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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO

PAULO

PUC-SP

João Perci Schiavon

Pragmatismo Pulsional - Clínica Psicanalítica

DOUTORADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA

Tese apresentada à Banca


Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de
São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do
título de Doutor em
Psicologia Clínica, sob a
orientação do Prof. Doutor
Peter Pál Pelbart.

SÃO PAULO

2012
RESUMO

A tese principal pode ser formulada, de maneira breve, nos seguintes


termos: a pulsão é uma prática, um exercício, que pode ou não se dar – não
se dá naturalmente. Disso decorre seu valor pragmático e sua consistência
ética. É uma formulação estranha em face da idéia de que as pulsões já
estão aí, por assim dizer, como uma natureza, e que o psiquismo deverá se
constituir e se organizar à medida que as controla, domina, alinha,
domestica, submete e, sobretudo, investe, sempre por intermédio de
recursos simbólicos e culturais disponíveis. Ora, um desdobramento da tese
consiste em dizer que há uma diferença profunda entre as imagens da
pulsão, construídas por instâncias não pulsionais, e a própria visão
pulsional. Quando se está à altura da pulsão e do seu saber? Como se
exerce a visão pulsional? Em que condições a pulsão é praticada? E qual o
tempo dessa prática? Estas questões são ainda interiores à tese em pauta,
como ainda lhe pertencem o que chamamos de traços da pulsão, a saber, os
traços pelos quais a pulsão ou as pulsões se tornam audíveis, visíveis,
inteligíveis. O caráter inteligível da pulsão sugere, finalmente, uma lógica,
uma lógica da pulsão. Temos assim uma ética e uma lógica da pulsão, uma
prática e um entendimento, com a conseqüência necessária de concebermos
a sublimação como um destino originário da pulsão. Se isto se sustenta, a
clivagem entre psiquismo e pulsão deve ser revista, e mesmo o que se
pensa sobre o psíquico, quando considerado de um prisma pulsional. O
real, longe de ser impossível, não só é uma questão de experiência, como é
uma questão de prática. Do mesmo modo, as noções de ordem e desordem
(ou caos), do ponto de vista de um psiquismo, precisam ser repensadas.
Não é preciso dizer que a partir desses questionamentos, os conceitos de
pulsão de vida e pulsão de morte, inclusive em seus reviramentos mais
críticos, devem ser igualmente revistos. O interesse maior dessa pesquisa
reside em suas implicações práticas, clínicas – e logo políticas, estéticas...
E em que ela investe todo tempo? No caráter ativo da análise.

Palavras chave: pulsão, pragmatismo, ética e lógica pulsionais, a


sublimação e o seu tempo, o caráter ativo da análise...
ABSTRACT

The main thesis can be formulated, briefly, as follows: the drive is a


practice, an exercise, which may or may not happen – it does not occur
naturally. This is the origin of its pragmatic value and its ethical
consistency. It is a strange formulation considering the idea that the drives
are already there, so to speak, as a nature, and that the psyche must be
constituted and organized as it controls, dominates, aligns, domesticates,
subjugates them and, especially, invests, always through available cultural
and symbolic resources. Now, a splitting of the thesis refers to saying that
there is a profound difference between the images of the drive, built by not
driving bodies, and the driving vision itself. When is it up to the drive and
its knowledge? How does it exercise the drive vision? Under what
conditions is the drive practiced? And what is the proper time of this
practice? These issues are still inside the thesis in question, as still belong
to the thesis what we call features of the drive, namely, the features by
which the drive or the drives become audible, visible, understandable. The
intelligible character of the drive suggests, finally, some logic, the drive
logic. Thus we have a drive ethic and a drive logic, a practice and an
understanding, with the necessary consequence of conceiving the
sublimation as an originating destination from the drive. If this is
supported, the split between psyche and the drive should be reviewed, and
even what is thought about psychic, when it is seen from a drive
perspective. The real, far from being impossible, is not only a matter of
experience, as it is a matter of practice. Similarly, the conceptions of order
and disorder (or chaos), from the point of view of a psyche, must be
rethought. It is not necessary to say that, based on these questions, the
concepts of life drive and death drive, including their most critical issues,
should also be reviewed. The major interest of this research lies in its
practical, clinical - and therefore political, aesthetic... – implications. And
in what does it invest all the time? In the active character of the analysis.

Keywords: drive, pragmatism, drive ethic, drive logic, the sublimation and
its time, the active character of the analysis...
SUMÁRIO

1. PRAGMATISMO PULSIONAL........................................................1

Introdução...........................................................................................1

O sonho do automóvel planador.........................................................5

O caso de Alexandre e sua égua.........................................................7

O campo pulsional............................................................................13

O campo analítico e suas versões.....................................................20

Atividade e linguagem.......................................................................34

2. UMA VIDA, UM DIZER.................................................................45

A sublimação e o cosmo....................................................................47

Nas imediações dos afetos originários, em sete tomadas.................51

A imanência do dizer.........................................................................62

Imagens da pulsão e visão pulsional................................................67

3. O SENTIR, O SABER, O SENTIDO...............................................75

Além da representação......................................................................75

Repetição do mesmo e repetição da diferença..................................81

O gozo do “savoir-faire” e o estágio da cura..................................96

O saber da diferença.......................................................................104

4. AS FORÇAS PULSIONAIS – AGIR, AVALIAR, EXISTIR........119

Um sonho à velocidade da luz........................................................119

Agir, avaliar, dizer, existir..............................................................124


Os graus da pulsão e sua justiça....................................................154

A dobra (Dioniso e Ariadne)...........................................................163

Niilismo e não-senso.......................................................................178

5. O TEMPO DA PULSÃO................................................................203

Precisa-se de tempo........................................................................203

O tempo da análise é o tempo de um saber prático........................206

As medidas do tempo.......................................................................207

Luz “contemporânea”.....................................................................215

O domínio do tempo I – Metapsicologia.........................................220

O domínio do tempo II – Pulsão de morte......................................224

O domínio do tempo III – A vida e a arte.......................................230

O domínio do tempo IV – Pulsão de vida.......................................241

6. SABER DA CURA (CONCLUSÃO).............................................249

O originário e o conceito de pulsão: a medida da cura.................251

Um primeiro equívoco sobre o saber..............................................255

Um segundo equívoco sobre o saber..............................................258

Um terceiro equívoco sobre o saber...............................................264

BIBLIOGRAFIA.............................................................................267
PRAGMATISMO PULSIONAL

Sooner murder an infant in its cradle than nurse unacted desires.


He who desires but acts not, breeds pestilence. (William Blake) 1

Introdução

Seria um exagero voltar ao conceito de pulsão, a fim de esclarecê-lo,


como se ainda permanecesse obscuro? Mas ele permanece obscuro, e a
psicanálise, seja no plano teórico ou no processo clínico, talvez não seja outra
coisa que a retomada incessante de tal esclarecimento. A pulsão é uma dessas
fendas conceituais por onde o pensamento faz seu retorno à vida. Como é
possível este retorno? Como o pensar pode se ajustar novamente à vida, ao
vivo? Será possível esta justiça? Era o que Lacan entendia por final de análise,
o momento em que o sujeito passa a viver a pulsão 2.
A psicanálise se torna simples e translúcida, quando se entende que sua
inteligibilidade é dada pela pulsão. Mas a pulsão não é um conceito simples,
ou melhor, não se alcançou ainda sua elucidação exaustiva e seu uso mais
aguçado, muito pelo contrário. Já em Freud adquiriu diferentes aspectos,
conforme aumentava a exigência de precisão clínica e se aprofundava a
elaboração teórica. A clareza a respeito da pulsão depende, porém, da
experiência que se faz dela. Desde Freud são notáveis as descrições de como
afetos originários mudam de aspecto a ponto de se tornarem irreconhecíveis,
embora – fato curioso, porém previsível – a maior parte dos afetos
reconhecidos como originários possam ser ainda derivados, secundários,
correspondendo, em código lacaniano, aos efeitos de significante 3. É o que se
passa com a pulsão, dos temas psicanalíticos o mais original, pois mesmo o
inconsciente deve ser considerado sob o seu prisma, todavia obscuro e, como
dissemos acima, pouco explorado, o que exige uma renovação constante da
crítica e da suspeita.
Pode-se objetar que, ao contrário, este conceito foi demasiadamente
investigado, que não se parou de falar dele, de maneira que se deveria passar
adiante de coisa já tão resolvida, seja integrando-a de vez ou dispensando-a.
Mas como o conceito de pulsão foi tratado até aqui? Como pulsão parcial,
1
“Antes assassinar uma criança em seu berço que nutrir desejos que não agem”. “Aquele que deseja mas não
age, gera a peste”. Dos Provérbios do inferno, em Blake, W., O matrimônio do céu e do inferno – e O livro de
Thel, p. 24 e 28, Iluminuras, SP, 1995.
2
Lacan, Jacques, O seminário, Livro 11- Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, p. 258, Zahar, RJ,
1998: “Como, um sujeito que atravessou a fantasia radical, pode viver a pulsão?”
3
É até onde foi, de modo geral, a escola lacaniana no concernente ao afeto. A angústia assinalava uma
fronteira, a presença e já a ausência de uma concatenação significante. Era uma aproximação do que
chamamos de afetos originários.

1
ligada à zona erógena, perfazendo um circuito em retorno, contornando o
objeto e voltando à origem – a exemplo das pulsões oral, anal ou escopofílica?
Como pulsões sexuais e suas antíteses, as pulsões do eu? Ou como pulsões de
vida e de morte, para descrever uma vez mais, e de um modo ainda mais
radical, com um acento cósmico ou bíblico, o insistente circuito em retorno –
do pó viestes e ao pó retornarás? Não estarão todas essas modalidades de
aparição do processo pulsional, a se mostrar a cada vez segundo o regime de
entendimento que irá captar esse processo, compreendidas na fórmula maior
do retorno – “onde isso era devo eu advir”, por ser precisamente pelo dizer e
pelo entendimento que devo ali advir?
Apesar das diferenças significativas de visão que se pode ter sobre o
assunto, conservamos o conceito de pulsão por ser igualmente aplicável:
1) ao impessoal ou extra-pessoal, pois a pulsão precede o regime meramente
pessoal da experiência; é este traço, aliás, decorrente de seu caráter sexual e ao
mesmo tempo ético, que torna possível a escuta analítica e a chamada
comunicação de inconscientes;
2) ao singular, porque não há pulsão que não exista em ato e não se expresse à
sua maneira, isto é, como um dizer, por mais alheio e distante que esteja da
experiência subjetiva;
3) ao simples, por ela ser elementar e originária, feita de uma única peça;
4) ao refinado, uma vez que ela é, imediatamente, seu destino mais nobre, a
sublimação, de modo a se definir também como dedicação, disciplina,
sobriedade, autonomia e arte;
5) ao abstrato, por três razões: não se esclarece pelas relações da forma e da
matéria, mas por linhas de força, movimentos e temporalidades; não se dirige
a um objeto natural ou específico – o seu, justamente, é um x, a variação por
excelência; e consiste, essencialmente, em uma prática constante e sem
modelo;
6) ao real, pois é como pulsão, ou através dela, que se concebe a vida, a
atividade e a lucidez em psicanálise.
Como se pode constatar, cada uma dessas aplicações tem seu duplo, e
compõe com ele uma espécie de dueto destinado a fazer ouvir a pulsão.
Extra-pessoal e singular, simples e refinado, abstrato e real são termos que,
remetendo a um mesmo conceito, poderiam sugerir alguns paradoxos. Uma
análise mais detida, porém, aproxima-os de tal modo que se tornam
indiscerníveis. Tomemos um deles, o dueto simples-refinado. Certas obras de
Arcângelo Ianelli, como é o caso de Vibrações em azul, de 1996, são, ao
mesmo tempo, profundamente refinadas e profundamente simples – as
intensidades do azul. E as Figuras de Francis Bacon, embora exijam uma
gama considerável de procedimentos, uma limpeza exaustiva, de modo a

2
eliminar os clichês figurativos e a narração, ganham o caráter simples de uma
figuração direta das forças. Na música, o que Deleuze e Guattari chamam de
plano sonoro imanente, em que “as formas cedem lugar a puras modificações
de velocidade” 4, aponta ainda o dueto pulsional, pois se trata sempre de um
único e mesmo plano (a peça única) de composição, com todas as suas
velocidades e lentidões. Ao descrever uma dança popular dos índios
tarahumara, Artaud ressaltava o ritmo, a música que lhe fazia ouvir algo desse
“plano fixo sonoro”: “Dançam ao som de uma música pueril e refinada que
nenhum ouvido europeu pode conceber; parece que estamos escutando sempre
o mesmo som, escandido sempre com o mesmo ritmo; porém, com o tempo,
esses sons sempre idênticos e esse ritmo despertam em nós como que a
recordação de um grande mito; evocam o sentimento de uma história
misteriosa e complicada.” 5
Mas se, ao mesmo tempo, a peça única se dá com aquilo que ela dá,
deve-se ver aí uma prática constante e sem modelo, o abstrato-real.
O conceito de pulsão é em tudo apropriado para designar a idade de
ouro no devir dos afetos, isto é, uma idade de ouro sempre a ponto de
recomeçar.
A distinção entre pulsão e instinto, corrente depois de Lacan, permite
situar a distância em que nos encontramos de tudo que possa ser conotado de
natural e conhecido ao nos ocuparmos do campo, digamos inóspito, da pulsão,
já por ele ser, a princípio, de difícil acesso. Na verdade, ainda que se trate de
uma condição originária da experiência humana, é a raridade com que esse
acesso se verifica que nos recomenda as maiores reservas quanto ao natural e
ao conhecido. Por um lado, esse campo já foi exaustivamente catalogado,
descrito; por outro, nos é inteiramente desconhecido. Será que o humano
como tal, com sua decantada duplicidade, chega a entrar aí? Será que
anunciando as “novas núpcias do significante com o vivo”, que é como são
apresentados os Outros escritos de Lacan, se estaria dando o passo necessário?
Ao se falar de “núpcias” se efetua, de fato, um avanço na compreensão da
pulsão, se tivermos em vista o que se disse a respeito da mesma em toda a
digressão lacaniana anterior. Sustentar o discurso analítico na intocável
divisão do sujeito, no sujeito barrado e na verdade mentirosa, era permanecer
ainda aquém da linha do horizonte psíquico; no melhor dos casos nas suas

4
Deleuze, G. e Guattari, F., Mil platôs, vol, 4, p. 56, Editora 34, SP, 1997.
5
Artaud, A., Los tarahumara, p. 79, Barral Editores, Barcelona, 1977. Félix Guattari concidera as
potencialidades criativas do caos segundo um mesmo tipo de paradoxo: “Essa concepção do caos me permite
caracterizar o funtor ontológico que qualifico de Universo incorporal, ao mesmo tempo hipersimples –
ritornelo alijado de qualquer relação com uma referência – e o hipercomplexo, desenvolvendo-se no seio de
campos de virtualidade infinitos”. Caosmose: um novo paradigma estético, p. 78, Editora 34, SP, 1998.

3
imediações, isto é, na borda da cratera do vulcão. Além se estende, ainda
desconhecido, inexplorado, o campo metapsíquico.
Haveria uma experiência de fronteira? A primeira abordagem conceitual
da pulsão, realizada por Freud, ao situar o campo analítico propriamente dito,
foi considerá-la como ser de fronteira, entre o psíquico e o somático, a ponto
de ela parecer dúplice ou de dupla face, idéia e afeto. A pulsão se faz sentir ou
pressentir nos fenômenos de fronteira, no sinal da angústia, na presença do
estranho, na divisão do sujeito no processo de defesa, nas formações do
inconsciente, mas ela mesma, ela em si, não é fronteira, tendo sua vigência
além da divisão, além da angústia e da castração. De um ponto de vista
relativo, não há uma e sim diversas experiências de fronteira, conforme
avança a análise do inconsciente e se transita de um estrato ideo-afetivo a
outro, segundo a direção que é dada pela pulsão; mas de um ponto de vista
absoluto há uma única fronteira, mais litoral, talvez, que fronteira, cuja
transposição dá acesso ao real, isto é, à experiência direta da pulsão.
As “novas núpcias do significante com o vivo” constituiriam um ponto
mais avançado da experiência em relação ao passado? Ou ainda se pensaria a
mesma disjunção de idéia e afeto, de simbólico e sexual, de linguagem e vida?
O gozo decorre do significante, como quer J. A. Miller em seu prólogo aos
Outros escritos? Desde que o significante decorra do vivo, que não é apenas
afetado pelas “manipulações linguageiras”, não é apenas gozo histérico, mas
atividade, poder de manipulação, razão primeira da existência simbólica e do
que dela resulta. Aliás, é nisto que consiste a genial lalangue de Lacan, o
idioma indígena de cada um.
A nossa proposição é de que operando aquelas disjunções não estamos
ainda na altura da pulsão. Eis para o que serve este conceito, já que, apesar das
tentativas de diluir seu caráter estranho, sua face estrangeira – assimilando-o,
por exemplo, à pulsão de morte, como vertente última e exclusiva – ainda
ficou a salvo de reduções definitivas, e isto pela própria natureza da pesquisa
analítica, quando ela não perde de vista o seu filão. Que esta pesquisa
constitua um saber de não-senso, como pretendia Lacan, é o que encaminha a
turba claudicante dos sentidos na direção da pulsão 6. E no entanto, idéia e
afeto pulsionais, indiscerníveis na origem, não só garantem o sentido dessa
mesma direção como também, para além da última fronteira, decidem o lugar
de todas as demais coisas, isto é, de todos os demais destinos, agora
esvaziados de seu poder e de seu saber: sentido inaudito, visionário, soberano,
inacessível aos outros; daí, precisamente, sua face de não-senso.

6
O não-senso, aqui, poderia ser um caos, e foi identificado, mais de uma vez, ao inconsciente a céu aberto da
psicose. Este inconsciente, porém, decorre ainda da visão neurótica do universo e de sua dissolução. Outra
coisa é o inconsciente pulsional.

4
Dois exemplos de acontecimentos clínicos poderão sugerir uma
aplicação do que estivemos dizendo até aqui.

Sonho do automóvel planador

Jorge sonhou que estava em sua casa de campo, como acontecia em


outros tempos, quando os filhos eram ainda pequenos e toda a família passava
ali os fins de semana. No sonho havia um lago, uma espécie de represa, com
um dique de pedras bem construído; a água tinha um movimento suave,
tranqüilo. Observa um automóvel que passa por um túnel. Não é ele que dirige
o carro. Pausa.
Indagado se esse relato era todo o sonho, respondeu que sim. Segundos
depois, porém, continuou animadamente, dizendo que se encontrava numa
parte posterior da casa, num lugar aberto, onde se erguia uma árvore. Acima
dela, havia um automóvel planando, de rodas para o ar.
Façamos um parêntese: uma coisa é o sonho, outra o seu relato, outra
ainda é a sua interpretação, e não foi sem uma intuição profunda das dobras
oníricas que Freud insistiu nessas distinções. Além de transitar de uma
linguagem regida pelo processo primário a uma linguagem que obedece às leis
e convenções do processo secundário, a comunicação do sonho envolve a
alteridade de modo impactante e transformador: o fato onírico adquire,
mediante o relato, uma inesperada consistência. O processo singular do sonho
é indissociável de seu caráter extra-pessoal. Isto se dá em mais de um sentido,
começando pelo fato de que o analista pertence ao conceito de inconsciente 7.
Mas como as distinções requeridas concorrem para o devir onírico como tal?
A pulsão é um vetor “caósmico” em todos os nìveis em que se verifica o seu
exercício 8. A dita transferência com o analista é apenas uma modalidade de
expressão, por certo aqui e ali privilegiada, do devir pulsional sob o aspecto
daquele dueto. Não é preciso dizer que o vetor pulsional é imanente tanto aos
processos ditos primários como aos secundários, ou que essa distinção mesma
é secundária em relação à outra, que conjuga o singular e o extra-pessoal. Os
termos desta primeira distinção, entretanto, quando tomada em seu devir,

7
Cf. Lacan, O seminário, livro 11, op. cit., p. 125: “A interpretação do analista não faz mais do que recobrir o
fato de que o inconsciente – se ele é o que eu digo, isto é, jogo do significante – em suas formações – sonho,
lapso, chiste ou sintoma – já procedeu por interpretação. O Outro, o grande Outro (A) já está lá, em toda
abertura por mais fugidia que ela seja, do inconsciente”.
8
Guattari fala de uma dobra autopoiética que funciona segundo duas facetas, “inextricavelmente associadas,
de apropriação ou de grasping existencial e de inscrição transmonádica”. Nenhuma das facetas é primeira em
relação à outra, uma remete incessantemente à outra. A consistência do processo singular “monádico”
compreende, necessariamente, seu “transmonadismo”. Caosmose: um novo paradigma estético, op. cit., p.
143 e 144.

5
tornam-se indiscerníveis. É que quanto mais se gradua o traço singular, mais
se evidencia seu teor extra-pessoal.
Jorge lembrou que recentemente um dos cavalos da fazenda escapara
pelo portão aberto, e ao atravessar a estrada foi atropelado por um carro que
passava em baixa velocidade, segundo argumentou depois o seu condutor. O
cavalo caiu sobre o carro, mas não sofreu nenhuma lesão. O veículo, em
contrapartida, ficou muito danificado, e seu proprietário responsabilizou Jorge
pelos prejuízos. A falta de controle do animal foi uma espécie de extensão da
falta de controle de Jorge sobre o que acontecia na casa de campo. A ordem
que o caseiro tinha de manter os cavalos numa área restrita havia sido
desobedecida. Como foi dito, Jorge já não acompanhava de perto o que se
passava ali. O assunto se relacionava ao tema que vinha sendo tratado em
análise, a saber, que ele se preocupava com o curso atual dos acontecimentos
familiares. Seu filho mais velho, além de fazer um uso abusivo de maconha,
parecia sofrer de pequenos surtos psicóticos, e o mais novo acabara de sair de
casa, com certo acento de rebeldia. Dir-se-ia que esse era o resultado das
ausências de Jorge durante a adolescência dos filhos, dedicado quase
exclusivamente ao trabalho que, entretanto, promovia uma boa condição de
vida material à família. Quem dirigira as coisas em casa, nesse período, fora
sua mulher, com seu estilo autoritário e controlador. Desde que Jorge, mais
próximo, passou a intervir junto à esposa, operou-se certa mutação no
ambiente familiar, uma flexibilidade que deve estar na origem da suspensão
dos estados alucinatórios do seu filho. Uma primeira interpretação, um
primeiro plano de elucidação do sonho, consistiria nessa idéia de que,
diferentemente do tempo em que tudo era controlado, regrado e sereno como o
lago e a bem construída represa, ele se ausentou, deixou de dirigir a família, e
o resultado foi que ela enlouqueceu, ficou de pernas para o ar – o carro sobre a
árvore, de rodas para cima. Mas outra visão tomou a dianteira, pois
concomitantemente a essa narrativa de contorno histórico, que parecia
compreender o exercício de uma função paterna, familiar, havia o tema da
liberdade ou da liberação, da possibilidade de pensar livremente,
estranhamente, e era esse, afinal, o sentido do sonho, o carro acima da árvore,
de rodas para o ar. Essa linha de pensamento atravessava todos os elementos
oníricos, era a linha unívoca e remetia à peça única (o simples), a um poder de
escolha imanente afetado de uma não-naturalidade, isto é, de uma eticidade
originária. Singular e extra-pessoal, o devir onírico e surreal de Jorge se
conjuga ao devir a-familiar de sua própria famìlia. Relação com o “Fora”,
como diria Foucault, ainda que esse fora seja o devir da pulsão em pessoa.
Linhas temporais arquitetam o sonho, construído na pura e quase
impensável duração. Por quanto tempo ele vigora? Tendo reiniciado a análise,

6
depois de alguns anos, Jorge comenta sua sensação de liberdade quando
atravessava uma rua movimentada para chegar ao consultório. Essa
experiência da rua, de um asfalto molhado, era acompanhada de uma
recordação da adolescência, do tempo em que veio morar na capital. O
universo familiar religioso e acanhado do vilarejo natal havia ficado para trás,
especialmente em momentos luminosos como aquele. O sonho é uma
composição de tempos, a partir da sucessão manifesta: as crianças e os fins de
semana no campo; a adolescência dos filhos e o seu envolvimento quase
exclusivo com o trabalho; os dias atuais e uma catástrofe “em termos”. Uma
linha de fuga percorre o sonho e é o seu umbigo móvel, o atrator em torno do
qual se desdobra e se redobra a complexidade onírica. O simples e o refinado.
As vozes alucinatórias, através das quais o filho respira, eclodem num
espaço adjacente ao espaço sufocante, sem saída, constituído pelo território
materno (ou pela língua mater). Ali, ao lado, ele existe e insiste. Jorge
reconhece que no retorno ao núcleo familiar, dominado pela esposa, manteve-
se inicialmente reservado, endossando as atitudes dela com os filhos. Não
queria desautorizá-la. Aos poucos, porém, começou a intervir, precisamente
depois de se deparar com os acessos psicóticos do filho. O fato de aplacar as
iniciativas pedagógicas da esposa repercutiu positivamente, conforme
dissemos acima, pois data desse momento a cessação das experiências
alucinatórias. Ou seja, há um sopro de liberdade em ação, provocando
mudanças aceleradas, ora recebidas com apreensão frente ao suposto caos
iminente, ora com certa leveza – o carro de rodas para o ar planando acima da
árvore. Talvez estivesse em curso uma espécie de confiança no movimento
pulsional. Terá sido também um modo de Jorge se colocar ao lado dos filhos,
como os filhos. O que concorreu fortemente para a escolha da linha de fuga
positiva na interpretação principal do sonho foi sua declaração, como um
apêndice alegre ao relato onírico definitivo, de ter acordado com notável
sensação de alívio.
Deve-se acrescentar ao exposto certo devir-cavalo selvagem de Jorge,
sobretudo se considerarmos que era com prazer evidente que ele descrevia a
cena de um animal sem inibições, impetuoso o bastante para experimentar os
acasos do mundo. A pulsão, no entanto, não é impulsividade cega; ela é ao
mesmo tempo o tratamento construtivo do sonho, sua força imagética e a
interpretação superativa. Eterna outsider, ela é o que não podia ser previsto, a
criação mesma.

O caso de Alexandre e sua égua

7
Alexandre gosta de cavalos, mas as exigências ritualizadas a que se
submete para desenvolver a equitação são a tal ponto severas e exasperantes,
que todo o prazer almejado a cada vez se esvai, como uma pretensão vã, no
tormento de uma imposição incessante, nos numerosos “tem que” prévios a
toda satisfação. Esta fica relegada ao derradeiro instante de todos os
programas efetuados, quando Alexandre desfalece, exaurido, sem o alento
indispensável a uma experiência ativa, avaliadora, pela qual o mundo possa
ser transubstanciado em si. À maneira, por exemplo, como se degusta uma
maçã, isto é, como gosto estético, o que, em outras palavras, chamamos de
saber do gozo ou gozo do saber. “A beleza será comestìvel ou não será...”,
dizia Dali.
Saber e gozo conciliados são inerentes à atividade pulsional. Mas a
coincidência de saber e gozo é certamente polêmica, se muitas vertentes do
pensamento psicanalítico propõem que o gozo deva ser temperado, ou
recusado – para alguns, em favor do desejo. Muitas são as modalidades de
gozo, o originário, porém, é o do saber. E é este gozo-saber que orienta a
trama analítica, é ele que garante o acesso ao inconsciente, como uma espécie
de fruto do desejo, uma vez que aceder ao inconsciente é aceder ao saber da
pulsão. Neste caso, não há distinção entre o movimento do desejo e o caminho
do saber.
Os “tem que” de Alexandre destinam-se visivelmente a separá-lo, o
quanto possível, do que ele pode, ou seja, da atividade pulsional que o anima e
de sua satisfação concomitante, de seu sentir, de seu saber, de sua lucidez e
seu júbilo. Por que deve ser separado e por que se separa do que pode? Por
deter nele próprio um x, um poder estranho, ignorado, que só pode existir num
resto de dia, de prazer, de autonomia, o que Lacan chamava de objeto a, o
dejeto.
Após assistir, como era seu hábito antes de dormir, aos vídeos sobre
treinamento de cavalos, era preciso que escrevesse minuciosamente num
caderno, enumerando-os, os passos adotados pelos domadores, cada
procedimento técnico e seus resultados, numa caligrafia regular e sem erros
ortográficos, caso contrário teria que refazer o relatório desde o início.
Lembra-se de como a mãe nunca estava satisfeita com as lições que ele fazia,
mandava recomeçá-las muitas vezes até ficarem impecáveis, enquanto sua
vontade de brincar na rua com os outros meninos devia esperar; quando
concluía as lições, já anoitecera, e não havia mais tempo para brincadeiras.
Uma das modalidades de “tem que” aparentemente irracional – pois
havia os racionais, como aqueles, por exemplo, ligados à prática da equitação
– era o ato compulsivo de dar dois passos para trás antes de avançar e entrar
num recinto; se não obedecesse à tenaz prescrição, o avô morreria. Sabia o

8
quanto era insensato submeter-se a isso, mas não se permitia pôr em risco a
vida do avô. A existência deste e a ordem obsessiva eram idéias que se
enlaçavam na vida real. Empregado na fazenda do avô, tinha um destino
prefigurado, mas desejava romper o contrato e lidar com cavalos. Sem
coragem, relutava.
Para o pai, estava sempre aquém dos outros, com os quais era
freqüentemente comparado; nunca recebera um elogio, um incentivo.
Procurou análise a partir da leitura casual de um poema atribuído a Jorge Luis
Borges, onde este, aos oitenta e cinco anos – “agora que”, como diz o verso,
“estou morrendo” – lamenta não ter sido mais despreocupado, tomado mais
sorvete, saído mais vezes à rua sem guarda-chuva, corrido mais riscos e vivido
experiências mais ousadas e prazerosas. O poema teve o efeito de um choque
em seu pensamento. Seus vinte e sete anos adquiriram um relevo temporal até
então impensado: o que estava fazendo da sua vida? A proposição de que o
saber da análise é um saber prático se demonstrou aí – pois o choque o
impeliu à análise. É um saber mobilizante. Poderíamos reconhecer nesse
movimento a função da pressa no tempo lógico, já que um saber dessa ordem,
se não é exercido, se obscurece e é suplantado por outras razões. Isso até que
haja um novo choque (se houver), com a feição imprevisível que possa ter no
futuro. A análise, neste caso como em muitos outros, começou antes da
análise.
Aos poucos Alexandre se permite procedimentos mais flexíveis na
prática da equitação, e verifica que obtém não só um prazer esquecido, como o
próprio desempenho, em vista do relaxamento da exigência, parece crescer
sensivelmente. Confirma a importante distinção freudiana entre formação de
ideal, mecanismo fomentador de angústia e inibição, e a sublimação.
Enquanto seguia minuciosos modelos, agia com sua égua da mesma maneira
autoritária e exigente com que seu pai o educara. Ela nunca alcançava os
níveis desejáveis de rendimento. Alexandre era o pai em relação à égua; logo,
ele era a égua do pai. Observava agora o quanto sua égua, que tinha uma vida
e, segundo ele, pensamentos próprios, era sensível e receptiva aos novos
comandos, e como era diferente orientá-la, a cada instante, de acordo com
uma percepção mais fina das suas disposições reais e das variações de sua
sensibilidade, e pretender dominá-la a partir de um modelo, aplicado
rigidamente, sem a consideração devida a um ser vivo, singular e, à sua
maneira, sensível e inteligente.
Experimentação, gozo, pesquisa e descoberta de veios vitais. O retorno
de um prazer antigo e esquecido pode abrir novo tempo analítico, ao evocar
um tempo anterior pelo qual o presente pode ser medido e avaliado, a par de
linhas de subjetivação que não coincidem mais com as linhas sintomáticas e

9
atuais. A isto, em psicanálise, se chama de infância, esse fundo de reserva de
disposições ativas e seu vir-a-ser. Mas estas disposições não se encontram lá, à
espera; terão que ser relembradas como um corte no presente e exercidas, e é
neste sentido que a pulsão é uma exigência 9. A análise é provocativa, exige,
adapta-se à pulsão, age assim como o poema de Borges – ao lê-lo, o sujeito se
põe a pensar, a sentir, separa-se das condições sintomáticas; um prazer mais
ousado o instiga e procura a análise. Eis a razão profunda para a perquirição
sobre a infância, tão cara ao procedimento analítico: a ampliação do tempo e o
retorno às condições originárias, ativas, atuais, urgentes, grávidas de futuro. A
pulsão, dizia Freud, é uma urgência (Dräng).
Em análise, Alexandre volta sua atenção à mulher, a quem, na vida
cotidiana, maltrata com palavras duras, de censura, sobretudo quando ela se
aproxima dele carinhosamente. Acusa-a de querer outro homem, aquele com
quem ela viveu antes dele e chegou a ter um filho. Imagina que é comparado,
e que certamente ela preferiria esse outro se pudesse escolher; sente-se
inferior, e nisto parece reeditar a mesma impressão de inferioridade resultante
das comparações que o pai fazia com os outros, nas quais se via sempre em
desvantagem. Ora, a vida do casal adquire um novo aspecto, um contorno
mais afetuoso, quando decide sair mais vezes de casa, e não para ter outras
mulheres – motivação pressuposta até então e que incitava a esposa, por sua
vez, a cercear-lhe os passos – mas para conversar com amigos, tecer novas
relações, fora do seu restrito círculo familiar. É ele, vê-se bem, que quer outro
homem, quer devir outro homem, em nome de sua idade real, de sua “eterna
meninice”, como diz uma canção de Elomar. É uma memória da infância, sair
à rua e brincar com os outros.
Eis, até aqui, o percurso analítico de Alexandre: a satisfação renovada
com a equitação reanimou um prazer antigo, evocou outro tempo, uma
infância esquecida e o pressentimento de um tempo originário. Essa linha de
força do tempo (o abstrato) induz à experiência do devir, do devir outro, devir
outro homem, e as questões relativas ao outro, ao afeto, ao estranho, à mulher
e à criança se colocam como medidas e graus desse devir. A noção de um
tempo originário serve para medir tanto o presente atual como o presente
antigo (ou passado infantil: a lembrança, por exemplo, de que Alexandre não
podia sair à rua e brincar com as outras crianças); o antigo e o atual

9
Relaxamento e exigência trocam de lugar quando não se trata mais do ideal, e sim da pulsão. Em nome dos
ideais de eu, isto é, de um modo não inocente, desenvolve-se a suposição e o equívoco grosseiro: se
deixássemos a subjetividade por conta da pulsão, voltaríamos à animalidade. Daí a importância do devir
animal em Deleuze e Guattari.

10
constituem séries de acontecimentos coexistentes em relação a esse outro
tempo, que lhes serve de medida e de linha de fuga 10.
Uma paisagem existencial ainda desconhecida se forma, uma nova linha
de horizonte, e ondas de oxigênio invadem o espaço. Descortina-se o caminho
do campo. Pensar e respirar são o mesmo (o simples, a peça única).
Instaura-se um campo problemático para além das coordenadas
ideativas até então vigentes: estar com os amigos, sim, mas quais amigos, se
há tempo não os freqüenta? São de outro tempo, não estarão mais disponíveis.
Mas X às vezes propõe saídas e ele não aceita por falta de hábito. São
certamente as forças do hábito que, mais que a esposa, lhe cerceiam agora os
passos – o sintoma arcaico e suas seqüelas na vida cotidiana.
Ainda que não encontre de imediato uma solução para isto, modifica-se
inteiramente a relação com a esposa e, por conseqüência, com os filhos. Uma
suavidade familiar está prestes a se instalar, já é possível sentir uma brisa
benfazeja. Um mal estar quase intolerável, porém, se interpõe de repente ao
novo estado de coisas. Só agora o fantasma, incisivo, pode tomar a palavra,
destacando-se da ternura recém conquistada: Alexandre não deve se
aproximar fisicamente do filho de onze anos porque, do contrário, o menino se
tornará homossexual. Tal era também a apreensão do pai quanto a ele, ao
menos assim interpretara ao longo do tempo o distanciamento físico e afetivo
do mesmo. Repetia idêntica conduta com o filho. Estamos mais próximos dos
afetos originários, a linha do recalque já se torna visível. A lógica dos afetos é
insidiosa: uma vez iniciado, o processo se deflagra, imperioso. Não é apenas
uma questão edípica. É bem mais uma sentença que está em jogo: o afeto fora
desqualificado e com ele a existência real, o novo, impelidos a ficar, desde
então, fora de cena. A decepção que pensa ter causado ao pai no início da
adolescência, ao recusar timidamente uma jovem que este, combinando
licenciosidade e prepotência, lhe oferecia para ser acariciada, intensificava o
sentimento, a cada ocasião de insucesso com uma mulher, de que era ou
estava se tornando homossexual. Isso antes do casamento e antes de descobrir
que, afinal, as mulheres com quem se relacionara não o haviam esquecido,
talvez devido ao seu modo delicado de tratá-las, ao seu romantismo e à sua
consideração por elas – qualidades ditas femininas, algo reativas no caso de

10
Cf. Deleuze, G., Diferença e repetição, p. 177 a 179, Graal, RJ, 1988. “Com efeito, se os dois presentes, o
antigo e o atual, formam duas séries coexistentes em função do objeto virtual que se desloca nelas e em
relação a si mesmo, nenhuma das duas séries pode ser designada como sendo a original ou a derivada (...)
Nossos amores não remetem à mãe, pois esta simplesmente ocupa, na série constitutiva de nosso presente, um
certo lugar em relação ao objeto virtual, lugar que é necessariamente preenchido por outro personagem na
série que constitui o presente de uma outra subjetividade...” O “objeto virtual” a que Deleuze se refere, e que
jamais se atualiza inteiramente, evoca um passado puro. Embora o passado puro não seja a última palavra
sobre o tempo, é uma aproximação decisiva de sua derradeira figura.

11
Alexandre, “condenáveis”, cuja virtude consistia em escaparem do modelo
paterno. Ao traçar um esboço dessas qualidades, Alexandre ensaiava terminar
com o juízo de Deus, como diria Artaud. Mas esse traçado poderia indicar
apenas a noção mais aguçada de si e dos outros (o traço extra-pessoal),
deixada de lado, relegada ao término do dia ou da vida. Uma relação
renovada, transformada, com os outros e consigo mesmo, tal é, certamente, o
sentido do devir-mulher deleuziano, o devir da diferença. Ora, é evidente que
a análise de Alexandre servia para reconstituir a eficácia do traço extra-
pessoal, a vitalidade do afeto. Ouvir a pulsão e analisar são uma e mesma
coisa.
Pensar é começar a viver. A inadequação do pensar e do ser expressa
pela fórmula de Lacan “sou onde não penso, penso onde não sou” não é
irredutível, se tivermos em conta que o sujeito do inconsciente é um avaliador
em ato. É preciso conceber a pulsão como um sujeito por vir, como um devir
sujeito. Acontece de se ter, em momentos fecundos, um vislumbre daquele
poder de avaliação em ato. E o que ele avalia? Antes de tudo, sua própria
integridade e as condições de integridade ao seu redor.
Alexandre revê seus atos, experimenta novas ações, libera uma
sensibilidade excluída pelo modelo paterno de subjetividade e, por extensão,
pelos modelos de eqüinocidade segundo os quais mensurava o desempenho de
sua égua e a disciplinava. Com isso, fato curioso porém lógico, ela mesma
desperta de seu sono rebelde. Onde se localiza a pulsão? Ela é a atenção dada
ao poema de Borges, é o pensar, é a prática renovada, é o sentir que reconstitui
as condições originárias de avaliação, é a própria avaliação... Ela é também o
dizer que reúne os aspectos obscuros da expressão sintomática e, por isso
mesmo, a diz-tende e diz-solve, em nome de um dizer mais esclarecido, isto é,
em nome de si mesma, exatamente por compreender (= integrar e entender) o
sentido interno do sintoma, sua origem constante e seus desdobramentos
temporais e tópicos – ou seja, seu modo de se atualizar e aparecer, finalmente,
à consciência. Ela é, por tudo o que antecede, “a origem constante”, o falo que
se revelava ao fim dos mistérios antigos, mas não sem reuni-los. Dotada,
portanto, de uma virtude de integração, ela se caracteriza também como força
super-ativa: as formações do inconsciente (mas o que não é, para uma escuta
atenta e ao longo do tempo, uma formação do inconsciente?), com seu teor de
não-senso, de desconcerto, de ruptura e transformação, são provas vivas e
incessantes desse traço de superação ainda desconhecido, meios pelos quais o
processo originário, irresistível, vence todos os obstáculos e assoma à
superfície com sua face estrangeira.
Deleuze diria tratar-se de um devir animal de Alexandre, e estaríamos
de acordo, especialmente porque esse devir se define pelas efetuações de certo

12
grau de potência – os afetos: o que um corpo pode, o que um inconsciente
pode, o que Alexandre e sua égua podem. O que isso pode vem antes do que
isso representa, e não se esclarece em última instância por significações
ocultas, mas por linhas de força e movimento. Isso, ou seja, a pulsão,
compreende relações extensivas com elementos heterogêneos: além do pai e
da mãe, o poema de Borges, o avô, os cavalos da fazenda e os de treino, os
vídeos e os treinadores, a égua receptiva ou resistente, a mulher real e os
amigos do porvir, o filho maldito e querido; além disto, a pulsão é afeto,
intensidade, efetuação de potência, criança, égua, mulher, amigos...
E se além de um mapeamento, uma cartografia envolvendo essas
relações com o exterior e com os diferentes afetos, o inconsciente requer que
se proceda ainda a uma decifração (por exemplo, hoje como na infância a
satisfação será invariavelmente adiada), esta se faz por critérios práticos, isto
é, etológicos e éticos 11: como instaurar ou restaurar a experiência do devir e
do íntegro, a linha do devir e da retidão? Como conservá-la e conservar-se
nela? Como devir mais? Como poder mais? Só se pode mais tornando-se
outro, ou seja, quem se é. Não se deve esquecer que essa espécie de devir do
não-humano no homem é ainda o devir do homem segundo critérios
atualmente desconhecidos, e por isso já é ou prenuncia a sublimação, a melhor
ação possível, o destino originário da pulsão. E é este o segredo pulsional: o
dizer e a vida são o mesmo. Com isto não pronunciamos nada de novo. Lacan
afirmou precisamente a mesma coisa, ao falar que “as pulsões são, no corpo, o
eco do fato de que há um dizer” 12.

O campo pulsional

Em seu destino originário, a pulsão é analítica e sublimatória. Existem


assim destinos pulsionais que não são redutíveis às organizações neuróticas e
perversas da sexualidade, e nem tampouco se confundem com as
desorganizações psicóticas. Devires, são filhos do futuro. As chamadas
estruturas clínicas são decisões, decisões em favor de subjetividades não-
pulsionais, sem excetuar aqui as psicoses, onde toda escolha, bem como as
tentativas de representação de um sujeito tendem a ser profundamente
solapadas – não sem que obscuras decisões tenham sido tomadas nessa
direção. Toda a dinâmica do falso self poderia ser evocada aqui. Embora

11
“Assim como evitávamos definir um corpo por seus órgãos e suas funções, evitamos defini-lo por
caracterìsticas de Espécie ou Gênero: procuramos enumerar seus afetos. Chamamos „etologia‟ um tal estudo,
e é nesse sentido que Espinosa escreve uma verdadeira Ética”. Deleuze, G., e Guattari, F., Mil platôs, vol. 4,
p. 42, Ed. 34, RJ, 1997. Essa conjunção etologia-ética se explicita numa composição singular dos afetos.
12
Lacan, J., O seminário, Livro 23, O sinthoma, p. 18, Zahar, RJ, 2007.

13
adquirisse relevo especial em autores como Winnicott, essa dinâmica já existia
em Freud sob a forma geral do sintoma e do núcleo patógeno, bem como sob a
forma de “um outro construìdo para um outro” em Lacan, que soube definir o
“ego” por sua função de desconhecimento e como frustração na essência.
Destinos ignorados escapam àquelas estruturas tanto quanto possível, pois elas
são, justamente, modalidades de defesa contra esses destinos 13. É aí que a
análise compreende uma escolha constante, caminhos que se bifurcam e
alianças que se renovam ou se desfazem. A escolha se fará pela representação
ou pelo afeto originário 14? A análise seguirá o caminho da identidade ou da
diferença? Fará aliança com o eu ou com a pulsão?
A determinação progressiva do campo pulsional destina-se a torná-lo
mais praticável; o que se concebe acerca desse campo – que se pode chamar
igualmente de analítico – é inseparável do grau de liberação da escuta, com
todas as suas conseqüências. O que se concebe a propósito da pulsão concebe-
se gradualmente, e nisto consiste o progresso da análise, o que não impede que
a experiência da pulsão seja a de um salto no real. Aliás, presidindo todo o
processo, este salto é a pedra de toque da constância analítica 15. Pois não se

13
Se elas são ainda modalidades de defesa em relação ao meio, que é a motivação maior para a construção
defensiva do falso self segundo Winnicott e outros, isso não invalida a nossa proposição, pois o alvo da defesa
continua sendo a pulsão, e a aliança subjetiva continua sendo com as instâncias não pulsionais, por mais que
esse procedimento contenha em si sua própria linha de reversão – pronta a ser (re) traçada quando houver (ou
retornar) a ocasião oportuna (ver Winnicott, D. W., Da pediatria à psicanálise, Obras Escolhidas, Imago, RJ,
2000). Assim, defender-se da pulsão pode se traduzir mais profundamente em deixá-la em reserva, neutralizá-
la por um tempo indeterminado, congelá-la.
14
Se, conforme Pierre Lévy, em lúcida retomada da visão freudiana, um psiquismo pode ser pensado segundo
quatro dimensões – a topológica, a semiótica, a axiológica e a energética -, o afeto se define como processo
ou acontecimento que põe em jogo pelo menos uma dessas dimensões. “Mas, sendo essas quatro dimensões
mutuamente imanentes, um afeto é, de maneira mais geral, uma modificação do espírito, um diferencial de
vida psíquica. Simetricamente, a vida psíquica manifesta-se como um fluxo de afetos”. Lévy, P., O que é o
virtual?, p. 103-105, Ed. 34, 1999, SP. O afeto originário é, portanto, a vida do psiquismo ou sua condição de
existência.
15
O que chamamos de salto no real corresponde ao momento de “retificação das relações do sujeito com o
real”, tal como foi destacado por Lacan em A direção do tratamento (Lacan, J., Escritos, p. 604, Zahar, RJ,
1998). Segundo esse autor, trata-se do primeiro passo propriamente analítico. Evocando a participação
essencial do sujeito na fabricação da realidade de que sofre, esse passo estabelece as bases da transferência no
que esta tem de promissor, pois situa tanto a função do analista como a determinação ética do processo
analìtico como tal. A mudança de plano discursivo decorrente da “retificação” e da transferência dá ocasião
ao terceiro passo propriamente analítico – a interpretação, tendo em vista que esta se realiza, em última
instância, por meio do próprio movimento da verdade no sujeito, instaurado pelos passos anteriores. Lacan
soube mostrar que depois de Freud essa ordem foi completamente invertida: a interpretação, tomando a
dianteira, revelava que o analista concebia a priori, de acordo com seu ideal de eu e seus pressupostos
teóricos, o andamento efetivo da análise; a transferência se instalava, conseqüentemente, por força de uma
idealização do analista e de seu conhecimento; a partir daí, era inevitável que o que concernia ao real se
resolvesse em uma adaptação do sujeito à realidade, tal como esta deveria corresponder ao princípio de
realidade do analista.
Conforme veremos adiante, a retificação ou a correção da relação do sujeito com o real é sem dúvida
o primeiro passo da análise, mas é também o passo constante, sempre retomado, até o fim do processo

14
trata apenas de compreender, mas de agir, de decidir – não sem compreender,
o que difere da passagem ao ato inconsciente. No plano do inconsciente,
porém, é uma constante passagem ao ato esclarecido. De chofre, um solo
originário.
Já dissemos em outro lugar que a psicanálise, originariamente clínica e
uma teoria do real, necessita, no entanto, de um contínuo banho de real para se
colocar à altura de sua destinação e aí permanecer, e que este banho consistiu,
até agora, no crivo pelo qual fizeram-na passar o próprio Freud, depois Lacan,
e até mesmo Deleuze e Guattari, aparentemente seus antípodas. A esquizo-
análise é ainda a psicanálise, como a física quântica é ainda a física. Colocar-
se à sua própria altura – mas é isto, repetimos, que se opera in progress, como
convém à ciência da pulsão. Tudo depende de se manter essa direção, de não
perder o rumo. Não avançar, bem entendido, já é perdê-lo. Insistimos,
portanto, acreditando que por meio desta insistência seja possível dar um
passo esclarecedor, sobretudo quando lidamos com um tema cuja assimilação
se mescla imediatamente à sua prática. Prática do pensar, mas também do
viver. Talvez haja um ponto em que o pensar e o viver sejam indiscerníveis, e
esse seja o seu ponto mais alto.
Qual a amplitude do campo pulsional (ou analítico)? Será possível dizer
que nada fica fora desse campo, que ele é o um-todo, o ovo filosófico, e por
isto também a derradeira descoberta da ciência – nada fica fora do seu
campo? Da física e da química à biologia e desta à psicanálise há um percurso,
que se poderia chamar de crítico e ético, pelo qual se renovam as condições do
saber no Ocidente; é o processo amplo e molecular em que o sujeito da
ciência, subvertido, retorna ao inconsciente, ao real. Ao agente da subversão
foi dado o nome de pulsão. É desse processo e de sua necessidade clínica que
nasce o conceito. Estamos às voltas com uma concepção de sujeito que, se
manifesta o ser em algum sentido, manifesta-o como atividade e poder de
avaliação. A condição ativa nos adverte, no entanto, que é apenas desde um
campo de representação que a subversão aparece como tal, pois no plano dos
afetos, isto é, da vida pulsional, opera-se uma reversão ética, legitima por sua
origem, de feição pré-socrática em alguns aspectos, kierkegaardiana em
outros, onde o viver e o saber coincidem 16.

analítico. É um salto, pois implica em mudança de plano. Nunca se trata, porém, de um único salto, e sim de
uma série deles, o que indica uma graduação, uma aproximação por graus – graus do real.
16
É bem verdade que em Kierkegaard se trata da fé, da crença, e não do saber, dimensão menor da vida cristã,
segundo este autor. O que procuramos demonstrar é que a noção de pulsão traz para o campo do saber o que
Kierkegaard chamaria de energia da fé, uma espécie de convicção quanto à passagem ao ato. Não se considera
aqui uma compreensão que se basta a si mesma, mas uma passagem da compreensão à ação que afeta
inevitavelmente as condições do próprio conhecimento. Tanto é assim que Kierkegaard pode dizer: “se o
homem, no próprio segundo em que reconheça o justo, não o pratica, eis o que se produz: em primeiro lugar o
conhecimento estanca (...) E quando se obscurece suficientemente, o conhecimento põe-se em mais completo

15
A práxis analítica não faz outra coisa que revolver o solo das vitalidades
e dos saberes esquecidos e ainda por vir; e assim não cessa de relembrar, no
curso da escuta flutuante, que o esquecido originário é o devir do saber e da
vida. Ela ensina, aliás, que não há outro devir. Diga-se de passagem, é preciso
contar com uma considerável potência de esquecimento para lembrar disso.
Esse gênero de recordação, espécie de recordação pura, evoca diretamente o
sujeito do inconsciente, isto é, o lugar e a ocasião da maior vitalidade e da
maior lucidez. É uma recordação pura, sem conteúdo ou representação, por ser
o pressuposto de todas as histórias subjetivas; mas aparece também como um
resultado, como a eclosão da diferença e um futuro. “Diferença”, aqui, não
decorre de uma busca de diferenciação em relação aos outros, busca
equivocamente narcísica, onde, inclusive, os outros continuariam sendo a
medida de todo o esforço empreendido e, por esta razão, necessariamente
abortado. “Diferença” é um modo preciso de nomear a lucidez de um mundo e
seu brilho, sua verdade.
Pensamos assim em uma ciência da vida para além da biologia, numa
bio-lógica, de maneira a envolver com esse termo a noção freudiana de
metapsicologia. Para exprimi-lo em poucas palavras, o que não é biológico e
nem psíquico, e nem imediatamente ontológico, é ético 17. Que a pulsão seja

acordo com a vontade; por fim é o acordo perfeito, porque aquele passou para o campo contrário e ratifica
tudo o que esta arranja” (Kierkegaard, Sören, O desespero humano, p. 160 e 161, Livraria Tavares Martins,
1961). Na especulação pura, a passagem do pensamento ao ser é fácil, tudo é dado antecipadamente, não há
resistência ou demora, nenhum embaraço, pois não leva em conta, como insiste Kierkegaard, o indivíduo real.
Ora, o que garante esta passagem ao real é o afeto (ou seja, a dimensão dos valores inconscientes). Daí a
importância, nesse pensamento, da noção de angústia. Em psicanálise, porém, trata-se de ligar o afeto ao
saber. Uma convicção, tal como a mencionamos acima, já não se esteia na fé, não é mais uma crença, e sim
um entendimento orientado pela pulsão. O entendimento, aqui, é uma avaliação, e esta é um afeto.
Esclareçamos mais este ponto: para Kierkegaard, há uma insuficiência na concepção de falta ou de
pecado quando este coincide inteiramente com a ignorância, conforme o critério socrático; segundo este
critério, quem compreende o justo não pratica o injusto; se este é praticado, é porque se ignora o que é justo.
Não está presente na versão socrática do pecado a categoria do querer, do desejo. Pois bem, assevera
Kierkegaard, do ponto de vista cristão pode-se não querer praticar o justo. Já estamos, assim, no domínio dos
afetos, isto é, do real, do homem vivo. Mas isto também é válido para o saber da análise: é possível não querer
saber. E no entanto, esse saber é diretamente a prática do justo. É a descoberta psicanalítica da linguagem
inconsciente, e em última instância da pulsão, que permite um retorno do homem ao “poder que o criou”,
como se expressa Kierkegaard, mas não mais pela fé, como quer este autor, e sim pelo saber. O inconsciente
psicanalítico não é, portanto, um assunto de fé ou de crença, mas sua incidência ética não difere da formulada
por Kierkegaard a propósito do desespero humano, do pecado e da fé, enquanto experiência do indivíduo
humano perante Deus.
17
Uma ontologia adequada à ética em questão seria possivelmente uma ontologia da imanência semelhante à
de Spinoza. Deve-se distingui-la, como pretende Deleuze em suas aulas sobre Spinoza (Deleuze, G., En
medio de Spinoza, p. 44 e seguintes, Cactus, Buenos Aires, 2008), da metafísica do Uno. Se este é o Bem, é
superior ao ser, pois só o Bem faz ser, só ele garante o ser, e assim hierarquiza a ordem dos seres. É o prisma
moral instalado no cerne de todo o pensamento metafísico, de Platão a Schopenhauer. Os seres estão julgados
de antemão. No regime da imanência, porém, o ser se diz da mesma maneira de cada ente, e cada qual se
esforça por efetuar sua potência: toda hierarquia só se erige secundariamente, o que faz a questão do ser e da
potência, de início ontológica, refluir para uma ética da existência. A filosofia se torna prática. O bem e o mal

16
de consistência ética (e não apenas um problema ético), é coisa que precisa ser
ainda estabelecida.
Costuma-se dizer que a pulsão é um construto teórico, uma ficção,
como queria Freud, quando fazia intervir die Hexe, a bruxa metapsicológica,
para resolver um impasse teórico que, no caso da psicanálise, teria sempre
conseqüências clínicas. Não o real, mas uma espécie de mito acerca do real,
um meio de representá-lo, de torná-lo inteligìvel. “A teoria das pulsões é, por
assim dizer, nossa mitologia” (Freud). Não sendo somática e nem
propriamente psíquica, a pulsão não é diretamente apreendida senão como
idéia e afeto. Essa noção central, no entanto, deve ter uma funcionalidade,
deve servir clinicamente, já que não há pensamento psicanalítico sem
implicações clínicas. É daí justamente que advém a força e a fecundidade da
análise, do fato de se tratar de uma prática, ou ainda de um pensamento prático
18
que, desde sua origem, se desarranja e se orienta pelos enigmas e as
aberturas de sentido com os quais se defronta na clínica. Os conceitos
precisariam estar aliados a esse empreendimento. Ora, deste ponto de vista, a
pulsão mesma será entendida, e muito especialmente ela, não só como
presença obscura que aturde e mobiliza o pensamento, mas também como
práxis, isto é, como procedimento ou exercício em seus diversos graus de
inteligibilidade real. A questão da pulsão é a da experiência que se pode fazer
dela e da sua eficácia, e se ela é produção do real como pretende, por exemplo,
Garcia-Roza, é ainda em um sentido diferente de ser uma descrição do real
que o produz como “uma ficção autenticamente cientìfica”. Ela será concebida
como práxis que produz e re-produz, por efeito de superação constante, suas
próprias condições de exercício. Este conceito se torna, imediatamente, uma
operação. Há uma armadilha da teoria que é uma armadilha do pensamento:
como a pulsão “nunca se dá por si mesma (nem a nìvel consciente e nem a
nível inconsciente), ela só é conhecida pelos seus representantes: a idéia
(Vorstellung) e o afeto (Affekt). Além do mais, ela é meio física e meio
psìquica. Daì seu caráter mitológico” 19. Com isso, tal pensamento não teria
uma incidência imediata na prática analítica. Os traços de equivocidade e de
indiscernibilidade da pulsão dão abertura e elasticidade clínica ao conceito,
mas é preciso não perder logo adiante o que há pouco se conquistou.

cedem lugar às apreciações reais acerca do bom e do mau, do que favorece a vida, ou seja, do que é favorável
à efetuação da potência em tais circunstâncias, aumenta a capacidade de agir e dá lugar a alegrias ativas, e o
que a envenena e paralisa, promovendo as paixões tristes. O conhecimento, que nos faz experimentar alegrias
ativas, é assim diretamente ético. O ponto de partida da análise, sua neutralidade, sua ausência de
preconceitos e de juízos sobre a existência, torna-a exemplar como prática da imanência.
18
A filosofia de Spinoza foi chamada de “prática” por Deleuze, e precisamente por ser uma Ética. Seu
interesse para a psicanálise é considerável, e embora Lacan, especialmente, o tivesse percebido, não parece ter
extraído disso todas as conseqüências.
19
Garcia-Roza, L. A., Freud e o inconsciente, p. 115, Zahar, RJ, 1996.

17
Afastando-se muito facilmente o problema da pulsão para o campo da
representação, perde-se o fio pragmático, essencialmente ativo, desse conceito
admirável, com o agravante de desconhecer, de modo implícito, que o real é a
experiência direta da pulsão.
Ainda mais contundente em sua forma de afastar para o campo teórico e
especulativo o problema das pulsões, Fabio Herrmann afirma que “as teorias
diversas que compõem a metapsicologia freudiana, como o nome o diz,
formam uma espécie de metafísica da psique e possuem, como tal, valor
operacional interpretante; valor, porém, que só é vigente nos campos teóricos”
20
. Uma vez reduzida ao horizonte metafísico da teoria e desconhecida sua
enorme plasticidade, a noção de pulsão, que devia ser o alfa e o ômega da
clínica, perde sua eficácia e se torna clinicamente inútil. Note-se o que está em
jogo: a pulsão é, a cada vez, a medida de nossa relação com o inconsciente, ou
seja, com a verdade de nosso ser, com o coração deste ser, ainda que ele seja
afetado de uma profunda indeterminação – indeterminação decorrente, é claro,
do andamento que ainda será dado a essa relação. Assim, a neutralização desse
conceito extemporâneo, dotado de tal virtude operatória, não deixará de ter
conseqüências teóricas e clínicas. Mas o que Herrmann irá chamar de “sentido
de imanência”, aduzindo a esta noção um caráter misterioso, não será,
precisamente, a pulsão de vida enquanto princípio ativo, atuando, ao longo do
tempo, em diferentes graus de experimentação? O vivo, embora não
habitualmente detectado, é de uma evidência prática espantosa, em especial na
operação analítica – seja a irrupção do vivo no lapso, ou, para usar conceitos
de Herrmann, no vórtice que anuncia a ruptura de um campo psíquico.
Acontece de ser este vivo uma determinação constante, e se de alguma forma
ele resulta, como quer esse autor, do método psicanalítico aplicado, que ao seu
tempo o provoca, o convoca, isto se dá legitimamente na medida em que o
método guarda uma aliança essencial com a vida – isto é, com a pulsão – e sua
ética originária. A partir daí, essa ética encontra no método seu meio de
afirmação, sua precisão. A psicanálise não é uma ciência do “homem
psicanalìtico”, mas da vida, tal como ela se diferencia, se aprofunda e se
abisma nas condições de experiência do homem. E não, é claro, do homem em

20
Herrmann, F., Introdução à teoria dos campos, p. 85, Casa do Psicólogo, SP, 2004. “Não resta dúvida que,
se alguém se sente tentado a usar sem mediações tais teorias de alto nível na clínica diária, será
inexoravelmente conduzido a cometer aberrações do tipo da reificação implicada em explicar a destrutividade
de um analisando pelo montante de seu “instinto de morte” e, quando este melhora, justificar o fato pela
vitória do “instinto de vida”, em favor do qual colaborou o analista”. O uso abusivo e mesmo aberrante destas
noções não autoriza, no entanto, seu abandono clínico, pois vida e morte são critérios éticos pelos quais o
sujeito, via pulsão, é reconduzido à posição de desejo e saber. A pulsão não é um mero conceito explicativo,
operante apenas no campo teórico; é um conceito polêmico, clínico e provocativo. Não se trata aqui, porém,
de criticar Herrmann e sua concepção de clínica. É apenas um exemplo da disparidade de perspectivas na
compreensão da análise ou, no mínimo, conforme pensamos, de seu conceito fundamental.

18
geral, mas de cada um, conquanto o destino de um possa interessar ao destino
de todos. Dizer que a pulsão de vida não é uma coisa metafísica, meramente
especulativa, mas uma prática, aproxima-nos de suas condições reais.
Quais os passos teóricos que permitiriam transpor a barreira da
representação em direção à determinação desse conceito prático, a ponto de
esclarecer seu vetor clínico? E com qual intuito o faríamos? Como diz um
personagem de Godard, “conhecer a possibilidade de representar nos consola
da sujeição à vida. Conhecer a vida nos consola do fato de que a representação
tem caráter de sombra” 21. É o segundo conhecimento que poderá nos curar.
O clínico é originário 22. Aliás, desde Nietzsche, com o antecedente da
Ética de Spinoza, a filosofia é (para usar ainda uma expressão deleuziana)
crítica e clínica. Crítica porque avalia as condições de um pensamento; clínica
porque essa avaliação, além de considerar um pensamento pelo prisma
sintomatológico, é também uma medicina. Uma visão clínica avalia os estados
de saúde e de doença, os graus de vitalidade de um processo, de um
pensamento; esta visão não é a de um juiz, ela pertence ao processo e é como
que o seu cerne, a subjetividade do processo. Quanto mais singular este for,
mais viva e lúcida será a avaliação de que é capaz. Entenda-se que o singular,
aqui, não é um sujeito constituído de suas particularidades – é um
acontecimento único, originário e, como tal, uma anomalia, capaz de recriar e
sanear, à sua maneira, as formas e dispositivos culturais com os quais se
enfrenta. A propósito da literatura, diz Deleuze que “não se escreve com as
próprias neuroses (...) A doença não é processo, mas parada do processo (...)
Por isso o escritor, enquanto tal, não é doente, mas antes médico, médico de si
próprio e do mundo” 23. No caso da psicanálise, nada impede que se veja no
analista uma espécie de médico, desde que ele se alie à pulsão que é, ela
mesma, a medicina adequada. A pulsão é o médico e a medicina, o curador e o
modo de curar. É o mesmo que Freud já dizia, com outras palavras, no estágio
inicial da sua teoria – que o sujeito é o verdadeiro intérprete do sonho 24.
Mas ele só é efetivamente o verdadeiro intérprete do sonho se fizer
justiça ao seu descentramento, o que é garantido pela pulsão. Cabe perguntar,

21
Extraído do filme Para sempre Mozart, de Jean-Luc Godard.
22
Assinalemos, de passagem, que uma tendência atual a condenar a clínica psicanalítica devido ao micro-
poder implicado nos dispositivos clínicos em geral, com suas modalidades de subjetivação e sujeição,
desconhece o poder peculiar da análise de restaurar as vias singulares, existenciais – isto é, pulsionais – pelas
quais os modelos de subjetividade são subvertidos e superados. Ora, essas vias se inscrevem num plano ético,
relativo, em última instância, à vida e à morte. O clínico e o ético pertencem, assim, ao mesmo plano.
23
Deleuze, G., Crítica e clínica, p. 13, Ed. 34, SP, 1997.
24
Freud, S., Obras completas, vol. I, p. 407, Biblioteca Nueva, Madrid, 1973. Em nota de rodapé, Freud
destaca a diferença essencial de seu método: consiste em “confiar ao próprio sujeito do sonho o trabalho de
interpretação, não atendendo senão ao que lhe ocorre nesse trabalho de interpretação, e não ao que pudesse
ocorrer ao intérprete...”

19
porém, se não se opera assim um recentramento do sujeito, agora no plano de
uma realidade pulsional, perdendo-se de vista o que fora obtido com a noção
de inconsciente, ou seja, que as questões subjetivas não se fechassem em um
fundamento, em uma essência, aos quais pudessem ser referidas de uma vez
por todas. Não é este o caso se concebermos a pulsão como atividade, como
dizer. Se nos ativermos a isso, a idéia de centro deixa de ser aplicável e dá
lugar às noções de linha, de movimento, de direção. A virtude do conceito
reside, precisamente, em sua pertinência aos atos. A Trieb freudiana continua
sendo uma novidade no campo dos conceitos. Através dele, como dissemos no
início, o pensamento faz seu retorno à vida. Não é difícil entender porque será
um retorno clínico.

O campo analítico e suas versões

Num texto esclarecedor, intitulado Descentramento e sujeito – versões


da revolução coperniciana de Freud, Benilton Bezerra Jr. aponta as três
versões do descentramento subjetivo 25 que têm decidido pelo curso da
pesquisa psicanalítica em sentido amplo: o que ele chama, por comodidade de
exposição, de concepção “mentalista”, a concepção estruturalista desenvolvida
pela escola lacaniana, e a concepção que se volta ao campo originário das
pulsões. Em relação a estas linhas de entendimento sobre o que seja atuar e
pensar psicanaliticamente, mais ou menos estabelecidas na atualidade, o autor
oferece ainda um ponto de vista diferenciado, com base nos pragmatismos
lingüísticos de Austin, Wittgenstein, Davidson, Derrida e outros.
Retomemos com brevidade, porém passo a passo, sua exposição crítica.
O “mentalismo” parte de uma teoria da linguagem baseada na
representação e no pressuposto de que existem coisas, afetos, emoções,
verdades subjetivas independentes da linguagem, e que apenas encontrariam
nela a sua representação justa, aproximada ou distorcida. A noção de
inconsciente introduziria assim, quase que naturalmente, a idéia de algo que
existe em profundidade, intocado pelas palavras, um lugar das significações e
das verdades ocultas, uma origem essencial do sujeito. É uma visão
essencialista ou fundamentalista do sujeito, de suas ações e de seus objetos.
Segundo essa referência, a tarefa analítica consiste em descobrir a emoção

25
Costa, Jurandir Freire, Redescrições da psicanálise: ensaios pragmáticos, p. 119, Relume-Dumará, RJ,
1994. Segundo Birman, citado por Bezerra Jr. (p. 125), há três momentos no processo de descentramento do
sujeito operado pela psicanálise: um primeiro que se verifica da consciência para o inconsciente, implicando
uma extensão do psíquico para além dos limites da consciência; um segundo, do eu para o outro, a partir de
uma análise da alteridade fundamental do eu, baseada nas noções de narcisismo, de identificação, de ideal de
eu; e um terceiro momento que promove o descentramento da consciência, do eu e do inconsciente para as
pulsões, as quais compreendem, no limite, o elemento intensivo que escapa a toda representação.

20
“diretamente vivida”, em explicar a causa mais remota do sintoma, em revelar
o verdadeiro agente das justificações racionais conscientes e das defesas
egóicas. Uma concepção desse gênero conserva as antigas dicotomias da
metafísica ocidental, tais como falso e verdadeiro, aparente e essencial,
periférico e central, contingente e transcendente, sempre acompanhadas de
uma projeção espacial que evoca o superficial e o profundo. Resulta daí,
inevitavelmente, um critério clínico normativo, cuja orientação é dada pelo
estatuto do que é profundo, verdadeiro, essencial. Os acasos e a
indeterminação que parecem constituir a experiência humana, e que
determinam a existência de uma prática clínica que recebe o nome de
psicanálise, destinada a enveredar, com sua escuta flutuante, pelas
singularidades de uma história real, são esquivados como elementos
secundários, não essenciais à pesquisa de uma verdade profunda do sujeito.
Ao negligenciar o contingente, o imprevisto e o anormal, o “mentalismo”
perde de vista a psicanálise, no mínimo o melhor dela.
A pesquisa estrutural dedica-se a desmontar a ilusão desse entendimento
da linguagem como representação e de seu ponto de partida, a existência de
coisas em si que subsistiriam aquém da linguagem. Sustenta que todos os
fenômenos da experiência humana, conscientes e inconscientes, são
estruturados como linguagem, sendo o sujeito um vazio exigido pela estrutura,
em deslocamento constante. A linguagem se apresenta assim como dado
primeiro, a-semântico, matriz estrutural de todas as significações possíveis.
Que não haja um sentido anterior às operações de linguagem exige uma
revisão da natureza do sujeito, de sua identidade consigo mesmo, por mais
inconsciente que pareça, pois agora passa a ser entendido como fato de
linguagem. “O homem fala, mas é porque o sìmbolo o fez homem”, diz Lacan.
A experiência de ser um eu, um sujeito em face de outros sujeitos e de
compartilhar de um mundo depende inteiramente da pré-existência da
linguagem. Com isto deve-se distinguir a linguagem enquanto estrutura e
esquema matricial de suas múltiplas efetuações, seus inumeráveis produtos, do
mesmo modo que se pode distinguir a língua dos atos de fala, o código
lingüístico das produções que ele viabiliza. No plano do sujeito essa distinção
se fará pela clivagem entre enunciação e enunciado. O sujeito da enunciação é
vazio, negatividade radical, não idêntico a si, mas, como tal, é exigido
logicamente pela linguagem enquanto estrutura. Não se confunde com
qualquer discurso sobre si, mas é o que torna possível a série indefinida dos
eus, tal como aparecem na diacronia dos enunciados. Estes constituem, ao
longo do tempo, a história psicológica de cada indivíduo, como tantas
tentativas de preencher com um sentido positivo, uma descrição suficiente, a
negatividade essencial ao sujeito. Não se trata mais, diz Bezerra Jr., de

21
desencavar, elucidar, revelar uma verdade oculta e reconciliar o sujeito
consigo mesmo, nem de obturar a falta que lhe é constitutiva, ou de desaliená-
lo 26. A análise se volta a uma destituição subjetiva, a uma “separação do
sujeito da cadeia do seu próprio discurso. Transpostas as cadeias das ilusões
psicológicas, das defesas egóicas e das marcas identificatórias do eu, o sujeito
deve poder se defrontar com sua não-identidade a si, deve poder reconhecer-se
„causado como falta‟, e desse modo poder vir a desejar intransitivamente” 27.
Mas ao promover uma noção de linguagem atemporal, a versão
estruturalista se encaminhou, inevitavelmente, para uma metafísica da falta e
do desejo. Sua apreensão despojada da subjetividade manteve o apoio em uma
instância subjetiva que seria a verdade última do sujeito, sua posição
transcendental, ainda que vazia. A não identidade a si, por um lado, e as
representações egóicas, por outro, repetem e acentuam a distinção entre o
sujeito verdadeiro, mesmo que conotado como furo, falta, e as ilusões do eu.
O furo, a falta, o vazio, embora negativos, são ainda essenciais, atemporais,
pois não se confundem com o contingente, o acidental e o empírico. São
invariantes estruturais. É a crítica que O anti-Édipo já dirigia à psicanálise
estruturalista, na medida em que esta não cessa de reconduzir as posições
subjetivas, moleculares, micro-desejantes, a uma falta molar, à castração
simbólica, o que equivale na prática clínica a reduzir a diversidade dos
enunciados e a pluralidade das vozes a um único vazio de silêncio e ausência.
Já a perspectiva que tem por foco operatório a pulsão, ou as pulsões, se
pauta pelo argumento de que os conflitos, as escolhas, as inibições e invenções
humanas não podem ser entendidos sem o recurso às noções de força e de
alvo, relativas ao chamado campo pulsional. Pode-se dizer que, em Lacan, é o
real que faz a função desse campo, o que exige uma discussão mais nuançada
da lógica estrutural que ele adota. É verdade que Lacan repele a idéia de força
como obscura, em favor de uma causalidade inconsciente, ligada à idéia de
hiância, de falta.
Dois aspectos da leitura psicanalítica que dá primazia à pulsão serão
destacados por Bezerra Jr., compreendidos por este autor como nodulares nas
digressões sobre a mesma: que Freud a tenha localizado entre o psíquico e o
somático, como uma ponte que já não pertence ao campo biológico e nem se
resolve inteiramente no campo das representações – conceito limite, ponto de
partida e ponto de chegada dos fenômenos que interessam à investigação
analítica; e que seja definida sobretudo como Dräng, força e exigência de
trabalho, urgência. O primeiro aspecto irá remeter, de saída, à distinção entre
instinto e pulsão, decorrente da previsibilidade da conduta animal em relação à
26
Redescrições da psicanálise, op. cit, p. 136.
27
Idem, p. 136.

22
indeterminação que caracteriza a experiência humana. Quer dizer que o corpo,
concebido como pulsional, não encontra derivação imediata e fixa de suas
excitações; tudo nele já compreende uma mediação psíquica, simbólica, e um
destino em aberto. O segundo aspecto, o caráter de Dräng, refere-se tanto à
força como à atividade, e por isso a definimos freqüentemente como força
ativa (vis activa). Curiosamente, Bezerra Jr. e os autores de modo geral,
excetuando muito especialmente Lacan, não consideram este traço essencial
da pulsão. E no entanto, é somente do ponto de vista de sua atividade que um
ser vivo pode afetar e ser afetado, conforme uma definição de força dada por
Deleuze. A pulsão é assim uma força constante com um destino
indeterminado.
O que é criticável na perspectiva psicanalítica que adota o elemento
pulsional como ponto de partida? Segundo Benilton Bezerra Jr. é a pretensão
de estender a pesquisa até o que seria o fundamento pulsional da experiência,
envolvendo de novo as idéias de verdade última e de uma essência do humano
em geral. Ingressar no que constituía, já para Freud, um terreno mitológico,
parece ser um empreendimento de retorno duvidoso, de interesse secundário,
se o que importa realmente, clinicamente, a propósito das pulsões, são os
fenômenos analíticos observáveis, isto é, aqueles acontecimentos que podem
ser descritos, relatados em análise, tais como as fantasias, os sintomas, os
sonhos, os lapsos. A crítica retoma, aqui, a posição acima discutida de Fabio
Hermmann. “É preciso lembrar que para Freud só se pode falar da pulsão
quando há representação, ou seja, a energia é sempre representada e são seus
representantes, e não ela própria, o que interessa à análise. Há uma grande
diferença entre reconhecer o caráter de força dos atos psíquicos e reivindicar
para ela uma perspectiva ontológica” 28. Embora na frase acima haja um
desnível nas colocações, pois afirma, num primeiro momento, que o interesse
clínico recai sobre as representações e não propriamente sobre a energia
pulsional, para em seguida valorizar o caráter de força dos atos psíquicos – ou
seja, a energia que se acabou de deixar em segundo plano –, o decisivo
concernente à crítica de um fundamento pulsional é dito, a saber, a
inconveniência de se pensar num ser da pulsão. Qualquer dimensão mais
radical do sujeito reconstitui o ponto de vista essencialista que se procurava
evitar com a descrição do seu descentramento, o qual, como já dissemos, é a
pedra de toque da noção de inconsciente. Um centro, um fundamento, uma
essência dos processos psíquicos acaba por neutralizar nada menos que a
noção mesma de inconsciente.

28
Idem, p. 144.

23
Ora, não será a pulsão, justamente ela, que irá neutralizar essa
inquietante noção. Muito pelo contrário, se é certo que ambas as noções se co-
pertencem, ou melhor ainda, se a pulsão é a garantia de abertura do
inconsciente. “Falar de pulsional é afirmar que a experiência psìquica não se
explica por algum tipo de lei natural, que a sexualidade humana e seus
regimes de prazeres e sofrimentos não obedece a padrões previsíveis e
controláveis, e estão na dependência de trajetórias que a cultura e a linguagem
põem à sua disposição” 29. Aí reside, segundo Bezerra Jr., o interesse clínico
da noção de pulsão, e não em seu pretenso realismo
Mas se o recurso conceitual à pulsão serve para evocar a força, o alvo, o
destino e a singularidade de um processo psíquico, não se deve esquecer que
ela é, em essência, atividade. E tão importante quanto sua essência ativa é sua
consistência ética. É precisamente nestes termos que o conceito se ilumina, e
que a concepção pragmática da linguagem que iremos abordar em seguida
permanece em seu campo de aplicação.
Nas três versões do descentramento apresentadas há apenas
deslocamento do centro, ou sua distribuição móvel, não a sua abolição.
Conforme diz Bezerra Jr., a revolução coperniciana de Freud teria consistido
em demonstrar, de acordo com essas três versões, que o centro do psiquismo
não se encontraria na consciência, e sim em outro lugar. A revolução ficou a
meio caminho? Ainda que a imagem do centro esteja pulverizada na
perspectiva estrutural, resta ainda a noção de um lugar outro, de pura
negatividade, para onde refluiriam e se resolveriam, como uma espécie de
buraco negro sempre deslocado, todas as peripécias subjetivas 30.
De acordo com essas versões, as questões relativas à investigação
analìtica se fariam nos seguintes termos: “Qual o sentido verdadeiro, latente,
da representação manifesta?” (versão mentalista). “Como revelar o sujeito
verdadeiro por trás das identificações imaginárias?” (versão estrutural).
“Como ultrapassar os limites da fala e da linguagem e trazer à tona a dimensão
verdadeiramente fundante da intensidade pulsional?” (versão pulsional).

29
Idem, p. 146.
30
Em que medida a análise foi “desativada” pelo pensamento estrutural? A partir da idéia de pulsão e de seu
poder de descentramento, Chaim Samuel Katz fez ressoarem, pelo avesso, o privilégio do significante,
próprio da perspectiva estrutural, e os interesses da cultura: “Freud jamais postulou o primado de significante-
significado como questão (...) central para a psicanálise, por mais que muitos se esforcem por fazê-lo dizer tal.
A unidade discursiva é provisória não apenas (como afirmam Lacan e os seus seguidores) porque todo
significante que se torna em significado é logo substituído por outro significante. Mas porque, contra a
unidade e a unilinearidade da cadeia significante (na linha do pensamento lacaniano) se põe a marca vital da
pulsão, que é plural, não determinada por centros, ex-centros (à la Heidegger, Lacan) ou faltas. E,
especialmente, porque a pulsão é profunda e arraigadamente associal” . Katz, C. S., Ética e psicanálise: uma
introdução, p. 206 e 207. Graal, RJ, 1984. Conforme veremos adiante, o traço extra-pessoal da pulsão não a
torna gregária, muito pelo contrário.

