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APROFUNDAMENTO EM

MEDICINA RURAL E DE
ÁREAS ISOLADAS
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ORGANIZAÇÃO
PrepSaúde

RESPONSÁVEIS TÉCNICO-CIENTÍFICOS
Dr. Hercules de Pinho

AUTOR
Hercules de Pinho

COLABORAÇÃO PEDAGÓGICA
Mariana Alves Batista da Costa

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO


Formata Produções Editoriais
Quimera
Populações ribeirinhas
Segundo Gusso (2019), podemos compreender as populações ribeirinhas como
aquelas que vivem às margens dos rios, que tem com forma de trabalho predominantemente
uma função extrativista, agrícola e centrada na produção familiar
As populações ribeirinhas são compostas por agrupamentos familiares, de construção
simples (casas de madeiras “flutuantes” adaptadas ao fenômeno das cheias e vazantes).
São fixadas nas margens dos rios, igarapés (braços de rios ou riachos que nascem nas
matas e desaguam nos rios principais) ou igapós (mata parcialmente inundada na cheia).
Podem essas áreas estarem isoladas ou em pequenos povoados, com pouco acesso às
mídias escritas ou faladas.
As habitações ribeirinhas seguem padrões específicos:
Para Gusso 2019, os padrões de várzea alta pode ser definidos com:
....planície que margeia os rios e que está sujeita a inundações sazonais) que podem
ser altas (quando se localizam próximo ao rio) ou baixas (mais recuadas, recortadas
por igarapés e lagos temporários ou permanentes) e são do tipo “palafitas” construídas
em solo, com assoalhos suspensos; (Gusso 2019)

As habitações de várzea baixa, do tipo flutuante, permitindo acompanhar a mudança


do nível dos rios e são ancoradas com cordas que permitem flutuar durante os diferentes
níveis de vazão das águas dos rios
As habitações, de acordo com Gusso (2019) são parecidas com pequenas aldeias
ou vilas com características semelhantes as urbanas, próximas umas das outras e podem
ainda, dependendo do tamanho ter ruas e vielas, as vezes definidas.
A via fluvial é a forma de transporte dessas comunidades, são as “estradas” ou
“rodovias”, o meio de transporte pode ser as canoas ou barcos maiores, com ou sem motor
(rabetas e voadeiras) sendo usado para calcular as distâncias as horas e ou os dias definindo-
se o tempo para chegar até o destino (não se usa Km ou metros habitualmente).
Esse é um fator importante para o planejamento das ações em saúde, sobretudo em
localidades mais dispersas e isoladas.
A alimentação básica das populações ribeirinhas é o peixe e a farinha, as frutas extraídas
das florestas ou das pequenas plantações, pode haver ainda o cultivo para sustentação de feijão,
milho, mandioca, abóbora, entre outros. Os produtos industrializados são geralmente comprados
em casas flutuantes nas beiras dos rios (óleo vegetal, café, açúcar, macarrão, sal, gasolina).

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A educação fundamental pode ser a única nessas regiões e o índice de analfabetismo
é alto. Os ribeirinhos que querem continuar estudando, tem que se afastar das famílias e da
sua comunidade para ir procurar o ensino médio nas cidades.
A falta de saneamento básico é o um dos problemas sérios em relação a saúde
dessas populações ribeirinhas. Não há abastecimento de água tratada (às vezes nas sedes
dos municípios há tratamento de água). Normalmente não há destino adequado de lixo e
dejetos, que são depositados próximos as casas e rios, que acabam contaminando a água
de consumo próprio e as doenças diarreicas a parasitárias são muito frequentes.
A equipe de saúde da família que acompanha essa população ribeirinha, e de sobre
maneira o médico de família e comunidade, deve ter habilidades especificas de comunicação
e deveria estar preparado para realizar pequenos procedimentos tais como: sutura, drenagem,
retirada unha, exérese verrugas, etc. Esses procedimentos cirúrgicos, diagnósticos e
terapêuticos que nas áreas urbanas seriam referenciados para outros centros urbanos,
devem ser manejados, inclusive os procedimentos iniciais de urgências e emergência
(clínicas psiquiátricas e as cirúrgicas), pelo médico mais habilitado da localidade.

A cheia e a vazante – A dinâmica das populações ribeirinhas


e sua complexidade

A Variação no nível dos rios é que dita a dinâmica de vida das populações ribeirinhas.
No período cheia, onde pode-se alcançar uma altura de até 15 metros, em algumas regiões
da Amazônia, isso por si só pode impossibilitar as plantações de subsistência e as casas
suspensas podem ser atingidas, impedindo ou dificultando o acesso. Já os flutuantes
absorvem essas variações através de cordas e ancoras presas ao fundo ou as margens
desses rios. Com isso há grandes variações de renda, padrão de alimentação, oportunidade
de trabalho, variação na quantidade e qualidade do pescado. O saber dessa dinâmica é
essencial para a compreensão do processo de saúde e doença, podem refletir em diferenças
importantes do perfil epidemiológico, do acesso a serviço e saúde, assim como da definição
ou não do processo migratório e ou do maior ou menor isolamento geográfico.

