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Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 185-193, jan./jun. 2003 185
Sucesso e fracasso escolar: uma trajetória escolar marcada pela repetência,
uma questão de gênero pela evasão, que vão e voltam ao sistema de
ensino e não conseguem se apropriar da ferra-
Gostaria de partir de algumas informa- menta da leitura e escrita. Esse é um indicador
ções sobre as diferenças de desempenho esco- muito forte de que a escola está fracassando
lar entre meninos e meninas no Brasil. Em re- perante um grupo grande de jovens e este gru-
lação aos anos médios de estudo (gráfico 1), os po concentra uma maioria de pessoas do sexo
homens tinham, em 1960, menos de três anos masculino.
de escolaridade média e as mulheres, menos de
Gráfico 2. Taxas de analfabetismo por idade e sexo, Brasil, 1995
dois anos, o que significa que o acesso à es-
cola era em geral muito baixo e ainda pior para
as mulheres. Ao longo dos últimos 40 anos, as-
sistimos a uma ampliação muito grande do
acesso à escola: as médias nacionais hoje es-
tão em torno de seis anos de escolaridade, mas
ao mesmo tempo, ocorreu uma inversão entre
os grupos por sexo indicando que as mulheres
foram as maiores beneficiadas.
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Gráfico 3. Índice de defasagem entre série e idade adequada, de quem está tendo problemas na escola. Não
Brasil - 1996
há informações em nível macro sobre aquelas
crianças que estão sendo indicadas para aulas de
reforço, quando elas existem, ou aquelas que
estão recebendo conceitos negativos como “in-
suficiente” ou “insatisfatório”. Esse tipo de infor-
mação circula apenas no âmbito da escola e às
vezes só da professora, que decide quem ela vai
atender no reforço ou não. Isso tem gerado, para
a pesquisa, uma dificuldade em estabelecer
quem hoje enfrenta problemas no seu percurso
escolar, particularmente porque sabemos que em
muitas redes de ensino a pressão é muito gran-
de para que não se atribuam conceitos negati-
vos, para que não se retenha ninguém ao final
do ciclo, ou só um número muito pequeno — e
às vezes predeterminado — de alunos por clas-
se (Carvalho, 2001a).
As questões que apresento a seguir
decorrem de um esforço que venho fazendo
desde 1999, angustiada com essas informações
sobre o fracasso escolar maior entre os meni-
nos e com o fato de esse debate não ter se-
aos cursos de formação de professores, aos qüência. Tenho buscado, de um lado, conhe-
formuladores de políticas educacionais e mes- cer as discussões que vêm ocorrendo fora do
mo às pesquisas acadêmicas. Como resultado, Brasil e que estão muito mais avançadas, com
nós sabemos muito pouco sobre como se cons- grande repercussão na mídia e nas pesquisas
troem esses processos, como explicar essas si- acadêmicas, tanto nos países de língua ingle-
tuações. sa como na França. E de outro lado, procuro
Devemos considerar que esses dados são conhecer um pouco a realidade em algumas
todos muito gerais e que, para serem efetiva- escolas: trabalho com pesquisas qualitativas,
mente entendidos, precisariam ser divididos por permanecendo na escola por períodos longos,
regiões do país, por área urbana e rural, por fazendo entrevistas com alunos, alunas e pro-
classe, raça/cor e etnia dos alunos e alunas, para fessoras, observações em salas de aula, etc.
que pudéssemos perceber quais são os grupos Nessas investigações tenho trabalhado com
mais atingidos pelas dificuldades escolares. aquelas avaliações que ocorrem no cotidiano da
E mais, hoje é preciso utilizar outros escola, feitas pelas professoras — e falo profes-
indicadores, devido às políticas de melhoria do soras porque estudo principalmente o ensino
fluxo escolar (ciclos, promoção automática e as de 1a à 4a série, no qual são mulheres mais de
diferentes formas de combate à repetência e 95% dos profissionais. Sem dúvida há uma
atraso escolar que se espalham pelo país). outra investigação a ser feita, sobre o desem-
Essas políticas trouxeram, sem dúvida, um sal- penho por sexo em testes padronizados como
do positivo ao garantir uma maior permanên- Saeb (Sistema nacional de Avaliação do Ensino
cia das crianças e jovens na escola, mas ante a Básico) ou o Enem (Exame Nacional do Ensino
elas a defasagem entre série e idade esperada Médio), estudos que certamente também pode-
e o abandono escolar já não são boas medidas rão indicar elementos importantes. É preciso ter
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clareza de que a avaliação levada a efeito den- as quais me deparo freqüentemente, tanto nas
tro da escola não é o mesmo que desempenho conversas nas escolas quanto em algumas pes-
em testes e, ao mesmo tempo, não é o mesmo quisas que já foram feitas no Brasil, a fim de
que aquisição de conhecimento. Essas três coi- pensarmos um pouco sobre cada uma delas,
sas têm pontos em comum, mas não necessa- como são insuficientes para dar conta desse
riamente indicam que as meninas aprendem quadro.