24
Todas essas questões evocam um centro, uma verdade essencial,
transcendente ou metafísica, como alvo final do processo analítico e sua razão
de ser.
O que é então adotar o ponto de vista pragmático com respeito à
linguagem? Em que ele é liberador em relação à ficção de um centro, de um
fundamento, de uma essência ou de uma transcendência às quais se reportaria
o sujeito? Como contornar essa ficção de origem metafísica, enraizada nas três
concepções destacadas, e que parece se conservar em detrimento do que seria
a novidade psicanalítica por excelência – uma atenção rigorosa à contingência,
à história, à singularidade, à invenção?
O descentramento do sujeito pode ser tratado de um modo não
essencialista ou metafìsico: “Quando Freud esfumaça a fronteira entre a
normalidade e a psicopatologia, ou ainda quando aponta as origens libidinais
das exigências morais, ele não responde nem inverte a tradicional questão
sobre o centro da vida subjetiva: ele simplesmente usa um vocabulário para
descrever a experiência psìquica que torna a idéia de centro menos útil”. A
idéia de inconsciente serve especialmente a esta relativização do normal e do
patológico, assim como para apontar as fontes não morais da moralidade,
iluminando uma experiência humana mais rica, complexa e nuançada, e
fazendo entrar na legitimidade do humano o que antes lhe pareceria exterior,
estranho, ameaçador.
E o que temos a dizer de novo acerca da pulsão que permitirá integrar a
pragmática lingüística ao seu conceito? E em que sentido, integrando-a, com
todos os seus elementos críticos, o conceito ainda é exigido – com ela, para
além dela?
Eis uma breve indicação: a questão analítica, vista pelo prisma de uma
pragmática pulsional, não é de centro ou de essência, de verdade ou de
fundamento, mas de determinação, de sobre-determinação, de hiper-
determinação e de auto-determinação... É certo que todas aquelas
denominações podem ser utilizadas como metáforas, a título de apoio ao que
verdadeiramente interessa. Não vemos problema algum no fato de usarmos
termos como “profundo” e “superficial”, se pensarmos, ao modo de Paul
Valéry, que o mais profundo pode ser a pele.
Para autores como Wittgenstein e Austin, a linguagem deve ser definida
como uma atividade. É um bom começo – inequívoco, sóbrio, vital.
Considerá-la assim tem o mérito de evitar, logo de início, a tentativa de
responder pela sua natureza última, pela sua essência, ou seja, evita
caracterizá-la por uma função única, seja a de representar, de expressar, ou
outra qualquer. “Assim como as atividades humanas não estão a priori
codificadas em qualquer elenco fixo e predeterminado, tampouco a linguagem

25
pode ser reduzida a uma tarefa essencial” 31. A linguagem pode se prestar a
muitos usos, sendo ela mesma tão múltipla quanto os seus usos. Ao pensar em
termos de “jogos de linguagem”, Wittgenstein alcança uma formulação
decisiva para sua concepção de linguagem, o que não implica – e aqui reside o
interesse da expressão – em nenhuma essência que a palavra “jogos” pudesse
evocar, muito pelo contrário. O resultado é estarmos diante de muitas
linguagens, e não da Linguagem. Em relação à consideração dos jogos em
geral, Wittgenstein recomenda: “Não diga: „Algo deve ser comum a eles,
senão não se chamariam „jogos‟, – mas veja se algo é comum a eles todos. –
Pois, se você os contempla, não verá na verdade algo que fosse comum a
todos, mas verá semelhanças, parentescos, e até toda uma série deles. Como
disse: não pense, veja!” 32 Linguagens e formas de vida, para Wittgenstein, são
o mesmo. É notável a proximidade com a nossa pragmática pulsional. A
linguagem será então concebida como ação, as palavras como ferramentas, e o
seu uso dependerá de regras de uso específicas, de acordo com o contexto de
atividades em que essas regras se aplicam. As perguntas, em cada caso, são
aquelas propostas em O anti-Édipo: “como isso funciona?”, e “para que
serve?”, e não mais “o que representa?” ou “o que quer dizer?”, embora a
linguagem também possa servir para representar e exprimir.
À semelhança de uma caixa de ferramentas, em que cada ferramenta,
cada utensílio (seja um martelo, uma serra, um metro, um vidro de cola,
pregos, etc.) tem uma finalidade tão díspare quanto possivel de outra,
Wittgenstein propõe uma lista em aberto de jogos de linguagem: “comandar, e
agir segundo comandos; descrever um objeto conforme a aparência ou
conforme medidas; produzir um objeto segundo uma descrição; relatar um
acontecimento; conjeturar sobre o acontecimento; expor uma hipótese e
prová-la; apresentar os resultados de um experimento por meio de tabelas e
diagramas; inventar uma história; ler; representar teatro; cantar uma cantiga de
roda; resolver enigmas; fazer uma anedota; contar; resolver um exemplo de
cálculo aplicado, traduzir de uma língua para outra; pedir, agradecer, maldizer,
saudar, orar...” 33 É certo que entre os diversos usos da linguagem alguns
poderiam adquirir maior importância para a vida humana, a ponto de se
indagar por uma destinação maior da linguagem. Considerando-a como
atividade, como conduta expressiva, isto é, pragmaticamente, de que modo
situarìamos a seguinte versão de Hölderlin quanto à sua finalidade: “Ao
homem foi dada a língua, o mais perigoso dos bens, para que ele dê
testemunho de o quê ele é”? Trata-se aqui de uma concepção idealista da

31
Idem, p. 149.
32
Wittgenstein, L., Investigações filosóficas, p. 52, § 66, Os pensadores, Ed. Nova Cultura, SP, 1996.
33
Idem, p. 35 e 36.

26
linguagem ou do seu uso, digamos, mais elevado, mais remoto, aquele que, de
uma forma ou de outra, já pressupõe os demais usos?
Que as questões de uso estejam em primeiro plano quando se define a
linguagem como ação tem por conseqüência necessária que o sentido deixa de
ser algo prévio à expressão lingüística, ou, ao contrário, o efeito de uma
combinatória de significantes em si mesmos vazios de significação; ele passa
a ser uma propriedade da ação de linguagem, ou melhor ainda, ele coincide
com o seu exercìcio. “A significação de uma palavra é seu uso na linguagem”
34
, de tal modo que investigá-la envolve o conhecimento das regras de uso que
a condicionam, assim como, repetimos, o contexto em que essas regras têm
sua aplicação. Conforme assinala Bezerra Jr., em alguns casos as regras de uso
podem não ser muito transparentes e óbvias, mas estão lá, organizando o
sentido das palavras que são usadas. Entender o funcionamento de uma
linguagem é compreender, em última instância, uma forma de vida.
É possível fazer uma analogia da linguagem, compreendida nesses
termos, com a loucura, tal como esta aparece aos olhos de um Lima Barreto,
em O cemitério dos vivos: “Que dizer da loucura? Mergulhado no meio de
quase duas dezenas de loucos, não se tem absolutamente uma impressão geral
dela. Há, como em todas as manifestações da natureza, indivíduos, casos
individuais, mas não há ou não se percebe entre eles uma relação de
parentesco muito forte. Não há espécies, não há raças de loucos; há loucos
só.” 35
As diversas modalidades de determinação dos processos psíquicos a que
nos referimos anteriormente poderiam ser evocadas a propósito das regras de
uso não evidentes que, no entanto, concorrem para a determinação do sentido
de certos enunciados mais complexos, aqueles que compreendem, por
exemplo, temas que costumam figurar no espaço analítico, como as questões
sexuais, éticas, existenciais. Inseridas em contextos históricos e sociais, as
regras que organizam estas questões, tal como vigoram no quadro de uma
composição mais singular, não são imediata e visivelmente dadas.
Fundamental para uma teoria da pulsão, a idéia de força é também
integrada de modo indissolúvel ao ato lingüístico. Não se trata mais de uma
força que investe numa representação ou num conjunto de representações, de
modo que elas sejam dotadas de um poder que não teriam antes disto; se é um
ato de linguagem, ele já contém em si mesmo a tensão que o leva a se realizar.
A tensão, a intenção, a força são inerentes à ação de falar, não se distinguem
da articulação da palavra, não existem fora de sua efetuação. Também aqui
encontramos uma correspondência entre o pragmatismo lingüístico e a nossa
34
Idem, p. 43.
35
Barreto, Lima, O cemitério dos vivos, p. 43, Planeta, SP, 2004.

27
visão do campo pulsional, tendo em vista, especialmente, nossa fórmula para o
sentido e a força – que a força é a do sentido, e o sentido é o da força. Para
Wittgenstein, a energia, tanto quanto o sentido, são propriedades do ato
lingüístico.
A dimensão da força, que junto com a dimensão representacional deve
explicar o funcionamento da linguagem, ganha nas análises de Austin uma
formulação simples e decisiva: dizer é fazer. Quando digo “eu prometo”, não
descrevo ou represento a idéia de prometer, faço efetivamente uma promessa.
O aspecto performático da linguagem, evidente em casos como este, mostra-se
extensivo a todos os atos de linguagem 36. Ao enunciar uma frase, realiza-se
sempre algo além de expressar um sentido com as palavras – ao dizer algo,
realiza-se uma ação como a de comunicar, de comandar, de influir, de
censurar, de conjeturar... O significado das palavras presentes na frase não é
suficiente para cobrir todo o sentido de um ato lingüístico. Além disto, a
mesma frase enunciada pode produzir diferentes efeitos. Este novo
componente do dizer ou do sentido remete – tanto quanto o ato imanente à
frase, ao que o falante quis dizer, produzir – a um campo de intenções e de
desejos. Assim, ao invés de servir para transportar sentidos, os atos de
linguagem fazem coisas, produzem efeitos. Como estes não podem ser
previstos ou controlados inteiramente, graças à equivocidade que reina no
interior da linguagem, as conseqüências indesejáveis, os mal entendidos
decorrentes dos atos de linguagem não são meros acidentes; ao contrário,
pertencem ao horizonte dos seus efeitos, com o mesmo direito que os demais
37
. Pensar deste modo acerca da linguagem tem o mérito de aproximar a
pesquisa lingüística das condições do vivo, da vida humana e da
indeterminação que lhe é própria.
Tal aproximação não pode prescindir da referência a um agente, a uma
vida subjetiva, e se utilizará da noção de crença no lugar da de representação,
na medida em que esta é insuficiente para integrar a atividade inerente à vida.
Entenda-se “crença” no sentido que lhe confere Pierce, isto é, como regra
para a ação, e não como representação possível da realidade. Já estamos
muito perto de uma versão nietzschiana da verdade, entendida como uma
crença que se mostrou valiosa aos propósitos da vida.
Crenças e desejos constituem a rede que Davidson denomina de sujeito.
A rede é mutante em alguns aspectos, duradoura em outros. A cada aspecto da
rede, pode-se atribuir uma subjetividade, pois cada crença é um modo de
responder às circunstâncias do meio interno e externo. Um modo de responder
– aí reside o sujeito, indissociável da crença por meio da qual ele se orienta e
36
Ver adiante o sub-capitulo Atividade e linguagem, p. 34.
37
Redescrições da psicanálise, op. cit., p. 154 e 155.

28
age. O sujeito é assim dispersado na rede, em seus diversos níveis; não guarda
nenhuma semelhança com uma instância separada, profunda ou vazia, que se
distinguisse da multiplicidade de crenças e volições. “Na proposição
davidsoniana, há superposição e conflito entre subconjuntos da rede, que
funcionam sem regime de coerência interna. Ela (a rede) corresponde à idéia
de uma subjetividade clivada, cindida, operando permanentemente sob o
modo do conflito e de estabilizações provisórias” 38. A idéia de um centro para
a rede não é mais imprescindível, nem se é tentado a conceber um olho interno
que inspecione os estados subjetivos.
Aqui reside o interesse maior dessa concepção e, ao mesmo tempo, a
forte possibilidade de deslizar para a inconsistência. Se ela mantém a abertura
à invenção subjetiva, pois nada a faz retornar ao mesmo, perde de vista, em
contrapartida, o saber integrativo que torna a invenção um acontecimento
consistente e único. Acima nos reportamos a uma visão clínica inconsciente,
inerente aos processos humanos. Um poder de avaliação desse gênero não se
confunde com um olho interno fixo, atemporal, nem com uma constante
histórica; é uma prática, um exercício de cunho originário, uma memória
prática, isto é, ativa, que investiga o interesse que um saber ou uma crença,
enquanto constituem uma regra de ação, possam ter em determinadas
circunstâncias e ao longo do tempo. Mostraremos que o saber integrativo de
que tratamos, longe de coibir as novas e inauditas possibilidades da existência
humana, é fundado na suspeita e, portanto, na condição de saber, muito mais
que no conteúdo de um saber: avalia a pertinência dos saberes e das crenças
do ponto de vista da vitalidade e da potência. A preservação da condição ativa
é essencial à vida e à existência do homem, não importa se esse termo –
“essencial” – esteja contaminado de pensamento metafísico. O que faz a
análise senão ensinar a prática da suspeita? E se, por meio de seu
procedimento flexível, assevera que uma crença é digna de ser conservada,
deve ser também capaz de situar o contexto de sua utilidade provisória. Pois
bem, este saber de uso já não pode ser considerado em si mesmo uma crença.
Além do mais, nem tudo é parcialidade, clivagem subjetiva e
pluralidade de pontos de vista “sem coerência interna”. Não desconhecendo o
caráter de complexidade do psiquismo humano e não reduzindo-o, portanto, a
qualquer denominador comum, deve-se ter em conta que uma vida não é
intercambiável, transferível, eludível – será sempre uma vida. Seja como
sujeito deste ou daquele estrato, daquele campo ou “andaime”, irei responder
de um modo ou de outro pelo que fiz e pelo que deixei de fazer. É claro que
sempre poderei dizer: “onde estive com a cabeça?”, ou ainda, “não me vejo

38
Idem, p. 157.

29
capaz de ter feito o que fiz”. Mas ninguém morrerá no meu lugar. Este traço
de unicidade incontornável não se resolve apenas pela referência a um
organismo singular e por uma responsabilidade social. O corpo é mais que um
organismo. É uma prática e uma ética. Memória viva, não deve ser descrito
apenas pelas suas funções, mas também pelos seus graus de vitalidade, de
intensidade, pelo seu poder de expressão. O corpo é sobretudo corpo falante.
É preciso pensar, ao mesmo tempo, as múltiplas configurações do corpo
e a linha contínua que as reúne, sua duração, à qual denominamos pulsão de
vida.
Considere-se essa passagem de O pensamento e o movente, de Bergson
39
, e como ela pode sugerir a idéia de uma memória viva, ativa, e o difícil
vislumbre do que é uma duração: “Caberá portanto evocar a imagem de um
espectro de mil matizes, com graduações insensíveis que fazem com que se
passe de um matiz para o outro. Uma corrente de sentimento que atravessasse
o espectro tingindo-se sucessivamente de cada um de seus matizes
experimentaria mudanças graduais, cada uma das quais anunciaria a seguinte e
resumiria em si as que a precedem. Mesmo assim, os matizes sucessivos do
espectro permanecerão exteriores uns aos outros. Justapõem-se. Ocupam
espaço. Pelo contrário, o que é duração pura exclui toda idéia de justaposição,
de exterioridade recìproca e de extensão”. A duração inclui, no entanto, todos
os graus da atividade lingüística. Tudo já é ação e linguagem na experiência
humana, de modo que o uso da palavra, ao responder igualmente à duração,
pode se efetuar em diferentes temporalidades e pertencer, obviamente, a um
mesmo processo de vida. A linguagem onírica é expressiva a este respeito, e
mais de um cineasta soube explorá-la. Um dos mais recentes experimentos é o
de David Linch, com seu Império dos sonhos. “Eu não sei se aconteceu
amanhã ou ontem...” diz a heroìna do filme. Os lapsos e os sonhos são
chamados de formações do inconsciente porque se compõem de diferentes
temporalidades, como uma espécie de ajuste simbólico e inteligente entre elas.
A ação lingüística inesperada, não raro enigmática, é este ajuste. As
“intensidades” pulsionais consistem, assim, nos diferentes graus em que uma
questão – por exemplo, a da existência – pode ser tratada, vivida, entendida.
Graus de intensidade são graus de entendimento, indissociáveis dos graus de
precisão no dizer. Intensidade e entendimento são uma e mesma coisa.
Retornemos à rede de crenças e desejos que constitui o sujeito, segundo
Davidson. Não há necessidade de uma instância central, fundadora, que dê
conta da complexidade dessa rede psíquica, inevitavelmente clivada.
Composta de subdivisões com certo grau de autonomia, operando em

39
Bergson, H., O pensamento e o movente, p. 190, Martins Fontes, SP, 2006.

30
diferentes níveis e graus de visibilidade, a rede articula estruturas de crenças,
às quais correspondem desejos, expectativas e afetos que interagem entre si e
determinam, a cada vez, o comportamento lingüístico. Descrever o sujeito
dispersado na rede, marcado pela cisão e pelo conflito, constituindo-se por
integrações parcelares e disjunções relativas, não implica, contudo, em
abandonar a idéia de um eu. “Na prática clìnica e na vida cotidiana”, diz
Bezerra Jr., “não se pode dispensá-la” 40. O caso é justamente este: considerar
de um ponto de vista prático e ético os assuntos analíticos deve também
orientar o tratamento teórico dos mesmos. Não é em relação a uma essência ou
a um fundamento que se coloca a questão do sujeito e, com ela, a da pulsão;
essas questões dão consistência ao saber da análise em virtude de serem
essencialmente práticas e éticas. Daí que a noção de pulsão é novamente
requerida. Na medida em que alguns aspectos da rede não aparecem, mas
condicionam, de perto ou de longe, o comportamento lingüístico evidente,
cabe indagar clinicamente pela sua estranheza e sua energia nos processos da
vida cotidiana. A inteligibilidade de um processo de vida decorre dessa
investigação. Além disso, a pressão do estranho depende do seu grau de
importância em termos de vitalidade e de potência, tanto no sentido de que
uma direção assumida pode reduzi-las e até mesmo inviabilizá-las, como no
sentido de que pode, ao contrário, restaurá-las em certos níveis e reforçá-las.
Esse discernimento não constitui uma crença, mas um saber, uma avaliação
pertinente em um momento preciso.
Conforme mostraremos adiante 41, um saber dessa ordem não se
distingue da satisfação pulsional, se esta for compreendida no âmbito da
práxis analítica. Embora a correspondência saber-satisfação adquira aí um
relevo propriamente clínico, ela é constatável, com maior ou menor clareza,
em todos os processos sublimatórios.
A estranheza, sua determinação invisível e sua força, bem como o
discernimento ativo que ela implica, pertencem ao que chamamos de campo
pulsional. Esse campo é, a cada vez, uma espécie de extrato de memória viva,
atuante, imediatamente lingüística e relativamente disponível. Como foi dito
acima, nada é tão apropriado como um lapso para reunir todos esses aspectos.
Dentre as razões práticas para se preservar a idéia de eu, assinaladas por
Bezerra Jr., está “a possibilidade de modificação, abandono ou aquisição de
crenças que visem ao estabelecimento de narrativas que conciliem e
reordenem acasos, eventos, causas e razões, de modo a estabelecer uma
trajetória subjetiva, uma história na qual o sujeito possa se reconhecer, onde
antes parecia haver apenas determinações anônimas, injunções
40
Redescrições da psicanálise, op. cit., p. 163.
41
Ver os capítulos O sentir, o saber, o sentido (p. 75) e Saber da cura (p. 249).

31
desconhecidas”. Ou seja, deve-se contar com alguém interessado na mudança
das crenças e nas novas narrativas, alguém que queira integrar, numa prática
de entendimento e no curso de suas ações, o que antes parecia anônimo,
disparatado e atuava fora do seu alcance. É claro que esse alguém se constitui
ou se constrói como sujeito na instauração e na renovação incessante deste
processo – o que o autor chama de trajetória subjetiva –, sem que seja preciso
evocar uma instância transcendente ou fundante que garanta e explique,
finalmente, todo o processo. Isto, aliás, teria como efeito eliminar o caráter de
contingência e de invenção da aventura subjetiva, relegando-o, na melhor das
hipóteses, a uma determinação menor, secundária. Aí reside o benefício maior
do conceito de pulsão e a sua definição derradeira como pulsão de vida.
Quando alguém quer a modificação, a integração, etc., é a vida que o quer, a
vida nas condições da experiência humana.
Mas, dizendo “a vida o quer” não estarìamos justamente reintroduzindo
o transcendente, o fundante? Não, se ela for concebida à maneira analítica,
isto é, como pulsão, e se, para tanto, soubermos destacar os seus traços
imanentes – de ação, integração, superação, movimento, existência,
singularidade e sentido. Qual a vantagem de acrescentá-la como um
pressuposto necessário à noção de sujeito que se constrói? Seu caráter ativo e
o critério de direção da análise, ambos baseados nos índices de vitalidade, de
potência e de lucidez de um processo. É claro que com isto introduzimos a
noção de escolha, de direito de escolha. Pois bem, outra razão para se
conservar o eu no tratamento analítico das questões humanas se vincula a essa
noção: “A idéia de eu é importante ainda na medida em que implica o
reconhecimento do sujeito moral, em outras palavras, na medida em que a
utilizo para atribuir a mim e aos outros não só atributos intencionais
(computadores sofisticados poderão talvez um dia ser descritos assim), mas o
estatuto de sujeito singular, desejante, autônomo, a quem reconheço como „um
de nós‟. A história mostra que nem sempre este estatuto foi atribuìdo a
estrangeiros, mulheres, negros, índios, infiéis etc., e que só recentemente
tornou-se extensível universalmente. Mas do ponto de vista analítico, não há
como dispensá-lo” 42. A partir daí, a questão passa a ser: em que medida a
condição de escolha coincide com a condição de saber?
O caráter ético, neste contexto, adquire uma feição originária.
Novamente a pulsão. Singularidade, autonomia, desejo, não são condições
secundárias, terciárias, do homem – este ser, como dizia Nietzsche, que não
está determinado. São condições originárias, que podem ou não ser exercidas.
Ver os seres humanos sob este prisma significa considerá-los de um prisma

42
Redescrições da psicanálise, op. cit., p. 164.

32
originário. É o que chamamos de realismo pulsional. Podemos pensar, como
faz o autor que utilizamos, que a psicanálise é datada, histórica, e assim são os
seus conceitos, vivos enquanto viáveis, e que ela se destina a indivíduos,
“seres historicamente construìdos de modo a se perceberem livres, autônomos
e dotados de um mundo secreto e intransferìvel” 43, condição esta que está
longe de se verificar em muitas culturas e povos, inclusive atuais. A
historicidade contextualizada da psicanálise, herdeira da “tradição judaico-
cristã laicizada” do mundo ocidental, não é o acidente e o desconcerto que
sobrevêm às concepções psicanalíticas, às quais se atribuiria de bom grado um
caráter imutável. O aspecto mais vigoroso dessas concepções é sua
contemporaneidade, sua aplicação às questões humanas atuais, sua aptidão
para esposar o contingente e o imprevisível, o fluxo histórico, o devir e suas
possibilidades, tanto no plano individual como no plano da cultura. Daí que
seus conceitos devem estar igualmente submetidos a um crivo pulsional. Mas
será que dizendo isto esclarecemos o “pulsional”? Não é porque as mulheres
não eram ouvidas que não fazia diferença alguma se eram ouvidas ou não.
Aliás, a noção de inconsciente decorre do fato de que Freud passou a ouvi-las.
E não é tão certo que elas não fossem ouvidas na antiguidade. Bastaria o
testemunho das sibilas para se ter dos antigos uma idéia mais apropriada.
Quanto à singularidade e ao grau de autonomia, é preciso dizer que não
excluem o caráter extra-pessoal do processo, muito pelo contrário. E por que
não faríamos, a partir de certo estágio de nossa pesquisa, descobertas que os
antigos fizeram e foram esquecidas, ou que não puderam realmente fazer,
ainda que, em casos notáveis 44, estivessem na eminência de fazê-las? Que
essa reflexão sobre os antigos valha como uma consideração intempestiva.
A psicanálise não existe apenas para atenuar o sofrimento e gerar bem
estar. Mais importante que isto é sua destinação ética. Quando falamos em
vitalidade, potência, lucidez, não evocamos diretamente o bem estar e a
satisfação, mas o vigor ético da auto-determinação...
Observa ainda Bezerra Jr. que além do passo decisivo que foi tratar o
sujeito humano numa perspectiva ética inovadora, a uma boa distância de
qualquer abordagem instrumental, a psicanálise re-descreveu a singularidade
individual ao transformá-la em realidade trans-subjetiva, “com isso
desfazendo fronteiras entre o social e o individual, o coletivo e o singular” 45.
O traço extra-pessoal destacado no início deste capítulo, serve para
abordar, do ponto de vista do vivo, essa polarização da existência. Não é difícil

43
Idem, p. 165.
44
Um desses casos é o de Platão, que por muito pouco não fez uma filosofia da diferença, como afrima
Deleuze. É verdade que este “por muito pouco” é decisivo.
45
Idem, p. 165.

33
perceber porque o traço em questão é uma espécie de bússola do saber
analítico: o sexual e o ético são aí contemplados, e querem dizer, cada um à
sua maneira, que a pulsão ama a diferença e se afirma como diferença. É nesta
medida que eu é um outro. Mas acima de tudo a pulsão ama o que faz
diferença, isto é, a diferença que se tornou interna. Eros, dizia Freud, vive de
tensões, de diferenças vitais. Eros é combate. Não é mesmo notável que a
metapsicologia freudiana seja, mais que qualquer outra coisa, uma ética e uma
política?
“O descentramento e a contingência têm como conseqüência uma visão
da história das sociedades e de cada indivíduo como um processo de
reconstrução permanente, sem ponto final. (...) E se a psicanálise não pode ter
utilidade na proposição de como se deve ser ou de como as sociedades devem
se constituir, ela certamente é um instrumento contra qualquer ilusão de que se
possam resolver essas questões definitivamente” 46. Mas como se garante a
precisão desse instrumento?
Ora, é para manter aberto o campo do imprevisível e do inventivo na
intervenção analítica que se tem o conceito de pulsão. “Contra qualquer
ilusão”, diz o autor. Pulsão e real em psicanálise visam exatamente isto. Não
apenas indicando um limite ao saber, no sentido de que não se pode saber o
que seria o melhor para o outro, atual ou vindouro, mas porque a vida repele
uma definição exaustiva, idealista. É assim que o pragmatismo é elevado a
uma determinação superior. E aí reside seu estatuto ético.
Por que a questão psicanalítica não é só uma questão de cultura e de
história? Por que não é apenas o gosto e a defesa narcisista do nosso modo de
ser? A psicanálise é histórica, sim, mas deve ter algo de inatual. Ou o pensar
psicanalítico interessa à vida ou não interessa... A vida... – mas em que
termos? A psicanálise é uma ciência dos termos da vida, de uma vida que
adquire ciência de si. Quem ousaria dizer, em algum momento que fosse, que
já conhece esses termos?

Atividade e linguagem

Em Mil Platôs, Deleuze e Guattari destacam quatro postulados da


lingüística, pertinentes exclusivamente ao campo da linguagem. Esses
postulados são revistos sob o prisma da ação e da vida, à luz, portanto, de um
pragmatismo que define como extra-linguística a sua razão oculta. Daí
revelarem uma feição sintomática.

46
Idem, p. 166 e 167.

34
Comecemos com as proposições iniciais do capítulo destinado ao tema,
a partir do postulado de que “a linguagem será informativa, e comunicativa”
47
: ora, ao ensinar uma regra de gramática ou de cálculo não se está
informando, comunicando regras – dá-se ordens, comanda-se, impõe-se uma
sintaxe e uma gramaticalidade, com seus dualismos, sua composição de
sujeitos e objetos. Ao se pretender que ela informa, comunica, ignora-se que
ela comanda, impõe, decide. As palavras de ordem se difundem por todo o
campo da linguagem como a sua real condição, assumindo, entretanto, outros
aspectos além do específico de comandar, todos eles implicando atos
imanentes à palavra ou ao enunciado 48. Um verso de Bonvicino, referindo-se
a certa pintura, é um exemplo luminoso, pictórico, de uma ação imanente à
palavra: “onde o óleo se mistura aos olhos da vida”. O vocábulo óleo se
mistura sonoramente a olhos, e realiza linguisticamente, como evento vivo, o
que está sendo descrito. É uma face poética e vitalizante da palavra de ordem,
quando ela envolve, como dizem Deleuze e Guattari, um “componente de
passagem”, transpõe fronteiras, turva os limites, constituindo zonas de
indiscernibilidade: palavra e coisa, idéia e afeto, símbolo e sexo.
Essas transposições de fronteiras podem ser também mudanças de
estado, desdobramento de planos, signos de um devir, nos quais a palavra não
tem apenas uma função indicativa, sendo ela mesma a operação de transição, o
meio ou o elemento da passagem, como uma espécie de fórmula mágica ou
senha esotérica. Ato de transição, translado ou transdução e sua nomeação
simultânea. É a virtude latente do verbo, revelada pela célebre frase de
Guimarães Rosa: “Ninguém morre, a gente fica encantada”. É também o ato
lingüístico que cria a aflita re-asseveração da morte de quem morre no micro-
conto de Bueno, El diablo de mêdia-noche, em seu portunhol de fronteira,
mesclado de guarani: “Ahora, añaì, por supuesto, por suplìcio, deja morir ao
muerto”. A palavra “añaì”, fronteira, limite, joga e ressoa, todo o tempo, com
a palavra “añá”, diabo, demônio, e com “añaretãmeguaì” 49, demônio interior.
Além de descrever as imprecisões e desdobramentos dos limites entre interior
e exterior (“frontêra de la frontêra de la frontêra”, ou ainda “en la dôbla de la
dôbla, da dobladura final”), e de incidir sobre o limiar da vida e da morte (“el
diablo de mêdia-vida”), a escrita do conto, também designável como uma
excrita, intensifica a impressão já sensível de uma presença estrangeira,
demoníaca, e acelera a experiência das mutações e passagens por meio das

47
Mil platôs, op. cit.,vol. 2, p. 11.
48
Já tínhamos visto acima, a propósito de Austin, como se universalizava o domínio performático da
linguagem.
49
Conforme esclarecimento de Bueno, añaretãmegua é “coisa infernal”; com o acréscimo do “i” passa a ser
“coisa infernal interna”.

35
invasões de uma língua na outra. A linguagem é assim como algumas plantas,
faz proliferarem íncubos e súcubos por todos os cantos e de todos os modos.
Vale para a pesquisa dos limiares, em que o passo constitui a passagem,
a advertência de Mil platôs para não se incorrer nos dualismos maniqueístas,
elegendo, por exemplo, o rizoma contra a árvore (ou raiz), pois há de tudo em
tudo: “problema de escrita: são absolutamente necessárias expressões anexatas
para designar algo exatamente. E de modo algum porque seria necessário
passar por isto (um outro ou um novo dualismo), nem porque poder-se-ia
proceder somente por aproximações: a anexatidão não é de forma alguma uma
aproximação; ela é, ao contrário, a passagem exata daquilo que se faz”. A
precisão do anexato se demonstra na pergunta: “Mas do que estamos falando
exatamente?”
Como vimos antes, enunciados do tipo “eu juro” ou “eu te amo” são
simultaneamente atos em que alguém jura e se compromete, acarretando
transformações instantâneas de natureza incorporal que, desde então, têm
efeitos sobre os corpos, sobres seus estados de ação e de paixão, sobre suas
misturas e separações. Os casos são muito diversos, e vão até a comédia em
que o sujeito passa a amar perdidamente depois de declarar seu amor. Quando
um juiz emite uma sentença, transforma instantaneamente um estado, por
exemplo, de réu, num estado de condenado, com conseqüências no plano dos
corpos que irão se desenvolver ao longo do tempo: a reclusão, a vida na
prisão, o estado psicológico do condenado, etc. A transformação operada pela
palavra de ordem constitui uma singularidade, a partir da qual um novo
estado, uma nova realidade dos corpos se instaura, como o ponto de ebulição
da água. Freud já dissera que as palavras dos poetas são verdadeiros atos, e
associou a elas a palavra analìtica e sua função transformadora (“talking
cure”). Tanto para as palavras do poeta como para a sentença do juiz, tanto
para a transição que oxigena como para o juízo que mata, cabe usar a mesma
noção de palavra de ordem, pois esta compreende sempre uma nova
disposição das forças no campo da experiência, a instauração de uma nova
ordem de acontecimentos, cujos vetores ideo-afetivos poderão conduzir à vida
ou à morte. As razões, os motivos, as explicações para os atos de palavra são
menores que os atos, pois são estes que alteram os estados de coisas. Em O
discreto charme da burguesia, o que importa é a palavra do ministro
determinando que os prisioneiros (uma quadrilha da alta burguesia traficante
de drogas) sejam libertados, e não as razões que oferece ao comissário de
polícia, inaudíveis sob o ruído de um avião que passa naquele instante. O
comissário transmitirá a palavra de ordem ao sargento e, diante da estupefação
deste, alegará os motivos que, mais uma vez, não serão ouvidos em meio ao
ruído quase ensurdecedor das máquinas de escrever.

36
O “Recado do Morro”, de Rosa 50, é uma trama complexa da linguagem
e dos acontecimentos. Ocorre em diferentes dimensões do tempo, inter-
comunicantes, e marca, a cada passo da narrativa, sua incidência gradual nos
corpos, até a deflagração final onde o recado se atualiza inteiro. Pê-boi se
salva, derrubando uns e fazendo correr aos outros, apenas por alcançar, no
derradeiro instante, o plano das transformações incorporais e, com isso,
antecipar a mudança de uma camaradagem festiva para uma hostilidade
violenta. Divisou assim, por entre as palavras, as ações e as paixões inimigas
que lhe seriam fatais, se já não estivesse prevenido.
Quem escuta pela primeira vez o recado do Morro, e o comunica, é um
velho eremita, muito simplório, que vive nos fundos de uma grota, nuns altos
de serra. Algum tempo depois, seu irmão, que mora em meio mais civilizado,
repete com certo assombro o que ouviu dele a um padre. Mas só um menino,
que estava próximo e atento, escutou a mensagem, pois o padre se preocupava
apenas em dirigir o interlocutor à devoção. E o menino contou o que ouviu a
um bobo de fazenda, meio idoso, grosso e resmungão, mas matraqueador.
Impressionado com a narrativa, que em cada um dos estágios se alterava,
agregando novos elementos, como neste caso a palavra “menino”, o paspalho
tenta reproduzi-la a um beato delirante que não pára de anunciar, pelas
estradas e nas portas das igrejas, o fim do mundo e dos tempos. O recado
reaparece, agora, nas invectivas de condenação aos infernos proferidas pelo
beato. É ele que, não fazendo outra coisa em sua doidice, tem maior poder de
propagação. Logo chegam aos ouvidos de um poeta cantador, amigo do herói
da estória, os elementos da narrativa caótica, cujo aspecto simbólico,
enigmático, acaba atraindo de tal maneira seu interesse que não irá sossegar
enquanto não transformar em trovas e em cantiga o agora longínquo e, no
entanto, já tão próximo recado do Morro. Pedro Osório, o Pê-boi, ouve por um
tempo a composição e segue seu caminho, reúne-se ao bando de amigos e
ruma com eles, noite adentro, na floresta, em direção ao lugar da festa. No
percurso o recado se atualiza, a memória o recompõe, a cena é a mesma do
recado do Morro e da cantoria, e ele percebe a tempo o perigo. Está entre
inimigos, é uma armadilha.
Fazendo menção à tradição poética e à prática dos oráculos no mundo
grego antigo, Foucault mostrou que o discurso do poder era diretamente o
discurso verdadeiro e, como tal, tramava o destino. Com Sócrates e Platão irá
se operar, de um modo eficaz e duradouro, a separação desses discursos 51. O
conto de Rosa parece atestar a confluência originária de verdade e poder, de

50
Rosa, João Guimarães, Ficção completa, vol. 1, p. 615, Nova Aguilar, RJ, 1995.
51
“Entre Hésiode et Platon un certain partage s‟est établi…” Foucault, M., L’ordre du discours, p. 17,
Gallimard, 1971.

37
vida e linguagem; e situa numa altitude do tempo – o Morro – o dizer oracular,
que sofrerá as vicissitudes de suas atualizações e levará ainda algum tempo
para se encarnar nos corpos, em suas ações e paixões. Lá, naquela altura, os
dados já foram lançados. Entenda-se: antes de uma representação dos fatos
futuros, o que o eremita ouviu foi um recado. Aquelas palavras de nexo
incompreensível deviam orientar as ações de Pedro Osório – o “rei” que
aparece na diversas versões do recado e por fim nos versos da cantoria.
O ser, dizia Lacan, é da ordem do dito, mas o dizer “ex-siste” a todo o
52
dito . O ser é a Figura, nos termos dos autores de Mil platôs, e ela compõe,
com a palavra-sentença, toda a equação do sistema do juízo. A palavra de
ordem será, neste caso, do campo do dito, e não do dizer. Tema caro a Artaud
e a Deleuze, o sistema pré-existente do juìzo “impede a chegada de qualquer
novo modo de existência”, e por isso sua palavra será idêntica, em última
instância, a uma sentença de morte.
Mais uma vez, assimilamos a pulsão ao dizer, entendendo que, devido à
sua pertinência à vida e à morte, os atos imanentes à palavra são primeiros em
relação aos processos mentais e aos processos físicos ou somáticos. Tudo
reflui para a pulsão, ou para o dizer. É a lição de O recado do morro. A
concepção de Deleuze e Guattari de que os atos de palavra acarretam
transformações incorporais que se efetuam, a posteriori, nos corpos, sejam
estes físicos ou psíquicos, permite que se entenda o sentido dado aqui à
atividade, bem como à ética que lhe corresponde, enunciada por Lacan como a
do bem-dizer – em nada distante, afinal, da irrevogável talking cure com a
qual se definiu o processo analítico.
Insistimos, porém, nesse último aspecto – o valor ético da noção de
atividade –, ligando-o à idéia de começo, de decisão, de invenção, à força e ao
eu, enquanto compreendido pulsionalmente. O eu pulsional e o si freudiano
são a mesma instância do inconsciente, essencialmente ativa. Por isso sua
consistência é prática e ética. Atividade, neste ponto, não se distingue de uma
vitalidade, graças a qual se efetua a condição da linguagem. Todos os dizeres
se reúnem na soberania de um dizer inconsciente em curso. É o que fazia
Foucault alertar para o futuro da experiência da loucura: se hoje ela aparece
como um Exterior, um negativo da nossa experiência, um dia, escreve ele,
esse Exterior falará de nós. Un-heimlich.
Se Deleuze e Guattari dizem que a palavra de ordem se dirige à vida,
que a escuta e obedece (ob-audire), e por isto ela facilmente se caracteriza
como sentença de morte, assinalam, em contrapartida, a linha de fuga pela
qual a mesma palavra guarda seu potencial de passagem, de reversão e
52
Lacan, J., O seminário, Livro 20, Mais, ainda, p. 139, Zahar, RJ, 1982. Ao designar um fora, a partícula
“ex” coloca no exterior do ser e do dito tanto a existência como o dizer.

38
variação em relação a toda fixação numa figura, a toda conformação a um
recorte estático destinado a inibir o vir-a-ser, os devires e os novos
agenciamentos. Daì a força de Rimbaud: “sou de raça inferior por toda a
eternidade”. É o que sucede também com a obra de Jean Genet, a
transmutação do que é julgado vil em nobre pelo uso de uma linguagem
artesanal e luxuosa. Como se a palavra de ordem, enquanto ato imanente à
palavra, pudesse esposar uma linha de desterritorialização ou de fluidez
propriamente ativa, espiritual, reencontrar uma vitalidade originária e se
definir por ela...
Mas se dissermos apenas, como fazem os autores de Mil platôs, que o
ambiente de onde emergem os enunciados é o ambiente do discurso indireto,
coletivo, anterior às significações e subjetivações que ele determina e
distribui, ainda deixaremos em suspenso a fonte ativa a partir da qual se
instaura um novo dizer. Naquela obra é adotado, por um momento, um
exemplo de David Cooper, a fim de ilustrar o que ali é chamado de cogito
esquizofrênico: “Ouvi vozes dizendo: ele tem consciência da vida”. Cooper
esclarece a expressão “ouvir vozes” com a idéia de uma consciência que foge
às coordenadas do sentido comum e do discurso normal, uma inusitada
consciência da vida que ultrapassa o eu e seus enunciados familiares. O que
não cessamos de enfatizar é que o eu ultrapassado pertence ao mesmo terreno
de seus enunciados, sendo ainda do seu ponto de vista e da falência desse
ponto de vista que “se ouvem vozes”. Tratava-se, no entanto, de esposar o
estranho e reconhecer-se verdadeiramente nele, segundo o princípio ativo que,
todavia, se faz ouvir. Tornar-se o ex-estranho, como diz um sujeito em
análise, apropriando-se da expressão de Leminski 53. De fato, o caos-cosmos
discursivo, presente em um agenciamento coletivo, se mostra indireto e é
realmente assim porque está além do discurso direto em que a consciência é
um eu separado de suas condições originárias, pulsionais, extra-pessoais. O
discurso só é direto em aparência, pois se apóia em outro discurso e este por
sua vez em outro ainda, indefinidamente. Mas a reversão inteira do sentido
consiste em sustentar que a vida afirmativa, isto é, a força, o eu pulsional só
adquire ciência de si mediante um dizer originário. Na verdade, não existe
distinção entre o dizer e o eu pulsional, extra-pessoal que, nesse ato mesmo,
porta uma ciência de si. Daí a razão para repisarmos o começo, o passo
inusitado, o traço singular, o ato que se efetua, entretanto, no meio do
caminho, no meio de tudo. “O sertão está em toda parte” . É muito simples, o
que não significa que seja apreendido facilmente e que esteja à mão.

53
O ex-estranho, título de um livro de poemas de Paulo Leminski (Iluminuras, SP, 1996).

39
Por isso uma pretendida máquina abstrata da língua, conforme o
postulado II (“Haveria uma máquina abstrata da lìngua que não recorreria a
qualquer fator „extrìnseco‟”), que trata o pragmático como exterior não
lingüístisco, deve dar lugar, para que a abstração seja conseqüente, a uma
máquina abstrata que compreenda a interpenetração da língua com o campo
social e os problemas polìticos, a um “diagrama de agenciamento que não é
jamais de pura linguagem, salvo por defeito de abstração”. Assim, “é a
linguagem que depende da máquina abstrata, e não o inverso”. Ora, a máquina
abstrata é, ela mesma, a pulsão, o vetor originário das forças.
Não dizemos nada de novo, apenas formulamos que os “agenciamentos
maquìnicos de corpos” e os “agenciamentos coletivos de enunciação” em
Deleuze e Guattari, uns dizendo respeito ao conteúdo e suas formas, outro à
expressão e suas formas, correspondem, ponto por ponto, ao achado clínico
que Freud denominou de pulsão 54. O que chamam de diagrama, que é o
conjunto dos agenciamentos, a máquina abstrata singular, é o que chamamos
de determinação propriamente inconsciente, ou auto-determinação. Esta só
pode existir, obviamente, em exercício, isto é, em seus agenciamentos.
Segundo aqueles autores, deve-se considerar dois estados do diagrama,
dependentes da altura em que ele será apreendido: um em que as variáveis de
conteúdo e as de expressão se distribuem sobre um plano de consistência
segundo sua forma heterogênea e em pressuposição recíproca (não por
causalidade); outro em que essas variáveis se tornam indiscerníveis, pois
agora é o plano que lhes comunica sua variabilidade intrínseca – o real e o
símbolo, a vida e a palavra se fundem numa linha fluente, supra-sensível. Um
único vetor – natureza e cultura. A isto se dará o nome de estilo, a essa
condição originária, singular, de colocar em estado de variação contínua tanto
os elementos lingüísticos como os não lingüísticos. Avancemos um passo na
determinação do estilo enquanto condição originária: é uma condição de
escolha que afeta, a cada vez, o conjunto da vida. É assim porque o plano é em
si mesmo ativo, atividade imanente. A filosofia de Spinoza, profundamente
prática, já havia estabelecido essa condição originária ao identificar idéia e
vontade, tendo em vista que uma idéia é sempre uma afirmação ou uma
negação, ou seja, é sempre uma escolha, um ato.

54
Não queremos reduzir a um denominador comum as nuances e complexidades desses novos conceitos
(agenciamento, máquina abstrata, etc.). Pelo contrário, por meio de tais referências apenas indicamos a
profundidade e a riqueza do campo pulsional descoberto por Freud (“ali onde hoje descobrimos templos,
amanhã serão descobertos continentes”). Não o fazemos, porém, sem explorar a incidência do pulsional no
campo analítico, introduzindo, de nossa parte, noções orientadoras, tais como: a prática pulsional, o dizer, o
ato, o saber e a satisfação, a direção do processo, a consistência ética da pulsão, a autodeterminação, o
singular e o extra-pessoal, etc.

40
O primeiro estado do diagrama diz respeito aos movimentos de
desterritorialização relativos, enquanto que o segundo se refere ao movimento
absoluto. É no plano do movimento absoluto que situamos uma atividade-
vitalidade originária. É o que fazem também Deleuze e Guattari, quando
opõem a cada um dos postulados da lingüística recenseados o vetor
incoercível da variação contínua, o poder de escolha que caracteriza um estilo
e sua “linguagem secreta” (não escondida). E não como acontecimento
excepcional dentro de uma configuração mais geral das leis da lingüística (o
caso, por exemplo, dos grandes poetas), mas como condição originária da vida
que se engendra a si mesma, simbólica e falante, na altura do homem. Não foi
outra coisa que Freud descobriu ao pesquisar as formações do inconsciente: a
língua indígena de cada um. O inconsciente, nesse caso, não é senão o estado
de variação contínua, isto é, o poder imanente de escolha e seus graus de
efetuação. Não se trata de um poder atual, mas virtual-real, como dizem
aqueles autores. Essa distinção é decisiva, uma vez que isso, o poder imanente
de escolha, está em aberto, é pulsional e de consistência ética.
Ali onde nos encontramos num estado de desterritorialização relativa
nos movemos ainda na altura das “obrigações sociais”, das palavras de ordem
com sua dupla face e suas alternativas – a constante figural ou a variação
contínua. A constante figural é, na verdade, um procedimento pelo qual as
variáveis dos enunciados e dos estados de coisas são remetidos às mesmas
figuras, de modo que todos os processos sofrem uma espécie de segmentação:
cabe à constante figural proceder à administração ou ao julgamento dos
segmentos. O variável é estimado e medido, em última instância, por sua
referência ao não variável, ao fixo e constante. Assim, a palavra de ordem
constitui uma verdadeira sentença e uma sentença de morte, pois um sujeito,
para mudar de enunciado ou de estado, deve passar pela morte. Ele é o que se
poderia chamar de “peixe preso”, para lembrar o extraordinário e conciso
código de lei dos baleeiros, tal como é explicado em Moby-Dick 55, talvez o
mais desterritorializante dos romances. O regime da constante figural não é
somente um problema de ciência lingüística, é de natureza política e envolve
questões diretamente éticas. Diz respeito às escolhas entre vida e morte. “A
morte, com efeito, está em toda a parte como essa fronteira intransponível... É
(...) um regime que remete a um Senhor imóvel e hierático, legiferando a todo
momento por meio de constantes, proibindo ou limitando estritamente as
metamorfoses, fixando para as figuras contornos nítidos e estáveis, opondo
duas a duas as formas, impondo aos sujeitos que morram para que passem de
uma à outra” 56. Daì existir um liame a priori entre a Sentença e a Figura (“a
55
Moby Dick, op. cit., p. 166.
56
Mil platôs, op. cit. vol. 2, p. 55.

41
morte é a Figura”), na medida em que correspondem à forma de expressão e à
forma de conteúdo no que diz respeito a um dos aspectos da palavra de ordem.
O outro aspecto é a linha de fuga, ou de força (vis activa), como a
chamamos, em que prevalece o estado de variação contínua. Ética da
diferença ou do devir. A via ativa garante a persistência do desejo através de
todas as figuras e sentenças, revertendo-as a cada vez, em favor de novas
condições de vida ativa. “Peixe solto”. É o ponto de vista ativo que garante o
ponto de vista ativo. Ora, quando a lingüística insiste nas constantes e
invariantes para estudar uma língua de maneira científica (conf. postulado III),
não podendo, a partir desses pressupostos, deixar de distinguir língua e
palavra, considera somente o aspecto neutralizador e centralizador da
linguagem, ainda que as constantes e invariantes possam ser submetidas a um
uso vital, a uma variação contínua. Não se trata, é claro, de lançar fora as
referências mais constantes da linguagem, mas de reapropriar-se delas,
imprimindo-lhes uma vitalidade capaz de redefinir pragmaticamente as suas
funções, agora num contexto aberto e fluente. É onde Freud já ancorara a sua
escuta, isto é, na perversão polimórfica da criança e na constatação de que o
sexual e o simbólico são as duas faces do real, em estrita equivalência. O que
isso quer dizer? Sexual e simbólico são termos que não têm um término, um
limite. São potências da vida.
Os postulados lingüísticos abordados pelos autores de Mil platôs
envolvem sempre o mesmo problema no que diz respeito à vida, ou seja, a sua
exclusão sumária das questões de linguagem, já por ser considerada fator
secundário. É uma razão para insistirmos, desde as primeiras linhas, na idéia
de um inconsciente identificado à vida, às potências secretas da vida, como
quer D. H. Lawrence. Fazemos assim justiça à visão freudiana dos fenômenos
originários do inconsciente, enquanto dão testemunho de uma linguagem viva,
isto é, de uma micro-língua pela qual se restabelece a intimidade da verdade
com a vida desejante. Do inconsciente estruturado como linguagem à lógica
do significante é menos que um passo; não é dessa lógica, contudo, que se
extrai o sentido dos processos inconscientes, mas de agenciamentos vitais que
constituem, eles próprios, sua lógica contextual 57.
57
Em Mil platôs a psicanálise é tratada de um modo ímpio, isto é, de um modo inteiramente salutar, a ponto
de se pensar que nada sobra desse saber cuja consistência, no entanto, residiria no poder de interrogar os
saberes constituídos. Afinal foi a tentativa de Lacan ao desenvolver a lógica dos quatro discursos, agregando a
eles, em seguida, o do capitalista. A psicanálise daria testemunho de um misto de dois regimes de signos,
nomeadamente o de significância (ou do significante) e o de subjetivação. Uma das observações mais
decisivas de Deleuze e Guattari em relação aos regimes de signos é que esses dois, que explicam, segundo
eles, a semiótica psicanalítica, não são primeiros e nem fundamentais.
Ora, é evidente que a pulsão não pertence ao regime do significante, mas e ao outro, não teria ela seu
lugar precisamente ali, no regime de subjetivação, compondo com o significante a semiótica mista da
psicanálise? A pulsão poderia constituir o ponto de subjetivação pelo qual se instaura a linha de fuga própria

42
Pois bem, um quarto postulado da lingüìstica sustenta que “não se
poderá estudar cientificamente a língua senão sob as condições de uma língua
maior ou standard”. Em vista deste postulado as lìnguas menores, as micro-
línguas, deverão ser tratadas como secundárias e acidentais à compreensão e à
realidade mesma da linguagem, quando elas são, ao contrário, essenciais ao
seu devir. Ao trabalharem de dentro e com certa autonomia a língua maior,
como o fazem as formações do inconsciente, incluindo aí os atos poéticos, elas
a inserem na corrente vital de uma variação contínua. Só elas são reais, só elas
detêm a virtude sublimatória dos verdadeiros atos de linguagem. Só elas são
os dizeres superativos que renovam as condições de vida, sendo esses dizeres
mesmos as novas condições e sua expressão, isto é, os vetores de passagem
que fazem da passagem o chão originário de todos os estados e de todas as
condições. Nomadismo pulsional. É por isso que um dizer existe e insiste nas
fronteiras, como uma força (ex) estranha. Añaí, añá

do regime pós-significante, de maneira que os processos pulsionais que caracterizamos como originários não
seriam mais que uma das modalidades de um mesmo regime de signos. Estaríamos considerando o mesmo
regime de signos, fosse ele desencadeado pelo Deus dos hebreus enquanto ponto de subjetivação ou pela
pulsão num processo de análise.
A diferença consiste no seguinte: a pulsão é ponto nômade, estranho a cada vez, imprevisível, e
constitui ela própria a linha de fuga; ela é, nela mesma, dobra, subjetivação, mas nunca a partir de um único
ponto de partida. Ela só existe em ato e em devir, de tal modo que, se admitimos um ponto pulsional de
subjetivação, ele se distingue muito de um ponto imóvel na origem do processo (Deleuze e Guattari o
identificam com o analista) – é o próprio devir, ou, se preferirmos, a linha do devir. É precisamente seu
caráter nômade que faz da pulsão o pressuposto e o ponto de chegada de todos os processos subjetivos.
Assim, ela constitui um ponto móvel de subjetivação e, ao mesmo tempo, uma instância de dessubjetivação
constante. Nós a encontraremos não ao nível dos regimes de signos, mas do plano de consistência, como
máquina abstrata...

43
44
UMA VIDA, UM DIZER

Cantar é existir. Para um deus, muito fácil.


Mas nós, quando é que existimos? 58

O que nos leva além da representação? Em primeiro lugar, deve-se


aproximar a pulsão do dizer, de maneira a explicitar, sem mediações, seu
destino originário. O bem-dizer ético não é algo que se aplica secundariamente
ao homem, depois de satisfeitas as suas necessidades básicas. É originário, e
tudo deve ser lido desde a ótica do originário. E não a partir de algum ponto
da existência, mas desde sua origem. Será sempre extraordinário que Freud
tenha descoberto o caminho do dizer, chamando-o de pulsão (Trieb). Esta
deve ser entendida, portanto, em seu mais alto grau, como natureza e arte. “O
homem fala”, escreve Lacan em Função e campo da palavra e da linguagem,
“porque o símbolo o fez homem”; não é menos certo, porém, que são os
dizeres inconscientes e os dizeres poéticos que efetuam a condição simbólica.
No princípio, o verbo não se distingue do ato, do dizer (ato fabulatório, dizer
ético). Da mesma forma que a pulsão, a linguagem só é realmente linguagem
quando exercida, praticada. Mais tarde, no seminário O sinthoma, Lacan dirá:
“criamos uma lìngua na medida em que a todo instante damos um sentido,
uma mãozinha, sem isso a língua não seria viva. Ela é viva porque a criamos a
cada instante” 59. Mas a prática da linguagem não é assim tão evidente, ou
melhor, ela se dá em vários níveis de expressividade, de modo mais claro ou
mais obscuro; e não é o dizer inconsciente, o do lapso ou do sonho, que se
qualificaria de mais obscuro. Se o compararmos aos usos da linguagem
cotidiana, utilitária 60, aquele dizer, mesmo sob a forma do enigma, é uma luz,
uma luz oculta. As formações do inconsciente como o sonho, o lapso, o
sintoma, a fantasia e o delírio são caminhos do saber, se tivermos em vista o
coração do ser que, note-se bem, não é necessariamente o ser. O mais claro
aparece assim sob o aspecto do mais obscuro. Tudo depende do lugar em que
nos situamos em relação ao dizer, isto é, à pulsão. Quanto mais se transita de
uma língua dominante, com seu teor de recalque, a um idioma originário, mais
a linguagem perde sua função de representar coisas para abrir clareiras na
percepção, dar a ver o invisível, fazer ouvir o inaudível 61. Não é exatamente o

58
“Gesang ist Dasein. Für den Gott ein Leichtes./ Wann aber sind wir?...” Rilke, R. M., Sonetos a Orfeu
(parte I, 3) - Elegias de Duíno, p. 25, Petrópolis, RJ, Vozes, 2000.
59
O seminário, Livro 23, O sinthoma, op. cit., p. 129.
60
Distinguimos o uso utilitário dos signos cotidianos de uma pragmática pulsional, voltada aos afetos e às
suas implicações éticas e estéticas.
61
É através das palavras, entre as palavras, que se vê e se ouve”, diz Deleuze em Crítica e clínica, op. cit., p.
9.

45
inédito que ela invoca, ainda que se trate também dele, mas a condição
renovada de ver, de ouvir, os afetos intempestivos (de que tempo? de que
lugar?), os graus de potência esquecidos.
O destino originário da pulsão é, portanto, a sublimação. Ao destacar a
condição de ver, de ouvir, de dizer, enfatizamos a tendência, mais que o
objeto, que dela deriva tanto em sua feição como em seu valor. Todos os
acontecimentos analíticos (a vida de modo geral) serão lidos a partir daquele
destino, e tal é a envergadura do processo instaurado pela análise. “Meu lema
é: a linguagem e a vida são uma coisa só” 62. Deveria ser uma proposição
elementar para os psicanalistas, mas curiosamente não é assim. Mesmo a
incidência exaustiva da investigação lacaniana em torno do objeto a, com
todos os seus paradoxos (dele não se tem imagem nem idéia), redefinindo a
questão do objeto para além das pretensões imaginárias de completude e
naturalidade, não foi suficientemente precisa para reconhecê-lo como objeto
de sublimação em sua origem 63. Não há objeto libidinal que não seja
construído, obviamente com os elementos de que a pulsão dispõe. Winnicott o
identificara como objeto transicional, engendrado entre o isso e o mundo
externo e, dada sua aptidão ao gozo, como uma espécie de composição
estética. Foram precisos vinte anos depois de Lacan para se dizer, como faz
Miller, que o objeto a não é real; que, do gozo, ele “é apenas o núcleo
elaborável num discurso” 64, deixando subsistir em aberto a questão do gozo
real.
Mas é comum afirmar que o real está excluído do sentido, e até estaria
bem assim, se houvesse uma ressalva – que do real, no entanto, se goza como
do único sentido originário, ativo, frente ao qual todos os outros, menores,
emudecem, por não se mostrarem suficientemente adequados ao gozo, isto é, à
lucidez originária. Em relação a esta, todos os demais sentidos perdem o
sentido. Daí a impressão, a certa distância, de um não-senso. Em outras
palavras, trata-se aí de um saber de não-senso porque é um saber sem
explicação – ele não recebe luz de nenhum outro. O gozo deste saber, a isto é
que Lacan chamava de agalma 65. Mas será que ele era entendido?
É claro que o gozo diz respeito ao vivo, mas que ambos se esclareçam
como saber, como lucidez, eis o retorno do arco e o sentido da análise, dos
62
Diálogo com Guimarães Rosa, por Günter Lorenz, em Ficção completa, op. cit., p. 47.
63
Aqui nossa pesquisa encontra a de Guattari: “Tento levar o objeto parcial psicanalìtico, adjacente ao corpo e
ponto de engate da pulsão, na direção de uma enunciação parcial”. Caosmose, op. cit., p. 25. Guattari fala
ainda da separação de um “objeto parcial” ético-estético do campo das significações dominantes (p. 24). Pois
bem, uma enunciação parcial de cunho ético e estético é sempre relativa às significações dominantes, sendo
nela mesma, por ela mesma, em sua gênese e em sua consistência, o que chamamos de um dizer inteiro ou
íntegro. A idéia de “parcial” permanece enquanto referida a um recorte...
64
Lacan, J., Outros escritos, Prólogo, p. 13, Zahar, RJ, 2003.
65
Lacan, J., O seminário, Livro 8 – A transferência, p. 139, Zahar, RJ, 1992.

46
quais se teve até hoje apenas um vislumbre turvo, um balbucio, um embrião
de pensamento. Acontece que esse saber existe em ato, é uma autorização e,
como tal, imediatamente um dizer. Lacan foi preciso em enunciar que o
analista “s‟autorise de soi même”, a partir de si mesmo e não por si mesmo ou
em si mesmo, como se ouve às vezes, pela simples razão de que uma
“autoridade” se exerce no mundo, junto aos outros, por força de seu saber-
fazer e sob a forma de uma intervenção, de um dizer.

A sublimação e o cosmo

A sublimação é uma estranheza não-humana e cósmica, pois abrange


uma gama considerável de práticas originárias que não poderiam mais ser
circunscritas à esfera dos procedimentos humanos 66, ainda que estes possam
compreender aquela amplitude e, paradoxalmente, nela se incluir.
Compreender e se incluir não são atos muito comuns; na verdade são bem
raros, quase impossíveis e, no entanto, que outro destino poderia haver para o
homem? Em sua leitura dos fragmentos de Heráclito, Heidegger pergunta
como o logos humano é grande e se engrandece, respondendo igualmente por
graus: “quanto mais estiver recolhido na coletividade originária” 67. Isto serve
para evocar o caráter precioso – e não menos perigoso – da indeterminação a
que está sujeita a experiência humana, proporcional à condição de auto-
determinação inconsciente, não realizada, que deve explicá-la em termos
absolutos.
As formações do inconsciente são dizeres tateantes, semi-ocultos, pelos
quais se desenham campos de experiência expressiva, com seus territórios
afetivos e domínios existenciais que, todavia, se encontram ainda fora do
alcance de uma prática esclarecida. O peso dos recalques é imenso. “O idioma
é a única porta para o infinito, mas infelizmente está oculto sob montanhas de
cinzas” 68. O lapso ou outra expressão privilegiada, ao mesmo tempo que
desterritorializa pelo efeito de não-senso ou de excesso de sentido, é signo de
expansão territorial, anuncia novos estratos discursivos, evoca regiões de
saber ainda inexploradas. Chave esotérica, abre portas secretas de
entendimento e visão. E assim é a vida, incisiva, contundente em seu não-
senso, uma faísca, uma explosão, por mais diminuída que esteja – um sinal de
luz na superfície.

66
“A arte não espera o homem para começar...” Mil platôs, vol. 4, op. cit., p. 129.
67
Heidegger, M., Heráclito, p. 364, Relume-Dumará, RJ, 2002. “Coletividade originária” é uma das versões
de Heidegger para o Logos heráclitiano.
68
Diálogo com Guimarães Rosa, em Ficção completa, op.cit., p. 47.

47
Uma mulher em análise se queixa, em dado momento, das suas
condições financeiras, dizendo-se, porém, longe de querer abrir mão do
conforto e do luxo. Repele a idéia de privar-se de um bem ou de um gosto, e
acrescenta: “é que já me senti privada demais!”. A expressão privada demais
ressoa, ramifica-se, distribui-se em estratos, em mais de um plano de
experiência e, por conseguinte, em diferentes alturas do tempo. Privada de
coisas por uma dinâmica econômica controlada pelo ex-marido; privada
enquanto vaso, recebendo as descargas sexuais do então marido, que não se
dedicava a proporcionar-lhe o prazer devido; privada ao modo de uma
propriedade, pois, justamente, teve um único companheiro, e mesmo depois da
separação permaneceu ligada a ele, como se, sozinha, ainda lhe pertencesse,
independente do tempo já transcorrido e por transcorrer ainda: “privada
demais”. A percepção radial dos estratos experienciais e das alturas do tempo
se dá quase que de um golpe só, como desvendamento de sentido.
O sentido pulsional se define por uma desterritorialização progressiva,
isto é, por uma abolição progressiva dos sentidos enquanto efeitos de
significante, de história, de cultura – até onde? Abolição dos sentidos, bem
entendido, quer dizer aqui re-apropriação, domínio, superação, emergência de
vida subjetiva, existência, clareza. É que o real, em seus diversos graus, é
digestivo, triturador, antropofágico. Há limiares de passagem que vão do
cultural ao caos aparente – a estação infernal – e deste ao cosmo, enquanto
pressuposto de todas as passagens. Mas não é o mesmo antigo cosmo, ordeiro
e seguro, se seu fulcro é a vida, coisa que Lacan não viu ao contrapor –
acertadamente, diga-se de passagem – a função da angústia, correlata da
indeterminação de que falávamos, tanto à visão cósmica estável, tradicional,
quanto ao sentido de um progresso histórico, evolutivo, que é tão caro à
modernidade, por esta se acreditar no seu ápice 69. Subsiste a faceta cósmica
da experiência analítica, a linha de passagem a um cosmo aberto, perspectivo,
vivo, em ordenação constante. Foi nestes termos últimos, aliás, que Freud
situou a experiência humana, ao ver seus desdobramentos refluírem às pulsões
de vida e de morte. Ora, não há vida que não se ligue por fios visíveis e
invisíveis ao universo 70.
Por que ir tão longe, pode-se objetar, quando a vida de um sujeito
humano já dá o que fazer no âmbito social, em relação à cultura, com os
outros e consigo mesmo? O erro está em conceber o cósmico como uma
realidade distante, uma referência remota. O cósmico, o vivo, é o mais

69
Lacan, J., O seminário, livro 10, A angústia, p. 47 e 48, Zahar. RJ, 2005.
70
“Porque se o nosso corpo é a matéria à qual a nossa consciência se aplica, ele é coextensivo à nossa
consciência. Compreende tudo o que nós percebemos, vai até as estrelas”. Bergson, H., Les deux sources de la
morale et de la religion, Oeuvres, p. 277, PressesUniversitaire de France, Paris, 1963.

48
próximo, é o micro, o molecular, o mais íntimo (das Heimlich), aqui e agora,
por mais longe que esteja da experiência subjetiva (das Unheimlich).
Assim, recomendando a interdição das escolas por umas duas gerações,
em vista da ênfase nociva que as fórmulas educacionais dão à “compreensão
mental”, pois separam a consciência da criança de suas bases dinâmicas, não
mentais, D. H. Lawrence, num ensaio singular sobre psicanálise, chega a uma
proposição escandalosa para as nossas referências culturais modernas:
“Understanding is the devil”. Explica este anátema descrevendo a visão de
uma criança: “Uma criança não precisa entender coisas. Ela deve tê-las à sua
maneira. Sua visão não é a nossa. Quando um garoto de oito anos vê um
cavalo, ele não vê o correto objeto biológico que nós pretendemos que ele
veja. Ele vê uma grande presença viva sem uma forma particular, com os
cabelos de seu pescoço flutuando e quatro pernas. Se ele põe dois olhos de
perfil, está bastante certo. Porque ele não vê com visão óptica, fotográfica. A
imagem em sua retina não é a imagem de sua consciência. A imagem em sua
retina de fato não vai para dentro dele. Seu inconsciente está cheio de uma
forte, escura, vaga presciência de uma poderosa presença, a iminente visão de
uma presença que tem dois olhos, quatro pernas e uma longa crina. E forçar o
garoto a ver um correto perfil de cavalo com um olho é como fixar um cartaz
na frente de sua visão. Isto simplesmente mata sua visão interna. Não
queremos que ele veja um cavalo apropriado. A criança não é uma câmera.
Ela é um pequeno organismo vital que tem uma relação dinâmica direta com
os objetos do universo exterior. Ela percebe desde seu peito e seu abdômen,
com um profundo realismo, a natureza elementar da criatura. De modo que até
este dia a árvore da Arca de Noé é mais real que uma árvore de Corot ou uma
árvore de Constable: e uma gorda vaca da Arca de Noé tem uma realidade
vital mais profunda que uma vaca de Cuyp” 71.
Picasso parece reconstituir uma condição originária de ver, e por isso, à
primeira vista, sua arte poderia se afigurar esquizofrênica, como pretendeu
julgá-la Jung, ao mesmo tempo maravilhado e estarrecido. Na verdade, realiza
71
A child mustn‟t understand things. He must have them his own way. His vision isn‟t ours. When a boy of
eight sees a horse, he doesn‟t see the correct biological object we intend him to see. He sees a big living
presence of no particular shape with hair dangling from its neck and four legs. If he puts two eyes in the
profile, he is quite right. Because he does not see with optical, photographic vision. The image on his retina is
not the image of his consciousness. The image on his retina just does not go into him. His consciousness is
filled with a strong, dark, vague prescience of a powerful presence, a two-eyed, four-legged, long-maned
presence looming imminent. And to force the boy to see a correct one-eyed horse-profile is just like pasting a
placard in front of his vision. It simply kills his inward seeing. We don‟t want him to see a proper horse. The
child is not a little camera. He is a small vital organism wich has direct dynamic rapport with the objects of
the outer universe. He perceives from his breast and his abdomen, with deep-sunken realism, the elemental
nature of the creature. So that to this day a Noah‟s Ark tree is more real than a Corot tree or a Constable tree:
and a flat Noah‟s Ark cow has a deeper vital reality than even a Cuyp cow”. Lawrence, D. H., Fantasia of the
unconscious and Psychoanalysis and the unconscious, p. 89 e 90, Penguin Books, Great Britain, 1972.

49
uma integração vital (o que chamávamos a pouco de vetor cósmico),
perspectivista, ativa, sublimatória, não sujeita às unidades conceituais estáveis
e consensuais da percepção. A não sujeição não exclui uma ação ordenadora.
Cada qual, portanto, com seu olhar e sua justiça. “Quando tinha a idade destas
crianças”, refletia Picasso em 1956, “sabia desenhar como um Rafael; mas
precisei de uma vida para aprender a desenhar como elas”. Até onde se
estende a infância? Em suas pinturas e gravuras se tornam visíveis, uma vez
ou outra, em meio à trama de traços seguros e ágeis, uma fisionomia egípcia,
um afresco etrusco, um vaso pré-colombiano. Esta conexão antiga e até pré-
histórica não impedia a existência de um Picasso maneirista, com a
consciência de que a beleza clássica e o Quattrocento perduravam em sua obra
72
. O artista procede, certamente, a uma recomposição atual de elementos
antigos, assim como a uma decomposição de elementos modernos, para deixar
como saldo uma espécie de memória sensível das eras. Mas faz variar o objeto
de acordo com a potência do olhar, isto é, de acordo com o devir desse olhar
no tempo. O cubismo não é igual à arte primitiva, as figuras que cria não são
iguais ou semelhantes às de culturas remotas, já extintas; originário não é o
objeto, mas o poder de apropriação e elaboração das matérias expressivas
disponíveis, seu grau de autonomia criadora, sua inatualidade, ao operar além
das coordenadas usuais de espaço e de tempo. Não é um retorno ao primitivo,
nem uma sobre-codificação atual dos dados antigos, mas um uso originário de
signos de diversa procedência, uma trans-criação, mais ou menos à maneira
como Heidegger se apropria do grego antigo e o dota de um poder de
enunciação poético-filosófica inusitado, dir-se-ia atemporal, a fim de
demarcar, ao mesmo tempo, a possibilidade do pensar e a sua raridade 73.
A propósito, é sempre risível a redução do vetor pulsional, enquanto
aparelhado de uma zona erógena, ao objeto que lhe é destinado pela natureza
ou pela cultura, pois não se vê que o circuito da pulsão vai muito além dos
primeiros pretensos objetos, pode integrar, em sua potência real-virtual,
séculos de experiência visual ou auditiva, e isto não de modo secundário, por
um desvio sublimatório, mas por uma via originária que dá a medida de todas
as outras vias. Alguns dos primeiros pretensos objetos são decididos,
conforme os termos de Lacan, pela demanda do Outro, sustentada por um
ideal de eu. Eles têm assim a face que o ideal de eu lhes imprime. Até aqui, os
olhos são olhos para não ver. Os objetos da percepção já foram fixados. É
72
“Braque disse-me uma vez: „No fundo, sempre amaste a beleza clássica‟. É verdade. Ainda hoje isso é
verdade. Nem todos os anos é inventada uma nova espécie de beleza”. Citado em Walther, I. F., Pablo
Picasso, p. 86, Benedikt Taschen, Köln, 1990.
73
Cf. Deleuze, em Crítica e clínica, op. cit., p. 112: “Chegou até nós a notìcia de que nem sequer a etimologia
de Heidegger, nem mesmo Lethê e Alethés, era exata. Mas será que o problema está bem colocado? Acaso
todo critério científico de etimologia não foi recusado de antemão, em favor de uma pura e simples Poesia?”

50
preciso ser uma Santa Luzia ou um Édipo com os olhos vazados para começar
a ver.
Deve-se dizer da pulsão, bem como de sua prática, a análise, o mesmo
que Lacan diz do inconsciente – que seu estatuto é ético e não ôntico. Não se
trata do ser da pulsão, mas de sua prática. Esta se refere mais ao ter do que ao
ser, se entendermos o ter a partir de um movimento de apropriação expressiva
e da constituição de um domínio, ou seja, a partir de uma experiência estética.
“A propriedade é primeiro artìstica, porque a arte é primeiramente cartaz,
placa” 74. Em seguida será estilo. Já em Freud a questão do inconsciente é a de
um domínio, de uma conquista progressiva de partes do isso, o que não exclui,
bem entendido, que o retorno ao isso, à pulsão, e o retorno da pulsão sejam a
mesma coisa. Daí se tratar de uma prática. Essa conquista, esboçada na
elaboração onírica, na fantasia e na construção delirante, é originalmente
estética. “Seja qual for o caminho que eu escolher”, dizia Freud, “um poeta já
passou por ele antes de mim”. Ou seja, a visão poética antecipa o que se
deverá entender por inconsciente. Como se salta do ético ao estético? O salto é
instantâneo, pois a condição ativa, que conotamos de ética, é diretamente
sublimatória. Não há mediação, nem transição e nem desvio quanto aos fins
originais. Quando Guattari diz que a perspectiva esquizo-analítica estabelece
uma cisão metodológica com as prática analíticas tradicionais e rompe,
finalmente, com os paradigmas científicos, “para fazer passar todas as
produções de subjetividade sob a égide de paradigmas ético-pragmáticos,
ético-estéticos” 75, apenas reconduz a psicanálise ao seu devir originário, de
feição pulsional.
O caráter estético reside no que se denomina, em Mil platôs, de “auto-
movimento expressivo”, isto é, num certo grau de autonomia em relação às
condições dadas do meio interno e do meio externo. Neste caso, as pulsões,
enquanto constituintes do meio interno, estariam no melhor dos casos
submetidas ao regime expressivo, este sim dotado de uma potência autônoma.
Ora, essa potência é ainda a pulsão com seu poder integrativo e, por isso
mesmo, expressivo. É a pulsão que tem a força de apropriação, é ela que
constitui território (que é ao mesmo tempo integrado e expressivo), assim
como é ela que desterritorializa. De fato, as pulsões se explicam pela pulsão.
A integrativa das demais é a de vida – a tendência superior (não total). Por
isso Heidegger pode dizer que o pensamento originário é a vida.

Nas imediações dos afetos originários, em sete tomadas

74
Mil platôs, vol. 4, op. cit., p. 124.
75
Caosmose, op. cit., p. 79.

51
I

O que entendemos por afeto originário? Uma disposição afetiva cuja


natureza é evocada, por exemplo, em algumas observações de Freud sobre a
ignorância dos seres humanos quanto à sua vida erótica, como esta anotação
que consta do artigo Sobre a psicogênese de um caso de homossexualidade
feminina: “Não posso desprezar a oportunidade de expressar, de passagem,
meu espanto de que os seres humanos possam atravessar tão grandes e
importantes momentos de sua vida erótica sem notá-los muito; na verdade, às
vezes nem mesmo possuir a mais pálida suspeita de sua existência, ou então,
havendo-se dado conta desses momentos, enganarem-se a si mesmos tão
completamente no julgamento deles. Isto não acontece apenas em condições
neuróticas, onde estamos familiarizados com o fenômeno, mas parece ser
também bastante comum na vida ordinária” 76. A regra, neste caso, é ditada
pela vida neurótica, de tal modo que esta é mais extensiva do que se desejaria
crer.
A título de ilustração do que queremos dizer sobre o originário, e sobre
o fato de que a vida erótica tem mais de uma altura, lembrar aqui a concepção
desenvolvida por Georges Bataille de um erotismo que se gradua em erotismo
dos corpos, do amor e do sagrado 77. Planos ou graus do originário. Não
partilhamos, porém, da visão desse autor quanto à gênese do erotismo, isto é,
que este se explique como ato de transgressão do mundo humano, organizado
pelo trabalho e pela razão, ainda que esse ato implique um retorno relativo às
condições de origem – no caso, ao estado primitivo de violência sexual.
Precisamente por se tratar do originário, Eros é fonte de toda e qualquer
legitimidade.
O originário tem assim um primeiro sentido, o de ser ignorado,
inconsciente, inclusive em sua legitimidade. Há mesmo um Freud para o qual
a pulsão de vida é apenas transgressão.

II

Eis um segundo sentido: um afeto originário compreende os afetos


derivados, secundários, integra-os no entendimento, esclarece-os e os
subordina a si. O exemplo poderia ser o de Antígona e sua afeição inabalável
ao irmão Polinice, traidor da pátria. O amor e a devoção ao morto antecedem,
e por isso integram e superam, o seu destino de traidor. Nessa altura já não
76
Obras completas, op. cit., p. 2557 e 2558.
77
Cf. Bataille, G., O erotismo, L&PM, Porto Alegre, 1987.

52
intervém nenhum juízo, nenhuma distinção valorativa entre Polinice e
Etéocles. Antes de sofrer as vicissitudes do heroísmo ou da traição, eles são
seus irmãos. Antes ainda, pertencem ao gênero humano. O desejo alcança a
sua condição absoluta. Antígona fala em nome de leis eternas, que nunca
foram escritas. É o domínio dos afetos originários. Se eles não perecem, não
se deterioram, é porque são, como aquelas leis, indestrutíveis. O
desenvolvimento da tragédia apenas atesta esta verdade, descrevendo a série
de malefícios que advém do fato de se perder a noção desses afetos, de não
serem mais experimentados e de ficarem esquecidos. Contudo, mesmo
ignorados, eles presidem ao surgimento de todos os outros, medindo-os e
esclarecendo-os.

III

Recebem a designação de originários por um terceiro motivo, já


mencionado no segundo: antecedem o sistema do julgamento. São extra-
morais. E por isso são visados pelo vetor analítico, que não os considera de
um ponto de vista exterior, como um projeto de transformação que se
impusesse ou fosse sugerido de fora, por meio de um discurso cultural ou de
um saber de mestre, mas que os descobre falantes, por mais obscura que essa
fala tenha se tornado. Na verdade, eles é que são o fora dos discursos e do
pensamento, e por isso mesmo constituem o campo analítico. É claro que faz
toda a diferença se a fala é obscura ou esclarecida, diferença equivalente à que
existe entre o recalque e a reconstituição da ordem originária dos afetos. O
sentido extra-moral deve ser precisado. Trata-se de considerar um poder de
avaliação que não se confunde mais com o sistema do juízo. Ora, os afetos
originários, com sua inteligência avaliadora, são este poder em ato. Eros,
como já dissemos, é um deus que pesa, avalia, estima.

IV

Deste sentido extra-moral decorre ainda um quarto motivo para a


designação de afeto originário: ao introduzir uma ética extemporânea, esse
afeto vigora inconsciente, isto é, subsiste ou insiste, como dissemos acima,
como rastro de ausência e limar extremo, em todos os graus e modalidades
afetivas, por não serem ele próprio ou não estarem à sua altura. Poderíamos
evocar o exemplo de quem se encontra à beira da morte e recorda, depois de
tê-los esquecido por muito tempo, seus amores indestrutíveis, pai, mãe,
irmãos, esposa, filhos, amigos, ou ainda o fatum desmedido de ter estado aqui,
o sentimento da infância, algo como o remoto e secreto “rosebud” de Cidadão

53
Kane. Ou o caso de quem recupera, no último instante, a febre de viver, e se
depara com uma grandeza invisível, com o abismo. “Pois o que é
verdadeiramente espantoso e temível no homem ainda não foi posto em
palavras e livros. E a proximidade da morte, que torna todos iguais,
impressiona com uma última revelação, que apenas um autor saído de entre os
mortos poderia descrever adequadamente” 78. Pode-se pensar também no
acesso a um afeto vidente, a uma visão do curso inexorável do devir – do que
virá se, justamente, não se perder de vista o afeto visionário. Não perdê-lo de
vista e “não abrir mão do desejo" passam a ser, neste caso, a mesma coisa –
firmeza é o seu nome. O filme O sacrifício, de Tarkovski, explora esse gênero
de vidência, tão vinculada ao desejo que constitui, com ele, um vínculo
sagrado. Se a ação altamente singular era estranha, grande demais para o
personagem central (um intelectual e escritor que cansara de só falar), pois iria
afetar o curso do mais sombrio dos acontecimentos, ela era simplesmente
inconcebível para os demais, que só tinham uma experiência geral e estatística
dos afetos. Como ele não seria, no final, tomado por louco? Mas isto já não
importava, a obra havia sido concluída. Sua família e o mundo estavam
salvos. Esse quarto motivo ou sentido para o originário se refere, portanto, aos
limites da vida e da morte, da lucidez e da loucura.
A psicanálise deve servir para atualizar os afetos originários em tempo,
quando eles ainda podem desencadear atos e decisões 79. A seriedade do
assunto não exclui, porém, a condição originária do humor, essa faceta
positiva do superego (segundo Freud) de enfrentar serenamente as mais
severas adversidades. Firmeza e flexibilidade são as características de uma
vida que persevera em seu ser. São traços que perfazem, também, o que se
exige de uma condução analítica. Seja como for, o riso se aproxima da graça e
do milagre, mas mais profundamente do saber de não-senso, com o “sentido”
que lhe damos.
G. sonhou que corria por um caminho estreito, ladeado de um mato
crescido, lembrando a região onde, no início da adolescência, estivera com o
78
Moby Dick, op. cit..
79
O caso, difundido pela mídia brasileira, do menino (João Hélio é seu nome) preso ao automóvel e arrastado
pelas ruas, na seqüência de um assalto realizado por menores delinqüentes, é tão horrível quanto exemplar. As
análises se centraram no gênero de castigo que os atos de violência praticados por menores recebiam ou
precisariam receber por parte do aparelho judiciário. Um intelectual, professor de ética numa universidade,
sugeria, ao modo de confissão dos seus sentimentos, que os assassinos deveriam sofrer na prisão um
tratamento igualmente desconsiderado por parte de outros condenados. Apesar das críticas dirigidas às
declarações desse professor, os debates deixaram de lado, de modo geral, a seguinte verdade: que os jovens
insensíveis, sem a menor noção de humanidade, agindo com a mais crua perversidade, já eram eles próprios,
há muito tempo, a criança arrastada pelas ruas, o “boneco de Judas”, nas palavras de um deles. A prova é que
faltou pouco para que não fossem linchados. Objeto a de Lacan, o dejeto. Não se trata de uma metáfora. É o
tratamento que o originário recebe em nossa civilização atual. Com efeito, é eloqüente a distância da vida
social em relação aos afetos originários.

