grado, um lugar para a
mulher; pois ele não poderia ver um paraíso sem ela. E a espada cantando na
batalha não canta canção tão doce como aquela que a mulher canta ao homem
só com seu riso ao luar, seu gemido de amor na escuridão ou seu andar ondulante
ao sol, enquanto ele cai, tonto de desejo, na grama.
Morri de amor. Morri por amor, como você vai ver. Dentro em breve eles vão
me levar, a mim, Darrell Standing, e me fazer morrer. E essa morte será por
amor. Ah, não era pequena minha perturbação quando matei o Professor Haskell
no laboratório da Universidade da Califórnia. Ele era um homem.
Eu era um homem. E havia uma bela mulher. Entendeu? Ela era uma mulher e
eu era um homem, e vim amante, e toda a hereditariedade do amor era minha
desde os urros no coração da selva escura, antes que o amor fosse amor e o
homem fosse homem.
Ah, mas isso não é novidade para mim! Muitas, muitas vezes, naquele longo
passado, entreguei a vida e a honra, o posto e o poder, por amor. O homem é
diferente da mulher. Ela está próxima do imediato e conhece apenas a
necessidade das coisas do momento. Nós conhecemos a honra acima da honra
da mulher e o orgulho além das mais remotas noções de orgulho da mulher.
Nossos olhos enxergam longe, para poder olhar as estrelas; os olhos da mulher
não enxergam mais que a terra sólida sob seus pés, o peito do amante sobre seu
seio e o bebê viçoso no côncavo de seu braço. No entanto, tal é a alquimia
formada ao longo dos tempos que a mulher opera a magia em nossos sonhos e
nossas veias; e por isso, a mulher é para nós mais do que os sonhos, as visões
distantes e o sangue da própria vida; ela, como dizem os amantes com toda
sinceridade, é mais que o mundo todo. E está certo, porque, caso contrário, o
homem não seria o homem, o lutador e conquistador que trilha seu caminho de
sangue sobre todas as outras e inferiores formas de vida — pois, se o homem não
tivesse sido o amante, o nobre amante, ele nunca teria se tomado o rei lutador.
Lutamos melhor, morremos melhor e vivemos melhor por aquilo que amamos.
Eu sou aquele homem. Vejo a mim mesmo nos muitos eus que entraram na
formação do meu ser. E sempre vejo a mulher, as muitas mulheres, que me
fizeram, que me arruinaram, que me amaram e que eu amei.
Lembro, há tanto, tanto tempo, quando a espécie humana ainda era muito jovem,
lembro que fiz uma armadilha e uma cova com uma estaca pontuda fincada no
meio dela, para apanhar Dente-de-Sabre. Dente-de-Sabre, de longos caninos e
pêlo longo, é o maior perigo para nós que vivemos nestas grutas rasas e passamos
as noites acocorados ao lado do fogo e passamos o dia aumentando a pilha de
conchas debaixo dos nossos pés com as ostras que catamos no palude salgado e
devoramos.
E quando o bramido e o urro de Dente-de-Sabre nos acordou nas grutas onde
estamos agachados ao lado das brasas mortiças e me excito com a visão distante
da experiência da cova e da estaca, é a mulher com os braços e as pernas
enroscados em mim que luta comigo e me impede de sair pela escuridão atrás
do meu desejo. Ela está parcialmente vestida, só para se aquecer, em peles de
animais, chamuscadas e cheias de sarna, que eu cacei; ela está suja, coberta
com uma fumaça que não é lavada desde as chuvas da primavera, as unhas
rachadas e quebradas, mãos calosas como a sola do pé e que mais parecem
garras do que mãos; mas seus olhos são azuis como o céu do verão ou como o
mar profundo, e existe algo em seus olhos e nas mãos agarradas em mim e no
coração que bate contra o meu, que me detém... e toda a noite até a aurora,
enquanto Dente-de-Sabre urra sua fúria e sua agonia, escuto meus companheiros
rindo e dizendo às suas mulheres que não tenho fé na minha invenção para me
aventurar pela noite até a cova e a estaca que imaginei para matar Dente-de-
Sabre. Mas minha mulher, minha selvagem companheira, segurou-me,
selvagem que eu era, e seus olhos me atraíram e seus braços me acorrentaram e
suas pernas enroscadas em mim e seu coração batendo contra o meu me
seduziram a ficar longe das coisas do meu sonho, minha conquista de homem, o
objetivo além dos objetivos, a prisão e a morte de Dente-de-Sabre na estaca da
cova.
Uma vez fui Ushu, o arqueiro. Lembro-me bem. Perdi-me do meu povo e
atravessei a grande floresta e saí nas terras baixas das pastagens e fui acolhido
por um povo estrangeiro, mas familiar por ter a pele branca, o cabelo dourado e
uma fala não muito diferente da minha. E ela era Igar. Eu a atraí quando cantei
ao crepúsculo, pois ela estava destinada a ser a mãe de uma raça e era robusta e
forte e não podia deixar de ser atraída para o homem musculoso, de peito forte,
que cantava suas proezas na matança de homens e na obtenção da carne; essa
era a maneira daquele homem prometer comida e proteção para ela naquelas
fases indefesas, quando ela gerava a semente que iria caçar a carne e viver
depois dela.
Esse povo não tinha a sabedoria do meu povo: eles faziam armadilhas e fossos
para pegar a caça; na batalha usavam porretes e atiradeiras; e não conheciam o
valor das flechas voadoras, chanfradas na cauda para se adaptar à tira de couro
de cervo bem torcida e que saltavam velozes e diretas quando lançadas pela
curvatura do arco de freixo.
E enquanto eu cantava ao crepúsculo, os homens estrangeiros riam. Apenas ela,
Igar, acreditava e tinha fé em mim. Levei-a à caçada onde o cervo buscava o
manancial. E meu arco zuniu e cantou na clareira e o cervo caiu e a carne
quente foi doce para nós e ela foi minha, ali, ao lado do manancial.
E por causa de Igar eu permaneci com os homens estrangeiros. Eu os ensinei a
fazer arcos da madeira vermelha e perfumada como o cedro. Eu os ensinei a
manter os dois olhos abertos e a mirar com o olho esquerdo; a fazer flechas
arredondadas para a caça de pequeno porte e flechas pontiagudas de osso para o
peixe na água clara; a lascar a obsidiana para fazer as pontas das flechas para o
cervo, o cavalo selvagem, o alce e o velho Dente-de-Sabre. Mas eles riram da
idéia de lascar a pedra, até que atravessei um alce de lado a lado e a ponta de
pedra lascada saiu pelo outro lado e o corpo emplumado da flecha enterrou-se
em seus órgãos vitais; e então a tribo aplaudiu.