As figuras míticas e a cultura ribeirinha

A cultura ribeirinha é muito peculiar e construída na vivencias das comunidades e


pessoas, nas suas relações e interrelações sociais e com a influência do meio ambiente
local. O conhecimento dessas tradições é perpetuado por meio das falas e cânticos, sendo

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passado de pai para filho. Portanto fruto de integração e descobertas desses grupos
populacionais e se traduz em muita riqueza e diversidade.
A floresta é o mundo do ribeirinho, onde coexistem as forças do bem e do mal, onde
se procura alimento, moradia, material para construção e casas e barcos e onde viveram
seus antepassados. Há descrito nessas populações um saber especializado exemplificado
pelos curandeiros, pajés, rezadores, benzedeiras, parteiras, que se não bem compreendidos
pelo médico de família que ali atua pode causar grandes problemas de comunicação. Muitas
vezes os próprios ribeirinhos dão o diagnostico de suas enfermidades tais como: feitiço,
rasgadura, quebranto, susto, espinhela caída, dor no pente, doença do ar etc. Portanto muito
comum e frequente ou uso da fitoterapia, pelos “terapeutas” locais.
Diante disso, é importante que o médico de família e comunidade possua informações
sobre cada planta existente na comunidade onde atua, assim como sua utilização, indicação,
parte e dose a ser usada, para que possa acompanhar com uma margem de segurança,
ressaltando o alto grau de toxicidade que muitas espécies podem trazer à saúde. Ainda há
dados insuficientes sobre a eficácia e a segurança da maioria das plantas medicinais. A
OMS recomenda a difusão mundial dos conhecimentos necessários para o uso racional
das plantas medicinais, frente a isso, o Ministério da Saúde lançou em 2009 o Programa
Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos com o objetivo de disseminar essa terapia de
forma segura. Esse programa visa incentivar a pesquisa e a eficácia, buscando a produção e
a distribuição das plantas medicinais e fitoterápicos pelo sistema de saúde.
Portanto seria importante que o médico de família e comunidade nesses locais
tivesse vasto conhecimento do modo e do uso de cada planta existente na comunidade.
Portanto “frente a isso, o Ministério da Saúde lançou em 2009 o Programa Nacional de
Plantas Medicinais e Fitoterápicos com o objetivo de disseminar essa terapia de forma
segura.” Gusso (2019).
É importante construir propostas de promoção e prevenção nessas comunidades
levando-se em conta a dinâmica da comunidade, integrando o saber teórico acadêmico com
o saber comum dos ribeirinhos.
Deve-se ter o cuidado de incentivar e reconhecer as experiencias locais e integrá-
las com criatividade e credibilidade ao saber científico o que pode aumentar a percepção
dessa comunidade sobre o grau de dedicação da equipe, sendo sempre permeado pelo
despojamento de verdades cristalizadas.

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Atenção primária e suas características em relação
às populações ribeirinhas

1. Porta de entrada: geralmente pelo nível primário de saúde (agente comunitário)


2. Acessibilidade: acesso dificultado pelos padrões fluviais de cheia e vazante que podem
ser vencidas com flexibilização de horários uso de unidade fluviais e telessaúde e da
criatividade.
3. Integralidade: geralmente as equipes de saúde são as mais econômicas e reduzidas.
Torna-se importante a criação de redes de referência e contra referência.
4. Intersetorialidade: Teoricamente existe acesso facilitado. As escolas locais de trabalho
pequenas empresas igrejas são adequadas ao trabalho intersetorial.
5. Foco na família e na comunidade: os valores tradicionais, o núcleo familiar centrado no
pai, mãe e filhos o olhar investigativo, o uso de genograma e da terapia familiar pode de
sobre maneira ajudar nas intervenções a serem praticadas pelo médico de referência.
6. Competência cultural: reconhecer e manejar os conceitos locais do processo de saúde-
doença, respeitar a autonomia das pessoas, evitar conflitos e manter uma postura não
arrogante diante desses saberes deve ser o foco do médico de família e comunidade.

Ações de saúde e suas estratégias em populações ribeirinhas:

Unidades estruturantes

1. Unidade Básica de Saúde Fluvial (UBSF): se constitui numa embarcação fluvial adaptada
para funcionar como uma unidade de saúde, havendo a necessidade do pernoite na
própria unidade para desempenhar suas funções. Composta minimamente por estrutura
física: consultório médico e de enfermagem, lugar dispensação de medicamentos, cadeira
odontológica, salas de vacina, procedimento, esterilização, expurgo, banheiro público,
banheiro para funcionários, leitos para equipe, sala de refeição, cozinha.
2. Equipamentos mínimos: geladeira, balanças, macas, armários, cadeiras. Mobiliário
voltado a procedimentos em saúde.
3. Composição mínima da equipe de saúde: Médico de família e comunidade rural
preferencialmente, dentista, enfermeiro, farmacêutico, técnico ou auxiliar enfermagem,
técnico laboratório, técnico higiene dental e até 12 ACS rurais.