54
pai, em férias – região agreste, onde passavam os dias caçando. Sua memória
não registra outra ocasião como esta, de convivência plena. Numa curva do
caminho, havia um homem parado, de pé. Talvez fumasse um cigarro. Era seu
pai, vestido todo de branco. Ele jamais vira seu pai vestir-se desse modo.
Usava habitualmente camisa branca, mas não a calça. É que – pensou – ele
está morto. O pai fitava-o firmemente. Conhecia esse olhar, era mesmo o de
seu pai, e significava uma indagação algo expectante, como se o inquirisse,
olhando nos olhos: “vai se decidir ou não?”, ao mesmo tempo em que
perguntava verbalmente se resolvera o problema que, assim sentia, só podia
ser financeiro. O pai nunca tivera bons rendimentos, vivendo de maneira
precária do ponto de vista das finanças: é um traço de identificação, com
ressalvas. Em seguida o pai virou de perfil, olhando em outra direção, como se
já houvesse tratado de tudo o que era preciso. Questões econômicas
motivaram, por certo, aquela pergunta do sonho, mas G. não pôde deixar de
constatar que sua situação financeira estava sob controle e, melhor ainda, era
promissora. “Ora, devo ter um anjo da guarda, pois é na verdade um milagre
que eu, que nunca me ocupei de dinheiro, esteja com a vida estável nesse
aspecto; o mais provável teria sido um verdadeiro desastre em termos de
subsistência. Em momentos críticos, alguma coisa acontecia, e o assunto se
arranjava a contento”. O pai parecia um anjo da guarda e a indagação do olhar,
perguntando quando decidiria, denunciava sua tendência a adiar decisões
importantes. E de fato G. se encontra em mais um momento decisivo de sua
vida “Vou passar a acreditar em anjo e em milagre, pois afinal sobrevivi”.
“Saiba que”, lhe retornou o analista, “o milagre mesmo consiste em você
dizer, pela primeira vez em todos esses anos, que as coisas deram certo”. Pois
antes havia sempre o desgosto expresso, associado a uma “coisa metafísica”
funesta, de que nada dava certo em sua vida.
O sonho aponta um limiar, um termo, a partir do qual a subjetividade
muda de plano, de natureza ou de discurso. Asas do desejo. O afeto avaliador
de um percurso existencial, com seu poder decisório infuso e sua expressão
em ato, ainda que este fosse onírico, passam pela evocação transfiguradora do
pai, o anjo da guarda, postado além da última fronteira.

Quinto sentido. Deve-se incluir no âmbito dos afetos originários, como


fator capaz de desencadeá-los, ou de soltá-los, aquelas qualidades sensíveis ou
impressões que nos causam uma estranha alegria, sem que saibamos por quê.
Um cheiro, um gosto, um passeio de pedras, ao mesmo tempo que designam

55
um objeto, insinuam a presença obscura de um objeto completamente distinto
a ser decifrado, e que não ressurge, finalmente, apenas como foi no passado,
mas sob um aspecto jamais vivido, numa espécie de eternidade. “São signos
verídicos, que imediatamente nos dão uma sensação de alegria incomum,
signos plenos, afirmativos, alegres” 80. Que, de acordo com Deleuze, a
“essência ideal” evocada pelas qualidades sensíveis só encontre inteira
elucidação nos signos da arte, é bem o que formulamos ao sustentar que a
pulsão se esclarece por seus graus superiores 81.

VI

Os afetos originários estão na origem da cultura, na origem do humano,


bem como nas imediações do elemento não-humano que eles despertam e
desenvolvem – o estranho, o novo. Por isso o seu domínio é, igualmente, o da
sublimação originária. E esse é um sexto sentido para a noção que utilizamos.
Não se deve imaginar que os afetos originários são bondosos, amorosos,
piedosos, ainda que esses traços possam entrar em sua composição. Eles são,
sobretudo, temíveis, pois podem levar ao fim do mundo. Assim é, por
exemplo, a determinação solitária de Ahab, em Moby Dick.
Conforme vimos no caso de Alexandre e sua égua, descrito no primeiro
capítulo, um devir animal – para continuar usando as noções deleuzianas
destinadas ao afeto – pode se conjugar com outros devires e eventualmente
envolvê-los. Pode ser acompanhado de um devir mulher, de um acesso à
alteridade e, portanto, à própria capacidade sensível, ou de um devir criança,
mediante as questões: “Quem é seu filho?” ou “Quem é, desde a infância, ele
próprio?”. E mais profundamente: “Como instaurar um novo começo?”. E é
mesmo notável como Alexandre obtém uma composição desses devires ao
integrar mulher e filhos a uma linha de fuga ou de cura, à vertente do desejo,
ao movimento de tornar-se outro. Desaprender, mudar de sentir, ressurgir dos
mortos. Como já dissemos, não há distinção a ser feita entre os devires
deleuzianos e os pulsionais 82.

80
Deleuze, G., Proust e os signos, p. 13, Ed. Forense Universitária, RJ, 1987. Coube a Deleuze desenvolver o
mais profundo recenseamento dos signos, e analisar os modos de seu aprendizado de acordo com as linhas do
tempo. As qualidades sensíveis, com o desdobramento do tempo redescoberto que implicam, são signos
verídicos em relação aos signos mundanos, que são vazios, e aos signos do amor, que são enganadores.
81
“(...) todos os signos convergem para a arte; todos os aprendizados, pelas mais diversas vias, convergem
para a arte. No nível mais profundo, o essencial está nos signos da arte”.
82
“O que se pode dizer, no mìnimo, é que os psicanalistas não entenderam, Jung inclusive, ou que quiseram
não compreender. Eles massacraram o devir-animal, no homem e na criança. No animal, vêem um
representante das pulsões ou uma representação dos pais. Não vêem a realidade de um devir-animal, como ele
é o afecto em si mesmo, a pulsão em pessoa, e não representa nada. Não há outras pulsões que os próprios
agenciamentos”. Mil platôs, vol. 4, p. 45.

56
Ao longo de sua linha de cura, Alexandre dissolve as determinações
familiares enquanto representações fixas, enquanto figuras simbólicas e
imagens, e as reconstitui (e se reconstitui) no plano originário dos afetos:
brincar com sua égua ao invés de exigir dela o desempenho filial impecável,
voltar a ser sensível, beijar seu filho, ouvir-se, sair de casa, respirar. É tudo
muito simples, mas o simples, o corpo vivo, a peça única, embora não seja
derivado ou secundário, está longe de ser imediatamente dado – ele é objeto
de conquista. É nele, aliás, que se resolvem todos os paradoxos do objeto a de
Lacan, o objeto do qual não se tem imagem e nem idéia. Como? Ele é o além
e o aquém desse objeto, é o que esse objeto designa em última instância;
encontra-se lá onde subsiste apenas o traçado de uma linha abstrata e
sublimatória, a linha de força de uma prática sem modelo (devir
imperceptível). Mas isto já não se distingue do caminho da análise.
Deleuze e Guattari mostraram que o cavalo fóbico do pequeno Hans,
antes de ser edipiano, era um investimento extra-familiar, uma relação com o
exterior, um exercício da pulsão 83. Um cavalo pode compreender, assim, o
não-humano no homem 84, o que ainda não foi determinado. Eis alguns de
seus traços: 1) compõe-se de afetos, na medida em que estes exprimem
determinados graus de potência – de ver, de sentir, de avaliar, de agir; 2) é um
acontecimento único, uma individuação: ou é o cavalo de Hans 85, ou o de
Nietzsche, ou o do sonho de Raskolnikov 86, ou o da criança de Lawrence ou

83
“O cavalo do pequeno Hans não é representativo, mas afectivo”. Mil platôs, vol. 4, p. 43.
84
Como já dissemos, o não-humano no homem é ainda o homem segundo critérios que permanecem, em
grande medida, desconhecidos. Se envolve elementos não-humanos na produção de subjetividade tais como
as “instâncias sugestivas ou identificatórias concernentes à etologia, interações institucionais de diferentes
naturezas, dispositivos maquìnicos” da informática, enfim, as grandes máquinas sociais, mass-mediáticas,
lingüísticas (Caosmose – um novo paradigma estético, op. cit., p. 20), é preciso acrescentar a essa composição
pré-subjetiva complexa a ordem dos afetos originários, que têm sua vigência fora do humano em seu alcance
estatìstico, ou, se quisermos, que subsiste lá onde o “demasiado humano” não pode alcançar. Como explica
Guattari, o “não-humano” não é uma referência anti-humanista, e sim uma exploração da estranheza no
campo da subjetividade, implicando tanto aqueles fatores mencionados como o que chamamos de originário.
É possìvel que com a expressão “agenciamentos coletivos de enunciação” Deleuze e Guattari queiram
contemplar esse conjunto de condições.
85
“(...) um indivìduo num agenciamento maquìnico: cavalo de tração-diligência-rua”. Mil platôs, op.cit., p.
43.
86
Raskolnikov, personagem central de Crime e castigo, sonha que ainda é criança e assiste à cena na qual um
bando de mujiques bêbados, munidos de paus e ferros, desferem golpes violentos numa égua pequena e frágil,
a pretexto de que ela, desobediente, resiste a puxar o carro em que eles todos se apinham e que, no entanto,
pelo tamanho e pela carga, está muito acima de suas forças mover o mínimo que seja. Um dos mujiques,
chamado Mikolca, instado por alguns espectadores menos truculentos a deixar a pobre égua em paz, grita que
ela lhe pertence e que irá golpeá-la até a morte. Chega a pedir um machado, arma mais contundente que o
ferro com o qual lhe espanca o lombo. O menino Raskolnikov, emocionado, parece se apiedar do animal,
agora estendido no solo, agonizante, e em seguida se enfurece contra Mikolca. Acorda e pensa em sua vítima.
O machado denuncia a relação com o crime que irá cometer. Ele é a criança dos afetos originários e, também,
Mikolca, já tão distante dos mesmos. Cf. Dostoievski, F., Crime e castigo, p. 70 a 74, Editora 34, RJ, 2009.

57
ainda a égua de Alexandre, sempre uma presença excessiva, incontornável, e
um modo extremo de sentir o que só pode ser sentido; 3) evoca um plano de
sensibilidade ou de vida que atravessa as espécies 87. Mas como um cavalo
não é um conceito, uma figura, o representante de uma espécie ou de um
gênero, como ele não é feito de características formais e sim de afetos, como
ele é um ser vivo, surge feito uma inexplicável anomalia na fronteira de uma
manada, de um bando, tal como Josefina e o povo dos camundongos no conto
de Kafka. É o caso do devir animal do escritor, despontando na linha do
horizonte de seus contemporâneos.
Por mais que a voz clame no deserto, não clama absolutamente
sozinha, mas sempre nas imediações de um povo, mesmo que seja de um povo
por vir, como pensa Deleuze, ao considerar os anseios de artistas como Kafka
e Klee. Inexplicável anomalia do afeto e sua tendência a surgir na linha do
horizonte. Os sonhos visionários de O enigma de Kasper Hauser, de Herzog,
parecem dar provas disso. Quanto mais singular a composição afetiva, mais
originária e sem genealogia ela será. O sujeito da composição será assim como
Melquisedeque, filho de um tempo original.
Algo similar a essa anomalia e, no entanto, radicalmente diferente, uma
patologia iluminadora, pode se verificar nas fronteiras de um povo que carece
da noção de si próprio e dos outros povos. Assim é o personagem de Medo e
obsessão (Land of plenty), de Wenders. Em seu delírio de agente secreto
americano dedica a existência a investigar os germes de ações terroristas
árabes nos anos que se seguem a 11 de setembro. É um pária, mas parece
concentrar em si o pavor e o ódio de uma nação rica, inconsciente de si e do
mundo, justamente ele que, a exemplo dos que se alimentam no abrigo para
indigentes “Pão da Vida”, não tem mais nada a perder, nem mesmo a razão.
Quando o mendigo árabe que ele persegue secretamente, julgando-o membro
de um grupo terrorista em ação, é eliminado a tiros, acredita que o suposto
terrorista tenha sido morto por uma facção islâmica poderosa, para a qual,
talvez, aquele ato menor prejudicaria o plano maior, a ser descoberto por ele,

Mas cabe aqui um esclarecimento: a simpatia ou a piedade pelo animal não é ainda ou não é mais um
afeto originário; a identificação ao animal pertence a um plano secundário, plano de representação, em que os
afetos já são tomados numa rede de significantes. O originário consiste numa co-participação no Ser
(conforme o caráter extra-pessoal da pulsão). Homem e animal “não são absolutamente a mesma coisa, mas o
Ser se diz dos dois num só e mesmo sentido” (Mil platôs, op. cit. p. 44). Freqüentam o mesmo plano de
Natureza, e é somente por isso, precisamente, que o devir animal é uma anti-natureza. O plano é o de uma
natura naturans, segundo a qual todo o devir é uma operação. A participação afetiva é imediatamente uma
prática, um procedimento, um cuidado artístico, uma composição e um estilo (a conjunção, conforme
indicamos no início, do simples e do refinado).
87
“Não se trata de um acordo entre homem e bicho, nem de uma semelhança, mas de uma identidade
profunda, de uma zona de indiscernibilidade mais profunda que toda identificação sentimental: o homem que
sofre é um bicho, o bicho que sofre é um homem”. Deleuze, G., Lógica da sensação, p. 32, Zahar, RJ, 2007.

58
paladino invisível dos EUA. Concluíra, sumariamente, que os assassinos não
eram do FBI, não podiam ser americanos. Mais tarde é informado de que se
tratava de um bando de jovens brancos, envolvidos com crack. Desconcertado,
sente que há algo de errado em suas premissas anti-terroristas. É um delírio
paranóico que expressa, no plano dos afetos, toda a distância de um povo em
relação aos afetos originários, seu profundo esquecimento de si, sua grave
desorientação 88. A agudeza de percepção, a dedicação, a vigília do
personagem, uma espécie de limpidez da consciência, convicta de suas razões,
para a qual o menor indício se converte em fonte de confirmação indiscutível,
demonstram como é possível se iludir quanto aos afetos originários,
presumindo-os tão próximos quando já se encontram do outro lado da linha, a
uma distância quase intransponível. Para o personagem do filme subsistem
apenas os sentimentos patrióticos estereotipados de pertencimento a uma
nação esquecida de si.
São os afetos originários que constituem a noção real de si e do outro.
Na verdade, eles são esta noção.
Considere-se ainda um devir cão ao modo de Wilson Bueno, autor que,
como poucos, compõe uma zoofilia literária apta a situar os afetos nas
fronteiras do humano. Desde Diário vagau, tanto em “Cão ìntimo” como em
“Conversa de cão”, desponta esse cão soturno, judiado, rebelde e solitário,
inscrevendo a experiência íntima do outro não-humano “no rés-do-chão do
meio fio”. Esse limiar canino se transformará, com o tempo, na experiência de
um cão inteiramente literal, sublimatório, posto que ficcional até a medula, o
singularìssimo “Brinks” de Mar paraguayo 89. É ele que explora o devir cão
em todos os seus graus intensivos. Se antes era “eu e o cão” 90, por mais
íntimo que fosse, agora o exercício da pulsão se identifica integralmente ao
bem-dizer. Na verdade, era esse dizer inteiro que estava na origem, pois a
origem é o entendimento superior de tudo o que veio a suceder a partir dela,

88
“Como é mostrado no filme todo”, diz Wenders, “os americanos colonizaram o subconsciente. Você
conhece os americanos dos filmes. Mas quando você mora nos EUA e você viaja pelos EUA, os americanos
são completamente diferentes. Principalmente se você sair das cidades, sair de Los Angeles ou de Nova York,
das cidades grandes, e for para o interior, de repente os americanos são um povo desorientado, esquecidos e
perdidos no tempo. E desinformados. E estranhamente desamparados. E estranhamente desligados,
desconectados. O meu filme é sobre esta desconexão com o resto do mundo. Os americanos ficaram tão
acostumados a serem o centro do universo e a se considerarem a nação mais poderosa que tendem a pensar
que as outras nações foram construídas ao seu redor. Mas quando você dirige pelos EUA você se dá conta
desta ilusão, não há um centro, e os Estados Unidos com certeza não são o centro de gravidade do mundo. E
os americanos... Às vezes acho lamentável como eles são sem noção, como não têm idéia do que o mundo
pensa a respeito deles, do que o mundo sente em relação a eles...”. Entrevista com Wim Wenders, em extra no
DVD do filme Medo e obsessão,
89
Bueno, W., Mar Paraguayo, Iluminuras, SP, 1992.
90
“Agora era eu sozinho com meu silêncio, eu e ele apenas, o cão desdentado...” Bueno, W., Diário vagau, p.
29, Travessa dos Editores, Curitiba, 2007.

59
na sua direção ou mesmo na direção inversa. A pulsão, sendo imediatamente
superativa, é a própria sublimação, porém mesclada, desde os primeiros
tempos, com a necessidade de contrariar, de inverter, de negar o que lhe era
contrário, o que parecia ser seu avesso, o que já era sua própria negação...
“Brinks” é um ato, uma prática, um puro experimento. Se antes havia a pulsão
cruel, doída, canina –, agora (mas este agora é o tempo original) há uma
operação sutil, uma abstração radical, pois a inexistência de “Brinks” 91 como
representação revela sua existência prática, o ato de dizê-lo, o bem dizer. Que
finalmente “Brinks” seja menos que um vìrus, uma bactéria, que ele seja
infinitesimal, é o que indica sua pertinência ao real, isto é, ao pequeno, ao
micro, à pulsão – palavra e afeto. Quase por conseqüência lógica, Bueno
inventa, com Cachorros do céu, algumas fábulas despojadas de todo acento
moral, como quem procura a pureza de uma fabulação larvar, anterior à
Gênese, um tempo original em que o juízo que decide o que deve ou não
existir não se instaurou ainda. “Alzorres”, o lobo-cachorro, é também um tipo
de anomalia nos limites da matilha... 92
É que os afetos originários não são generalizáveis, não podem ser
abstraídos, nem podem ser objeto da razão. Eles são antes uma grande razão
viva, diferença selvagem e espiritual que anima a sublimação e a cultura, e
insiste como seu esteio constante, incorruptível. Designam o que um corpo
pode, o que se pode e não se sabia (= não se praticava) ainda.

VII

Um sétimo sentido para o uso da expressão “afeto originário”


encontraremos em Spinoza, e muito especialmente a partir da leitura
deleuziana dos textos desse filósofo. Os afetos de origem são paixões alegres
ou tristes, ou melhor, são vetores de alegria ou de tristeza, e correspondem ao
aumento ou à diminuição de potência, isto é, ao aumento ou à diminuição da
capacidade de agir. A proximidade com o sentido pragmático das noções de
pulsão de vida e de pulsão de morte, tal como as desenvolvemos aqui, permite
constatar uma semelhança surpreendente entre a ética spinozista e a
psicanalítica. Segundo esta convergência ética, o que chamamos de afeto
originário aparece, mais propriamente falando, ao nível do terceiro gênero de
conhecimento. Aparece, portanto, por último, como “auto-afeto”. Mas é este
auto-afeto que esclarece todos os outros níveis afetivos. Como é possível? O
cursor ético que desdobra os três planos do conhecimento se instaura a partir

91
Convém não esquecer que “Brinks” é nome emprestado – intencionalmente, segundo o autor - de uma
empresa de segurança, transportadora de valores monetários.
92
Bueno, W., Cachorros do céu, p. 91, Editora Planeta, SP, 2005.

60
do último, pois é o último que garante o mais puro discernimento ético. É o
último – a ciência intuitiva – que garante a possibilidade de um
desdobramento ético dos planos de conhecimento. Por quê? Porque é o único
plano que poderá ou não se constituir. É decisivamente de consistência ética.
É apenas uma maneira de dizer que, para uma visada ética, está em jogo, todo
o tempo, a apropriação d‟isso.
Mas vamos por passos na compreensão do sétimo sentido de afeto
originário. Há uma distinção spinozista entre afecção e afeto muito
elucidativa. As afecções são os efeitos que os corpos causam uns nos outros,
são as idéias desses efeitos, inevitavelmente inadequadas, posto que não
incluem o conhecimento das causas: é a idéia do calor que sinto quando o sol
queima minha pele. Idéia-afecção instantânea que pode gerar alegria, isto é,
aumento de potência, ou tristeza, diminuição de potência. Esse elemento da
passagem para mais ou para menos, esse sentido de maior ou menor perfeição
no que diz respeito à capacidade de agir, eis o que Spinoza chama de afeto.
Nada me faz, até aqui, conhecer o sol, mas os afetos de alegria, mesmo sob a
forma da paixão, são luzes, signos vetoriais, índices de um de conhecimento
possível, aquele que terá a consistência das noções comuns. O que de comum
existe entre o meu corpo e um outro, que relações aí se combinam de modo a
resultar em aumento de potência? Qual o bom vetor, para que nele me
coloque? É todo um aprendizado das combinações favoráveis, dos bons
encontros, envolvendo um conhecimento das causas. Um exemplo deleuziano:
como se comporta o elemento fluido do mar para que eu possa adaptar a ele,
progressivamente, o meu nado ainda incipiente? E como o meu nado deverá se
desenvolver para que as ondas lhe sejam favoráveis? As ondas do mar se
compõem, finalmente, como os movimentos do meu corpo. Sou um nadador.
O conhecimento resulta de relações que se compõem, mas, desde então,
propicia futuros bons encontros que não se definem mais por paixões alegres e
sim por alegrias ativas. Entramos, assim, na posse de nossa potência de agir, o
que aqui temos chamado de exercício da pulsão, não sem insistir que esse
exercício é também o do saber – saber nadar, saber-fazer. Isto não nos dá
ainda uma visão direta da essência no sentido spinozista, ou seja, do grau de
potência que torna possível, em última instância, tanto as afecções do primeiro
grau do conhecimento, ainda circunscrito às idéias inadequadas, como as
noções comuns que constituem o segundo grau do conhecimento, a ciência das
causas. Ascender ao terceiro gênero significa apreender diretamente o poder
de afetar e de ser afetado. É o auto-afeto ou, em nossos termos, a volta inteira
da pulsão. A ciência intuitiva de Spinoza, com seu acento místico, pois
compreende a intimidade das essências singulares, de Deus e do mundo, não
se distingue de um dizer imanente, unívoco, de um hen panta decididamente

61
panteísta 93 e do auto-afeto que lhe corresponde, a beatitude. Mas por que se
trata de um dizer? Só se é o grau de potência que se é em ato.
Com os “afetos originários” não queremos evocar o melhor dos
mundos possíveis, mas apenas observar, com interesse clínico, que os
verdadeiros combates começam nas suas imediações.

A imanência do dizer

Pelo que se viu acima, a pulsão pode ser exercida ou não; seu exercício
não se dá naturalmente. Os lapsos de linguagem, de modo geral tão preciosos,
são eclosões do dizer em meio ao dito, laivos de existência – ex, sempre fora,
estrangeira. Esses lampejos do saber inconsciente são índices da pulsão, de
sua atividade, do dizer que se encaminha e se depura como bem-dizer. Se a
ética da análise é a do bem-dizer, convém pensar, à maneira de Spinoza, que é
justamente nessa prática (constante) que consiste a beatitude, a satisfação, o
gozo, o saber.
Entendido como legein, como logos, o dizer recolhe, reúne, junta – é
integrativo e íntegro. Não é verdade que só se tem acesso aos representantes
da pulsão, à idéia e ao afeto, pois o fator de reunião ideo-afetivo é o dizer, do
qual, evidentemente, se faz experiência. O dizer é o fruto, o verbo encarnado.
Que essa experiência, porém, não seja de fácil acesso, é outra coisa,
decorrente de seu caráter ético.
O dizer é imanente à idéia e ao afeto, ao saber e ao gozo, e por isto se
pode afirmar, com Lacan, que o sujeito é imanente à voz que ele ouve na
alucinação, ou seja, que ele existe nessa voz, (existirá) nesse dizer. No âmago
da idéia e do afeto, enquanto são “representantes” da pulsão, há o dizer, o grau
mais alto da pulsão. Não existe voz alucinatória sem um componente ideo-
afetivo que a torna audível, e no qual, embutido, insiste um dizer. É ali que o
sujeito subsiste. Ele só é imanente à voz que ouve porque existe naquele dizer,
por meio daquele dizer que, no entanto, não reconhece e não pode reconhecer
como seu. Em razão disto, sua existência se encontra por um fio. A voz não é
uma voz qualquer – é uma voz separada dos ruídos do mundo e, na sua fonte,
um dizer não-realizado. Daí a tenacidade com que o sujeito sustenta a
realidade do que ouve. É a certeza do seu cogito solitário, por mais que se
denomine, a si próprio, “legião”.
Lacan trouxe para um mesmo plano, com alguma audácia, o problema
dessa voz alucinatória e o da voz demoníaca de Sócrates 94. No caso da

93
“Um-todo” ou, como sugere Deleuze, “o um todas as coisas”. Deleuze assinala a ousadia filosófica de
Spinoza, que assestou o golpe panteìsta “por toda a eternidade”. En medio de Spinoza, op. cit., p. 484 e 485.
94
Cf. Lacan, O seminário, livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, op. cit., p. 243.

62
psicose, a voz de escárnio e censura, por exemplo, é ainda o existir sob a
condenação do Outro, ou melhor, é o não-existir nessas condições de
julgamento, o que é igual a não-dizer, pois se trata de um dizer expropriado,
irreconhecível, vindo do Outro. Afeto dilacerante, o sujeito se identificando
com a expropriação que o mortifica, que o sentencia à morte. Faz um com a
sentença. Percebe-se então porque o dizer veicula tanto a vida como a morte.
Isto não revoga, porém, que o dizer seja exatamente como a pulsão – que é de
vida.
Em decorrência do suicídio ainda recente do pai, Cláudio se mostra
muito deprimido, cultiva idéias suicidas e ouve vozes. Dias antes da tragédia,
o pai procurou-o por telefone (a voz), relatando que uma viga caíra em sua
cabeça e passara a ter idéias esquisitas. Não levou em conta aquele apelo. A
desatenção deste momento somou-se a outra, relativa às dificuldades
financeiras que o pai enfrentava, e que certamente eram a causa de uma
prolongada depressão. Há tempo sabia dessa crise financeira, mas não
investigou o montante das dívidas. Ao se inteirar dos valores após a morte do
pai e verificar que dispunha de economias suficientes para saldá-las, sentiu-se
egoísta e culpado.
Procurou análise por sentir-se frágil, melancólico e, como se disse
acima, inclinado a um destino semelhante ao do pai. Tem medo de ficar
sozinho ou no escuro, vê vultos e quando acontece de guardar o carro na
garagem, sai dela rápido, assustado, com receio de que alguém o segure pelo
braço. Ouve vozes dizendo-lhe para fazer isto e aquilo. Ora, quando era
pequeno tinha medo do escuro e de ficar sozinho – e quem, senão o pai,
tranqüilizava-o nessas horas até que adormecesse? Como não sentiria de novo
aqueles medos, agora que se via duplamente em dívida com ele? Durante a
infância e inicio da adolescência acompanhava-o em tudo. Passeava, caçava
freqüentemente com ele, e nessas ocasiões recebia muitos conselhos – a
origem das vozes. Há dois estágios nesse retorno à infância: o mais profundo,
e que mobiliza todo o evento psicótico, remonta à infância que deseja existir,
com seus afetos originários e ativos, possivelmente por não ter sido integrada
à prática da vida e persistir desfigurada, como era o caso, numa espécie de
delinqüência juvenil, envolvendo drogas e arruaças. O sujeito se vê impelido,
no afã de se salvar, a um tempo remoto onde a culpa não havia se instalado
ainda. O segundo estágio evoca o nascedouro da angústia, da culpa, ali onde a
linha de fuga do inconsciente se interrompe. Como ela se interrompe? É
bastante comum que um dispositivo infernal de captura reduza as disposições
ativas, pulsionais, a um coeficiente de transgressão e rebeldia, e que uma má
consciência se insinue no processo do desejo, dando-lhe o aspecto vicioso do
crime e do castigo.

63
Cláudio passa a sofrer de medos e de alucinações auditivas, próprios do
tempo limítrofe em que a voz da lei ainda vem de fora e já se esboça, no
entanto, um superego. A não-integração daquele tempo anterior insiste como
falta ética – pois quem poderia realizar a integração? – e repercute nos
desenvolvimentos da experiência sob as formas neuróticas e perversas da
transgressão. Em situações extremas, ocorre a dissociação psicótica que
reconstitui um estado de não-integração primordial. Este estado só se verifica
porque fracassou o recuo maior ao estágio anterior, ao sujeito do inconsciente,
coisa que a análise deve propiciar. É o único estágio que faz do inconsciente
um devir. E não há paradoxo nisto, pois a anterioridade lógica e ética do
sujeito do inconsciente, enquanto instância ativa radical, reconstitui a
dimensão do futuro, dimensão que o pai de Claúdio não soube ou não quis
mais encontrar e que este procura, assombrado, tateando no escuro. O real,
dito impossível, é no entanto o berço de toda possibilidade, o que é outra
maneira de dizer, mais ao gosto popular, que para tudo, do ponto de vista do
real, existe um jeito. É preciso, como insistia Deleuze, acreditar no mundo.
No sentido da não-integração primordial, o chamado discurso indireto é
de origem, pano de fundo algo caótico e des-subjetivado, e as vozes
alucinatórias dos estados psicóticos dão testemunho inequívoco dessa
condição de origem dos discursos. Entretanto, é preciso incluir nos
pressupostos originários a própria pulsão, a vis activa, como fator de
integração ou reunião perspectivista – não ideal – e sua resolução em dizeres
inteiros ou íntegros. A polifonia da fala não exclui o dizer íntegro, assim como
as pulsões não excluem a pulsão de vida, por meio da qual encontram sua
ordenação interna, superior, inorgânica. De tal modo que a não-integração
primordial dos estados psicóticos mencionada acima não se confunde com o
originário.
No caso da experiência psicótica, deve-se considerar o eventual
exercício da pulsão, sempre possível, viável, por maior que seja o extravio
subjetivo, se essa experiência estiver realmente integrada ao campo analítico,
isto é, ao campo do originário – o que dá uma indicação para o tratamento das
psicoses 95. Longe de estar encerrado o assunto, seja porque, como se tornou
comum dizer, o psicótico não faz transferência, seja porque nas manifestações
psicóticas mais graves já não haveria indício de um sujeito (o que é

95
Identificar o campo analítico ao originário pode sugerir algo excessivo, uma mistificação. Mas, por um
lado, a análise é um procedimento destinado a considerar o singular, o imprevisível, o estranho, a diferença,
assim como a viabilizar o dizer e o que descrevemos como afeto originário, anterior, lógica e eticamente, ao
sistema do juízo. Por outro, tal como a pulsão, a análise precisa ser exercida. O campo é o de uma prática; não
é dado naturalmente, não está previamente constituído, não preexiste ao seu exercício. Daí sua homologia
com a pulsão. Não há nada, senão por um desvio do entendimento, mais avesso à mistificação. A escuta e sua
conseqüência, a intervenção, se provam em pleno combate.

64
inconcebível), é na verdade a vitalidade daquele campo que está em questão,
sua aptidão para evocar a pulsão de vida, o pressuposto originário, sobretudo
ali onde o sujeito parece estar parcialmente eclipsado e sua relação com o
Outro profundamente alterada. É quando o exercício da pulsão é mais exigido
do analista, sendo decisivo se ele se encontra verdadeiramente no seu agir ou
não. Por quê? É o que servirá de bússola no mar de inconsistência e niilismo
da experiência psicótica, seja qual for a temática delirante que ela tenha
assumido. Por sofrer a inflexão de uma culpa insuportável, Cláudio abre mão
da condição ativa, ou seja, da condição de escolha, que não é senão a própria
atividade pulsional. A partir daí, as vozes são o seu dizer não reconhecido, não
exercido. Autores como Winnicott, Rollo May e os anti-psiquiatras (Laing,
Cooper), voltados a uma análise existencialista, desenvolveram a noção de
“falso self” para situar esse não exercìcio progressivo e seu ponto de ruptura
esquizofrênico. O verdadeiro, eis o norte, com a ressalva de que ele só existe
em ato. É dele que se trata todo o tempo, das vias pelas quais deixa de ser
exercido e dos efeitos acumulados desse não exercício. Quanto mais o sujeito
é sensível à sua ausência, ao nada, nihil, mais o resultado é a mortificação
psicótica, o que se chamou em psicanálise de masoquismo primordial.
O oposto é a psicopatia, enquanto denota uma insensibilidade gélida a
essa mesma ausência. A forma de atividade adotada, via de regra brutal,
sádica, é um recurso defensivo extremo contra o sentir, e a violência não
passa, neste caso, de um símile do princípio ativo – ela cobre o vazio de um
duplo esquecimento, para falar à maneira de Heidegger. Os celerados de 120
dias de Sodoma são incansáveis em constatar que sua lubricidade exige
estímulos cada vez mais fortes. Ao final de cada investida em nome do gozo,
seu ódio se renova, não sem antes germinar no vazio da apatia, em um não
sentir exasperado. O germinar do ódio e sua renovação não cessam, e não
cessam porque são gerados, em última instância, por uma força constante. É
comum se construir uma imagem sado-masoquista da pulsão, pensar seu
circuito em retorno como uma violência que retorna ao sujeito, sem ter em
conta que o sadismo, assim como o masoquismo, são modalidades de
expressão pulsional no interior do sistema do juízo, ou seja, no interior de uma
condenação que faz do sujeito um verdugo ou uma vítima, ou os dois ao
mesmo tempo, por mais que esta configuração seja encenada, desejada. Tanto
que o masoquismo se funda numa espécie de pecado original. A demanda do
Outro (nos dois sentidos do genitivo latino) introduz uma distorção no
processo do desejo, a ponto de, no limite, transmutar a pulsão de vida em
pulsão de morte. É a face ou a fase fascista da pulsão. Nada a estranhar que ela
dispare na direção do juízo final. Por isto Lacan prescrevia que se trouxesse a

65
demanda de volta à pulsão, de modo que esta aparecesse em sua legitimidade
originária.
É notável a convergência do ativo, do verdadeiro e de seu pleno
exercício como prova de consistência. Mas dizer que é notável é pouco, pois
essa convergência é essencial aos três termos – pai, filho e espírito santo são
uma e mesma coisa. São as condições originárias do homem. Falar em
“verdadeiro” inspira hoje suspeita por não se saber mais em que plano da
experiência humana situar a sua incidência. Questionava-se Lacan por não
dizer logo o verdadeiro sobre o verdadeiro. Ora, dizê-lo só poderia ser uma
mentira, como ele rebateu em certo momento. Que não vissem isto apenas
prova a falta de noção que reina sobre o assunto, ou seja, que o verdadeiro
reside na condição de dizer e no dizer mesmo.
O não exercício da pulsão será vivido como falta ética. No caso da voz
demoníaca de Sócrates, ela era simplesmente a prudência ou o dizer socrático
como tal, a quem o filósofo obedecia como a um mestre, já que, a crer no
oráculo, não havia outro em seu horizonte. A voz lhe recomendava prudência
na escolha dos seus interlocutores. Se ela lhe serviu de defesa contra a
acusação de impiedade – pois um daimon é um deus –, é porque sua atividade
nunca foi outra coisa que a denúncia da presunção humana. Pode-se objetar
que o demônio interior não foi tão eficaz. Com sua maiêutica, Sócrates
conseguiu muitos inimigos, a ponto de ser condenado à morte. Mas se pode
pensar que, graças à voz subterrânea, sobreviveu o máximo possível, o
suficiente para que o mundo humano, hoje, seja inconcebível sem esse
personagem conceitual, para falar como Deleuze e Guattari..
Caberia mencionar ainda o sonho narrado por Freud no início do 7º
capítulo da Interpretação dos sonhos. O filho morto se aproxima do leito do
pai adormecido e, tocando-lhe o braço, profere em tom de reprovação: “pai,
não vês que estou ardendo?” A voz do além emite o dizer culposo do pai que
não viu, que se descuidou e adormeceu. Se este dizer lhe chega do Outro na
voz do filho morto, é porque não foi assumido ainda como seu, embora seja
integrativo em si mesmo ao expressar, com precisão angustiante, o estado de
alheamento. O pai subsiste acordado pela voz que emite a reprovação,
exatamente quando todos dormem, inclusive ele. O alhear-se, o descuidar-se,
o dormir, denunciam a culpa no plano dos atos inconscientes, pois o pai,
apesar do seu desvelo junto ao filho moribundo, esteve alheio ao mais
essencial, isto é, ao sentido da sua própria existência e à força dos afetos
originários, certamente ligados ao filho pela origem e pela continuidade. Ele
dormia, a vela tombou. A análise do sonho detecta o desejo de continuidade –
o filho se mantém vivo e é esse o desejo do sonho –, o “perseverar em seu
ser” spinozeano ou ainda a força constante, mas nas condições em que é

66
praticada. Vale observar que no caso desse pai o existir é imanente à culpa, ou
seja, à voz do morto (ex-). O erro, a falta, é a morte.
O dizer é atividade primordial, não derivada. É a prática do desejo na
sua pureza originária, e por isso ela é abstrata, por mais incisiva que seja na
vida cotidiana. Não há mistério nisto: o exercício da pulsão e a prática
d’alíngua, da pequena língua indígena de cada um, são a mesma coisa. O que
dizemos de novo é que este exercício, esta prática, é a pulsão em seu destino
originário – o pressuposto, portanto, de todas as formações do inconsciente, da
alucinação ao lapso 96. Não há o que não incida em seu campo clínico – o um-
todo... Muitas coisas podem ser ditas desse começo chamado de pulsão: que
ele é ativo, ético, íntegro, verdadeiro, clarividente... A pulsão é uma phisis, um
logos. Por que se chegou a concebê-la perversa? Ou, em outras palavras, como
adquiriu um aspecto perverso? Freud acercou-se dela, tanto nos Três ensaios
sobre a sexualidade como no metapsicológico As pulsões e seus destinos, por
intermédio das perversões. O prisma sexual? Lembremos que ela também foi
chamada de libido – a energia sexual. Nada mais apropriado, se ela une,
integra, recolhe, afirma, diz.

Imagens da pulsão e visão pulsional.

Mas, é ela perversa? Alguns cineastas como Buñuel, Pasolini, Marco


Ferreri souberam destacar uma imagem perversa e por vezes não-humana da
pulsão, e ligaram-na, inevitavelmente, à pulsão de morte, como sua expressão
última. No inìcio de “Escravos do Rancor”, onde se trata de transmitir “o
espìrito do romance de Emily Brontë” 97, lê-se que os personagens “estão à
mercê de seus instintos e paixões. São seres únicos para quem não existem
convenções sociais. O amor de Alejandro por Catalina é um sentimento feroz
e desumano que só podia se realizar com a morte”. Em “Teorema”, assiste-se
96
É a atividade poética que esclarece mais profundamente o exercício da pulsão, e por isso transitamos da
pulsão ao dizer sem qualquer mediação, deslocamento ou desvio. Félix Guattari adota claramente essa
transição imediata quando propõe, por exemplo, uma ampliação da abordagem dos modos de subjetivação
parcial – e, portanto, pulsional – a partir de análises como as de Bakhtine sobre a poesia. Diz Guattari,
retomando esse autor: “a subjetividade criadora, para se destacar, se autonomizar, se finalizar, apossar-se-á,
de preferência: 1) do lado sonoro da palavra, de seu aspecto musical; 2) de suas significações materiais com
suas nuanças e variantes; 3) de seus aspectos de ligação verbal; 4) de seus aspectos entonativos emocionais e
volitivos; 5) do sentimento da atividade verbal do engendramento ativo de um som significante que comporta
elementos motores de articulação, de gesto, de mímica, sentimento de um movimento no qual são arrastados o
organismo inteiro, a atividade e a alma da palavra em sua unidade concreta. E, evidentemente (...), é esse
último aspecto que engloba os outros”. Caosmose, op. cit.,p. 26. Esse último aspecto é o que, de nossa parte,
chamamos de dizer, ou seja, a atividade apropriativa por excelência e a integridade que ela transmite a todos
os elementos implicados (simples-refinado). Por isso se pode falar em “movimento que arrasta o organismo
inteiro” e em “unidade concreta” da palavra e da atividade que a anima.
97
Autora do livro O morro dos ventos uivantes. Buñuel adaptou-o ao cinema com o tìtulo “Escravos do
Rancor”.

67
à desintegração de um universo burguês, capitalista e familiar sob o efeito da
presença desconcertante de um estranho, um estrangeiro sem nome, uma
espécie de anjo do mal. Após sua breve e enigmática passagem, pontuada de
seduções eróticas, nenhum dos personagens irá permanecer o mesmo. O
destino peculiar de cada um passou a ter, no entanto, um aspecto em comum:
o brutal desregramento, a perda da identidade e a ruína acelerada das antigas
condições de existência 98. É um exemplo do trabalho ruinoso – embora
alguém pudesse dizer: saneador – das pulsões desencadeadas, do Eros negro,
como o chamava Lacan, impelindo a um mundo originário de loucura,
misticismo, selvageria e caos. No final se estende um deserto bíblico, o
mesmo que se intercalava às cenas do filme e anunciava, aos poucos, o
temível retorno ao pó. Só resta, no último instante, um grito de desespero.
Em Deleuze, inclusive em alguns momentos de Mil platôs e em Cinema
– imagem-movimento, textos relativamente recentes desse autor, as pulsões
são ainda tratadas como vetores destrutivos ou cegos. Uma ligeira indagação
em seu segundo livro, porém, feita a propósito de Buñuel e das duas
repetições (a que condena e a que salva), parece reabrir a questão da natureza
última da pulsão, pois Deleuze se pergunta se elas não se confrontariam como
as pulsões de vida e de morte. Ora, é justamente na altura da pulsão de vida
que todas as demais modalidades pulsionais se esclarecem, de modo que o
originário proposto por Deleuze no texto sobre cinema é ainda uma maneira
de ver e de tratar o campo pulsional. A “imagem-pulsão” 99 é, de fato, uma
imagem da pulsão, mas não uma visão pulsional.
As paixões violentas, os “ensaios de crimes”, a perversão, os objetos
fetiches, a repetição malsã, todos esses temas caros a Buñuel são leituras da
pulsão nas condições de nossa modernidade, ainda que, mediante sistemas
variáveis de valoração, possam servir a outros contextos culturais. Que ela
tenha um caráter destrutivo e dissoluto, que seja parcial e se ligue a pedaços e
deformidades, se deve à visão que as instâncias culturais e gregárias

98
Diz, por exemplo, o jovem filho do industrial ao estranho sedutor: “Não me reconheço mais. O que me
tornava igual aos outros foi destruído. Eu era como os outros, talvez com muitos defeitos, os meus e os de
meu mundo. Você me tirou da ordem natural das coisas. E, enquanto você estava perto, eu não tinha
percebido. Agora entendo que você vai embora. E perder você me conscientizou da minha diferença. O que
será de mim? O futuro será como viver perto de um outro „eu‟ que não tem nada a ver comigo. Devo chegar
ao fundo dessa diferença que você me revelou e que é a minha íntima e angustiante natureza? Mas, se não
quero... Tudo isso não vai me colocar contra tudo e contra todos?”
99
Deleuze, G., Cinema – imagem-movimento, p. 157, Ed. Brasiliense, SP, 1983. Nesse livro (capitulo “Do
afeto à ação: a imagem-pulsão), Deleuze parece entender que a ação é um declínio, uma queda em relação ao
afeto, e explora a noção de pulsão a partir dessa idéia de ação como queda, o que só poderia resultar na sua
resolução como pulsão de morte. Outra saída é a de ligar a noção de pulsão à de princípio ativo, vis activa,
enquanto poder de afeto, como fazemos. Pois bem, este poder de afeto, com o sentido de afeto ativo,
originário, que lhe damos, está presente na concepção deleuziana das forças. Por isso a visão sobre as pulsões
no texto citado apenas desenvolve as imagens perversas da pulsão.

68
ameaçadas têm dela, conforme o velho compromisso da transgressão e da lei.
Sade, como se sabe, não é senão o mundo cristão invertido. O universo de
Buñuel é assim marcadamente cristão, e é desse universo que procedem os
fatores “naturalistas” que o levam à decomposição. Como Deleuze não viu?
Mas não foi nestes mesmos termos que Freud concebeu a pulsão, como força
impulsiva a ser domesticada, a ser civilizada? Não é desta necessidade que
deriva o mal-estar na Cultura? Ele não viu então que a psicanálise mesma era
obra da pulsão não domesticada, desafiando todas as resistências que lhe eram
contrárias? Considere-se ainda a obra de David Linch, tanto o seu “Veludo
Azul”, como o mais antigo porém não menos belo e escabroso “Coração
Selvagem”, em que as parcialidades perversas, os horrìveis pedaços e as
negras perversidades se resolvem no fluxo irrefreável da tendência superior,
vitoriosa – o coração selvagem é a pulsão de vida, Eros, com seu poder de
união, sobretudo interna. Toda superação – como um passe de mágica (a
varinha-falo) – deve-se à integridade do herói. Depois de uma série de perigos
e de prisões, ele cumpre, finalmente, a promessa de cantar “Love me tender”
para a sua garota, e seria um desfecho romântico quase típico se não fosse, ao
mesmo tempo, a celebração de uma impulsividade autônoma e provocadora. O
cinema vai além, muito além desse insensato mundo. Se o Eros analítico é um
Eros negro, como queria Lacan, ao denunciar os idealismos burgueses
infiltrados na psicanálise, convém não desconhecer que ele é, além de negro,
clarividente. É notável e de fato revelador que traços como integridade,
firmeza e visão ampla pareçam estranhos ao campo pulsional, quando
asseveram, ao contrário, seu pleno exercício.
Esses traços se ajustam ao que se pode chamar de estilo, à maneira
própria de cada um. Como não abrir mão dela? Como desenvolver sua lei
singular, tendo em vista que ela não é dada? Tal raridade – o exercício dessa
lei singular – só é possível com firmeza, integridade, ou seja, mediante ela
própria. Em “Crônica de um Amor Louco”, Marco Ferreri, subscrevendo que
a vida, como dizia Fitzgerald, é um processo de demolição, não deixa de
propor, logo de início, pela boca de seu Bukowski alcoolizado, a saúde ou a
salvação pelo estilo: “Estilo é a resposta de tudo. É um jeito de fazer uma
tolice ou algo perigoso. Antes fazer uma tolice com estilo que fazer algo
perigoso sem estilo. Fazer algo perigoso com estilo é o que eu chamo de arte”.
Veja-se no filme de Henri-Georges Clouzot, “Le Mystère Picasso”, como o
pintor retoca diversas vezes o quadro de uma cabeça de cabra com o risco
iminente de estragá-lo; como a pintura vai adquirindo a cada etapa, que bem
poderia ser a última – e quase o desejaríamos aliviados –, uma nova e estranha
beleza, que será de novo perigosamente destruída em benefício da próxima,
até o momento em que Picasso, sóbrio e preciso, dá a obra por terminada. A

69
cabeça caprina é uma peça esplendida, única e essencial, feita de seu próprio
metal recém-descoberto. Picasso, o metalúrgico. Sem a ousadia do artista não
teria existido essa cabeça de cabra celeste – deslumbrante, definitiva.
Quanto mais se esclarece a natureza naturante da pulsão, mais ela se
define como prática e menos como impulso. Nada nos impede, porém, de usar
a palavra impulso para falar dela, se a palavra designar um impulso
esclarecido. Mas um impulso esclarecido só poder ser uma prática, um estilo.
Por que essa tendência em fazer da pulsão o fulcro de toda experiência,
inclusive da mais alta, a estética? A razão é simples: ao dizer que se avizinha,
obscuro, meio amorfo, meio disforme, Freud deu exatamente o nome de
pulsão ou de tendência (Trieb), já que ela pode ou não se verificar, pode ou
não se consolidar – não se dá naturalmente. Eis a junção do estético com o
ético, e a questão da existência em aberto. A definição do inconsciente como o
não-realizado (Lacan) se deve a esta mesma razão.
Insistamos com a pergunta: como se passa do regime da representação à
prática analítica? Ou, em outras palavras, como se passa das imagens da
pulsão à visão pulsional?
Em seu levantamento exaustivo das ressonâncias do termo Trieb no
idioma de Freud, Luiz Hanns, na linha de outros autores, concebe um arco
pulsional operando em múltiplos registros: “é das pulsões que se trata em
todas as manifestações da vida, seja nos seus aspectos genéricos, seja nas suas
formas específicas de manifestação: como força da mãe natureza, como
instinto biológico, como estímulo nervoso na fisiologia, como imagem do
desejo nas alucinações do bebê, ou como pensamento”. A consideração
isolada de qualquer uma dessas manifestações “transforma a teoria pulsional
em algo de outra ordem, por exemplo, numa teoria dos impulsos, dos afetos e
das imagens, ou em uma teoria da linguagem, ou em uma teoria organicista,
ou em uma teoria biológica ou ainda em uma teoria metafìsica” 100. O
amálgama de referências (ou de realidades, como se preferir), as mesclas de
fatores biológicos e fisiológicos com psíquicos, mas também a ressonância das
leis da natureza no plano psíquico, conforme as observações do autor citado,
todos esses campos e referências ativados, na origem e em última instância,
pelo móvel pulsional, expressam evidentemente uma realidade complexa e
objetiva. Sim, mas desde qual ponto de vista? A escuta freudiana se demora na
apreensão de todos esses aspectos da experiência humana? É preciso, antes de
tudo, alcançar o ponto de vista pulsional e sua incidência clínica. Ao dizer que
qualquer redução dessa complexidade de expressões e definições do arco
pulsional resultaria em uma teoria limitada e tendenciosa (biológica,

100
Hanns, L., A teoria pulsional na clínica de Freud, p. 161, Imago, RJ, 1999.

70
lingüística ou metafísica), Luiz Hanns não parece ainda levar em conta a
pulsão a partir dela própria – que é o ponto de vista psicanalítico por
excelência. É, para ser breve, o ponto de vista do inconsciente, denominado
por Freud “o umbigo do sonho.” Aquele autor, no entanto, observa que “na
escuta analítica não se trata de operar com uma outra lógica que a do
consciente, a saber, a do inconsciente, mas com uma somatória de lógicas, ou
melhor, com a simultaneidade de leis de regulação pulsional, bem como com
determinações mútuas entre instâncias diversas. É claro que o foco central da
escuta se dá sobre o inconsciente dinâmico; contudo, este também contém
materiais já elaborados em linguagem e em parte ordenados conforme as leis
do pensamento consciente” 101. Embora seja sensato dizer que a escuta do
inconsciente enquanto foco central inclui a atenção aos processos oriundos de
outros campos, com isto não se esclarece a natureza dessa escuta e a direção
da análise: perde-se de vista a determinação pulsional, inconsciente, segundo a
qual se ordenam todos os processos, mesmo que eles se ordenem ao avesso e
de maneira confusa, intrincada, com um sentido inverso ou rasurado quanto às
procedências. A pulsão é audível, legível, praticável. Simplicidade, portanto,
da análise, destinada a restaurar uma ordem. Na medida em que subordina a si
as demais lógicas e saberes, é de fato a lógica do inconsciente ou, o que vem a
ser o mesmo, o saber pulsional que deve presidir o processo analítico e decidir
pela sua direção.
Quando evocamos uma lógica inconsciente, pulsional, não a limitamos
ao funcionamento psíquico descrito segundo as leis do processo primário –
deslocamento e condensação ou, em outro registro, metonímia e metáfora, e
assim por diante. Ela é anterior a essas modalidades de funcionamento e
decide, obviamente, seu curso: as associações inconscientes e as cadeias
significantes que as determinam não se constituem e proliferam, como se sabe,
por mero mecanismo; seu curso não é aleatório, não resulta de uma
combinatória ao acaso. As sobredeterminações dos acontecimentos psíquicos
e inclusive suas descontinuidades, o que Fábio Herrmann chama de ruptura de
campo, resultam da vida desejante como de uma origem contínua. Dois fatores
aparecem combinados nesta origem contínua, o ético e o estético, ambos
pulsionais. Por se tratar justamente de um prisma pulsional e, portanto, de
avaliações tanto éticas como estéticas, pode-se dizer que a lógica do
inconsciente é a lógica dos afetos originários. O “sentido de imanência” que,
segundo Herrmann, garante a continuidade de atribuição e impede a
despersonalização nos momentos de alteração mais ou menos drástica das
condições de existência, e que decai e se degrada exteriormente como rotina,

101
Idem, p. 155.

71
hábito, vida regular, permanece uma incógnita, e deve ser remetido às
condições originárias, de ordem pulsional. Herrmann pressupõe uma
combinação do constitucional e do adquirido na tessitura desse sentido de
imanência, rodeado de mistério, e não o concebe, conforme já observamos
anteriormente, como pulsional e ético na origem, isto é, como determinação
constante (admitida ou não) em direção ao seu próprio exercício, nem
considera, portanto, a decorrente possibilidade de que este exercício se
verifique em diversos graus, em diferentes alturas 102. A rotina é sem dúvida
uma queda em relação àquele sentido e seu exercício continuado – coisa que o
autor citado observa muito bem –, pois é este exercício continuado que
promove as rupturas dos campos e garante, ao mesmo tempo, uma
continuidade ativa à qual são referidas todas as manifestações. E se a análise
tem aí uma função eminente, não é por instaurar esse movimento continuo
que, de outro modo, não existiria. Ela o esposa, afirma-o, e não cessa de
recordar, por meio da escuta flutuante e da intervenção conseqüente, a ética
originária que o anima, ao redescobri-la de novo, a cada vez, nos lapsos, nos
sonhos, na vida cotidiana, no amor. Repetimos: o saber pulsional decide pela
direção da análise, e se o analista assim mesmo a dirige, é em virtude de sua
escuta, dedicada a ouvir a pulsão. E por isso a psicanálise não é uma ciência
da análise, mas uma ciência da vida, nos dois sentidos do genitivo latino
(objetivo e subjetivo). Sim, o campo pulsional é igual ao campo analítico, o
analítico esposa o pulsional, são uma e mesma coisa, mas o pulsional precede
o analítico. Por uma razão muito simples: a análise é uma de suas invenções.
A propósito: as concepções de Herrmann sobre a análise parecem
ignorar o ponto de partida da mesma. Com sua “casa” e seu “homem”
psicanalíticos, feitos sob medida para não se incorrer na ilusão da
objetividade, pois também aqui o método forjaria seu objeto 103, Herrmann
parece desconhecer que, desde o início, a existência da psicanálise, assim
como de cada análise particular, é autorizada pelo real. Por isto não é o
método, e sim a ética analítica que esclarece o procedimento. O método é
apenas o modo adequado de expressão ética. Daí a questão essencial relativa
ao procedimento recair sobre o desejo do analista – por não se tratar,
justamente, de um problema metodológico ou técnico. Se a questão se resolve

102
“(...) Existem alguns mecanismos que asseguram o sujeito nesses trânsitos vertiginosos. O mais básico, e
também o mais misterioso, é o já mencionado sentido de imanência. O sentido de imanência, para nós, é tão-
somente aquilo que assegura que meus pensamentos e emoções são da minha autoria, provêm do meu
psiquismo. Sua origem é difícil de precisar, pode ser constitucional ou adquirida, com maior probabilidade
deve combinar os dois componentes, porém é algo constatável empiricamente...” Introdução à teoria dos
campos, op. cit., p. 154.
103
“(...) a livre associação é manifestação do vórtice basal de longa duração, que acompanha o processo
analìtico. Não é uma condição da análise, mas um dos seus efeitos”. Idem, p. 206.

72
na altura do desejo, deixa de haver problema de método ou de técnica; e se há,
é certamente um problema menor. Estamos num campo diferente do campo
científico tradicional. Foi preciso uma redefinição das condições do saber para
que a psicanálise alargasse o círculo da ciência e aí se incluísse – com todo o
inconsciente e sua ética extemporânea. Não foi sem uma razão profunda,
ligada a uma visão renovada da ciência, que Lacan lembrava o quanto a
pureza de alma do alquimista era essencial ao procedimento e aos seus
resultados. Psicanálise: ciência do singular, isto é, de uma vida que se
pronuncia em nome de sua própria ciência.
Mas não é isto, afinal, que diz Hermmann, com seu real-produtor? A
questão é se a análise, requisitada pelo real, dirige-se efetivamente a ele, ou
seja, se cumpre com a sua destinação, orientando-se pelo desejo originário que
– como soube ver esse autor – é desejo do real. Daì sustentar que “o desejo
humano deseja o mundo humano, o real” 104, é um passo menor, pois seria
preciso explicar o que se entende por mundo e por humano. O mundo humano
é a Cultura, em sentido amplo? Conforme dissemos anteriormente, é a arte a
fonte da cultura, e não o inverso. Isso é o nódulo e a essência do que
formulamos até aqui. E qual é a fonte da arte? Por se deter no meio do
“caminho do campo”, a investigação deixou inexplorado o conceito de pulsão
e, logicamente, a pulsão mesma, enquanto princípio ativo e prática constante –
o ponto de vista do inconsciente. “Vem daì que falar abstratamente de
instintos, impulsos ou „pulsões‟ como fonte do desejo, seja perfeitamente
inócuo, caso não possamos identificá-los no fluxo de representações, nas
idéias que vão se sucedendo na situação analítica. Libido ou Tânatos e
qualquer outro fundamento hipotético do desejo não fazem parte do
consultório, sendo reificações do psiquismo” 105. É preciso apurar o
entendimento, pois as idéias e representações que se sucedem em uma análise
são indicadores de uma atividade pulsional, e as pulsões de vida e de morte,
enquanto conceitos práticos por excelência, são medidas clínicas – tanto no
sentido das atitudes quanto das mensurações (os graus de exercício) – e
determinantes éticas que decidem pela direção da análise. Não se deve
esquecer, para uma apreciação fecunda desses conceitos e de sua enorme
plasticidade, que a pulsão é o seu próprio critério de avaliação, sua própria
medida.
Como dissemos no início, o saber pulsional rege o entendimento teórico
e clínico da psicanálise. Aliás, o esforço de Freud vai claramente nesse
sentido: ao tratar a pulsão sob o aspecto fisiológico, como meio de estabelecer,
por aproximações, um novo campo, um novo conceito, ele a concebe segundo
104
Idem, p. 43.
105
Idem, p. 45.

73
traços que serão válidos não apenas para o âmbito da fisiologia (nem se pode
dizer “fisiologia da pulsão”, posto que ela não é fisiológica), mas também
para os demais campos (psicológico, metapsicológico...). A ineficácia da fuga
motora (como protótipo da fuga aos estímulos) frente ao estímulo pulsional e,
por conseqüência, o caráter de força constante desse estímulo, tais são os
traços ou indícios iniciais da pulsão, suficientes para garantir, como signos
objetivos e realistas, a distinção entre mundo interno e mundo externo. É um
dos meios freudianos de situar o eu-real (real-Ich), fazendo-o contracenar com
o eu-prazer e o eu-realidade, constituídos por regimes e signos distintos do
pulsional 106. Ora, no início do artigo metapsicológico O recalque, Freud
retoma aqueles traços iniciais num enunciado que passa a valer para o plano
psìquico: “Se se tratasse do efeito de um estímulo externo, o meio de defesa
mais adequado contra ele seria a fuga. Tratando-se, porém, da pulsão, a fuga
não tem qualquer valia, pois o eu não pode fugir de si próprio” 107 . Como é
fácil presumir, esta formulação se estende e se aplica igualmente a uma
dimensão ética, onde a força constante (konstante Kraft) alcança sua plena
incidência como prática constante. É ainda a retificação das relações com o
real que pensamos aqui, compreendendo a verdade pulsional e o sentido
clínico que lhe atribuímos.
Sim, a pulsão de vida é dada, mas ela precisa ser exercida – em que
grau, em que altura? O que temos dito, seguindo Lacan, é que a condição ética
ou sublimatória integra e subordina a si as demais condições da experiência
humana. É ela, portanto, que esclarece a direção da análise.

106
O eu-prazer se constitui pela lógica de expulsão do que causa desprazer e de introjeção do que causa
prazer, de maneira que o expulso, que pode ser inclusive a própria pulsão, constituirá o mundo externo, isto é,
o não-eu, o estranho e o mal. É claro que esta distinção é ficcional e narcisista, e conta com o recalque. O eu-
realidade se funda na distinção entre, de um lado, a representação e o mundo subjetivo e, de outro, o objeto
real e o mundo externo. O teste de realidade, seguindo o fio da representação, buscará o reencontro do objeto.
O eu se liga agora à representação como tal; torna-se subjetivo – a ficção é reconhecida. No caso da distinção
pulsional, o critério é real: ineficácia da fuga, força constante (o lugar da atividade). Curiosamente, Lacan
parece não ter levado em conta esta distinção, e pensou o eu-real apenas como totalidade do sistema nervoso.
107
Obras completas, op. cit., vol. II, p. 2053.

74
O SENTIR, O SABER, O SENTIDO

Maçã cheia, pêra e banana


Groselha... Tudo isso fala
Morte e vida na boca... Eu pressinto...
É o que se deve ler na fisionomia de uma criança,

Quando lhe sente o sabor. Vem de longe.


Não se torna aos poucos sem nome em vossa boca?
Aonde antes estavam palavras, correm descobertas
Surpreendentes que se libertam da carne do fruto.

Ousai dizer o que chamais de maça.


Essa doçura que só se concentra
Para, instalada suavemente no sabor,

Tornar-se clara, vígil e transparente,


Ambígua, ensolarada, terrena, daqui -:
Experiência, sensação, alegria -, abundantes. 108

Além da representação

O que é preciso, então, para elucidar o prisma pulsional? Um primeiro


passo foi identificar a pulsão ao dizer. Agora convém introduzir, no
tratamento da pulsão, uma idéia renovada de sentido. Por intermédio destas
duas operações, assimilando a pulsão ao dizer e reconhecendo nela uma
experiência de sentido, transpõe-se a barreira da representação em direção à
práxis (direção da análise), inclinando-se o pensamento à vida. A pulsão se
torna praticável. Pode-se indagar ainda uma vez por que é preciso transpor o
campo da representação, e a resposta será simples: a pulsão não é um objeto
nem a imagem (representação) de um objeto; não é tampouco um sujeito, se
ele não sabe o que diz. Não se trata de buscar uma representação da pulsão na
origem, pois na origem ela se apresenta como aquilo que ela é – a diferença
em pessoa. Os procedimentos da representação são inadequados para pensar e
afirmar a diferença. Isto não impede que ela seja passível de experiência
direta. Se houvesse uma teologia analítica, sua fórmula derradeira seria eu e a
pulsão somos um.
Se, por um lado, a idéia de não-senso, enquanto ponto de partida e
ponto de chegada, é liberadora e abre o campo das significações ao
imprevisível, à criação, por outro tende a localizar o sentido no nível da
representação, separando a subjetividade do real. Com isto não se foi além da

108
Sonetos a Orfeu, (parte 1, 13), op. cit., p. 45.

75
segunda distinção freudiana entre mundo interno (de representação, subjetivo)
e mundo externo (objetivo, real). O não-senso é uma passagem, abre um
campo, mas a consistência desse campo e o esclarecimento do não-senso são
indissociáveis de um sentido pulsional 109. Ali onde aparece o não senso,
anuncia-se o sentido pulsional; por isto as formações do inconsciente como o
lapso, o sonho ou o sintoma só encontram sua decifração adequada sob o
ponto de vista da pulsão. O teor de não-senso, no entanto, se desloca; é sempre
o índice de uma transposição de fronteira.
Como é possível bem-dizer sem ouvir, sem ver? Mas se temos olhos
para não ver e ouvidos para não ouvir, como diz o Evangelho? Localize-se a
questão do exercício pulsional: a linha de sentido evoca o sentir, o ouvir, o
ver, estar vivo, acordado. Freud falava em pulsão sexual e acertava o alvo,
pois o sexo é saber, sabor, gosto. Mas foi para encadear o sentido das
narrativas que Lacan inventou o objeto a, sua eminente descoberta. Como o
sentido e o objeto a se articulam, e o que isto tem a ver com o sentir, o
acordar? No filme Esse obscuro objeto do desejo, de Buñuel, duas atrizes
fazem, alternadamente, a mesma personagem, à qual o sujeito apaixonado
nunca tem o acesso esperado. A evasiva, a escapada, determinam o desenrolar
dos acontecimentos. As cenas diferem e, no entanto, tudo se repete. A mulher
que invariavelmente foge no último momento é tão essencial, tão
decididamente o objeto cobiçado, que surpreende o fato de não precisar ser
sempre a mesma. É evidente que o sujeito dorme, hipnotizado por uma idéia.
Esse truque de Buñuel alcança, por vezes, o espectador, que pode passar boa
parte do filme, e até o filme inteiro, dependendo de sua vulnerabilidade à
sugestão, sem perceber que são duas atrizes e não uma. Ora, esse “obscuro
objeto” tanto hipnotiza como faz acordar. Ele remete à diferença e à sua
repetição, ou seja, à pulsão em pessoa 110. É verdade que é só no âmbito da
sublimação, em virtude de seu caráter extra-pessoal, que a existência do outro,
enquanto sujeito de desejo, passa a ser devidamente considerada.
Quando Lacan afirma não existir relação sexual porque não existe o
saber do outro sexo, porque esse outro gozo é impossível, assimila ainda uma
vez o saber ao sexo, como desde cedo Freud vinculou a curiosidade infantil às
pesquisas sexuais. A razão disto parece simples, embora, por motivos óbvios,

109
É ainda uma aproximação tímida de Lacan pretender que o saber da análise seja de não-senso, e que o
gozo do sentido se circunscreva apenas ao campo do simbólico e do imaginário. Digamos que o saber da
análise seja de não-senso por conta da abertura analítica; ora, é justamente essa abertura que faz – do ponto de
vista pulsional – todo o sentido. Um estilo, por si próprio, faz sentido. E nada faz mais sentido que o real. É
claro que é preciso ter presente o que se entende por sentido e por real. Adiantemos a fórmula de que o
sentido real não é um significado, ou uma explicação, mas uma orientação no tempo.
110
“A diferença e a repetição só se opõem aparentemente e não existe um grande artista cuja obra não nos
faça dizer: „A mesma e no entanto outra‟.” Proust e os signos, op. cit., p. 49.

76
nem sempre esteja disponível à consciência: na origem, todo o saber é da
diferença, saber do vivo, e por isto coincide com uma atividade imanente. Já o
auto-erotismo era isto, experimentação e gozo da diferença. Fineza de Freud
ao distingui-lo do narcisismo, que se define pela prevalência da imagem, pelo
regime da semelhança e do mesmo.
Até onde se levará a indagação sobre o gozo sem inscrevê-lo na ordem
do saber? Uma tal ordem não se refere apenas a um campo, mas a uma
ordenação do que é primeiro, originário, e do que é secundário e derivado. O
gozo não serve para nada, diz Lacan em Mais, Ainda. Eis uma proposição
inteira, acabada. Sim, é isso. Mas com que esmero se fez do gozo a coisa mais
enfadonha no campo do conhecimento! E devido a quê? Ao fato de não se ter
aliado o gozo ao conhecimento. E no entanto a psicanálise não é senão esta
aliança. Ao contrário do que se presume nos meios psicanalíticos, gozo e
desejo não são incompatíveis, se o gozo for o do saber. É o único caso, mas é
o caso originário. A vida, em seu ponto mais aguçado, é luz.
Mas o gozo é inútil... Seria no mesmo sentido em que a obra de arte é
inútil, como queria Oscar Wilde? Mais uma vez, a resposta é simples: ele não
serve a nenhum uso porque antecede todos os usos; não se deixa sujeitar,
subjugar. É neste sentido, precisamente, que implica uma dessubjetivação. Se
formos muito rápidos e, conforme a tendência dominante, só concebermos o
gozo como redutível ao lust-Ich (o que se faz muito freqüentemente), ou como
um estado out of control e, no limite, como uma espécie de pântano mortífero,
perderemos de vista seu nódulo ativo – é a nível desse nódulo que se decidem
todos os usos. Por isto não é passividade e sofrimento, Coisa e Morte, mas
condição ativa – o gozo é o ouro, o sol desta condição. Cabe insistir ainda na
natureza desse conhecimento gozoso: é um conhecimento intuitivo, para dizê-
lo à maneira de Spinoza e de Bergson 111, acentuando-se o sentido que adquire
neste último de ser uma direção contrária à que é ordinariamente adotada pela
inteligência, voltada para a utilidade e o domínio prático da matéria.
Conhecimento, portanto, que não serve para nada; diríamos contemplativo,

111
É claro que a “ciência intuitiva” de Spinoza, nome dado ao terceiro grau do conhecimento, ou seja, ao
conhecimento das coisas singulares e de Deus, não corresponde ao método intuitivo de Bergson; não se trata,
absoltamente, de sugerir a mesma espécie de conhecimento. O ponto em comum, no entanto, diz respeito ao
que se pode chamar de um conhecimento “direto”, seja de Deus, da Vida, ou ainda do Tempo. Pensamos,
aqui, na expressão de Deleuze para considerar, a propósito do cinema, a imagem-tempo, isto é, o que ele
denomina de ”imagem direta do tempo”, distinguindo-a da imagem-movimento, que faria do tempo uma
apresentação indireta (cf. Deleuze, G., Cinema II - imagem-tempo, Brasiliense, SP, 2005). Sobre a intuição
como método em Bergson, cabe lembrar ainda que não se trata, de modo algum, de um sentimento, de um
pressentimento obscuro, mas do que ele chama de “precisão” em filosofia (Cf. Deleuze, G., Bergsonismo, p.
7, Editora 34, SP, 1999). Está longe, portanto, de ser um saber de natureza “instintiva”, “feminina”,
desprovido de lógica ou de razão. O instintivo e o feminino estão compreendidos em sua razão superior, o que
é muito diferente.

77
não fosse o vetor ativo em que se resolve como potência de avaliação (afeto).
Eis um ponto que exige o maior discernimento, pois o caráter desprendido
desse saber não exclui seu valor prático, não retira a importância de sua
incidência na vida real. Na verdade, a vida real está na altura desse saber
desprendido. É ele que decide pelo valor dos valores, é ele o ouro da condição
ativa.
Seja um exemplo literário, extraído da vida real. Quando T. E.
Lawrence reflete sobre o interesse que haveria em avançar, conforme os
objetivos já traçados, sobre Medina, ponto alto da revolta árabe contra os
turcos, torna muito evidente, como só um autor brilhante e profundamente
sensível saberia fazê-lo, que a ordem do saber se desdobra em planos, até o
estágio mais desprendido. Esgotado com a longa e áspera viagem, doente,
recolheu-se dez dias em uma tenda, a fim de se recuperar. Sofria, escreve ele,
“de uma fraqueza física que fazia meu ego animal se esconder, até que a
vergonha passasse. Como sempre, em tais circunstâncias, minha mente ficou
bastante lúcida, os sentidos se aguçaram. Comecei finalmente a pensar...” Até
então prevalecera a necessidade da ação imediata, de modo que os líderes da
revolta estiveram agindo, no geral, instintivamente, segundo as metas já
estabelecidas, sem se perguntarem realmente o que queriam ao final de tudo.
Lawrence observa que o abuso do instinto, “sem base no conhecimento
passado e na reflexão, se tornara intuitivo, feminino (...). Assim”, continua ele,
“naquela inação compulsória, procurei a equação entre a leitura de livros e
meus movimentos. Passei intervalos entre os sonos e sonhos irrequietos a
sondar nosso presente” 112. Um dos resultados práticos das inquirições
filosóficas e estratégicas sobre a guerra em geral e a revolta árabe em
particular, conjugadas à responsabilidade do escritor no conflito, foi a
conclusão de que Medina, em face dos acontecimentos mais recentes, já não
apresentava o menor interesse. O intuitivo e feminino que Lawrence menciona
não corresponde ao que se poderia chamar legitimamente de intuição à
maneira bergsoniana, muito mais próxima do pensar que nasce e se
desenvolve naquelas condições de “inação compulsória”. Logo, não falta a
esse pensar lógica e precisão, muito pelo contrário. Mas não é da lógica que
ele surge, e sim de uma reversão no pensamento, a contra corrente do
mecanismo automático da inteligência e dos chamados instintos. Começar a
pensar, já dissemos, é começar a viver, mas no ponto em que o viver é “sondar
nosso presente”, em uma espécie de visão direta do tempo. O que se quer
realmente, e como os tempos se encaixam, afinal, dentro do tempo? Desse
ponto de vista, o tempo de conquistar Medina passou, sob o tempo maior da

112
Lawrence, T. H., Os sete pilares da sabedoria, p. 169, Ed. Record, 3ª edição, RJ.

78
liberdade árabe. Mas T. E. Lawrence retoma mais uma vez o tema, insistindo
no caráter feminino da intuição, e mais uma vez toca no âmago da questão,
tanto da pulsão como do pensamento, precisamente ali onde existiriam atos de
decisão em jogo, com seu poder de integração e de superação: “Os lìderes
árabes possuíam um instinto aguçado, confiavam na intuição, o que sempre
nos deixava aturdidos. Como mulheres, eles compreendiam e julgavam
rapidamente, sem qualquer esforço, muitas vezes irracionalmente. Quase que
parecia que a exclusão das mulheres na política oriental fora compensada com
a transferência para os homens de seus dotes específicos. Uma parte da
rapidez e sigilo que nos levaram à vitória pode ser atribuída a isso,
ressaltando-se a característica excepcional de que, do princípio ao fim, não
houve nada de feminino no Movimento Árabe, exceto as camelas” 113. Como
diz o autor, “instinto aguçado, confiança na intuição” são dotes femininos; a
pulsão, porém, e muito especialmente sob a forma do pensar, é uma força de
apropriação, é o aguçamento do instinto e a introdução das potências da vida
na lógica e na razão. Ora, essa apropriação se dá por uma série de escolhas,
por uma série de decisões verificáveis ao longo do tempo. Há nela uma
constância processual, uma direção que se aprofunda. É preciso tornar-se
feminino e, ao mesmo tempo, guerreiro, confiar na “intuição”, adotar esse
poder estranho, exercê-lo como recurso próprio e incliná-lo à vitória. Mas não
se deve esquecer que tal exercício já é essa inclinação e também a vitória.
De que modo esse conhecimento atua na vida para que não seja apenas
platonismo redivivo? Já o dissemos, é preciso que ele seja a própria vida.
Subjetividade da vida, vida interior, Desejo. A vida humana ganha
consistência e alcança sua própria altura com a ciência que adquire de si. Em
outras palavras, só é possível uma noção clara do que é a vida quando as suas
condições originárias são reconstituídas. Tal reconstituição, porém, é
inteiramente singular, como era, aos olhos atentos de Lawrence, a revolta dos
árabes.
Se existe uma indeterminação de saída, ela não implica que se possa
escolher qualquer direção que seja, como se todas as conseqüências fossem
equivalentes. A precisão, aqui, é a exigência e a garantia de uma prática
constante, consistente e sem modelo. Pulsão, tal é o nome da precisão em
psicanálise. Daí a necessidade de se distinguir dois aspectos desta precisão. O
primeiro é que a liberdade de escolha ou a indeterminação do querer não
exclui o discernimento das vias que permitem um exercício ainda mais
apurado dessa mesma liberdade, bem como daquelas que, mais cedo ou mais
tarde, irão enfraquecê-lo, torná-lo inconsistente e inviabilizá-lo. Pelo

113
Idem, p. 192.

79
contrário, esse discernimento é inerente à liberdade do querer. É o que permite
abordar o segundo aspecto da precisão analítica, pois se é verdade que o saber
da diferença de que falamos há pouco, referindo-nos ao sexo, é imediatamente
prático – para que serve, como funciona, como se goza dessa e daquela coisa,
desse e daquele movimento? – também é verdade que esta praticidade muda
de plano quando se considera a espécie de uso que se fará de tal coisa, de tal
movimento, e isto ainda em nome da diferença. Para irmos adiante diremos
agora: em nome do que faz diferença. A diferença se tornou interna, e a
pergunta passa a ser então pelo sentido de tal coisa e tal movimento a certa
altura do tempo ou da duração (para usar uma expressão cara a Bergson). O
que faz diferença todo o tempo não condiz com qualquer caminho; pelo
contrário – e nisto consiste o segundo e mais profundo aspecto da precisão –,
diz respeito a um único caminho, o único pelo qual se pode alcançar uma
auto-determinação 114. É devido a esta singularidade absoluta que a auto-
determinação é de natureza ética. “Sempre sei, realmente. Só que eu quis, todo
o tempo, o que eu pelejei para achar, era uma só coisa – a inteira – cujo
significado e vislumbrado dela eu vejo que sempre tive. A que era: que existe
uma receita, a norma de um caminho certo, estreito, de cada uma pessoa viver
– e essa pauta cada um tem – mas a gente mesmo, no comum, não sabe
encontrar, como é que sozinho, por si, alguém ia poder encontrar e saber?
Mas, esse norteado, tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava sendo
sempre o confuso dessa doideira que é. E que: para cada dia, e cada hora, só
uma ação possìvel da gente é que consegue ser a certa” 115.
A palavra-valise jouissance, empregada por Lacan e traduzível por
“gozo-sentido”, compreende um conjunto de semas que explicitam a noção de
sentido pulsional, malgrado a limitação de seu uso ao conjunto do simbólico e
do imaginário nas digressões lacanianas: je jouis, j’ouis, oui, sense... Eu ouço
significa também eu obedeço, isto é, ajo de acordo, pratico, digo, afirmo. Eis
aí, inclusive, uma maneira adequada de se conceber o saber prático da análise
– a escuta flutuante e suas conseqüências. Esse saber, gerador de análise e de
analista, faz sentido em si mesmo, o que não exclui que seja também de não-
senso. Não é difícil compreender porque insistimos na idéia de um sentido
pulsional: o caminho do desejo não é qualquer caminho. Mas, o não-senso não
sugere a dispersão e o caos? Já dissemos que o não-senso decorre de que

114
Pensamos essa “auto-determinação” a partir do processo pulsional, e não a partir de um eu, de um sujeito
da consciência. A auto-determinação pulsional se encontra assim na mesma linha do que designávamos de
“auto-afeto” em Spinoza, ou ainda do que Deleuze-Guattari chamam de “auto-movimento expressivo”,
reportando-se à constituição estética de um território.
115
Rosa, João Guimarães, Grande Sertão: Veredas, p. 452, Nova Fronteira, RJ, 1986.

80
aquela “pauta”, aquele caminho único, não recebe explicação de nenhum outro
saber.

Repetição do mesmo e repetição da diferença

Em “O Anjo Exterminador”, de Buñuel, os convidados sofrem uma


degradação moral rápida, irresistível, à medida que se vêem presos de maneira
insólita à tensão de irem embora, na hora propícia, e permanecerem onde
estão, sem saída, durante um tempo angustiante que não se escoa; repetem a
impossibilidade até o ponto de repetirem a possibilidade, e isso por meio de
um retorno cênico às condições iniciais, ao reconstituírem as posições e
atitudes relativas ao instante em que ainda podiam sair. De fato, como observa
Deleuze, as duas repetições, a que condena e a que salva, se confrontam como
as pulsões de vida e de morte. Que a repetição salvadora passe pela
sexualidade, que a virgem se ofereça em sacrifício ao Deus-anfitrião e este ato
restaure um élan vital, traga de volta o instante de sair, a liberdade de ir, o
futuro, é o que se deve atribuir à força constante e originária da pulsão – ao
que faz diferença todo o tempo. Quer dizer, todo o tempo havia a
eventualidade dessa solução, ou melhor, desta escolha, insistindo como
abertura ou saída não encontrada, passagem virgem, linha de fuga ainda
ignorada, inconsciente. Que a cena se repita na igreja, onde os personagens
acabam de comemorar sua liberação, e se repita de um modo ainda mais
alarmante e intenso, situa-nos diante de uma espécie de dilema pulsional, de
uma escolha entre a repetição do mesmo e a repetição da diferença. Mas por
que o dilema? 116 A repetição da diferença como caminho do saber, gai-savoir,
se faz certamente com experiência, degustação, avaliação, sempre sob o
regime superior da indeterminação e seu correlato, o discernimento. É um
caminho, uma direção que se define tanto pelo sentido como pela constância:
exige uma determinação do desejo. Uma análise, aliás, serve para garanti-la, e
isso graças ao desejo do analista, já que o do sujeito está em questão. No filme
de Buñuel, a repetição do mesmo é uma escolha menor, uma escolha pelo
desconhecimento, pelo fechamento do inconsciente, com todos os fenômenos

116
Será do mesmo gênero das questões formuladas por Lacan quanto à alienação e à separação, onde se
coloca igualmente em cena uma escolha, como a que deve decidir pelo ser ou pelo sentido, a bolsa ou a vida?
O seminário, Livro 11, op. cit., p. 201. É notável que Lacan não tivesse chegado à decisão originária, relativa
às duas repetições, isto é, à vida e à morte, se as operações em jogo remetiam necessariamente às pulsões
primordiais. Talvez elas ainda não tivessem adquirido o sentido de uma prática, de serem operações por
excelência. A operação de reunião, promovida pelo traço unário, unifica pela alienação e faz desaparecer o
vivo sob o representante da representação, enquanto a separação reabre o campo do inconsciente ao re-
introduzir a falta (isto é, a diferença) no sujeito e no Outro. A reabertura desse campo é um sopro de oxigênio
existencial. Ora, o primeiro processo era o de identificação, o segundo de castração, cujo lado direito é a
experiência positiva, real, da diferença, isto é, do saber pulsional.