mais do que os meninos pelo fato de recebe- No Brasil, quando vemos que os meni-
rem conceitos melhores. Meu foco é exatamen- nos têm maior atraso escolar, há mais rapazes
te discutir qual é o processo de avaliação que analfabetos, a primeira tendência é atribuir isso
está sendo feito pelas professoras e o que está ao trabalho infantil. Dados da OIT indicam que,
sendo levado em conta nessa avaliação. num total de 2,9 milhões de crianças entre 5 e
E minha aprendizagem tem sido que, 14 anos trabalhando no país, dois terços são
com a substituição do sistema antigo (basea- rapazes, concentrados na faixa acima de 14
do na repetência e na avaliação por provas) anos e majoritariamente envolvidos no trabalho
pelo sistema de ciclos, sem uma discussão, agrícola. A maioria desses trabalhadores são do
sem uma melhoria nas condições de trabalho sexo masculino, então deve ser por isso que os
na escola, sem um espaço de formação con- meninos vão mal na escola. Será? Em primeiro
tínua, muitas vezes o que tem acontecido é a lugar é preciso levar em conta que essas esta-
diluição completa dos critérios de avaliação e tísticas são extremamente precárias, muito pou-
a dependência mais acentuada desses critérios co se conhece sobre trabalho infantil no Brasil,
perante a subjetividade, o repertório que a que é um trabalho muitas vezes informal e, em
professora já dispunha antes e sobre o qual ela sua maioria, ilegal. Pensem por exemplo nas
não tem um espaço coletivo para refletir e cri- formas de trabalho dentro dos domicílios, seja
ticar. Estamos todos imersos numa sociedade as meninas e moças empregadas como domés-
que tem profundas desigualdades de raça, ticas, seja o trabalho na agricultura ou nos
classe e gênero, estamos marcados por essas negócios familiares.
desigualdades e, à medida que não encontra- Em segundo lugar, esses números não
mos espaços coletivos para rever nossos con- captam o trabalho doméstico não-remunerado,
ceitos, é claro que a tendência será lançar a participação das meninas nas tarefas domés-
mão, na avaliação de nossos alunos e alunas, ticas na sua própria casa. Isso não aparece
daquilo que aprendemos em nossa própria so- como participação no trabalho infantil e é
cialização. E acho que isso tem marcado ain- muito interessante pararmos para pensar que
da mais os processos de avaliação agora, no não sabemos exatamente quais são as suas
contexto do ensino por ciclos. conseqüências para a escolarização das meni-
nas. Na literatura já existente, é possível encon-
Três explicações freqüentes trar hipóteses totalmente opostas: de um lado
a afirmação de que o trabalho doméstico difi-
O que apresento a seguir é uma tenta- cultaria o desempenho das meninas na escola,
tiva de mapear algumas questões, pois apesar pois é trabalho duro que toma tempo e impe-
de estar há alguns anos trabalhando com esse de a realização de lições de casa, obriga a fal-
tema, percebo que se trata de um campo com- tar para cuidar do irmão mais novo, etc. Ao
plexo, exigente e comprometido ideologica- mesmo tempo, hipóteses opostas afirmam que
mente. Não tenho a pretensão de fazer suges- a flexibilidade do trabalho doméstico permiti-
tões, de dar alguma indicação mais concreta, ria que as meninas permanecessem estudando,
mas apenas de apontar elementos para uma apesar de assumir essas tarefas em parte do dia,
reflexão inicial. Pensei em três explicações com pois no outro horário estariam na escola. E
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masculinidade fechado, estereotipado, mas na sua confinadas em casa, seja pelo trabalho domés-
diversidade. tico, seja por uma educação em que a família
Essas duas explicações expostas até aqui restringe muito a circulação das meninas, pre-
— a que remete as dificuldades escolares dos sente principalmente nas camadas populares.