Fui Ushu, o Arqueiro, e Igar foi minha mulher e companheira. Rimos sob o sol da
manhã, quando nosso fílho-homem e nossa filha-mulher, dourados como o mel
das abelhas, davam cambalhotas e rolavam no campo de mostarda; e à noite ela
se aninhava em meus braços e me amava e tentava me convencer, por causa da
minha habilidade em tratar a madeira e lascar as cabeças de flechas, a ficar na
aldeia e deixar os outros homens correrem os perigos da caçada e me trazerem a
carne. E eu seguia seu conselho e engordava e perdia o fôlego; no entanto, nas
longas noites, insone, eu me preocupava porque os homens da tribo estrangeira
me traziam a carne por causa da minha sabedoria e da minha honra mas riam da
minha gordura e do meu desinteresse pela caça e pela luta.
E na minha velhice, quando nossos filhos eram homens e nossas filhas eram
mães, das terras do sul os homens escuros de testa pequena e cabelo crespo
avançaram sobre nós como as ondas do oceano e fugimos para as encostas dos
morros. Igar, como minhas outras companheiras muito antes e muito depois,
cega a visões distantes, enroscou-se a mim com as pernas e os braços e lutou
para manter-me longe da batalha.
Mas libertei-me dela, gordo e sem fôlego, enquanto ela soluçava que eu não mais
a amava, e saí para a batalha na noite e até o nascer do sol, onde, ao canto dos
arcos e zunido das flechas emplumadas e pontiagudas, mostramos a eles, aos
homens de cabelo crespo, a habilidade de matar e ensinamos a eles a destreza e
a disposição de matar.
E quando eu ali morri, no fim da batalha, houve os cantos da morte e canções
sobre mim; e as canções pareciam soar como as palavras que escrevi quando fui
Ushu, o Arqueiro, e Igar, minha mulher-companheira, pernas enroscadas e
braços envolventes, quis me manter longe da batalha.
Uma vez — e sabem os céus quando, exceto que foi há muito tempo, quando o
homem era jovem — vivemos ao lado do grande pântano e os montes eram
próximos do grande rio de águas vagarosas e nossas mulheres colhiam frutos e
raízes e havia manadas de cervos, cavalos selvagens, antílopes e alces, que nós,
homens, caçávamos com flechas ou pegávamos em covas ou nas gargantas da
montanha. Do rio pegávamos peixes em redes tramadas pelas mulheres com a
casca de árvores novas.
Fui um homem, impaciente e curioso como o antílope, quando o atraímos
agitando moitas de capim, escondidos no cerrado. O arroz selvagem crescia no
pântano, elevando suas hastes delgadas sobre a água às margens dos canais. De
manhã os melros nos acordavam com sua chilreada quando deixavam seus
filhotes para voar até o pântano. E no longo crepúsculo o ar se enchia com sua
algazarra quando eles voltavam para seus filhotes. Era a estação em que o arroz
amadurecia. E também havia os patos; e patos e melros comiam e engordavam
com o arroz maduro, meio descascado pelo sol.
Sendo um homem, sempre inquieto, sempre a investigar, sempre a me perguntar
o que haveria além dos montes e além do pântano e na lama do fundo do rio,
observei os patos selvagens e os melros e pensei até que meus pensamentos me
deram a visão e então eu vi. E foi isso que vi, foi assim que pensei:
Carne é boa de comer. No fim — ou melhor, no começo — toda carne vem do
capim. A carne do pato e do melro vem da semente do arroz do pântano. Matar
um pato com uma flechada não compensa o trabalho da longa tocaia. Os melros
são pequenos demais para matar com flechadas; só servem para os meninos que
estão aprendendo e se preparando para a caça maior. Mas na estação do arroz os
melros e os patos ficam gordos e cheios de saúde. Sua gordura vem do arroz. Por
que eu e os meus também não podemos engordar com o arroz?
E eu ficava na aldeia pensando, quieto e carrancudo, nem notava as crianças
gritando em volta de mim. E Arunga, minha mulher-companheira, em vão me
censurava e exigia que eu fosse caçar mais carne para as nossas muitas bocas.
Arunga foi a mulher que eu roubei das tribos da montanha. Levamos umas doze
luas para aprender uma linguagem comum, depois que eu a capturei. Ah, aquele
dia em que saltei sobre ela do galho de uma árvore quando ela fugia cheia de
medo pela trilha! Caí sobre seus ombros com o peso do meu corpo e meus
braços a agarraram. Ela berrou como um gato selvagem. Lutou e me mordeu.
Suas unhas pareciam as garras da pantera quando ela me arranhou. Mas eu a
dominei e durante dois dias espanquei-a e obriguei-a a descer comigo pelos
desfiladeiros dos Homens da Montanha até as pastagens onde o rio atravessava os
pântanos de arroz e onde os patos e melros engordavam.
Vi minha visão quando o arroz estava maduro. Fiz Arunga sentar na proa do
tronco de árvore escavado pelo fogo que era nossa tosca canoa. Mandei que ela
remasse. Sobre a popa estendi uma pele de gamo que ela havia curtido. Com dois
pedaços de pau fiz as hastes se dobrarem sobre a pele de gamo e recolhi os grãos
que, senão, os melros teriam comido. E depois que percebi qual a melhor
maneira, passei os dois pedaços de pau para Arunga e fui me sentar na proa,
remando e ensinando.
No passado comemos o arroz cru e não gostamos. Mas agora nós o tostamos
sobre nosso fogo e os grãos cresceram e explodiram em flocos brancos e toda a
tribo veio correndo experimentar.
Depois disso ficamos conhecidos entre os homens como os Comedores de Arroz,
ou os Filhos do Arroz. E muito, muito tempo depois, quando os Filhos do Rio nos
expulsaram do pântano para as terras altas, levamos conosco a semente do arroz
e a plantamos. Aprendemos a reservar os grãos maiores para a semeadura, e por
isso todo o arroz que comemos dali em diante tinha grãos maiores e crescia mais
na tostagem e no cozimento.
Arunga. Eu disse que ela berrou e arranhou como um gato quando a roubei. Mas
lembro o dia em que seu povo, os Homens das Montanhas, me capturou e me
arrastou para as montanhas. Eles eram o pai, o irmão do pai e os dois irmãos de
Arunga. Mas ela era minha, era a mulher que vivia comigo. E à noite, quando eu
estava amarrado como um javali para o matadouro e eles dormiam cansados ao
lado do fogo, ela se inclinou sobre cada um deles e esmagou suas cabeças com o
porrete de guerra que fiz com minhas próprias mãos. E ela chorou e me soltou e
fugiu comigo de volta para o grande rio de águas vagarosas onde os melros e os
patos selvagens co-miam o arroz dos pântanos — pois isso aconteceu antes da
chegada dos Filhos do Rio.