81
de degradação resultantes de um processo que estanca, reflui sobre si e perde a
direção, como se deslizasse para dentro de um pântano: a falência progressiva
dos códigos culturais e éticos, as fixações perversas, as violências mesquinhas,
os maus hábitos, o recurso esotérico ao nome impronunciável, pedaços de
animais mortos, as insinuações escatológicas, tudo parece descer a um fundo
negro indescritível: pulsão de morte. Em contraste com a integridade e a
pureza dos animais vivos, o filhote de urso, os cordeiros. Ao longo de um
tempo asfixiante, mortal, os convivas, um após o outro, abrem as portas de um
armário (uma delas pintada com a figura de um anjo, outra com a de um
santo), fecham-nas atrás de si e entram na escuridão: ali dão curso às
necessidades fisiológicas, têm encontros amorosos e até recolhem o cadáver
de um deles. Desde o início do banquete a má repetição (por exemplo, a
repetição do brinde, como um gesto sem memória, automático e vazio, fora de
contexto), as intrigas amorosas, a hipocrisia burguesa, as superstições e os
misticismos já anunciavam o pântano. Não se trata de uma queda no campo
originário das pulsões, como interpretava Deleuze 117, mas de uma abstenção
progressiva de sua prática que, assim, se torna cada vez mais obscura e
irreconhecível. O que se passa nos bastidores, a perda da virgindade, o sexo, o
saber, o deslanchar da vida, tal é a saída reencontrada. Se é verdade que
Buñuel concebe uma salvação pela fé à maneira de Kierkegaard, não deixa de
vislumbrar uma saída pelo saber, mesmo que ainda o faça obscuramente
(deflorar = conhecer no velho sentido bíblico).
O surpreendente da repetição em Buñuel é que ela exprime um nódulo
da descoberta psicanalítica: depois de uma volta inteira, a questão primordial
do desejo se recoloca e torna possível um novo lance de dados. Não há,
porém, um modelo, o dilema existencial que se repete é singular, e o sujeito
deverá achar uma solução inteiramente própria, sob pena de não encontrar a
salvação ou a cura. Por este mesmo motivo não se pode, rigorosamente, falar
em cura, mas numa infinidade de curas.
Mas por que é tão comum preferir o não-saber e a repetição mortal? Por
que, quando tudo parecia indicar a sua superação, recai-se nela, à maneira da
reação terapêutica negativa descoberta por Freud, derradeira resistência a uma
cura já eminente? Freud respondia com a idéia de um masoquismo primordial
e, finalmente, de uma pulsão de morte atuando como obstáculo à recuperação.
O que se verifica aí, senão a ausência do saber, isto é, ausência de sua prática?
Mas ouve-se em análise que o saber adquirido nem sempre tem o poder de
salvar das crises de angústia e da recaída nos sofrimentos neuróticos. Mesmo
evocando o que já se sabe, fica-se às vezes impotente para administrar uma

117
Cinema – A imagem-movimento, op. cit., p. 157.

82
conhecida crise. O que se passa? É a falta de fé? É o desespero humano pela
ausência da fé, como pensava Kierkegaard? É a impotência do saber quando
se trata da passagem ao ato, quando se trata do real? Eis um ponto crucial: em
que consiste a virtude, a força do saber? É evidente que se deve distinguir este
saber dos saberes convencionais, sempre optativos, no sentido de que exercê-
los ou não é uma questão secundária do ponto de vista da existência; não,
talvez, da existência física, mas da existência psíquica ou espiritual. É notável
que se possa afirmar que só o sujeito do inconsciente existe e ao mesmo tempo
perguntar: como ele chega a existir? A pergunta e a afirmação desdobradas,
esmiuçadas, vividas, praticadas, é nisto que consiste o saber do ponto de vista
analítico. Mas, como no caso da fé em sua relação com o pecado, segundo a
dialética vertiginosa de Kierkegaard, o saber aqui se relaciona com a falta, não
a falta de um objeto, pedra de toque de todo o esmero lacaniano, mas
diretamente com a falta ética. Por isso o saber que interessa à análise é uma
exigência (Dräng), envolve um custo, uma ascese difícil, rara. Se não se
constituir em prática, ele se apaga. Sua consistência é ética, como é a do
inconsciente. Mas não se deve pensar que a exigência de que falamos é um
fardo, uma imposição superegóica. É uma exigência do real, nos dois sentidos
de que o real requer e de que o desejo, em última instância, o quer – isto é,
quer o real e o que ele quer. É por fim um alívio, dizia Freud, deixar cair a
máscara. Não há realmente desejo, ou seja, desprendimento, senão em última
instância. Nossa fórmula: ama o real como a ti mesmo.
O fechamento do inconsciente deve-se sempre a um objeto oclusivo,
como Lacan soube mostrar. Este objeto ficcional, narcísico, seja ele qual for,
tem um caráter ideal, pois promete o que não irá se cumprir, promete o
impossível, ou seja, o fechamento do inconsciente de uma vez por todas. Por
isso é o núcleo da fantasia. Esse objeto pode ser alguém, um estado de coisas,
um conhecimento, uma teoria. O curioso é que ele funciona essencialmente
como efígie, em ausência, não importando se figura a fantasia da possibilidade
ou a melancolia da perda irremediável – era sempre ele, tudo dependia dele,
deveria ser ele. Abre-se mão da perspectiva ativa, pulsional, em nome dos
favores do objeto, até o grau de idealização do que seria viver se ele ainda
existisse ou se algum dia tivesse existido. O grau de idealização desses objetos
é proporcional ao abandono da perspectiva ativa. Ora, esta perspectiva é a do
saber, é seu alfa e seu ômega. Assim, a abertura do saber, mesmo sob o
abandono e o esquecimento, se renova constantemente. Ou seja, o real insiste
através de suas formações, até o ponto de receber em psicanálise o nome de
pulsão. Isso significa que, mediante a pesquisa freudiana, o real e o saber
encontraram seu ponto de união. Não há mistério nisto, uma vez que essa
união se comprova com o menor dos fatos analíticos. É preciso apenas

83
estendê-la, torná-la processo, instituí-la como prática constante. Não é assim
tão fácil, tão simples e rápido – pode alguém objetar – estar de mãos dadas
com o real e o saber, se é que isto é possível. Mas este caminho se instaura a
cada vez como repetição da diferença ou do que faz diferença, seja no lapso
ou no mais cristalino dizer, sempre que se renova uma posição de desejo; todo
o tempo, de modo aberto ou fechado, se repõe a questão dessa união rara,
remota e até impossível, se preferirmos assim, porém não menos insidiosa em
sua presença obscura, em sua não-presença que é, sem a menor dúvida, a
razão última das noções de inconsciente e pulsão. “Sempre sei, realmente”.
Por que então se escolhe um objeto idealizado em detrimento de uma
perspectiva ativa? O objeto idealizado equivale a um repouso, a um término, à
morte, mesmo sob a forma de uma experiência de plenitude, a Coisa enfim
encontrada. Mas não há término, nem repouso, nem morte, e a Coisa é a
própria pulsão, seu próprio exercício. Por isso, tudo, na experiência do sujeito,
oscila entre pulsão de vida e pulsão de morte, entre a boa e a má repetição, a
primeira como exigência constante – Freud dizia “tensão” – e a segunda como
relaxamento da exigência, o que se caracteriza, de modo geral, como gozo, e,
dada sua inclinação cada vez mais irresistível de ir ao fundo, como gozo
mortífero. É por isto que às vezes se evoca este ser raro que é o santo, um
saint-homme, ou o Buda de sexo indeterminável 118, para dar ao gozo um outro
destino, tanto na experiência quanto no entendimento – no caso, o
entendimento analítico. A saída medíocre de se propor o prazer como
alternativa ao gozo reedita simplesmente o recalque com boa consciência, a
menor tensão, a menor exigência possível, o meio termo, o estado morno que
as Escrituras vomitam, sem ousar se decidir pela pulsão, pelo seu saber cruel e
suas crescentes exigências, como se estas não abrissem mais as portas do céu,
e assim não se precisasse mais ouvi-las. A escuta freudiana constatou, porém,
que as exigências pulsionais não ficam em silêncio, não importa se são
ouvidas ou não.
Ainda que Freud apenas distinguisse formação de ideal e sublimação,
não deixando de observar que um excesso de idealização inibe a prática
sublimatória, podemos afirmar que são processos inconciliáveis. Assim, um
saber da insuficiência e da falácia daqueles objetos ideais não se resolve
positivamente como práxis, senão como uma práxis sem direção, à qual faltam
agora os ideais norteadores. De que natureza então ele é? É apenas um saber
da ausência, da supressão, da abstração e do nada, pois ainda incide sobre o
ideal. É, justamente, um saber que não salva e não cura, saber da castração, da
falta e do furo. Se o sentido era dado por aquele ideal, agora, sob o escrutínio

118
Cf. O seminário, Livro 10, A angústia, op. cit., p. 244 a 251.

84
da razão, nada faz sentido. Nome para isto: niilismo, ou o que Freud chamou
de “cessação da febre de viver”.
Será o deslize para a fé o último recurso frente a uma razão pessimista,
niilista? Ao saber que não salva, que inclusive condena, contrapõe-se a fé; ela
pareceria insuficiente, porém, para fornecer uma saída constante, por ser
exatamente a negação de um saber. Mas é este o motivo para que Kierkegaard
evocasse a possibilidade do escândalo, como medida da fé, como medida de
seu vigor. Frente ao saber especulativo, conceitual e idealista, Kierkegaard
opunha a angústia do “indivìduo real” e sua resolução pela fé. Mas, com a
psicanálise, o indivíduo real passou a ser ouvido de uma maneira nova,
inusitada; é uma escuta que, por ela própria, constitui um saber renovado, um
saber dos afetos, ativo, pulsional, com o poder de ultrapassar a saída pela fé,
isto é, com o poder de curar. Mas a exigência nem por isto diminui, pelo
contrário: não mais a posição da crença, em atitude heróica frente à
possibilidade do escândalo, mas a firmeza do pensamento, o desejo
esclarecido e a determinação de não abrir mão dele. Para uma visão
superficial, a fé pode parecer mais difícil que o saber pulsional, e, no entanto,
precisamente por ser um saber, e não uma crença, para a qual se pressupõe a
ausência de apoio – é inclusive próprio da crença carecer de apoio –, sustentar
o saber da pulsão enquanto saber é sem dúvida o mais raro e difícil, pois ele
se apóia em si próprio. Isto significa – e aqui reside a raridade, a alta exigência
– que esse saber não se distingue de sua prática, do mesmo modo que coincide
com uma condição ativa originária. Vê-se assim como é inaceitável que se
apregoe nos meios psicanalíticos uma espécie de fé no inconsciente, quando
este é diretamente posição de saber.
É evitando o saber, é no movimento de sua elisão, que os processos
humanos se organizam em sintoma: a perversão consiste na renegação de um
saber que tem por nódulo a morte, a castração; é, digamos, um exercício de fé
de que esse centro vazio não existe, ou não é central, e por isso a fantasia é sua
obra. Essa obra, no entanto, denuncia constantemente o seu sentido, que é o de
recobrir aquele vazio e desviar-se dele. Mais de uma vez se viu nesse gesto de
superação a origem das obras de arte. Existe, assim, uma forte tendência a se
ligar a atividade artística à crença e não ao saber, que a faria soçobrar. É que
se entende, via de regra, que o saber é o da castração e da morte, e não o da
vida, o savoir-faire. O que avaliza esse entendimento? O que predispõe a ele?
Uma sobriedade? Um realismo? Ou uma distância em relação ao campo
pulsional, notadamente ativo e prático? No processo analítico haverá sempre –
e em razão da pulsão – uma experiência de morte, de separação. Mas a
experiência analítica não se esgota nisso. Se a análise for conseqüente e não
seguir um roteiro meramente lógico, a separação consistirá, ao mesmo tempo,

85
em um processo de reunião ao campo pulsional, de onde, inclusive, emana o
saber e a força da separação. Ao contrário do que se crê, sabe-se muito menos
sobre a vida e a diferença que sobre a morte e a castração. Estas são o avesso
daquelas, sua imagem invertida, e exprimem, como tais, a angústia monótona
e cotidiana do narcisismo. Diz Lawrence a propósito do seu Cristo: “E o
destino da vida lhe pareceu mais feroz e compulsivo até que o destino da
morte. A sina da morte era uma sombra comparada com a fúria do destino da
vida, a determinação do assomo da vida” 119.
O saber se instaura, de modo geral, como o fracasso de um ideal e um
ferimento narcisista, e por isso tem a feição da castração. Fala-se dos golpes
que o narcisismo humano sofreu com as pesquisas de Copérnico, Darwin e
Freud. É uma imagem do saber que se distingue progressivamente da imagem
que o idealismo, de Platão a Hegel, fez dele. Assim não se vê mais que o saber
possa engendrar um contentamento, exceto sob o ponto de vista dúbio do
saber tecnológico, e deixa-se essa função à fé, ao espírito religioso. É preciso
ter uma propensão spinozista ao conhecimento para reverter o sentido do saber
– e situá-lo, por assim dizer, do lado direito. Acontece que esse lado direito é
de uma exigência constante, uma konstante Kraft que favorece, na medida do
seu exercício, uma intimidade progressiva com o devir. Em outras palavras, o
saber não acomete mais como um fato (ou fatum) estrangeiro, como a morte
que vem de fora ainda que venha de dentro; ele é exercido no interior do devir,
e por isso ele se torna, e não cessa de se tornar, a subjetividade do devir. Não
mais a experiência trágica de que isso, a vida, os acontecimentos me escapam
e me fazem sofrer, me impõem a morte e a dissolução, mas a experiência
restaurada do devir, ali onde a vida não pode mais ser ferida.
O que importa, em primeiro lugar, não é exatamente o que se sabe, mas
a condição de saber – é a isto que chamamos de pulsão.
Sem dúvida a perversão é um não-saber – apesar do savoir-faire do
perverso, tão próximo da sublimação –, mas um não-saber que escamoteia (eis
o sentido do savoir-faire) o saber do ferimento e a angústia, os quais
repercutem quand même ao nível da experiência subjetiva sob as formas da
paixão, do impulso irrefreável, do objeto irresistível, do fascínio e da
passividade. É devido à repercussão inconsciente do saber como sofrimento
que as fantasias perversas se esclarecem pelos fins passivos: ser castrado, ser
comido, ser espancado – e se alcance, como fez Freud, a idéia de um
masoquismo primordial. Será essa versão extrema do masoquismo uma das
derradeiras imagens do saber, isto é, da satisfação? A imagem que antecede o
saber real? Seria instrutivo ler do início ao fim o salmo 22 de David, que

119
Lawrence, D. H., Apocalipse - O homem que morreu, p. 134, Companhia das Letras, 1990.

86
começa com as palavras de desespero e abandono reproduzidas, mais tarde,
conforme o relato bíblico, pelo Cristo crucificado. O que este tinha presente ao
espírito naquele momento crucial só se pode avaliar com a leitura do salmo
inteiro, que não é senão a glorificação de Deus e da vida eterna.
Num contexto analítico, toda repetição malsã se caracteriza como
resistência e renúncia ao saber e ao risco que ele envolve, ao perigo
desconhecido que ele anuncia, talvez a destruição de um estado de coisas, a
perda de um bem que a ignorância conservava (como tal), talvez a morte do
sujeito, identificado àquele estado de coisas e àquele bem. Mas por trás dessas
inquietações o saber convoca a exigências mais altas, as de firmeza e cuidado,
a partir das quais, e somente a partir das quais é possível avaliar os perigos a
que está sujeita a experiência de renúncia ao saber, o maior deles sendo a
perda da alma, como se dizia antigamente, ou, nos nossos termos, da condição
de escolha, que a análise deve propiciar e garantir. Firmeza e cuidado
condizem com uma implicação ativa, decidida, especialmente com o mais
perigoso dos bens, por meio do qual se dá testemunho de quem se é 120. O bem
é proporcional ao perigo, exigindo o cuidado preconizado por Heidegger que,
em termos analíticos, se esclarece como exercício ético do bem-dizer. E o
saber, onde localizá-lo? Ora, ele é a noção da implicação ativa, da firmeza e
do cuidado necessários a cada momento e, portanto, a noção do perigo; ele é
também o testemunho (por vezes ainda a ser decifrado) de quem se é. Sem
dúvida é um savoir-faire, mas desses que envolvem uma vida inteira. Um
problema filosófico moderno encontraria assim sua solução – não mais a
opção pela vida sem atentar para a questão da existência, ou a opção pela
existência em detrimento da vida (Bergson ou Sartre do ponto de vista de
Sartre), mas a confluência da vida e da existência ao nível da prática pulsional.
A vitalidade de um processo, sua força existencial e o grau em que o saber
inconsciente é praticado são uma única e mesma coisa.
O que Lacan chamava de pulsação do inconsciente, abertura e
fechamento, concerne à abertura do saber e ao seu velamento ou, mais que
isto, à sua elisão, o que se denominou de divisão do sujeito, pois era esta,
exatamente, a resultante do procedimento renegatório (“cisão do eu no
processo de defesa”). Mas será preciso observar ainda que o abrir-se do
inconsciente e a pulsão são uma única e mesma coisa? Não se deve esquecer
que o saber do inconsciente não se encontra suspenso, à espera, inerte, ele
existe em ato, é imediatamente um dizer, cujos graus diversos de realização,
mas também de iluminação vão do dizer mais obscuro ao mais clarividente.

120
“Por isso foi (...) dado ao homem a lìngua, o mais perigoso dos bens (...), para que ele dê testemunho de o
que ele é (...)” Hölderlin, F., Poemas, prefácio de Paulo Quintela, p. XXXI, Atlântida, Coimbra, 1959.

87
O sonho de Isabel: sua filhinha estava junto à cerca de arame farpado e
ela, dentro da casa, olhava pela janela, a mãe logo atrás lhe dizendo – o quê?
Que a menina iria se ferir no arame... Não, não se machucaria, sabia o que
fazer, ainda que houvesse algum perigo. Sem dúvida, Isabel é a criança do
sonho. Desde o início tratou a filha de maneira diferente da que foi tratada, de
modo que as inovações nos cuidados se reportam aos ensaios de relação
renovada consigo mesma. Acredita cuidar bem de sua filha e se defende das
dúvidas da mãe por meio de argumentos seguros, retirados de sua própria
experiência; mas, em seguida e pelo resto do tempo é atingida por uma
descrença total em sua capacidade para cuidar do que quer que seja, inclusive
de si mesma. Sente-se aniquilada. No sonho aparece dentro da casa, à sombra
da mãe. O que se passa? Ao invés do saber das próprias condições, o
sentimento de nulidade. A história com a mãe é antiga e um episódio marcante
sugere o modo como ela incide na vida de Isabel. Ainda criança, alegrou-se
muito, certa vez, com uma festa da escola, especialmente pela presença dos
pais. Na ida para casa a mãe se mostrou triste, inconsolável, pois tivera uma
conversa com a professora e soube que Isabel faltava às aulas. Era o fim da
alegria. Deprimir-se por ser a causa da tristeza da mãe e, assim, encontrar um
meio de ser aceita por ela, de satisfazê-la, tornou-se mais importante que a
conservação de uma Isabel alegre e aventureira (junto à cerca de arame
farpado). A sombra da mãe desceu sobre ela. Se a tristeza da mãe a envenena,
separado-a do que ela pode, é porque sua alegria adquiriu má consciência.
Trata-se de uma operação de recalcamento ou, em termos nietzschianos, de
uma transformação da força ativa em reativa. É o efeito de “afânise” 121 de que
falava Lacan, aproveitando a expressão de Ernest Jones para indicar o caráter
letal do significante binário, o representante da representação – é o
desaparecimento do desejo. É, portanto, o modo pelo qual o sujeito cai sob o
dito do Outro ou, em outras palavras, como sua existência sucumbe ao sistema
do juízo. Essa queda ou capitulação não sucede apenas por uma disposição
desfavorável das forças, tal como a impotência da criança frente ao poder dos
adultos. Por importante que seja, a disposição das forças conta como um fator
a mais no cadinho da alienação. É preciso incluir ali uma insegurança prévia,
talvez alimentada pelo mesmo gênero de envenenamento, ou, mais
precisamente, uma falha ética que, onde mais se exigiria firmeza, coragem,
insinua a dúvida e a hesitação, a ponto de neutralizar a condição ativa. O
amor, que não raro nutre a reação, pode ter nessa desistência ética um papel
central. Claro, essa adesão ao inimigo não deixa de ser uma estratégia
defensiva frente ao ambiente inóspito; por meio dela se organiza um “falso

121
Em medicina, esse termo designa o medo mórbido de perder a capacidade sexual.

88
eu”, como diriam os analistas ingleses na década de 50, com a função de
proteger o verdadeiro, ou, em nossos termos, a pulsão de vida. O falso eu é
ainda uma invenção da pulsão de vida, e em nome dela. Mas é também
suspensão de seu exercício e celebração da morte. Esse conjunto estratégico
tem por efeito a afânise. O poder de avaliação se obscurece e, nesta mesma
medida, o sistema do juízo se reconstitui. É um problema ético, não
importando a idade em que ele se coloca, porque ele subsiste como não
resolvido, repercutindo em todas as formações do inconsciente. Sim, houve
uma solução, mas não aquela, a verdadeira, a pulsional. Não se pode afirmar,
num caso assim, que havia uma solução melhor que a encontrada; o que se
pode dizer é que ficou uma pendência afetiva, ética, existencial, produzindo
efeitos ao longo do tempo. Um dia terá que ser revista, e essa aspiração
insiste, todo o tempo, como índice da pulsão.
O mesmo movimento que gera a alienação por identificação, por
reunião (o papel do amor) – no caso à mãe, ao universo familiar e cultural –
também torna a pulsão outsider. Já o era na origem? Desde a origem a pulsão
é extra-territorial, estrangeira, cósmica. Além da cerca de arame se estende o
campo, o cosmo. A reunião e a identificação, que deviam sustentar uma
totalidade, uma unidade de experência, são afetadas por uma falha, uma falta,
pois a existência se pronuncia alhures, como formação do inconsciente – o
sonho de Isabel. O que preside ao sonho, o que em última instância o
determina, é também o que promove a separação, conforme as impressões de
estranheza e de não-senso que anunciam, de modo geral, a proximidade do
campo pulsional. A escolha pelo sentido vacila na medida em que este se
define pelo regime da identidade. Mas não chegamos lá no que diz respeito ao
caso de Isabel. Neste vigoram ainda a alienação, os processos de reunião e de
identificação e, por isso, quando se anunciar a alegria virá logo a tristeza como
contrafação e inibição. O sonho, no entanto, revela um avanço no
entendimento – por certo gradual (a casa, a cerca...), e indireto, por se aplicar à
relação com a filha. Na interpretação é ela, é seu desejo, porém não exercido,
não reconhecido por meio de uma prática efetiva. Não chegou à existência, ao
dizer. Quando há pouco falávamos de um “dizer obscuro” devìamos
acrescentar que é o dizer ainda não-realizado, correlato de uma existência não-
exercida. É claro que desde cedo a questão do desejo é de ordem ética.
Afetado pela palavra materna em ocasiões como a da festa da escola, o
humor de Isabel se tornava imediatamente sombrio, embora gazear aulas fosse
a expressão de uma atividade exuberante: tendo finalizado agilmente o que
ocupava ainda os outros alunos e não vendo mais nada a fazer na sala de aula,
ensaiava movimentos inéditos, saía e pesquisava novos sítios, ousava ações
mais excitantes e perigosas. Agora, diante das ocasiões em que poderia

89
exercer suas habilidades e experimentar movimentos novos, prazeres
desconhecidos, ela se retrai, deprimida, procurando conservar-se nas
dimensões do território materno e familiar. Como dizia Spinoza, o poder ama
a tristeza. Isabel presume, talvez, que o território da mãe, com sua tristeza e
suas palavras de censura, possa protegê-la dos perigos internos e externos, das
pulsões e do mundo. Abandona assim a integração das pulsões ao mesmo
tempo em que ignora, no sentido analítico, a linha superior da auto-
determinação pulsional.
Cada pulsão é uma apreensão do entorno, do mundo; cada pulsão é uma
percepção e um afeto, isto é, uma valoração, uma avaliação parcial, uma
concepção. Mas a pulsão de vida é a integração de todas as pulsões. É
enquanto potência ética que ela integra as demais. Ou seja, a integração não
se dá naturalmente, ela resulta de uma integridade ética – aliás, é uma e
mesma coisa, apenas sem esta aquela não pode ser devidamente pensada. Uma
integridade originária corresponde, por certo, à ética analítica de não se abrir
mão do desejo. E nela reside o critério superior segundo o qual será
considerada e finalmente julgada, para além do sistema do juízo, a diversidade
dos pontos de vista da “rede subjetiva”.
Deixando-se todavia enredar por aquele sistema, Isabel trai a si mesma.
Ao contrário de Antígona, esquece o critério originário que nunca chega a ser
escrito, que é eterno. Daí decorre o declínio, a tristeza, a morte. A relação de
Isabel com o pai sofre de uma inflexão similar. Ela poderia exercer a mesma
profissão do pai de forma mais “agressiva” – era assim que soava – e
competente que ele, e por certo seria sua concorrente, se não encontrasse mais
espaço em sua firma. Isto a inibe e neutraliza. Ir além dele é diminuir-lhe a
importância, a prevalência. Eis a experiência de morte ou de castração e a sua
recusa, a renegação, a père-version, com vistas a estancar o processo que, pelo
critério do saber, culminaria naquela experiência. Mas o saber renegado
reverbera em sentido inverso: é preferível castrar-se e morrer, tendência a que
chamaríamos de masoquismo primordial e que se resolve, finalmente, como
pulsão de morte. É preferível não saber, não viver. Essa atitude solidária
parece garantir a conservação dos vínculos familiares, isto é, a conservação do
mesmo – o narcisismo de ser amada segundo o sistema do juízo materno –, às
expensas do saber pulsional.
Seria um erro, no entanto, qualificar a pulsão de anti-familiar, pois o
saber prático em questão também pode construir bases familiares favoráveis
ao exercício da própria pulsão. Até se poderia dizer, a partir de um prisma
analítico e pulsional, que é para este fim que existe uma família. Do mesmo
modo, a pulsão não é, em princípio, contrária a uma tradição, dependendo do
quanto essa tradição estrutura a viabilidade constante da expressão pulsional.

90
As realizações mentais, mecânicas e tecnológicas de nosso mundo não
implicam em superioridade sobre as civilizações dos egípcios, dos caldeus,
dos persas, dos etruscos, dos indus do Indo, se é verdade, como diz Lawrence,
que “a cultura e a civilização se medem em termos de consciência vital” 122.
Não é preciso dizer que as famílias contemporâneas estão hoje em dia muito
longe de se organizar e de operar de acordo com esse princìpio “culto” e no
entanto básico, o que não exclui que as crianças se ressintam da indigência
cultural do seu ambiente.
A linha de sentido pulsional não se distingue, portanto, de uma linha de
entendimento superior, linha de tempo; e se esclarece aos poucos ou de um
golpe como linha de destino, apreendida e enunciada pela divinatio analítica.
Uma tal linha se transforma, ao longo dela própria, e por força do poder
avaliador restaurado, em linha de experimentação, e a pergunta relativa ao
sentido passa a ser – que uso se faz de tal coisa, para que serve, qual seu grau
de importância numa estimativa renovada dos valores, tendo em vista o
pressuposto daquele poder e a sua preservação em ato? Em todas as perguntas
se ouve a mais decisiva: qual a direção? Uso, estimativa, direção. A análise é
inteiramente pragmática, mas de um pragmatismo especial, na medida em que
visa renovar as condições de avaliação e, portanto, de integração pulsional (as
pulsões, a pulsão). O sentido é, na essência, sentido de direção, e tem valor
prático.
E é quase uma ingenuidade presumir que devido à crítica a toda noção
metafísica de sentido deveríamos nos ater somente às experiências de não-
senso, como expressão do real. Confunde-se muito rapidamente o sentido com
as exigências lógicas do princípio de identidade e seus correlatos, os
princípios de não-contradição e do terceiro excluído. Não faz sentido dizer – e
é importante observar que se trata de uma proposição – que uma coisa é e não
é ela mesma. Mas o sentido – que agora definimos como pulsional – não se
determina apenas por razões lógicas e no interior de uma proposição, ainda
que não lhe falte razão, lógica e intimidade com o dizer; ele se esclarece, sim,
por um princípio ativo, integrativo, superativo que faz sentido em si mesmo.
Por isso dissemos em outro contexto que o sentido é o sentido da força, não
sem acrescentar que a força, por sua vez, é a força do sentido.
Consideremos dois casos, um que se diria prosaico (o sonho de uma
senhora de meia idade); o outro, filosófico, da maior dignidade (a meditação
de Heidegger sobre a concepção nietzscheana da arte), ambos para situar
analiticamente o problema do sentido, do não-senso e da escolha (ou do
desejo).

122
Apocalipse – O homem que morreu, op. cit., p. 52.

91
O primeiro caso: L., uma senhora de quarenta e poucos anos, separada
há dez, morando sozinha numa cidade do interior, tem o seguinte sonho:
estava na casa de sua cunhada, na capital, usando meias pretas, como as meias
que usa para dormir. A cunhada veste-se toda de preto. Logo a casa se enche
de pessoas, parece uma festa; mas ela permanece quieta, sentada num sofá,
lendo um livro. Não se envolve com os convivas. Em dado momento, se dirige
a um pátio interno, belo e agradável. Está de volta com seu livro, a um canto,
quando uma mulher aparece na porta, lhe mostra um bebê nos braços e
desaparece. O sonho é um saber do tempo, é uma memória e um devir. A
cunhada é uma ex-cunhada, separada há muitos anos do irmão da sonhadora –
o termo é duplamente apropriado, pois um longo período de sua análise
transcorreu como análise de sonhos –, não tendo experimentado desde então
nenhuma novidade em sua vida, como se mergulhasse num infindável
processo de luto – as roupas pretas. A identificação com a ex-cunhada é clara,
ainda que L. use apenas meias pretas, como se tratasse de um luto parcial,
relativo ou em vias de se concluir. De fato pensa em morar numa cidade
maior, onde sempre teria motivos para sair de casa, ir ao teatro, cinema e
shoppings, encontrar pessoas, fazer novas amizades. A comemoração da
formatura do seu sobrinho, para a qual fora convidada pelo mencionado
irmão, deu origem à festa do sonho.
Uma primeira avaliação sugerida pelo texto onírico consistiria em ver
que tanto no interior como na capital ela se dedicaria ao que realmente gosta, a
leitura de romances, e que sua satisfação não dependeria do lugar onde
estivesse. Mas é uma abordagem parcial, não considera todos os dados do
sonho. É dentro de uma experiência de luto que a mencionada satisfação deve
ser estimada. Sem reconhecer o luto prolongado, ela vive, no entanto, sob a
sua lei, não experimentando senão seus efeitos. Dir-se-ia que a vida acanhada
e solitária que leva só se abre e se povoa com os romances que lê. O notável é
que o sonho problematize esse estado de coisas. Ele é pulsional na origem e,
como tal, encena um problema. Enquanto ela permanecer de luto, tanto na
pequena cidade onde mora como na cidade maior para onde almeja ir – pois a
certa altura da análise do sonho entende que o pátio tão atraente é a imagem
do seu desejo, visão de um novo espaço, de outra cena, tabuleiro de novo
lance de dados e nova chance de existir –, enquanto não acreditar que tem o
direito (= poder) de renovar suas condições de vida, limitar-se-á ao gozo
residual dos romances, acomodada à solidão e à mesmice. O admirável do
inconsciente é que a renovação das condições de vida não se distingue da
renovação das condições de saber. Ora, no plano da elaboração onírica L. já
existe, existe por antecipação, ao nível do saber inconsciente: memória viva e
devir.

92
Com o termo “memória viva” pensamos em um poder de interpretação e
avaliação que se exerce no curso do que se poderia chamar, com Deleuze, de
uma aprendizagem dos signos; e também, por conseqüência, em uma memória
que pressupõe, em seu desenvolvimento, as verdades já encontradas, cada qual
em seu nível. Na medida em que compreende os graus menores do
entendimento e estabelece os graus mais elevados, a memória é uma
graduação da vida. É segundo essa graduação que as potências de renovação
acedem à imagem onírica e à palavra, e que o saber se expõe à decifração.
Analisar-se é começar a existir.
Trata-se, no caso exposto, de acreditar, não por uma fantasia, uma
crença desejosa, mas por força de um saber. Este é, em si próprio,
problematizante, desejante. Condiciona o uso do sonho, compreende a
estimativa do que está em jogo, decide a direção do processo de cura.
Entenda-se, porém, que o uso do sonho vale em dois sentidos, pois condiz
com o uso que se pode fazer do sonho em análise e o sonho mesmo é o uso
das idéias e das imagens, das circunstâncias e das escolhas em jogo segundo
uma direção constante, por mais velada (= não-realizada) que essa direção
esteja. A estimativa do que está em jogo se estratifica e se hierarquiza
conforme os elementos considerados, e a direção analítica se resolve como o
entendimento mais aguçado, mais profundo.
A este sonho seguiu-se um outro. L. se vê dentro de um buraco na terra,
mais precisamente, numa vala; ao redor dela se ergue uma cidade. A
contundência do sonho, o caráter chocante da imagem, associada à idéia de
cova, serve para não permitir a fácil acomodação, o esquecimento cotidiano. É
claro que subsiste o laço transferencial e seu modo de se insinuar na
elaboração onírica – estará sonhando o que o analista deseja dela, para ela?
Sente-se autorizada por ele a querer morar em outro lugar, a situar-se em outra
cena, todavia circunscrita ao ideal de eu do analista, a um ideal de existência?
Ou antes espera realmente ser ouvida, enuncia o desejo através do sonho para
ser ouvida e, por fim, ouvir-se? A moção pulsional, sendo nada menos que um
dizer nascente, em andamento – e este é um ensino básico, o que não significa
que já esteja perfeitamente assimilado –, não se orienta por um ideal de eu,
não se baseia em um processo de identificação. É bem verdade que as imagens
da pulsão se mesclam à pulsão, e algumas são de fato falsas imagens,
derivadas de interesses avessos à pulsão. Como discernir essas imagens e a
pulsão mesma? Existirá um critério exterior à pulsão pelo qual se possa estar
seguro de captar sua presença real? De forma alguma, pois o critério maior, na
verdade o único legítimo, é pulsional. Sua direção singular, estrangeira e
nômade – posto não se deixar capturar ou fixar – dirige a análise pelos
critérios do real, o que exige uma audição igualmente pulsional. O analista só

93
dirige a análise por se orientar pela pulsão. Freud chamava a isso de
comunicação de inconscientes. Sugerimos assim a idéia de que a vida sabe por
onde caminhar? Não exatamente, apenas apontamos o que interessa à questão
da subjetividade inconsciente, ou seja, os graus mais elevados de potência e
vitalidade. Mas o que são esses graus? São, evidentemente, graus de saber e de
autorização. Isto está longe de compreender uma atitude ensimesmada,
narcísica, de um sujeito voltado ao próprio umbigo, a um eu ideal, mas nem
tampouco se endereça a um ideal de eu, encarnado ou não. O “umbigo do
sonho” é, ao contrário, uma relação renovada com o exterior, e por isso a
pulsão é, imediatamente, noção real, aculturada, do outro. Foucault chamou
esse misterioso umbigo de Fora interior. A decisão atuante, porém, reside na
pulsão.
Em relação às variações do princípio de identidade e a vigência do
sentido, devemos isolar o princípio do terceiro excluído (ou é A ou não-A) por
certa peculiaridade que lhe é essencial, destacada por Deleuze em uma de suas
aulas 123. Nas duas fórmulas do princípio de identidade que antecedem a do
terceiro excluído (A = A, A não é não-A, ou ainda A é A e não B) constata-se
que o elemento nodal é o verbo ser (é, não é), enquanto nesta última o
elemento central é a partìcula “ou”, cuja função de articular as duas
alternativas e introduzir uma dimensão de escolha evoca, em última instância,
uma potência existencial. Essa potência ou é puro não-senso ou faz sentido em
si mesma. Tanto que não se trata, como mostra Deleuze, de uma escolha que o
herói da Recherche faria entre Albertine e Andrea, mas entre o modo de
existência que teria se amasse Albertine e a escolhesse, e o modo de existência
que, em sua imaginação, passaria a ter se escolhesse Andrea. Elegeria “não
entre dois termos chamados objetivos, mas entre dois modos de existência”
124
. Assim se comporta o sonho de L., onde a alternativa cidade do interior e
cidade grande se aprofunda em conservar o luto ou concluí-lo de vez, as
quatro alternativas coexistindo numa pergunta pelo futuro, pelo devir desse
estado de coisas (a festa antecipada, a criança de colo). O problema é assim
mobilizado por um desejo que já não é possível discernir de sua solução, isto
é, por um desejo que é saber, visão. Na medida em que o sonho se elabora e se
esclarece, o desejo se formula como escolha e saber da escolha. Tampouco a
cidade grande é solução suficiente; o que desterritorializa, o que desprende da
terra, é a conclusão do luto. Que a questão do sonho se concentre em uma
escolha não elimina que só um caminho seja o certo, como quer o Riobaldo de
Grande Sertão, pois é possível não escolher esse caminho, como de modo
geral acontece.
123
www.webdeleuze.com - Image mouvement – image temps, Cours Vincennes – 17/05/1983.
124
Idem.

94
A digressão deleuziana, estabelecendo uma convergência entre Pascal,
Kierkegaard e Sartre, irá desembocar, inevitavelmente, no problema da
escolha que consiste em não escolher, mediante o argumento de que não se
tem escolha. Eis o problema ético, de modo algum restrito à consciência. É
pulsional, originário, e anima todo o inconsciente. A pulsão é assim a
colocação do problema e a sua solução – todavia prática, o que introduz, por
certo, uma exigência, graças à qual o sonho se transforma em teatro da
crueldade, sempre de acordo com uma escuta cruel. O sentido pulsional reside,
em última instância, na reconstituição ou na renovação da condição de
escolha, a qual, é preciso não esquecer, se reconstitui em ato. Por ser
originária, essa condição tem ares de não-senso.
O segundo caso. À medida que Heidegger progride em seu estudo do
“pensamento originário” de Nietzsche, aborda a arte, por ser esta a expressão
mais direta e, portanto, a mais elucidativa, a mais transparente, da vontade de
poder. E se demora no exame do “grande estilo” que, em Nietzsche, é o nome
da arte em seu ponto culminante, ou seja, da arte como medida e critério da
existência. Observa então que as contradições vivas que o texto de Nietzsche
oferece ao entendimento do “grande estilo” – a presença da lei, da forma, do
ser, e a embriaguez dionisíaca, o devir – subordinam-se, ao se aprofundar a
leitura, a um ponto de vista superior que ele, Heidegger, chama de “jugo”,
domìnio, decisão, “liberdade co-originária em relação às contradições
extremas”. É certamente um alto exercício de liberdade manter vivas as
contradições extremas, sob o jugo de uma serenidade criadora. Mas o
dionisíaco em Nietzsche não é apenas um dos termos da contradição como
quer Heidegger. Sob o aspecto da embriaguez e do devir, ao qual se deve o
caráter transitório da existência, aproxima-se do verdadeiro princípio
dionisíaco que, de um ponto de vista ainda mais profundo, concernente às
condições originárias, é a própria serenidade criadora, o ser ou a força do
devir. Tanto que Nietzsche dirá: “A ilusão de Apolo: a eternidade da bela
forma; a norma aristocrática: „assim deve ser sempre!‟ (...) Dioniso,
sensualidade e crueldade. O transitório poderia ser explicado como gozo da
força criadora e destruidora, como criação constante”. 125 A constância se
desloca da forma para a criação. É a repetição da diferença.
Quando se está à altura do saber pulsional, ou, para continuar com os
termos do segundo caso, quando se está à altura de um desejo dionisíaco?
Pulsão, Dioniso, são medidas móveis da existência. Esta se mensura a cada
vez, valendo por todas as vezes. A escolha, a direção a tomar é decisiva em

125
Nietzsche, F., Obras completas, vol. IV, 1048, p. 386, Aguilar, Buenos Aires, 1967.

95
relação a tais medidas. Decide pelo grau de existência. E é deste grau que,
finalmente, se goza.

O gozo do "savoir-faire” e o estágio da cura

Mas esta palavra – “gozo” – é adequada ao sentido que se quer dar à


mais alta exigência, ao desejo mais desprendido, mais puro? É muito comum
destinar a palavra “gozo” à experiência de alienação, à repetição patológica e
mortífera. Na verdade é uma tolice propor uma opção entre desejo e gozo,
quando o desejo também pode ser alienado, também pode ser de abolição e
morte. Do mesmo modo, o gozo pode ser ativo, gozo do vivo, como é o caso
do gozo do saber. É freqüente encontrar, entre os psicanalistas, essa tendência
a sofrer de didatismo, doença que se caracteriza pela necessidade de uma
simplificação sumária dos termos, possivelmente para encaixar as estranhezas
e singularidades em encaixes seguros, familiares, longe dos perigos da noite
escura e do ímpeto criador. Não é sem algum preparo que se aborda esse
campo – Acheronta movebo... Lacan, como ele próprio reconhecia, era bem
mais herético 126. A propósito do gozo, se em dado momento e segundo
determinado nível de articulação ele distingue o prazer do verdadeiro e o gozo
do real, e afirma que este comporta o masoquismo, o ápice do gozo dado pelo
real 127, em outro momento pergunta: “o que é o verdadeiro, senão o
verdadeiro real?” 128 Que o real se encontre “nos emaranhados do verdadeiro”
é ainda uma maneira de dizer que se encontram do mesmo lado. Tratando de
um fazer (savoir-faire) que nos escapa, fazer do artifício, fazer do artista,
Lacan observa que ele transborda em muito o gozo que podemos ter dele –
“esse gozo bem fininho mesmo é o que chamamos de espìrito” 129. Como se
poderia assimilar esse gozo do savoir-faire, que é “fininho” mas se gradua,

126
É evidente que desejo e gozo não são tratados de maneira unívoca na obra de Lacan. Somente no escrito
Subversão do sujeito e dialética do desejo vemos o tema se desenvolver em diferentes registros: 1. Lacan
define a castração como recusa do gozo, para que este “possa ser atingido na escala invertida da Lei do
desejo” (Subversão do sujeito e dialético do desejo, em Escritos, op. cit., p. 841). Neste caso, há uma
recuperação do gozo na linha do desejo. 2. E, no entanto, afirma-se nesse mesmo texto que “o desejo é uma
defesa, uma proibição de ultrapassar um limite no gozo” (idem, p. 839). As duas observações não são
contraditórias, mas exigem que se conceba diferentes modalidades de gozo, em especial no concernente ao
desejo. 3. Assim, nada impede Lacan de dizer que Alcebìades é o ser desejante por excelência, “o homem que
vai tão longe quanto possìvel no gozo...” (idem, p. 840). 4. E sobre o Gozo, escreve Lacan que sua falta
“tornaria vão o universo” (idem, p. 834), de tal modo que não vemos mais como o gozo deva ser
terminantemente recusado, a menos que seja em proveito, como foi dito acima, de sua recuperação no plano
do desejo. E o que é o gozo nesse plano? E o que é a Lei do desejo, para que se saiba “desse” gozo? É a
questão que procuramos desenvolver no presente trabalho, explorando o tema da pulsão.
127
O seminário, livro 23, O sinthoma, op. cit., p. 76.
128
Idem, p. 83. A expressão “verdadeiro real” se contextualiza numa referência a Heidegger e ao que,
segundo Lacan, seria o seu fracasso.
129
Idem, p. 62.

96
posto que o saber e o fazer inconscientes do artifício vão muito além dele, ao
gozo masoquista e sua distância do verdadeiro?
A primeira e decisiva razão para adotarmos a idéia de que não há
experiência do homem vivo sem uma medida de gozo de algum tipo, e de que
é preciso situar a natureza do gozo em relação aos estágios da cura, é a
pertinência, no entendimento analítico, da noção de pulsão que, como
estivemos repisando, não pode ser eliminada sem se eliminar a psicanálise. O
termo usual em Freud, substituído pela escola lacaniana por gozo, é
“satisfação”, e designa o alvo invariável da pulsão. A análise conduziria a um
modo de satisfação pulsional mais direto em relação às modalidades de
satisfação obscuras e tortuosas da neurose (Lacan). Esse modo mais direto
compreende a clareza, a lucidez do devir sublimatório, entendido que não
existe outro devir. É por isso que chegamos à fórmula de que o saber do gozo
e o gozo do saber são o mesmo para um critério de final de análise. A
sublimação é ainda a pulsão sob a forma de um destino determinado; há uma
satisfação (ou gozo) que lhe é própria, aparentada ao que Lacan chamou, na
passagem acima citada, de gozo “fininho” do savoir-faire inconsciente.
Insistimos, porém, na afirmação de que a sublimação é o destino originário da
pulsão, seu destino mais nobre. É ela que, gradualmente, nos cura, e é nessa
cura que consiste a satisfação pulsional direta – e não, note-se bem, uma
satisfação indireta, como pretenderiam as apreensões neuróticas e perversas da
sublimação. É que estas disposições subjetivas compreendem a satisfação
como um declive, um relaxamento, um fascínio, um ser comandado e um
deixar-se ir, não conseguindo conciliar satisfação pulsional com exigência,
comando, precisão, sobriedade, atividade. Essa conciliação, porém, encontra-
se em Lacan, quando ele confere à arte o poder de atingir o sintoma, o que
significa subordiná-lo a ela, desarticulá-lo 130. Mas não estamos assim no pólo
oposto ao do masoquismo – que não é, como martelou Lacan ao longo do seu
ensino, o sadismo? Nem por isto saímos do âmbito do real: talvez se
descortine aqui sua dimensão mais profunda. Continuando com Lacan: é
motivo para rir a clareza com que esse autor vincula a responsabilidade ao
savoir-faire, abarcando com isto o Juízo Final 131. Quer dizer, o motivo para
rir está em que o dito savoir-faire atinge níveis inconscientes profundamente
velados. Assim como não se tem uma noção exaustiva do próprio savoir-faire
(o que já parece uma incongruência), assim também não se tem noção da

130
“Quando digo que a arte pode atingir inclusive o sintoma, é o que vou tentar substancializar”. Idem, p. 40.
A potência de atingir o sintoma – tal é a força ativa da arte, semelhante à da análise.
131
“Só se é responsável na medida do seu savoir-faire. Que é o savoir-faire? É a arte, o artifício, o que dá à
arte da qual se é capaz um valor notável, porque não há Outro do Outro para operar o Juìzo Final”. Idem, p.
59.

97
própria responsabilidade. Pois, a quem compete o “saber-fazer” do lapso, o
seu engenho, a sua agudeza? Do lapso à arte, a distância é de grau ou de
natureza?
Goza-se da direção tomada a cada vez em conformidade com as
avaliações pulsionais, critério decisivo e incontornável, por mais distorcido
que esteja pelas determinações não pulsionais que compõem, em última
instância, o sistema do juízo. Por exemplo, o mundo cristão invertido de Sade,
configurando-se ainda no horizonte desse sistema, não se confunde de modo
algum com a reversão do platonismo em Nietzsche. O primeiro investe, sem
dúvida, o campo pulsional, mas esse campo é visto sob o prisma cristão, sob a
ótica do mal, de modo que o investimento é apenas um gesto de sublevação.
O segundo, ao instaurar uma nova perspectiva de avaliação, ensaia uma
reversão profunda do pensamento às condições originárias, criadoras, não sem
antes se apropriar do cerne da experiência cristã: “Não somos mais cristãos:
nós nos destacamos do cristianismo; não porque moramos muito longe dele,
mas porque moramos muito perto dele; mais ainda, porque crescemos a partir
dele – não é senão a nossa piedade mais severa e mais fastidiosa que nos
proíbe hoje de sermos cristãos”. 132
Goza-se sempre, mas nem sempre do saber. Quando não se está à altura
da experiência pulsional tem-se o impulso, a compulsão à repetição, o ato
sintomático. A dinâmica pulsional repercute em todos os estratos da
experiência por meio das formações do inconsciente, mas não da mesma
maneira, pois tudo depende do grau de proximidade com a pulsão. Esta se
parece ao corpo-sem-órgãos de Artaud, tal como é descrito em Mil Platôs, ou
seja, ainda que esteja sempre lá, precisa ser construído, praticado. Do
contrário, é como se não existisse, não adquirisse consistência. Sua
consistência é igual ao seu grau de existência (= vitalidade = lucidez). Ora,
isso que não se constitui se não for praticado é de natureza ética – não se
produz naturalmente. É uma questão de desejo. Pode-se chamar a isto de uma
finalidade? É a espécie de finalidade que não se distingue de um exercício
constante em nome dele próprio (conatus), e não o que resulta como término
de um processo ou de uma atividade. É o próprio gozo da atividade. E é nisto
que consiste a subjetividade pulsional, o real-Ich de que falava Freud.
O tema psicanalítico do real-Ich (eu-real) nos permite abordar a
segunda razão para se falar em gozo no estágio da cura e não somente no
estágio da patologia. O real-Ich contracena com o lust-Ich, cuja tradução
corrente é “eu-prazer” e que se articula na teoria à noção de lust-Principz,
princípio do prazer. Este segundo eu, que por um momento aparece como o

132
Citado em Heidegger, M., Nietzsche, vol. 1, p. 145, Ed. Forense Universitária, RJ, 2007.

98
mais primitivo, se rege e se define, conforme o texto freudiano, pelo princípio
do prazer. Corresponde ao eu-ideal, tanto na concepção freudiana quanto na
abordagem lacaniana. É evidente que a noção de gozo introduzida por esta
abordagem refere-se ao campo de coordenadas do lust-Ich, seja sob a forma
do gozo recôndito da neurose, seja sob a forma do gozo explícito da
perversão. A confusão terminológica que pode se dar entre gozo e prazer
deveria nos alertar contra o didatismo mencionado acima, tendo em vista que
confusões dessa ordem nunca são inocentes. Definições estanques encontram
logo adiante dificuldades insuperáveis numa doutrina flexível e complexa
como a psicanálise. Que distinção se fará, a certa altura, entre prazer e gozo?
Por isso mantemos o uso freudiano do “prazer” para re-assegurar, em
contraposição, o critério ético do desejo. Ou seja, não é o prazer, aqui
entendido como relativo ao princípio do prazer e ao eu-prazer, que se institui
como critério último de uma direção de análise. Em relação a esta, o critério
do prazer constitui, o mais das vezes, senão sempre, um desvio e uma
resistência. Nestes termos, não difere do gozo, se dermos a este o sentido
corrente que se dá em algumas vertentes do pensamento psicanalítico. O
princípio do prazer, compreendendo o seu correlato no plano do sujeito, o eu-
prazer, é o responsável metapsicológico pelo recalque e pela experiência
neurótica. É o responsável, portanto, pela compulsão à repetição, que não é
outra coisa que a efusão da morte na vida. Essa efusão da morte na vida
decorre da incidência, na economia do desejo inconsciente, do narcisismo e
seus desdobramentos ideais, a saber, o eu-ideal e o ideal de eu.
A esta breve digressão sobre as razões para se manter a vigência de um
gozo real que não é o masoquismo, que é, ao contrário, o gozo de um saber
ativo, é suficiente acrescentar que a pulsão é o que destoa, o que se desvia
desses ideais narcísicos e sua vertente mortífera. É o sinistro que irrompe no
campo do imaginário egóico e que, se representa a morte nesse campo, a cova
do sonho, é a vida do desejo como tal, tanto em relação à sua procedência
pulsional quanto ao seu devir. Seria preciso, então, incluir na discussão em
jogo mais um termo, imprescindível ao conceito de pulsão – a “satisfação” – e
se perguntar se, neste caso, estaremos falando de prazer ou de gozo. E
acrescentar mais uma interrogação: se a psicanálise é sublimação, não
deveremos ser conseqüentes com o conceito e admitir que ela mesma implica
em satisfação? Chamaremos a satisfação de gozo ou prazer? Não é, portanto, o
gozo ou o prazer que nos fará situar a patologia ou a cura; ao contrário, é o
saber ético que decidirá, em cada caso, a modalidade de gozo em questão,
inclusive a que resulta deste saber e lhe é, ao mesmo tempo, intrínseca – a
originária. Dizemos que resulta e é ao mesmo tempo intrínseca porque o
decisório é o saber. Trata-se, é claro, de um savoir-faire em ato, daí sua

99
determinação ativa e ética. Trata-se, então, no nível mais alto da existência, de
um dizer, onde o verdadeiro é o verdadeiro real 133. Nada impede pensar que
assim o gozo é atingido na escala invertida da lei do desejo, como quer Lacan.
É a modalidade originária do gozo, tão originária quanto a lei do desejo. Tudo
já é dado de uma só vez, embora se decida por meio de uma escolha, também
ela originária. A dupla afirmação da arte é o conjunto de decisão e ato, sua
integridade.
Mas é possível insistir ainda que o gozo se refere ao além do princípio
do prazer, à pulsão de morte, e que é desta distância que se extrai a distinção
entre prazer e gozo. É nesse horizonte conceitual que se distribuiriam mais
uma vez o verdadeiro e o prazer, de um lado, e o real e o gozo (masoquista) de
outro. Com isto se perderia de vista, uma vez mais, que o prazer é relativo ao
princípio do prazer, e que este, na teoria – extraída, no entanto, da clínica – é
uma relação de compromisso entre morte e vida, o que significa, em termos
clínicos, que esse compromisso se expressa nas disposições neuróticas,
perversas e psicóticas da subjetividade humana. É preciso ler Freud
analiticamente, segundo as volutas conceituais de seu texto e os saltos e
passagens, às vezes abruptas, de uma investigação que se opera em vários
níveis, e entender que o além do princípio do prazer não diz respeito apenas à
pulsão de morte, mas também à pulsão de vida. O “além” quer dizer, para uma
linguagem clínica – de clínica analítica, bem entendido –, além do critério
suspeito (e vai aqui toda a dinâmica da suspeita freudiana, ponto de partida da
investigação psicanalítica) do princípio do prazer, e isto em nome de um ponto
de vista superior, anterior, decisivo, ético, que traz ao primeiro plano as
potências de vida e de morte. Eros não é o prazer, o que não significa que
exclua o prazer. A questão, todo o tempo, é de anterioridade, de comando e
subordinação.
Mais uma vez asseveramos o interesse da metapsicologia freudiana para
a intervenção analítica, acompanhando as observações oportunas de Pierre
Fédida sobre o assunto: “A qualidade de um texto metapsicológico está no
fato de ser sempre muito claro, de abrir a liberdade de pensar. Ele fala ao
psicoterapeuta ou ao psicanalista em sua prática, lida com as dificuldades que
essa prática comporta. (...) A importância que devemos atribuir a essa noção
de „metapsicologia‟ pode referir-se também a textos que são habitualmente
reputados como textos não psicanalíticos. Por exemplo, certos textos literários
apresentam um caráter metapsicológico e, mesmo na psicanálise, os textos de
psicanálise aplicada são freqüentemente textos de alto teor metapsicológico”.

133
Na crítica a Heidegger, Lacan não esclarece se quer aproximar o verdadeiro do real, sob a forma do
verdadeiro real, ou se quer manter, contra Heidegger, a sua distância. Acreditamos, de nossa parte, que há um
ponto em que essa junção é obtida, e que é nela que consiste a cura analítica.

100
A razão da utilidade dos textos e dos conceitos metapsicológicos reside no
fato de não serem apenas especulativos, de valor puramente teórico; ao
contrário, exploram um campo de condições pré-psicológicas, éticas e vitais,
ao qual se reportam a escuta e o ato analítico, encontrando ali seu esteio, seu
móvel primeiro. Os desenvolvimentos da teoria pulsional são desdobramentos
do ponto de vista clínico, ou seja, são os passos de esclarecimento do que seja
uma clínica psicanalítica, de qual é seu sentido, sua direção e envergadura.
A linha de sentido e o evento do dizer, uma vez assimilados à pulsão,
tornam-na inteligível e praticável clinicamente. Quando esses aspectos da
pulsão – ela tem ainda outros – não são levados em conta, o conceito se torna
obscuro e sua prática vacilante. Por que é assim? Não inventamos nada: toda
pulsão, considerada analiticamente, constitui um dizer na origem e como tal se
revela, de modo que a sua prática, por esta razão originária, é a única que faz
sentido. Um dizer é a expressão de um domínio e de um princípio, uma
primeira direção, algo como a terceira metamorfose do espírito em Assim
falava Zaratustra, quando o espírito se torna criança: “inocência e olvido,
novo começar, jogo, roda que se move por si própria, primeiro móvel,
afirmação santa” 134. Falávamos que o sentido é antes de tudo sentido de
direção, e isto se estende, é claro, a uma idéia de direção da análise.
Retomemos, por um instante, e a propósito dessa terceira metamorfose,
o caso de L, a mulher de luto parcial. Depois da sessão em que foi analisado o
sonho das meias pretas, ela se consulta com a médica que acompanha a
evolução de seu quadro ainda incipiente, e certamente controlável, de diabete.
Nesta ocasião, pergunta à médica – não sem observar, no relato que faz disto
na sessão, que no fundo sabia ser um assunto a se tratar em análise – o que
deveria fazer para não sofrer mais das dores que sentia pelo corpo inteiro,
quando acordava no meio da noite ou pela manhã, e que a obrigavam a se
levantar. A médica sugere uma troca de travesseiro ou de colchão, ou ainda
outra posição de dormir que não a usual. Tudo isso é besteira, pensa ela, a
médica não tem a menor noção do que acontece. No dia seguinte e nos
subseqüentes acorda sem as dores. É claro que sabia da origem psíquica do
incômodo físico, conforme a percepção de que a médica estava longe de
acertar o alvo e de que era assunto que devia destinar à análise; quis,
entretanto, conservar ainda a crença de que as sensações dolorosas não eram
do alcance do seu entendimento, isto é, da sua cabeça. Foi rápida a verificação
de que as dores no corpo pertenciam à idéia de estar só, sem um homem, ou
melhor, dado o seu luto já terminal, sem “aquele” homem. O importante era
perceber que se tratava dela, do seu modo de conceber as coisas, e que

134
Nietzsche, F., Assim falava Zaratustra, p. 29, Editorial Presença, Lisboa, 1972.

101
dependia dela falar, entender, concluir o luto, e não de outro (o ex-marido
distante, a médica ou o travesseiro recomendado). L conta, em seguida, na
mesma sessão, que se deparou com um fenômeno muito estranho. Já havia
acontecido uma vez e aconteceu de novo. Sozinha em casa, em dado
momento, o rádio se pôs a funcionar. Como era possível? Isto, refletia, não
poderia ser esclarecido pela análise. Mas o que ela pensava sobre o estranho
evento? De fato cabia a pergunta: como teria sido possível? Era preciso não
indagar por um fator objetivo que explicasse o fenômeno – ou que o rádio não
funcionava bem, ficando semi-desligado e semi-ligado por uma razão técnica
desconhecida, ou que sem se dar conta ela tivesse ligado o aparelho –, pois
estas vias de investigação não diriam respeito a ela enquanto sujeito pulsional
daquela cena misteriosa. Como ela afirma resolutamente não se tratar de um
espírito ou de um fantasma, pois não acredita nessas coisas, a pergunta
analítica se propõe nos seguintes termos: “não abordarei o fenômeno
extraordinário em si mesmo; indago apenas pela maneira enfática com que é
afirmada a descrença em espírito e em fantasma. Não quero absolutamente
sugerir que reveja esta descrença específica, considere apenas em relação a
quê, em sua vida, tem havido uma descrença decidida, análoga à descrença em
espìritos”. A resposta veio prontamente: “não acredito, de maneira alguma,
que um dia eu volte a ter um companheiro”. “Será que, tendo em vista o
fenômeno do rádio, não é hora de rever essa descrença, que não é senão a
crença de que sua vida afetiva terminou há dez anos atrás?” O extraordinário
do inconsciente é que, para uma leitura apropriada, o desejo expõe claramente
sua posição: denuncia, neste caso, a descrença ou a fé invertida, introduzindo
um elemento irracional, não ponderado e sem explicação na experiência do
sujeito. Este elemento corresponde, em primeiro lugar, à participação de outro
ser na dinâmica dos afetos e no plano dos corpos (a materialidade do som, do
rádio), e de outro ser, bem entendido, que até então se reduzia à condição de
fantasma, de espírito, isto é, a um ausente-presente, um ex. Mas, em segundo
lugar, o elemento estranho encarna o próprio desejo e sua potência
desconhecida. L não tem dúvida, neste momento, de que foi isto o que
aconteceu. O fenômeno do rádio se tornou secundário. De modo análogo ao
que se passou com as dores do corpo, o enigma físico – talvez alguém o
chamasse de quântico – reflui para o dizer e se resolve no entendimento. Por
isso dizemos que a pulsão é a cabeça em pessoa. Nela reside, finalmente, o
estranho, o inexplicável, a roda que se move por si própria. Não se tratava,
para L, de esperar ou sair em busca de um companheiro, mas simplesmente de
reabrir o que estava fechado, concluído, reduzido à expressão física, e revertê-
lo em luz e oxigênio. Reabrir a questão, para L, é a causa de uma alegria ativa,
baseada no saber.

102
Ao pensar a direção da análise e de la cure, Lacan enunciava os
princípios do seu poder, isto é, de sua força – lembrando, por exemplo, que o
sujeito, livre pelo preceito analítico para tomar a palavra, envereda
inexoravelmente pela trama dos significantes do seu destino até as suas
implicações mais remotas. Não há como fugir de si, isto é, da pulsão, pois ela
repercute em todos os níveis da experiência subjetiva conforme o grau em que
é praticada. Progredir em sua direção significa dirigir-se à sua elucidação e à
sua resolução prática. Nada faz mais sentido que isso, que é tanto mais
decisivo quanto mais o processo subjetivo avança e se aproxima de suas
condições pulsionais originárias. Nesta aproximação, a força ativa se esclarece
cada vez mais (a cabeça originária) e cada vez mais chega à altura do seu
poder, realizando o que ela pode. Dizemos “força ativa”, mas ela é também
consciência, existência, ato. Poderíamos evocar igualmente, com Nietzsche, a
força reativa, considerar que ela também é de origem, mas retornaríamos do
mesmo modo ao princípio ativo, por ser esse princípio que esclarece o
conceito de força (tanto ativa como reativa) e dá a direção clínica. Daí a nossa
fórmula quanto ao sentido e à força – que um se explica pelo outro. Não é só,
portanto, que a força dá o sentido, ou que o sentido de tal coisa depende, na
interpretação, da força que se apropriou dela; é preciso, quanto ao sentido,
começar antes, torná-lo imanente à força, dizer que ela advém do sentido na
mesma medida em que o sentido é o da força. A força é a força de uma
inteligência, e o sentido é o sentido de uma energia, uma vontade. Quanto
mais uma prática adquire sentido, mais força e consistência ela tem – e é nisto
que consiste a análise: a prática da força (ativa) é também a do sentido. É
claro, repetimos, que o sentido já não se confina ao campo das representações,
já não diz respeito ao bom senso e ao senso comum. Ele passa a ser o sentido
da atividade, informa sua direção e, ao mesmo tempo, exprime a sensibilidade
dessa atividade para consigo própria, o que chamamos também de saber ou
satisfação. Mas não se espere encontrar uma razão ou um sentido para a
existência dessa atividade. Ela existe fora do mundo, e é tudo.
É certo dizer que a direção da análise é dada pela pulsão. Se um lapso
de linguagem orienta a atenção analítica, que não o descarta feito um erro da
comunicação efetiva, e sim o acolhe como precipitado de saber inconsciente a
ser entendido, decifrado, é porque ele tem o valor de índice do movimento
pulsional. A verdade desse movimento guia o processo da análise. Mas não se
trata aqui de uma adequação do intelecto à coisa, e sim à Coisa, à Vida. A
análise, ela própria, não se distingue da prática da pulsão. Então a pulsão é
arte, é ciência? O lapso só interessa porque com ele ingressamos, não sem
alguma ousadia, no âmbito de uma prática onde o dizer se conjuga com a

103
ciência do vivo, conjugação que tende a se ocultar num enigma, sob uma
montanha de cinzas.

O saber da diferença

O saber da diferença apresenta pelo menos duas faces, uma voltada para
a sensação, o reinado das grandes e das sutis diferenças (“maçã cheia, pêra,
banana...”), outra voltada para uma diferença de plano, segundo a qual a
sensação deixa de ser o critério elementar e único da diferença. Esse saber se
inscreve numa história antiga, a história do pensamento no Ocidente, mas sua
projeção é, por todo o tempo, planetária, universal. No curso do pensamento
ocidental se fundou a separação, e também a discórdia, entre o supra-sensível
e o sensível, a idéia e o corpo. Em rápido sobrevôo, pode-se dizer que ao
supra-sensível, à idéia, associou-se a noção de unicidade, de identidade, de
fixidez, de ser, e ao sensível ligou-se a idéia da diversidade, da multiplicidade,
da diferença, o movimento incessante e o não-ser próprios do devir. Uma vez
que o supra-sensível, o ser, foi considerado o plano superior e normativo,
depreciou-se o sensível, a aparência, o vir-a-ser, e com eles a vida mesma. A
reversão do platonismo intentada por Nietzsche devolvia à vida o poder de
definir critérios e estabelecer metas. Com isso, o conceito de diferença avança
ao primeiro plano. Deixa de se referir apenas ao sensível, ao que é apreendido
pelos órgãos dos sentidos, ao orgânico e suas múltiplas formas de apreensão e
configuração do mundo, às pulsões parciais e suas diferentes perspectivas.
Abrangendo a pulsão de vida ou a vida inorgânica, alcança a auto-
determinação ética enquanto existência, e decide assim pelo valor dos valores.
Uma coisa é o corpo constituído por zonas erógenas (regiões de contato
com o exterior, bordas, aberturas, superfície da pele), o corpo como
receptáculo da libido, como superfície de inscrição, que se deixa cifrar e
decifrar simbolicamente, corpo imaginário, psicofísico, psicossomático,
superfície de sentido sobre a qual se desenrolam as redes dos signos, a história
de cada coisa e seus sentidos; outra é o corpo feito de uma única peça, corpo
pleno, íntegro, supra-sensível, o que, como bem diz o termo, não exclui o
sensível, nem as histórias e seus sentidos, mas dá às narrativas seu sentido
superior. A superfície, experimentada agora como limiar ou fronteira, se
define – inclusive no sentido visual de melhor definição da imagem – como
mudança de plano. Quando se fala em “corpo” evoca-se um mundo e suas
dimensões, suas dobras, suas linhas de força, seus caminhos, suas paisagens,
suas camadas geológicas e suas temporalidades relativas. Mas todos esses
aspectos do mundo vivo e sensível transformam-se efetivamente em mundo,
em jogo espiritual, sob o golpe de uma real e decisiva lucidez, uma espécie de

104
terceira visão que aproxima o próximo e o longínquo, a origem e o porvir.
Este novo domínio é o domínio da arte e do tempo, bem como o de um novo
começo, roda que se move por si própria... Dizer assim, porém, esclarece
muito pouco essa roda, talvez adense as brumas, pois seria preciso demorar-se
na concepção do tempo em jogo, apurar o sentido e a natureza do seu domínio.
Retomemos as considerações acima acerca do sexo, do saber e do
sentido, que nos parecem ainda muito genéricas. Existem nuanças que não
devem ser esquecidas, derivações psicopatológicas no âmbito sexual, por
exemplo, que certamente decidem pelo saber e pelo sentido ao nível da
experiência subjetiva. Todas as modalidades de gozo, perversas e outras,
esboçam um horizonte, um limar para o saber, e a experiência do sentido
transcorre no interior desse círculo esboçado. Poderíamos dizer que tal limiar,
tal círculo de saber e poder (a ser entendido também como permissão, como
autorização) indicam critica e clinicamente até onde se aventura a
subjetividade na experiência da diferença, enquanto esta é reportada à máxima
diferença e ao que, por conseguinte, determina o valor dos valores e a ordem
originária dos investimentos afetivos. Se Lacan foi sábio ao enunciar que o
sujeito vai muito além do que o indivíduo experimenta subjetivamente, é na
medida em que a diferença como tal, também designada de pulsão, reverbera
em todas as fronteiras subjetivas sob diferentes aspectos, isto é, sob a forma de
diferentes enigmas que, o mais das vezes, nem sequer chegam a ser
experimentados como tais. A vida subjetiva pode se encontrar muito distante
de sua decifração e permanecer, assim, inteiramente alheia ao saber ali
reunido. Essa vida diminui, extingue-se pouco a pouco, na mesma medida
desse alheamento. O saber inconsciente, porém, não é apenas um
conhecimento interior, é sobretudo uma prática.
Na teoria lacaniana, a reverberação da diferença é indicada pelo estatuto
do objeto a em suas diversas modalidades. Estas são, na verdade, as leituras
possíveis do que determina o valor dos valores, o que se chama em teoria
psicanalítica sua carga libidinal. Sejam leituras experienciais ou teóricas,
efetuam-se conforme os diferentes graus de aproximação do campo irredutível
da diferença – ao qual denominamos, por isso mesmo, de originário.
Mais uma vez Sade. Dizer, como faz Klossowski em sua descrição da
ascese sadiana, que “são os mesmos impulsos que nos intimidam ao mesmo
tempo que nos insurgem” 135, incitando ao gozo assim como, uma vez ociosos,
ao remorso, conforme se apliquem às imagens do ato promissor de gozo ou às
imagens do temor, da compaixão, do horror e do arrependimento pelos atos a
cometer ou já cometidos – dizer isso não permite vislumbrar ainda, como

135
Klossowski, Pierre, Sade meu próximo – precedido de O filósofo celerado, p. 32, Brasiliense, SP, 1985.

105
reconhece aquele autor, o rosto originário das “forças impulsionais”, pois o
ato promissor do gozo é nitidamente o da transgressão, o do ultraje, e conta
com a idéia da lei moral e do pudor para se exercer em sua plenitude. Só assim
o ato responde ao desejo sádico. As “forças impulsionais” são lidas e
experimentadas perversamente, isto é, através do crivo da moral em curso e
constituem “o mal” do ponto de vista da consciência cristã. Eros já foi
envenenado há muito tempo. A moral da apatia em Sade consistirá, então, em
opor a reiteração do ato violento tanto ao gozo perverso como à virtude que
retorna sob o aspecto do horror e do remorso, de modo a escapar à dupla face
da perversão e atingir uma pureza, uma espécie de estado de natureza
originário. Só pode atingi-lo, porém, pela destruição do outro e pela
autodestruição. Em Sade, a pulsão de morte, votada à extinção do ser, é
elevada a sistema. Seu alvo: a redução da diferença a zero – o grau zero da
apatia. Posição difícil a de Sade, a busca de uma de santidade às avessas,
como somente Genet, à sua maneira, saberá ousar.
Do mesmo modo, a proverbial insatisfação do desejo é um equívoco
histérico que traduz, tão somente, a ênfase no objeto e na identidade, ou seja, é
um indicador do quanto o sujeito se mede pelo objeto (nunca encontrável) e
pela identidade (sempre subvertida) e não pela tendência. Diga-se de
passagem, este equívoco em especial não deveria servir de fundamento à razão
analítica e de ponto de convergência das interpretações, como é corrente
observar em algumas orientações psicanalíticas. Motivadas pelo culto
nivelador da falta, limitam-se a uma leitura superficial do desejo e a um
emprego neurótico do instrumento analítico. O que falta, na verdade, é
proceder a uma raspagem do inconsciente, como se diz em O anti-Édipo. Os
exemplos se multiplicam. Falar de um luto primordial como ponto de partida
para o desejo é incorrer ainda na lógica de um gozo inaudito, aquele que seria
primordialmente visado – designado, em alguns autores, como um “auto
bastar-se” – e que, sendo impossível, afeta o desejo de uma falta constitutiva.
Pouco importa se esse gozo infinito ou fechado, de caráter fictício, é situado
na origem ou no fim, pois se trata em ambos os casos de uma visão defensiva
e neurótica do gozo e, sobretudo, do desejo. O sujeito de desejo surgiria da
renúncia a um gozo primordial que não passa de ficção, que é proibido e, no
entanto, impossível. Não que os sujeitos não se deixem levar por tal ficção e a
ela subordinem sua condição desejante, mas não é esta ficção que explica, em
última instância, o desejo. A posição de desejo não é a de renúncia a um gozo
finalmente ilusório. É uma posição de saber, de convicção, de pesquisa, de
criação, ainda que possa compreender a renúncia a um determinado gozo
como medida de esclarecimento de sua própria medida. O melhor que se pode
dizer é que uma inclinação ao gozo fictício obscurece a instância do desejo.

106
Para uma decantação do decantado objeto a: do mais idealizado, a
potência, o falo, a ser alcançado ou já perdido (objeto de identificação na
melancolia), passando pela mulher como objeto do desejo erótico, ao mais
virulento, capaz de causar a perda dos bens mais estimados, ou ainda, ao mais
desprezível, seja sob a forma do objeto de sevícias masoquista, o farrapo, o
dejeto humano, seja sob a forma do corpo flagelado do asceta e do ser votado
à extinção do suicida.
O caso da jovem homossexual relatado por Freud 136 oferece elementos
em profusão para se pensar a questão do objeto a (a de autre) e seu tratamento
clínico, tendo em vista que o tema do objeto a é o da diferença. A jovem,
numa séria tentativa de suicídio, atirou-se de uma ponte após o encontro
fatídico com o pai, encontro do desejo com a lei, diz Lacan, em seu
comentário à exposição de Freud 137. O que foi este encontro? Tudo leva a crer
que era um encontro previsível, pois aconteceu no caminho que o pai fazia do
escritório para casa. Ela vinha acompanhada de sua amada, mulher alguns
anos mais velha, de nome respeitável na sociedade, porém de uma conduta
repreensível para a moral estabelecida, quando cruzaram com ele. O olhar
irado que o pai lhe devolveu, declarando aversão à sua opção invertida, teve o
efeito de desarticular a cena. Esta era mais uma versão representativa da cena
geral, que se constituía, dia após dia, como um verdadeiro acting out: a jovem
comportava-se com sua dama ao modo de um cavalheiro, no mais
característico estilo cortês, inclusive movida pelo desejo de salvá-la. Embora
apresentasse indícios anteriores, sua conduta homossexual se acentuou
visivelmente após o nascimento de um irmãozinho, e devia ser, conforme a
análise de Freud, uma resposta ao pai pelo amor não correspondido, um
produto do ressentimento e da vingança por não ser ela a escolhida, e sim a
mãe, com quem mantinha uma relação de rivalidade. Ora, por ocasião do dito
encontro, e em face do constrangimento público e da inconveniência social
que a reprovação do pai representava, a senhora a quem devotava seu amor,
tão logo se inteirou do motivo daquele olhar, rechaçou-a no mesmo instante,
decidindo que não mais se veriam. Foi quando ela se atirou da ponte. A cena
do acting out, como tantas outras que mobilizaram os pais a procurarem a
psicanálise, é, toda ela, a encenação do falo, no sentido de que realizaria a
fantasia de vingança contra o pai ao mostrar – para quem quisesse ver, mas
muito especialmente para ele – a posição viril do amante frente ao objeto
feminino altamente valorizado. Mas a jovem precisaria do apoio receptivo da
mulher amada para viabilizar seu desejo cênico; disso dependia sua posição de
desafio ao pai, a eficácia de sua vingança e sua própria existência nos termos
136
Obras completas, op.cit., vol. 3, Sobre la psicogénesis de un caso de homosexualidad feminina, p. 2545.
137
O seminário, Livro 10, A angústia, op. cit., p. 122 e seguintes.

107
em que pôde sustentá-la até aquele momento. A decepção que teria sofrido
com o pai voltou a se repetir, pois a amada, longe de aceitar a sua atitude
heróica em detrimento das conveniências, retirou-se (exit) e a cena se
decompôs. Se a cena lhe permitia existir, a partir dessa ruptura perdeu o chão
e lançou-se da ponte. Identificada inteiramente ao a, para falar como Lacan,
deixou-se cair, como coisa sem valor no mundo.
Pode-se pensar com Freud e Lacan que o pivô da história clínica dessa
jovem é o desejo de ter um filho com o pai, seguido da decepção com o
nascimento do irmão. É edipiano, óbvio. Freud insistia na orientação
normativa da sexualidade de sua paciente, mas sabia que ela mentia mesmo
em sonhos quando lhe dava indícios de seguir esta direção. Ou seja, ela
escapa, e Freud, por sua vez, como soube ver Lacan, a deixa cair,
niederkommt sie 138, passa ao ato, transferindo o caso a uma colega
psicanalista. Freud assinala já no início de sua exposição que a análise não
existe para satisfazer ideais culturais, neste caso, o dos pais, cuja expectativa
era de ver a filha desistir de sua preferência sexual algo aberrante,
especialmente pela maneira declarada e até escandalosa de exercê-la para os
padrões da época. Mas apesar desta ressalva ética, é inegável que Freud
buscava isto, tanto que os sonhos e os bons propósitos de sua paciente
pareciam responder aos seus anseios terapêuticos. Ele não era tão tolo para
acreditar nesses propósitos, ou mesmo surdo, pois ela era explicita em dizer
que, uma vez casada conforme a tradição, saberia despistar o incauto marido e
se dedicar mais livremente às mulheres, seu verdadeiro objeto de amor. O
incauto, o tolo, o enganado irá constituir uma série: o pai, Freud e o futuro
marido, série monótona, idêntica à que se desenvolve no caso Dora, em que o
analista se coloca também ao lado do marido e do pai. O que Freud não
considerou, e nem Lacan soube discernir com clareza, é que a questão da
jovem homossexual se propunha ao nível da existência, isto é, do seu valor (o
auto-afeto). Tanto o falo como o dejeto indicam que se trata do valor, mas o
que subsiste não tocado, e que Lacan identifica como a questão da
feminilidade, remete à possibilidade de que a jovem exista em sua diferença
irredutível, e que seja como tal considerada, ouvida.
Freud chega a detectar uma preferência evidente do pai pelo seu filho
temporão, do sexo masculino. Em que termos ela poderia, a partir daí, se fazer
reconhecer? O móvel pulsional, porém, não é o do reconhecimento senão por
equívoco histérico; o que importa é a afirmação da diferença e o seu correlato
clínico, a escuta analítica, que é a dobra mesma da dupla afirmação. Mas
vamos por passos na elucidação do equívoco. A mãe era, de fato, a escolhida,
138
Niederkommt sie, como aparece no texto de Freud, pode ser traduzido por “deixá-la cair”, mas também
como “dar à luz”. Idem, p. 124, e em especial a nota do tradutor.