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4. Núcleo Ampliado de Saúde da Família Nasf-Ab: composto minimamente, psicólogo,
nutricionista, assistente social, educador físico e fisioterapeuta.
5. Telessaúde/Telemedicina: visando à melhoria na qualidade dos atendimentos à
população, apoiando os profissionais de saúde e monitorando as endemias da região,
a Telessaúde/telemedicina surge como uma das opções para melhorar a assistência
médica, contribuindo para qualificar os profissionais. Este é um tipo de serviço emergente
que apresenta contribuições efetivas na prestação de cuidados em saúde, facilitando a
obtenção de uma segunda opinião formativa a custos acessíveis e estendendo a oferta
de serviços especializados em locais remotos, permitindo a ampliação do acesso, sem
necessidade de deslocamento. Esta é uma ferramenta necessária para complementar o
sistema de saúde às populações ribeirinhas.

Principais problemas relacionados à saúde ribeirinha.

Os principais problemas de saúde das populações ribeirinhas, como malária,


leishmaniose, hanseníase, tuberculose, arboviroses, além de infecções de transmissão
hídrica ou associadas a água como febre tifoide e gastroenterites. Sendo assim, os programas
de controle ainda não conseguiram reduzir o impacto dessas doenças sobre a saúde das
populações ribeirinhas.

Principais doenças/agravos das populações ribeirinhas

 Malária: principalmente os casos P. vivax com mais de 85% dos casos, caracterizados
com febre e calafrios. Não há geralmente o desenvolvimento de imunidade protetora
apesar da grande intensidade de transmissão. As infecções assintomáticas estão na
casa de 20 a 72%.

 Leishmaniose: Como já relatado o contato do ribeirinho com a floresta facilita o encontro


do homem com os reservatórios como os roedores e os vetores flebotomineos. As formas
predominantes são as cutâneas e o período de maior número de casos coincidem com
os períodos chuvosos, em torno de janeiro a abril com 61,5 % dos casos.

 Hanseníase: A falta do diagnostico no início da doença e provavelmente o que faz com


que as formas multibacilares sejam as predominantes. As equipes e família tem um
papel importantíssimo em diagnosticar e tratar as formais iniciais da doença.

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 Tuberculose: tem grande importância e as crenças culturais pode dificultar a abordagem.
O foco estaria no diagnostico precoce, na busca ativa, no tratamento supervisionado
e na melhoria das condições das populações ribeirinhas além da realização de exame
entre os contatos.

 Hepatites virais: “possuem alta prevalência na região Amazônica (8%), principalmente


a do tipo B(HBV). Também é mais prevalente a hepatite do tipo D, que ocorre somente
associada ao vírus B, representando 30% dos casos assintomáticos de hepatite B, 20%
das hepatites agudas e 80 a 100% das hepatites crônicas.” Gusso.

 Parasitoses intestinais: as condições socio econômicas, sanitárias, educacionais, a


contaminação do solo, das águas e dos alimentos associa-se gravemente ao aumento
de incidência de parasitismo. “.

 Exposição ao mercúrio: relacionada ao garimpo do ouro e sua dispersão ambiental


levando aos riscos de contaminação da população ribeirinha. O contato pode ser
ocupacional (garimpeiros que usam o mercúrio para separar o ouro) e os estudo
demostram alta contaminação de peixes e da população (cabelo)

 Picadas de animais peçonhentos: são mais frequentes no período da cheia onde a


terra firme passa ser o local mais comum desses animais. Os acidentes ofídicos
apresentam alta morbidade e mortalidade, sendo a espécie Bothropis a mais comum
seguida pela Lachesis.

 Acidentes com arraia: causam muita dor e o efeito do veneno pode levar a necrose no
local da ferida e posterior quadro de sequela. O tratamento habitual é lavar com água
morna, analgesia local sem vasoconstrictor, desbridamento e curativo. A profilaxia do
tétano está indicada.

 Infecções virais: as mais comuns: dengue, febre amarela, Chikungunya, Zika) outros
virus emergentes são: Mayaro, Oropuche, Rocio).

 Outros acidentes traumáticos: os traumas com piranhas, candirus, poraquê (peixe


elétrico), sucuris, jacarés são pouco relatados na Amazônia. O tratamento pode ser lavar
com água, usar antisséptico local, conter a hemorragia se houve, realizar profilaxia do
tétano. Dependendo do caso podem ser utilizados antibióticos e ou anti-inflamatórios.

Fonte: GUSSO, Gustavo; LOPES, José MC, DIAS, Lêda C, organizadores. Tratado. Adaptado pelo autor.

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Referência Bibliográfica
1. GUSSO, Gustavo; LOPES, José MC, DIAS, Lêda C, organizadores. Tratado de Medicina
de Família e Comunidade: Princípios, Formação e Prática. Porto Alegre: ARTMED, 2019,
2388.

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