Pois ela era Arunga, a única mulher, a mulher eterna. Ela viveu em todos os
tempos e lugares. Ela sempre viverá. Ela é imortal. Uma vez, numa terra
distante, seu nome foi Ruth. E seu nome também foi Isolda e Helena, Pocahontas
e Unga. E nenhum homem estrangeiro, de tribos estrangeiras, jamais deixou de
encontrá-la e sempre a encontrará nas tribos de toda a Terra.
Lembro tantas mulheres que formaram o vir-a-ser daquela única mulher. Houve
o tempo em que Har, meu irmão, e eu perseguimos o garanhão selvagem por
dias e noites. Enquanto um dormia, o outro perseguia o garanhão fazendo um
grande círculo que se fechava no lugar onde o outro estava acordando. E
levamos o garanhão, pelo cansaço, pela fome e pela sede, aos extremos da
fraqueza, e afinal ele tremia e mal se agüentava em pé e nós o prendemos com
cordas torcidas de couro de cervo. Usando apenas nossas pernas, e sem
dificuldade, só com a ajuda da astúcia — o plano foi meu —, meu irmão e eu
nos apoderamos daquela criatura de pés alados.
E quando tudo estava pronto para que eu subisse em seu lombo — pois essa era a
minha visão, desde o início — Selpa, minha mulher, me agarrou e levantou a voz
e insistiu que Har, e não eu, devia cavalgar, pois Har não tinha mulher nem filhos
pequenos e não faria falta se morresse. E ela acabou chorando e assim fui
roubado de minha visão; e era Har, em pêlo e agarrado à crina, quem montava o
garanhão quando ele fugiu a corcovear.
Foi no pôr-do-sol que os homens trouxeram Har das rochas distantes onde o
encontraram e foi uma hora de grandes lamentações. Sua cabeça estava partida
e, como o mel de uma colméia caída da árvore, seus miolos gotejavam no chão.
Sua mãe cobriu a cabeça de cinzas e escureceu o rosto. Seu pai decepou a
metade dos dedos da mão em sinal de pesar. E todas as mulheres, especialmente
as jovens e solteiras, gritaram insultos para mim; e os anciãos sacudiram suas
sábias cabeças e murmuraram que ninguém, nem seus pais nem os pais de seus
pais, tinha mostrado tanta loucura. Carne de cavalo é boa para comer; potros
jovens são bons para dentes velhos; e só um louco se aproximaria de um cavalo
selvagem, a não ser depois que ele estivesse atravessado por uma flecha ou pela
estaca no meio da cova.
E Selpa me fez dormir ouvindo suas censuras e me acordou de manhã com suas
queixas, sempre reclamando da minha loucura, sempre proclamando seus
direitos sobre mim e os direitos dos nossos filhos, até que acabei me cansando e
esqueci minha visão distante e jurei que nunca mais sonharia em domesticar o
cavalo selvagem para voar rápido como suas patas, rápido como o vento, pelos
areais e pelas planícies.
E ano após ano a história da minha loucura foi contada em volta da fogueira. Mas
o próprio fato de ser contada foi a minha vingança; pois o sonho não morreu e os
jovens, ouvindo as risadas e as zombarias, sonharam o sonho mais uma vez. E foi
Othar, meu filho mais velho, um adolescente, o primeiro a domar o garanhão
selvagem, a saltar em seu lombo e voar diante de nós com a velocidade do vento.
Depois disso, para não ficarem para trás, todos os homens aprisionaram e
domesticaram cavalos selvagens. Muitos cavalos foram domados e alguns
homens machucados. Mas eu vivi para ver o dia em que, com a mudança de
acampamento conforme as estações de caça, até os nossos bebês eram
transportados em cestas de tramas de salgueiro no dorso dos cavalos que
carregavam nossas bagagens.
Eu, quando jovem, tive minha visão, sonhei meu sonho; Selpa, a mulher,
manteve-me longe daquele desejo distante. Mas Othar, a semente de nós dois a
viver depois de nós, vislumbrou minha visão e conquistou-a, e assim nossa tribo
enriqueceu com as caçadas.
Houve uma mulher na grande migração da Europa — uma exaustiva migração
de muitas gerações, quando trouxemos para a Índia o gado de chifre curto e o
plantio da cevada. Mas essa mulher existiu muito antes de chegarmos à índia.
Estávamos ainda em meio àquela migração de muitos séculos e nenhum
conhecimento de geografia pode agora localizar pa-ra mim aquele antigo vale.
A mulher era Nuhila. O vale era estreito e curto; seu solo inclinado e as paredes
íngremes que o ladeavam foram cortados em patamares para o cultivo do arroz
e do painço — o primeiro arroz e painço que nós, os Filhos das Montanhas,
conhecemos. Os habitantes daquele vale eram um povo pacato. Eles se
amansaram com o cultivo da terra fértil tomada ainda mais fértil pela água. Foi
deles a primeira irrigação que conhecemos, embora pouco tempo tivéssemos
para notar os diques e canais que faziam a água da montanha fluir para os
campos que eles construíram. Pouco tempo tivemos para notar essas coisas
porque nós, os Filhos das Montanhas, que éramos poucos, fugíamos dos Filhos do
Nariz Chato, que eram muitos. Nós os chamávamos Filhos do Nariz Chato e eles
chamavam a si mesmos Filhos da Águia. Mas eles eram muitos e fugimos deles
com nosso gado de chifre curto, nossas cabras, nossas sementes de cevada e
nossas mulheres e crianças.
Enquanto os Filhos do Nariz Chato massacravam os nossos jovens à nossa
retaguarda, massacramos à nossa frente o povo do vale que se opunha a nós e
que era fraco. A aldeia era construída de barro e coberta de palha; o muro que a
rodeava era de barro, mas bem alto. E quando massacramos o povo que havia
construído o muro e abrigamos dentro dele nossos rebanhos e nossas mulheres e
criança subimos no muro e gritamos insultos aos Filhos do Nariz Chato. Pois
tínhamos encontrado as cisternas de barro cheias de arroz e painço. Nosso gado
podia comer as palhas. E como a estação das chuvas estava próxima, não
teríamos falta de água.
Foi um cerco longo. Para começar, arrebanhamos as mulheres, velhos e
crianças que não tínhamos massacrado e os empurramos para fora do muro que
eles um dia construíram. Mas os Filhos do Nariz Chato os massacraram todos;
sobrou mais comida na aldeia para nós e mais comida no vale para os Filhos do
Nariz Chato.
Foi um cerco longo e cansativo. As doenças nos atacavam e morríamos com a
peste que subia da cova dos nossos mortos. Acabamos com o arroz e o painço das
cisternas de barro. Nossas cabras e nossos bois comeram a palha do teto das
casas; e nós, antes do fim, comemos as cabras e os bois.
Onde antes havia cinco homens no muro, chegou o tempo em que havia apenas
um; onde antes havia meio milhar de bebês e crianças, não havia mais nenhuma.