108
e sempre em benefício daquele filho prestigioso. Restava à jovem, portanto,
compor uma cena que tinha, afinal, o caráter de falo, de eu ideal, uma cena
especular onde desafiava o pai, sem deixar, no entanto, de estar sob a sua lei,
como diz Lacan. Por um lado, agia como o filho que ela devia ser, por outro,
como o amante, o homem dedicado inteiramente à mulher, com desvelo,
lealdade e até sacrifício – no caso, de seu narcisismo, de sua beleza, de seus
cuidados consigo mesma. Freud tem razão em ver aí a sobrevivência do antigo
amor pela mãe, com a função suplementar de neutralizar o seu ódio a ela. Tem
de tudo, mas, por isso mesmo, cabe discernir o essencial, o que move todas as
peças, e que é a questão da existência – não a do eu homossexual, mas a do
sujeito do inconsciente. Falsa existência? A mentira, a enganação – que vão
desde os subterfúgios para ver sua dama até os sonhos enganadores – , mas
também a exposição pública a que ela se entrega na composição da cena,
introduzem a questão da verdade sobre ela, sobre a sua existência, a qual só se
deixa entrever, como um indício do real, na passagem ao ato – ela não serve
para nada. É um não-existir em ato ou o ato de não existir, e que se reporta,
em última instância, ao sujeito do inconsciente – ao Es, à pulsão de vida que,
na operação analítica, se refere mais ao ato que ao ser. Digamos que o ato é o
coração do ser. Faltaria, então, só meia volta para constatar que o que não
serve para nada pode ser o mais valioso, e concernir ao ato de existir, ao
existir em ato. Ora, do mais valioso também se diz que não serve para nada, e
por uma razão muito simples, ainda que sua experiência não esteja tão à mão –
o mais valioso decide o uso de todas as coisas, não sendo, ele próprio, sujeito
a qualquer uso. E por isso não serve para nada, é sem explicação, sem sentido,
verdadeiro não-senso.
O problema do sonho mentiroso é especialmente revelador no caso da
jovem homossexual. Freud elucida o que poderia causar espanto – o
inconsciente engana? – com a distinção entre sonho e inconsciente, uma vez
que o sonho compreende uma elaboração complexa, uma composição onde
entram elementos pré-conscientes que deformam e recobrem a mensagem
propriamente inconsciente, relativa ao desejo. A questão em jogo de imediato
se resolveria se o desejo fosse o de enganar, mas isso faria do propósito
consciente ou pré-consciente o motor do sonho. A jovem tinha perfeita noção
de seu interesse em ludibriar, como declara explicitamente que o faria com um
futuro marido, isto é, o mesmo que faz com o pai e, por meio do sonho, com
Freud. Exceto nos chamados sonhos infantis, o sonho não é o desejo
inconsciente, mas o modo como o desejo inconsciente se apresenta. O fato de
que os sonhos, desenvolvida a sua interpretação, previssem a cura da inversão
sexual, expressassem a alegria da jovem pelas novas perspectivas de vida e
revelassem, como observa Freud, seu anseio por um homem e por filhos,

109
entrava em franca contradição com as assertivas dela na vida desperta, o que
até poderia reforçar a interpretação dada, supostamente fiel às motivações
inconscientes. Mas Freud os denunciou como falsos e hipócritas, destinados a
enganá-lo – tal como ela enganava habitualmente o pai –, e viu que além da
intenção de desorientá-lo deviam abrigar um desejo de conquistar o seu favor,
de agradá-lo e de obter dele uma boa opinião, talvez com o propósito de, em
seguida, desapontá-lo ainda mais profundamente. É que um pensamento pré-
consciente e mesmo consciente pode ser re-moldado por impulsos
inconscientes, e assim experimentar uma deformação típica da elaboração
onírica. No caso da jovem, tratava-se de um desejo inconsciente, antigo, de
agradar o pai. “As duas intenções, de enganar e agradar o pai, procedem do
mesmo complexo; a primeira nasce do recalque da segunda, e esta é
reconduzida àquela pela elaboração onírica” 139. Freud, pelo encaminhamento
que dá ao caso, privilegia a intenção de trair, e embora elucide o fenômeno
onírico e sua relação com o inconsciente, deixa este de lado, deixa-o cair,
somos tentados a dizer, não exatamente porque o inconsciente revela um
desejo amoroso pelo pai, mas porque reintroduz a dimensão da verdade. Em
que pesem suas advertências éticas sobre a autonomia do processo analítico,
seria preciso que Freud não fosse mais um na série constituída por pais e
mestres. Por meios inconscientes, a jovem lhe dizia que, além do seu
homossexualismo decidido, havia outras disposições amorosas, uma fixação
infantil à mãe, supostamente na origem da atual conduta sexual, desvelos de
ternura maternal com um garotinho, certa paixão pelo irmão imediatamente
mais velho e o amor ao pai, também antigo, vivo e intenso o suficiente para
causar-lhe um profundo ressentimento. Ora, o fato de se sentir pouco estimada
por ele, isto é, pouco estimada em seu valor (=potência) existencial, ainda
mais incerto pelo modo como se constituiu sua posição solitária de filha entre
os demais irmãos, é certamente um fator determinante dos sonhos mentirosos.
Esse valor é primeiro estimado no âmbito dos afetos originários. E é no nível
desses afetos que a história começa e é em relação a eles que ela desanda, se
desconstrói e se reconstrói, sem que eles deixem de ser, todo o tempo, um
norte e uma medida. Os sonhos enunciam antes de tudo uma pergunta dirigida
a Freud, e neste sentido ele estava certo, eram destinados a ele. Irá compor a
série de pais e mestres ou irá ouvi-la, de acordo com a ética analítica? Se
Freud sustentasse a análise por todo o tempo não se colocaria no lugar daquele
que a jovem quer enganar e, com o passar do tempo, se ele ignorasse essa
intenção, desapontar ainda mais profundamente. Ela queria enganá-lo sim, se
ele fosse mais um na série. E ele era? Os sonhos eram de fato um problema

139
Obras completas, op. cit., vol. 3, p. 2557.

110
colocado pelo desejo. A pergunta enunciada acima, móvel último dos sonhos
enganadores, era um ensaio de transferência e já a transferência inteira. Só
faltava que Freud a aceitasse, à transferência inteira; ou melhor, que pudesse
aceitá-la.
Se é certo, como diz Lacan a propósito desse caso, que existe uma
glória do pai, a jovem homossexual, rebelde e desafiadora, estava ainda sob o
efeito de seu brilho ofuscante. A passagem ao ato ensaia uma evasão deste
campo, mas ainda sob os critérios desse campo, e é nisto que compreende uma
espécie de juízo final. Ao despedi-la, Freud reedita o juízo. É óbvio que a
análise deve conduzir a outra saída.
Do mais valioso ao rebotalho, é sempre de um alto valor ou do valor dos
valores que se trata no tocante a esse objeto insituável, inquietante, a exprimir,
em última instância, em todas as suas vicissitudes, a força constante
(konstante Kraft). As vertentes do sentido são definidas em relação às
posições do objeto a em cada caso. Se houver idealização de uma figura
parental, de um ser do mesmo ou do outro sexo, ou mesmo de uma situação de
vida que recubra todos os investimentos afetivos, diremos que os
acontecimentos subjetivos se conformarão ao sentido dessa idealização; ela
será o móvel último e a explicação última das experiências do sujeito. Se o
objeto erótico, seja uma mulher ou outro, decidir sobre o destino que é dado a
cada evento da vida, pelo menos aos mais importantes, veremos que no fundo
desses eventos se estende a linha que os estrutura, e é aquela que nasce e
aporta na relação erótica. Pode-se dar ainda que as ações em geral
encaminhem uma única e insidiosa ação suicida, sob a forma de uma doença,
de uma depressão, de um acidente ou de um desfecho suicida planejado. É
verdade que esses sentidos desvelados constituem, a cada vez, os limites de
um estrato e um grau determinado de inconsciência. O objeto a de Lacan
fechava um campo e, por assim dizer, abria outro, mas abria outro na medida
em que se dissipava na pulsão, como saber e falência do sentido (daquele
estrato, bem entendido). Alguém pode morrer de fato por não ter decifrado o
enigma de um grau de experiência que apontava para a morte, e ter deixado,
assim, de penetrar em outro estrato, onde as questões já seriam outras. Morre-
se por ignorância e por falta ética 140. Nada impede de pensar que esses

140
Binswanger, com base em sua analìtica existencial, pensa algo similar com a noção de “exaltação”: “(...)
exaltação significa aqui mais que uma mera classificação, enquanto não somente se trata de uma
impossibilidade do continuar no sentido da experiência, senão de um estar imobilizado e fascinado em um
certo degrau elevado da experiência humana. A „escala da altura‟ – tão extremamente móvel – desta
problemática não é compreendida aqui em sua essência; é imobilizada ou absolutizada em determinado
„problema‟, um determinado ideal, uma determinada ideologia. Se aqui ainda se faz „experiências‟, elas já não
são valoradas, nem se as faz valerem como tais, pois „o valor‟ está fixado de uma vez para sempre”.
Binswanger, L., Tres formas de la existencia frustrada, p. 28, Amorrortu Editores, Buenos Aires, 1972.

111
estratos são construções, cada qual realizada ao seu tempo, desde que se tenha
em vista o poder obscuro e pré-existente de determinação, o que torna o
problema da construção – de modo algum superado – mais delicado, mais sutil
que o da construção de uma casa segundo uma planta pré-existente. Só se
constrói quem se é, o que passa a ter o sentido de uma reconstrução. Às vezes,
no entanto, pareceria mais uma reconstituição, ou mesmo uma conquista.
Possuir sua própria potência. Com efeito, também se conquista quem se é,
como se pode perder de vista, de vez, quem se poderia ser. A expressão “quem
se poderia ser” é justa, pois não há garantia de que se seja quem se é – ou, em
outras palavras, que se exerça aquilo que se pode.
Scott Fitzgerald escreveu um pungente depoimento sobre o enigma de
quem se é ao recordar e, de certo modo, homenagear, seu amigo íntimo Ring
Lardner, dois anos depois de vê-lo à beira da morte num leito de hospital,
contra todas as expectativas. “Jamais senti que o tivesse conhecido o bastante,
nem que alguém o conhecesse – não era uma sensação de que havia nele mais
substância e que ela deveria aparecer, era antes uma diferença qualitativa,
como se, por alguma inadequação em nós mesmos, não tivéssemos penetrado
em algo não-resolvido, novo e inédito. É por essa razão que desejamos que
Ring tivesse escrito mais sobre o que havia em sua mente e em seu coração.
Isso o teria conservado por mais tempo entre nós, o que por si só já seria
bastante. Mas eu gostaria de saber o que era e agora vou continuar a desejar...
o que Ring queria, como ele queria que as coisas fossem, como ele achava que
as coisas eram?” 141
Uma interpretação consciente e sensata dos fatos pode não estar de
acordo com os atos. São estes, dos acidentes aos lapsos de linguagem, os
elementos de precisão analítica, o meio fidedigno de determinação do sentido
oculto. Este, contudo, também vela, e pode encobrir um estrato inteiro. Muitos
são os estratos, e seu conjunto confina com o que não é mais estratificado.
O objeto a é o recorte da pulsão no campo do Outro, do mundo ou da
cultura, é o seu modo de captura na ordem do discurso e nos dispositivos
políticos, e como tal oferece, ao mesmo tempo, um testemunho direto da
divisão subjetiva e um testemunho indireto do que sobra fora do mundo. É a
diferença, porém fagocitada. Lacan dizia que seu objeto a era sempre um
único objeto, aquele que faz obstáculo ao imaginário e sua tendência
englobante. Ele constitui furo, falha, diferença. O que denominamos captação
da pulsão no campo do Outro é exatamente esse englobamento imaginário. Se
a captação não é definitiva, isto não a impede de se exercer, compondo uma
imagem e uma idéia daquilo de que não se tem idéia nem imagem. Não é por

141
Fitzgerald, S., Crack-up, p. 42, L&PM, Porto Alegre, RS, 2007.

112
ser imaginário que esse englobamento não se efetua em prática. Tudo se
pratica. Uma pessoa que viu, repetidas vezes, a sua manifestação de vida mais
singular – seja uma atitude humanitária ou uma obra poética – ser tratada de
maneira ligeira e rude no seu meio familiar e social, pode desenvolver, se
alguma fragilidade pessoal a predispuser a isto, um delírio de perseguição em
que suas palavras, seus enunciados de modo geral, passam a sofrer uma
deterioração imediata, sobrevindo-lhe do exterior, em qualquer cotidiano
incidente, como agressão e zombaria. Como se capitulasse frente a um mundo
inóspito que, por sua vez, tomasse a dianteira, expropriando-a de suas palavras
e servindo-se delas, não sem transmutá-las em signos hostis, venenosos.
Digamos que se trata de um delírio interpretativo francamente persecutório,
permeado de alucinações auditivas, mas isso apenas evidencia um modo de
captação da experiência pulsional pelos dispositivos micro-políticos do socius.
Essa experiência pode ser neurotizada, pervertida ou psicotizada, de acordo
com um procedimento que, sendo intrínseco à captação mesma, é a razão de
seu sucesso. Mas quem quer que sofra esse naufrágio não é inocente de sua
sorte. A presunção de domínio sobre uma ação ou uma realidade que estava
longe de ser conhecida (eis um tipo de fragilidade) pode perfeitamente resultar
na falência da condição de dizer, a par de uma irrupção incontrolável das falas
mortíferas que desqualificam, as “falas impostas”. Os sentidos de partida já
não são os de chegada e, se estes prevalecem, a morte subjetiva é iminente. É
possível reduzir a zero a diferença? Há toda uma graduação do sentido até sua
degradação terminal, de acordo com as vicissitudes da pulsão no campo sócio-
histórico. O sentido, quando não é mais o sentido originário da pulsão, é
apenas uma ponte ficcional, uma fantasia de união com a qual se conjuga a
pulsão e o mundo, a pulsão e a cultura, servindo de esteio a toda sorte de
compromissos de bom senso e de senso comum.
No delírio persecutório que descrevemos o compromisso parece
desfeito; há uma dissonância violenta entre o que o sujeito diz e o que lhe
retorna da sua mensagem. A objetivação de suas palavras não se distingue
mais de uma trama de invasão desconsiderada, segundo a qual a intimidade
(ou o fora de toda identificação, a diferença existencial) é vivida como
devassada, expropriada, quando precisaria ser discernida e decididamente
exercida. Mas o que faria o desejo cair nessa armadilha, senão a força de uma
idealização? Do ponto de vista pulsional, aí residiria a falta ética. Por
exemplo, idealização da união referida acima, adesão a algum ideal de eu que,
como instância de autorização, continua em vigor, coexistindo com a
decepção sofrida. Há sempre o vetor niilista do surto psicótico, precariamente
recoberto pelo delírio. O amor se converte, a todo o instante, em derrisão.
Como se a boa fé do amor se visse, de repente, drasticamente abalada, mas se

113
conservasse mesmo assim. Continuar acreditando no amor quando os seus
signos se mostraram profundamente enganosos... O que demonstra a acuidade
freudiana em constatar a incidência da atitude renegatória não só nas
perversões como também nos processos psicóticos. Enquanto nos primeiros a
transgressão confina com a lei na produção de um mesmo objeto fetiche,
nestes a experiência da crença obstinada e a de sua falência aguda compõem
um único flagelo. Crença e falência perfazem o conjunto do delírio de intrusão
Essa mortificação não cessa enquanto não se operar a dita retificação
subjetiva, ou seja, o retorno à pulsão ou o retorno da pulsão, que é igual ao seu
exercício. É o caso, desta vez, do sujeito que sustenta a todo custo, frente a um
diagnóstico opressor, formulado por uma medicina psiquiátrica aos seus olhos
incauta, a idéia de que teve, não um surto paranóico-esquizofrênico, mas um
surto mediúnico, o que é inteiramente diferente.
A captação de que falamos tende a ser subvertida pela escuta analítica,
na medida em que esta se volta à ordem originária dos afetos. Inversamente,
essa escuta pode ser solapada pelas modalidades reiteradas de captação de um
dizer – o qual, possivelmente, subsiste em estado crítico, beligerante – e sua
redução a algo semelhante ao que Lacan chamou, no seminário O sinthoma,
de “falas impostas” 142. O estranho é ver que nesse momento do Seminário o
próprio Lacan exemplifica a passagem da escuta analítica à captação alienante
da maneira mais infeliz possível, ou seja, demonstrando como o analista, no
caso ele mesmo, pode ser a instância (possivelmente ideal) de transmutação do
dizer em fala imposta. Como Lacan não viu, e parece de fato ignorar, que o
sujeito que ele diz atender e que se auto nomeia “telepata emissor”,
exprimindo deste modo a impressão enlouquecedora de que todo mundo era
avisado de suas mais ìntimas reflexões, inclusive sobre as “falas impostas”, a
ponto de não ter mais segredos, nenhuma reserva, o que, diga-se de passagem,
o teria levado a uma tentativa de suicídio – como, repetimos, Lacan não viu
que este paciente era objeto de uma apresentação de caso onde,
evidentemente, achava-se exposto a uma fala – a de Lacan – que se servia da
sua mas não era mais a sua, a uma fala imposta? Essa passagem do Seminário
faz lembrar a menção irônica e crítica de Ronald Laing, no início do livro O
eu dividido 143, a uma apresentação de caso realizada por Kraepelin, onde este
não ouve que o delírio do seu paciente esquizofrênico, descrito como alheio à
realidade, se referia à situação presente de exposição e de objetivação a que
era submetido. Um descaso como o de Lacan lança uma suspeita sobre o que,
de modo geral, se pensa estar em jogo numa escuta analítica.

142
O sinthoma, op. cit., p. 92 e 93.
143
Laing, R. D., O eu dividido, Vozes, Petrópolis, 1978.

114
O sentido simbólico-imaginário (fora do real) é o sentido da fantasia, é a
própria fantasia de união com o Outro, o mundo e os outros, todavia desfeita
ou profundamente abalada nas experiências psicóticas. Mas essa união, cujo
aspecto mais imediato, mais superficial, é o da comunicação, é possível? É
viável uma junção da pulsão ao campo do Outro, da ex-sistência – como
escreve Lacan para demarcar a separação – e do mundo? O sentido simbólico-
imaginário e a fantasia em que ele se resolve asseveram, por sua própria
natureza, que não. Sobra o real. O objeto a de Lacan, na qualidade de ser
sempre o mesmo, não tem outra função que sustentar a denúncia dessa
obstinada ficção, tão obstinada quanto a pretensão de captura total de que
falávamos há pouco. Essa obstinação é muito comum e parece resguardar uma
certa economia do socius. A impressão freqüente de não se dizer tudo,
inclusive e muito especialmente numa análise, decorre, em parte, das
resistências que se opõem à palavra, em parte da fantasia de que existe uma
totalidade a ser dita, e de que é possível dizê-la. Mas existe uma incursão
vitoriosa nesse campo de relações instáveis entre a pulsão de vida e o mundo.
Trata-se da sublimação, e por um motivo oposto ao das fantasias de
completude, na medida em que estas são fixações ou estases do processo
pulsional. A sublimação introduz diretamente uma diferença no mundo, um
ponto de vista insuspeitado, o qual se caracteriza, essencialmente, pelo poder
de reabri-lo e mantê-lo em aberto. Kafka e Dostoievski inviabilizam para
sempre definições exaustivas do mundo humano e da pulsão. E é por isto que
a comunicação (de inconscientes) em análise é bem sucedida.
Daí a visão sustentada por certo número de psicanalistas 144 de que os
diversos sentidos aos quais se chega em análise a propósito de um dado
sintoma são equivalentes e, finalmente, arbitrários. Todos já compreendem a
derivação da experiência pulsional pelo campo sócio-histórico, já denunciam
sua captação, sua père-version. O sujeito é alcoólatra porque na infância seus
pais se separaram, mas também era uma forma de eliminar a ansiedade frente
aos colegas e amigos. Havia também o fato de seus pais, duros, explosivos,
castigarem-no violentamente na infância e no início da adolescência. E o
alcoolismo público e quase sempre escandaloso do pai não estaria, mais que
os outros fatores, na origem de sua dependência? Como decidir pelo sentido
determinante? Mas, na verdade, os sentidos não se propõem de modo aleatório
e equivalente, ao menos não deveria ser deste modo. Se a análise é conduzida
adequadamente, se ela é conduzida no sentido da pulsão, da diferença

144
Por exemplo, Colete Soler, (em Variáveis do fim da análise, p. 108, Papirus, Campinas, 1995): “È, pois,
um problema para a psicanálise, porque ela opera com o sentido, dá sentido aos sintomas.. Mesmo que seja
para reduzir o sintoma a seu centro de non sense, este passa pela elaboração do sentido. O inconveniente é que
este „dar sentido‟ tem o mesmo procedimento que o delìrio; e assim podemos dar sentido para tudo”.

115
absoluta, os sentidos se encadeiam e se ordenam segundo a força do sentido
superior, mesmo que este, no seu próprio nível, neutralize ou dissolva os
anteriores. Mais profundamente, porém, ele os redime a todos. É que ele era o
pressuposto de todos eles, tanto quanto a razão constante de sua subversão.
Aproximando verdade e poesia, Hölderlin descreve essa ordenação do sentido
pulsional de modo cristalino: “A verdade mais verdadeira é, unicamente,
aquela em que também o erro torna-se verdade, na medida em que a verdade
dispõe do erro no todo de seu sistema, em seu tempo e lugar. Ela é a luz que
ilumina tanto a si como a noite. A poesia mais elevada é também aquela em
que o não poético se torna poético porque, no todo da obra de arte, se diz no
tempo e no lugar oportunos”. 145
Em seu próprio nível, o sentido pulsional não coincide com nenhuma
das versões que recebeu no campo sócio-histórico. Na verdade, por ser
originário, é inexplicável. Se resulta de todos os outros por uma espécie de
exaustão dos sentidos, é também o que eles velavam. E por isso existe uma
direção de análise. Não vem ao caso saber, observa Soler, as razões pelas
quais a menina anoréxica não fala, pouco importa os sentidos de sua anorexia;
interessa fazê-la falar, como dizia Lacan em seu seminário 11 146. Ora, é
exatamente na reconstituição de uma eficácia prática, na medida em que se
reporta à atividade imanente denominada pulsão, que reside a dobra ou o
sentido pulsional.
Os sentidos de uma história individual, bem como de cada evento dessa
história, podem ser vários, como inclusive é o caso do sentido de um desvio
do sentido superior, que é um desvio daquele sentido que esclarece todos os
outros. Esclarecer todos os outros sentidos significa revogá-los, não estar mais
no seu campo de incidência; só assim se poderia falar em “fora” do corpo, em
terceira visão, lugar de entendimento e uso desimpedido da linguagem.
Acreditamos que ao se referir ao “sentido real” Lacan pretendia pôr em relevo
um poder de determinação não eliminável, o que aqui chamamos de sentido
superior. Não se trata de instaurar um modelo moral no âmago do processo do
desejo, muito pelo contrário; na verdade, os modelos é que são decalcados, à
maneira de reflexos invertidos e distorcidos, das condições originárias de que
falamos. O extraordinário é que Freud descobriu o campo pulsional e suas
alturas, seus graus de exercício, precisamente por ter visto, na decifração dos
fenômenos sintomáticos, uma determinação constante que só é oculta em face
de seu não-exercício. É como o plano de consistência de Deleuze, ele não pré-
existe à sua constituição, mas é assim mesmo o pressuposto de todos os
acontecimentos, de todos os afetos.
145
Hölderlin, F., Reflexões, p. 25, Relume Dumará, RJ, 1994.
146
Variáveis do fim da análise, op. cit., p. 108. O seminário, Livro 11, op. cit., p. 18.

116
Mais uma vez: se há um salto na direção do não-senso, é porque os
sentidos anteriores perdem o sentido ou a força em vista do superior – que
supera a todos. Sublimação. Cada vez mais, a cada transposição de fronteira,
até a última, que chamaremos de metapsicológica em homenagem a Freud,
torna-se mais evidente, precisa e incontornável a questão ética. Ela já incluía o
fato de que as fronteiras são problemas éticos. Digamos que se trata de atingir,
na palavra de Nietzsche, a hora do meio-dia, a hora da menor sombra. Esta
posição mesma será uma prática, rara e difícil; dela porém, que é a mais
obscura, a mais escondida das posições, aquela que justifica para sempre o
nome de inconsciente, se originam todas as clarezas e facilidades. Mas que
seja obscura, escondida, inconsciente, não exclui, bem entendido, que seja
construída, constituída, instaurada. Dado o nosso miraculoso cérebro, é
preciso ainda habitá-lo. Cabe aqui uma epígrafe de Beckett, em Malone
morre: “tudo já foi dito, e nada foi dito ainda”.

117
118
AS FORÇAS PULSIONAIS – AGIR, AVALIAR, EXISTIR...

Este capítulo evocará constantemente as filosofias de Nietzsche e de Bergson.


Acreditamos que a aproximação fecunda da psicanálise com essas duas
linhagens de pensamento deve prosseguir, não obstante tudo o que já rendeu.
Com o tratamento que damos à noção de pulsão e tendo em vista um melhor
esclarecimento da mesma, esperamos, de nossa parte, contribuir um pouco
mais para esse diálogo clínico-filosófico.

Um sonho à velocidade da luz

Zélia se vê num lugar ao ar livre, onde se desenvolvem treinamentos


físicos para jovens da polícia federal. Era requerido dos atletas algo próximo
ao movimento de reviravolta observado em natação, quando se chega à
margem e se impulsiona, com o pé, o reinício do nado. Embora o exercício
não fosse na água, o pé se aplicava, do mesmo modo, a um suporte que
permitia a renovação do impulso. Zélia, que deveria participar desse
treinamento, reage, rindo, com excelente bom humor: onde se viu, na sua
idade, submeter-se a tal acrobacia! Isso servia para a gente forte e atlética da
polícia, não para ela. Em seguida, procura instalar-se numa prancha de
madeira que funcionava à base de corda. Para colocá-la em aceleração
máxima, de modo a atingir a velocidade da luz, era necessário dar pelo menos
dez voltas na corda. Desvia a atenção da prancha, por alguns instantes, ao
perceber a presença de M., mulher admirável, já falecida, e que se envolvera,
no período da infância de Zélia, em lutas agrárias. Era uma dessas mulheres
capazes de empunhar carabina e de liderar movimentos de resistência. M. lhe
entrega uma espécie de dossiê, muito bem escrito, de todo o estado de
corrupção política do país, mapeado com todas as suas nuances e inter-
relações. Pensa imediatamente que A., da polícia federal, e S., sua assessora,
amiga recente de Zélia, deveriam ser os primeiros a ler aquele primoroso e
claríssimo texto. Volta à prancha, desta vez com A., e a corda exigida é dada.
Disparam e somem na velocidade da luz.
Nunca um sonho de Zélia pareceu tão claro. Como pode o sonho ser
notoriamente mais preciso, mais lúcido, que a vigília? Era exigido, ou ela se
exigia, pouco importa nesse estágio da interpretação, um esforço, uma
capacidade atlética, uma habilidade para fazer piruetas que, embora fossem
oniricamente admissíveis para jovens treinados, eram inimagináveis para as
condições físicas de uma mulher como ela, já de certa idade. Tratava-se de
uma metáfora magistral do esforço psíquico a que se entregava há mais de
dois anos, com o intuito de colaborar nas investigações de corrupção

119
deflagradas pela polícia federal. Mais de um especialista sugeriu-lhe que havia
uma proporção de delírio nesse envolvimento intenso, segundo estimativas
que variavam de vinte cinco a três por cento, conforme as flutuações da
racionalidade clínica. O esforço despendido, desproporcional à sua condição
de cidadã comum, combinava-se com a idéia, explicitada no sonho, de uma
extrema aceleração. Logo atingiria a velocidade da luz, se desmaterializaria e
sumiria. O texto perfeitamente escrito confirmava, feito prova suplementar,
essa leitura do dado onírico, pois Zélia já detinha de maneira clara e exaustiva
todo o mapa das irregularidades no país, antecipando-se às pesquisas que o
eminente investigador da polícia ainda precisaria efetuar. Em ulterior
apreciação do sonho, Zélia informa que o dossiê continha também uma
descrição minuciosa da estratégia de ação, ampla e complexa, que seria
empregada para o saneamento total do estado de coisas. Ela percorre assim,
em velocidade máxima, seu miraculoso mapa. É por isso que, pela terceira vez
que decide caminhar – de maneira a realizar, por motivo de saúde, um
exercício físico ultra-recomendado –, torce o pé e cai. A velocidade
vertiginosa, à beira da desmaterialização, mantém seus pés longe do chão.
O sonho, como já dissemos, problematiza os termos de uma
experiência, indicando vias de mudança, linhas de fuga, dimensões
existenciais e linhas de abolição, para usar termos de Mil platôs. Será que se
trata, para Zélia, de desacelerar, de reencontrar, por assim dizer, o ponto em
que a linha vertical de puras virtualidades se cruza com a horizontal de
atualizações existenciais, o ponto crucial, portanto, da encarnação – en corps,
encore...? Seja como for, a pulsão é, nela própria, correção, ajuste, medida
para o imensurável, graduação para o intensivo, sendo ela mesma
imensurável, ela mesma intensiva. É saber dela própria, e por isso, como
insistimos ao longo deste trabalho, é saber de não-senso. Ou seja, não um
saber meramente intelectual, ou meramente racional, e sim um saber vivo,
afetivo, intensivo, imperioso do ponto de vista da pulsão, por mais que possa
ser desconhecido, recusado. O sonho coloca um problema quanto à escolha
em jogo: neste ritmo, nesta velocidade, empreendendo tamanho esforço
psíquico, Zélia irá sumir do mapa. Diz, portanto, que ela deve calibrar o ritmo,
não chegar à corda máxima, às dez voltas. Exprime assim um saber pulsional,
isto é, um saber da condição de escolha. O texto onírico se resolve como um
ensaio fronteiriço, e algo decisivo, de interlocução inconsciente ou de trans-
monadismo, conforme a expressão de Guattari; conta, por assim dizer, com a
intervenção analìtica e sua ética originária: “é isso, finalmente, o que você
quer – desaparecer?”
Zélia parece freqüentar um mapa ideal, decidido de uma vez por todas e
inteiramente definido, ainda que sua efetuação esteja em curso. Ela espera

120
impaciente; desmaterializa-se, pois todo o mapa já foi percorrido à velocidade
da luz. Mapa-ideal-em-velocidade-máxima – o que será isto? Ela se lança,
decidida, em uma linha de abolição, o que não se confunde com o que Deleuze
e Guattari chamam de desterritorialização. Qual é a diferença?
Desterritorializar não é desencarnar. Embora se faça relativa em numerosos
casos, a desterritorialização tende a ser absoluta, enquanto uma linha de
abolição não é outra coisa que a interrupção dessa tendência. Neste caso, a
vida em suas condições superiores, absolutas, não será mais alcançada, não
por meio daquela linha. Uma bússola secreta, inconsciente, indica, contudo, a
direção segundo a qual a tendência ao absoluto – ou a tendência absoluta –
não será interrompida, ainda que se demore, se gradue, dê voltas, serpenteie:
ela esposa sempre uma linha de retidão. Que bússola é esta? Talvez venha de
Bergson a resposta mais profunda: é a duração, é o tempo, o devir. É que ali
onde se perdeu de vista a duração, a morte espreita. Deixemos isto mais claro.
No sonho de Zélia exerce-se um poder de avaliação, um poder do vivo, cujo
domínio é o da duração. O saber pulsional não reside em um princípio de
realidade, mas em um princípio do vivo, no qual se funda o ato livre, por mais
raro que seja. Procuremos esclarecer um pouco mais. O domínio da duração é
o domínio das tendências vitais, e o que aí se encontra em jogo,
fundamentalmente, são as tendências a um aumento de vida e à sua
diminuição. O limite da diminuição coincide com a interrupção mortal de que
falávamos. O aumento, em contrapartida, é ilimitado. Ora, o saber se refere a
um poder de escolha, e de tal modo isso é de consistência ética que esse poder
– só existindo em ato, como tudo o que diz respeito à pulsão – já é uma
escolha em curso. Dela só pode resultar um aumento do mesmo poder =
aumento de vida. Acreditamos que uma linha de vida superior, de modo geral
obscura, se deixe entrever aqui e ali nas formações do inconsciente, e muito
especialmente nos processos sublimatórios diretos. É ela que garante, na
medida do seu exercício, uma estranha univocidade do ser, que não é mais
ontológica que prática e ética: “... para cada dia, e cada hora, só uma ação
possìvel da gente é que consegue ser a certa”. Mas, por isso mesmo, não se
deve esquecer que a escolha em curso, fazendo justiça a um poder pulsional de
escolha, não é necessariamente escolhida, não é naturalmente exercida. Muito
pelo contrário. Ela só existe mediante um esforço, uma determinação ética, e
só se resolve, efetivamente, como prática constante.
O dizer obscuro que leva o nome de Zélia não deixa de insinuar no texto
onírico a seguinte proposição filosófica: por mais complicada que seja a trama
da corrupção no país, subsiste um poder de escolha e uma indeterminação tais
que atravessam de longe essa trama, à velocidade da luz. Virtualmente, a dita
trama tem seus dias contados. Uma linha de fuga, cruzando mundos muito

121
mais complexos, levará de roldão, e à luz do dia, o conjunto das
irregularidades políticas e das estratégias de limpeza geral 147. O processo
onírico parece esposar, assim, uma insuspeitada imanência, subscrevendo a
observação de Freud de que um sonho nunca é suficientemente analisado. Não
se trata de otimismo, mas de realismo pulsional – o que, repetimos, não
garante a vida real a ninguém, pois ele precisa ser exercido. Espécie de
“cavaleiro da fé”, Zélia erra, no entanto, o alvo, pois tudo lhe parece decidido
de antemão, quando tudo só se decide em ato, a cada vez.
Já vimos que o umbigo do sonho se esclarece, de modo geral, como
poder de escolha. Será que se encontra no cruzamento do virtual e do atual –
ponto móvel em que o vivo alcança a sua potência máxima? Potência de agir,
liberdade de movimento. Não se deve, entretanto, confundir o virtual com o
ideal. Deleuze insiste: o virtual é real. Mas o que os distingue? A experiência
tende a confundi-los, por razões a serem exploradas em cada caso. Se o mapa
virtual se redefine por inteiro a cada vez, em consonância com as atualizações
existenciais, o ideal está decidido de uma vez por todas. O ato livre decorre
diretamente do todo virtual, mas está eliminado do mapa ideal, ao qual
correspondem, em contrapartida, os atos de abolição, ou o que denominamos
de pulsão de morte. Eu ideal e ideal de eu efetuam assim, em suas projeções
mais avançadas, uma linhagem sombria, mortuária. Zélia, a bem dizer, não
precisa de um corpo, mas a pulsão não a livra do corpo. Pelo contrário, ao
avesso e de modo contundente, exprime a encarnação-Zélia e uma potência de
escolha. Ou seja, subverte, no limite do limite, o plano ideal. É outra maneira
de dizer que o virtual não pode ser pensado sem aquilo que o atualiza (e em
que ele se atualiza) diretamente, a saber, o afeto. Como dissemos, as potências
da vida estão no cruzamento. Por que no cruzamento? Não existe vida, por
mais desconhecida, sem o ato que a atualiza em certo aspecto. Desse lugar
móvel saem, como numa espécie de jorro constante, as formações do
inconsciente. Elas testemunham com maior ou menor intensidade o que
Deleuze, ao analisar a pintura de Bacon, descreveu como próprio das
sublimações originárias – esse modo pelo qual a vida grita para a morte e a
expõe à luz, tornando-a visível e até mesmo aliada. A vida julga a morte, e não
o inverso, “no qual nos comprazìamos”. Parecia, até então, que estávamos
vivendo, mas estávamos morrendo. Postulamos o seguinte: as formações do
inconsciente são como pequenos ensaios de sublimação, um murmúrio
147
Há uma espécie de mensagem filosófica de Bergson, em A evolução criadora, que poderia corresponder à
proposição do sonho de Zélia: “O animal tem a planta como ponto de apoio, o homem cavalga na
animalidade, e a humanidade inteira, no espaço e no tempo, é um imenso exército que galopa ao lado de cada
um de nós, à frente e atrás de nós, numa arremetida capaz de vencer todas as resistências e de atravessar todos
os obstáculos, talvez até a morte” (Bergson, H., A evolução criadora, p. 267, Coleção dos Prêmios Nobel de
Literatura, Editora Delta, RJ, 1964).

122
incessante. É toda uma inquietação do real, toda uma justiça, indissociável do
exercício móvel e mutante da micro-língua.
Assim, uma das imagens do sonho em questão é o plano ideal em que
Zélia se instala (o dossiê completo e, equivocamente, a prancha na velocidade
da luz – na medida em que remete tanto ao ideal como ao virtual); mas o plano
onírico inteiro compreende o plano virtual-real em que os problemas se
colocam e mais a sua atualização afetiva, existencial – o conjunto, portanto,
do que chamamos de poder de avaliação e de escolha em ato (ou decisão em
curso). É evidente que o afeto “atualizador” só pode ser pensado em vista do
plano virtual que ele atualiza em certo aspecto, ainda que um afeto possa
atualizá-lo por inteiro em determinados casos 148. Mas o que se deve pensar
desse plano virtual-real, em que consiste? Já o abordamos em outro momento,
referindo-nos à vida em suas condições superiores 149. Existem filões de vida
inconsciente ainda não realizada, graus de poder e de avaliação ainda não
experimentados. O virtual remete assim a uma vitalidade inconsciente, real,
porém não realizada, e que não pode ser destruída ou abolida. Graus e graus
de vida desconhecida. É em relação a essa vitalidade que situamos os afetos
originários, afetos que a atualizam diretamente, e que parecem ser dotados de
148
Atualização por inteiro do virtual – acreditamos que consista nisto a conjugação feita por Deleuze do
plano de imanência com uma vida. Ora, essa atualização por inteiro do virtual é, sem dúvida, uma vida (= um
modo de ser afetado...), o que Lawrence chamava de vida maior. É uma espécie de acontecimento eterno. O
plano de imanência, o virtual por inteiro (atualizando-se) e a univocidade do ser designam, provavelmente, a
mesma coisa. O que nos interessa acrescentar é que essa coisa só existe, só se atualiza, mediante uma prática.
Não existe sem que seja feita. Daí a importância da atualização, da existência, do afeto, do agenciamento, da
sublimação. Talvez o que chamamos de pulsão seja o cruzamento... Cabe ainda a seguinte observação: o
virtual por inteiro é o aberto, não o completo, e por isso só se esclarece pelo poder de escolha e pelo ato livre.
A mesma necessidade lógica (e ética) faz Lacan dizer que o analista pertence ao conceito de inconsciente.
Não haveria inconsciente sem analista, isto é, sem ato de intervenção inconsciente, isto é, sem pulsão.
149
A assimilação do virtual às condições superiores da vida já aparece em Bergson, especialmente em A
evolução criadora, “onde a própria vida é comparada a uma memória, correspondendo os gêneros e as
espécies a graus coexistentes dessa memória virtual”. Bergsonismo, op. cit., p. 61. Diz Bergson na obra
mencionada: “Se, no seu contato com a matéria, a vida pode ser comparada a um impulso, considerada em si
mesma é uma imensidão de virtualidade, uma apinhar-se de mil e uma tendências, que todavia só serão „mil e
uma‟ depois de exteriorizadas em relação umas às outras, isto é, uma vez espacializadas. (...) Efetivamente, a
matéria divide o que só virtualmente era múltiplo, e, nesse sentido, a individuação é em parte obra da matéria,
em parte efeito do que a vida contém em si”. A evolução criadora, op. cit., p. 256. Essa parte relativa ao que a
vida contém em si, e que se insinua e se preserva, em intensidades variáveis, na individuação, permite falar
em uma atualização do todo virtual ou do virtual por inteiro, pois é isto que sempre acontece. O todo virtual,
segundo Bergson, se dissocia segundo linhas de diferenciação – é o seu modo de se atualizar -, mas em cada
linha de atualização dá testemunho ainda de sua totalidade subsistente. “A diferenciação é sempre a
atualização de uma virtualidade que persiste através de suas linhas divergentes atuais”. Bergsonismo, op. cit.,
p. 76. Embora o homem mesmo seja uma linha de diferenciação da vida, a margem de presença ou de
subsistência do virtual nessa linha de atualização específica parece, contudo, não ter limites. A atualização
ilimitada se efetua como sublimação (enquanto destino originário da pulsão). “Dir-se-ia que no homem, e
somente no homem, o atual torna-se adequado ao virtual. Dir-se-ia que o homem é capaz de reencontrar todos
os níveis, todos os graus de distensão e de contração que coexistem no Todo virtual... E as durações que lhe
são inferiores ou superiores são ainda interiores a ele. Portanto, o homem cria uma diferenciação que vale
para o Todo e só ele traça uma direção aberta, capaz de exprimir um todo aberto” (p. 87).

123
sua virtude – como ela, são indestrutíveis, imperecíveis. Não é sem razão que
a prancha é de madeira, à base de corda, como um brinquedo de infância, e
que Zélia se depare com M., heroína dos seus primeiros anos. A força do
sonho ou do delírio é o afeto extemporâneo, imperecível. Há, além disto, um
gozo evidente, de conteúdo erótico, na parceria com A., ambos instalados,
finalmente, na prancha infantil, à velocidade da luz. O notável é que esse gozo
é saber, saber do sonho, saber vital. A, o investigador, é o conhecimento de
Zélia, e tal é, sem dúvida, o desejo do sonho.
A ciência dos processos oníricos deveria ser, como pretendia Freud, a
psicanálise. Mas ela só é ciência dos sonhos quando parte do pressuposto de
que o sonho é, ele próprio, ciência, ciência do outro, ciência em movimento,
ciência em processo, e isto em vários sentidos. Por exemplo, existe a
participação do investigador no sonho de Zélia – aquele que deve tomar
conhecimento do mapa (virtual/ideal); alude, possivelmente, ao analista e à
sustentação de um saber ignorado. Mas há também M., referência ideal, que
detém o mapa e oferece-o a Zélia: dir-se-ia que o inconsciente é concebido
assim, sob uma forma idealizada, como A Mulher, sem que o A esteja
barrado, o que significa o seu fechamento. É em sua abertura, porém, é em seu
devir que o inconsciente se mostra no sonho, sendo o processo onírico mesmo
a abertura, o anúncio e já o devir. O sonho é o ato, é o novo, mas na medida
em que integra um terceiro momento, além do sonho propriamente dito e de
sua recordação em vigília, que é o de seu relato e de sua decifração em
análise, conforme o caráter “trans-monádico” ou extra-pessoal apontado
anteriormente. Todos os “outros” – A., M., o analista – remetem à pulsão, que
os atualiza como dados de um problema, não sem se atualizar ela mesma sob o
aspecto móvel e imprevisto da formação onírica e sua decifração. Esta,
contudo, se distingue cada vez menos do saber de não-senso em ato.

Agir, avaliar, dizer, existir

O fenômeno clìnico e cotidiano da “negativa” 150, versão intelectual do


recalque, demonstra em ato a separação, verificável em muitos campos da
atividade humana, entre as funções intelectuais e os processos afetivos,
supostamente unidos na origem. Em que realidade primitiva, embrionária,
não-realizada ou superior estariam unidos? É um dos nódulos da descoberta
freudiana: a pulsão é ao mesmo tempo idéia e afeto, força e sentido, natureza e
cultura. Para se entender essa conjugação originária, é preciso ter em conta

150
A negativa (ou denegação) é um meio de inclusão na argumentação consciente de uma idéia até então
recalcada, com a condição de que essa idéia seja negada – “eu não quis dizer isto” –, permanecendo excluído
o afeto correspondente.

124
que a expulsão ou separação regida pelo princípio do prazer, conforme se lê
no texto sobre a “negativa”, procede do eu e de sua constituição ideal, e não
da pulsão que, nesta operação, se reduz ao não-eu, ao estranho, ao exterior e
ao mal – tornando-se, paradoxalmente, objeto de rechaço e recalque. O eu
ideal se constitui ao separar-se do que não poderia de modo algum incorporar,
e assim deixa de fora as diferenças irredutíveis que fariam dele um eu
estilhaçado. Estado ideal, idealizado, subsiste em confronto com a
multiplicidade real e seu devir, isto é, com o nomadismo pulsional. Mas o que
chamamos de pulsão em psicanálise não é, por sua vez, um estado de natureza,
em eventual confronto com as instâncias egóicas e culturais, e sim a
reconstituição ativa e constante, mediante ensaios e atos sublimatórios,
daquela multiplicidade real. Neste caso não há mais distinção entre vida e
pensamento. E o que é o desejo (essência da realidade, segundo Lacan) senão
isso – vida e pensamento?
A separação re-atualizada pela negativa parece garantir, todavia, a
função da consciência e mesmo do pensar, conforme uma das proposições do
texto freudiano. Mesmo assim, de nossa parte, deixamos de conceber um
estado primitivo de indistinção inconsciente para insistir, em contrapartida, em
uma realidade superior onde a separação não mais se verifica, embora
permaneça não-realizada. Como resolver esse impasse no plano especulativo,
sem fazer a consciência submergir de novo na inconsciência, uma vez que,
para uma leitura já canônica do dito texto, a negativa, apesar de contornar o
afeto, salva a consciência e libera o pensar? Ao ingressarmos, porém, no
terreno da análise, a questão deixa de ser apenas especulativa e passa a ser
também clínica. Já compreende uma reversão no pensamento, pois o clínico
reorienta o especulativo. É que o descolamento da função intelectual do
processo afetivo faz perder de vista o poder de avaliação dos afetos. Não é
uma operação essencial, no sentido de que dela dependeria todo o
pensamento, e sim uma leitura hegeliana da exposição de Freud, ou de uma
das vertentes dessa exposição – a operação do negativo liberando o pensar.
Para uma visão psicanalítica, é apenas uma modalidade de pensamento. A
análise mesma consiste em uma prática do pensar distinta, a ser aprendida e a
cada vez reiniciada, envolvendo a ciência dos afetos (nos dois sentidos do
genitivo latino). É de fato curioso como tudo aparece invertido na ordem do
pensamento quando se começa com a negação. A princípio estaríamos
procedendo a uma limpeza, deixando os afetos de lado e desenvolvendo a
função intelectual – o cálculo despojado, o juízo, a capacidade de ajuizar, de
ser imparcial. Mas nos traìmos, pois a proposição “não é isto” com a qual
afastamos a dimensão afetiva e utilizamos a idéia, embora nos situe,
efetivamente, no plano estrito das idéias, deixa-nos aí com um pé em falso:

125
reintroduzimos sub-repticiamente, na própria operação, o elemento não
intelectual, pois todo juízo negativo pressupõe uma expectativa que não se
cumpriu, ou um modo de prevenir o interlocutor, ou ainda uma defesa. Uma
célebre análise bergsoniana da negação 151 reencontra aqui posições freudianas
fundamentais, e evoca igualmente uma exploração direta do real: o
inconsciente, onde não existe o não, é afetado de uma afirmação (Bejahung)
originária. Do ponto de vista analítico, é desde sempre um começo afirmativo
a ser afirmado, conforme estivemos repisando a propósito do arco pulsional.
Não a negação da negação, com a qual permaneceríamos no regime
estritamente intelectual, mas a afirmação da afirmação, pela qual o afeto se
torna consciência, intelecção de si. Não mais a consciência separando-se da
força, mas elevando-se até ela. É esta, finalmente, a conclusão a que chega o
conciso texto de A negativa, para além dos extravios que possa provocar sua
composição estratigráfica, dotada de diferentes ritmos e velocidades. 152
É quase a mesma coisa o estranhamento da pulsão e seu recalque, e é
esse estranhamento e esse recalque que darão consistência ao objeto a de

151
Cf. as seguintes passagens de A evolução criadora: “Uma vez formulada a negação, esta apresenta um
aspecto simétrico da afirmação. Parece-nos então que, se esta afirmava uma realidade objetiva, aquela deve
afirmar uma não-realidade igualmente objetiva e, por assim dizer, igualmente real. No que ao mesmo tempo
erramos e acertamos: erramos porque a negação não poderia objetivar-se naquilo que tem de negativo; mas
acertamos porque a negação de uma coisa implica a afirmação latente de sua substituição por outra coisa, que
sistematicamente se deixa de lado. Mas a forma negativa da negação beneficia-se da afirmação que está no
fundo dela...” (op. cit., p. 289). “Assim, sempre que acrescento um „não‟ a uma afirmação, sempre que nego,
levo a cabo dois atos bem definidos: 1º, interesso-me pelo que é afirmado por um dos meus semelhantes, ou
pelo que ele ia dizer, ou pelo que poderia ser dito por um outro eu que estou prevenindo; 2º, anuncio que uma
segunda afirmação, cujo conteúdo não especifico, deverá substituir aquela que tenho perante mim. Mas em
ambos estes dois atos se encontra exclusivamente afirmação. O caráter sui generis da negação deve-se à
sobreposição do primeiro ao segundo. Em vão, portanto, se atribuiria à negação a possibilidade de criar idéias
sui generis, simétricas das que são criadas pela afirmação e dirigidas em sentido contrário. Dela não pode sair
nenhuma idéia, pois o único conteúdo que tem é o do juízo afirmativo que ela julga” (idem, p. 284). É a
mesma lógica empregada por Freud, para quem a escuta analítica deve subtrair o não do enunciado
denegatório e ouvir, em sua limpidez, a asserção do inconsciente (“a pessoa que aparece no sonho não é a
minha mãe” = “é minha mãe”). Mas existem torções notáveis nessa aproximação com Bergson, pois este
demonstra que a negação, que pareceria desenvolver uma operação intelectual despojada, contém,
invariavelmente, um elemento extra-intelectual não explicitado, e que corresponde ao primeiro dos dois atos
acima destacados: ela se dá em uma relação social, compreendendo uma expectativa ou uma prevenção.
Poderia ser igualmente um procedimento de defesa, tal como a negativa no contexto analítico. É por isso que
esta denuncia, feito selo de origem (made in), a operação original de recalque. É no mínimo curioso que as
análises se aproximem tanto, embora movidas por preocupações aparentemente distintas: metafísicas e lógicas
em Bergson, clínicas em Freud.
152
Apesar de desenvolver profundamente uma possibilidade do texto freudiano, o célebre Comentário falado
sobre a “Verneinung” de Freud, por Jean Hyppolite (em Escritos, op. cit., p. 893), pretende fazer da negação
da negação o móvel não só do pensamento como tal, mas também da análise. O admirável é que Lacan não
procedeu a nenhum reparo quanto a este ponto, como se fosse assim em Freud. E, na verdade, não há nenhum
mito da origem do pensamento no artigo de Freud, como quer Hippolite, mas explicitação de um
procedimento defensivo, de uma prática efetiva pela qual a função intelectual separa-se da vida e, sobretudo,
das implicações metapsicológicas e clínicas dessa separação. Não se deve esquecer que todos os temas
articulados pelo texto são colocados, em última instância, na perspectiva das pulsões de vida e de morte.

126
Lacan, ou seja, ao objeto estranho por excelência, porque insituável. Não
reduzido pelo recalque, escapa, indefinidamente, a toda captura. O círculo da
idealização, seja do eu ou do todo, não se perfaz graças a esse obscuro objeto
que, no limite, remete à libido, a não domesticável. Não há projeção ideal
(seja à velocidade da luz) que a recubra e domine 153. A libido será sempre
constituição em ato do objeto por ser a ponta mais aguçada do presente, e
assim já é um futuro. O objeto opera, aqui, como o avesso do ideal de eu, e
suas variações exprimem o modo como a pulsão – a estrangeira – poderá ser
lida. O que interessaria analiticamente nas perversões senão a prática
desviante, o acento singular, isto é, sua distância e sua parcialidade em relação
ao ideal de eu, embora o objeto fetiche convocado em cada caso indique ainda
uma modalidade de captura? 154 É o que veremos adiante a propósito do
masoquismo. Em contrapartida, nas condições originárias a libido é
integrativa e íntegra, e por isso recebeu o nome de Eros – não só em virtude
das integrações que promove, mas também de sua própria integridade. Suas
integrações, porém, não são totais ou totalizantes, e sua integridade se afirma
em pleno combate. É a prova da diferença e o sentido do real. Ora, o
recalcado originário é, precisamente, essa prova e esse sentido. Mas como ela
integra sem totalizar? Que espécie de integração peculiar é esta, alvo do
recalque, e alvo privilegiado, especialmente pelo seu teor de desintegração dos
conjuntos simbólicos e imaginários – ou ainda pelo seu poder de desagregação
das formações gregárias? A pulsão é extra-pessoal, mas isto não significa que
seja gregária.
Enquanto Lu não levar em conta o que já sabe, incorrendo assim, de
novo, na precipitação de concluir que o mais desejado está acontecendo, o
encontro com o homem de sua vida, e que era só o que faltava para deixar
tudo perfeito, se vê repetidamente diante da questão, sem dúvida inevitável,
mas nem por isso desenvolvida: o que a faz perder de vista o saber? O que a
impele, tão fortemente, à conclusão precipitada? A necessidade imperiosa,
responde ela, de inverter a história em que fora rejeitada, antes de nascer, pelo
pai, e se compensar, a partir de agora, com os cuidados que não teve... Cada

153
Pensamos que seja isto que Lacan pretende formular ao seu modo: “Ora, basta dizer que a coisa só pode
escrever-se como acoisa (....), o que significa que ela está ausente ali onde ocupa o seu lugar. Ou, mais
exatamente, que, uma vez tirado, o objeto pequeno a que ocupa esse lugar só deixa nele, nesse lugar, o ato
sexual tal como eu o acentuo, ou seja, a castração”. (Lacan, J., O seminário, livro 18 – De um discurso que
não fosse semblante, p. 71, Zahar, RJ, 2009). Desde que, bem entendido, se conceba o “ato sexual” como
idêntico ao ato sublimatório, e a castração como afirmação da diferença. Não há certamente nenhum equívoco
de nossa parte quando sustentamos tal aplicação imediata das idéias de ato sexual e de castração. É o que está
em jogo, por exemplo, em toda a digressão lacaniana sobre a ética do amor cortês.
154
Usamos a noção de objeto fetiche para todas as disposições perversas, acompanhando aqui MDMagno em
sua concepção de perversão: cada um seu sexo, sua forma de satisfação, sendo o objeto fetiche exatamente o
dispositivo, marcado de singularidade, que garante o deslanchar do gozo.

127
situação nova, cada novo encontro, sofre o peso dessa história não concluída.
A solução consistiria em ela abrir mão da compensação apaziguadora que a
identifica como vítima do destino. Obstinada, Lu quer reverter essa
infelicidade. Mas a infelicidade só é revertida a partir da idéia de que não há
nada a apaziguar senão a revolta, isto é, senão sua tendência a voltar ao
estágio dos cuidados ideais, atemporais, como se nada houvesse se passado
desde então. Temos uma tendência idealizadora, instaurada por motivos
infantis, e um saber pulsional que insiste em desconcertar, em desfazer a trama
idealizada – dir-se-ia em nome do real. Podemos afirmar que o real não é o
sonho ou a fantasia, e que por isso ele desfaz as tramas imaginárias. Mas,
neste caso, o real não precisaria ser nada além da realidade e seu principio,
que não é o do prazer. Seria então excessivo chamar de saber pulsional o
velho princípio de realidade. Ora, não é isto que causa o sofrimento de Lu, não
é o limite imposto pela realidade – ignorado a cada vez que ela almeja e
constata, por breve que seja a carícia da ilusão, a perfeição compensatória –
não é esse limite que a deixa, mais cedo ou mais tarde, inconsolada. O que a
deixa inconsolada é a manutenção da revolta e a idealização de alguém –
remoto ou por vir – que poderia livrá-la do sofrimento revoltoso, do destino
infeliz. Não abandona aquela história, e assim inibe, ativamente, a existência
de qualquer outra. Aprendeu a viver só, por sua própria conta; e agora, depois
de tudo, sente-se vitoriosa. Mas a relação com um homem reenvia ao velho
tema, o da rejeição e da compensação, nunca solucionável porque não deve ser
solucionado, já que ela aprendeu a viver só, etc. A prova disto é que, para uma
observação mais aguda, Lu rejeita, antes de qualquer nova experiência de
rejeição, quem quer que não apresente o conjunto dos traços ideais do pai que
ela não teve, incluindo entre esses traços, muito especialmente, o cuidado
paternal mais devotado. A situação perfeita exclui o pretendente, e ela
continua só. O que a deixa inconsolada é o fato de perder de vista o caminho
pulsional que a faria voltar, sim, mas ao futuro, ao novo. Em suma, a pulsão é
integrativa de todos os dados do problema, e por isso é a sua solução. É ela
que é recalcada pelos processos de idealização, com suas estases e objetos
específicos. Não condiz com nenhum princípio de realidade doloroso, exceto,
por vezes, em uma primeira tomada de cena; quando ela se esclarece, quando
se decifra, é invariavelmente o que sempre terá sido um saber dessa ordem –
satisfação. Por quê? Porque esclarecê-la é exercê-la, isto é, exercer aquilo que
se pode. E é nesse exercício que consiste a satisfação, e não em algum estado
ou objeto. Pelo mesmo motivo, o sofrimento consiste na abstenção, em maior
ou menor grau, da prática do saber pulsional.
O que faz a pulsão senão introduzir uma lógica da diferença em todo
pensamento? E o ao fazê-lo, o que ela promove, senão uma limpeza, seja

128
gradual ou contundente, por insistência ou por desconcerto, de tudo o que
obscurece essa lógica? A lógica da diferença, como a entendemos, é a da
pulsão de vida, jamais sujeitável a um regime de identidade, jamais integrável
aos regimes do símbolo e da imagem. Um dos aspectos dessa lógica vital 155
consiste em que a diferença, para se dar como tal, precise ser afirmada. Isso
compreende, inevitavelmente, uma prática, um exercício, um dizer. É claro,
pelo exposto acima, que a pulsão de vida e sua lógica são uma e mesma coisa.
Quando insistimos em livrar a noção de pulsão (ou de desejo) de toda
idéia de falta, na medida em que esta remete, negativamente, a uma totalidade
ideal, colocamos em evidência o caráter determinante do móvel pulsional: o
grau de experiência da pulsão e – o que vem a ser o mesmo – a modalidade de
subjetivação aí implicada, determinam a constituição do objeto, sua natureza,
sua feição. O objeto não é independente do valor que adquire. Pelo contrário,
ele é o valor que tem. De tal forma que, vistos de um plano pulsional, os
objetos são criados, ou trans-criados. Tudo depende da altura em que se faz a
experiência da pulsão. Em última instância, e como medida maior, tem-se a
sublimação que é, como a definiu Lacan, a “elevação do objeto à dignidade da
Coisa” 156. Mas o que é a Coisa senão o real? E o que é o real senão a pulsão?
A pulsão não é de modo algum reativa, não é, como se costuma
entender, a excitação endógena produzida por um objeto exterior ou pela
instalação de um significante enigmático, para empregar um termo caro a Jean
Laplanche. Esse é o destino histérico da pulsão, o ponto de vista histérico
sobre o desejo, que se estende até o grotesco de conceber a criança recém-
nascida como “um bolo de carne”, esperando que o Outro ali deposite
significantes. Para a clínica analítica, a pulsão é uma potência apropriativa, e
o objeto, assim como o significante, são tomados e transubstanciados em seu
devir sublimatório 157. Isso vale clinicamente, eticamente, e se aplica tanto aos
procedimentos artísticos como aos sexuais, ainda que nestes a potência
apropriativa possa não se dar diretamente. Em numerosos casos ela se
encontra, por assim dizer, sob véus. O exemplo clássico, mais uma vez, é o
masoquismo, cujo caráter ativo não deve aparecer em cena. É o inverso,
portanto, do que se quis ver inicialmente na sublimação, a saber, que esta seria
um desvio quanto aos fins ou um encobrimento do real, da castração, das
155
Laplanche opõe a ordem sexual a uma ordem vital. Trata-se para nós de articular as mesmas ordens?
Certamente não, pois a ordem vital em Laplanche diz respeito ao dado biológico e às suas montagens
instintivas predeterminadas (cf. Laplanche, J., Freud e a sexualidade - o desvio biologizante, Zahar, RJ,
1997), enquanto para nós diz respeito ao ético e também ao sexual – ainda que a este segundo fator
poderíamos nomear igualmente de estético, sem nenhuma necessidade de derivação.
156
Lacan, J., O seminário, Livro 7 – A ética da psicanálise, p. 140 e 141, Zahar, RJ, 1987.
157
É um raciocínio análogo àquele de Bergson, quando este critica o evolucionismo pela tentativa de explicar
as diferenças a partir de uma causalidade exterior. “Como teria podido uma energia fìsica, por exemplo, a luz,
„converter uma impressão deixada por ela em uma máquina capaz de utilizá-la?‟” Bergsonismo, op. cit., p. 80.

129
motivações sexuais. Se não foi apenas essa noção menor, neurótica, que
prevaleceu na teoria, pois a sublimação também seria apreendida como
revelação, denúncia, e sobretudo como realização de desejo, não deixou de
fazer seu estrago, sugerindo um descolamento do real, um “mesmo assim” que
fazia desse destino um recurso ficcional frente à falta irremediável. Ora, a
sublimação é o exercício direto da pulsão, sua feição originária, ativa, e não há
outro real que o de sua prática – ao mesmo tempo do pensar e do viver. Vida-
pensamento.
Mas por que – alguém ainda pode objetar-nos – sustentamos essa
primazia do vetor pulsional, quando se sabe fartamente que o contato
erogeneizado do seio com a mucosa da boca produz desde a primeira marca,
como efeito indelével e conjunção indissolúvel de zona e representação, a
repetição da excitação (Reiz) que denominamos de pulsão oral? Não foi
preciso o seio e sua inscrição erógena para instaurá-la? O órgão erogeneizado
é segundo em relação à potência inorgânica que a criança pequena encarna.
Essa potência tem a mesma primazia que a vis activa de Leibniz, unidade de
ação (o simples) que determina, em última instância, a dobradura essencial do
órgão, sua complicação e sua aplicação erógena. Já estão em jogo, desde o
nascimento, afetos e perceptos muito nuançados, muito refinados, próprios de
uma atividade originária, imanente 158. Em outras palavras, a criança não é
informada de seu lugar e de sua destinação pela cultura sem ser, ao mesmo
tempo, um ponto de vista sobre a cultura, sem ser a cultura em estado
nascente.
Já dissemos que a pulsão é extra-pessoal ou impessoal, o que quer dizer
sexual e ética desde a origem. A alteridade é seu domínio originário. Ela
lembra curiosamente o animismo e, em especial, o perspectivismo ameríndio
de Viveiros de Castro, segundo o qual os salmões, por exemplo, são tão
humanos quanto os seres humanos, não devido a uma semelhança, mas,
justamente, devido a uma diferença; e não a uma diferença externa e
extensiva, mas interna e intensiva, pela qual tanto os salmões como os seres
humanos diferem de si mesmos na amplitude da mais estranha humanidade.
São as alturas virtuais desta humanidade que decidem pela força subjetiva em
cada caso, de tal modo que “a „personitude‟ e a „perspectividade‟ – a
capacidade de ocupar um ponto de vista – é uma questão de grau e de
situação, mais que uma propriedade diacrítica fixa desta ou daquela espécie.
Alguns não-humanos atualizam essas potencialidades de modo mais completo
que outros; certos deles, aliás, manifestam-nas com uma intensidade superior à

158
“Não há dúvida de que num bebê a vontade de potência se manifesta de maneira infinitamente mais precisa
que no homem de guerra. Pois o bebê é combate, e o pequeno é a sede irredutível das forças, a prova mais
reveladora das forças”. Crítica e clínica, op. cit., p. 151.

130
de nossa espécie, e, neste sentido, são „mais pessoas‟ que os humanos” 159. Ou
seja, o grau de humanidade dos seres vivos decorre da possibilidade de
ocuparem, em intensidades variáveis, um ponto de vista vital, ou seja, de
agenciarem um mundo (por isso os seres exemplares são os predadores e as
presas). Humanidade e vitalidade são aqui sinônimos, e Vida é igual a vida
subjetiva. Uma criança em seu auto-erotismo já é uma pessoa no sentido
indígena, já preenche um ponto de vista, já interage com seus irmãos – as
plantas, os animais, os outros seres humanos, os espíritos – em uma
humanidade que se insinua por toda a natureza. Por isso a distinção ocidental
entre Natureza e Cultura não se sustenta no perspectivismo ameríndio. Do
mesmo modo, quando os Araweté invocam o inimigo e a lógica da vingança
160
, fazem vigorar a lei de uma vida metafísica ou extra-pessoal, aquela que
deve prevalecer sobre a morte em nome de uma transformação perpétua da
subjetividade em seu caráter originário, isto é, relacional. É um continuum
vital de todas as metamorfoses, estendendo-se através de todos os reinos.
Natura naturans. Como diz Deleuze em Crítica e clínica 161, mesmo as
antipatias mais agudas são conjunção de fluxos, embate erótico, abraço.
Mas a pulsão não se constitui, então, a partir de um significante
especial? Ela mesma é um dizer e, como tal, um novo dizer. Ela mesma é
movimento vers un nouveau signifiant, ainda que, atualmente, possa ser
movimento não-realizado. A noção de inconsciente deveria servir, entre outras
coisas, para nos lembrar disto, ou seja, que é preciso conceber acoisa inteira,
isto é, o dizer em seu devir, inteirando-se no tempo.
Consideremos, por um momento, o célebre aforismo de Heráclito, ethos
anthropo daimon, que parece evocar uma altura, um plano, um lugar na
vizinhança de Deus, se admitirmos a tradução proposta por Heidegger da
palavra ethos 162. Retirada de seu emprego comum, onde se associa a costume,
tradição, passa a exprimir a idéia de morada, terra natal, sítio originário. Estar
próximo ao deus – ou ao dizer, para falar como Lacan – é uma destinação
ética a partir da qual todas as demais condições de existência serão avaliadas –
e com elas os objetos, os seres, as realidades. “Em redor do herói tudo se torna
tragédia; em redor do semideus tudo se torna sátira; em redor de Deus tudo se
torna – como? Talvez „mundo‟?”. 163 Encontramos em Bergson uma visão
semelhante: a altura da memória (ou do passado puro) em que o espírito se

159
Viveiros de Castro, Eduardo, A inconstância da alma selvagem – e outros ensaios de antropologia, p. 353,
Cosac Naify, SP, 2006.
160
Idem, p. 265.
161
Crítica e clínica, op. cit., p. 62.
162
Tradução de Heidegger: “o homem enquanto homem mora na proximidade do deus”.
163
Nietzsche, F., Para além do bem e do mal – prelúdio a uma filosofia do futuro, 150, p. 80, Companhia das
Letras, SP, 2001.

131
instala, determina a profundidade com que serão concebidos os objetos e a
realidade 164.
É por serem inconscientes as alturas da pulsão – ou do dizer, enquanto
elas sãos seus graus esquecidos ou não realizados, que o estatuto do
inconsciente é ético 165. A eticidade se define aqui por três aspectos: primeiro,
as alturas ou graus da pulsão, coincidindo com suas vicissitudes e, por
conseguinte, com diferentes modalidades de subjetivação, são inseparáveis de
uma experimentação ética, de tal modo que podem ou não se verificar (não
ocorrem naturalmente); segundo, esses graus são saberes práticos, só podem
ser alcançados, experimentados e exercidos de acordo com os passos dados,
isto é, por força de uma travessia, de um risco, de decisões efetivas, de uma
inscrição real; terceiro, o inconsciente é decididamente ético porque, sob o seu
nome, a verdade fala 166. Não importa quão enigmática seja a denúncia
inconsciente, ela é insidiosa e jamais ficará sem conseqüências. Faz enorme
diferença, no entanto, se o lapso será lido analiticamente ou não. A verdade se
declara mesmo não sendo ouvida; mas ouvi-la e, mais que isto, estar à sua
altura, praticá-la – pois nada a distingue da pulsão – é assumir a ética do
inconsciente e tornar-se seu sujeito. O “tornar-se”, neste caso, é soberano,
incessante. Assim, não se pode mais conceber a força pulsional (ou o devir
verdadeiro da força) senão como prática constante.
Por que não usamos preferencialmente o termo “sujeito do
inconsciente” e sim “pulsão”, se ambos remetem à mesma instância?
Prevalece o conceito de pulsão devido à sua plasticidade clínica.
Convém observar ainda que as diferentes alturas da pulsão não são
genéricas ou ideais; são planos de visão, perspectivas, já que a condição ativa
é perspectivista. Além disto, como critério suficiente de verdade, a pulsão é
sua própria medida, seu metro, seu mestre; é imune à transcendência e escapa
a todo juízo. Daí que o analista se autoriza de si próprio, como queria Lacan.
Repetindo, esse conceito não exige a falta de um objeto, desde sempre,
irremediavelmente, objeto ideal, e portanto perdido. Os objetos como o fóbico
e o fetiche permitem, à maneira de hieróglifos, que se leia a pulsão. Mas a
pulsão no grau e na modalidade em que é feita a sua experiência – digamos,
no percurso analítico. A pulsão só é lida adequadamente por ela mesma. Em
razão disso, um dos seus nomes é força ativa, vis activa, Dräng 167.

164
Bergson, H., Matière e memoire, p. 128-129, Presses Universitáire de France, Paris, 1990.
165
Cf. O seminário, Livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, op. cit., p. 37.
166
Escritos, op. cit., p. 410.
167
Lacan, em seu Seminário 11, op. cit., p. 26, fazia notar que o conceito de inconsciente dinâmico não era
muito esclarecedor por depender da idéia de força que, segundo ele, indicava um lugar de opacidade.
Enveredava, com isto, para a noção de causa, de hiância, de abertura. Ora, a força é precisamente a da

132
Esclareçamos mais esta designação: afirmando que o objeto é acima de
tudo o valor que ele tem, ingressamos numa região de avaliações que primam
pela anterioridade, e onde a questão dos valores morais e da imoralidade
adquire, em psicanálise, toda a relevância. A que profundidade inconsciente os
problemas morais se insinuam? Nietzsche dizia que mesmo na química,
devido ao peso das leis, subsistia um ressaibo moral. Problema eminentemente
freudiano, pois, conforme dizíamos, as modalidades de experiência erótica
traduzem, à sua maneira, os nìveis desse “aprofundamento” moral 168.
Objeto = seu valor libidinal, entendido que esse valor depende das
condições de avaliação pulsional, inclusive daquelas que se encontram além
do bem e do mal 169. Pareceria surpreendente, a princípio, aproximar o valor
libidinal de uma coisa à dimensão da verdade, e todavia nunca se fez nada
mais proveitoso em psicanálise que estabelecer, por meios clínicos e teóricos,
essa luminosa aproximação. A chave, aqui, reside mais uma vez no conceito
renovado de pulsão, em especial se entendida como poder de avaliação.
Estimar, avaliar, enquanto procedimentos originários, supra-intelectuais (o que
não significa, bem entendido, exclusão da intelecção), se referem tanto aos
investimentos afetivos como às graduações da verdade. Há um ponto, aliás,
em que afeto e verdade passam a ser uma única e mesma coisa.
Um aforismo póstumo de Nietzsche oferece uma definição de verdade
propriamente analítica ou, se quisermos, pulsional, associada à imoralidade
como garantia de veracidade: “„Meu propósito‟: demonstrar a absoluta
homogeneidade em todos os fatos e a aplicação das diferenciações morais
condicionada pela perspectiva: demonstrar que tudo o que é exaltado desde o
ponto de vista moral é essencialmente da mesma natureza que o imoral, e que
toda a evolução moral foi obtida por meios imorais e com fins imorais; e que,
ao inverso, tudo o que se considerou imoral, desde o ponto de vista
econômico, é o superior e o principal, e que uma evolução orientada para uma
maior plenitude de vida está condicionada necessariamente pelo progresso da
imoralidade. „Verdade‟, o grau em que nós nos permitimos o exame desses
fatos” 170. As observações preliminares, encaminhando o argumento do
aforismo até a conclusão sobre a verdade, são todas elas de feição analítica,
uma vez que a avaliação pulsional antecede as valorações morais. É do prisma

abertura, e longe de parecer uma idéia obscura, ela se resolve com precisão se a entendemos como força do
sentido pulsional, a abertura como condição de saber, etc.
168
Nietzsche observava que o cristianismo, depois de vinte séculos, já se tornara instinto.
169
Nos termos de Guattari, “a expressão pática não se instaura em uma relação de sucessividade discursiva,
para colocar o objeto sob o fundo de um referente bem circunscrito. Estamos aqui em um registro de
coexistência, de cristalização de intensidade. (...) Há desdobramento de ordenadas axiológicas, sem que haja
constituição de um referente exterior a esse desdobramento”. Caosmose, op. cit., p. 43.
170
Obras completas, op. cit., 272, p. 117.

133
da pulsão que se pode ler no mesmo plano o moral e o imoral. Este prisma
anterior demarca o solo da pesquisa freudiana, o lugar da escuta e da
intervenção analíticas, a base ética e lógica de onde procede a garantia de
neutralidade e a razão do seu limite, pois a partir desse solo não se passa a um
“vale tudo” como quer Magno, e sim ao que vale acima de tudo 171. Mesmo
assim, o imoral parece preceder e legitimar o moral. É que as perspectivas
extra-morais, criadoras, são comumente designadas de imorais. Estamos de
chofre lançados no campo problemático das pulsões. Dada a multiplicidade de
suas versões, a pulsão e seu exercício (o que vem a ser o mesmo) constituem o
problema por excelência (que sentido isso tem? qual o seu valor? qual a sua
direção?), inclusive com suas soluções implícitas, uma vez que a pulsão é o
conjunto de suas soluções. À medida que ela é decifrada, entendida, ela é
também exercida, praticada. Nesse decifrar-viver reside o mais abstrato dos
saberes e a concreção mais viva, a mais cruel, por ser a mais decisória. A
vertente ativa, que é a essência da pulsão, se exprime a cada vez como um
grau de exame ou, em última instância, como potência de avaliação. Eis o
sentido da veracidade no pensamento psicanalítico 172 – e isto segundo um
desdobramento de planos, pois se o caráter de verdade reside nesse grau de
exame alcançado, é preciso também dizer que esse grau repercute em todas as
graduações menores do entendimento, por não serem ainda aquele grau 173.
“Em todas as coisas, só os graus superiores importam”, escreve Nietzsche em
Aurora 174, ao considerar o talento originário dos gregos para aprender com os
outros povos, de civilização mais antiga, o que estes tinham de melhor,
transformando as novas aquisições em algo próprio, inicial, destinado ao
futuro. O sentido evolutivo se concilia, aqui, com o eterno retorno às potências
originárias, apropriativas, antropofágicas. O retorno se gradua, e o grau de

171
“Vejam que passamos de Afeto, para Lei, para Amor, para Consideração, e estamos no caminho do
Valetudo”. Magno, M. D., A psicanálise, novamente: um pensamento para o Século II da era freudiana, p.
166. Novamente, RJ, 2004. O “valetudo” de Magno é uma nova versão da máxima “tudo é permitido”,
proposta pelo personagem de Dostoievski a partir da não existência de Deus, embora para Magno a permissão
não decorra da inexistência de Deus e sim do Não-Haver. Como observa Deleuze ao analisar um quadro de El
Greco (Lógica da sensação, op. cit., p. 18), é graças à existência de Deus que tudo é permitido. Essa
permissão não-humana ou sobre-humana é, entretanto, um passo de transição, e como tal provisório, para a
consideração do que vale acima de tudo. O vale-tudo libera o acima de tudo que é, certamente, o seu
pressuposto..
172
Se a análise nos induz a este tipo de experiência, algo nietzschiana, ela tem igualmente traços spinozistas.
A Ética, enquanto filosofia prática, “não nos faz conhecer qualquer coisa, mas compreender nossa potência de
conhecer”. Deleuze, G., Spinoza – filosofia prática, p. 90, Escuta, SP, 2002.
173
Outra maneira de enunciar o que Lacan já havia formulado em A direção do tratamento: que na análise “se
trata da verdade, da única, da verdade sobre os efeitos da verdade”. Escritos, op. cit. p. 620.
174
A visão nietzschiana se aproxima aqui do “perspectivismo amerìndio”, segundo o qual a condição de
humanidade é a condição cosmológica de partida para considerar a diversidade das espécies de vida,
incluindo a humana.

134
exercício pulsional – avaliador, clínico – equivale ao grau de exame atingido.
Parece uma ousadia chamar a isto de pulsão, e no entanto não há nada mais
psicanalítico. E nem seria preciso dizer que esses graus de exame são graus do
real, ou graus de retorno à pulsão e da pulsão. E a linguagem? E o simbólico?
Ora, estão compreendidos na sublimação, pelo que a pulsão e o dizer são o
mesmo.
Vê-se assim como a ética em questão, inerente ao aludido retorno e
indissociável, por isso mesmo, de um exame o mais desimpedido possível, é
extra-moral, não baseada nos costumes e obrigações sociais. Não se opõe
necessariamente a eles, mas os submete ao seu crivo impiedoso e avaliador.
Nietzsche se nomeava “o imoralista”, era sua maneira de ser
“verìdico”; deste modo segurava as rédeas das apreciações morais que,
também elas, podem ser impulsivas. Um remorso pode ser tão impulsivo
quanto o ato criminoso que ele recorda. Não é, pois, o impulso que caracteriza
a pulsão, mas um poder de avaliação extra-moral que pode ou não se exercer.
Ele é de consistência ética, e sua naturalidade, se existe alguma, precisa ser
conquistada. Essa escalada da verdade, decidida pelo grau de exame de que
somos capazes, redefine a cada vez a ordem dos investimentos afetivos. No
caso de Lu, um primeiro estágio de avaliação, o mais distante do exercício
pulsional, corresponde à descoberta maravilhada, ilusória, de um sucedâneo
do pai; o segundo, mais próximo da pulsão, compreende a alta exigência que
exclui os pretendentes e garante, com isto, a sua solidão fecunda,
empreendedora; o terceiro, o exercício direto da pulsão, enquanto poder de
avaliar, abre uma perspectiva de vida que escapa à revolta e à compensação
ideal com as quais, no entanto, Lu assegurava uma posição ativa, ainda que
solitária. A pulsão é abertura, poder de escolha que reanima, à medida que se
reconstitui, o sentido profundo de uma variação contínua. Afirmação da
afirmação. Extra-pessoal, sempre outra além de si, sempre diferindo de si, ela
é também o continuum da variação. Por tudo isso, sua abertura e seu poder não
consistem em um estado, e sim em uma prática.
O poder de avaliação denominado de pulsão é um a priori necessário
para se entender, psicanaliticamente, as tendências niilistas da subjetividade,
ou seja, os processos insidiosos pelos quais a pulsão deixa de ser exercida.
Uma das concepções que temos da pulsão consiste na idéia de que ela se
exerce de qualquer maneira, não importa a direção que o processo subjetivo
tome; daí que ela necessite ser domesticada, tarefa que se atribui a outras
instâncias – seja ao princípio de realidade e ao seu correlato psíquico, o ego,
seja à cultura, por meio do superego. Esquece-se com isto que a pulsão de
vida, sendo um poder de avaliação imanente, integra, ordena e dirige os
processos humanos segundo seus próprios critérios; que sua ação se exerce em

135
um plano de horizonte infra e supra-cultural, e que, nessas condições
originárias, determina e orienta a cultura. De outro modo não se entenderia a
extensão sobre-humana da sublimação. Entre as divindades que, conforme
dizia Blake, residem no coração humano, deve-se contar o próprio homem em
suas condições ainda desconhecidas.
A sublimação faz existir o próprio homem, o homem em suas condições
ainda inexploradas; é a este destino que reenvia o “devir mulher” de Mil
platôs, não muito distante da proposição de Lacan de que “o homem cria-
cria... a mulher” 175.
Além de ser definida como um poder de avaliação, a pulsão pode ser
designada, igualmente, de vis activa (força ativa). O a priori de que falamos
assinala o que é imperioso na concepção das forças – que as reativas só são
claramente compreendidas quando referidas às ativas, as quais se
compreendem, por assim dizer, a si próprias e às outras 176. O fato mesmo de
que as forças reativas triunfem, e não, a princípio, por somarem o maior
número, mas por separarem a força ativa do que ela pode, operando por
contaminação e subtração e convertendo-a, assim, em reativa, só pode ser
analisado e concebido claramente de um prisma ativo. Segundo a análise
nietzschiana, a operação reativa consiste, basicamente, em insinuar a má
consciência no exercício da força ativa, induzindo-a ao conflito consigo
mesma e à autoflagelação. Não é por se somarem que as forças reativas
triunfam, mas por desencadearem o conflito em que a força ativa pára de se
afirmar. É esta afirmação que é finalmente subtraída. E no entanto, é essa
segunda afirmação – pois a primeira é diretamente a força ativa – que decide,
em última instância, pela existência e seus diferentes graus.
O aforismo seguinte de Nietzsche propõe a restauração de uma
perspectiva anterior e posterior ao que ele chama de niilismo, uma visão
interna e no entanto já distanciada, avaliadora e clínica, capaz de atravessá-lo
e medi-lo. “Eu pretendo que se torne a admitir o agente na ação depois de tê-lo
suprimido com o pensamento, isolando assim a ação; que se torne a admitir na
ação o fazer alguma coisa, o „fim‟, a „intenção‟, a „meta‟, depois de tê-los
subtraído artificiosamente da ação, deixando-a, assim, vazia. Todos os „fins‟ e
as „metas‟, os „sentidos‟, são somente modos de expressão e metamorfose da
única vontade que é inerente a tudo o que sucede: da vontade de poder. Ter
fins, metas, intenções, „querer‟, em geral, é um querer devir mais forte, um

175
Mais, ainda, op. cit. p. 177.
176
A moral de escravos desenvolve uma concepção negativa da força: se a força ativa se afirma a si própria, e
só num segundo momento nega o que não condiz com essa afirmação, a reativa, já de início, nega o que lhe é
estranho, diferente, e se afirma por meio desta negação. Por isso, na ordem dos afetos, ela começa com o ódio,
a revolta e o ressentimento.