meninos à inserção no mercado de trabalho e a Enquanto os meninos saem para jogar futebol e
que afirma uma incompatibilidade entre os mo- empinar pipa, as meninas têm o espaço muito
delos de masculinidade aprendidos na família e as mais restrito de circulação e brincadeira e por
exigências escolares — têm um outro problema, isso elas teriam uma visão mais positiva da es-
uma coisa muito comum entre nós, professoras: cola, como um espaço de socialização e até de
ou a dificuldade está no trabalho ou está na fa- lazer (Heilborn, 1997; Madeira, 1997), ao mes-
mília, ela nunca está na escola. Com esse tipo de mo tempo que mais igualitário, um lugar em
explicação a gente se exime da culpa, mas a que seria possível conviver com os meninos e ter
gente também não pode fazer nada, o menino algum tipo de igualdade de tratamento, diferen-
tem que trabalhar e vai mal na escola e ponto temente da família.3 Ou ainda se busca afirmar
final. O menino é agressivo porque a família en- uma percepção das mulheres de que a escolari-
sina a ser assim, e as meninas são obedientes e dade é fundamental para sua inserção no mer-
passivas porque já chegam assim na escola. Não cado de trabalho, particularmente para uma in-
se cria um espaço para refletir sobre qual é a serção mais qualificada, pois sabemos que o
responsabilidade da escola nessa conversa: no mercado de trabalho é muito mais exigente com
que a nossa própria atitude como educadoras, as mulheres e é claro que, a sua maneira, as mo-
como educadores, as relações entre as crianças na ças e os rapazes estão percebendo isto.
sala de aula, no pátio de recreio, no que tudo Sem dúvida, essa explicação também
isso contribui para a formação desses modelos de pode dar conta de uma parte da realidade, mas
feminilidade e de masculinidade diversificados. É se arrisca a fazer simplesmente o inverso da ex-
claro que isso está o tempo todo em construção. plicação anterior. Saímos de um estereótipo ne-
Está em construção para nós, adultos, quanto gativo da feminilidade, de uma idéia de mulhe-
mais para as crianças. Não vem pronto de casa, res simplesmente passivas e obedientes, para um
ao contrário, está sendo elaborado na escola tam- estereótipo positivo. O estereótipo sempre
bém. Por exemplo, a relação entre ser masculino homogeneíza tudo, polariza, não permite uma
ou feminino com ter um caderno bonito, ter uma percepção mais nuançada da realidade. Talvez
nota boa não foi aprendida em casa, são elemen- esta hipótese explique alguns dos movimentos
tos escolares. Em que medida nossa própria ati- positivos que mães de crianças do sexo femini-
tude está participando nessa construção? Acho no e alunas têm feito em relação à escola, mas
que é esse ponto que devemos nos colocar, para acho que também é insuficiente. Na minha opi-
não atribuir sempre a responsabilidade às outras nião devemos levar muito a sério as críticas de
instituições e tirar ao mesmo tempo a nossa cul- uma socióloga francesa chamada Marie Durut-
pa e o nosso poder de transformação, para não Bellat (1994), que aponta o risco desse tipo de
nos deixar impotentes. explicação que vimos desenvolvendo até aqui
Em terceiro lugar, queria mencionar uma estar mais baseado em idéias e posicionamentos
explicação presente também em alguns estudos a priori — a valorização ou desvalorização pré-
brasileiros e internacionais. É um raciocínio que via da feminilidade e da ação dos sujeitos —, do
procura inverter essa explicação baseada na pas- que em conclusões possíveis de deduzir daqui-
sividade das mulheres, na idéia de que as meninas lo que foi observado e pesquisado.
seriam mais adaptadas à escola pela passividade e
obediência. Algumas autoras brasileiras partiram 3. Fúlvia Rosemberg (1990) desenvolveu essa idéia a partir de uma
daquela constatação de que as meninas ficam sugestão de Mariano Enguita.