Foi Nuhila, minha mulher, que cortou seu cabelo e o enrolou para que eu tivesse
uma corda forte para o meu arco; as outras mulheres a imitaram. E quando o
muro era atacado, nossas mulheres lutavam ombro a ombro conosco, no meio de
nossas lanças e flechas, jogando peuras e cacos de louça na cabeça dos Filhos do
Nariz Chato.
Até os pacientes Filhos do Nariz Chato já estavam impacientes. Chegou uma hora
em que, de dez homens nossos, só havia um vivo no muro e de nossas mulheres
restavam muito poucas, e os Filhos do Nariz Chato pediram trégua. Disseram-nos
que éramos uma raça forte e que nossas mulheres geravam homens e que, se os
deixássemos ficar com nossas mulheres, eles nos deixariam em paz no vale e nós
poderíamos conseguir mulheres no vale mais ao sul.
E Nuhila disse não. E as outras mulheres disseram não. E zombamos dos Filhos
do Nariz Chato e lhes perguntamos se estavam cansados de lutar. E enquanto
zombávamos dos nossos inimigos, já estávamos quase mortos e tão fracos que
pouca combatividade nos restava. Mais um ataque ao muro acabaria conosco.
Sabíamos disso. Nossas mulheres sabiam disso. E Nuhila disse que podíamos
adiantar o fim e enganar os Filhos do Nariz Chato. E todas as nossas mulheres
concordaram. E enquanto os Filhos do Nariz Chato se preparavam para o ataque
que seria o último, matamos nossas mulheres. Nuhila me amava e inclinou-se
para receber o golpe da minha espada, ali no muro. E nós, homens, com amor
tribal, matamos uns aos outros até que só Horda e eu ficamos vivos no meio do
sangue do massacre. Horda era mais velho e inclinei-me diante de sua espada.
Mas não morri de imediato. Eu fui o último dos Filhos das Montanhas, pois vi
Horda atirar-se sobre sua espada e morrer rapidamente. E morrendo, com o
clamor do ataque dos Filhos do Nariz Chato cada vez mais vagos em meus
ouvidos, fiquei feliz em saber que os Filhos do Nariz Chato não teriam filhos
gerados por nossas mulheres.
Não sei quando foi esse tempo em que fui um Filho das Montanhas e morri no
vale estreito onde tínhamos massacrado os Filhos do Arroz e do Painço. Não sei,
só sei que foi séculos antes que a grande migração de todos nós. Filhos das
Montanhas, chegasse à Índia; só sei que foi muito antes que eu fosse um
governante ariano no antigo Egito, construindo minhas duas sepulturas e
profanando as tumbas de reis que governaram antes de mim.
Eu gostaria de falar mais daqueles dias distantes, mas o tempo nos dias presentes
é curto. Logo morrerei. Mas fico triste por não poder contar mais sobre aquelas
migrações primitivas, quando os povos se combatiam pelo domínio das terras,
calotas polares deslizavam e a caça fugia.
E eu também gostaria de falar do Mistério. Pois sempre tivemos curiosidade de
descobrir os segredos da vida, da morte e da decomposição. Ao contrário dos
outros animais, o homem sempre olhou para as estrelas. Criou muitos deuses à
sua própria imagem e à imagem das suas fantasias. Naqueles tempos remotos,
eu adorei o sol e as trevas. Adorei o grão debulhado, como o doador da vida.
Adorei Sar, a Deusa do Milho. E adorei os deuses do mar, do rio e dos peixes.
Sim, e lembro Ishtar antes que ela fosse roubada de nós pelos babilônios; Ea
também era nossa, a senhora suprema dos Infernos que permitiu a Ishtar
conquistar a morte. Também Mitra foi um bom e velho deus ariano, antes de ser
roubado de nós ou ser por nós esquecido. E lembro uma vez, muito depois
daquela migração em que trouxemos a cevada para a índia, em que cheguei à
Índia como um mercador de cavalos com muitos servos e uma longa caravana
às minhas costas e eles, naquela época, cultuavam Bodhisattva.
Na verdade, os cultos do Mistério acompanhavam as andanças dos homens e,
entre furtos e empréstimos, os deuses peregrinaram tanto quanto nós. Assim
como os sumérios tomaram de nós Shamashnapishtin, nós, os Filhos de Sem,
tomamos Sem dos sumérios e o chamamos Noé.
Eu, Darrell Standing, hoje sorrio para mim mesmo no Corredor da Morte por ter
sido considerado culpado e condenado à morte por doze jurados respeitáveis e
honestos. Doze sempre foi um número mágico do Mistério. Mas esse número não
se originou nas doze tribos de Israel. Antes delas, já os contempladores de
estrelas colocaram nos céus os doze signos do Zodíaco. E lembro que, quando fui
u m aesir e depois um vanir, Odin sentava-se para julgar os homens numa
assembléia de doze deuses e seus nomes eram Tor, Baldur, Njrd, Frey a, Ty r,
Brogi, Heimdall, Hdr, Vidar, Ull, Forseti e Loki.
Até mesmo nossas valquírias nos foram roubadas e transformadas em anjos e as
asas dos cavalos das valquírias se prenderam aos ombros dos anjos. E o nosso
Helheim daquela época de gelo e frio tomou-se o inferno de hoje, que é uma
morada tão quente que o sangue ferve em nossas veias; enquanto o nosso
Helheim era tão frio que o tutano se congelava dentro dos nossos ossos. E o
próprio céu, que sonhávamos permanente e eterno, girou e se alterou; hoje
encontramos o Escorpião no lugar onde antigamente tínhamos a Cabra, e o
Arqueiro no lugar do Caranguejo.
Cultos e cultos! Sempre a busca do Mistério! Lembro o deus coxo dos gregos, o
mestre-ferreiro. Mas Vulcano era o germânico Wieland, o ferreiro capturado e
ferido na perna por Nidung, o rei dos Nids. E antes ele foi o nosso mestre-
ferreiro, o nosso mestre da forja e do martelo, a quem chamávamos Il-marinen.
E ele foi gerado pela nossa fantasia que lhe deu o barbudo deus-sol como pai e o
fez ser educado pelas estrelas da Ursa. Pois ele, Vulcano ou Hefestos ou Wieland
ou Il-marinen, nasceu sob o Pinheiro, do pêlo do Lobo, e foi chamado Pai do
Urso antes mesmo que os germânicos e os gregos o roubassem e o cultuassem.
Naqueles dias, chamávamos a nós mesmos Filhos do Urso e Filhos do Lobo, e o
Urso e o Lobo eram nossos totens. Isso foi antes da nossa fuga para o sul, quando
nos unimos aos Filhos do Bosque e lhes ensinamos nossos totens e nossas lendas.