136
querer crescer, e querer também os meios necessários para isso. O instinto
mais geral e profundo em toda ação e vontade foi o que mais desconhecido e
oculto ficou precisamente por isto: porque na prática seguimos sempre o seu
mandato, porque somos este mandato... Todas as avaliações são somente
conseqüências e perspectivas mais estreitas a serviço dessa vontade única: o
avaliar mesmo não é mais que esta vontade de poder. Uma crítica do ser que
parta de qualquer um desses valores é coisa absurda e impossível de
compreender. Ainda supondo que naquela crítica se introduza um processo de
destruição, esse processo se encontra sempre a serviço dessa vontade. Avaliar
o ser mesmo! Mas se já o avaliar é esse ser! E ainda quando negamos,
fazemos sempre o que somos. Deve-se compreender o absurdo destes gestos
julgadores da existência, e logo tratar de adivinhar o que sucede realmente
com eles. É coisa sintomática.”
Não se trata, para nós, de fazer coincidir vontade de poder e pulsão de
vida, mas de fazer ressoar uma lógica dos afetos e da existência que aproxima
o texto nietzschiano dos problemas analíticos, oxigenando-os ao seu modo
selvagem e livre. Lembremos que as preocupações de Nietzsche eram
decididamente clínicas. Readmitir o agente na ação depois de tê-lo suprimido
pelo pensamento... Enquanto representação e princípio metafísico, enquanto
sujeito do cogito, o agente foi, certamente, subvertido, e dessa subversão
participaram ativamente tanto a filosofia nietzschiana como a psicanálise. Ora,
só é possível readmiti-lo em outro plano, segundo uma nova perspectiva. É na
altura da pulsão que o reencontraremos, porém transmutado em pulsão e
práxis. Por isto Nietzsche dirá que seguimos na prática o mandato
inconsciente, que somos este mandato. Mas faz toda a diferença estar ou não à
altura dele, ou seja, exercê-lo ou não, vivê-lo ou não. Todas as alturas são
possíveis como graus de proximidade ou distância da pulsão, a qual equivale
ao dito mandato. Tais alturas correspondem, então, a processos que o esposam
e o contrariam, a diversas perspectivas de valor em confronto, que se opõem
ou se reforçam, incluindo aí toda a escala dos híbridos, de sorte que esse
mandato-pulsão pode esboçar, finalmente, um aceno pálido, impreciso,
profundamente desfigurado na superfície das representações e das condutas, à
maneira do retorno do recalcado com suas falsas imagens. “Ainda quando
negamos, fazemos o que somos” – por certo de maneira obscura, quase sem
luz e sem vida; é o que chamamos de pulsão de morte e é o que Nietzsche
detectava no móvel profundo do ideal ascético, esse desdobramento invertido
da mesma e incoercível vontade de potência. O mandato era, porém, o próprio
ser enquanto poder de avaliar e já a avaliação em curso.
A existência não pode ser julgada, pois ela é, em si mesma, processo de
avaliação. No caso da experiência humana, esta avaliação não se realiza em

137
nome da sobrevivência, da adaptação ou da utilidade, mas do próprio existir e
do existir mais. Eis uma dobra essencial, revelando uma diferença de natureza
no reino dos seres vivos: dada a pulsão, é preciso ainda afirmá-la, o que
equivale ao seu exercício. Não que algo semelhante a essa dupla afirmação
não se esboce em outras espécies vivas; a arte, como saber-fazer que se
afirma, integrativo e expressivo, constituindo territórios e distâncias vitais,
parece ser coextensiva a toda a Natureza 177. Mas no caso do homem o
caminho do saber e da arte, a sublimação, é essencialmente aberto; ela pode
ou não ser exercida, e o será segundo diferentes graus de exercício. Essa
condição de abertura, essa hiância constitutiva do humano 178, repercute em
todas as demais condições de existência, sejam elas biológicas ou culturais,
por ser a condição própria do existir (ou do dizer) como tal. A pulsão se torna
assim inteligível como lógica da existência, e seu exercício se traduz em graus
de existência. Do mesmo modo, a esses graus correspondem as depurações da
prática pulsional – são uma e mesma coisa. Um juízo final sobre a existência –
que ela, por exemplo, tenha ou não um sentido – é uma presunção idealista e
atua como recalque da experiência pulsional. O critério analítico, isto é, o
critério da máxima abertura ou da total indeterminação impele a escuta e o
poder de exame ao campo do originário, como se estivéssemos sempre – e a
cada vez – no começo ou a ponto de começar. A roda que se move por si
própria é o pressuposto não-realizado. Não se existe para ser feliz, piedoso,
sábio, amoroso, beatífico ou santo; a felicidade, a santidade, a sabedoria, etc.,
consistem em se existir realmente, o que é igual, conforme temos dito, à
prática da pulsão, à consciência da força (no sentido objetivo e subjetivo). “O
juìzo”, escreve Deleuze, impede a chegada de qualquer novo modo de
existência. Pois este se cria por suas próprias forças, isto é, pelas forças que
sabe captar, e vale por si mesmo, na medida em que faz existir a nova
combinação. Talvez esteja aì o segredo: fazer existir, não julgar” 179. Um
único juízo, ao estilo do enunciado em O espelho de Guimarães Rosa, seria
ainda admissìvel: “Você chegou a existir?”
De modo geral, porém, ninguém duvida de sua própria existência.
Existir é o que há de mais evidente. O que significa então uma pergunta como
esta – você chegou a existir? –, na medida em que transmite a idéia de algo
difícil, remoto? Ela pressupõe o sistema do juízo, cuja prevalência torna rara,
de fato, a possibilidade de um novo modo de existência; e, a bem da verdade,
só se existe realmente mediante um novo modo de existência. É precisamente

177
Cf. Mil platôs, vol. 4, op. cit., capítulo 11, Acerca do ritornelo, p. 115 em diante.
178
Ao contrário do que Lacan deixa entender (Seminário 11), não há nenhuma inconveniência em encontrar
na idéia de hiância constitutiva tanto a noção de causa como a de força. São uma e mesma coisa.
179
Crítica e clínica, op. cit., p. 153.

138
neste ponto de articulação do existir e do novo modo de existência que ganha
relevo o que parece ser um problema ético originário, próprio do inconsciente,
e que se exprime em suas formações. Ninguém acede à existência sem uma
tomada de decisão, comportando riscos e perdas. Tal acesso exige coragem e
uma determinação quase delirante. Existe-se na medida do saber, sem
desconhecer que esse saber, da espécie que não recebe explicação de nenhum
outro, só é ele mesmo quando em ato, ou seja, como decisão. “Raramente se
tem a coragem de afirmar o que verdadeiramente se sabe”, escreve Nietzsche
em Crepúsculo dos ídolos, e, no entanto, é somente no interior dessa
afirmação e através dela que se existe realmente. É o que se chama de desejo
em psicanálise.
Decididamente, não é fácil existir. Os obstáculos, às vezes, chegam a
ser enormes. Alguns processos, correntemente chamados de delirantes, dão
uma noção intensiva de como a existência pode se sustentar de quase nada,
mas de tal maneira que parece indestrutível.
Ninguém acredita em mim, no que digo. Acham que é um delírio, que
não serei morto tão logo puser os pés fora de casa, que não existem motivos
para encomendarem minha morte, que meus amigos me querem bem. Minha
mãe deseja o melhor para mim, me ama, e assim, quando eu estiver degolado,
esquartejado, ou baleado, depois de ter descuidado da minha segurança em
nome do bom senso e do amor dela – quando eu estiver estendido na rua,
sangrando, quando eu estiver morto, ela dirá: “que horror, eu não podia
esperar algo assim, fiz o que pude, que tristeza!” Mas eu estarei morto. Quero
viver, embora não possa mais viver como antes. Minha existência está por um
fio, e só posso contar comigo. Não é uma questão psicológica, não se trata de
uma mudança subjetiva, de uma morte simbólica, passagem de um eu que fui
e não sou mais a outro ser, ainda desconhecido, que estou em vias de me
tornar, mas de mudança real, do ser vivo que sou para um cadáver. A minha
vida, que me é muito cara, depende de eu não colocar em dúvida essa certeza.
Não há nada mais óbvio a fazer senão defendê-la. Sim, há uma repetição, sem
dúvida me encontrei em situação análoga mais de uma vez ao longo da vida, e
desde a infância. É um azar...
Mas sem deixar de ser um destino individual, sendo-o até mesmo da
maneira mais aguda, “existir realmente” diz respeito ao destino de todos. E
por isso, não importa quão remota seja essa tendência, ela tende a assombrar o
socius. “Realmente”, aqui, significa existir segundo critérios de legitimidade
intrínseca. Ou seja, a legitimação não procede, em última instância, de uma
cultura ou de um povo, o que a aproxima de uma experiência psicótica.
Mesmo que o povo ou a cultura se constituam como forma suprema de
autoridade, e isto ainda em nome da vida, subsiste, além dessa autoridade,

139
outra mais alta e escondida, que é a própria Vida e suas exigências – e de onde
procede o que chamamos de legitimação intrínseca. É no espaço e no tempo
desse além imanente que a análise deve operar. A pulsão de vida é, nela
mesma e por ela mesma, o supremo critério de avaliação. Mas quando se pode
constatar a vigência desse critério e se apropriar d‟isso – o real do
inconsciente – e ser quem se é, isto é, de exercer aquilo que se pode? A essas
condições de chegada denominamos de condições originárias do homem. Eis,
mais uma vez, a fórmula analítica dessa chegada: autorizar-se de si próprio.
Não é mesmo notável que se pareça tanto ao delírio?
Minha existência depende de eu não abrir mão dessa certeza,
conquanto a sustente sozinho. Mas é precisamente por isso...Tanto é assim
que toda tentativa de solidariedade me soa cínica ou mentirosa, mesmo e
especialmente quando sugere adesão simpática ao meu suposto delírio.
Aproximar aquela autorização e o delírio serve para demonstrar o
caráter risível e sem dúvida absurdo dos juízos sobre essa ou aquela
existência, bem como a natureza sintomática dos mesmos, pois se erigem
secundariamente, à maneira de um mundo invertido e como produto de forças
reativas. O originário não pode ser julgado, pois toda legitimidade emana dele.
Ao sustentar que o desejo é autônomo em relação à lei, porque é dele que ela
deriva, Lacan soube localizar a ética analítica no campo do originário; fora,
portanto, do sistema do juízo 180.
Não é preciso dizer o quanto a inversão de perspectivas em relação ao
originário, convertendo o existir em objeto de juízo, pode ser descrita pelos
mecanismos de recalque, de renegação, pela melancolia, pelas falências
psicóticas. Estas modalidades clínicas expressam deserções éticas em
andamento ou, o que vem a dar no mesmo, um abandono progressivo e
eventualmente crítico das perspectivas ativas, não sem implicarem, ao mesmo
tempo, posições de desejo, ensaios sublimatórios, linhas de fuga que revertem,
até certo ponto, aquela inversão. Dizemos “até certo ponto” porque as
estruturas clínicas são modos de sujeição em que a própria linha de fuga é
prevista e interceptada, embora nunca o seja inteiramente. Por isso existe a
análise – em nome dessa margem restante, às vezes quase nula, de
indeterminação.
Sim, garanto minha existência, mas ela está por um fio. Eu só não me
deixei matar. Tudo o mais aconteceu, e já não tenho a vida de antes. Pesa
sobre mim, continuamente, uma sentença de morte. Estou sozinho, e quase vai
se tornando este o crime pelo qual devo morrer... Só posso existir enquanto
sentenciado, adiando o instante fatal. Ser sentenciado à morte, jurado de

180
Escritos, op. cit., Subversão do sujeito e dialética do desejo, p. 828.

140
morte, morto por antecipação, e existir assim mesmo parecem convergir para
um único ponto de exasperação. Tanto mais resisto, mais a sentença incide.
Não sei como suportei isso até aqui. Tudo está decidido, mas eu luto, e vou
continuar lutando.
É claro que a neurose, a perversão e a psicose podem ser lidas, com
igual direito, como modos de resistência às formas de sujeição inventadas pelo
socius, suas mecânicas sendo explicáveis por diferentes limiares de cooptação.
Freud viu bem que a renegação (die Verleugnung), própria da
perversão, aparecia de um modo ou de outro nas demais disposições
psicopatológicas. “Eu já estou morto, mas mesmo assim” é um enunciado
propriamente renegatório, encontrável com alguma freqüência em discursos
psicóticos; é o equivalente do “eu sei (sobre castração), mas mesmo assim” da
atitude perversa. O que essa universalidade da operação renegatória poderia
indicar, senão que há um ponto em que o juízo encontra o desejo, e que ambos
se conservam, por assim dizer, no mesmo plano, numa espécie de equilíbrio
instável? O sistema do juízo parece garantir um lugar na cultura, a pertença a
um povo, a aceitação do grupo, o acolhimento familiar, as atitudes de
reconhecimento, mas se quero igualmente existir, e se a diferença radical que
constituiria meu modo de existência não está prevista e, muito menos,
instituída, que acertos precisarei fazer? O problema não está bem colocado,
ainda que pareça refazer o conhecido conflito do eu dividido entre dois
senhores, o id e o superego. Seria preciso inverter os dados iniciais relativos à
renegação, e situar o saber no campo do id, no plano das pulsões, e a
idealização no campo do ego e do superego. Ora, a fantasia perversa é,
invariavelmente, uma capitulação subjetiva frente às instâncias ideais, por
mais que elas sejam reviradas em sua função normativa. Retomaremos os
termos desse reviramento logo adiante, ao tratarmos das condições pulsionais
do masoquismo que, segundo nosso ponto de vista clínico, não diferem de
suas condições existenciais. Deixamos todavia um alerta para que o viés
existencialista, com seus termos inevitáveis – o eu, a consciência, a liberdade,
a angústia – não se mescle à nossa temática, provocando a confusão da qual
prudentemente se guardaram os psicanalistas, com o prejuízo de ignorarem
um dos aspectos essenciais da pulsão – a saber, sua potência existencial.
Assim mesmo ficaram reféns da noção de angústia, como de um retorno do
recalcado. O existencialismo, em suas diversas vertentes, é ainda um produto
da dialética; operou, invariavelmente, com a negação da negação para poder
“começar” pela consciência e a liberdade de escolha. Sua prática, começando
adiante do desejo, isto é, da pulsão de vida, só poderia terminar no vazio, na
escolha vã, no tédio ou no suicídio. Ensino nietzschiano: a consciência

141
enquanto tal, separada, não é criadora; criadora é a força, e por isso a
consciência deve elevar-se até ela. Afirmação da afirmação.
Onde ficaria a castração nesse modo de colocar a questão do desejo (e
da existência), onde localizar o saber da castração, aquele que, justamente,
remete à diferença? Onde ficaria o fator sexual e o gozo dito perverso nessa
digressão sobre o juízo e a existência? Estamos ainda no campo analítico?
Tomemos um exemplo freudiano precioso, o objeto fetiche que tem por
enunciado “um brilho no nariz” (ein Glanz auf der Nase) 181. Ele se esclarece
ao nível dos idiomas. Glanz, brilho, faz remontar, já na decifração analítica, a
glance, olhadela, conforme se passa, pela sonoridade significante, do alemão à
língua materna do sujeito. O brilho vela – o quê? A própria olhadela, com a
falta (ou a diferença) que ela descobre. Mas a olhadela é, ela mesma, a
diferença secreta... O que há de angustiante nessa falta para que ela seja
recoberta, escamoteada? O que angustia é o abalo narcísico, a derrocada do
regime do mesmo e da semelhança, a quebra de uma harmonia pré-
estabelecida, o fim de uma presunção familiar. Mas subsiste, aquém e além, o
gozo da diferença e seus perigos, seus riscos. Uma breve e subversiva incursão
pelo estágio do espelho de Lacan nos faria ver, de um golpe, que o júbilo da
criança não decorreria, como sempre se acreditou, da identificação à imagem
de completude em seu apogeu narcísico, mas do que não aparece na imagem,
uma diferença sensível, existencial e irredutível que ali – para continuar a usar
o dito estágio como instante estrutural e genético de uma novidade – tomava
consciência de si pela primeira vez. No lugar do buraco, a dobra intensiva, o
riso beatífico.
Até onde a diferença pode ser exercida? De onde vem a medida? Para o
entendimento analítico, vem da própria diferença em sua legitimidade
intrínseca, o que denominamos pulsão de vida. Do ponto de vista do juízo, a
medida procede das distinções gregárias. É que o gozo erótico – como a
liberdade de pensar – é essa parcela da existência irredutível a qualquer
apropriação; é intransferível, e seu campo de experimentação tem algo de
inexpugnável... Um brilho no nariz, eis onde o gozo singular se localizou ao
termo de uma fuga. A escapada perversa, no entanto, trai seu fracasso, ou
melhor, sua capitulação discreta. O falo é mantido, a igualdade preservada e a
morte, sob o aspecto da passagem, do devir e do saber, é ainda uma vez
eludida. O campo era mesmo inexpugnável? Até certo ponto. Como tudo isso
pode ser tão excitante, tão erótico? Toda a intensidade de uma vida, de uma
existência, parece se localizar naquele ponto equívoco, entre a vida e a morte.
Outra coisa é o exercício inequívoco da pulsão: em ambos os casos o saber

181
Obras completas, op. cit., Fetichismo, p. 2993.

142
insiste, mas somente no segundo ele é exercido como tal, e nisto consiste o
gozo igualmente inequívoco. Seu nome talvez seja beatitude. Esclareçamos
um pouco mais: o gozo perverso é equívoco por ser uma dosagem de morte na
vida, uma oscilação entre diferença e identidade em nome da identidade, um
modo de gritar para a morte e, ao mesmo tempo, de se comprazer com ela,
com sua medida. Toda intensidade se vê lançada nessa dosagem, nessa
oscilação, ao mesmo tempo contenda com a morte e capitulação frente a ela.
Já não estamos mais no plano dos afetos originários, mas no terreno da
angústia e do prazer.
A análise não visa abolir e nem tampouco favorecer as condutas sexuais
perversas. É absolutamente neutra neste aspecto. Não é sobre elas que incide o
processo analítico como tal, mas sobre o curso intensivo da diferença, e é o
móvel pulsional que deverá situar e avaliar, em cada caso, aquelas condutas. É
claro, portanto, que a avaliação pulsional não se confunde de modo algum
com a angústia ou o prazer, antes os submete ao seu crivo vital. É que não
estamos mais nos domínios do principio do prazer, e sim além dele...
Chamamos de pulsão de morte o abandono abrupto ou gradual das
perspectivas ativas, a diminuição ou a abstenção do exercício pulsional. Só
cabe ainda falar de “pulsão” de morte por se tratar, todo o tempo, da pulsão –
a phisis psicanalítica –, de seu distanciamento ou de sua aproximação (como
se diz da aproximação de um foco). Se a ética analítica consiste na prática da
pulsão, a pulsão de morte é a expressão mais pura da deserção ética 182. Mas a
deserção é também uma prática e se faz por graus; compreende estações de
repouso, lugares de enlevo subjetivo, acomodações e estases a meio caminho
da autodestruição, conforme a visão freudiana dos compromissos da vida com
a morte, expressos claramente em um princípio – o do prazer.
Em Mil platôs, Deleuze e Guattari tocam no sentido real do
procedimento masoquista ao mostrarem que se trata, por meio dele, de
garantir a distinção e a independência do desejo em relação ao prazer. Mas
essa distinção é ainda marcada de culpabilidade e de compromisso entre o
desejo e o sistema do juízo. Mesmo que a noção de culpa deva ser afastada do
entendimento essencial do masoquismo em favor dos motivos estéticos, como
mostra Deleuze em seu livro Sacher-Masoch: o frio e o cruel 183, esses
motivos são como que dobrados pela culpabilidade, que se insinua na cena
perversa, seja ela sádica ou masoquista, por meio do ideal de eu e do eu ideal.

182
É uma ética que tem seu antecedente em Spinoza: “quanto mais temos idéias inadequadas e tristezas, maior
é relativamente a parte de nós mesmos que morre; ao contrário, quanto mais temos idéias adequadas e alegrias
ativas, maior é „a parte que persiste e permanece salva‟, muito menor é a parte que morre e é tocada pelo
mau”. Spinoza, filosofia prática, op. cit., p. 50.
183
Deleuze, G., Sacher-Masoch: o frio e o cruel, Zahar, RJ, 2009.

143
Na cena masoquista a punição é exercida por força do desejo – o desejo pune
e é por causa dele que existe punição. É como se a pulsão de vida perdesse de
vista seu movimento maior e, girando em torno de si mesma, recaísse num
estado determinado. O que insufla esse giro concêntrico, o que paralisa e fixa
o processo pulsional e, portanto, o desativa, sem contudo eliminá-lo, pois isso
é impossível, é o vetor de idealização indispensável à fantasia perversa: o
masoquismo é a derrisão da figura do pai, mas em nome de um eu ideal que
encontra na mãe mítica o equivalente simbólico do pai. É ainda uma estação
do inferno. É o que dizíamos acima: o eu narcísico, ideal, que preside à
fantasia masoquista, opera uma espécie de congelamento do processo
pulsional – o frio... Há um progresso do pensamento e da clínica que vai da
perversão à prática da existência, da père-version à sublimação. O traço
diferencial, singular, sugerido pela composição perversa (“um brilho no
nariz”) sob a forma da transgressão, encaminha o tema da existência até um
nível intermediário, o que caracteriza a divisão do sujeito; mas o que é apenas
sugerido passa a ser exercido diretamente, sem qualquer transgressão, ao nível
da existência e da sublimação. Não se trata, por certo, de abolir as condutas
sexuais perversas nesse trânsito à existência e à sublimação, mas de considerá-
las à luz desse destino.
Não há outro sentido para a realização do inconsciente, que é
decididamente a do bem-dizer, senão o dessa prática. “O dizer ex-siste...” 184.
Esta proposição de Lacan chega a ser lírica. O dizer é um deus. As formações
do inconsciente são fenômenos que envolvem simultaneamente o dizer e o
existir – são uma combinação expressiva e variável, em diferentes graus, da
prática dos mesmos (enquanto pulsão de vida) e de sua redução ou abstenção
(enquanto pulsão de morte). Assim, falando de seu gosto pela literatura, uma
mulher em análise conta que Henrique VIII mandou queimar as obras de
Shakespeare e que Luís IV, na França, confiscou o Cândido de Molière. O
engano em citar Molière ao invés de Voltaire, autor da obra, traz ao primeiro
plano a dimensão do próprio e da autorização, isto é, do real. Estamos na
altura da prática pulsional e de suas vicissitudes. Existir como mulher
(Molière) na sua juventude fora de tal modo hesitante, conflitante, que tudo o
que ela escrevia parecia-lhe imprestável, destinado à lixeira. O lapso, Molière
no lugar de Voltaire, era a expressão em ato, com todas as conotações
implícitas – ser uma mulher, hesitar sobre o que lhe é próprio 185, não possuir

184
Cf. Mais, ainda, op. cit., p. 139: “Pois o próprio do dito é o ser... Mas o próprio do dizer, é de ex-sistir em
relação a qualquer dito que seja”. E na p. 161: “É assim que o simbólico não se confunde, longe disso, com o
ser, mas ele subsiste como ex-sistência do dizer”.
185
Num texto intitulado O sujeito em processo, Julia Kristeva dizia não haver um simbólico próprio da
mulher. Derrida, J. – Kristeva, J,, El pensamiento de Antonin Artaud, Ediciones Calden, Argentina, 1975.

144
conhecimentos sólidos – de sua insegurança existencial ou, em outros termos,
da inibição e crise da prática pulsional e já essa prática em andamento sob o
aspecto de uma formação do inconsciente, com seu teor de denúncia e
vitalidade. Eis meu sofrimento e minha luta, minha vida impedida e seu
desimpedimento momentâneo – a ação da micro-língua imprevisível e seu
poder de denúncia. Sublimação ou prática do bem-dizer, a análise reenvia
todas as manifestações subjetivas à questão derradeira da existência – ou do
dizer, o que é a mesma coisa.
Pode-se objetar que o uso do exemplo acima é tendencioso, que nem
todos os casos de psicopatologia da vida cotidiana compreendem o dizer e o
existir. Para vencer essa objeção, poderíamos evocar o mais célebre dos
exemplos, o de Signorelli, com o qual Freud abre a sua Psicopatologia... Na
origem do esquecimento desse nome próprio estavam os temas da sexualidade
e da morte – balizas extremas na investigação do real. O entrave na corrente
associativa resultou da antevisão da pulsão de morte, o elemento trágico da
existência, e isto por uma conseqüência necessária da investigação analítica
que ele, Freud, havia iniciado. Foram determinantes do esquecimento tanto o
fato de receber, durante a viagem em que cometeu o lapso, a notícia do
suicídio de um paciente afetado de grave perturbação sexual, quanto o
sentimento da pesquisa audaciosa que desenvolvia, e com a qual tocava em
pontos nodais da experiência humana. Seguiria em frente até as últimas
coisas? 186 É um herói edípico, e a existência da psicanálise é inseparável de
sua existência. Botticelli e Boltrafio, nomes dos pintores que lhe vieram à
mente em substituição ao esquecido, denotam ainda um dizer que insiste,
contrariando as resistências de Freud à análise, ou ao seu desejo: o herói se
deparava com a enormidade do desafio, exatamente frente a um voto de não-
existência e de um ato suicida. O sexo é o desejo, o saber, o existir. Na
origem, todo o saber está orientado pelo sexo, pela alteridade, isto é, pela
diferença. O trágico, como ensinavam os gregos antigos, consiste em tudo ter
conseqüência, todos os atos e todas as escolhas, saber e não querer saber, tudo
se decide, no limite, entre vida e morte, sem apelação.
O segundo exemplo da mesma obra 187, que trata do esquecimento de
uma palavra estrangeira, aliquis, é transparente quanto à equação do dizer e do
186
Freud esqueceu o nome Signorelli quando quis mencionar o autor dos afrescos da capela de Orvieto, obra
que, justamente, tem por tìtulo “As últimas coisas”. Obras completas, op. cit., p. 756.
187
Recomendamos uma leitura atenta desta passagem da Psicopatologia da vida cotidiana (idem, p. 760) para
se ter uma idéia de como o sujeito se localiza, finalmente, no lugar de alguém (aliquis) que não deve existir.
Brevemente, ao citar em latim uma frase da Eneida, em conversa com Freud, e a propósito das limitações do
povo judeu em sua geração, o sujeito em questão esquece uma palavra – aliquis, alguém. A frase era: “Que
surja alguém de nossos ossos como vingador”. A partìcula ex – empregada para designar procedência: de
nossos ossos (ex nostris ossibus) - indica também extração. A corrente associativa complexa, ramificada,
localiza, finalmente, um perigo, e descerra um plano afetivo mais originário – o temor do jovem judeu de ter

145
existir, e exprime com precisão a fórmula lacaniana do dizer como ex-
sistência. Coloca-se ao sujeito, neste caso, a alternativa de suprimir-se (a
alguém, aliquis), inclusive pela omissão, ou de existir; e tal é a questão ética
originária responsável pelo esquecimento. Ele diz, mas diz sob o aspecto do
não-dizer; suprime a palavra e suprime a si mesmo, segundo um projeto
equívoco de (não) existir. O dizer excluído continua dizendo, como se
investigasse a possibilidade de reverter sua exclusão (ex-). Quer, afinal, ser
ouvido, quer existir. O inconsciente é expressivo, cênico, performático. Faz
existir pelo avesso. Ser ouvido, sim, mas não sob a forma do reconhecimento,
o que era talvez almejado pelo sujeito em seu discurso exaltado e culto, cujo
ápice teria sido a citação da Eneida – a altura em que o chão se abriu. A
existência não se pronuncia pelo viés do reconhecimento; pelo contrário, ali
onde esse viés falha, ali ela se afirma – como falha, ruptura. Na verdade, o
sujeito só existe se ouvir o “mandato” inconsciente, o que é igual a erigi-lo
como seu dizer, para além de qualquer identidade narcísica. Ele é um outro,
um estrangeiro (aliquis).
A análise não é outra coisa que a prática da existência. Mais que
suspender o sistema do juízo, ela passa ao largo do mesmo, seguindo os
critérios pulsionais de ação, integração, superação...
Falamos do trágico e aludimos à pulsão de morte, mas é preciso situá-
los devidamente, situá-los em relação ao agir, o primeiro dos quatro termos
que intitulam o presente sub-capítulo. Pensando em ato, ingressamos
imediatamente no terreno do trágico. O ato pertence ao real, e não existe nada
que não se reporte a um ato na origem. Posso dizer que apenas penso, que
penso inclusive de modo a não agir, mas a minha suspensão diante da ação,
meu retardo da decisão, esse momento de reflexão, não importa o quanto dure,
é um ato de suspensão, um ato de retardo, é um ato de pensamento que serve
para inibir decisões e, portanto, uma decisão exatamente neste sentido. Não
escolher é ainda uma escolha com suas conseqüências. “Eu não tive escolha”
foi, em muitos casos, uma justificativa que prontamente fez aliança com
algum fascismo. Se tudo se pratica, tudo tem conseqüência. A atividade
subjacente a todos os processos acaba por ter, assim, o aspecto de uma
atividade imanente. Nós a reportamos à força constante (konstante Kraft)
freudiana. Mas convém ir devagar nesse assunto relativo à constância, pois ele
deve ser situado em um domínio ético e não somente ontológico. O fato de se

engravidado uma cristã. Tal é a mobilização inconsciente pelo futuro “do seu povo”. O voto expresso pela
citação da Eneida é contraditório em si, inteiramente problemático, quando se tem em vista a situação
inconsciente: o sujeito deixa ao futuro, à descendência, a solução do impasse presente (como se dissesse: não
é mais comigo), ao mesmo tempo em que essa omissão significa assumir uma descendência a princípio
indesejável.

146
pensar o ato como originário, coisa que remonta à antiga acepção do “logos”,
esclarece a razão pela qual concebemos uma ética também originária.
Diríamos se tratar de uma ética do ato, da atividade, do ativo.
Mas também aqui é preciso cautela, de maneira a situar devidamente o
plano em que essa ética do ativo se torna legítima, isto é, originária. Pois não
paramos de falar da estranheza e do não-senso como propulsores da análise, e
certamente devido ao desconcerto que produzem em nossas certezas e, por
conseqüência, em nossa atividade. Páginas luminosas de Deleuze, expondo
como o neo-realismo no cinema, suplantando a imagem-movimento, soube
introduzir situações óticas e sonoras que ultrapassavam qualquer possibilidade
de reação dos personagens. Os gregos já haviam concebido algo assim com
sua profunda noção do trágico. Édipo se vê em tudo ultrapassado. E no
entanto, como já observamos antes, a tragédia tem um desdobramento, e a
sabedoria de Édipo, a partir de Édipo em Colono, não é mais a de um mortal.
A ação necessária, com suas implicações coletivas, é sempre grande demais
para o herói trágico. Mais uma vez: o caráter extra-pessoal da atividade
requerida – daquela que é imanente ao sonho e à arte – circunscreve a
experiência trágica e, ao mesmo tempo, vai além dela, em uma espécie de
superação purificadora. É o sentido, como já vimos, do filme O sacrifício, de
Tarkovski. Pois bem, trata-se de esposar eticamente esse nível de ação
(singular e extra-pessoal) ali onde está em jogo o procedimento analítico e se
tem em vista o plano do inconsciente. Ora, essas núpcias não ocorrem sem
uma de-subjetivação concomitante. Não se trata mais, portanto, de ação
sensório-motora, mas de atividade pulsional, ético-estética. E nada mais
distante do ato fascista, decidido inteiramente por um processo de
identificação subjetiva.
O agir se desdobra no avaliar, embora se possa dizer, também, que este
é a sua dobra. É claro que a análise é um processo de re-avaliação dos valores,
uma transvaloração, na qual se incluem os valores inconscientes. Será em
nome de algo verdadeiro, ou de algo mais verdadeiro? São célebres, e
clinicamente decisivas, as ampliações do campo analítico propostas por
Winnicott, de maneira a viabilizar processos de regressão em que um “eu
verdadeiro” pudesse, por fim, respirar, readquirir vida e se tornar novamente
uma força ativa. O que procedesse dele, fosse amor ou agressão, seria
legitimado como real e considerado bom. Vida e verdade aqui se conjugariam,
como há pouco o real e o saber. Mas procuremos elucidar essa conjunção
olhando-a mais de perto, retomando o afeto originário, avaliador.
Era um desígnio nietzschiano reconduzir todas as questões sobre a
verdade e o verdadeiro a um processo de avaliação, conforme indicamos com
a citação do aforismo 272, onde a verdade é assimilada à graduação do exame.

147
Naquela passagem, o prisma avaliador se aplicava às estimativas morais. É
notável como ele se dobra sobre si mesmo quando se trata de situar a verdade
e o verdadeiro (algo que poderia ser expresso, se não perdermos de vista o
afeto, por uma fórmula de Lacan – “a verdade sobre os efeitos da verdade”).
Pois bem, no aforismo seguinte Nietzsche parece explicitar essa dobra: “A
avaliação: „eu acredito que isso e aquilo sejam assim‟ enquanto a essência da
verdade. Nas avaliações expressam-se condições de conservação e de
crescimento. Todos os nossos órgãos de conhecimento e todos os nossos
sentidos só são desenvolvidos em vista de condições de conservação e
crescimento. A confiança na razão e em suas categorias, na dialética, ou seja,
a avaliação característica da lógica, não demonstra outra coisa que a sua
utilidade, comprovada por meio da experiência, para a vida: não a sua
„verdade‟. (...) O fato de uma grande quantidade de crenças estar presente; o
fato de ser permitido julgar; o fato de não haver dúvida alguma em relação a
todos os valores essenciais; esse é o pressuposto de todo vivente e de sua vida.
Portanto, o fato de algo precisar ser tomado por verdadeiro é necessário – não
o fato de algo ser verdadeiro (...). „O mundo verdadeiro e o mundo aparente‟-
essa oposição é reconduzida por mim a relações valorativas. Projetamos as
nossas condições de conservação como predicados do ser em geral. Do fato
de precisarmos ser estáveis em nossas crenças para prosperarmos fizemos com
que o mundo „verdadeiro‟ não fosse nenhum mundo mutável e deveniente,
mas um mundo que é.” 188. A verdade é assimilada a uma crença e o
conhecimento a critérios de avaliação do ser vivo; ou seja, tanto a crença,
fixada como verdade, quanto o processo de conhecimento, estão a serviço dos
interesses da vida, são decididos e moldados por ela. A verdade, entendida
como correção, como adequação da representação ao representado, do
intelecto à coisa, passa, com Nietzsche, ao estatuo de crença que se mostrou
útil, de uma crença digna de ser conservada, tendo em vista o crescimento e a
conservação do ser vivo que dela se utiliza. Não mais que uma crença, o que
permitiria a aproximação – que evocamos no primeiro capítulo – entre a
concepção nietzschiana da verdade e certo pragmatismo em psicanálise. Mas
também dissemos que essa aproximação tem um limite, pois a noção de
crença, em Nietzsche, polemiza com a idéia de verdade como correção, tal
como esta aparece na história do pensamento ocidental. Outra coisa é afirmar
que a verdade é, em essência, avaliação. Já não se trata de dizer que o mais
valioso para a vida, em dado momento, o que lhe serve de apoio e perspectiva,
deve ser confiável e, portanto, se beneficiar do caráter de fixidez, de
permanência, de ser; isto apenas denuncia o caráter de crença do que se

188
Obras completas, op. cit., 506, p. 197.

148
designou como verdade e a necessidade de tal designação. A verdade é em
essência avaliação porque a vida é avaliação, e é nela, na vida em si, que
reside a verdade. E é aqui que ingressamos no terreno pulsional. Houve um
deslocamento do cogito ao desidero no que diz respeito à verdade: coloca-se
novamente, porém em outro plano, a questão do verdadeiro, coincidindo agora
com o que decide pela vitalidade do próprio pensamento. Por isso Nietzsche
pode assimilar a verdade ao grau de exame, à potência de avaliação e já,
também, à sua efetuação. É essa verdade, tanto sob o aspecto da efetuação
como da potência, não importa se obscura ou esclarecida, que chamamos de
pulsão. Desse ponto de vista, vida e verdade são o mesmo. Já dissemos: a
morte é o erro, mas o erro remete, aqui, à falha ética, e não à inadequação do
intelecto à coisa. O erro significa, então, a escolha pela desvitalização do
pensamento, pela via que o levará, mais cedo ou mais tarde, à inconsistência.
É o passo em falso, o gesto equivocado, que o alpinista-filósofo, para usar
uma imagem de Michel Serres, poderia cometer no momento crucial 189. Pode-
se pensar, igualmente, em uma série de passos em falso, uma série de
pequenos erros que, pelo desgaste, pela dissipação da força e pelo desvio
crescente, culminariam no gesto fatal, na parada do processo ou na morte do
desejo. Em contrapartida, a vida persevera, mas não como mera conservação
de si, no mesmo nível já alcançado. É próprio da vida avançar, tornar-se mais
e mais incisiva, mais e mais ela mesma, tornar-se indestrutível, vitoriosa – tal
como ela é. Se, no entanto, é o homem que faz e garante essa constatação de
veracidade, de continuidade, de elevação, de indestrutibilidade, não caberia a
ele o caráter de “verdadeiro”? Mas toda a filosofia de Nietzsche não é o tema
do além do homem? “A verdade”, “o verdadeiro”, “o homem” – não são essas
antigas figuras da metafísica ocidental que devem ser superadas segundo a
mais declarada crítica nietzschiana? E como essas questões aparecem no
campo analítico?
Tudo deve ser revisto sob o novo e originário prisma em que a verdade
e a vida são o mesmo. Em primeiro lugar, o caráter de verdadeiro faz justiça
ao grau de exame de que somos capazes – já de um ponto de vista extra-moral.
Como já dissemos, Winnicott soube elaborar essa justiça, com agudeza
clínica, ao sustentar a idéia de um self verdadeiro que decide pelo que é bom e
mau, real ou irreal, independentemente de qualquer critério moral ou de
qualquer senso de realidade estabelecido. Mais de uma vez Nietzsche teria
escrito “nós, os verìdicos”, além da expressão que é comumente lembrada –
“nós, os imoralistas”. Acrescente-se que aquele grau de exame não se

189
Serres, M., Variações sobre o corpo, p. 12, Bertrand Brasil, RJ, 2004: “... os exercìcios corporais são um
ótimo início para um programa de filosofia básica: na alta montanha, qualquer hesitação, rotas equivocadas,
mentiras ou má-fé equivalem à morte”.

149
distingue do grau de autorização para se dizer o que se diz. A perspectiva
avaliadora é aqui dominante. Em segundo lugar, o homem – a quem
atribuímos, com reserva, o caráter de verdadeiro – deve ser concebido como
um ser que não está determinado. É por isso que ele é uma ponte – para além
de si? O verdadeiro não cabe, então, a um ser determinado, fixado. A análise
se situa exatamente neste ponto, pois na transformação da livre associação em
empreendimento ético, na torção gradual do involuntário em voluntário, um
dizer se autoriza, e isto de acordo com a abertura – também gradual – do
exame.
Não estamos mais no ponto de atribuir o caráter de verdadeiro a uma
representação, ou a uma proposição, tendo em vista sua adequação à coisa ou
sua consistência lógica, neste caso sendo considerada em si mesma e em sua
estrutura interna. Esse gênero de conhecimento e seu valor pragmático já são
decorrentes de uma decisão quanto aos interesses superiores da pulsão de vida,
tanto no sentido de cumprir com essa destinação superior como no sentido de
se desviar dela. Em certos casos, principalmente ali onde o novo e o
desconhecido abrem caminho, tais interesses são dificilmente apreendidos e,
do ponto de vista gregário, dificilmente tolerados. A arte é a exceção, diz
Godard, e a cultura a morte da exceção. É no entanto no plano da decisão
quanto aos movimentos reais da vida – e se isso vale para a vida humana vale
também para todos os seres vivos – que se encontram, para uma visão
metafísica renovada, o verdadeiro e a verdade, isto é, a vida mesma. É por isso
que aprendemos algo de novo com o perspectivismo indígena, que conserva
atuante, em sua cosmologia e em seus ritos, uma atitude vital que
precisaríamos redescobrir. Se esse perspectivismo ensina que o estado de
humanidade é originário, exigindo uma profunda redefinição do que significa
natureza e cultura no contexto ameríndio, envolve igualmente uma ética muito
próxima da pulsional: “Se tudo é humano, nós não somos especiais... E, ao
mesmo tempo, se tudo é humano, cuidado com o que você faz, porque,
quando corta uma árvore ou mata um bicho, você não está simplesmente
movendo partículas de matéria de um lado para o outro, você está tratando
com gente que tem memória, se vinga, contra-ataca, e assim por diante. Como
tudo que é humano, tudo tem ouvidos, todas as suas ações têm
conseqüências”. 190 A sublimação é originária, e tudo deve ser medido por ela.
Agir, avaliar, dizer... Enquanto lapso a verdade fala, e o lapso é mesmo
uma escolha feliz, amálgama de saber e força, inteligência e determinação
inconsciente – demarca o instante em que saber e força se tornam o mesmo.
Avaliação em curso, distingue aqui e agora o mais importante, distingue a

190
Trecho de entrevista com Eduardo Viveiros de Castro, Revista Cult, Ano 13, Dez/2010.

150
existência e seu modo de ser, a tal ponto que esse arranjo de linguagem
contém a agudeza da singularidade. Combinação única, o lapso é um engenho
existencial. E assim retomamos o nosso quarto termo, o existir, espécie de
causa final e de pressuposto universal dos outros três: existir é existir em ato, é
avaliar e discernir o novo modo de existência e, segundo esse modo, avaliar as
demais coisas. Existir em ato, porém, é dizer. O que se denomina pulsão não é
senão o precipitado desses quatro termos.
“Verdadeiro” passa a ter o sentido de ìntegro, sem concessões, como o
lapso sabe sê-lo. Quando um sujeito, ao examinar a tendência que identifica
como decisiva em sua sintomática, chama-a de tarática, surpreendendo-se
com a incisão desse lapsus linguae, depara-se com um fenômeno muito
curioso, todavia cotidiano: a divisão e a integridade de uma só vez. Versado
em teoria psicanalítica, percebe a presença incontornável da tara, do tesão, na
inclinação tanática a se aterrorizar com a idéia dos perigos que, por exemplo,
uma viagem de trabalho chega a lhe inspirar. E no entanto a viagem, além de
prometer uma satisfação conhecida e certa, é uma dessas ocasiões
significativas para a sua carreira bem sucedida, alicerçada em um ofício que
desde muito cedo esteve de acordo com o seu desejo. Saber, satisfação,
atividade, sentido são termos que perfazem as condições pulsionais de partida;
reúnem-se no saber-fazer que caracteriza o inconsciente. Por que, então, o
sujeito se aterroriza? Por que, na série dos terrores, lhe vêm à mente as
imagens do irmão morto, antigo companheiro de infância, do pai já muito
velho, um “sobrevivente” como o próprio sujeito, a cova e a terra lúgubre, o
futuro inviável e a sua própria fragilidade angustiada diante das tarefas do dia,
da vida – cena congelada a desafiar a realidade que parece desmenti-la? Por
que esse ser frágil prepondera e o frio, dir-se-ia de ficção, chega a se exercer
com todo o prestígio do real? Na infância assustava o irmão, que era mais
novo e franzino, atiçando os cães da redondeza. Os cães, explica ele, não eram
temíveis, não eram rottweilers e pitbulls; se fossem, não os provocaria com as
batidas de pé. Era ele o cão, a infundir pavor no irmão trêmulo, submetido a
uma proteção malévola e divertida. O gozo de atormentar o pequeno com um
perigo que não existia e que ele, entretanto, fazia existir. Irá além de seu
companheirinho comportado e tímido em três sentidos: sendo o enfant
terrible, sagaz e ousado, tendo sucesso profissional e sobrevivendo de fato a
ele, que morreu jovem, vítima de uma doença. A experiência com o irmão é
apenas um exemplo, uma metáfora representativa de um certo modo de
compor os afetos. A excitação que é a vida, mesclada de culpa, torna-se
tarática. Quando ele se aterroriza, é ainda a vida, a saúde que ali se
expressam, como a essência de um ato que se tornou obscuro e adquiriu o
aspecto da paixão, do sofrimento. Essa essência se revela, porém, nos ensaios

151
sublimatórios, como é o caso da intromissão da tara na fala, provocando a
reversão a um princípio ativo. Na verdade, é o princípio ativo que determina a
reversão, e o faz pelos engenhos da micro-língua. É em momentos assim que a
vida, tal como é, se introduz novamente no pensamento. E assim podemos
dizer, com Lacan, que a verdade fala, mas também que a própria divisão do
sujeito é expressa de modo verdadeiro, íntegro, através da palavra-valise
tarática. Eis aí, simultaneamente, a excitação vital e a volta contra si. A
pulsão fala, e fala direta e integralmente das condições em que se exerce na
atualidade. Com isso propõe, igualmente, um problema, ao evocar no âmbito
da análise um outro tempo – o da pulsão como tal ou o do re-começo. Neste
caso, a necessidade da volta contra si é decifrada e desativada. E é nessa
desativação que consiste a dobra, o cuidado de si. Como não pareceria
também uma desdobra, uma de-subjetivação?
Verdade, verdadeiro. Por que – insistimos em perguntar – essas
categorias são utilizadas pelo pensamento psicanalítico? Não bastaria falar em
consistência, em desejo ou em criação? Aquelas categorias, agora associadas à
vida e ao vivo, ganham uma nova consistência, pois é no âmbito dos afetos e
segundo sua ordem real que elas começam a ser consideradas. Atestam, assim,
direitos e prerrogativas sancionados pelas forças da vida, antes de qualquer
outro poder. É a lógica intensiva do “pensador privado”, para usar uma
expressão de Deleuze, que se pronuncia nessas condições de partida. Esse
pensador do fora se encontra longe do Estado, de sua moralidade e de sua
racionalidade do mesmo modo que os sistemas físicos dissipativos e criadores
de ordem, investigados por Prigogine e seu grupo, se encontram longe do
equilíbrio. É claro que, referido ao plano das forças, o problema do
pensamento não interessa apenas à história da filosofia; afetando
profundamente a vida e suas possibilidades, renova, por assim dizer, o uso do
“verdadeiro”. Nessa medida é também o problema da psicanálise, da ciência,
da arte, da literatura. A obra de Kafka não pára de secretar um pensamento
nômade e sua resistência vital, não importa quão enredado esse pensamento
esteja nas tramas dos poderes oficiais, burocráticos e administrativos: “Sendo
assim, podia bem acontecer, caso ele não estivesse sempre alerta, que um dia,
a despeito de toda a amabilidade das autoridades e da realização plena de
todas as obrigações oficiais tão exageradamente fáceis, iludido pelo favor
aparente que lhe era dispensado, conduzisse sua outra vida de forma tão
descuidada que, nesse ponto, ele desmoronasse e as autoridades, sempre
brandas e amigáveis, tivessem de vir, como se fosse contra a vontade, mas em
nome de alguma ordem pública que desconhecia, para tirá-lo do caminho. E o
que era ali, na verdade, aquela outra vida? Em lugar nenhum K. tinha visto
antes, como ali, as funções administrativas e a vida tão entrelaçadas – de tal

152
maneira entrelaçadas que às vezes podia parecer que a função oficial e a vida
tinham trocado de lugar. O que significava, por exemplo, o poder até agora
apenas formal que Klamm exercia sobre o ofício de K., comparado com o
poder que Klamm tinha em toda a sua efetividade no quarto de dormir de K.?
Acontecia assim que, ali, um procedimento um pouco mais ligeiro, uma certa
distensão, só cabiam na relação direta com as autoridades, ao passo que no
mais era sempre necessário um grande cuidado, um olhar em volta para todos
os lados antes de cada passo” 191. O verdadeiro designa, certamente, o mais
comum dos homens, e K. não passa de um ser insignificante para os senhores
e funcionários do Castelo; mas é também o mais estranho, aquele que diz e
espera as coisas mais incabíveis, professando essa “outra vida” como um devir
alegre, inquieto e perigoso. Daí a necessidade de estar à espreita, como dizia
Deleuze do filósofo, do escritor, do animal... K é assim a própria pulsão, sua
verdade.
Retomaríamos neste ponto uma distinção entre verdade e exatidão
promovida por Lacan em seu escrito sobre A carta roubada, de Poe. Chama
ali de exatidão o registro do consenso científico ou burocrático, e de verdade o
que exprime um ponto de vista singular, envolvendo outros pontos de vista, e
isso dentro de um mundo de subjetivações instáveis, cambiantes,
freqüentemente mobilizadas por uma questão inconsciente: no conto, o
circuito da carta, os modos de subjetivação que ela opera e a perspectiva real
desse deslocamento. O verdadeiro também coincidiria, aqui, com o anexato,
conforme a expressão introduzida por Deleuze-Guattari para apreender o rigor
das passagens, a prática das fronteiras e a travessia dos reinos.
Sim, estamos ainda no âmbito das proposições nietzschianas sobre a
verdade, mas esta não se explica mais pela idéia de crença útil como prova de
veracidade. É toda uma reversão no entendimento pela qual o saber – que não
é senão afeto 192 – e o verdadeiro coincidem: “nós, os verìdicos”. Lacan
atentou para essa coincidência em sua lógica dos quatro discursos, ao formular
que no discurso do analista o saber ocupa o lugar da verdade. O saber de uso,
o saber-fazer e, finalmente, o saber de não-senso, para o qual os dois primeiros
refluem, não se confundem, como já dissemos, com nenhuma espécie de
crença, e constituem em si mesmos uma prova, a prova do saber como tal, ou
seja, daquele saber que não recebe luz de nenhum outro. No que diz respeito
ao modo de existência, esse saber em ato é a prova ética por excelência. Como
não constituiria um critério do verdadeiro? Este critério não se refere mais à

191
Kafka, F., O castelo, p. 71. Companhia das Letras, SP, 2008.
192
Afeto-saber ou afeto lúcido já não diz respeito ao saber enquanto procedimento, expressão ou conteúdo,
embora possa implicá-los; refere-se antes a uma posição de saber, a um saber das condições de saber, e por
isso não se distingue de um exercício ético.

153
adequação lógica de uma proposição, nem tampouco ao pretendente platônico,
à boa cópia, mas à instância nômade que, não se deixando adequar e nem
fazendo ressoar um modelo, abre o pensamento ao não pensado ainda, ao
novo. Mas estaríamos aqui no plano do direito natural, tal como o conceberam
Hobbes e Spinoza, e para o qual vale tudo, desde que se queira e tenha poder
para isso? É preciso insinuar certa luz nesse mundo natural para saber como
ele se transforma através dela, como adquire ele próprio uma consistência,
experiência que todo recém-nascido começa a fazer... O vale-tudo logo é
superado – graças a uma potência de avaliação em curso (por nós denominada
de pulsão) – pelo que vale acima de tudo. A prova existencial se propõe desde
o começo; aliás, ela é o começo a ser sempre re-começado. Conforme
observamos no início destas páginas, a idade do ouro dos afetos está sempre a
ponto de recomeçar.
E por que, na esteira da pergunta anterior, empregamos a noção de
integridade, evocando algo de “integro”, quando são expressões que resvalam
facilmente para o domínio moral? Talvez não baste falar em consistência de
um processo, pois com este termo designamos as condições de uma
articulação, ou de uma composição; apontamos seu caráter estético, não
necessariamente sua determinação ética. Não existe consistência sem
determinação ética, mas esta remete menos à obra que à força que se expressa
na obra, e que é feita de uma única peça (o simples). A força, no entanto, é
inseparável de sua expressão. É sempre uma única coisa, mas são dois modos
de vê-la e dizê-la. É o fora e sua experimentação, seja sob o aspecto do
fragmentário, do parcial, do múltiplo e de sua consistência, seja sob o aspecto
da peça única, o íntegro, ou que Deleuze denominava de “uma vida”.

Os graus da pulsão e sua justiça

É claro, por outro lado, que a pulsão será interpretada como pulsão de
morte pelas instâncias recalcantes, pois do ponto de vista dessas instâncias a
pulsão é, para repetir Fitzgerald, um processo de demolição – demolição do
que não é ela, do que não participa de sua lógica e resiste à sua práxis. Ora,
esse caráter destrutivo é crítico, clínico, avaliador. É uma justiça. O exercício
da pulsão é ao mesmo tempo dissolvente e construtivo, no sentido de que
reconstrói dissolvendo simultaneamente o que lhe resiste e oferece dele uma
falsa imagem. “Justiça como modo de pensar construtivo, excludente,
aniquilador, oriundo das avaliações: suprema representante da própria vida”
193
. O termo “representante”, aqui, não nos remete à representação, mas ao ato

193
Citado em Nietzsche, op. cit., p. 495.

154
legítimo. De fato, não se tem acesso direto à pulsão pela representação, seja
esta qual for, pois a pulsão é o abstrato puro, a mais alta abstração,
precisamente por ser a prática por excelência. Poderíamos usar termos
aproximados para descrever o retorno da pulsão – como “restauração”,
“reconstituição”, desde que se trate do retorno de um poder de avaliar que já é,
em si mesmo, uma prática avaliadora.
É preciso sempre dizer, no entanto, que a pulsão não é exercida de uma
vez por todas; ela é exercida a cada vez, é de sua natureza sê-lo a cada vez, e
nisso consiste o seu caráter constante – die konstante Kraft. Por isso também
essa constância é de natureza ética, ela pode não se verificar. Que ela não se
verifique não anula a constância latente, não assumida, da questão, outro viés
pelo qual vigora, de modo contínuo, a ética do inconsciente. No seu ponto
mais alto de integração – pois ela é integrativa – a pulsão de vida afirma de
uma só vez todo o devir. Amor fati. É o que se passa com o sonho de Jorge,
apresentado no primeiro capítulo: o tempo antigo, o da adolescência dos filhos
e da sua ausência de casa, e o tempo atual, que exige uma espécie de
transvaloração dos valores, se reúnem em um mesmo dizer – o texto onírico e
sua comunicação – em nome de uma abertura do pensamento que parece ser o
alvo do processo inconsciente, sem deixar de ser o pressuposto de todos os
passos ou tempos desse processo. O sonho se constrói tendo em vista o
desfecho – o surrealismo do carro planando sobre a árvore, de rodas para
cima. Entretanto, essa força do delírio, que no caso não é senão a liberdade de
pensar, põe em movimento todas as peças do sonho, de tal modo que o alvo é
sua causa eficiente. Ali de onde nasce o sonho, para esse mesmo lugar todo ele
reflui. É – como uma vida – um dizer que se diz aos poucos, forçando o
surgimento gradual de todos os seus estratos. Sua narrativa cifrada, seu
desdobramento temporal se resolvem, no entanto, em outro tempo, aquele no
qual vigora o pensamento inconsciente (ou desejo) e sua intensidade própria.
Disso são testemunhos, ao que parece, o riso e o alívio que acompanham a
recordação e depois o relato. No ponto mais alto de integração – que é
também seu umbigo, pois é dali, do carro planando, que todo o sonho deve ser
lido, pois ali reside, precisamente, a leitura do sonho, sua interpretação ou
seu desejo – todo o devir é afirmado, ou seja, não só o que se passou, como o
que está por vir. O sonho é simultaneamente revelação, realização de desejo e
preparação: compreende em si mesmo o exercício de uma perspectiva, e assim
põe em jogo as tarefas do futuro que essa perspectiva mesma se dá, e que só
poderiam ser dadas na altura em que ela se exerce. Afirmar de uma vez todo o
devir é também se preparar e se por a caminho, pois essa afirmação só pode
valer como prática e a cada vez. É nisto que consiste a dobra pulsional e a
razão última pela qual um sonho nunca chega a ser inteiramente analisado.

155
Se cada vez pode valer por todas as vezes, é porque comunica com
todas elas no ponto mais alto de integração. Esse fio inter-comunicante já se
mostra no fato de que cada uma das vezes influi sobre todas as outras,
conforme a lógica cruel ou trágica de que falávamos. Mas o devir onírico
instaurado reordena os tempos históricos, e os insere em seu movimento
intempestivo, supra-histórico. Ele os transforma em peças, engrenagens de sua
potência. É a isso que Nietzsche denominava amor fati. Sob a devoção do
camelo e a coragem do leão já havia o riso contido da criança, o rumor da roda
que se move por si mesma.
A pulsão de vida é uma prática, e é em sua constância ética que reside a
satisfação, isto é, o saber, o sabor, o gosto e o gozo de seu eterno retorno.
Se as coisas nesse terreno não acontecem de uma vez por todas, como
faria presumir a idéia de uma satisfação final, constante, identificada ao
repouso absoluto (derradeiro mito psicanalítico da tendência à descarga total
das tensões), só será possível uma constância conservando-se a direção do
sujeito do inconsciente, progredindo em seu campo, perseverando em seu ser
que, conforme o dizer de Nietzsche, é o próprio avaliar.
Como sucede no cone bergsoniano do tempo, a pulsão tem diversas
alturas que coexistem umas com as outras. Lençóis de memória, dirá Deleuze
– mas a pulsão mesma é a constituição de uma linha transversal que, como um
novo lençol, intercomunica os demais e chega a atualizá-los, de uma vez só,
em uma experiência direta do tempo 194. Um lapso progride desde os estratos
de onde emerge, sinaliza uma nova altura, é a ponta da pulsão, o fio inter-
comunicante, uma prática que se esclarece. Nunca ocorre sem relação com o
contexto em que surge, que o prepara e é, mais profundamente, preparado por
ele – dizer que se avizinha, que se gradua, de maneira a poder existir. A
análise é a prática desse dizer.
Como se pode conciliar a idéia de que a pulsão é uma prática, que ela
mais se exprime quanto mais se exerce, e que ela é o que é na medida do seu
exercício e do grau de poder atingido, com o fato de que há uma inteligência
inconsciente infinitamente superior à que nos é familiar, para a qual a
consciência é apenas um meio descontínuo e um efeito superficial? O fato de
não sabermos o que um corpo (o inconsciente) pode não anula, assim, o seu
poder, nem impede suas realizações? Ora, a questão é bem esta, pois é
completamente diferente estar ou não, e em que medida, à altura dos processos

194
“Constituìmos um lençol de transformação que inventa um tipo de continuidade ou de comunicação
transversais entre vários lençóis e tece entre eles um conjunto de relações não-localizáveis. Deslindamos
assim um tempo não cronológico. Extraímos um lençol que, através de todos os outros, apreende e prolonga a
trajetória dos pontos, a evolução das regiões”. Cinema II – a imagem-tempo, op. cit., p. 150. Deleuze fala de
um procedimento, de uma prática, e não, certamente, de algo dado.

156
inconscientes. Estar à sua altura significa alcançar o seu princípio – e isto a
cada vez, dado o caráter movente da pulsão, bem como daqueles processos.
“A maior elevação da consciência de força no homem: eis o que gera o super-
homem”, diz Nietzsche 195. Trata-se de gerar as condições superiores de
exercício da pulsão, sendo ela própria o estágio superior. Não é o caso de
promover mais e mais consciência às expensas, digamos, da força. Esse
procedimento, o sentido separando-se da força e, a partir da separação,
progredindo indefinidamente na direção do ideal (a conjugação mais aguda do
simbólico e do imaginário, com elisão do real), caracterizou o pensamento
dialético e a metafísica do Ocidente. Trata-se, ao contrário, de elevar a
consciência até a força, o que é igual a exercê-la. Daí a exortação de
Zaratustra: “Trazei, como eu, de volta à terra a virtude perdida, trazei-a de
volta à vida e ao corpo...”. A virtude perdida é o exercìcio ético imanente,
pulsional, segundo o qual as condições de vida são medidas, e com elas as
vicissitudes do pensamento. É uma medida dionisìaca: “Quando o corpo grego
e a alma grega „floresciam‟, e não em estados de exaltação mórbida e de
loucura, nasceu aquele símbolo misterioso da mais alta afirmação do mundo e
de transfiguração da existência que jamais foram alcançados sobre a terra. Eis
a medida pela qual tudo quanto cresceu desde então é julgado pequeno,
demasiadamente pobre e estreito: pronuncie-se apenas o nome de Dioniso
diante do que há de melhor entre os homens e as coisas modernas, por
exemplo, diante de Goethe, Beethoven, Shakespeare ou Rafael, e estarão de
súbito julgadas nossas coisas e nossos melhores momentos. Dioniso é um juiz!
Compreenderam-me? Não há dúvida de que os gregos tratavam de interpretar
com suas experiências dionisìacas os últimos mistérios e segredos do „destino
da alma‟ e tudo o que sabiam da educação e da purificação do homem, e
sobretudo da imutável hierarquia e da desigualdade de valores entre homem e
homem: aqui se encontra, para tudo que é grego, a grande profundidade, o
grande silêncio: não se conhece aos gregos até que se descobre este misterioso
caminho subterrâneo.”
Digamos que o misterioso caminho inconsciente é o do campo
pulsional, e que ele serve de medida a todos os estados da subjetividade, a
todas as nuanças de sentido, de afeto e ideação. Apropriamo-nos do símbolo
de Dioniso e dessa referência nietzschiana a uma via mais secreta da
experiência grega com intenção crítica e clínica. Conjugamos assim justiça,

195
Aforismo extraído de uma edição da obra de Nietzsche que segue a organização de seus manuscritos feita
por Elisabeth Foerster Nietzsche. Essa organização teria sido observada na primeira edição das “Obras
Completas”, em quinze volumes, publicada em novembro de 1901. Assim, o aforismo em questão, de número
379, encontra-se no livro intitulado “Vontade de Potência”, capìtulo “Disciplina e Seleção” (cf. Nietzsche, F.,
Vontade de potência, p. 366, Livraria do Globo, Porto Alegre, 1945).

157
saber oculto e saúde. Ou será que pretendemos assimilar os segredos
dionisíacos à práxis analítica? Em Mais, ainda, Lacan faz menção ao que se
revelava ao fim dos mistérios antigos, isto é, o falo, o real ou a pulsão de vida.
É evidente que não buscamos considerar aqui, sob o prisma dionisíaco,
os pontos altos da civilização atual. Todos os casos singulares, apreciados
analiticamente, oferecem diferentes estados de alma (seus destinos),
igualmente mensuráveis pelos seus graus superiores, pela mais alta afinação
(die höcheste Stimmung). Além disso, é provável existirem, no vastíssimo
campo da experiência humana, graus de elevação da vida que mereceriam a
designação de dionisíacos e que, todavia, permanecem anônimos, ignorados
por nossa civilização.
Heidegger soube ver na “metafìsica” de Nietzsche 196 a junção essencial
da noção de verdade com a de justiça, e como estas duas noções se
esclareciam, finalmente, pela idéia de criação artística. É o conceito
nietzschiano de vida que permite o desdobramento do pensamento nesses
termos – criação, verdade, justiça. E é esse, também, o ponto de vista
analítico, que remete a verdade à pulsão e faz desta uma justiça. Embora quase
tudo seja ensaio na vida cotidiana, esboço, tentativa, quase tudo gesto e fala
inconscientes, com deslocamentos mínimos apenas pressentidos, não há nada
que não constitua, assim mesmo, uma justiça, e isso graças ao pressuposto
ético pelo qual se instaura, a cada vez, a oportunidade de uma prática
constante – de uma prática, diríamos, que faça justiça à força constante. Por
isso Heidegger pode sustentar que “a própria vida é, no fundo, o que
Nietzsche denomina justiça” 197. Se a vida é a justiça, o vivo é o justo. Na
mesma linhagem do vivo se reúnem o criador e o verdadeiro. E isso é, talvez,
toda a justiça.
Os graus da pulsão são graus de proximidade com o real, são
graduações do saber e níveis de vitalidade. Uma vez alcançados, repercutem
em todas as condições de existência – biológicas, culturais, afetivas,
ideacionais. Não exercê-los, não praticá-los, também afeta as demais
condições, de tal modo que se experimenta, a cada vez, o que é justo.
Mas se a própria vida é a justiça, isto não constituirá um modelo, um
arquétipo, uma lei, um comando soberano, um juízo universal? Não
estaríamos retomando o discurso do mestre como o único discurso realmente

196
Heidegger, cuja filosofia gira em torno do pensamento e da meditação sobre o ser, pretende que Nietzsche
seja o último grande metafísico. Perde assim de vista que Nietzsche instaura, com a vontade de poder, uma
nova perspectiva ética. Para este filósofo do devir, a reversão do platonismo (e do pensamento como tal) é de
ordem ética, e consiste, fundamentalmente, em conceber a arte, que de Platão a Hegel é apenas um meio, um
estágio na elevação do espírito, como a atividade verdadeiramente metafísica da vida.
197
“O esclarecimento que comanda e a transfiguração que cria poeticamente são „corretos‟ e justos porque a
vida é, no fundo, o que Nietzsche denomina justiça”. Em Nietzsche, op. cit. p. 502.

158
válido, por ser o mais valioso? Como o discurso da diferença, que é o da
análise, pode assegurar uma identidade de vida e justiça sem se inviabilizar?
Leiamos a seguinte passagem de Assim falava Zartustra, que se
encontra no capitulo chamado Dos caminhos do criador: “Dizes-te livre? O
que pretendo conhecer é o teu pensamento soberano; não me interessa saber
qual o jugo que sacudiste de ti. És daqueles que têm o direito a subtraírem-se
ao jugo? Muitos perderam a última parcela do seu valor no dia em que se
libertaram de sua servidão. Livre de quê? Pouco importa a Zaratustra. Mas que
teu olhar me diga claramente para que fim és livre. Saberás prescrever a ti
próprio o teu bem e o teu mal, e suspender acima da tua cabeça o teu amor
erigido em lei? Saberás ser o teu próprio juiz e o vingador da tua própria lei?
Terrível é um tal diálogo, frente a frente com o juiz e o vingador de nossa
própria lei! Assim um astro se vê precipitado no espaço vazio e no hálito
glacial da solidão” 198.
Em primeiro lugar, Zaratustra declara: “pretendo conhecer o teu
pensamento soberano”, e não o pensamento soberano. Em segundo, pergunta
se existe o direito de se subtrair ao jugo do que é considerado reto, justo,
legítimo, legal. Do contrário, melhor é manter-se sob tal jugo, pois é deste que
emana o valor que se tem quando não existe o direito de subtrair-se a ele. E de
onde vem esse direito, quando é permitido exercê-lo? Só pode ser exercido
quando se sabe prescrever a si próprio o bem e o mal, suspender acima de si o
seu amor erigido em lei; ser o próprio juiz e o vingador da própria lei. Mas
como não entrar desse modo no círculo vicioso demasiado familiar do juiz e
do réu, do algoz e da vítima, que modula as neuroses e algumas perversões?
Como não incorrer nas presunções do eu que a psicanálise não cessa de
denunciar? É preciso um passo a mais, uma determinação mais originária que
esclareça como, a partir de quê, é permitido chegar a ser efetivamente juiz de
si próprio e vingador da própria lei – e de que modo esses termos – si próprio,
a própria lei – ainda se justificam, quando investigamos o que possa ser o
justo e a justiça para uma lógica do inconsciente. A autoridade – de onde
vem? Vem da vida. Mas dizer isso é insuficiente, pois não se sabe ainda de
qual vida se trata. D. H. Lawrence falava de uma vida maior, distinguindo-a
da vida do pequeno eu. Sem dúvida, é uma questão de direito, mas de um
direito que se conquista. Pressupõe os passos dados pela vida na direção em
que esse direito, finalmente, se torna legítimo; e que, portanto, a vida mesma
avance além de suas conquistas pelos passos do “criador” – o que é, para ela,
imergir ainda mais profundamente em suas possibilidades, encontrar e efetuar
cada vez mais a sua potência. Por exemplo, só é possível uma reversão do

198
Assim falava Zaratustra, op. cit., p. 66.

159
platonismo se este for exaustivamente compreendido, vivido, realizado, a
ponto de ser visto de fora; se não for assim, continua a decidir pelas visões
menores que engendra, algumas imbuídas da presunção de tê-lo superado.
Atravessá-lo de ponta a ponta é o que dá o direito à sua reversão. A
psicanálise mesma, em algumas das suas vertentes, ficou refém da dialética
platônica, aquela que atou o desejo à falta 199. Que a análise descobrisse na
experiência clínica uma lógica da falta variando ao infinito, apenas atesta a
profundidade do pensamento platônico em captar toda uma tendência do
desejo humano, bem como o fascínio que esse pensamento exerceu 200. Não é,
porém, a última palavra sobre o desejo. Ou seja, o pensar analítico, não
importa onde se deteve, fascinado, é o giro pulsional em todos os seus
estágios.
Falamos de como se chega a ser juiz de si próprio, e de que esse é o
processo da análise. Dizer isso, porém, só faz sentido se o ponto de incidência
da justiça for a pulsão, e não o eu.
Nietzsche evoca aquele giro inteiro ao se declarar “o primeiro niilista
perfeito da Europa, mas que ultrapassou o niilismo, tendo-o vivido em sua
alma – e vendo-o atrás de si, abaixo de si, longe de si” 201. A perspectiva
analítica também investe na superação do niilismo, entendido como uma
doença do homem, nos dois sentidos de acometê-lo e só a ele – pois todo resto
da natureza segue o seu curso – e de se mostrar, antes e durante o processo de
cura, indissociável do seu ser. Mas superá-lo é também vivê-lo e entendê-lo.
O niilismo e sua superação surgem assim como um tema insidioso,
incômodo, coloca em jogo uma exigência, algo de real, algo de clínico.
Abramos um parêntese, pois o assunto será retomado mais adiante. É fácil
demonstrar brevemente, por meio de alguns fatos da teoria, que o niilismo é
também um tema freudiano. O texto A negativa (die Verneinung), que
abordamos acima, se conclui com uma observação sobre o negativismo
psicótico, colocando-o em relação com a afirmação (die Bejahung) do
inconsciente. É no estilo aforístico desse texto singular que Freud propõe a
perspectiva analítica ou pulsional: tudo deve ser lido a partir da afirmação de

199
Toda a dialética do amor em O banquete se desenvolve a partir da idéia de que o amor deseja o que ele não
tem, o que ele não é, conforme a ironia socrática. “Aquilo que ela não tem, o que ela mesma não é e de que
carece, tais são as coisas de que uma pessoa tem desejo e amor” (Platão, Diálogos, O banquete, p. 73, Cultrix,
SP, 1963). O amor não é uma força, mas uma carência. É a insinuação do negativo no pensamento sobre os
afetos, separando a consciência da força. A crítica nietzschiana à operação socrática incide exatamente aí,
pois de um ponto de vista trágico o amor é a força, e a ele não falta nada.
200
Profundidade em detectar e, ao mesmo tempo, constituir um plano ideal de longa duração; contou com o
cristianismo e sua paixão pelo pecado (a falta) para adquirir uma segunda vida. Fascínio por induzir ao seu
modo, inclusive no caso moderno e particular da psicanálise, seja na experiência clínica da mesma ou na
teoria, uma interpretação do desejo a partir da falta.
201
Obras completas, vol. IV, op. cit., 3, p. 15.

160
partida. O negativismo, ou o niilismo, como queiramos, consiste em uma
ruptura com o campo pulsional e decorre dela. Não que a pulsão não negue,
não rechace, não destrua, mas ela o faz em nome do seu próprio exercício, e
nesse sentido originário é inteiramente afirmativa. Ela mesma, enquanto
dobra, enquanto afirmação da afirmação, já é o amor fati que dela resulta. O
outro fato teórico, mas não menos clínico, e que se perfila na esteira do
primeiro, é a descrição freudiana das psicopatologias maiores, as chamadas
estruturas clínicas, sempre designadas por um traço de negação (Verdrängung,
Verleugnung, Verwerfung). Em cada uma delas está em jogo, em diferentes
modalidades e graus, a negação da atividade pulsional. Seja sob a forma do
recalque, da renegação ou da forclusão, é a força pulsional – que não é senão a
do dizer – que está sendo visada. O retorno do recalcado e, de modo mais
radical, o reaparecimento no real do que foi forcluído, isto é, do dizer mesmo,
oferecem tão-somente uma imagem da pulsão nos termos do recalque ou da
forclusão. Essa imagem é indissociável, portanto, do corte e do distanciamento
operado em relação à visão pulsional 202. Se esta não é inteiramente
neutralizada, sofre todavia de uma conversão constante em seu retorno. É
preciso, repetimos mais uma vez, escavar, limpar, proceder a uma raspagem
do inconsciente, como dizem em O Anti-Édipo, de modo a tocar o originário –
o que não se distingue de constituí-lo em prática. Que tudo deva ser lido a
partir da afirmação inconsciente indica algo muito simples: a ciência analítica
do re-começo 203.

202
A forclusão do nome do pai, como Lacan a concebeu, é simplesmente a inviabilização de um dizer que,
mesmo assim, com a irrupção do delírio e sob a forma da alucinação, reaparece no real, ou seja, no campo
pulsional. A subjetividade psicótica se mantém em tensão em relação a esse campo, ora atraída, ora repelida
por ele. É que ao incidir sobre a representação (simbólico-imaginária), o rechaço psicótico atinge também o
real em sua determinação ativa. Lança fora a criança junto com a água suja do banho. Indecidível, a
experiência do psicótico, assim como, mais claramente, a do borderline, é uma experiência não mediada do
real sob uma forma negativa, diferente da neurose, em que a negação (sob a forma do recalque) permite
apenas uma experiência indireta, representativa, do real. A negatividade psicótica consiste em uma recusa
narcísica radical da representação (neurótica, perversa) e na conservação, simultânea, de um eu ideal em
estado crítico ou em processo de estilhaçamento. A conseqüência desse estado é a intrusão do real não
assumido, isto é, da pulsão não exercida, sob a forma das alucinações auditivas e visuais. O real não assumido
é o próprio dizer – a pulsão mesma. O caso do borderline é o de uma oscilação, de uma hesitação entre a
representação e o real, o eu e a pulsão. Do ponto de vista da representação e do eu, a pulsão é o caos, mas
subsiste o pressentimento de que nela reside a força, a vida e portanto a verdade de todo o processo subjetivo.
É a proposição de Winnicott – que há uma espécie de intuição secreta atuando na estruturação psicótica, e que
se traduz, ao mesmo tempo, no senso de irrealidade do falso eu e na espera (em latência) de uma ocasião
propícia para que o verdadeiro possa novamente (ou pela primeira vez) se pronunciar.
203
A criação de novos significantes, para situar a questão lacanianamente, também exige que toda a memória
tenha sido percorrida, uma apuração de toda a cadeia significante, tal como sucede no célebre poord’jeli
destacado por Serge Leclaire (em Psicanalisar, p. 81 e seguintes, Perspectiva, SP, 2007), e que consiste em
uma cambalhota, um giro pulsional. É curioso, no entanto, que essa vinculação à pulsão não tenha sido
formulada por Leclaire. Não basta enfatizar a cifra significante – todavia essencial à demarcação do traço
singular –, quando a cifra é diretamente o dizer, o ritornelo da pulsão ou a vitalidade do processo em jogo. O

161
Não há diferença entre o “caminho do criador” e o caminho
subterrâneo, inconsciente, pelo qual se processa e se esclarece o “destino da
alma”. Que se trate, porém, da tua alma, eis um aspecto decisivo desse
pensamento que reverte, em cada um de nós, uma espécie de platonismo
subsistente. É sobre o caminho da tua alma que se opera o recalcamento
originário, o que não remete, tampouco, ao reencontro de uma relação eu e tu,
mas antes à redescoberta pulsional de uma coletividade originária. Aquele
direito só pode ser conquistado em um campo de imanência. Assim, o dito
caminho precisa ser aberto, como é preciso garantir a sua abertura e o próprio
avanço do “criador”. Chamamos de pulsão a essa condição em aberto, mas
também à abertura efetiva e ao seu exercício continuado.
Zaratustra pergunta: livre para quê? Livre para que fim? Não é a lógica
do ser liberto que é evocada aqui, mas a da auto-determinação pulsional em
seu devir. E se agir como “o juiz de si próprio” significa precipitar-se “no
espaço vazio e no hálito glacial da solidão”, isso decorre de não haver outra
instância, anterior ou posterior à pulsão, que autorize aquele devir.
O caminho inconsciente não é descoberto senão quando praticado, mas
o que se descobre é efetivamente sua prática. Como a análise se desenvolve
nessa direção, sua abordagem do real não é outra coisa que a verificação
prática de uma autorização e de uma autoridade que, para todos os efeitos,
recebe o nome de inconsciente. O que não significa que se deva fazer disso
um ideal. A direção é uma direção do inconsciente, segue o critério da pulsão,
termo freudiano destinado a situar uma instância cuja atividade é estranha aos
ideais de eu, aos propósitos pré-conscientes e conscientes. Uma reversão às
condições originárias requer, como dizíamos, uma travessia de ponta a ponta,
um cruzar todas as alturas do sentimento (avaliação), um reencontrar a ordem
dos afetos originários (discernimento), um manter o grau de decisão
(ordenação) e, a partir dele, um avançar segundo a perspectiva alcançada
(direção). Essa versão pulsional ou analítica demanda certamente coragem,
firmeza e cuidado, disposições estas que pareceriam estranhas ao campo
pulsional em virtude da distância em que se vive dele – distância, dizíamos, da
consciência em relação à força. Avaliação, discernimento, ordenação, direção,
tais são as determinações originárias segundo as quais a cabeça-pulsão
encontra e ao mesmo tempo cria o seu próprio nível, isto é, o nível de uma
clareza resolutiva, desprendida dos emaranhados históricos e de sua trama de
sentidos. Sobrevôo vital no tempo.
Avaliação (afeto): refere-se ao valor do que vemos e como vemos tendo
em vista as demais determinações. Discernimento (desdobramento da
nome secreto é o nome da pulsão. Essa vinculação à pulsão não é menos essencial, pois é nela que reside o
originário (singular e extra-pessoal, simples e refinado, abstrato e real).

162
avaliação e sua motivação interna): compreende a distinção do que é mais
importante – não só à conservação do estágio alcançado como, a partir dele,
ao avanço continuado, o que não implica em contradição, pois é possível
recuar do estágio alcançado e deixar de avançar precisamente por se perder de
vista o mais importante. Este é, contudo, o originário, de modo que se avança
em seu aprofundamento, segundo uma afirmação cada vez mais resoluta de
suas determinações. Ou seja, o discernimento destaca o ponto de vista por
meio do qual o poder de avaliação se renova e novos discernimentos são
possíveis. Ordenação (movimento que vai do discernimento à decisão): todas
as coisas são ordenadas de acordo com o discernimento do mais importante.
Direção (a decisão em curso): evoca a dimensão do ato, a decisão
propriamente dita, cuja orientação deve fazer justiça às três primeiras
determinações. Tudo, entretanto, é ato (de avaliação, discernimento,
ordenação, direção), e todas as determinações são modos simultâneos de
afirmação da pulsão de vida. Esse conjunto de determinações é, em si mesmo,
criador de continuidade e continuidade criadora.
Mas pode-se objetar que esses termos servem a qualquer projeto
humano, que um empresário, um político, um intelectual, um religioso ou um
terrorista podem se servir igualmente dessas referências, de acordo com o que
julgam de primeira importância. A partir de suas “razões superiores”,
avaliarão cada passo do percurso e ordenarão todos os demais assuntos de seu
ambiente prático, existencial e coletivo, de modo que a direção a ser tomada
faça, por fim, justiça a esses procedimentos. Como poderíamos chamá-los
ainda de éticos e originários? As quatro determinações, porém, são
inconscientes, pulsionais: subvertem e desordenam as pretensões ideais,
egóicas, narcísicas e gregárias, tanto como se desviam da direção dos
propósitos conscientes e pré-conscientes; seu exercício é eminentemente
singular (e extra-pessoal), e não há nada mais difícil e raro na experiência
humana que exercê-las de modo continuado. Ao enumerá-las, dizemos que o
inconsciente não é cego, caótico e sem direção, como fazem crer as instâncias
não pulsionais que se atribuem o poder exclusivo, inteligente, de ordenar e
conhecer. Muito pelo contrário, avaliação e discernimento são afetos
originários, ordenação e direção são decisões do entendimento e constituem,
como tais, a ordem desejante, em consonância com aqueles afetos. Os quatro
termos, os segundos se dobrando sobre os primeiros, perfazem o que
chamamos de dupla afirmação.