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Nós mesmas valorizamos as características so- tempo todo de determinadas formas de masculi-
cialmente articuladas à feminilidade, como a nidade. Essas masculinidades fazem parte da tra-
intuição, o cuidado, o envolvimento emocional jetória de um grupo significativo dos nossos ra-
com o trabalho educativo? Como nos relaciona- pazes, principalmente aqueles que estão mais
mos com os homens professores e especialistas abaixo no conjunto das hierarquias de classe e de
de educação? Como percebemos nossa própria raça, um caminho que muitas vezes desemboca
categoria, nossas lideranças, nosso movimento em atitudes anti-escola, em fracasso escolar,
organizado? Começar a pensar sobre as nossas transgressão e, no limite, em violência social.
próprias concepções de gênero, criar espaços Acho muito estranho como conseguimos falar
coletivos para essa reflexão me parecem ser as disso sem ver que tanto as vítimas quanto os
tarefas iniciais por meio das quais podem des- autores em situações de violência são na sua
lanchar mudanças na prática. maioria rapazes, homens e que há modelos de
Caso contrário corremos o risco de, ao masculinidade envolvidos aí que, é claro, cor-
colocar a discussão do fracasso escolar dos me- respondem também a certos modelos de femini-
ninos em primeiro plano, ouvir que a culpa é exa- lidade (Zaluar, 1992). Portanto, há relações de
tamente da feminização da escola, uma explica- gênero que, se evidentemente não explicam es-
ção conservadora que às vezes aparece na im- ses fenômenos como um todo, não podem ser
prensa brasileira também, até porque ela copia e dispensadas para entendê-los. Por isso está pos-
traduz muita coisa que vem de fora. Nessa abor- ta diante de nós a tarefa de trazer a discussão de
dagem, a escola, por ter professoras mulheres, não gênero — e fundamentalmente uma discussão so-
ofereceria modelos masculinos para os meninos e bre as masculinidades — para o centro do deba-
eles, principalmente nas camadas populares, se- te educacional, tornando-a visível.
riam criados só pelas mães, cresceriam sem mo- Essa não é uma tarefa fácil, particular-
delos masculinos, cresceriam marcados pelas fa- mente porque não temos muita tradição, no cam-
lhas das mulheres que os educaram. Não acho po educacional, sequer de discutir gênero, menos
que seja pouco provável aparecer no Brasil a pro- ainda de entrar na discussão de gênero a partir
posta de aumentar o número de professores do das masculinidades. A discussão de gênero histo-
sexo masculino, ou formar classes e escolas só de ricamente caminhou a partir da visibilização das
meninos. Esse caminho não está excluído do mulheres — a história das mulheres, a violência
nosso horizonte. contra as mulheres — e, mesmo em outros países,
Para concluir, gostaria de reafirmar por só após algumas décadas começou a ser aborda-
que o gênero deve ser colocado como uma dis- da a questão das masculinidades. O desafio que
cussão central para o debate educacional hoje. está posto para nós é entrar diretamente no de-
Seja na escola, na sala de aula, na formulação de bate sobre as masculinidades e procurar nos apro-
políticas públicas, seja na pesquisa acadêmica, priar dele, estabelecê-lo em termos democráticos
dois temas atualmente são cruciais, e o são por- e igualitaristas, em termos de uma educação para
que têm um reflexo social muito grande. Um deles o respeito à diversidade e ao convívio com as di-
é o fracasso escolar, que vimos discutindo, e o ferenças, antes que ele caia em mãos conserva-
outro, que me parece fortemente articulado ao doras. Pois, numa sociedade tão hierarquizada
primeiro, é a questão da violência no âmbito da em termos de classe, sexo e raça como a nossa,
escola, um tema que se vincula aos debates so- é muito grande a probabilidade da discussão so-
bre a juventude e a violência social como um bre o fracasso escolar dos meninos ser tomada
todo. Esses dois temas — o fracasso e a violência como veículo para reforçar a masculinidade he-
escolares — vêm sendo discutidos no Brasil como gemônica e como pretexto para acusar tanto as
se eles nada tivessem a ver com as relações de mulheres professoras quanto as famílias negras e
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