Sim, e quem foi Kashy apa, quem foi Puru-ravas, senão nosso mestre-ferreiro
coxo, nosso mestre do ferro, levado por nós em nossas andanças e rebatizado e
adorado pelos habitantes do sul e do leste, os Filhos da Estaca, os Filhos da Chama
e os Filhos do Archote?
Mas a lenda é demasiado longa, embora eu quisesse falar sobre a Planta da Vida,
de três folhas, com a qual Sigmund fez Sinfioti viver novamente. Pois ela é a
Soma da Índia, o Santo Graal do Rei Arthur, o... mas chega, chega!
E enquanto penso tranqüilamente nisso tudo, chego à conclusão de que a maior
coisa na vida, em todas as vidas, para mim e para todos os homens, foi a mulher,
é a mulher e será a mulher, enquanto as estrelas vagarem pelos céus e os céus
fluírem em eterna mutação. Maior que nosso trabalho e esforço, maior que o
jogo da invenção e da fantasia, maior que as batalhas, que as estrelas e o Mistério
— maior que tudo é a mulher.
Embora ela tenha cantado falsa música para mim e mantido meus pés atados ao
chão e afastado meus olhos das estrelas para voltar a fitá-la, ela, a preservadora
da vida, a mãe-terra, deu-me meus grandes dias e noites e a plenitude dos anos.
Até ao Mistério dei a imagem da mulher e, ao cartografar as estrelas, coloquei a
figura da mulher nos céus.
Todos os meus trabalhos e ferramentas me conduziam a ela; todas as minhas
visões distantes acabavam por mostrá-la. Foi para ela que fiz a chama e o
archote. Foi por ela, embora eu não o soubesse, que enterrei a estaca na cova
para pegar o velho Dente-de-Sabre, que domei o cavalo, que matei o mamute e
levei meu rebanho de renas para o sul fugindo do lençol de gelo. Por ela cultivei
o arroz selvagem e domei a cevada, o trigo e o milho.
Por ela e pela semente que viria depois e cuja imagem ela trazia, morri no topo
de árvores e sustentei longos cercos em bocas de cavernas e em muros de barro.
Por ela, escrevi os doze signos nos céus. Era ela que eu cultuava quando me
prostrei diante das dez pedras de jade e as adorei como as luas da gestação.
Sempre a mulher se inclinou para a terra, como uma perdiz cuidando de seus
pintinhos; sempre minha alma andarilha me fez fugir para os caminhos
luminosos; e sempre minhas trilhas de estrelas me fizeram voltar a ela, a figura
permanente, a mulher, a única mulher, de cujos braços eu tinha tanta
necessidade que, aninhado neles, esqueci as estrelas.
Por ela realizei odisséias, escalei montanhas, cruzei desertos; por ela liderei a
caçada e fui à frente na batalha; e por ela e para ela, transformei em canções
minhas façanhas. Todos os êxtases da vida e as rapsódias do prazer foram meus
por causa dela. E aqui, no fim, posso dizer que não conheci na vida loucura mais
doce e mais profunda do que mergulhar na glória perfumada e no esquecimento
de seus cabelos.
Uma palavra mais. Lembro-me de Dorothy ; parece que foi ontem, quando eu
ainda ensinava agronomia para os garotos das fazendas. Ela tinha 11 anos. Seu
pai era o diretor da escola. Ela era uma mulher-criança, e uma mulher, e
imaginou que me amava. E eu sorria para mim mesmo, pois meu coração
estava intocado e distante.
Mas havia a ternura do sorriso, pois nos olhos da criança eu via a mulher eterna,
a mulher de todos os tempos e aparências. Em seus olhos eu via os olhos da
minha companheira da selva, do topo das árvores, da caverna e da gruta rasa.
Em seus olhos eu via os olhos de Igar quando eu era Ushu, o Arqueiro; os olhos
de Arunga quando eu era o cultivador de arroz; os olhos de Selpa quando eu
sonhava domar o garanhão; e os olhos de Nuhila, que se inclinou para o golpe da
minha espada. Sim, havia algo em seus olhos que os tomavam os olhos de Lei-
Lei quando parti das ilhas de Raa Kook com voa sorriso nos lábios; os olhos de
Lady Om, por quarenta anos minha companheira de mendicância nas estradas e
atalhos de Chosen; o sim de Philippa, por quem morri sobre a relva na velha
França, e os olhos de minha mãe quando eu era o pequeno Jesse num círculo de
quarenta carroções nos Montes Meadows.
Ela era uma mulher-criança, mas era filha de todas as mulheres, como sua mãe
antes dela, e era a mãe de todas as mulheres que viriam depois. Era Sar, a Deusa
do Milho. Era Ishtar, que venceu a morte. Era a Rainha de Sabá e Cleópatra;
Ester e Herodíades. Era Maria mãe de Deus, Maria Madalena e Maria irmã de
Marta. E também era Marta. E ela era Brunhilde e Guinevere, Isolda e Julieta,
Heloísa e Nicolete. Sim, e Eva, Lilith, Astarté. Ela tinha 11 anos e era todas as
mulheres que já existiram, todas as mulheres que existirão.
Estou agora em minha cela, enquanto as moscas zumbem na modorrenta tarde
de verão, e sei que meu tempo é escasso. Logo eles irão me vestir a camisa sem
colarinho... Mas, aquieta-te, coração meu! O espírito é imortal. Depois das trevas
viverei novamente e haverá a mulher. O futuro contém a semente da mulher
para mim nas vidas que ainda viverei. E embora as estrelas vagueiem e os céus
enganem, permanece sempre a mulher, resplendente, eterna, a única mulher,
como eu, sob todas as minhas máscaras e desventuras, sou o único homem, seu
companheiro.
CAPITULO 22
Meu tempo é muito curto. Todo o manuscrito que escrevi foi contrabandeado em
segurança para fora da prisão. Há um homem em quem confio que conseguirá
que ele seja publicado. Não estou mais no Corredor da Morte. Estou escrevendo
estas linhas na cela da morte e a ronda da morte foi estabelecida sobre mim.
Noite e dia, sempre a ronda da morte sobre mim; e sua função paradoxal é
cuidar para que eu não morra. Preciso ser mantido vivo para a forca; caso
contrário, o público seria traído, a lei enodoada e demérito lançado sobre o
homem que hoje dirige esta prisão, pois um de seus deveres é garantir que os
condenados sejam devidamente enforcados. Muitas vezes me espanto com o
modo estranho como alguns homens ganham a vida.
Esta é a última vez que escrevo. Amanhã de manhã; a hora já está marcada. O
Governador recusou perdão ou suspensão temporária, embora a Liga contra a
Pena Capital tenha levantado um clamor na Califórnia. Os repórteres estão
reunidos, como abutres. Eu os vi, todos eles. São jovens estranhos, a maioria
deles, e o mais estranho é que eles vão ganhar o pão e a manteiga, a bebida e o
tabaco, o dinheiro do aluguel e, se forem casados, os sapatos e os livros escolares
de seus filhos, testemunhando a execução do Professor Darrell Standing e
descrevendo para o público como o Professor Darrell Standing morreu na ponta
de uma corda. Ah, bem, eles vão se sentir mais nauseados do que eu quando tudo
terminar.