A dobra (Dioniso e Ariadne)

163
Com o fito de determinarmos mais claramente o campo pulsional,
lancemos um olhar nietzschiano ao que deveria decidir pelo valor das ações no
período mais longo da história dos homens, no período de sua pré-história. “O
valor e o não valor de uma ação era deduzido de suas conseqüências”.
Nietzsche o chama de período pré-moral. Aos poucos a significação dos atos
se deslocou das conseqüências para a origem (“perìodo que se pode
denominar moral no senso estrito”), inicialmente por uma disposição
aristocrática das forças (os atos são bons porque sua procedência é nobre), em
seguida pelo avanço de uma interpretação mais estreita – porém insidiosa – da
origem como intenção. E é nesta que passa a residir, finalmente, o valor de
uma ação. Ora, diz Nietzsche, “... não estarìamos no limiar de um perìodo que,
negativamente, de imediato se poderia designar como extra-moral: agora,
quando pelo menos entre nós, imoralistas, corre a suspeita de que o valor
decisivo de uma ação está justamente naquilo que nela é não-intencional, e
que toda a intencionalidade, tudo o que dela pode ser visto, sabido, „tornado
consciente‟, pertence ainda à superfìcie, à sua pele – que, como toda pele,
revela algo, mas sobretudo esconde?” 204 Como se pode concluir, nessa nova
inquirição sobre o valor das ações trata-se ainda da origem, mas da origem de
uma ação que começa muito antes, da qual a suposta intenção na origem é
apenas um sinal, um sintoma tardio, um efeito, com seu teor de distorção, de
disfarce. Com a pretensão de que a intenção respondesse pela origem de uma
ação, é compreensível que, por meio dela, se inibisse e finalmente se
recalcasse a investigação extra-moral. Pois bem, o que estivemos afirmando é
justamente o caráter originário dessa investigação, graças à qual as forças
pulsionais, a partir de certo momento, passam a ser praticadas – o mencionado
caminho do inconsciente ou do campo pulsional.
Mas detalhemos a anterioridade do prisma extra-moral: é ele que
permite a elucidação da origem mais remota dos atos e a decisão sobre o seu
valor. Seria possível identificar o não-intencional ao inconsciente impulsivo,
ao que escapa ao jogo das avaliações e à precisão do discernimento. Aí, no
entanto, reside o engano sobre o originário e, por conseguinte, sobre o
inconsciente. A mais fina e precisa avaliação pertence ao campo do
inconsciente. As questões relativas ao desejo inconsciente, inclusive quando
ele investe a submissão e a auto-destruição, compõem o âmago da existência e
explicitam sua tendência mais incisiva – que talvez seja a sua negação, para o
que concorrem, todavia, um processo ideativo eficaz e uma estratégia
inteligente, em grande parte ocultos. Na superfície pode se passar outra coisa,
um arranjo que parece saudável, promissor. Compor o âmago da existência

204
Além do bem e do mal, op. cit., 32, p. 38 e 39.

164
quer dizer: todos os atos trazem em si o sabor e saber daquela tendência, ainda
que velados. É o que está em questão, vivo, no plano do inconsciente. Deve-se
ter em conta, porém, que a submissão e a auto-destruição, por mais
inconscientes que sejam, não são originários. São leituras do originário,
embora gerem conseqüências a seu nível, inclusive as da doença e da morte. É
preciso começar antes, alcançar o plano extra-moral, onde a vida ainda não se
voltou contra si. Aí reside a virtude dessa investigação além do bem e do mal,
de modo que e o investigar mesmo, com o qual identificamos a própria
análise, é de cunho originário. Não se distingue, portanto, do que chamamos
de avaliação pulsional.
As imagens do originário, assim como a submissão e a auto-destruição,
podem se estender até o campo do inconsciente e, de maneira indireta ou
direta, se mesclar à pulsão. Por que, ao enumerar o que pode ser inconsciente
sem ser originário, deixamos de lado a tensão agressiva e a tendência à
destruição? Na medida em que elas têm por objeto as leituras menores do
processo pulsional, do real, elas trazem em si a ciência das coisas originárias.
E a insistente pergunta: como se pode estar certo de freqüentar esse campo?
De onde procede a garantia de que estamos à sua altura? É aqui, ao tratar da
exclusão e da destruição que devemos, como já expusemos anteriormente,
situar o “pensamento excludente, aniquilador, oriundo das avaliações” e dele
extrair todas as conseqüências analíticas. Em que esse pensamento se
distingue do recalque e, de modo mais específico, de um idealismo, um
narcisismo ou um fascismo, que excluem e neutralizam o que lhes é estranho?
O vetor psicanalítico adquire toda a sua relevância nesse discernimento, e isto
na medida em que – para ser consistente e estar acima de qualquer confusão
contra-transferencial – se alia à pulsão. Como garantir, no entanto, a pureza do
discernimento? Como assegurar que a análise se alie de fato à pulsão e não a
outra instância subjetiva com a qual a pulsão aparece de modo geral mesclada,
a uma visão pulsional e não a uma imagem da pulsão? Sem dúvida entra em
questão, e de forma decisiva, o desejo do analista. O que ele quer?
O problema levantado por Foucault relativo aos dispositivos de poder
envolvidos na produção de uma verdade do sujeito merece aqui nossa atenção:
a análise não se parece a uma nova versão da confissão? Não emprega um
instrumento ainda mais sutil de incitação ao discurso verdadeiro? E não se
dedica assim a uma produção de verdade que não é, finalmente, outra coisa
que a constituição de uma interioridade, a fabricação de um sujeito? O que
pareceria inicialmente revelação de algo profundo, é tão-somente montagem
de superfície? Freud fala em das unseres Wesen, o coração de nosso ser. É
possível conceber qualquer coisa dessa natureza sem recair na crença de uma
verdade última, a ser desvelada por meio do exame de si mesmo e sob o

165
testemunho instigante de um ouvinte autorizado? O impasse aparente se
desfaz quando se pensa não em termos de uma verdade interior recôndita, a
ser desentranhada mediante uma fala sobre si, mas em termos de poder e saber
obscuros e atuantes, e que não se esclarecem senão quando exercidos. A
verdade da pulsão é a desse poder e desse saber em seus diferentes graus de
exercício. Do mesmo modo, a pulsão é uma exigência, todavia adormecida em
seus diversos graus de profundidade. É que a vida como tal não pode ser
produzida – ela se auto-produz como exigência exercida sobre si (a dobra).
Mas mesmo esta auto-produção só se autoriza pelo devir de uma potência
mais alta, que é onde reside sua obscura vitalidade. Dessa potência decorre a
necessidade de se falar em graus, graus de potência. Com a vida humana a
vida alcança seu princípio, isto é, sua essência e feição ativas. O vivo é tanto
mais vivo quanto mais decide em direção à sua potência ativa. É próprio da
vida – e portanto do vivo enquanto vivo – começar a partir de si, autorizar-se
de si, embora isso seja o mais raro, seu destino mais avançado e o mais
perigoso. Neste sentido, a vida é aristocrática, entendido esse termo à maneira
nietzschiana – nobreza originária das forças ativas. Mas não se deve esquecer
que, por mais originária que seja, uma nobreza se constrói, se exerce, se
consolida. A análise se dirige a este cerne ativo, e quanto mais se aproxima
dele, mais a existência se constrói e se pronuncia ao seu modo. É o “coração
do ser” e sua obra. A ele convém reportar a origem do que Foucault chama de
“focos de resistência”, ou seja, as forças que não só resistem aos dispositivos
institucionais de poder-saber, mas também às potências cegas, psicoquímicas,
“neuromagmáticas”, que inundam o campo social. Esses focos de resistência
seriam os verdadeiros defensores da vida, o que poderia se condensar na
constatação de serem, simplesmente, os verdadeiros, isto é, aqueles que estão
do lado da verdade. E a verdade seria apenas um sinônimo de vida ativa –
nome que daríamos, também, a uma potência de escolha 205.
Eis um fragmento de relato clínico:

205
As questões do verdadeiro e da verdade se deslocam para o domínio ético da prova e do combate. Em suas
aulas sobre Spinoza, Deleuze distingue os sentidos do verdadeiro e do falso conforme se apliquem a uma
moral ou a uma ética. Com esta, ao menos em Spinoza, estamos no domínio da etologia, isto é, das maneiras
de viver. Não o juízo que decide a adequação do intelecto à coisa, não os juízos morais que julgam os
existentes e os seus atos com uma medida extrínseca, mas a autenticidade do modo de existência e as provas
de sua consistência. A prova e não o juízo (Cf. Deleuze, En médio de Spinoza, op. cit., p. 65 e 66). Reaparece
aqui, de outro modo, uma análise de Foucault sobre a pesquisa da verdade e o desenvolvimento das formas
jurídicas: ele assinala uma mudança decisiva no estatuto da justiça (e por conseqüência no critério de
verdade), quando o processo judicial passa da prova ou da disputa (que presidia, por exemplo, a ética dos
cavaleiros), para a instauração de uma terceira instância, própria dos governos monárquicos e estatais,
aparelhada de um procurador e de um procedimento de inquérito. É a substituição do processo ético da prova
pelo procedimento moral do juízo (Cf. Foucault, M., A verdade e as formas jurídicas, Nau Editora, RJ, 2002).

166
Ivan decidiu fazer palestras nas sessões de análise. A cada vez, de pé,
em estilo professoral, expõe um assunto que, pode-se dizer, é de interesse de
todos, embora só eu esteja ali, sentado, como de costume, na minha poltrona.
Penso que é muito inusitado, que Ivan opera uma distorção profunda do
setting analítico. Ele não fala de si, e as intervenções que faço no sentido de
reorientar sua atenção para os problemas da vida soam aos seus ouvidos, de
modo geral, como perturbações da preleção em curso. Ao discorrer, usa
freqüentemente o pronome “nós”, ou a expressão “a gente”, indicando com
isso que sua fala é supra-pessoal e se sustenta, em última instância, em uma
comunidade espiritual.
A mais recente expressão do que chamaríamos, no primeiro instante, de
um exorbitante acting out, é ele se nomear analista. Diante da minha
interpelação – “para que sirvo eu, então, se você mesmo é o analista? Para
que você vem aqui?” –, observou apenas que uma coisa não exclui a outra,
que ele pode, sim, vir às sessões e ser ouvido por um analista, mas também
exercer essa função em relação a si e ao mundo. Logo depois, em meio a uma
palestra sobre a importância dos conhecimentos filosóficos, fez menção, de
passagem, ao nosso diálogo de analistas, e como esse diálogo se incorporava
ao processo de transmissão do saber. É que eu questionara a eficácia de
palestras dirigidas a uma única pessoa, sendo que, pelas suas palavras,
depois de ter vencido algumas batalhas espirituais, as grandes verdades já
podiam fluir para todos. Isso, obviamente, não constituía um problema, pois a
transmissão desses conhecimentos superiores não dependeria de meios
acadêmicos e outras formas tradicionais de ensino para alcançarem as
pessoas, sua difusão se faria por contágio, pela exemplificação prática, pelo
modo de vida, não importando o quão discreto e silencioso ele fosse. As
forças espirituais não têm a menor dificuldade em se expressar através
daqueles que, preparados ou não para isso, lhes servem de condutores, e o
fazem de múltiplas maneiras, seja pelos gestos, pela fala, pelos
acontecimentos ou por outros meios ainda.
Sessões após sessões, Ivan desenvolveu seus conhecimentos de história,
ciência natural, filosofia, psicanálise, história da arte, história da religião,
destinando o horário de uma sessão para cada assunto, sem pretender,
contudo, que suas pesquisas fossem muito profundas ou exaustivas. Ele
reconhecia o caráter provisório e parcial desses estudos, mas não abria mão
de sua importância e do direito de se manifestar a respeito. Eu me via, a cada
vez, entre irritado e ligeiramente aturdido, pois não estava claro que a sua
atuação sistemática e a conseqüente deformação do setting fossem
inaceitáveis sem uma intervenção mais incisiva da minha parte, ou melhor,
que sua performance precisasse ser interpretada como uma resistência à

167
análise, como expressão de um narcisismo prepotente, altamente defensivo,
ou algo assim. Sentia que minha neutralidade analítica estava sendo testada
de várias maneiras, bem como a eficácia clínica do meu modus operandi. Em
que medida podia permitir a subversão do procedimento sem que este
sucumbisse definitivamente, e em que medida precisaria admitir que o
procedimento era flexível o bastante para permitir as inovações de Ivan, as
quais, segundo ele, eram necessárias ao seu processo? Mas também existia,
como disse acima, a impressão irritante de estar sendo neutralizado,
convertido em espectador ou, pior ainda, em uma espécie de aluno
privilegiado, de qualquer modo expulso do contexto da análise, não sem que
ela fosse expulsa comigo. Às vezes me sentia transformado em uma peça,
aparelhada de olhos e ouvidos, da máquina mediúnica que se denominava a si
mesma Ivan. Havia algo de confortável e desconfortável ao mesmo tempo no
fato de pensar que eu só precisava estar ali, sentado, e mais nada. Talvez
pudéssemos passar anos assim, tendo essas ocasiões semanais de descanso e
perplexidade para mim, e de interlocução vazia – envolvendo, porém, um
prazer indefinível – para Ivan. Pareceu-me que se operava ali a chamada
identificação projetiva, segundo a qual o paciente, no processo analítico,
reduz o analista a uma não existência efetiva. É uma espécie de liquidação da
diferença. Captado em uma imagem paralisante, eu perdia assim todos os
meios de agir na situação clínica. Minhas tentativas de reverter esse quadro,
uma vez empreendidas, me soavam frágeis, pouco convincentes. O argumento,
sob a forma de uma interpretação, de que essa necessidade de expor e
transmitir conhecimentos evocava a frustração existencial de não se sentir
reconhecido no ambiente familiar, especialmente pelo pai, e que isso ainda o
fazia sofrer – tanto que o máximo que conseguia era uma exposição das mais
intimistas, aquela que se desenvolve no espaço confidencial da análise –, era
um argumento que obtinha sua concordância, mas não alterava o andamento
da cena. Eu poderia ainda dizer: “vamos parar com isto, sente-se!”, ou
“deite-se, e passe a associar livremente!”. Mas eu já havia aberto o campo
para o delírio e a eventualidade de uma atuação inusitada. A máquina
analítica resistiria?
A análise constitui um espaço de virtualidades e experimentação. Não
edipiana, é pulsional e pragmática. Deve se guiar pelas linhas do inconsciente
sem perder de vista a pulsão, o poder de avaliação, de intervenção ativa, pela
qual, justamente, o analista faz parte do conceito de inconsciente. O campo
analítico é um laboratório existencial.
A crítica de Foucault se mantém incólume, mas também a análise
permanece em seu ethos eficaz, posto que opera uma torção ali onde o “bio-
poder” tende a tirar todas as conseqüências de sua produtividade difusa,

168
microfísica e micrológica – a produção e reprodução de vida subjetiva. Que
torção é esta? E onde, de fato, ela atua? Ali onde se esperaria um novo modo
de sujeição e, com ele, uma maneira muito contemporânea de eludir as
verdadeiras questões – aquelas que dizem respeito à condição originária de
escolha e, por conseguinte, à sua desativação sistemática em favor do que hoje
se poderia chamar de servidão generalizada –, ali mesmo se instala um
laboratório existencial, sem ponto de partida e sem meta. Quase um caos, não
fosse o desejo do analista e o dispositivo ético que ele monta a cada vez, de
modo a valer certamente para todas as vezes, segundo o critério da força
constante. Quando acima procurávamos saber o que permite destacar a visão
pulsional das imagens da pulsão no contexto analítico, recorremos à pergunta:
o que o analista quer? Ele quer a emergência de uma vida ativa e sua prática
constante. Talvez se objetasse: mas não é isto um ideal de eu do analista? Por
que o sujeito não poderia desejar algo diferente para si? Não poderia, por
exemplo, querer morrer? A autodestruição não é também o exercício de um
poder de escolha? Por que dissemos que ela não é originária? Lacan, por sua
vez, disse que o analista quer a diferença absoluta. Não é difícil demonstrar
que a diferença absoluta não se distingue de uma vida ativa.
Não se trata, em análise, da verdade do que está sendo falado, ou ainda
do sujeito enquanto alvo do discurso, mas simplesmente de que a verdade
fala. A abertura analítica à fala não é a ocasião privilegiada de emergência de
uma verdade à qual a fala, em última instância, entregue a ela mesma, se
reportaria, ainda que o fizesse obscuramente; ela é diretamente abertura à
verdade da fala em seus diversos graus de exercício. A vida ativa fala, e sua
fala é plena. Mas isso compreende ouvir-se, ter atenção com o que se diz,
cuidar de si. Ela não seria suficientemente ativa se não cuidasse de si. O
curioso é que, quanto mais ela é capaz de cuidar de si, mais impessoal ela se
torna.
Mas vamos por passos. Uma coisa é o curso biológico da vida, outra o
cuidado de si. Com este se opera uma dobra e a constituição de um novo
plano, ético e estético, onde tudo passa a se decidir. É a aplicação ativa do
pensamento em não só aprimorar, mas em constituir uma vida. O ponto de
vista ativo é uma conquista e uma prática. Agir, aqui, não se confunde com o
agir sensório-motor. Diremos que é ético, espiritual, mas também que não há
outro princípio espiritual que esse agir mesmo, em todos os seus graus. Por
isso o segundo plano, que chamamos de ético e estético, pode, por sua
natureza mesma, ser constituído ou não, e o será em diferentes graus. É a
possibilidade de uma constituição ativa, supra-biológica, inorgânica, que
estará em jogo todo o tempo. Daí o interesse clínico e crítico da pulsão. Não
se trata de um projeto existencial que a consciência impõe à vida, mas de um

169
modo de ouvi-la que não se distingue de exercê-la, torná-la ativa, transformá-
la no que ela é. É o circuito em retorno da pulsão e o sentido da análise.
Quanto mais se distinguem os dois planos, mais o segundo se constitui, mais
alcança o seu poder, o que não significa nenhuma separação ou divisão, pois o
determinante de todo o processo é esse princípio ativo em exercício, entendido
que ele não se distingue de uma prática. Uma bio-lógica decide agora todas as
coisas. Em vista disso, sempre terá sido assim. É o que significa o amor fati.
Não é preciso dizer que esse segundo plano compreende um ritmo de tempo
distinto das cadências biológicas.
Dir-se-ia que Ivan começa a aterrisar. Seu surto teve um ápice, quando
então foi internado num hospital psiquiátrico, contra a vontade, mas assim
mesmo pacificamente. De fato, não houve violência da parte dele, em
momento algum. Nas suas palavras, estava em êxtase, e a família, não o
reconhecendo naquele estado, concluiu que era caso de reclusão e tratamento
especializado. Já depois de um tempo de análise, passou por um momento
crítico “com a medicina”. Sua carteira de habilitação para dirigir só seria
renovada mediante uma junta médica – a declaração de seu psiquiatra
atestando que ele podia dirigir não era suficiente para neutralizar o efeito do
diagnóstico que recebeu no período da internação: “surto paranóico-
esquizofrênico”. Isso porque respondeu honestamente ao questionário onde
se perguntava pelo uso de medicamento psiquiátrico. Com essa informação
chegou-se ao diagnóstico de origem, e daí à determinação de um
procedimento especial, a junta médica. “Meu surto não foi esquizofrênico, e
sim mediúnico”, disse ele, recusando, finalmente, submeter-se “à ignorância
da medicina atual em assuntos espirituais”, e ao “constrangimento” de se
sentir avaliado. Mas por que não se submeteria ao exame, se o que estava em
jogo era sua habilitação, e esta lhe traria o conforto e a funcionalidade do
automóvel? A falta da carteira, porém, lhe parecia providencial, pois deixaria
de ser o motorista de prontidão da mãe e não precisaria mais se ocupar, tão
amiúde, dos assuntos dela. Por que não se desvencilhava dessas obrigações
com a mãe de um modo mais direto, sem o prejuízo dos seus movimentos?
Região turva, pois dependia de recursos familiares que foram deixados pelo
pai, recém falecido, e que a mãe administrava atualmente. Por que não
procurava trabalhar, como todo mundo? Ainda mede seus passos. Está
retornando devagar das guerras espirituais que travou. Está aterrisando –
constituindo, quem sabe, um território onde possa existir.
A análise é um pequeno campo de batalha. Nela se atualizam combates
que são, em última instância, de natureza ética. Se o analista se alia às forças
pulsionais é porque elas procedem do reino dos céus. Contudo, um dos
grandes desafios dessa destinação é manter, mesmo assim, os pés no chão. É o

170
que ensina o caso de Zélia e, agora, o de Ivan, com sua necessidade de pouso.
Em outras palavras, a pulsão precisa ser exercida, praticada, aqui, en-corps,
como diz Lacan, encore (mais ainda). E é sem dúvida o clamor de Zaratustra:
“trazei de volta à Terra a virtude perdida, trazei-a de volta à vida e ao corpo...”
Como já dissemos, a linha de desterritorialização absoluta não é uma linha de
desencarnação, e sim a constituição de um plano ético pelo qual a vida se
torna o que ela é.
Sempre se poderia afirmar: melhor um saudável estado inconsciente,
com sua automática e fina inteligência, que uma consciência pretensiosa e
iludida, contrariando a pulsão e formando juízos sintomáticos sobre a
existência. Como distinguir, então, esse estado inconsciente, sem dúvida de
ação, do exercício ético da pulsão? Que diferenças – se mantivermos que faz
toda a diferença estar ou não à altura dos processos inconscientes –, aí se
observam? A dupla afirmação é intrínseca à pulsão; é dela que deriva o traço
ou a escrita existencial, o estilo; é ela que se expressa nos graus superiores de
perfeição e domínio. A diferença estará entre existir e não existir ainda?
“Ainda não nascemos”, dizia Artaud. Mesmo o existir tem mais de uma figura
no pensamento, e isto na medida em que o pensamento apreende, aqui e ali,
fagulhas do real. Assim é o caso do cogito cartesiano. Mas o existir depende
também do trabalho que se faz sobre si, de geração em geração, o que
Nietzsche denominava de cultura, seja a dos gregos ou dos alemães (“o que foi
necessário para produzir um povo de pensadores...”). A pulsão é uma dobra,
uma volta sobre si, Dioniso e Ariadne, uma dupla afirmação, uma natureza e
uma cultura. Esse arco em retorno, que se deixa apreender, por exemplo, em
suas modalidades e derivações perversas (o retorno sobre o eu ou a passagem
do ativo ao passivo, conforme alguns destinos pulsionais recenseados por
Freud), aparece no pensamento analítico de dois modos extremos: um de
contorno especulativo, meio biológico e meio metafìsico, em que “o arco é a
vida e seu alvo é a morte”, e outro clìnico ou ético, pelo qual se assinala um
retorno ao isso, à pulsão, à prática do inconsciente. Num caso se tem em vista
a pulsão de morte, no outro a sublimação 206.

206
Insistimos no uso diferencial de pulsão de morte e de sublimação, apesar do modo como esses termos
foram aproximados em uma leitura renovada de Freud. Não é apenas por comodidade de exemplo que se
evoca a apatia sádica e o masoquismo para falar de uma dessexualização na origem do pensamento. É a
negatividade da consciência e suas idealizações que mobilizam a dessexualização, fazendo crer que o
pensamento tem aí sua origem. É preciso dar um passo além, e retomar a idéia de uma ressexualização do
pensamento, também encontrável nas pesquisas freudianas – o que chamamos, de nossa parte, de retorno do
pensamento à vida e da vida ao pensamento. Desse ponto de vista, a pulsão de vida é diretamente pensamento,
diretamente sublimação. Produzir diferença por negatividade é próprio da consciência, não do inconsciente.
Este compreende, todo o tempo, uma afirmação da diferença (= pulsão). Não é raro, porém, que a dupla
afirmação originária se instrumentalize da negação, o que a faz ser lida como pulsão de morte por instâncias
não pulsionais.

171
Uma consciência à altura da pulsão ou, em outras palavras, uma prática
da pulsão, na medida em que evoca planos de imanência inconscientes, não
explorados, não construídos, desenvolve-se como saber do homem vivo e se
verifica, portanto, como um saber prático. Tal saber não deve ser confundido
com um saber utilitário; diz respeito, ao contrário, ao uso mais lúcido dos
recursos disponíveis, incluindo obviamente a inteligência. Mas o que se
entende por “uso mais lúcido”? Aquele que tem em vista os afetos originários
e o grau mais alto de existência. Eis o que compete à subjetividade enquanto
poder de avaliar, se estendermos a idéia de avaliação à de apreciação,
degustação, gosto. Um poder de avaliação deve ser compreendido como um
poder de gozo, o que não significa nenhum gozo mortífero, nenhuma vontade
de gozo. O gozo, nos termos pulsionais, e ao contrário do que se habituou a
pensar, não aparece como uma finalidade, mas como o que é inerente aos
exercícios de avaliação-apreciação – de novo, não em nome de um gozo
almejado, mas de uma elevação das condições de vida. Para quê? A pergunta é
redundante, pois elevação quer dizer, aqui, conservação de uma vida
ascendente.
Resumindo, o gozo aí implicado por definição é o gozo de um poder de
avaliar e já a avaliação, a apreciação, a pesagem. Desse modo se compreende
porque a satisfação é imanente à atividade pulsional e se resolve em saber, e
como é possível recuperar, pelo caminho analítico, os fundamentos de uma
ars erótica, ou simplesmente da arte, distinguindo-a da scientia sexualis com a
qual nos habituamos no ocidente. Compreende-se também porque a análise, ao
abrir o campo subjetivo a novos pontos de vista, a uma visão exterior do
sintoma, tornando-o inteligível, reduzindo-o a não ser mais que uma equação
lógica, acompanhada, talvez, de riso, compreende-se, repetimos, porque a
análise é uma gaia ciência.
Um exemplo analítico simples, dos mais cotidianos, pode indicar a
presença dessa ciência alegre: seja o caso de uma senhora de idade, viúva e
decididamente devota, espantada com o fato de faltar-lhe a voz quando se põe
a rezar ou a entoar hinos religiosos, tanto em público, na igreja, como em casa,
sozinha, ela que sempre louvou e agradeceu a Deus em alto e bom som. A que
se deve a perda da voz, precedida, na solidão do lar, por um bocejo, o qual
serve de alerta para que ela, mesmo baixinho, continue orando e, assim, não
caia no sono? O que acontece, se antes era tão prazeroso louvar aos céus em
voz alta? “Será”, pergunta ela, “que fiquei descrente? Não é possìvel, eu
acredito em Deus!”. À pergunta analìtica “O que é acreditar em Deus?”, ela
responde: “É acreditar que Ele nos protege”. Eis o ponto: talvez essa crença
esteja em questão. Conforme um tema constante de sua análise, se não cuidar
de si mesma, ninguém irá cuidar. Cuidar de si, em sentido amplo, significa

172
remontar à origem de todas as questões, trazê-las para o âmbito da pulsão que,
como já dissemos, é a cabeça em pessoa. Ela – a cabeça pesquisadora, graças
à qual e para a qual se constitui o plano ético de que falávamos – já não dispõe
da voz para aquele fim obscuro. A análise mesma é a criação desse plano. “Eu
queria um milagre”, diz a senhora, entre lamentando e rindo. Seria o caso de
lhe dizer que o milagre é a cabeça que temos? Dada a miraculosa cabeça, tudo
passa a depender do uso que fazemos dela, ou seja, tudo passa a depender dela
mesma. “A filosofia, a arte, a ciência”, dizem Deleuze e Guattari, “não são
objetos mentais de um cérebro objetivado, mas os três aspectos pelos quais o
cérebro se torna sujeito” 207. A psicanálise é um pouco de ciência e arte na
vida cotidiana.
Talvez a fé em Deus possa permanecer intacta, desde que mude de
sentido. Afinal, por que a cabeça não seria um milagre de Deus? Quanto ao
uso dela, já não depende de milagre algum. Pensar é uma auto-determinação
rara, é quase um milagre, mas se distingue inteiramente de um milagre por não
depender de nada. Sem dúvida é um confronto com o caos, mas a pulsão
mesma não é um caos de pulsões, e sim ordenação originária. Esta pode ou
não se verificar, por isso é de ordem ética e não depende de nada.
Se não sabemos o que um corpo (o inconsciente) pode, como pensava
Spinoza, não sabemos como construí-lo ou, em nossos termos, como praticá-
lo. Atualizar esse poder-saber – tal é o empreendimento psicanalítico. Uma
análise, para ser movida pelo desejo, não precisa motivar-se por um
sofrimento. Se este chega a ser a razão propulsora, sem dúvida presente na
maioria dos casos, não é contudo a mais importante, não é a essencial. Que a
dor não seja o móvel primeiro acha-se de acordo com a crítica nietzschiana ao
hedonismo e ao pessimismo, inclinações filosóficas aparentemente contrárias
que partem da mesma idéia, isto é, de que toda atividade é causada e regulada
pelo prazer e o desprazer. É o que também Freud assinalou, ao conceber um
além do princípio do prazer. O que move essencialmente a análise é o desejo
de perseverar no exercício do desejo. Mais que o sofrimento, é a estranheza, o
inusitado, o acaso, o desafio que atiçam o desejo de perseverar, implicando o
poder e o saber que para tanto será preciso desenvolver. Também a análise é
uma aprendizagem. Nada nos impede de usar aqui uma terminologia
nietzschiana e dizer que uma análise é movida pelo exercício da vontade de
poder, desde que saibamos o que esse conceito exprime 208. Ora, semelhante
207
Deleuze, G., Guattari, F., O que é a filosofia?, p. 269, Ed. 34, RJ, 1992.
208
“Por que se deve juntar ao termo vida a qualidade de desejante? Porque é vida que se afirma, que se quer,
que insiste, que persevera. Não em razão de um objeto que falta, em razão de coisa nenhuma, mas por ser
intrínseco ao querer subjetivar-se, querer-se como tal: vontade de potência, dizia Nietzsche”. Schiavon, J. P,
O caminho do campo analítico, p. 137, Travessa dos Editores, Curitiba, 2002. Traçamos uma linha que
interliga Spinoza, Nietzsche e a psicanálise, e pela qual o desejo toma ora o aspecto do conatus ora da vontade

173
exercício envolve a viabilização reiterada de saberes ainda desconhecidos, de
potências vitais que pertencem ao âmbito das experiências originárias, e isto
por meio de novas avaliações que são tantas medidas de poder não-realizado.
É evidente que tal exercício, que pode ser inclusive o do pensar, ou melhor,
que é precisamente o do pensar em um sentido originário, é o mais nobre
destino da pulsão, seu destino ativo – a sublimação. O sofrimento neurótico
consiste no fato de não se estar nessa direção de modo dominante, ativo. Por
isso a neurose expressa uma experiência reativa da pulsão, um modo de negar
ou de minar sua prática, subtraindo-lhe o sentido. Consistindo na viabilização
reiterada de experiências originárias (a força constante), esse sentido lhe é
subtraído por meio de uma falsa imagem, uma falsa interpretação de suas
condições reais – subtração essa que também se constitui em prática.
Não é preciso dizer o quanto essa falsa imagem pode se insinuar no
pensamento e na teoria, e o quanto a clínica pode se tornar um
empreendimento que apenas representa a pulsão, ao invés de se tornar a sua
prática. Mesmo a prática do significante não é ainda a da pulsão; sua lógica
estrutural, se depura o espaço da representação, não alcança a pragmática
pulsional. O significante como tal cobre o domínio dos seus efeitos, mas não
responde pela atividade imanente que engendra um novo significante. É a
diferença entre o sintoma e a arte que, como dizia Lacan, tem o poder de
desarticulá-lo. Na medida em que o significante, não alcançando o plano de
um pragmatismo superior, pulsional, figura como instância última da clínica,
intercepta e neutraliza o processo do desejo ali, justamente, onde este passaria
aos verdadeiros problemas – o do valor (relativo aos afetos originários), o da
integridade (a determinação ética do processo), o da criação (o destino da
pulsão). É que a composição significante esboça, freqüentemente, certo trajeto
singular e, ao mesmo tempo, extra-pessoal; mas, elevada a uma abusiva
primazia, termina por eludir a verdade clínica de que somente a pulsão, tal
como a entendemos, dá consistência prática àquele trajeto, somente ela opera
o seu traçado real. É muito simples: o significante tem efeitos na vida, está na
vida, mas não é a vida. O dizer, ao contrário, é a vida em seu estágio mais
apurado. De modo que o significante pode ser legitimamente mantido, usado
na teoria e na clínica, se subordinado ao critério pulsional 209.

de potência, constituindo todo o tempo o fulcro ético da análise. Desse ponto de vista, não vemos sustentação
na crítica nietzschiana da conservação de si em Spinoza, se a conservação é de desejo e tem como sentido o
trânsito a uma maior perfeição. Sob este ângulo, o conatus em nada difere da vontade de potência. Uma
“maior perfeição” no processo analítico corresponde ao trajeto de retorno a uma prática constante.
209
Lacan soube fazer a análise recuar da realidade, tal como a supomos nos constituindo, ao significante,
revertendo a tendência dos analistas a cair na degradação psicológica do sujeito. Faltou mais um passo na
mesma direção, o de subordinar a ordem significante ao real (= pulsão).

174
Às invariantes estruturais, a pulsão opõe a variação contínua (o valor da
diferença). Às constantes linguísticas, opõe a prática constante de uma língua
indígena (o exercício ético, sublimatório). É claro que desta oposição resultam
duas concepções sobre a linguagem inconsciente – uma que repousa na
estrutura, outra na atividade. Elas não serão todavia excludentes se houver
subordinação da primeira à segunda. É fácil observar, inclusive no âmbito da
teoria, como o sentido se descola da prática pulsional, onde se resolve em
perspectiva, em direção, para se localizar no espaço da representação
(intersecção do simbólico e do imaginário, para usar os termos de Lacan). As
perguntas para que serve?, a quem serve?, são convertidas em o que quer
dizer?, o que significa?, nas quais são elididas a força e o uso, ou seja, a
pulsão, tanto do ponto de vista da potência como da prática. As primeiras
exprimem os problemas reais do inconsciente (domínio das avaliações
pulsionais), as segundas, na medida em que tomam o lugar das primeiras,
operacionalizam inquisições normativas pré-conscientes e conscientes (é o
sistema do juízo), sobretudo quando incidem sobre as formações do
inconsciente. As segundas, contudo, serão úteis se subordinadas às primeiras,
funcionando como momentos ou peças de um processo de reversão.
A conversão de que falamos resulta no que Lacan denominou de fading
do sujeito (ou do afeto originário), que é o seu desaparecimento em favor do
sentido representado. Lacan não esclareceu, porém, que subsistia o sentido
inconsciente da pulsão, ou seja, o seu discernimento, sem o qual não haveria
possibilidade de análise.
Voltando ao exemplo da senhora devota, a pulsão, como poder de
avaliar e discernir e, no caso, como uma pequena claridade recém-
conquistada, subtrai a voz ao uso letal, sendo ela mesma essa subtração – se a
considerarmos do ponto de vista da representação (“será que virei
descrente?”). Do ponto de vista dela mesma, ensaia retomar o circuito em
retorno, a perspectiva ativa, a dobra, o cuidado de si. Não mais orar em voz
alta – isso significa descrença? Pode ser. Mas é secundário, derivado.
Colocam-se em confronto, aqui, duas representações (“sempre fui crente, e
agora...”), que tanto podem instaurar um julgamento como denunciar uma
fenda. Muito diferente é a pergunta – que a fenda deixaria entrever – pelo uso
da voz em uma perspectiva pulsional, ativa. Para que serve, a quem serve a
voz (e o corpo)? Enquanto processo de avaliação, essa pergunta concerne aos
atos e às forças, e não ao ser. Ela já aconteceu, já se respondeu, bem antes da
pergunta pelo significado, e antecedeu inteiramente o juízo. Este pode ser
imediatamente reconstituído, assim como o ato inconsciente imediatamente
afirmado. O inconsciente é isso, a antecedência real – do ato, da força. Talvez,
a partir de certo momento, a voz daquela senhora passasse a servir apenas à

175
fala, à talking cure. Nesse ato do inconsciente observa-se algo de “um
funcionamento vital e corporal do pensamento” 210, por mais fugaz e obscuro
que seja. Não um pensamento representativo, mas intuitivo, direto, ativo.
Em um texto intitulado Disciplina e seleção, Nietzsche desenvolve uma
série de proposições relativas ao que ele chama de ideal aristocrático.
Verdadeiras recomendações de caráter prático, todas elas têm um traço em
comum – a exigência de superação. Por exemplo, “levar até a sua sutileza
mais extrema a casuìstica da honra”. Quem diria que isso tem a ver com a
pulsão? Força atuante e já processo de autodeterminação como tal (a dobra e a
desdobra), a pulsão estabelece fins de disciplina e seleção, de modo a
favorecer o mais importante, isto é, o próprio poder de avaliar e de estabelecer
fins. Não há, no entanto, tal poder senão como avaliação em curso, ativa,
atuante, que a todo o tempo procura as melhores condições para o seu
exercìcio. É nisto que consiste o que Nietzsche chama de “firmeza”, quando
aproxima a noção de honra, em seu grau mais elevado, da condição de
avaliação: “O que exijo de vós, ainda que soe mal em vossos ouvidos, é o
seguinte: que submetais a uma crítica vossas valorações morais. Que ao
impulso do sentimento moral que quer submissão e não crítica, retornai-lhe
esta pergunta: por que submissão? Firmeza é o que falta. Esta exigência de um
porque, esta crítica da moral dever ser considerada justamente como a forma
atual da moral, como a espécie mais sublime de moral que vos honra e ao
vosso tempo. Que vossa lealdade, vossa vontade de não vos enganar se
manifeste com estas palavras: „por quê não?‟, „ante qual tribunal?‟” 211 Vê-se
que o ideal aristocrático de que fala Nietzsche consiste na prática do real, ou
seja, da força ativa. Dizemos “prática” porque a força ativa não se distingue da
exigência e da firmeza que a constituem como ativa e que são, efetivamente, a
sua prática, a sua realidade em ato. Poder-se-ia pensar: exigência de perfeição
e firmeza de propósito, mas seria apenas aproximativo e daria margem a
equívocos – o culto de um ideal pode se valer dos mesmos critérios. É bem
antes a exigência de exame crítico e a firmeza para sustentá-lo frente a todo
juízo moral e a todo conhecimento adquirido. Não é um ceticismo ou um
cinismo à maneira antiga. A firmeza de que falamos é toda ela decisão, ato, e
por vezes avança por regiões onde nenhuma instância moral, nenhum
conhecimento normativo autorizariam. Essas disposições – exigência de
avaliação e firmeza de decisão – aguçam o real, ou melhor, elas são a própria
textura do real. Pode-se suspeitar que indicamos assim o que é preciso
entender como ética analítica.

210
Cf. O que é a filosofia?, citado por Luiz B. L. Orlandi, em Cadernos de subjetividade, p. 67, Núcleo de
Estudos e Pesquisas da Subjetividade, PUC-SP, 2010.
211
Obras completas, op. cit., 399, p. 157.

176
O sintoma, ou o sofrimento neurótico, é sem dúvida sinalizador de
saúde, um alerta de que a vida se detém em algum ponto, se ressente de um
prejuízo e investiga seus próprios meios, suas linhas de fuga, suas
possibilidades de inovação. É óbvio que essas impressões e buscas, de origem
pulsional, não precisam ser conscientes e diretas; pelo contrário, na sua
imensa maioria são inconscientes e muito tortuosas, conforme os obstáculos
em jogo e a atuação deles no tempo. E aqui, mais uma vez, é preciso argúcia
no discernimento, é preciso estabelecer, no concernente ao processo analítico,
verdadeira aliança com as forças pulsionais, de modo a não perder de vista o
seu critério vital. Dir-se-ia que o alvo privilegiado da análise consiste na
criação de uma condição privilegiada de exame. A imagem freudiana da
batalha entre a baleia e o urso polar figura uma situação de partida e sugere,
naturalmente, a complexidade do empreendimento: como esses animais se
enfrentarão, se um vive no mar e outro na terra? 212. É necessário construir-
lhes um mesmo plano, assim como aos termos inconscientes do conflito
psíquico, de maneira que a subjetividade, nessa nova superfície, seja um poder
renovado de avaliação e esteja em condições de decidir, agora, pela sua
própria direção. Só se pode realmente decidir pela própria direção. É um dos
sentidos da análise, propiciar o retorno esclarecido do recalcado – a própria
direção. Trata-se de uma atividade avaliadora restaurada, renovada. Uma
análise não visa outra coisa que restaurar essa condição, não apenas pelo
sentido ético de deixar ao sujeito a tarefa de resolver-se com os termos de um
conflito já elucidado, mas porque a condição de exame é, ela própria, de
origem pulsional, já é o exercício da pulsão, e é este, mais que qualquer
conteúdo (objeto) sobre o qual possa incidir, o alvo da análise. Não há,
repetimos, diferença entre o alvo da análise e o da pulsão – uma vez que esta
almeja seu próprio exercício constante. Tal é a sua satisfação. Percebe-se deste
modo o quanto o recalcado originário é justamente esse exercício.
O caminho de uma análise não é indiferente, ou melhor, não há
neutralidade analítica para além daquela que se abstém de ajuizar sobre os
objetos pulsionais – os meios para a satisfação. Pois a questão pulsional não é
a do objeto, originário, mítico, faltante ou singular, mas a do exercício como
tal da pulsão – antes de tudo, como poder de avaliação. Trata-se de uma
questão relativa à atividade, ao princípio ativo em jogo e, por conseqüência, às
circunstâncias favoráveis ou desfavoráveis à preservação ou à restauração
desse princípio prático, não representativo, abstrato. Note-se que esse alvo não
tem relação direta com o significante, a representação ou a identidade. Em
MDMagno, que é um dos poucos autores cuja pesquisa, graças ao privilégio

212
Obras completas, op. cit., Analisis terminable y interminable.

177
dado à noção de pulsão, passa ao largo do espaço da representação, aquele
princìpio corresponderia a um lugar “angélico”, de indiferença e de
neutralidade. Para nós corresponde ao lugar da diferença em pessoa, da mais
intensa atividade (que, obviamente, não se deve confundir com ativismo
psicomotor), ao lugar, portanto, de uma potência de exame que distingue e
hierarquiza em conformidade com ela própria. Assim, a pulsão de vida não só
tem seu próprio critério de verdade como ela é esse critério.

Niilismo e não-senso

Falamos de preferência em vida pulsional – por que não em desejo?


Porque o desejo deve ser concebido de acordo com a noção de pulsão; esta
sim é uma noção fundamental. Novidade psicanalítica por excelência, contém
as ideias de atividade, exigência, constância, alvo invariável, objeto
absolutamente variável, circuito em retorno, etc. 213, que permitem definir em
que medida, e sob quais critérios, a pulsão e o desejo vêm a ser o mesmo, ou
seja, em que medida a cura se torna uma prática efetiva.
O niilismo como condição psicológica – mas se poderia dizer também a
psicopatologia em suas diversas modalidades – só se esclarece, de um ponto
de vista analítico, no curso da transmutação do afeto obscuro em lucidez, de
acordo, portanto, com a elucidação da lógica pulsional em sua incidência
prática, em sua inscrição real. Esclarecer o niilismo significaria então, ao
mesmo tempo, superá-lo teórica e clinicamente, avançando além das
estruturas clínicas descritas até o presente, se é verdade, como estamos
sugerindo, que todas elas expressam diferentemente a presença insidiosa do
“mais sinistro de todos os hóspedes”.
O privilégio da lei 214 na conformação da experiência neurótica se
constitui por meio da falha, da repetição do mesmo, do sintoma; já a perversão
denota o privilégio equívoco da transgressão que, sendo impensável sem a lei

213
Poderíamos acrescentar ainda as idéias clínicas de vida e de morte, bem como os destinos pulsionais, a
começar pelo originário, a sublimação, seguido das destinações menores, isto é, da perversão, da neurose, da
psicose, etc. O desejo será sempre considerado segundo critérios pulsionais. Mas isto significa que o desejo,
em suas condições originárias, é a prática decidida da pulsão.
214
Falamos em lei por abreviação, comodidade de expressão, pois com essa palavra – ao menos no contexto
presente – pretendemos designar, além da lei (no sentido amplo e usual), um modelo, um modelo ideal, uma
forma hegemônica, o que é, por exemplo, normativo nas fórmulas da sexuação de Lacan, isto é, o lado
Homem e sua resolução lógica, assim como a figura dominante do “homem-branco-europeu...”, destacada em
Mil Platôs (à qual se contrapõem as vias minoritárias e os processos de singularização). Já pressupomos,
portanto, o questionamento de Foucault à idéia de lei como representação do poder, em favor da análise de
um bio-poder e de seus dispositivos estratégicos, de sua micro-física e suas tecnologias. A forma da lei,
porém, sob o aspecto específico do juízo, não deixa de incidir na experiência subjetiva, precisamente na
medida em que esta se orienta pela representação. É disto, aliás, que temos falado quando, com interesse
clínico, investigamos os caminhos de tratamento pragmático e não representativo do campo pulsional.

178
(Sade e a moral cristã, Bataille e o catolicismo), nunca vai além de uma père-
version. As prisões, dizia Blake, se constroem com as pedras da lei, os bordéis
com os tijolos da religião. Ora, as psicoses são verdadeiras rupturas com o
dueto da lei e da transgressão, a tal ponto que o psicótico vive, não raro, uma
sentença de morte, e sufoca sob um juízo monstruoso: não houve transgressão,
a lei que condena é descabida, a perseguição é injusta. De fato, é uma incursão
pelo real, mas inteiramente assombrado pela lei (eu só não me deixei matar.
Tudo o mais aconteceu, e já não tenho a vida de antes). O que existe de
comum nos três casos? O sistema do juízo 215 se encontra em plena vigência e
se insinua por tudo. Estendendo sobre o orbe humano – mas quais serão as
dimensões desse orbe? – malhas cada vez mais finas e flexíveis, esse sistema
serve para reter e neutralizar as potências desconhecidas da vida. É, como
dizia Artaud, uma espécie de consciência coletiva em estado de vigília, de
alerta. Seu sucesso consiste no desdobramento infinitesimal de tal rede, mas,
dada sua competência reativa, é uma operação que atesta um insucesso
crônico 216. É como o recalque em relação ao recalcado. Essa condição
derivada, reativa, não dá lugar a nenhum otimismo, pois o juízo tende a ser
fatal. Estender a rede não se distingue de moldar, produzir segundo os
modelos vigentes, modular esperanças e medos, constituir, enfim, o orbe
humano, tanto em seu lado direito como em seu avesso. As transgressões
perversas são ainda modalidades de captura, e não evocam a pulsão senão
como pulsão domesticada, desfigurada. São escapadas fictícias, modos de se
deixar apanhar. Já os desmoronamentos psicóticos encarnam o avesso radical
daquele sistema, sua pura negatividade, embora na experiência nada seja
assim tão puro. Nela se misturam, antes de mais nada, os destroços do juízo.
Esse estado de coisas e suas misturas, suas derivas controladas, explicam em
grandes linhas as psicopatologias, isto é, indicam o fundamento das diversas
formas de divisão do sujeito, permitindo compreender a função da análise em
nossa cultura.
Eis então, lançados no cadinho clínico, esses três termos: o niilismo, o
sistema do juízo e as psicopatologias. Como se articulam, se é que existe aí
uma articulação possível? É a lógica pulsional que permite e mesmo exige
essa articulação. Ela não é o negativo ou o avesso do que designam aqueles
termos, e sim uma distância clínica capaz de discernir, usar, subordinar,

215
Devemos a Deleuze o termo “sistema do juìzo”, com a acepção com que aparece, por exemplo, em Crítica
e clínica. Seu emprego em Deleuze decorre, em grande parte, da presença da idéia de “juìzo” e sua crìtica nas
obras de Nietzsche, Kafka e Artaud.
216
A bio-polìtica, segundo Foucault, designa “o que faz entrar a vida e os seus mecanismos no domìnio dos
cálculos explícitos e faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana”. Mas isto “não
significa”, continua ele, “que a vida tenha sido exaustivamente integrada nas técnicas que a dominam e
gerem; ela escapa-lhes sem cessar” (citado por Ana Godinho, em Cadernos de subjetividade, 2010, p. 76).

179
deslocar, desarticular tanto o niilismo como o juízo, em favor de destinos
pulsionais ainda desconhecidos. Demarca assim uma anterioridade lógica e
ética. Mas qual o ponto de junção do sistema do juízo com o niilismo? O
projeto de eliminação da exceção e a defesa dos ideais em curso; ou, o que
vem a ser o mesmo, a inibição (e condenação) de novos modos de existência.
Detenhamo-nos um pouco nesse estágio da análise. Por um lado, a exceção ou
o novo modo de existência devem ser remetidos à vida pulsional, tal como a
estivemos definindo até aqui; por outro, o niilismo deve ser concebido à
maneira nietzschiana, isto é, com suas etapas ou fases (também situáveis no
que Nietzsche denominou “a história de um erro”): um primeiro tempo
consistindo na instauração de uma ordem ideal (a promoção da idéia ou do
ser), um segundo na destruição ativa desse mundo dos valores ideais (a
vontade de nada ou o niilismo ativo) e um terceiro na eliminação da vontade
(o nada de vontade ou o niilismo perfeito). A negatividade, o não à existência,
o voltar as costas à vida é o projeto niilista inicial, cujos desdobramentos
culminam com o nada de vontade. Esse projeto é o princípio e o motor do
niilismo, pois quando este assume um caráter ativo, visa nada mais que os
valores ideais em curso, e destrói, por assim dizer, aquilo pelo que iniciou. Ou
seja, é um projeto autodestrutivo, suicida desde a origem. Nome psicanalítico
para isso: pulsão de morte. É que aqueles ideias, ao menos em nossa
civilização, mantêm desde sua origem relações conflitantes com o que se
poderia chamar de vida e devir. Combatê-los, conduzi-los à derrisão, destruí-
los, não significa mais que suprimir finalmente o que parecia constituir a base
de nossa civilização e, ao mesmo tempo, a nossa estruturação subjetiva. O
niilismo ativo, porém, é apenas o estertor terminal do niilismo, seu grito de
morte, antes do seu silencio perfeito. Ele não é, portanto, a via nietzschiana e
nem a psicanalìtica, embora estas passem através dele. “Uma filosofia
experimental, tal como a vivo”, escreve Nietzsche, “antecipa
experimentalmente até mesmo as possibilidades do niilismo radical; sem
querer dizer com isso que ela se detenha em uma negação, no não, em uma
vontade de não. Ela quer, em vez disso, atravessar até ao inverso – até um
dionisíaco dizer sim ao mundo, tal como é, sem desconto, exceção e seleção...
Supremo estado que um filósofo pode alcançar: estar dionisiacamente diante
da existência – minha fórmula para isso é amor fati” 217. É preciso muita
atenção e discernimento para não se fazer do niilismo um destino, e sim um
instrumento. Aí reside, sem dúvida, o poder de dissolução da análise – poder
pulsional, em si mesmo afirmativo.

217
Nietzsche, F., Obras incompletas, Os Pensadores, vol. XXXII, p. 401, Abril Cultural, SP, 1974.

180
Existe uma espécie de ardil do sistema do juízo que conduz logicamente
à morte as potências que se opõem ou resistem a ele. O seu avesso é a
negatividade psicótica. O delírio onírico de Jorge, o automóvel sobre a árvore,
de rodas para cima, poderia sugerir esse negativo da ordem e do juízo, não
fosse analiticamente a correção mesma do processo desejante. O ardil: só é
possível escapar efetivamente ao juízo colocando-se fora da vida, o que é
renunciar a toda a participação. Como diz K, o secretário Klamm o vigia em
seu quarto de dormir mais que em qualquer outro lugar. Todo o niilismo
opera, portanto, no interior do sistema do juízo, de tal modo que não se
distingue do desdobramento desse sistema e lhe dá, assim, seu sentido último.
A lógica rigorosa do niilismo consiste, obviamente, na eliminação da
diferença: o nada de vontade. Como ele pode se tornar instrumento de
afirmação da diferença? Quando empregado ativamente, contra o seu
princípio.
Se o niilismo ativo se define pela tendência à destruição dos valores
superiores, o que isso tem a ver com a psicanálise – se é que aventamos aqui
um uso clínico desse hóspede sinistro? Há uma face niilista da psicanálise,
com seu teor crítico e dissolvente, que deve ser contextualizada, situada como
um momento ou um dos aspectos do pensamento analítico e sua práxis.
Niilismo ativo da análise, é preciso discerni-lo clinicamente, não confundi-lo
com um fim, e muito menos com a natureza do processo desejante como tal.
Considerar essa face niilista em sua função crítica, contextual, e também como
o pensamento que deve ser atravessado de ponta a ponta, permite avaliar
adequadamente o percurso analítico.
Em face do que estivemos dizendo, o saber de não-senso aparece como
o termo do processo analítico. Como se chegaria a ele senão por meio de
algumas “santas destruições”? Mas ele é também inìcio. É saber de não-senso
porque não recebe luz de nenhum outro – coisa que nunca chegamos a repetir
o bastante. Não é, portanto, caos ou loucura, puro não-senso em si – esta
designação não seria procedente. Do ponto de vista do em si, trata-se antes de
um saber autônomo, desprendido de toda coerção.
Ao constatar que todo o sentido cultuado como alvo do vir-a-ser se
mostrou ilusório, deixando o sentimento de um enorme desperdício de forças,
e que “a decepção quanto a um pretenso alvo do „eterno vir-a-ser‟ é a causa do
niilismo”, Nietzsche estaria indicando, no limite, esse saber de não-senso?
Ora, são coisas inteiramente diferentes, embora se cruzem em certo momento.
O saber de não-senso, repetimos, é precisamente o alvo psicanalítico, o alvo
pulsional.
A emergência sombria da idéia de não-sentido irremediável, em certa
medida explicável no âmbito do pensamento analítico pela noção de falta

181
estrutural, será amplamente acolhida pelos psicanalistas como a pedra de
toque da visão sobre o desejo. Não se pode dizer que Freud foi responsável
por essa universalização da falta, ele que identificava o desejo ao sentido dos
sonhos. A decifração onírica não desemboca em furo, em não-senso, senão do
ponto de vista das representações. Existem sonhos que retificam as relações do
sujeito com o real, não sem afirmar satisfações (ou saberes) pulsionais. É o
caso do sujeito que sonha e, como era comum no passado, vê-se às voltas com
um pesadelo. Logo sente, porém, no decurso do sonho, que não há motivo
algum para ter pesadelos. O sentimento de não existir o menor pesadelo é tão
decisivo como era, há pouco, o sentimento de estar imerso nele. O sonho
atesta, antes de tudo, uma condição de escolha. E, na verdade, o umbigo do
sonho é um dizer inteiro: “está em minhas mãos decidir”. Ao invés de falta ou
buraco, ou além desses termos, convém pensar em mudança de plano, em
outra altura do tempo, outros afetos e dizeres.
Às vezes a noção de falta atua como oxigênio no campo do saber, pois
deixa em aberto o que, de outro modo, seria reduzido a um conjunto fechado,
narcísico, por efeito de saberes totalizantes. Assim é o lado Mulher nas
fórmulas da sexuação. Aquela noção, porém, não alcança o saber da diferença,
para o qual não existe o pressuposto da totalidade, da completude ou do
Mesmo. Por ser originário, o saber da diferença tem a positividade do lapso,
do ato. Não é total, mas íntegro.
Tomemos uma pesquisa que se pretende de ponta no âmbito do
movimento psicanalítico, inclusive como “um pensamento para o século II da
era freudiana”, a concepção de MDMagno acerca da pulsão, reconhecida por
ele como a noção fundamental da psicanálise. A definição exaustiva desse
conceito pela fórmula Haver desejo de não-Haver 218, a pulsão como um
“empuxo” ao não-Haver que, obviamente, não há, leva às últimas
conseqüências lógicas o vetor niilista da psicanálise que, note-se bem, lhe é
contingente, crítico, e até mesmo necessário em certo momento (tanto da
teoria como da clínica), porém não é essencial, isto é, não traduz as condições
absolutas do processo analítico ou – o que é a mesma coisa – do processo
pulsional. Magno, contudo, sustenta que a máquina de revirar imanente ao
nosso psiquismo, buscando sempre avessar as condições dadas de existência,
sejam elas biológicas, etológicas ou culturais, tenderia, em última instância, a
avessar o próprio Haver, passar ao seu contrário absoluto, ao não-Haver. Isso,
todavia, é impossível, não apenas no momento (não importa a amplitude de
tempo desse momento), mas absolutamente, porque o não-Haver não há.
Fracassando em seu intento, o movimento libidinal retorna ao Haver ou nele
218
Magno, MD, A natureza do vínculo, p. 169, Imago, RJ, 1994: “Haver desejo de não-Haver: a fantasia
primordial capaz de desenhar toda e qualquer outra fantasia com rosto de valor intermediário, ou não”.

182
recai, sem deixar de requerer, novamente, o impossível que requeria antes, e
assim eternamente. Investidas extremas na direção do não-Haver, permeadas
de perigos e de eventuais catástrofes, podem resultar na abertura de novas
perspectivas éticas, em descobertas científicas, em criações artísticas.
O retorno eterno ao Haver subverte de maneira engenhosa a falta
absoluta, transfigurada em falácia universal. É uma falácia, no entanto, que
decide pelo curso do desejo. Além de ser uma falsa imagem do eterno retorno
de Nietzsche, é uma falsa imagem da pulsão, que não é de modo algum
dialética. Não é verdade que o que caracteriza a pulsão seja o avessamento das
condições dadas, o empuxo ao contrário do que é, o não que se oporia à
afirmação do fatum, seja ele biológico ou cultural. A pulsão demarca, sim,
uma diferença em relação ao dado biológico e ao dado cultural, e é enquanto
afirmação dessa diferença que ela os considera e avalia ao longo do tempo,
subordinando-os aos seus critérios superiores. Quais são esses critérios?
Aqueles que indicam a continuidade de seu próprio exercício – critérios de
ação, de integração, de superação, de movimento, de existência, de
singularidade e de sentido (enquanto direção de todo o processo) 219. Ela não
precisa querer radicalmente o não-Haver para subverter ou superar as
formações bio-culturais do momento; basta-lhe querer-se a si própria. Não
existe dificuldade ou desafio que ela não queira vencer, mas isto apenas traduz
o gosto (compreenda-se estima) por si própria, pelo exercício de sua própria
atividade ou dela própria como princípio ativo. Ela é um poder, mas um poder
a ser reencontrado, capaz de subordinar a si, isto é, às suas condições
absolutas, todas as demais condições de existência – pois ela é a condição
existencial por excelência. Existir e existir mais (com mais força e
continuamente), tornar-se quem se é, e não o contrário, sumir, extinguir-se,
conforme a falsa noção sobre o desejo, que o subordina a uma falta estrutural
(a castração), a uma impossibilidade absoluta ou ainda – para estabelecer a
conexão que estivemos desenvolvendo acima – ao niilismo perfeito. Não se
trata, tampouco, de uma política do esgotamento, mas de uma política da vida,
219
Cf. os critérios pulsionais abordados em O caminho do campo analítico, op.cit. p. 117 e seguintes.
Retomemos brevemente esses critérios: de ação – não em um sentido sensório-motor, mas no sentido de
princípio ativo, psicanaliticamente evocável pela presença ativa da pulsão em todo acontecimento; de
integração - porque a pulsão, em seu nível, é integrativa (embora possa desintegrar em outro nível que não o
seu), ou seja, reúne elementos heterogêneos em seu devir, e essa reunião mesma é, ao mesmo tempo, saber e
satisfação; de superação – uma vez que a pulsão visa, todo o tempo, superar suas condições atuais de
exercício em favor de novas condições; de movimento – pois, justamente, em conformidade com os três
primeiros critérios, ela é nômade, apenas concebível como processo, deslocamento, prática; de existência –
tendo em vista que agir, integrar, superar e se deslocar são atos de existir (“só se existe em ato”); de
singularidade – que é o traço essencial da pulsão, o que indica que estamos em seu campo, isto é, na altura de
sua potência; de sentido – pois essas “virtudes” pulsionais, imanentes umas às outras, compreendem (cada
uma e em seu conjunto) uma direção, condição decisiva para garantir a consistência (ou integridade) de todo o
processo.

183
precisamente porque nunca esteve em jogo um esgotamento da vida subjetiva
– eis aí o impossível real – e sim de uma de suas dobras, aquela que leva o
nome de niilismo. A pulsão não visa o avesso ou o contrário de tudo o que há,
o não-ser, o não-Haver, a morte, mas alcançar-se a si própria e exercer o mais
remoto poder de avaliação e discernimento, a diferença como tal, o princípio
ativo pelo qual todo o Haver possa ser afirmado e bendito, o grau mais alto da
existência.
Ao situar a verdade em uma altura onde o moral e imoral pudessem ser
igualmente avaliados, em uma perspectiva, portanto, extra-moral, Nietzsche
não buscava desaparecer nas nuvens para sempre. O tema da pulsão é o da
vida em suas condições superiores, e não o da morte absoluta. Este, contudo,
deve ser integrado secundária e criticamente ao primeiro, inclusive porque
cabe perguntar, já de um ponto de vista clínico, analítico, a que se deve a
tendência a substituir pela morte absoluta o verdadeiro alvo da pulsão, que é a
vida em suas condições superiores? A suposição de que a vida, em tais
condições, é impossível? Cremos que sim, pois a esse impossível foi associada
a noção de recalque originário: não é possível passar, segundo Magno, ao não-
Haver, há uma inelutável quebra de simetria. Eis o único recalque não
removível, a castração no seu sentido maior, graças à qual, para falar
misticamente, as portas do céu permanecem fechadas
Retomemos o argumento de Magno relativo à pulsão: a quebra de
simetria, a impossibilidade de fechar o último dos ciclos, Haver/não-Haver,
abre à criação, à renovação incessante. É o grande estratagema e a grande
permissão de Deus. A pulsão de morte não designa mais o retorno ao estado
inanimado da matéria nua, mas o que produz a falha, a ruptura, a fissura na
tendência a retornar ao Mesmo, na tendência, portanto, que teria sempre a
forma final – preenchida – da recognição e da reconciliação. Não há estado ou
forma final. Mas seria preciso dar um passo além da concepção plerômica de
Magno, um passo além do homem, e entender que é ainda a vida em suas
condições superiores, desconhecidas, que aparece como quebra de simetria e
forma vazia no âmbito da representação (isto é, no mundo do homem).
De um modo genial, Magno estende até o limite a lógica psicanalítica
da falta, e quase a revira, não fosse a paixão em fazer da desistência o alvo
real do desejo (desejar não mais desejar). O que seria revirar aquela lógica?
Seria demonstrar que o desejo almeja perseverar como desejo, e não mais pelo
expediente da falta, que é o modo negativo de perseverar (porque não consigo
morrer, porque falta alguma coisa e essa coisa, que não posso deixar de
requerer, é impossível). A falta e a negatividade atuam juntas. Ambas repelem
o devir, pois o explicam por uma medida extrínseca. Mas o devir é como o
desejo, o alfa e o ômega da existência. Nietzsche definiu o sobrevôo desejante

184
como amor fati. É através da visão de sobrevôo de Eros (ou pteros) que as
demais condições de existência, sejam elas naturais, biológicas ou culturais,
são avaliadas e, por todo o tipo de aparelho ou tecnologia que se queira,
operadas e desenvolvidas. Não é a desistência que caracteriza o movimento
desejante, mas o desprendimento. O processo pulsional compreende
diferenças de grau e de natureza – a condição desejante é de natureza diferente
da condição biológica ou cultural; o desprendimento, por sua vez, se faz por
graus –, instaura hierarquias e subordinações, atuando de acordo com a
elevação da consciência da força, sempre em nome, portanto, de condições
superiores de exercício (= os graus de desprendimento), já que, repetimos, a
pulsão é sua própria prática. A diferença absoluta não é o não-Haver, mas a
vida em seu princípio ativo, integrativo, superativo... Não pensamos que a
diferença se oponha a tudo o que é, polarize com tudo o que é, com o Haver
por inteiro, e sim que seja capaz de afirmá-lo por inteiro, o que é muito
diferente. E se essa experiência da diferença parece impossível, isto se deve à
dificuldade que apresenta, à sua raridade, à sua quase insustentável
continuidade, pois significa, de fato, vencer o mundo, mas não no sentido de
lançar-se em seu contrário inexistente. Instalar-se em seu princípio não é igual
a suprimi-lo ou a querer suprimi-lo. A diferença absoluta é o avesso real de
tudo o que não é ela, a pulsão em pessoa e a plenitude de sua prática. É por
isso que ela está no começo dos mundos. Em outras palavras, e usando os
termos de Magno, o Haver não quer desistir, e sim voltar a existir, e existir
mais. A Coisa está em aberto porque depende de nós. Aliás, ao tratar da
clínica analítica e da operação de cura, Magno sugere precisamente isso, pois
o endereçamento subjetivo, por breve que seja na experiência humana, ao que
ele chama de hiperdeterminação – aqui sinônimo e traço de pulsão – permite
que se revele algo do Haver que antes não era percebido, que não fora ainda
destacado de seu abismo e que, no entanto, passa a existir pela nossa
intervenção. Ora, nós mesmos passamos a existir pela nossa intervenção. Não
é naturalmente que se alcança esse estágio da cura, esse plano de
hiperdeterminação pulsional, para não falar do esforço de instalar-se aí e de
experimentá-lo sob a forma de uma prática constante. Esse lugar, porém, não é
de indiferenciação ou de indiferença, como quer MDMagno, e sim de uma
diferença absoluta. Freqüentá-lo faz toda a diferença, e não significa que tanto
faz o que quer que se afigure no âmbito das demais coisas, o “valetudo” de
que se serve Magno para descrever a afirmação do Haver por inteiro, pois
todas elas se ordenam segundo as apreciações e pesagens que decorrem desse
plano superior de visão. Por que se diz superior? Porque é por ele e a partir
dele que todas as demais coisas podem ser compreendidas e avaliadas. Existe
todavia o caso em que as demais coisas se tornam indiferentes: se faziam

185
sentido em seu próprio nível e promoviam os deslocamentos subjetivos, uma
vez subordinadas à visão de sobrevôo, extra-territorial, deixam de servir de
apoio e de horizonte, e já não decidem nenhuma sorte de movimento.
O movimento em direção a esse plano de determinação superior, isto é,
de autodeterminação, se constitui como sentido do processo pulsional, sentido
este que jamais desemboca em não-sentido, exceto nos termos que estivemos
repisando. Trata-se de um aumento progressivo de sentido, à medida que se
acentua, por assim dizer, a linha de autodeterminação 220. Essa linha e o poder
integrativo da pulsão de vida são a mesma coisa. Todos os aspectos da
existência, enquanto condições menores, relativas ou secundárias, se reúnem
em um devir único, superior e, dada a sua direção, absoluto. Isso não
contraria, portanto, o movimento eterno do vir-a-ser, não se confunde com o
esgotamento das forças ou com um alvo final; ao contrário, o exercício
constante de integração pulsional constitui o fluxo integrativo ou a
subjetividade do devir. Não é preciso evocar o não-Haver (ou uma falta
absoluta) para entender o empuxo desejante, se este, em sua constância, é a
diferença absoluta. Em outras palavras, o devir não tem um alvo no qual
desembocaria – é puro amor fati. É assim homólogo à pulsão, cujo alvo é o
seu próprio exercício.
A diferença interna a que aludimos se deixa vislumbrar, como que por
trás de muitos véus, nos lapsos e tropeços da vida cotidiana. É a descoberta
psicanalítica por excelência. Os lapsos de linguagem, como as demais
formações do inconsciente, se antecipam ao sujeito – isso o precede – e o

220
Precisemos, mais uma vez, estes termos. Parece-nos inteiramente apropriada a idéia de uma
“hiperdeterminação” proposta por MDMagno (cf. A natureza do vínculo, op. cit.), na medida em que se
distingue da sobredeterminação simbólica e eleva o processo do desejo a uma determinação superior. Ora,
esta só pode ser a pulsional, apta, por sua direção ética, a reunir todas as vertentes simbólicas. A análise se
dirige a ela e é dirigida por ela; mas estar à altura dela, de uma natura naturans, é estar à altura de uma
autodeterminação. O conceito de autopoiese, tal como é empregado por Guattari, diferindo do uso restrito que
Francisco Varela faz dele, guarda uma proximidade com a noção de autodeterminação pulsional: os sistemas
ou as máquinas autopoiéticas se autoproduzem em sua abertura à alteridade, ganhando, ao mesmo tempo, uma
dimensão evolutiva, coletiva e temporal (Caosmose, op. cit., p. 52). A idéia de um “auto-movimento
expressivo” em Mil platôs sugere o mesmo tipo de processo, pois, na constituição de território, as qualidades
expressivas são mobilizadas de modo autônomo em relação às determinações do meio interno e do meio
externo (Mille plateaux, op. cit., p. 390). A autodeterminação de que falamos recebeu em psicanálise o nome
de sublimação, não se distinguindo, portanto, de um dizer. Seu caráter extra-moral, estético, não contradiz sua
condição extra-pessoal, ou seja, sua implicação ética. Envolve a constituição do plano ético que descrevemos
há pouco. A distância em relação a qualquer voluntarismo egoísta ou pessoal é enorme (daí a subversão
conceitual de Guattari, procurando abrir o sistema autopoiético que em Maturana e Varela permanece
fechado, circunscrito ao individuo). As perspectivas egoístas ou pessoais são demasiadamente estreitas para
sequer oferecerem uma idéia aproximada do que se entende aqui por autodeterminação. Têm por alvo, de
modo geral, a conservação de um território, mas não a constituição de um, e muito menos o movimento mais
amplo de desterritorialização. A autodeterminação é o que há de mais raro, e compreende o desrecalque
originário, isto é, coloca em jogo precisamente as potências não pessoais do inconsciente (singular e extra-
pessoal).

186
colocam, por assim dizer, em processo. São sinais e eventos, não exatamente
de uma história, mas de um devir cujo enunciado seria: tornar-se quem se é,
entendido que não se é sem se tornar. “A mania de a gente querer ser o que é
ainda há de nos levar além”, dizia Leminski, assinalando o nomadismo
pulsional.
Além da ausência de sentido do vir-a-ser, o niilismo (ou o cansaço do
homem) tem ainda outras duas figuras de referência. Na sua origem encontra-
se igualmente a crença em uma totalidade metafísica ou em uma unidade
transcendente, também apreendida sob o aspecto da ordem e da organização e
pressuposta como fundamento de tudo o que sucede. O valor do homem
adviria dos laços profundos com um todo que lhe é infinitamente superior.
Mas o todo, concebido para dar crédito a esse valor, não existe. Não existe tal
unidade. Proposição realista e niilista, pois destrói uma crença antiga e
preciosa, esse enunciado assumiu várias feições no pensamento psicanalítico.
Quando Lacan afirma que a verdade não pode ser dita toda, que afinal ela é
não-toda, no mesmo sentido em que, segundo a fórmula da sexuação, a
mulher não existe, está derrocando a idéia do todo, não fazendo nada além do
que sempre se fez em psicanálise ao investir na noção de inconsciente, que é,
como se sabe, essa noção que subverte as pretensões subjetivas a uma
totalidade. O que merece ser destacado, para além da propriedade com que se
desenvolveu essa visão crítica e despojada, é a extensão nefasta do efeito
niilista, que faz perder de vista nada menos que o inconsciente pulsional,
forçando o entendimento, agora cúmplice da neurose, a girar em torno da
falta. O todo não se realiza, algo falta, falta inclusive esse mesmo todo, sem
que se pergunte pela instância que presumia sua existência, que o requeria,
que dependia dele – não era certamente a pulsão, com seu realismo de origem.
O niilismo começa antes de sua vertente destruidora, começa com o idealismo.
Mas tampouco essa vertente é expressão última da vontade de potência, como
não é a realização do circuito pulsional. Se a proposição que nega o todo é
realista, e se o niilismo compreende, em dado momento, um excesso
providencial de força para destruir o que deve ser destruído, em nome de
condições superiores de exercício pulsional 221, não devemos desconhecer que
com isso apenas meia volta foi dada. É preciso perfazer o circuito, dar a volta
inteira e alcançar a visão pulsional, que jamais teve a necessidade de um todo
idealizado e que, portanto, não se ressente da sua falta. Sua integridade extra-
pessoal e seu caráter decididamente estrangeiro caracterizam-na como aberta e
múltipla ao mesmo tempo (mais uma vez, o simples e refinado). Se isso

221
O niilismo, segundo Nietzsche, “pode ser indìcio de força, pode o vigor do espìrito aumentar até parecerem
impróprios os fins que até então desejava alcançar („convicções‟, „artigos de fé‟)....” Vontade de potência, op.
cit., 2, p. 111.

187
resulta em amor ao fragmentário, deve-se ter em conta que o fragmentário é
indício, aqui, de um devir, assim como o sonho – fragmento intempestivo que
invade o curso cotidiano da existência – é a ponta, não de um todo, mas de um
processo vivo cujas dimensões mais remotas escapam a todo o cálculo. O
“todo”, transferido para a experiência do real, ganha o aspecto da inteireza e
da integridade existencial, as quais só podem existir em uma espécie de
abertura caósmica, desmesurada. O inverso também é verdadeiro: o aberto só
pode ser sustentado na inteireza. É assim porque a ética originária em jogo não
se distingue da potência do exame (o grau de verdade) – da condição,
portanto, de saber.
Não existe pulsão deprimida. A depressão consiste em um afastamento
ético, experiencial e lógico do processo pulsional. Esse afastamento, porém,
tem sua origem no idealismo. É claro que “o ocaso dos ìdolos”, por sua vez,
tem sua origem última na pulsão, ainda que seja origem obscura, devido às
mesclas do saber pulsional com as formações dominantes em uma cultura.
Aquele saber sofre uma distorção (o que chamamos de recalque) e, como tal,
deixa de ser praticado, mas não seus sucedâneos. O real aparece então
subvertendo a ordem, quando, na verdade, ele é ordenação originária 222. É o
que sugere ainda Leminski, no poema In Honore Ordinis Sancti Benedicti: “À
ordem de São Bento/ a ordem que sabe/ que o fogo é lento/ e está aqui fora/ a
ordem que vai lá dentro/ a ordem sabe/ que tudo é santo/ a hora a cor a água/ o
canto o incenso o silêncio/ e no interior do mais pequeno/ abre-se profundo/ a
flor do espaço mais imenso”.
A ordem bendita do poema é certamente a do bem-dizer.
Do ponto de vista clínico, o niilismo deve se compor com a sua
superação. Em outras palavras, a redescoberta do sentido pulsional enquanto
verdadeira ordenação do real deve ser (e é) concomitante à destruição das
estases do pensamento, à qual serve de esteio e direção (“a ordem que vai lá
dentro”). Não sem que essa destruição, por sua vez, purifique a pulsão. A este
processo inteiro, à volta inteira da pulsão, poderíamos chamar de
transvaloração dos valores, conforme a terminologia nietzschiana. Ora, a volta
inteira da pulsão é a pulsão por excelência.
A unidade do eu, questionada pelo saber psicanalítico e inteiramente
subvertida pela sua práxis – já que esta consiste na prática da pulsão e já que a

222
Poderíamos considerar aqui as duas ordens descritas por Bergson (em especial no livro A evolução
criadora, op. cit.) – uma ordem automática, secundária, e uma vital, criadora. Essas duas ordens, de naturezas
diferentes e, portanto, de grau de realidade e de importância também diferentes, servem à crítica da idéia de
desordem: a ordem vital, primária, pode aparecer como força desordenadora e também como estado
desordenado, caótico, para o ponto de vista que considera apenas a ordem secundária. Em Caosmose, Guattari
propõe uma distinção análoga, ao opor o que ele chama de “ordenada intensiva”, que instaura ou abre um
Agenciamento, à “coordenada discursiva”, que opera o seu fechamento (op. cit., p. 74).

188
pulsão é o elemento da discórdia psíquica, da desunião, da ruptura – deixou
como saldo a noção, destinada a figurar como verdade eterna, da divisão do
sujeito. O mesmo raciocínio, o mesmo resultado: o sujeito dividido é um
efeito do saber (por certo experiencial) que depõe a pretensa unidade
subjetiva, cartesiana e, de modo geral, metafísica. Mas é ainda um produto
bastardo do idealismo, medido pela pretensão idealista de sustentar uma
unidade que não se verifica no real. Não é o resultado da volta inteira que,
justamente, compreende a experiência inteira ou íntegra da pulsão. Aliás, não
existe outra integridade.
Ao dizer que a pulsão, sendo parcial, é por excelência pulsão de morte,
Lacan não explica que a considera de um ponto de vista extra-pulsional, ou
seja, para usar seus termos, que a situa desde um ponto de vista simbólico-
imaginário, para o qual a pulsão, ainda longe de construir uma integridade
vital (ou viva), aparece como o fator que subverte e destrói as unidades, as
totalidades e as organizações imaginárias e simbólicas estabelecidas. É a meia
volta que define negativa e equivocadamente a pulsão, ainda que tenha, ao seu
tempo, um valor crítico e um interesse clínico. Ao seu tempo, isto é, no
momento histórico e lógico da investigação teórica e de uma análise em
particular. O modo como a pulsão aparece ao nível de uma instância não-
pulsional não deixa de sinalizar sua presença real. Mas se este modo prevalece
e, para além de seu momento crítico e polêmico, passa a designar diretamente
a pulsão, volta a fazer parte do conjunto de idéias que antes, sob véus,
denunciava, pois ainda tem o rosto que este conjunto lhe atribui. Terá havido,
sem dúvida, um deslocamento, digamos que o todo é subvertido, não se
acredita mais nele graças à parcialidade da pulsão, mas o caráter parcial desta
ainda deriva negativamente da idéia do todo.
Seria possível conservar o traço parcial da pulsão independente de sua
referência subversiva à totalidade, seja do eu ou do organismo? Sim, se o
parcial remeter a um todo virtual, aberto. É o caso em que o parcial encarna o
todo virtual e, à sua maneira inconclusa, constitui um devir desse todo. O
sonho de Jorge poderia servir de exemplo mais uma vez. É um fragmento de
existência, uma obra em aberto, espécie de signatura de um processo do qual
não se conhece os últimos contornos. Está imerso na estranheza por um lado, e
faz sua aparição discreta, familiar, por outro. O texto onírico mesmo se
constrói assim, segundo uma progressão do mais familiar ao mais estranho –
porque ele é isso. O sonho da “Injeção de Irma”, que retomaremos logo
adiante, propõe um encaminhamento similar, pois seu jorro de possíveis pode
ser ainda atualizado por nós: graças à nossa perspectiva pulsional, estamos
implicados, queiramos ou não, em seu devir, que é certamente o da
psicanálise.

189
Mas por que, sendo parcial, a pulsão é de morte? Porque significa a
subversão do todo, a morte do conjunto orgânico, a perda da unidade, o fim da
organização. Também a pulsão de morte deriva de uma concepção idealista
das condições originárias – em derrocada, certamente, mas ainda idealista,
pelos motivos que expusemos, ou seja, que é de morte devido ao seu caráter
parcial, o qual deriva, por sua vez – sem dúvida como subversão e índice do
real –, da ficção do todo. O que não retira o valor de uma concepção como a
do objeto parcial: ele permite ler processos moleculares em meio a uma
disposição molar das forças, mas também indica, como observamos acima, a
passagem do atual ao virtual e vice-versa, sendo ele mesmo essa passagem.
No entanto, do ponto de vista da pulsão mesma, o experimento em jogo, seja o
do sonho ou do lapso, se qualifica de íntegro, pois não sobra nem falta nada à
composição. Como se poderia dizer que sobra ou falta algo à obra de Freud?
Simplicidade de uma obra, tanto mais simples (ou íntegra) quanto mais aberta.
Curiosamente, Freud desejava essa abertura para o conceito de pulsão – que
nenhum ”fascìnio pelas definições” fizesse perder de vista o movimento da
pesquisa.
A transformação das linhas de desejo (ou de fuga) em linhas de
abolição, conforme a descrição, em Mil platôs, dos perigos de um devir, é a
resultante de um equívoco sobre o movimento pulsional, cujo saber obscuro
aparece mesclado – e isso é tanto teórico como experiencial – às versões que
recebe em seu percurso, especialmente da parte das instâncias pelas quais é
temido, rechaçado ou convertido. Mesmo a idéia, que se poderia atribuir a
Deleuze e a Guattari, de conceber a esquizofrenia como razão universal do
processo desejante, ou, de modo mais preciso e menos sujeito a mal
entendidos, de fazer da desterritorialização positiva e absoluta (e, por
conseqüência, da experiência de um espaço liso, desestratificado) o sentido
lógico e ético do devir, tende a incorrer, de modo geral, numa confusão dos
planos e das ordens. O perigo não é tanto a imersão abrupta no espaço liso, a
desestratificação violenta, mas esse movimento precipitado sem o devido
discernimento (que, de fato, tende a ser gradual) de uma ordem e outra, de um
plano e outro. O perigo está na precipitação e na confusão dos planos, em que
o originário é tratado ainda pelos critérios do secundário, quando a verdadeira
reversão, a saúde, consiste no inverso – o secundário ser tratado com os
critérios do originário. Nesse caso, as destruições não passam de “santas
destruições”.
É por isso que as experiências extremas precisam encontrar sua
linguagem, isto é, sua ferramenta existencial. Precisam encontrar a linguagem
do plano que elas instauram e freqüentam, sendo ele mesmo feito dessa
linguagem. Um dizer, um deus.

190
Artaud, nos primeiros tempos de seu internamento, e especialmente a
propósito do rito do peyote entre os tarahumara, do qual participou alguns
anos antes, empregou em textos e cartas elementos inconfundíveis da mística
cristã, e o fez com tal convicção fervorosa, na época estimada por ele como
inteiramente justa, que perguntamos como pode repudiá-los pouco tempo
depois, com uma disposição de ânimo ainda mais forte. O que aconteceu?
Artaud acredita que a impregnação de sua experiência indígena com os signos
do universo cristão resultou, decisivamente, da série de sessões de
eletrochoque à qual foi submetido, e que teve o poder de envenenar e
neutralizar sua lucidez poética. Parecia que a expressão da experiência fosse o
testemunho fiel da mesma, de modo algum esquecida em suas tonalidades
mais fortes. Mas havia uma falsificação em curso. Com o decorrer do tempo
ganha corpo uma novidade em termos de vida-linguagem. No último período
de internação, uma espécie de potência do início passa a operar com meios
inéditos. Surge a partir daí um deleite inequìvoco, renovado: “este mundo é
também uma maquinaria real cuja alavanca de mando eu possuo, é uma
fábrica verdadeira cuja chave é o humor-nato. sama tafans tana/ tanaf tamafts
bai” 223. A linguagem arrebatada do misticismo cristão, mesclando elementos
do rito tarahumara, era ainda infidelidade a si mesmo, ao humor-nato? A
experiência dos limites (para falar como Bataille), tal como se apresentou com
o uso do peyote e foi elaborada alguns anos depois, precisaria ser corrigida?
Ou se tratava, melhor ainda, de redescrevê-la, de relê-la, agora, porém, na
ausência dos códigos cristãos, profundamente fixados na carne dos séculos?
Toda uma memória precisaria ser assim revertida? Em Suplemento à viagem
ao país dos tarahumara, Artaud escreve coisas do seguinte gênero: “Houve
uma época em que estive longe de Deus, porém nunca me senti tão longe de
minha própria consciência, e vi que sem Deus não há consciência e nem ser e
que o homem que crê estar vivo nunca poderá, todavia, entrar dentro de si.
Assim foi que, movendo-me em direção a Deus, encontrei os tarahumara...
Não sei até que ponto as doutrinas iniciáticas da terra, cuja fonte única
conheço, e se chama Jesus Cristo, dizem ter conhecido sóis, desde o primeiro
até o sexto, porém se poderia muito bem dizer que os tarahumara do México
não desceram do primeiro, pois conservaram neles a imagem ígnea dessa
fonte que chamam o Filho de Deus.” 224 Ora, um ano e meio depois pede ao
seu editor que não publique esse Suplemento, pois nele cometeu, segundo
escreve, “a imbecilidade de dizer que me converti a Jesus Cristo... (...) Não foi
Jesus Cristo que fui buscar entre os tarahumara, mas a mim mesmo.” A nova

223
Os tarahumara, op. cit. p. 105. A frase citada aparece no texto “Uma nota sobre o Peyote”, datado de
1947.
224
Idem, p. 92 e 93.