Enquanto estou aqui pensando nisso tudo, com os passos do vigia da morte para lá
e para cá do lado de fora da minha gaiola e seus olhos suspeitosos sempre a me
espionar, quase me canso da eterna recorrência. Eu vivi tantas vidas. Estou
cansado da infindável batalha, da dor e da tragédia que caem sobre aqueles que
ficam nas alturas, trilham os caminhos luminosos e vagueiam entre as estrelas.
Quase espero, quando habitar novamente a forma, habitar a forma de um pacato
fazendeiro. Lembro a fazenda daquele meu sonho. Eu gostaria de me dedicar a
ela, por uma vida inteira. Ah, a minha fazenda sonhada! Meus campos de alfafa,
meu produtivo gado jersey, minhas pastagens no planalto, minhas encostas
cobertas de mato fundindo-se aos campos arados e, mais ao alto, minhas cabras
angorá comendo o mato para a lavoura!
Lá existe uma vertente, uma bacia natural bem no alto da encosta, com uma
generosa queda d'água em três lados. Eu gostaria de construir uma barragem no
quarto lado, que é bastante estreito. Com um custo irrisório de mão-de-obra, . eu
poderia represar oitenta milhões de litros de água. Vejamos: um sério problema
para a agricultura na Califórnia é o longo verão sem chuvas. Isso impede o
crescimento de colheitas de cobertura, e o solo sensível, nu, uma mera camada
de pó, tem seu húmus ressecado pelo sol. Agora, com aquela represa, eu poderia
plantar três colheitas por ano, observando a rotação adequada, e faria o solo
produzir uma abundância de adubo verde...
Acabei de suportar uma visita do diretor. Digo “suportar” deliberadamente. Ele é
bastante diferente do Diretor de San Quentin. É muito nervoso e fui obrigado a
distraí-lo. Esse é o seu primeiro enforcamento. Foi o que ele me disse. E eu,
numa desajeitada tentativa de fazer graça, não melhorei as coisas quando
observei que também era o meu primeiro enforcamento. Ele não conseguiu rir.
Ele tem uma filha no colégio e seu filho é calouro em Stanford. Ele não tem
rendimentos além do salário, a mulher é inválida e ele está preocupado porque
foi rejeitado pelos médicos da companhia de seguros como risco indesejável.
Realmente, o homem me contou quase todos os seus problemas. Se eu não
tivesse encerrado diplomaticamente a conversa, ele ainda estaria aqui me
contando o resto dos seus problemas.
Meus dois últimos anos em San Quentin foram tristes e deprimentes. Ed Morrell,
por um dos mais incríveis golpes da sorte, foi tirado da solitária e nomeado
encarregado-chefe de toda a prisão. Esse era o antigo cargo de Al Hutchins, que
garantia um suborno de três mil dólares por ano. Para minha desgraça, Jake
Oppenheimer, depois de apodrecer na solitária por tantos anos, ficou amargo
com o mundo, com tudo. Durante oito meses ele se recusou a falar até mesmo
comigo.
Na prisão, as notícias viajam. Dê o devido tempo e elas chegarão ao calabouço e
à solitária. Chegou-me a notícia, finalmente, de que Cecil Winwood, o poeta-
falsário, o alcagüete, o covarde, o dedo-duro, estava de volta por uma nova
falsificação. Você há de lembrar que foi Cecil Winwood quem inventou a
história fantástica de que eu tinha mudado o esconderijo da dinamite inexistente e
foi o responsável pelos cinco anos que passei na solitária.
Decidi matar Cecil Winwood. Veja, Morrell saiu e Oppenheimer, até a explosão
que acabou com ele, permanecia em silêncio. A solitária tomou-se monótona
para mim. Eu tinha de fazer alguma coisa. E então voltei no tempo e relembrei a
época em que fui Adam Strang e pacientemente nutri minha vingança durante
quarenta anos. Aquilo que ele fez, eu poderia fazer se conseguisse fechar minhas
mãos na garganta de Cecil Winwood.
Ninguém há de esperar que eu revele como consegui quatro limas, as quatro
pequenas limas. Mesmo emaciado como eu estava, tive de serrar quatro barras,
cada uma em dois lugares, para fazer uma abertura por onde me esgueirar. Foi o
que eu fiz. Gastei uma lima em cada barra. Isso significa dois cortes em cada
barra, e levei um mês para cada corte. Levei, portanto, oito meses abrindo meu
caminho. Infelizmente quebrei minha última lima na última barra e tive de
esperar três meses até poder conseguir outra. Mas consegui, e saí.
Lamento muito não ter apanhado Cecil Winwood. Calculei tudo muito bem,
exceto uma coisa. A chance certa de encontrar Winwood seria no refeitório na
hora do almoço. Assim, esperei até que Pie-Face Jones, o guarda dorminhoco,
estivesse no turno do meio-dia. Naquela época eu era o único inquilino da
solitária e Pie-Face Jones logo estava roncando. Removi as barras, esgueirei-me
para fora, passei por ele ao longo do corredor, abri a porta e me vi livre... para o
pátio da prisão.
E aqui estava a única coisa que eu não tinha calculado — eu mesmo. Passei
cinco anos na solitária. Estava incrivelmente fraco. Pesava 40 quilos. Estava
quase cego. E fui imediatamente atacado de agorafobia. Fiquei amedrontado
com o espaço aberto. Cinco anos dentro de paredes estreitas me tornaram
incapaz de enfrentar a enorme escadaria e a amplitude do pátio da prisão.
Considero a descida daquela escada a façanha mais heróica que já realizei. O
pátio estava deserto. O sol forte brilhava sobre ele. Três vezes tentei cruzá-lo.
Mas meus sentidos vacilaram e me encolhi contra a parede em busca de
proteção. Tentei de novo, reunindo toda a minha coragem. Mas meus pobres
olhos lacrimejantes, como os olhos de um morcego, me assustaram com a
minha sombra sobre as pedras. Tentei evitar minha própria sombra, tropecei, caí
sobre ela e, como um homem que se afoga luta para chegar à praia, engatinhei
sobre as mãos e os joelhos até o muro.
Encostei-me ao muro e chorei. Era a primeira vez em muitos anos que eu
chorava. Lembro de ter notado, mesmo em minha situação crítica, o calor das
lágrimas em meu rosto e o gosto salgado quando elas chegaram aos meus lábios.
E então senti calafrios e tremi como se tivesse malária. Abandonando a vastidão
do meio do pátio como uma façanha impossível para alguém no meu estado,
ainda tremendo e me apoiando com as mãos à parede protetora, comecei a
contornar o pátio.
Foi então que, de algum lugar, o guarda Thurston me viu. Eu o vi, distorcido pelas
lágrimas, um monstro imenso e forte a avançar sobre mim, com incrível
velocidade, de uma distância remota. Talvez, naquele momento, ele estivesse a
uns seis metros de distância. Ele pesava 80 quilos. E fácil imaginar a luta que
travamos, mas foi alegado que, em algum momento daquela breve luta, eu o
golpeei no nariz e fiz seu nariz sangrar.
Enfim, sendo um condenado à prisão perpétua e como a lei da Califórnia dizia
que a penalidade para uma agressão cometida por um condenado à prisão
perpétua era a morte, fui julgado culpado por um júri que não poderia ignorar o
testemunho do guarda Thurston e dos outros carrascos da prisão e sentenciado
por um juiz que não poderia ignorar a lei expressa com tanta clareza nos livros de
leis.
Por todo o percurso de volta à cela, subindo aquela imensa escadaria, fui
espancado, chutado, socado e esmurrado pelo guarda Thurston e por uma
multidão de encarregados e guardas que se atropelavam na ânsia de ajudá-lo.
Céus, se é que seu nariz sangrou, o mais provável é que alguém de sua própria
laia o tenha golpeado no meio daquela confusão! Eu não ligaria se o responsável
fosse eu, só que é um motivo tão deprimente para se enforcar um homem...
Acabei de conversar com o homem no turno da minha ronda da morte. Há
pouco menos de um ano Jake Oppenheimer ocupou esta mesma cela da morte
no caminho do cadafalso que eu trilharei amanhã. Este homem foi um dos vigias
da morte de Jake. Ele é um velho soldado. Vive mascando tabaco com desleixo e
os fios grisalhos de sua barba e bigode estão manchados de amarelo. Ele é um
viúvo, com quatorze filhos vivos, todos casados, e é avô de trinta e um netos vivos
e bisavô de quatro bebês do sexo feminino. Extrair essas informações dele foi
como arrancar um dente. Ele é um velho excêntrico, esquisitão, com um baixo
nível de inteligência. Imagino que é por isso que viveu tanto tempo e teve uma
prole tão numerosa. Sua mente deve ter-se cristalizado há uns trinta anos.
Nenhuma de suas idéias é posterior àquela época. É raro que ele me diga mais
que “sim” e “não”. Não por ser grosseiro. É que ele não tem idéias a expressar.
Não sei, mas quando eu viver novamente talvez uma encarnação como a dele
pudesse ser uma tranqüila existência vegetativa onde eu descansaria antes de
voltar a peregrinar entre as estrelas...
Mas, de volta. Preciso de umas linhas para falar do infinito alívio da minha cela
estreita — depois de ser espancado, empurrado, chutado e arrastado todo o
percurso por Thurston e os outros cães da prisão — quando me encontrei de volta
à solitária. Minha cela era tão segura, tão protetora. Senti-me como a criança
perdida que volta para casa. Amei aquelas paredes que eu tanto tinha odiado por
cinco anos. Aquelas boas e sólidas paredes, tão próximas das minhas mãos,
impediam que a vastidão do espaço se lançasse sobre mim, como um monstro. A
agorafobia é uma doença terrível. Tive pouca chance de experimentá-la, mas,
pelo pouco que vi, só posso concluir que ser enforcado é bem mais fácil...
Acabei de dar uma boa gargalhada. O médico da prisão, um senhor simpático,
esteve aqui conversando comigo e, como quem não quer nada, ofereceu-me
seus préstimos com as drogas. É claro que recusei sua oferta de “encher-me” de
morfina durante a noite para que, de manhã, quando marchasse para o
cadafalso, eu não soubesse se estava “indo ou vindo”.
Mas, a risada. Foi típico do Jake Oppenheimer. Posso até ver sua sutil ironia ao
lançar aos repórteres aquele disparate deliberado, que eles imaginaram
involuntário. Consta que em sua última manhã, café tomado e já com a camisa
sem colarinho, os repórteres, reunidos em sua cela para suas últimas palavras,
perguntaram sua opinião sobre a pena capital.
Céus, quem me diz que temos mais do que um tênue verniz de civilização
pincelado sobre nossa crua selvageria, se um grupo de homens vivos é capaz de
fazer tal pergunta a um homem que está para morrer e que eles vão ver
morrer?!
Mas Jake sempre foi um espírito firme.
— Senhores — disse ele. — Espero viver pra ver o dia em que a pena capital
seja abolida.
Eu vivi muitas vidas através de longas eras. O homem, o indivíduo, não fez
nenhum progresso moral nos últimos dez mil anos. Eu o afirmo com absoluta
certeza. A diferença entre o potro selvagem e o paciente cavalo de carga é
apenas uma diferença de treinamento. O treinamento é a única diferença moral
entre o homem de hoje e o homem de dez mil anos atrás. Sob a fina casca de
moralidade que poliu sobre si, ele é o mesmo selvagem que era há dez mil anos.
A moralidade é um capital social que se ampliou gradualmente através de longas
e dolorosas eras. A criança recém-nascida se tomará um selvagem a menos que
seja treinada e polida pela moralidade abstrata que foi se acumulando por tão
longo tempo.
“Não matarás” — bolas! Eles vão me matar amanhã de manhã. “Não matarás”
— bolas! Os estaleiros de todos os países civilizados estão hoje lançando ao mar
as quilhas de encouraçados e super-encouraçados. Querido amigo, eu que vou
morrer vos saúdo... com um “bolas!”
Eu lhe pergunto: a moralidade pregada hoje é superior à moralidade pregada por
Cristo, Buda, Sócrates e Platão, Confúcio e quem quer que seja o autor do
“Mahabharata”? Meu bom Deus, há cinqüenta mil anos, em nossas famílias
totêmicas, nossas mulheres eram mais limpas e nossas relações familiares e
grupais muito mais corretas!
Preciso dizer que a moralidade que praticávamos naqueles dias remotos era uma
moralidade superior àquela praticada hoje. Não, não afaste essa idéia assim tão
depressa. Pense no nosso trabalho infantil, no suborno da nossa polícia e na nossa
corrupção política, na nossa adulteração dos ali-mentos e na nossa escravização
das filhas dos pobres. Quando fui um Filho das Montanhas e um Filho do Touro, a
prostituição não tinha qualquer significado. Éramos limpos, eu lhe garanto. Nem
sonhávamos com tais abismos de depravação. Sim, e todos os animais inferiores
também são limpos. Foi preciso o homem, com sua imaginação, ajudada por seu
domínio da matéria, para inventar os pecados mortais. Os animais inferiores, os
outros animais, são incapazes de pecar.
Lanço um olhar apressado pelas muitas vidas nos muitos tempos e lugares.
Nunca conheci crueldade mais terrível, nem tão terrível, como a crueldade do
nosso sistema penal de hoje. Eu lhe contei o que suportei na camisa-de-força e
na solitária na primeira década deste vigésimo século depois de Cristo. Naqueles
tempos remotos, puníamos drasticamente e matávamos rapidamente. Assim
fazíamos porque esse era o nosso desejo — ou o nosso capricho, se você preferir.
Mas não éramos hipócritas. Não convocávamos a imprensa, o púlpito e a
universidade para sancionar nossa sede de selvageria. Aquilo que queríamos
fazer, fazíamos de pé, como homens, e de pé, como homens, enfrentávamos a
reprovação e censura; não nos escondíamos por trás das saias de economistas
clássicos e filósofos burgueses, nem por trás das saias de pregadores, professores
e editores subvencionados pelo dinheiro público.
Ora, pelo amor de Deus! Há cem anos, há cinqüenta anos, há cinco anos, nestes
Estados Unidos da América, ataque e agressão não eram um crime capital. Mas
neste ano, no Ano de Nosso Senhor de 1913, no Estado da Califórnia, eles
enforcaram Jake Oppenheimer por esse crime e, amanhã, pelo crime capital de
bater no nariz de um homem, eles vão me levar e me enforcar. Pergunta: quanto
tempo eles levariam para fazer morrer o macaco e o tigre se tal lei fosse
decretada pelos livros da lei da Califórnia no ano de 1913 da Era Cristã? Senhor,
Senhor! Cristo eles apenas crucificaram! Fizeram muito pior para Jake
Oppenheimer e para mim...
Ed Morrell uma vez me disse com as batidas dos nós de seus dedos: “O pior uso
possível que se pode fazer de um homem é enforcá-lo.” Eu, eu não tenho
respeito pela pena capital. Ela não é apenas um jogo sujo e degradante para os
carrascos que a executam pessoalmente por dinheiro; ela é degradante para a
comunidade que a tolera, que vota por ela e que paga os impostos para sua
manutenção. A pena capital é tão tola, tão estúpida, tão horrivelmente não-
científica. “Ser pendurado pelo pescoço até morrer” é a bela fraseologia da
sociedade...
A manhã chegou—minha última manhã. Dormi como um bebê a noite toda.
Dormi em tanta paz que o vigia da morte se assustou. Ele pensou que eu tinha me
sufocado nos cobertores. O susto do pobre homem me causou pena. Seu pão e
manteiga estavam em jogo. Se tivesse realmente acontecido, teria significado
uma nódoa em sua ficha, talvez a demissão — e as perspectivas de um homem
desempregado são amargas hoje em dia. Contaram-me que a Europa começou
a falir há dois anos e, agora, os Estados Unidos. Isso pode significar uma crise nos
negócios ou um pânico silencioso, e que os exércitos dos desempregados serão
maiores no próximo inverno e as filas do pão mais longas...
Tomei meu café da manhã. Parecia tolice, mas tomei-o com apetite. O diretor
apareceu com uma garrafa de uísque. Enviei-a para o Corredor da Morte, com
meus cumprimentos. O diretor, coitado, receia que se eu não estiver bêbado
posso arruinar o espetáculo e desmoralizar sua administração...
Vestiram-me a camisa sem colarinho...
Parece que sou um homem muito importante hoje. Muitas pessoas parecem
repentinamente interessadas em mim...
O médico acabou de sair. Ele me tomou o pulso. Perguntei-lhe como estava.
Normal...
Escrevo esses pensamentos aleatórios e, uma de cada vez, as folhas partem em
sua rota secreta para além dos muros...
Sou o homem mais calmo na prisão. Sou como uma criança que está para partir
numa viagem. Estou ansioso para partir, curioso pelos novos lugares que verei.
Esse medo da morte menor é ridículo para quem já esteve tantas vezes nas
trevas e viveu novamente...
O diretor com uma garrafa de champanhe. Despachei-a para o Corredor da
Morte. Estranho, não é? Como recebo tanta consideração neste último dia. Deve
ser porque esses homens que vão me matar estão com medo da morte. Para
citar Jake Oppenheimer: eu, que vou morrer, devo parecer-lhes algo “terrível”...
Ed Morrell acabou de me mandar uma mensagem. Disseram-me que ele passou
toda a noite caminhando para cima e para baixo, do lado de fora dos muros da
prisão. Sendo um ex-presidiário, eles o proibiram de me ver para dizer adeus.
Selvagens? Não sei. Talvez apenas crianças. Posso apostar que muitos deles terão
medo de ficar sozinhos no escuro esta noite depois de esticarem meu pescoço.
Mas, a mensagem de Ed Morrell: “Minha mão na tua mão, amigo. Sei que você
vai partir com o espírito firme”...
Os repórteres acabaram de sair. Eu os verei de novo, e pela última vez, do
cadafalso, antes que o carrasco esconda meu rosto no capuz negro. Eles
parecerão curiosamente nauseados. Estranhos jovens. Alguns deram mostra de
que estiveram a beber. Dois ou três pareciam nauseados com a expectativa
daquilo que terão de testemunhar. Parece mais fácil ser enforcado do que
assistir...
Minhas últimas linhas. Parece que estou atrasando a procissão. Minha cela está
repleta de oficiais e dignitários. Eles estão nervosos. Querem que a coisa acabe.
Sem dúvida, alguns têm compromissos para o jantar. Estou realmente à ofendê-
los ao escrever estas poucas palavras. O Pastor pediu mais uma vez para estar ao
meu lado no fim. Coitado — por que iria eu recusar-lhe tal conforto? Consenti e
ele agora parece contente. Tais coisinhas tomam felizes alguns homens! Eu até
poderia parar e gargalhar por cinco minutos, se eles não estivessem com tanta
pressa.
Aqui encerro. Posso apenas me repetir. Não existe morte.
A vida é espírito e o espírito não morre. Só a carne morre e passa, sempre
seguindo a alquimia das paixões que a tornam realidade, sempre plástica, sempre
a se cristalizar apenas para se diluir no fluxo e se cristalizar em formas novas e
diferentes, que são efêmeras e se diluirão no fluxo. Só o espírito permanece e
continua a se construir através de sucessivas e infinitas encarnações enquanto
caminha na direção da luz. O que serei quando viver novamente? Eu gostaria de
saber. Eu gostaria de saber...
FIM
{1} Finshing é uma palavra criada por Jack London; seu sentido em inglês não é
conhecido.
{2} Henids é mais uma palavra criada por Jack London; seu sentido exato, em
inglês, não é conhecido.
{3} Logo após a execução do Professor Darrel Standing, época em que o
manuscrito de suas memórias nos chegou as mãos escrevemos ao Sr. Hosea
Salsburty, Curador do Museu da Filadélfia, e, em resposta, obtivemos confirmação
da existência do remo e do livreto — OS EDITORES.