191
linguagem, que parece coincidir com uma saúde recém-conquistada, se instala
e opera como maquinaria real. “Compreendia que estava inventando a vida,
que essa era a minha função e a minha razão de ser e que me aborrecia quando
perdia a imaginação, mas o peyote ma restituìa”.
Pensamos, contudo, que essa variação da linguagem e do sentido em
experiências qualificáveis de místicas, mas que chamaríamos de encontros
com o real, seja indissociável de um curar-se ainda pouco conhecido. Os
graus do real, como já dissemos, são graus de cura.
Em numerosos casos não se trata nem mesmo de destruir, mas de
subordinar o conjunto dos estratos e das ordens aos critérios superiores da
pulsão de vida. Discernir a si própria e subordinar o que vem depois, tal é o
poder avaliador e indestrutível da pulsão. Deleuze e Guattari falam em doses
prudentes de significante e de subjetivação, de estrato e de reterritorialização,
para que as linhas de fuga não fujam abruptamente, não se precipitem em
buracos negros – algo próximo ao conselho anti-psiquiátrico de David Cooper:
enlouqueça com discrição. Não dizemos o contrário. Desse modo, porém,
apenas fazemos coexistirem os planos, como se, por excesso, um pudesse
fazer perder o outro. Na verdade, o estratificado ou, em estágio mais
avançado, a confusão de ambos, fazem perder de vista o liso; mas este, em
contrapartida, subordina o estratificado, uma vez que é o ordenador vital do
espaço. A questão, portanto, é de discernimento e subordinação, e não
propriamente de abandono. Ou melhor, abandono, sim, do privilégio do plano
estriado na concepção experiencial do espaço, mas não da ciência e do uso
desse espaço estriado. A vida, dizem aqueles autores, freqüenta os dois
espaços, mas é pelo liso que ela avança, que ela é devir, ainda que se sirva dos
estratos para avaliar, ponderar, redimensionar seus avanços.
Mas o que são o estriado, o liso? Assim como encontraremos no sonho
de Jorge elementos do recalque mesclados ao recalcado originário, assim
também encontraremos as duas modalidades de espaço (spatium) e suas
misturas. A casa da fazenda, a represa e o lago, a vazão comedida da água,
indicam o estriamento do espaço existencial, enquanto o túnel parece sugerir
uma mescla, o estriamento tomado em um fluxo, em um contínuo que reflete
as condições do espaço liso, bem como uma espécie de mutação da existência.
O carro planando acima da árvore, em revirão, é certamente o liso, o
desestratificado, a pulsão mesma.
Abordamos o problema dos espaços, tal como são descritos em Mil
platôs, tendo em vista as idéias de unidade e divisão, de todo e parcialidade,
de organização e desorganização. Estas, em sua feição prática, se reportam ao
espaço estriado. Eis, portanto, um modo de situar ainda o campo pulsional, ou
seja, em termos de espaço liso. Ultrapassamos assim a divisão em seu nível

192
mais profundo, ali onde ela dependia de uma definição dos espaços
privilegiada pelo estriado, operada pelos seus critérios, para os quais o liso
significa quebra, subversão, dispersão, destruição ou caos. Na verdade, ele não
é temido e rechaçado sem ser convertido, segundo as leis e perspectivas do
estriado, em algo que só faz sentido à conservação do estriado, e isto de duas
maneiras complementares: o liso, desconhecido como tal, é substituído por um
absoluto englobante e, ao mesmo tempo, por um centro englobado, ambos
garantindo o afastamento, para fora dos limites do globo integrado, do que
tenderia a desintegrá-lo. É que o estriado necessita de um fundamento que o
justifique em todos os seus desdobramentos e ramificações (é a mesma
árvore), bem como de um ponto de convergência de todas as suas linhas, de
um centro que tome o lugar da linha de fuga, de um legislador-rei-sacerdote-
mestre que, enquanto desejante legítimo, justifique a submissão de todos os
súditos, de modo que tudo se mantenha atado, junto e nada escape, exceto se
for uma escapada prevista, arranjada. Convertido ou reduzido a outra coisa, o
liso nem por isso deixa de existir. O que acontece? Sua subordinação óptica ao
espaço estriado, à extensão segmentarizada. Ora, do ponto de vista do espaço
liso, a ordenação do espaço é regida por uma vitalidade inorgânica e intensa –
que só não chamaremos de espiritual em razão do modo como “o espìrito” foi
atribuído àquele fundamento e àquele centro; é ela que decide pela sorte do
orgânico que dela deriva, como extensão instrumental. Mais uma vez, não
caímos na armadilha de uma escolha – ou isto ou aquilo, pois a questão é de
comando e subordinação, do que vem antes e do que vem depois, do que mede
e do que é medido. É ainda do estriado, é ainda do organismo que emana a
alternativa “ou isto ou aquilo”, como opções exclusivas. Porque o liso, mas
também se poderia dizer o corpo sem órgãos, não se contenta em eliminar o
suposto fundamento (o englobante absoluto, transcendente) e erradicar, ao
mesmo tempo, o centro mítico ou ideal. Apropria-se, ademais, das estrias e
dos órgãos, em favor de seus empreendimentos vitais. É que o liso deve ser
entendido: não é uma substância, mesmo tornada inteiramente fluida; ele é
fluido, sim, mas enquanto prática, enquanto escolha, enquanto escolha
exercida a cada vez. Eis o liso – não capturável, nômade e ético.
A vitalidade inorgânica, intensa, é o liso; as funções que ela desenvolve
e organiza é o estriado. Mas isso não é contraditório ou, no mínimo,
paradoxal? Como o liso pode estriar se o espaço estriado se conserva ao
reduzi-lo, ao desfigurá-lo? Tudo parece acontecer ao mesmo tempo devido às
mudanças de plano, às inversões e reversões de perspectivas. Mas são dois
momentos: um ativo, em que o liso cria órgãos e gera estratos segundo os
quais a vida avalia seus avanços, estabelecendo hierarquias secundárias,
centros móveis de ressonância, limiares em deslocamento constante; e outro

193
reativo, conservador, em que o sentido de todo acontecimento, bem como sua
origem, parecem emanar do espaço estriado. Trata-se, no segundo caso, de
uma profunda distorção do processo do desejo, cujas linhas de fuga procedem
do espaço liso. Na verdade, enquanto ativas, essas linhas constituem o liso.
Tampouco o liso está dado. Se elas serão ou não reenviadas a ele, se irão
garantir sua experiência e prevalecer, é um problema ético originário, de
feição analítica e clínica. Portanto, não se deve confundir aquela vitalidade
com uma identidade latente, fundante, globalizante, ou com um centro cujas
linhas convergentes ressoam ao infinito, embora pareça sofrer essa redução
em vista da conservação do espaço estriado e de sua inversão de perspectivas.
Ela não tem e nunca teve a forma do todo, nem se determina como centro de
onde se estendem os círculos concêntricos até os limites imponderáveis do
orbe. É intensa, deslocada, móvel, e seu horizonte é o intempestivo. Ela é
devir. Francis Bacon a tornou visível, entre uma estria e outra, ao pintar “a
maneira pela qual o corpo escapa do organismo...” 225 É claro, então, que a sua
virtude não consiste em assegurar uma totalidade, nem em fundar um povo ou
um Estado, e sim em vitalizar até os confins do Cosmo. Essa vitalidade
compreende, no entanto, uma integridade capaz de criar e ordenar funções e
órgãos, e isso a partir de certo caos. Entenda-se esse caos: ele só se define a
partir da ordenação de funções e órgãos. A ordenação é originária, e por isso
chega a criar um povo. O que a faz íntegra e, por conseqüência, apta a criar? A
direção superior da pulsão de vida, que é sua autodeterminação: natura
naturans.
Mas conforme o alerta de Mil platôs, não se deve “jamais acreditar que
um espaço liso basta para nos salvar”, pois o liso não é dado ou alcançado de
uma vez por todas. A força vital da Abstração que traça o espaço liso, sendo
de natureza ética, pulsional, só pode se exprimir como prática (força)
constante. Ainda que Deleuze e Guattari considerem uma espécie de
alternância crítica na experimentação dos espaços, para concluir que o liso não
basta para nos salvar, não deixam de fazê-lo coincidir com a
desterritorialização positiva e absoluta. Esta, sendo prática e clínica, dá
sentido e direção aos procedimentos analíticos. O liso é a prática absoluta ou
abstrata da saúde, o exercício espiritual mais puro, a altura em que o viver e o
pensar se tornam indiscerníveis. Tal pensamento do devir, vivo e nômade, tal
saber imanente e prático, supera o niilismo no terreno do real: o realismo
niilista carrega consigo os escombros da transcendência, mas a pulsão o
antecede e supera, é o real realíssimo das forças ativas reencontradas.

225
Lógica da sensação, op. cit. p. 56.

194
Por meio de qual ação específica as forças ativas são reencontradas?
Como o niilismo é superado em seu próprio terreno, isto é, ali onde a
apreensão do real se conjuga com a divisão do sujeito? Entenda-se: o niilismo
é o sentimento da falência dos valores não pulsionais, ora experimentada do
ponto de vista da pulsão (niilismo ativo), ora das instâncias não pulsionais
(niilismo reativo e niilismo passivo ou perfeito) – o que evoca os dois planos
da divisão. A análise é precisa: a superação se verifica ao nível da micro-
língua inconsciente; em uma altura, portanto, em que a linguagem adquire sua
feição pulsional e o viver e o pensar voltam a se reunir. Eles se reúnem no
inconsciente, antes mesmo do pensamento, antes que eu possa dizer “penso
onde não sou”, fórmula psicanalìtica que subverte o postulado cartesiano da
unidade subjetiva do ser e do pensar. A certeza freudiana ancora-se no afeto
inconsciente, no pensamento enquanto afeto. É a certeza do desejo ou, se
preferirmos, o mais alto entendimento, o mais vivo (= o mais lúcido). Se a
dúvida serve de orientação para Freud de que ali, no sonho, existe um
pensamento inconsciente do qual se pode estar certo, sendo a dúvida uma
resistência e ao mesmo tempo um indício revelador, temos uma idéia da
natureza do saber em jogo: é o saber do afeto em seu estado de progressão,
cujo termo inconsciente é o afeto enquanto saber. Ou seja, saber de não-senso
e afeto são o mesmo, e não só constituem uma certeza como são –
indiscerníveis – o que pode haver de mais certo. A certeza inconsciente escapa
a todo juízo.
Até o advento da psicanálise, a unidade do cogito não deixou de
emprestar uma razão filosófica à forma do recalcamento. Não é pouco
expressivo que a conquista do cogito ergo sum exigisse suspender, por meio
da dúvida, isto é, do próprio cogito, a existência do corpo, do sentir, do querer,
do imaginar – numa palavra, o que se chama de vida – e que, em seguida, o
pensamento, valendo agora como medida universal da subjetividade, tudo
recuperasse sob sua égide: “penso que tenho um corpo, penso que sinto, penso
que quero, penso que imagino”. A fórmula “sou onde não penso”, subvertendo
o cogito, descreve um retorno, ou melhor, um momento crítico desse retorno,
precisamente ali onde se evidencia a divisão do sujeito. Por isso a fórmula é
niilista, ainda que salutar ao seu tempo. Se a fala em análise, sob o escrutínio
da ratio analítica, demonstra a realidade da divisão, não deixa de indicar o
advento de uma nova integridade. Esta é definida pelo real e não mais pelos
ideais de eu. É imanente e não mais transcendente. Prática constante, não
remete mais ao Bem, ao Ser ou ao Nada, e sim à força (konstant Kraft).
Mas por que, insistamos, a fala parece ser o veículo privilegiado e a
expressão imediata de uma nova integridade? Será que ela é íntegra em si
mesma? Seu campo é o da prática, e a integridade em questão, sinônimo de

195
consistência ou ainda de virtú (força, talento), é também de ordem prática. Um
lapso de linguagem é um ato soberano em relação aos outros atos; sua
consistência resulta do conjunto de razões que integra, e sua força, seu talento,
se revelam na precisão com que passa a existir no momento oportuno. Há uma
virtude tal do ato inconsciente, imprevisível, que por ele podem se retificar as
relações do sujeito com o real, isto é, com seu princípio ativo. É em razão
desse princípio ativo no seio do real que o imprevisível insiste como formação
do inconsciente. Ainda que seja sob a forma da doença, a micro-língua é
incontornável. Nossa essência desejante fala, sob véus ou esclarecida. Os
graus superiores do dizer (ou da pulsão) são assim o pressuposto de todas as
enunciações.
Além da ausência de sentido e da ficção do todo, existe ainda um
terceiro fator que, em Nietzsche, deflagra o niilismo no pensamento e na vida.
Quando já se admitiu que o devir não tem finalidade alguma e nem é regido
por um todo de onde os seres humanos retirariam o valor de sua existência,
resta detratá-lo como ilusão, como erro, e postular, em contrapartida, um
mundo supra-natural, verdadeiro, ideal. Mas ao se compreender que este
mundo verdadeiro do além não tem fundamento, que foi concebido para
responder a anseios demasiado humanos, sobrevém a forma mais avançada do
niilismo – a negação e a destruição do mundo metafísico, a supressão da
crença em um mundo-verdade. Não é mais possível interpretar o mundo e
estimar o valor da existência por meio das categorias de finalidade, unidade e
verdade. Elas foram úteis às perspectivas de conservação da vida humana e de
seu domínio sobre o caos, mas não são em si mesmas verídicas. E no entanto,
são as categorias da razão. Nossa vontade de verdade, dizia Nietzsche, ainda
nos destruirá. Sim, porque verídico passa a designar, por um lado, um
processo de devastação de tudo o que se construiu na ordem do ser, sem a
devida atenção para os interesses que a vida teve em construir e ordenar o que
chamamos de ser; por outro lado, o verídico indica que a verdade, enquanto é
a forma do sujeito do conhecimento e da moral, se volta contra si, liberando
uma potência escondida, desconhecida, “a mais alta potência do falso”, dirá
Nietzsche, cujos sinais na superfície do mundo humano são aquela devastação.
A crença nas categorias da razão e sua subversão dionisíaca são a causa,
finalmente, do niilismo. Mas este é diferentemente apreendido conforme o
plano em que se desdobra. Há um niilismo ativo, como já dissemos, ao nível
pulsional, como há também, em outro extremo, um niilismo passivo, de cunho
cultural, institucional, familiar, egóico, representativo, narcísico, e que anseia
pelo fim: narcisismo e depressão em massa. Tudo é movido pela pulsão, mas
em seus diferentes estágios, e de acordo com as figuras que adota em seu
percurso nômade. Os diversos niilismos coexistem. Não se tolera o devir, mas

196
já não é possível esquivar-se a ele; e no entanto, ele é linha de fuga, desejo,
produção. As formações do inconsciente são pequenos ensaios de fuga
desejante, com seu teor de niilismo ativo em curso: o que sucede com a
emergência irreprimível do lapsus linguae senão a destruição, mais ou menos
bem sucedida, do discurso da representação, bem como a revogação – por
momentânea que seja – da subjetividade familiar e institucional? Ao mesmo
tempo ele é, como já vimos, o devir-sujeito da pulsão. A depressão e as
figuras do narcisismo são, em contrapartida, a abstenção do exercício
pulsional em graus variáveis, de n a zero. Ora, no que diz respeito à verdade,
como antes em relação ao sentido, trata-se ainda dos usos. Qual o uso
pulsional da verdade?
Nesse trânsito, a questão da verdade sofreu mutações consideráveis.
Numa primeira abordagem, dir-se-ia que ela mesma se tornou niilista, e que
exprimiria, por fim, uma vontade de nada. E de fato foi associada à morte e à
mulher (enquanto inexistência) nas digressões psicanalíticas. À medida,
porém, que a pesquisa pulsional se aprofunda, ela adquire outro aspecto no
campo analítico – torna-se intrínseca ao devir, ou seja, à pulsão enquanto
prática constante. 226 A constância é essencial ao princípio ativo que
caracteriza a pulsão. Esse princípio, que não existe senão em atividade, é a
subjetividade e o saber do devir, e quer o devir tanto quanto quer devir ele
próprio. Além de ser perspectivista, algo como a vis activa de Leibniz, esse
princípio é um exercício, uma prática e uma determinação que pode se
verificar ou não, e se verifica em diferentes graus. Opera como critério ético,
pois descobre o vetor ativo em todo acontecimento; como começo, não
havendo outro ponto de partida para a visão analítica, pulsional; e como
virtude eficaz, à maneira do princípio ativo de uma planta ou de uma droga. É
claro que ele é a verdade de todas as ações e reações, mas enquanto é ou não
exercido. E, na medida em que é exercido, compreende um investimento em
sua própria direção, tal como sucede ou deve suceder na práxis analítica.
Assim como se deve tratar a noção de sentido, considerando a volta
inteira pela qual, finalmente, sua natureza pulsional se esclarece, do mesmo
modo se tratará o todo e a verdade: ao todo ideal sobrevém, de um ponto de
vista crítico e realista, mas também político e ético, a parcialidade incoercível
e, portanto, ao modo de um refluxo, a falta, a incompletude, a insatisfação –
em uma palavra, a crise, ao seu tempo inevitável, do ideal de totalidade. Mas o
que sempre se mostrou real, a diferença, que é o que positivamente aparece no

226
Lacan, no escrito Intervenção sobre a transferência, chama de “desenvolvimentos da verdade” o resultado
imediato das reviravoltas dialéticas operadas por Freud no caso Dora. Desde a “retificação das relações do
sujeito com o real” (mobilizada pela pergunta “qual a tua parte na desordem que denuncias?”), o discurso de
Dora passa a ser orientado pulsionalmente (Escritos, op. cit., p. 214).

197
lugar da falta, e obviamente no sacrifício, não terá ela sua própria integridade,
não será ela essencialmente íntegra? Trata-se exatamente disto.
A verdade, que se pretendia toda, passou a ser concebida como não-
toda. Esta figura lógica inventada por Lacan reproduz ainda o pretendido
saber analítico de que toda verdade é apenas meia verdade, de que sempre fica
um resto, não-dito e não analisável ao final de toda análise. Sob o nome de
inconsciente, a verdade fala em análise (Lacan), mas fala e se desdiz, fala pelo
avesso, fala de modo obscuro no sonho, no sintoma. Nessa meia verdade se
exprime nada menos que a sacrossanta divisão do sujeito. Concluindo-se
assim a história da verdade, perdemos de vista que ela envolve mais um giro,
o derradeiro, a partir do qual a verdade não se distingue mais de um dizer
íntegro. Afinal, nunca houve toda a verdade – senão como ideal – para que se
falasse legitimamente de meia verdade, mesmo que esta pudesse ser
constatada em inumeráveis casos. É que a experiência humana, trazendo a
marca do ideal, compreende também a fissura, o corte que fará da divisão a
verdade da experiência.
Falamos anteriormente que a pulsão se aplica ao simples, isto é, à força,
e que consiste em uma prática constante. Pois bem, um dizer íntegro ou inteiro
é um dizer em devir. E não há nenhum paradoxo nisto. Nele está contida a
força e o saber do devir, ou seja, sua potência, seu segredo. Ele mesmo é uma
linha de força. Qualquer fato analítico dá provas disto. Tomemos, a título de
exemplo, um caso célebre, o sonho da Injeção de Irma; sua análise abre a
Interpretação dos sonhos, de Freud 227. Uma vez elucidado, o texto onírico se
torna decididamente o dizer que é. Ou se trata da força de um dizer que se
impõe, ainda obscuro, sob a forma do sonho... Um primeiro aspecto dessa
força consiste em não esperar a “comemoração” 228; antecipa-se sob a forma
do sonho e, com isto, antecipa os acontecimentos. Aqui se distribuem
diferentes linhas de tempo, diferentes temporalidades, conforme se considera
o antigo, o atual, o longínquo ou o intempestivo – de tal modo que uma força é
um amálgama de tempos. Jung talvez chamasse o sonho antecipador de
prospectivo, mas em Freud se resolve como realização de desejo. Eis então o
segundo aspecto da energia do dizer onírico, imbricado no primeiro, e que
consiste em seu efetivo grau de penetração pelos vários níveis da memória,
reunindo-os numa transversal única, a transversal do desejo. O sonho abriga o
dizer freudiano e seu destino, como um segredo ou um fruto que amadurece
229
. Toda a psicanálise, dizia Freud nessa época, estava ali, quase que

227
Obras completas, op. cit., vol. 1, p. 406.
228
O sonho antecipa a festa de aniversario da Sra. Freud.
229
Ver, a propósito, a análise desse sonho retomada por Lacan, J., O seminário, Livro 2 – O eu na teoria de
Freud e na técnica da psicanálise, Zahar, RJ, 2010.

198
inteiramente delineada. Máquina abstrata e suas linhas, seus diagramas, se
quisermos usar os termos de Mil Platôs. Seja por meio das referências
associativas à experiência desastrosa com a cocaína, seja na formulação de
diagnósticos levianos e até desatinados, trata-se sempre do surgimento da
psicanálise, de seus fundamentos e de seu futuro. O sonho é um combate: as
mulheres que resistem e a que se entrega, os inimigos e os aliados. Freud, no
sonho, quer vencer – mas vencer, note-se bem, é não abrir mão do devir
psicanalítico. Nunca deixará de surpreender que a realização de desejo deste
sonho inaugural é a descoberta, e sua confirmação em ato, de que a essência
de um sonho é uma realização de desejo. Plano inconsciente em que o desejo e
o entendimento são o mesmo. A descoberta não se distingue de um dizer que
se desvela, implicando já o seu devir. Os níveis de memória reunidos pela
transversal do desejo são também os diferentes planos em que se colocam as
questões do devir freudiano e da psicanálise como tal no curso de sua criação.
Discussões ocorrem em vários planos, envolvendo personagens do meio
familiar e do ambiente científico-cultural de Freud. É notável como esses
embates, que dizem respeito em última instância à psicanálise, ao savoir-faire
de Freud, são intensamente afetivos, neles intervém o amor e a agressão, as
rivalidades, os temores e as ambições. A análise é, em si mesma, uma espécie
de purificação do entendimento, uma depuração de todos os sentimentos de
maneira a esclarecer o desejo. Os erros passados de Freud, seus acertos são,
por assim dizer, contabilizados. Uma série de saberes – é preciso acrescentar –
afetivos, que têm sua origem em diferentes “lençóis” de memória, entram em
ressonância, e toda a complexidade do sonho se resolve como um extrato, uma
essência, uma resolução aguda, um dizer inteiro, cuja vigência não se
distingue de seu devir. Onde este começa? Onde termina? Considerar ao
mesmo tempo o dizer, o desejo e o devir dá claridade à proposição freudiana
de que um sonho nunca chega a ser completamente analisado. Ou seja, aquele
trio já compõe a última instância analítica (o juízo final) – a precisão em
termos de inconsciente. Em outras palavras ainda, esse trio não pode ser por
nada medido, precisamente por ser a medida das demais coisas.
Um dizer íntegro é um ato e não um ser. Por isso o tema do inconsciente
– e o da análise – como queria Lacan, é ético e não ôntico. É claro que esse ato
evoca ao mesmo tempo o ser, a existência, uma vez que existir é agir na altura
da pulsão. Mas o ser devém constante por sua ação constante, a qual se
poderia chamar muito apropriadamente de sublimação. O dizer íntegro
corresponde a uma integridade ou inteireza que abrange o acontecimento de
uma vida inteira – é a verdade eterna desse acontecimento. Daí sua pertinência
ao sujeito do inconsciente. “O sujeito”, dizia Lacan, “vai muito além do que o
indivíduo experimenta subjetivamente, tão longe quanto a verdade que ele

199
pode alcançar”. Tão longe, aqui, quer dizer o grau intensivo pelo qual se
esclarece um destino. Há, portanto, estreita afinidade entre o dizer, verificável
no campo da análise e da vida humana como sublimação originária, e a
interpretação analítica tal como a concebe Lacan, isto é, à maneira de uma
adivinhação das linhas do destino. Desde que, bem entendido, se compreenda
por linhas de destino e sua adivinhação o esforço pelo qual se chega, ainda nas
palavras de Lacan, a “passar por esse lixo decidido para, talvez, reencontrar
alguma coisa que seja da ordem do real”. É sempre uma mesma coisa – a
limpeza em questão, a precisão sublimatória, a adivinhação (ou interpretação)
das linhas do destino e as próprias linhas do destino (ou do desejo).
O caminho do campo pulsional conduz ao que se chama em psicanálise
saber do gozo ou gozo do saber, ou melhor, ele é esse saber em curso, em ato,
e como tal não se distingue mais do próprio desejo. Nunca é demais repetir
que as noções correntes de saber e de gozo faziam parte do lixo: para que o
saber e o gozo sejam uma única coisa, deverá haver um salto, justamente na
direção do real-desejo. “Sempre sei, realmente. Só que eu quis, todo o tempo,
o que eu pelejei para achar, era uma só coisa – a inteira – cujo significado e
vislumbrado dela eu vejo que sempre tive”. Essa coisa inteira constitui o
fulcro da experiência do eterno retorno em Nietzsche, mas também da pulsão
em Freud. Retornar é devir e devir é tornar-se quem se é, mesmo quando se é
uma dinamite. Mas isso não é senão retornar ao seio do devir e da vida – e é a
este movimento, a esta prática e a este acontecimento, mais que a uma energia
ou a um impulso, que se dá o nome de pulsão. É preciso dizer, no entanto, que
a força, a energia pulsional consiste precisamente nesse retorno. Por isso
afirmamos que o sentido da força e a força do sentido são uma e mesma coisa.
O retorno é, ele próprio, o de uma inteireza, o de uma integridade. É na linha
desse retorno que se coloca a questão da existência e dos graus de experiência
que se pode fazer dela. Quanto mais se restaura a inteireza de um dizer, mais
nítida e clarividente se torna a existência (“sempre sei, realmente”). Pareceria
um contra-senso restaurar algo inteiro aos poucos, mas já falamos dos graus
do real – é para isso, justamente, que serve o conceito de pulsão, para indicar
algo elementar, feito de uma única peça, que se exerce ou não, podendo ser
exercido em diferentes graus. É para situar o problema pulsional em termos
éticos que falamos em graus de exercício, em graus do real. Mais uma vez, a
pulsão é uma prática, uma prática do real – e não há outro real senão o dessa
prática.
Mas o que é essa prática, senão a do dizer? Reportar o real à prática
pulsional e esta ao dizer pode parecer exorbitante, pode sugerir uma limitação,
um estreitamento ou uma redução forçada e abrupta – do quê a quê? Convém
ir devagar nesse assunto pouco esmiuçado. Por que a experiência do real de

200
que tratamos não é de preferência extática, silenciosa, e não se desenvolve
além de todas as palavras? Assinalamos o caráter extra-pessoal da pulsão para
dissociá-la de qualquer tendência narcísica, acentuando, em contrapartida, sua
natureza sexual e ética. A pulsão compreende a existência de todos os outros
além de nós mesmos. Graças a ela, portanto, podemos dizer que todo o sangue
derramado no mundo é o nosso. E isso só é verdadeiro porque podemos dizê-
lo e o dizemos. É o caso do verbo encarnado. Ora, o que é o verbo encarnado
senão o dizer? Porque é mesmo preciso chegar a dizer... Quem não estaria
implicado nisso? Essa implicação ou complicação de todo mundo na
encarnação do verbo faz com que Deleuze e Guattari falem de “agenciamentos
coletivos de enunciação”, argumentando que uma enunciação jamais se reduz
ao sujeito individual (“o sujeito vai muito além do que o indivìduo
experimenta subjetivamente...”). O sonho de Freud é um agenciamento desse
gênero, muitos estratos ideo-afetivos e diferentes temporalidades são
convocados por um “movimento expressivo autônomo”, desprendido das
coerções científicas, sociais e psíquicas de seu momento datado (23-24 de
julho de 1895). A medida dessa autonomia, que era então imponderável,
tornou-se visível nos dias de hoje? Ou seja, o dizer freudiano encontrou seu
limite, já se consumou sua queda no ser, no dito? Nossas proposições acerca
da pulsão investigam as potencialidades futuras do devir psicanalítico,
trazendo ao primeiro plano os problemas da autorização analítica e das
dimensões do campo pulsional. Pois, como se sabe, não é exatamente da
origem que se trata – o que faz com que os psicanalistas se equivoquem sobre
o desejo de Freud, sobre o fato de que restasse algo de não analisado na
origem, “o pecado original de Freud”, como se expressou Lacan em dado
momento –, mas do originário, tal como o concebemos clinicamente, e que
exige, conforme o mesmo Lacan soube ver, a renovação constante da pergunta
“o que é a psicanálise?”. Desde que lugar, então, se renova efetiva e
constantemente essa pergunta? O desejo não analisado de Freud, afinal, não
tem nada de misterioso – ele é a própria psicanálise, o dizer analítico. A
psicanálise é sua interpretação.
Sustentamos, portanto, a abertura do inconsciente evocando os critérios
(= forças) pulsionais pelos quais a pulsão e o dizer são o mesmo. Esses
critérios constituem o saber inconsciente, originário, da análise, e são
apreendidos precisamente ali onde incidem no real, isto é, ali onde adquirem
sua feição prática, ética, clínica...

201
202
O TEMPO DA PULSÃO

Embora o mundo se transforme com rapidez,


Como formações de nuvens,
Tudo, que se perfaz, retorna
Aos tempos da origem.

Sobre transformações e passagens,


Mais amplo e mais livre,
Ainda perdura teu prelúdio,
Deus com a lira! 230

Precisa-se de tempo...

É sempre um equívoco sobre a psicanálise pensar que ela se ocupa do


passado ou da infância. Jung propôs um método sintético prospectivo ou
teleológico para a apreciação dos dados simbólicos do inconsciente, contra a
linha freudiana baseada na análise (decomposição) e na regressão aos fatores
causais. Não se trata apenas, segundo ele, de um desejo infantil na origem de
toda a produção onírica, mas de um fim a que todo o processo psíquico, ou
algumas de suas vertentes, tenderia em face de tudo o que transcorreu até o
momento e de tudo o que a nossa percepção, sobretudo a subliminar,
inconsciente, permite esboçar quanto ao que está por vir. O psiquismo
reagrupa os dados antigos, integra-os e investe nas disposições atuais, visando
a ação futura. O procedimento analítico, por sua vez, deveria aliar-se aos
movimentos do inconsciente e, por se tratar de um processo vivo, adquirir
ciência de suas tendências, de seu curso, de seu sentido teleológico 231. Jung
estaria certo em sua oposição se a análise não fosse desde a origem análise do
futuro, apesar de seus praticantes raramente terem disto uma noção clara. O
passado em psicanálise é pensado em sua atualização constante, é memória
viva, de outra forma não teria o menor interesse: a infância não é apenas o
lugar de uma inibição e o objeto de uma nostalgia, ou ainda a fixação de uma
pretensão primitiva, irreal; ela é uma alegria e um futuro, um devir. Aquela
atualização, inevitável e em grande medida inconsciente, ganha uma
consistência operatória suplementar por meio da transferência, fenômeno
clínico em que o sujeito torna presente e vivencia, aqui e agora, uma certa
relação estrutural com o Outro que permeou sua experiência de vida até o
230
Sonetos a Orfeu, op. cit., p. 57.
231
Jung, C. G., O eu e o inconsciente, p. 7, 9 e 10, Vozes, Petrópolis, 1987: “O sonho é portanto um produto
natural e altamente objetivo da psique, do qual podemos esperar indicações ou pelo menos pistas de certas
tendências básicas do processo psíquico. Este último, como qualquer outro processo vital, não consiste numa
simples seqüência causal, sendo também um processo de orientação teleológica”.

203
momento, escolhendo a pessoa do analista como representante privilegiado
desse Outro e receptáculo de seus traços, inclusive e especialmente como
aquele que sabe, isto é, como sujeito do inconsciente. Entende-se assim que a
análise transcorre na transferência, pois caberá ao analista, desde então,
interferir de modo a que o campo de relação com o Outro (que inclui tanto o
ambiente simbólico e cultural como o estranho em si próprio, o que
denominamos de pulsão) se reabra a novas possibilidades de experiência, e os
dados sintomáticos sejam revertidos em favor das condições originárias,
pulsionais. Essas condições atualizam um poder de avaliação que se diria
constante, se fosse exercido; e na verdade é, mas de maneira obscura, tanto
que é possível reencontrá-lo: ele se insinua, irreconhecível, nas palavras e nos
atos, induzindo a formação dos chistes, dos lapsos, dos sonhos, dos sintomas...
Os indícios desse poder, no entanto, são os de um devir das condições
originárias que insiste e se anuncia, já próximo ou ainda longínquo, de tal
maneira que o tempo de esclarecimento das formações do inconsciente
coincide com o esclarecimento progressivo do tempo como tal, isto é, do
tempo que concerne àquelas condições.
Também o tempo é uma questão de prática. A fala, ao longo de sua
duração, é sem dúvida uma formação do inconsciente; prova-o a escuta
analítica, que não pára de instigá-la com seu “vazio”. Conforme o conselho de
Schiller a um jovem poeta que se queixava de improdutividade, uma palavra
após a outra, emitidas assim ao acaso, sem que o espírito crítico iniba seu
fluxo, podem oferecer ao cabo de um tempo um conjunto nada desprezível de
idéias, e mesmo uma fina trama de sentido que a princípio não se poderia
conceber nem visualizar 232. A análise, como cada um de nós, precisa de
tempo. Se existe uma função da pressa no tempo lógico 233, ela se insere numa
paciência que, no curso da análise, é a expressão maior do tempo que
dedicamos à redescoberta do tempo – ou da pulsão. Como diz Riobaldo, “o
diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro – dá
gosto! A força dele, quando quer – moço! – me dá o medo pavor! Deus vem
vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho – assim é o milagre. E
Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza”. 234A avaliação pulsional,
medindo e estimando os estados pelos quais um sujeito passa, decifra-se ao
longo de um tempo, e esse processo corresponde à análise como tal. Mas o
decifrar, em si mesmo pulsional, se aprofunda e se refina numa arte

232
Freud o menciona no início da Interpretação dos sonhos, ao discorrer sobre o método da livre associação.
Obras completas, op. cit., p. 410.
233
Cf. a noção de tempo lógico desenvolvida por Lacan em O tempo lógico e a asserção de certeza
antecipada, em Escritos, op. cit., p. 197.
234
Grande Sertão:Veredas, op. cit., p. 21 e 22.

204
divinatória, imprecisamente chamada de interpretação, ao trazer à superfície
as linhas ocultas de um destino, isto é, de um devir. Essas linhas eram e são
linhas ativas de entendimento, elas mesmas são feitas de luz e ato, são um
fiat... O devir é uma clareza que se experimenta, uma lucidez que se
conquista: a análise sempre foi análise do futuro.
Uma jovem mulher se aborrece e se desconcerta, intrigada, com o
sintoma físico de que sofre ainda, que persiste como corpo estranho paralelo à
sua vida, quando todos os outros males parecem eliminados pela análise.
Experimenta um novo momento, abrem-se perspectivas, projetos que antes
não pareciam viáveis podem agora se concretizar. Resta aquele incômodo
inqualificável, pois já não se sabe se de ordem biológica ou psíquica. Neste
último caso, que outros esforços seriam exigidos dela? Uma hipnose talvez?
Afinal, até o presente a análise não teve o poder de curá-la daquele resto
enigmático. Apesar de questionar essa idéia, pois conhece a origem da
psicanálise e distingue com precisão os dois métodos, aflige-a pensar que é
culpada por permanecer neste estado, que não quer curar-se. Buscar outro
expediente, outra terapêutica, seria fazer alguma coisa. Mas não tem certeza
de que a análise seja inútil para tratar do sintoma remanescente, quem sabe
precisasse de tempo. O sintoma físico é uma diarréia, e acarreta o sentimento
de algo que está fora do seu alcance. É o que fez evocar a hipnose como
recurso derradeiro, um poder de exploração e de controle do Outro. Teve
alguma outra crise de diarréia no passado? Não teve senão esta, prolongada,
que começou a dois anos, a partir de uma série de perdas afetivas que se
deram quase ao mesmo tempo. É possível fazer analogias com a idéia de uma
coisa que se esvai, que não se tem meios de reter, de perdas sobre as quais não
se teria mais alcance, e assim com um sentimento de causas perdidas. Será que
ela ainda deplora aquelas perdas? Avançar significaria deixá-las para trás?
Será um traço de melancolia? O devir é um real que empalidece a importância
das coisas perdidas e vai sempre além das tristezas. Mas como se chega a ele,
para que ele, por sua vez, possa sobrevir? É preciso apagar os vestígios dos
amores abandonados, rasurar a memória, ignorar as cicatrizes? Os amores
passados são relações, envolvem um modo de ser, um eu, e são esses
conjuntos amorosos, com seu teor narcísico, que resistem às novas condições:
a permanência do sintoma físico à margem da vida. Não é a memória dos
amores que impede a experiência do devir, pois memória e devir fazem um; o
que a impede é a fixação narcísica e a melancolia que dela resulta, com seus
efeitos deletérios. A frase “todos os esforços têm sido vãos”, que ela utiliza
com freqüência e num certo tom de desespero, evoca os amores perdidos e a
morte; já a frase “é talvez uma questão de tempo”, enunciada como reflexão,
fala da vida e do futuro. Na primeira disposição subjetiva o poder do tempo

205
desaparece, na segunda readquire sua força intempestiva, divinatória. Pode-se
objetar que certos processos devem mesmo encontrar um termo, sob pena de
não traduzirem mais que uma obstinação neurótica. Mas as alternativas não
são equivalentes, não dependem, exceto por deslize ético, da preferência do
analista. Elas coexistem em diferentes alturas do tempo, de tal modo que cabe
perguntar, em atenção ao caso, se houve tempo suficiente para chorar as
perdas e superá-las. O tempo se amplia, cresce, se aprofunda, alcança a
infância. Ela tinha muitos irmãos e muitas tarefas na infância, de modo que
não dispunha de tempo, exceto quando ficava doente: podia então se dedicar a
si mesma e ainda obter que o Outro, a mãe, seu mais remoto amor, dispusesse
de tempo para atendê-la. O analista é a mãe? Sim, a que ouve para além da
doença, para além desse conjunto amoroso que poderia ser designado de mãe-
filha doente e que a analisanda reluta em abandonar de vez. Lembremo-nos de
que ela vive um momento novo, voltada para as tarefas que elegeu como suas.
“A morte”, dizia Ginsberg, “não é senão a quebra de uma dimensão
familiar”. O além da doença é o tempo reencontrado, a infância indestrutìvel.
Todos os tempos se atualizam na redescoberta progressiva do tempo. A noção
de inconsciente, que ao evocar outra cena evoca sempre outro tempo, deve
servir a esse reencontro. Como dissemos acima, memória ativa e devir são o
mesmo. O fim a que tende o processo inconsciente é o começo de tudo, e o
que afasta o sentido teleológico, desta vez contra Jung, é o fato de que este
retorno às condições originárias não é natural, é não-natural, o que não
significa que seja contra-a-natureza. Ele é de natureza ética.

O tempo da análise é o tempo de um saber prático

“Muito bem dito, respondeu Cândido, mas temos de cultivar nosso jardim.” 235

O tempo é sempre o tempo de uma encarnação, seja esta de uma idéia,


de um pensamento ou de um afeto. É indissociável de uma prática. Assim, a
paciência e o tempo ampliado de uma análise não incentivam a inação, não
subscrevem a inércia de saberes que não teriam conseqüências reais. A
tendência a se considerar a análise apenas como tomada de consciência das
condições neuróticas ou perversas em que vivemos, uma espécie de
resignação com conhecimento de causa, uma admissão, por exemplo, de nossa
falta constituinte, ignora que esta falta constitui a neurose e é, como este seu
rebento indigesto e no entanto cultivado como o melhor dos mundos possíveis,
o índice afetivo e estrutural, permeado de angústia e capaz de comprometer
nossa razão, de uma prática que não se verifica. O inconsciente é assim uma
235
Voltaire, Cândido, p. 135, Abril, 2010.

206
insistência no não-dito pela simples razão de que seria preciso dizê-lo, e por
isto esta insistência já é um dizer obscuro, truncado, pobre, esgarçado, mas é
mesmo assim uma inquietude, um rumor no escuro. Nada acontece, porém, na
direção do inconsciente, na altura em que aquele dizer se engendra, se não
houver um passo na vida real e não apenas no intelecto; e ao dá-lo, novos
problemas e temas, que se distribuem em diferentes alturas do tempo, que
podem ser muito antigos, encontram a ocasião de avançar ao primeiro plano,
como um inesperado sítio arqueológico que se desencava, exigindo, por sua
vez, uma consciência prática conseqüente com o novo avanço da pesquisa. A
imagem do sítio arqueológico não deve nos enganar sobre a natureza do que
se encontrará ali; não objetos, utensílios, ornamentos, ossaturas, sob a forma
de representações, mas atos, atos de percepção, afetos não realizados, pedaços
de dizeres e dizeres íntegros. Desde sua primeira definição, a pulsão é uma
exigência, e sua “força constante” se esclarece como prática constante. E tal é
de fato a sua força, pois os graus em que os problemas se graduam no tempo,
na memória, são graus de poder, de força – de agir, de realizar, de pensar. A
graduação da memória e o devir da força pulsional constituem um mesmo
processo: sublimação. Por isso, como dizia Leminski, é preciso toda uma vida
para fazer um poema, entendido que toda uma vida não se resolve como
história, mas como intensidade. Seu tempo não é o cronológico, mas o
intempestivo.

As medidas do tempo

A expressão “o tempo da pulsão” deve ser lida em vários sentidos, pois


se aplica aos diferentes desdobramentos do tema. Diz respeito ao tempo
próprio da pulsão, aquele que convém à pulsão ou, ainda, que é determinado
por ela; além disto, designa algo próximo ao Kairós dos gregos, o tempo
oportuno, o momento da pulsão. Sim, vários sentidos são convocados aqui, e
diferentes graus, porque não é a mesma coisa falar de um tempo que é
determinado pela pulsão e de um tempo que convém ou que corresponde a ela.
Não são contraditórios ou excludentes, mas modalidades distintas de
apreensão conceitual e de experiência. O que faz toda a diferença neste caso
especial é o estágio da pulsão. Em outras palavras, é a pulsão que dá acesso ao
tempo que lhe corresponde, mas seu exercício pode não ter alcançado ainda
esse estágio, que denominaríamos de estágio da cura. Se digo que o tempo
corresponde a ela, é porque tempo e pulsão fazem um nas condições
originárias; mas se o tempo é determinado pela pulsão, tudo dependerá do
estágio em que a pulsão é exercida. Repetimos: o tempo também é uma
prática, remete à pulsão e ao seu exercício. Temos, por assim dizer, o tempo

207
que merecemos, de acordo com o exercício da pulsão. É que a pulsão, como
foi visto até aqui, definindo-se como modo de subjetivação, graduação da
existência e saber prático, é imediatamente expressão, dizer, sublimação em
diferentes estágios. Todas as glórias e perigos se perfilam ao longo do
horizonte pulsional. É um circuito em retorno (Freud, Lacan), mas o que nele
retorna depende do grau de exercício da pulsão, para o qual concorrem – e isto
é decisivo – os meios de que ela se serve, bem como os modos de captura em
que ela se precipita. O termo “se precipita” é pertinente, pois sugere uma
adesão subjetiva (=afetiva) fascinada aos ardis pelos quais a pulsão deixa,
finalmente, de ser exercida. Tomado em uma espécie de bruxaria, para falar
como Artaud, o processo pulsional se retorce e se transforma em pulsão de
morte. Não se trata, porém, de transformar um processo dessa ordem em uma
vítima de poderes implacáveis, não há inocência ou ignorância nesse campo,
pois os ardis se armam e se tecem com falhas éticas.
Em Monsieur Klein, de Joseph Losey, assistimos com perplexidade
crescente o devir judeu de um não judeu em Paris, durante a ocupação nazista
da cidade, em 1942. O senhor Klein é um cidadão francês de início alheio aos
dramas da guerra e da discriminação racial, é um comerciante de obras de arte
movido pelo dinheiro e o luxo. Mas tem algo nele, uma violência muda, que
contrasta com as atitudes superficiais e descomprometidas. A referência de
passagem ao Moby Dick de Melville insinua, para além da percepção imediata
de um diletantismo literário do personagem, a idéia de alguém que vai às
últimas conseqüências do seu desejo. Essa violência suspensa, parada,
destacada por Deleuze, e segundo ele encontrável também em certos
criminosos de Genet, reflete uma honestidade de fundo irremovível, a nuvem
carregada e o raio iminente. O que desencadeia essa comoção de fundo no
personagem é a presença-ausência quase onírica de um outro senhor Klein,
reconhecido como judeu e que, misteriosamente, se desloca, desliza, deixando
pistas e confundindo as identidades sociais de ambos. Para sermos breves,
diríamos que estamos diante de um devir autêntico, pulsional, porém lançado
em estranhas vicissitudes no que se poderia chamar, com Deleuze, de meio
derivado. Não é improvável que a pulsão se converta em pulsão de morte,
posto que assume “el siniestro”, o outro enquanto devir minoritário, usando
ainda termos de Mil Platôs. Daí o perigo de que a obscura assunção se
converta em tendência para a morte ou coincida com ela. É que o destino da
pulsão, assimilada ao meio derivado, se define como volta contra si. A razão
disto é simples: em sua potência ativa, em sua diferença absoluta e irredutível
não-senso, a pulsão é o fora do meio derivado. É originária, cósmica, real. Por
isso Lacan disse algo definitivo: “a civilização é o lixo”. A pulsão só não se
converte em pulsão de morte quando alcança sua feição real, sublimatória.

208
Alcançá-la, contudo, não garante nada além de alcançá-la num instante, pois
em seguida tudo depende de se poder mantê-la, conservá-la ou conservar-se
nela. Neste caso, como já dissemos antes, deve-se contar com a firmeza, a tal
ponto que a firmeza faz parte do conceito de pulsão; é sua mais inequívoca
expressão ética. Lacan soube enunciar essa ética dizendo, primeiro, que ela
consiste em não se abrir mão do desejo e, segundo, que é uma ética do bem
dizer. Somos assim lacanianos, para além das escolas.
Prosseguindo: todo plano que não é de sublimação, que não é de
indeterminação, é plano de realidade ou meio derivado, plano menor do ponto
de vista pulsional, e a pulsão só pode se realizar nesse plano menor, ou através
dele, sob a forma da volta contra o eu. O eu aparece como o que deve ser
suprimido, na medida em que a pulsão se vê capturada, por assim dizer, pelo
meio derivado. O eu, na duplicidade que lhe é própria, isto é, sob uma de suas
faces, não deixa de representar a pulsão no meio derivado – por isso se
qualifica rapidamente como bode expiatório, destinado ao suplício 236.
Poderíamos evocar, a propósito dessa captura por identificação, um processo
diretamente clínico, de clínica psicanalítica, tal como foi destacado por alguns
autores, especialmente da escola inglesa. Trata-se da identificação projetiva, a
qual pode se exercer, eventualmente, sobre a figura do analista, como parecia
acontecer no caso de Ivan e de suas sessões-palestras. As sutilezas da
transferência e da contratransferência, enquanto sustentam a análise,
encontrariam assim seu limite a partir de um movimento que, justamente, não
envolveria mais o analista, senão como receptáculo silencioso de uma
projeção inteiramente atribuível ao paciente. A conseqüência dessa
identificação projetiva é a neutralização do analista, como se fosse colocado
fora do campo de articulação possível com a alteridade. Tal processo
começaria por dificultar, travar e finalmente inviabilizaria a análise, não fosse
a contratransferência originária ou primordial do analista que o situa em uma
margem de exterioridade apta a traçar, a cada vez, os limiares móveis do
campo analítico, no qual a identificação projetiva, por mais extensiva que seja,
figurará como uma possibilidade provocada pela virtude mesma desse campo.
Já dissemos que o campo analítico se esclarece pelo pulsional, pois é neste que
reside a margem de exterioridade que decide pela natureza e pela potência

236
Considere-se, aqui, o masoquismo, a volta sobre o eu, inclusive sob o aspecto do masoquismo primordial,
pelo qual Freud postulou a pulsão de morte. Como deve ser entendido? O circuito em retorno da pulsão,
enquanto dobra, tem em vista seu próprio exercício – é nisto, aliás, que consiste a satisfação. O ideal, porém,
toma o lugar desse alvo originário. Transformado em objeto da pulsão, o eu mescla-se com o alvo,
introduzindo no seio do movimento pulsional a lógica mortífera, a saber, a idealização do eu, tanto sob a
forma do eu ideal como do ideal de eu. Como Deleuze soube mostrar, a primeira modalidade de idealização
do eu diz respeito ao masoquismo, a segunda ao sadismo (cf. Sacher-Masoch: o frio e o cruel, op. cit., p. 109
em diante).

209
daquele. É a margem de desejo indômito, não capturável, reservada e
conservada pelo analista que dá a medida de sua imunidade à identificação
projetiva que, de outro modo, neutralizaria sua possibilidade de agir. É essa
margem, note-se bem, que causará a transferência do sujeito com seu próprio
processo, a ponto de não ser mais alcançado pelas identificações hipnóticas e
garantir, com isso, o passo existencial, a vida desejante. É óbvio que a
identificação projetiva, sendo defesa contra a diferença, tem na pulsão o seu
alvo. Ora, antes de mais nada a pulsão é a escuta analítica. Não encontrando
onde se fixar, posto que o analista se tornou o fora de toda identificação,
aquela defesa entra em colapso, perde sua função de fechar o inconsciente e
neutralizar o dado pulsional. Neste momento, a pulsão se torna novamente o
alvo eventual e visível das identificações projetivas que já se encontravam em
curso, que foram originalmente mobilizadas sobre o próprio sujeito e
sucumbiram, por fim, aos recalques secundários. Dizemos secundários porque
o originário consistiu na identificação projetiva mesma, incidindo sobre o
processo pulsional. Essa espécie de recalque originário é como que a essência
dos diversos processos de identificação, cujo destino último consiste em
paralisar o movimento pulsional. O retorno do recalcado, na medida em que
retorna, quase invariavelmente, nas condições dadas do recalque originário,
cai sob novas modalidades de identificação, de modo que o recalcado
originário se torna cada vez mais obscuro e inacessível. Mas o que é aquele
movimento em sua origem real? A determinação ética da diferença,
entendendo-se por determinação tanto o caráter imperioso do processo quanto
o esclarecimento da diferença. E isso porque a força do processo e sua
inteligência imanente, em grande medida ocultos, são indissociáveis.
Ora, seguindo essa analogia com o dispositivo ético da análise,
pensamos que o eu deve ser ultrapassado pelo movimento pulsional na medida
mesma em que a pulsão é o futuro do sujeito, seu devir. O sujeito do
inconsciente designa a constância desse devir pulsional. O que acontece,
então, quando a pulsão deixa de ser exercida, quando seu exercício vacila,
quando ela deixa de se exercer? Isso, aliás, só pode acontecer porque ela foi
separada (ou separou-se) do que ela pode, isto é, de seu próprio exercício.
Como isto é possivel? A pulsão deixa de ser exercida ou separa-se do que
pode quando é submetida a um processo de identificação. Não se trata de uma
submissão inevitável, sob o domínio de forças que são, de modo geral, de
magnitude superior à dela. Há uma decisão em curso, por obscura que seja,
que opta, em tal momento, pela identidade, em detrimento da diferença. A
pulsão, repetimos, é de consistência ética. Todos os traços da pulsão
precisariam ser atualizados ao mesmo tempo, o que podemos simplificar
dizendo que ela é diretamente princípio, potência e prática. Não se deve

210
esquecer que a pulsão é, ao mesmo tempo, ato e destituição subjetiva sempre a
ponto de ser renovada; ou ainda, renovação prática, isto é, em ato, de uma
perspectiva vital. Assim, se o movimento pulsional ultrapassa o sujeito e é o
seu futuro (devir sujeito), ao mudar de forma o sujeito inicial, sob o juízo que
decide seu limite, deve encontrar a morte. A mudança de forma se engendra
no curso do imprevisto, do inusitado, do novo, e é aqui que o juízo,
clinicamente observável na identificação projetiva, incide com a maior
intensidade. Força clínica de Artaud, ao perceber que Van Gogh se torna um
“suicidado da sociedade” exatamente quando chega a ser e saber quem era 237.
É o dado trágico, a partir de certo ponto incontornável, mas não absolutamente
necessário desde o início. A arte, a análise, são nossas modalidades de luta e
de salvação constante. Pensamos que seja por sua imersão, todavia inevitável,
no meio derivado, e apenas nesta medida, que Nerval, Van Gogh, Artaud
perecem, cada qual à sua “maneira derivada”, seja pelo suicìdio ou pela
loucura. No caso de Artaud, mostramos que a infusão de elementos da mística
cristã em sua experiência dos limites teve por efeito a confusão dos espaços e
um destino de alienado por nove anos, o espaço liso (= saúde) só podendo ser
efetivamente conquistado com o discernimento progressivo da nociva infusão
e o seu rechaço – “não fui ao México para encontrar Jesus Cristo, mas para
encontrar a mim mesmo”. A tarefa analìtica é, certamente, a de reencontrar a
cada vez o idioma indígena, ou seja, os fluxos vitais que são diretamente
fluxos de linguagem.
Quando Deleuze diz que “o meio real, atual, é o veìculo de um mundo
que se define por um princípio radical, um fim absoluto, uma linha de maior
inclinação” 238, deve-se extrair dessa proposição duas conseqüências distintas.
Primeiro, que o mundo pulsional adquire o aspecto de fim absoluto mediante o
meio no qual se encarna: “o mundo originário não existe independentemente
do meio histórico e geográfico que lhe serve de veículo. É o meio que recebe
um princípio, um fim e sobretudo uma inclinação. É por isso que as pulsões
são extraídas dos comportamentos reais que ocorrem num meio determinado,
das paixões, sentimentos e emoções que os homens reais experimentam nesse
meio. (...) A um só tempo: o mundo originário só existe e opera no fundo de
um meio real, e só vale por sua imanência a este meio, cuja violência e
237
Artaud, A., Oeuvres completes, vol. XIII, Van Gogh le suicidé de la société, p. 20, Gallimard, 1974: “Et où
ést dans ce delire la place du moi humain? /Van Gogh chercha le sien pendant toute sa vie avec une énergie et
une determination étranges,/ et il ne s‟est pas suicide dans um coup de folie, dans le transe de n‟y pas
parvenir,/ mais au contraire il venait d‟y parvenir et de découvrir ce qu‟il était et qui il était, lorsque la
conscience générale de la société, pour le punir de s‟être arraaché à elle,/le suicida.”
238
Deleuze se refere aqui ao “mundo originário das pulsões” (Cinema – imagem movimento, op. cit., p. 157).
Já observamos anteriormente que não há correspondência direta com os termos que utilizamos (originário,
pulsão), uma vez que nesse texto de Deleuze tais termos são relativos ao que chamamos de imagens da pulsão
e do originário, distintas de uma visão pulsional, originária.

211
crueldade revela; mas, também o meio só se apresenta como real na sua
imanência ao mundo originário, tem o estatuto de um meio „derivado‟ que
recebe do mundo original uma temporalidade como destino”. Assim, o que
Deleuze chama de originário, fazendo-o coincidir com o domínio das pulsões,
carrega consigo os destroços do meio derivado, já é o próprio destroçar que
ruge no fundo desse meio, desfazendo-o em esboços, pedaços, membros
dispersos, e conduzindo tudo, feito pulsão de morte, a um grande campo de
lixo ou pântano. É o tempo de Cronos. 239 A segunda conseqüência, no
entanto, é que essa é apenas uma imagem do campo pulsional e de seu tempo,
é a versão do meio derivado para aquilo que o subverte e conduz à dissolução.
Só apreende do originário as imagens que a si próprio se oferece, só o
experimenta, portanto, a partir de seus próprios critérios não pulsionais. Ou
seja, o que Deleuze chama de meio real capta as forças que o atravessam
como potências diabólicas de fragmentação, de desmembramento violento, de
de-subjetivação forçada e de estigmatização terminal (o bode expiatório)
anunciando, no limite, a sua extinção. O deserto bíblico, sem nome. Neste
ponto, porém, damos um passo além da concepção de pulsão proposta por
Deleuze em Cinema – imagem-movimento, não sem registrar que essa
concepção “derivada” não é, certamente, a última palavra de Deleuze sobre a
vida pulsional 240.
É toda uma revisão da noção de pulsão parcial que precisaria ser feita, a
fim de situar devidamente o problema das pulsões. A vinculação do pulsional
ao orgânico – isto é, às zonas erógenas, às bordas dos lábios, do ânus, etc. – e
sua determinação como parcial (e de morte), decorrem de uma tomada (no
sentido de uma tomada de cena) da pulsão no que Deleuze e Guattari chamam
de espaço estriado – geométrico, orgânico – onde ela aparece, sem dúvida,
destacada do organismo – é este órgão, esta borda, esta função – sem deixar,
no entanto, de se reportar a ele segundo uma versão perversa, ou seja, como
transgressão. A lei é a do organismo, que a pulsão não cessa de transgredir. É
que ela é vista pelo prisma da lei orgânica e se move no interior de um espaço
estriado – a père version. A pulsão de vida, porém, não é parcial, e nem
propriamente localizável, fixável a este ou aquele processo orgânico. Ela é
nômade, inorgânica, processo por excelência. “Se tudo é vivo, não é porque
tudo é orgânico e organizado, mas ao contrário, porque o organismo é um
desvio da vida” 241
O originário, sob este aspecto – o “naturalismo” –, não se separa do
meio derivado, a ponto de Deleuze dizer que ali onde a separação existe não

239
Cinema – imagem-movimento, op. cit., p. 158.
240
Ver, a propósito, nota de rodapé nº 99, p. 68.
241
Lógica da sensação, op. cit.

212
estamos mais no naturalismo, conforme o exemplo de Pasolini. Isso não
impede, no entanto, a apresentação de uma imagem da pulsão em Pasolini que
em tudo a aproxima da pulsão de morte. Se este autor não se põe a
diagnosticar as condições de nossa civilização pela exploração de seus
sintomas, de seus ídolos e fetiches 242, como acontece ao naturalismo de
Buñuel e Losey, parece apostar, em contrapartida, numa transformação da
cultura, numa revolução saneadora – sendo a pulsão o veículo destrutivo-
saneador. Ainda aqui, porém, a pulsão não será compreendida como criadora
de novas condições de vida. Pasolini professa uma espécie de retorno estético
ao trágico. Assim, em ambos os casos, no sintomatológico ou no trágico, é o
poder de dissolução que caracteriza o processo pulsional. E no entanto,
tomado em si mesmo, esse processo não tem fim. Aliás, é o único que não tem
fim, ao modo de Dioniso, que se torna por isso mesmo medida ou, como quer
Nietzsche, juiz. Diga-se de passagem, não foi em O processo que Kafka
descreveu um devir da pulsão como tal, mas em O castelo, seu último
romance, cuja chave consiste, talvez, em não ter um término. Freud evoca
igualmente essa dimensão meta-psicológica do tempo ao propor uma análise
interminável.
Mas vejamos em detalhe, do início ao fim, o estranhamento progressivo
de Monsieur Klein. À medida que se torna mais nítido, o devir estranho a si
mesmo adquire também uma tonalidade mais sombria, e se precipita para um
término, algo paradoxal, de uma discriminação que apaga as particularidades,
votando o dejeto não-humano ao indiferenciado – o trem de uma raça espúria
e condenada. Se é verdade, como diz um personagem de Godard, que “todos
nós estamos rodeados de sonhos invisìveis”, alguns desses sonhos são
verdadeiros pesadelos, e ameaçam, igualmente, a se atualizar. No interior de
um dos vagões providos de grades, logo atrás do senhor Klein, acha-se o judeu
de quem ele comprou, logo no início do filme, o quadro de um pintor
holandês. Klein se aproveitara da situação, oferecendo um valor bem abaixo
da qualidade da obra. Com seus recursos se extinguindo, o judeu não teve
escolha. Como foi possível a Klein, que parecia tão distante daquele destino
desigual, juntar-se finalmente à massa de judeus e desaparecer? Não estava
mais sob a pressão de um poder exterior, pois ele próprio já fora muito além
das investigações da polícia nazista. Era impelido por uma força irresistível,
não-identificável, e seguia agora pela mesma linha de seu duplo incógnito. Na
última hora, seus amigos influentes obtiveram os documentos que o
protegeriam, mas ele simplesmente os ignorou.

242
Cinema – imagem-movimento, p. 159.

213
De todo o seu acervo, apreendido em dado momento pela polícia graças
às confusões com o duplo, conservou apenas o quadro do pintor holandês,
com o qual se identifica cada vez mais. Teria havido na vertente holandesa dos
Klein algum sangue judeu? Seu pai descarta essa possibilidade, mas ela
repercute, ao longo das investigações de Monsieur Klein, com as aparições do
quadro, cada vez mais carregado de enigma e afeto. Esvaziou-se inteiramente
de seu valor financeiro inicial para adquirir, em troca, o sentido de um
vaticínio. Por que Losey repete a aparição dessa pintura holandesa nas cenas,
espécie de fetiche, ou mais precisamente de objeto a, a encarnar uma latência
de valor e gozo prestes a irromper em cena? Sua potência afetiva insiste em se
efetuar, emitindo o signo de uma revelação ruinosa. A ficção se adensa, ganha
foros de verdade. Losey faz do quadro uma dobra do cinema, e deste a linha
de fuga de um declínio inesperado, irresistível, para o qual aflui todo o meio
derivado. O judeu, que no início renuncia à posse do quadro, e sobretudo
Klein, que o compra por cobiça e indisfarçável cinismo capitalista, indiferente
ao anti-semitismo circundante, parecem pressentir que suas linhas de fuga ou
de desejo se conjugam em algum ponto, ali, precisamente, onde começam a se
mesclar com a linha da morte. O meio derivado não é criador, de tal modo que
o desejo, quando assumido – e Klein não mais abrirá mão dele –, se
confundirá, nesse meio, com uma deriva para o fim. A confusão decorre da
imagem que recebe do meio derivado; na verdade, uma quase não-imagem,
um negativo do que deve existir, sempre acompanhado de uma solução final –
a identificação (ou extinção) projetiva.
Quando falamos em linha de fuga ou de desejo, pensamos em
procedimentos, em práticas de imanência e em seu teor ético. Podemos
afirmar, seguindo Deleuze, que Monsieur Klein tem acesso à mais
perturbadora das assunções: ao ingressar no comboio da raça espúria,
desumanizada, encontra-se mais próximo do seu desejo que antes, quando
ainda não havia começado sua investigação obstinada e algo psicótica. É um
Édipo, e seu destino trágico parece dosar, no ato final, o terror com a
santidade 243. Já está morto e, no entanto, nunca esteve tão próximo de si, do
começo, da força (o caso Van Gogh). Mesmo assim exprime o destino da
pulsão no meio derivado, adotando imagens e recursos derivados. É a este
embate entre a pulsão e o meio derivado, precisamente ali onde se mesclam,

243
Cf. algumas observações de Lacan a respeito do santo, ao situar a condição de analista. “O santo, para que
me compreendam, não faz caridade. Antes, presta-se a bancar o dejeto: faz descaridade”. Lacan joga com o
termo décharité e déchet (dejeto). Não se espere do santo nenhuma expectativa de recompensa, e mesmo de
gozo. Ele “está pouco se lixando” para isso; inclusive, “lixar-se para a justiça distributiva é, muitas vezes, de
onde ele partiu”. Outros escritos, op.cit., p. 518 e 519. Como não ver que Monsieur Klein se movimenta nessa
direção, na qual se poderia ver, com Lacan, uma saída do discurso capitalista, depois de sê-lo do discurso
fascista? No filme de Losey, porém, a saída em questão sucumbe com o meio derivado.

214
se misturam, que se deve atribuir o caráter trágico da existência, com suas
soluções finais, seus final cuts. Édipo, entretanto, vai além. Cego, perambula
longe das cidades, no exterior, fora de tudo, de onde extrai uma vidência que
os reis de Tebas e Atenas não alcançam. Depois de Orfeu, será o único mortal
a entrar vivo no Hades. Esse privilégio dá a medida do desejo e do saber em
jogo, bem como a dimensão de tempo correspondente. É dessa outra
temporalidade que advém a lufada de ar existencial que chamamos de pulsão,
por mais estranho que isso possa parecer ao nosso hábito positivista, no qual
Freud mesmo recaiu, apesar da psicanálise – de localizar a fonte da pulsão nos
processos somáticos. Como costuma acontecer, o novo encontrava apoio no
mais estável e conhecido, neste caso, no dado científico inquestionável do
elemento biológico. Precisava de uma imagem que neutralizasse, em certa
medida, a impressão de estranheza que a vida inconsciente suscitava, tendo
em vista que essa estranheza, olhada de frente, escancarava um abismo. Ora, o
recurso à pulsão tem o sabor do combate, pois nada parece mais tentador que
desconhecer sua estranha vitalidade – enquanto conceito, enquanto prática,
enquanto acontecimento. Sim, existe algo de inquestionável na pulsão, mas na
medida em que ela própria é colocação em questão, e isso em nome da
potência de colocar em questão – o que remete à indeterminação originária.
Mas se o originário, mesclado ao meio derivado, afeta-o de uma
temporalidade que é a de Cronos, que espécie de tempo não receberia mais sua
determinação de um fim, e nem por isso se confundiria com a eternidade? É o
intempestivo. Ora, a psicanálise não é outra coisa que a descoberta do
intempestivo em ato, na vida cotidiana. Na verdade, a descoberta do
intempestivo em ato não é senão a da pulsão. Ambos fazem um. Falamos de
descoberta, mas se trata de uma conquista e, mais profundamente, de uma
prática. Nietzsche concebia outro ponto de vista, outra altura do tempo, pelo
qual a vida contemporânea pudesse ser lida e avaliada. Se este outro ponto de
vista é sintomatológico, trágico ou criador, isto se deve ao deslocamento da
pulsão, ao seu nomadismo em relação ao meio derivado e à sensibilidade deste
meio a ela, com o cortejo de identificações projetivas que a cercam a cada
passo do seu trajeto desviante. O movimento pulsional compreende, portanto,
uma verdadeira prática à altura do intempestivo. É o que nos dizem em Mil
Platôs: sim, existe a deriva da droga, do masoquismo, da esquizofrenia, mas é
possível obter tais efeitos por outros procedimentos, que não se distinguiriam
mais de devires imperceptíveis, não identificáveis.

Luz “contemporânea”

215
O nomadismo pulsional é inseparável do intempestivo. Aganbem
explora uma aproximação semelhante ao propor que o contemporâneo “é
aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para perceber nele não as luzes,
mas o escuro” 244. Como estivemos mostrando, há pelo menos duas
experiências do escuro: uma em que ele é o negativo das luzes, outra em que
ele é a luz oculta do próprio tempo. A primeira envolve um processo de
identificação e sua sombra, a segunda um discernimento constante, o
intempestivo mesmo em sua claridade, em sua clareira. É sem dúvida o que
Agamben explicita, na esteira de Nietzsche, com a idéia de uma dissociação
em relação ao tempo atual, uma vez que “pertence verdadeiramente ao seu
tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide
perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto,
nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse
deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de
apreender o seu tempo”.
O lapso, enquanto fenômeno psicanalítico exemplar, é uma potência do
inconsciente, ou melhor, é efetuação de potência, é ato novo, desconcertante, e
isso graças à inevitável estranheza, ao efeito de dissociação em relação à
experiência atual. Todo um passado, fazendo corpo com o presente, pode se
exprimir através dele, vivo e inesperado: pulsão 245. Ele pode integrar em si,
como o fazem sonho e o delírio (e igualmente o poema e o êxtase místico),
diferentes temporalidades e, portanto, estratos diversos de pensamento e de
saber inconscientes; de tal modo que, sob a ação analítica, estes só se
desdobrarão e se tornarão visíveis, sensíveis e praticáveis, a partir dele. Essa
desconexão temporal que antecipa o porvir, esse devir-sujeito do lapso
finalmente assumido, são concebidos por Agamben como um paradoxo: “ser
pontual num compromisso ao qual se pode apenas faltar”. É que a pulsão é
deslocamento constante, o novamente de todas as vezes 246. Sua intimidade
com o tempo é absoluta. É um futuro latente, em atualização constante nas
formações do inconsciente. Como já observamos outras vezes, Freud tocou
nesse paradoxo desde o início, e muito especialmente em sua Interpretação
dos sonhos, quando situou a dimensão de um conteúdo latente ao qual nunca
cessamos de aportar, e isso na medida em que um sonho nunca é inteiramente
analisável. Diz Radmila Zygouris: “O conteúdo latente é um nicho de
liberdade criado por Freud, que possibilita a construção de um pensamento

244
Agamben, G., O que é o contahemporâneo? e outros ensaios, p. 62, Argos, Chapecó – SC, 2009.
245
Trieb quer dizer renovo, broto, além de impulso e tendência.
246
A propósito da expressão “novamente”, é de se registrar o uso admirável que MDMagno faz dela, ao falar
do eterno retorno de uma “nova mente” (Cf. Magno, MD, A psicanálise, novamente: um pensamento para o
século II da era freudiana, Novamente, RJ, 2004).

216
atual. O sentido que se desvenda é um saber do intérprete que se atualiza” 247.
Gostaríamos de sacudir um pouco o significado dessa frase, pegá-la, por assim
dizer, pela raiz, e acrescentar que o intérprete se atualiza, ele mesmo, junto
com o saber.
A dissociação em relação ao tempo atual, característica do intempestivo
e do contemporâneo (Aganbem), é, pois, de ordem pulsional. Ou seja, ela
implica uma espécie de deslocamento físico e metafísico da experiência, bem
como a constituição de um plano de superação extra-orgânica. A abordagem
do intempestivo, se não for mera digressão intelectual ou, pior ainda, um
fantasma da atualidade, não pode se dar sob a forma do organismo e das
correlações orgânicas. É uma vida inorgânica que se apropria do espaço e do
tempo, ou melhor, que é, ela mesma, a conquista de um espaço liso e de uma
visão direta do tempo. Tudo se dá ao mesmo tempo: o espaço liso, a potência
inorgânica e a visão direta do tempo. Entendamo-nos: o orgânico e a
organização, o estriado e o estratificado, não são destruídos nessa operação
intempestiva. Eles são literalmente superados, ou ainda, litoralmente situados.
Trata-se de uma transposição de tempo e de espaço, mas segundo a qual essas
determinações se alteram completamente: a física é uma verdadeira física
(extensio), e a metafísica uma consciência do tempo (intensio). “Perceber no
escuro do presente essa luz que procura nos alcançar e não pode fazê-lo, isso
significa ser contemporâneo”. É, portanto, amar o lapso...
O que torna contundente a frase “ser pontual num compromisso ao qual
se pode apenas faltar” é a idéia de compromisso – que é o que urge dentro do
tempo cronológico e que o transborda. “E essa urgência é a intempestividade,
o anacronismo que nos permite aprender o nosso tempo na forma de um
„muito cedo‟ que é, também, um „muito tarde‟, de um „já‟ que é, também, um
„ainda não‟”. Não queremos forçar o entendimento de algo novo com o
recurso ao já conhecido, quando observamos que a urgência apontada, assim
como a tensão temporal do muito cedo com o muito tarde, são aspectos
decisivos do processo pulsional. É que este não é, de modo algum, o que se
pode chamar de conhecido, familiar, atual. Justamente, é o que já vigora por
muito tempo, sem ser ainda advindo. Reside no escuro de nosso tempo,
atravessando-o de ponta a ponta, começando antes e continuando depois, sem
estar por isso sujeito a uma cronologia. Pelo contrário, desfaz toda cronologia,
em nome do que está por vir. Como diz Aganbem, “ser contemporâneo é,
antes de tudo, uma questão de coragem: porque significa ser capaz não apenas
de manter fixo o olhar no escuro da época, mas também de perceber nesse
escuro uma luz que, dirigida para nós, distancia-se infinitamente de nós”. A

247
Zygouris, Radmila, Pulsões de vida, p. 49, Editora Escuta, SP, 1999.

217
partir daí, o compromisso consiste em não haver outro meio de ser pontual
senão por determinação ética (a coragem, a firmeza de poder fitar as trevas). O
desejo intempestivo do sonho é o fio dessa determinação – e isso em mais de
um sentido, conforme o ponto de vista em jogo: o do sonhador, por exemplo,
não saberia identificar onde começa e onde termina o processo pulsional que o
anima, e que ele passa a detectar no meio do percurso, quando a obscuridade e
o enigma adquirem um relevo vital. “O real, a gente o encontra é no meio do
caminho mesmo”. A vitalidade do desejo e o saber que reside na sombra
fazem um só. Mas, paradoxalmente, a vitalidade só se sustenta por
determinação ética, e não se distingue mais de um saber de si própria. É o que
dizíamos acima: o sujeito e o saber são um só do ponto de vista do
inconsciente. Aliás, este plano, obscuro por excelência, instiga pelo saber que
ali dormita, tanto quanto a vida. Atualizar esse saber é uma arte, uma práxis,
um engenho, uma maquinaria abstrata e real.
Lá onde isso era devo eu advir é assim a fórmula do “contemporâneo”
considerado ao modo de Aganbem. Não faltaria precisão na abordagem do
processo pulsional e seu caráter “contemporâneo” se disséssemos que a
determinação ética – que garante sua consistência – esposa diretamente uma
indeterminação originária. É daí que a pulsão retira sua força constante. O
“compromisso” de que estamos tratando não se distingue, assim, de uma ética
pulsional – lá onde isso era...
A proposição de Aganbem (“ser pontual num compromisso ao qual se
pode apenas faltar”) precisaria então ser revista. Primeiro, não se trata de ser
pontual e de faltar ao mesmo tempo, mas de ser pontual em abrir ou reabrir a
perspectiva pulsional e, desde então, em não cessar de abrir; freqüentar – sob a
“forma informal” da prática constante – essa indeterminação originária de
onde pode nascer o ato livre. E isso graças ao caráter nômade dessa
pontualidade. Não se trata tampouco da ocupação de um vazio estrutural
sempre deslocado. Nós faltamos quando não abrimos, de modo que a falta é
ética. Em toda a psicanálise sempre se fez confusão entre a falta (que
pressupõe a postulação de um todo idealizado ou o formalismo de um lugar
vazio na estrutura) e a abertura (dos códigos, do entendimento). Ora, são
coisas e planos inteiramente diferentes. Nunca haverá falta ou vazio se o
critério for o da abertura, enquanto potência da vida (e do tempo). E é este,
obviamente, o critério pulsional. Mesmo admitindo-se que um fechamento
imaginário é providencial em certo momento do processo, a questão retorna
para a determinação ética: é um problema de subordinação. A abertura não
exclui os cuidados que a preservam de uma interrupção. Abertura significa
saber prático, experimental – desde que se tenha em mente que pensar é um
ato; significa o exame cada vez mais desimpedido, cada vez mais extra-moral

218
e extra-pessoal; significa domínio, precisão, reunião, dizer. Abertura é a
condição originária do ato livre e já sua efetuação. Mais profundamente, a
abertura como tal é um ato, ou melhor, é o ato por excelência. É como abrir os
olhos.
Segundo, é muito cedo e já tarde para o eu, não para a pulsão. Tudo
depende de onde situamos o ponto de vista avaliador. A pulsão nos serve para
dar a medida dionisíaca, o “mais ainda”. Aí reside, como dissemos, sua força.
E é equivocado presumir que eu nunca advenho ali onde isso era, se a pulsão
for minha medida. Posso nunca cessar de advir segundo essa medida. Isso,
certamente, exige abertura constante, e nada é mais raro de se obter – é o que
no início chamamos de idade de ouro dos afetos.
Mas, insistamos, que abertura é esta? A do saber enquanto
experimentação – experimentação de um pensamento que não se dissocia da
práxis, que é práxis, e por isso é também ético, estético, político, clínico... –
um pensamento que é diretamente pulsão de vida. E já que o inconsciente é o
nome daquela abertura, como conceber seu sujeito? Ele e o saber de que
falamos fazem um. Nós somos o saber que exercemos, de tal modo que o
saber do inconsciente é igualmente seu sujeito. Ora, esse saber vigora o tempo
todo, e não se confunde com os meios derivados. Nós o divisamos e
finalmente o vivemos quando as portas do céu (mas poderiam ser as do
inferno) se abrem. O que se abre, sendo já a própria abertura, sendo o abrir
como tal, é pulsão, seja sob a forma do lapso ou do sonho. Mas o que assim se
abre é também o tempo e suas alturas. “Todo e qualquer trabalho sobre o
sonho é ao mesmo tempo um trabalho sobre o tempo” 248, e é o ingresso nas
diferentes alturas do tempo que decide pelos diferentes graus de de-
subjetivação, isto é, pelos diferentes graus de distinção e separação do meio
derivado.
O sonho de Jorge é uma abertura, uma fenda, que pode ou não ser
exercida, que pode ou não tornar-se prática constante. É um entre-céus do
tempo dominado, cronológico, ou seja, a potência mesma do tempo. Diríamos
que a linha de desejo separa-se do meio derivado – a casa de campo, a represa
e mesmo o túnel – exatamente no instante em que a cena onírica atinge o não-
senso do automóvel planando de rodas para cima. Essa linha superior do
sonho, ela própria linha de destino, orienta toda a interpretação, segundo uma
aproximação mais direta do tempo. A esta altura, pulsão e tempo se tornam
indiscerníveis. O espaço, sob a ação do intempestivo, se orienta
topologicamente. Passamos do estriado ao liso. O devires não são
propriamente espaciais, mas topológicos, intensivos.

248
Pulsões de vida, op. cit., p. 61.

219
O domínio do tempo I - Metapsicologia

O sentido pulsional, entendido sobretudo como um sentido de direção,


só é encontrável nessa altura do tempo que até então estivera fora de nosso
domínio. O inverso é igualmente verdadeiro: uma altura do tempo, até então
fora de nosso domínio, só pode ser freqüentada na medida em que a direção
pulsional se esclarece. Como se coubesse indagar, a cada passo de uma análise
ou de uma vida, dada tal manifestação subjetiva, sintomática ou de desejo, a
quantas anda – nas palavras de Rosa – “o céu do tempo”.
A polivocidade da expressão “o domìnio do tempo” é proposital. Além
de se referir ao âmbito próprio do tempo e à sua soberania, compreende a idéia
de um domínio possível desse âmbito, por mais fugaz e precário que seja; a
idéia, portanto, de uma experiência ou de um conhecimento direto do tempo, o
que chamamos acima de uma visão de entre-céus. Ser um com a soberania do
tempo, eis o que poderia significar a máxima freudiana “lá onde isso era devo
eu advir”, com seu vetor ético. Lá onde isso era evoca, por certo, uma altura
do tempo, sugerindo, desde já, um panorama à nossa investigação do tempo
em psicanálise. Pois os lugares do sonho de Jorge – a fazenda, o túnel, a
árvore e o céu acima dela – são lugares no tempo e, por força da cena
originária (o automóvel surreal), descrevem um devir. Daí a exigência, não
exatamente de um espaço, mas de uma topologia para pensar a pulsão. É que,
como observamos há pouco, a extensão também se torna intensiva no regime
pulsional (... de rodas para cima, planando).
No sétimo capítulo da Interpretação dos sonhos, Freud registra duas
operações fundamentais da elaboração onírica: a transformação das idéias
latentes, inconscientes, em imagens sensíveis, e a representação, seja qual for
o tempo da coisa ou do evento representado, em forma de situação presente.
Ora, essas duas operações, uma relativa à experiência do real e outra à
experiência do tempo, são solidárias nos planos manifesto e latente. Dizer que
há um desejo infantil ao qual o sonho deve sua energia, como faz Freud,
significa sustentar que o sonho, em última instância, remete a algo que nunca
deixou de existir. O presente é o tempo em que o desejo se realiza, esteja este
projetado na antecipação do futuro ou retido na aspiração passada. O
condicional “seria”, ou “tomara fosse” (... Otto culpado das dores de Irma),
transforma-se em um “é” (... ele, afinal, o culpado). Este “é” reporta-se ao
desejo imperecível. Por isso a defesa de Freud naquele sonho inaugural vai
muito além do que ele poderia, a princípio, experimentar subjetivamente, tão
longe quanto a verdade que a interpretação, ao longo do tempo, viesse
alcançar. Mas a interpretação, insistimos nisto, é o próprio desejo, o

220
pensamento e a vida do sonho, sua dimensão virtual-real, sua duração. Não se
trata de uma ausência do tempo na resolução final das formações
inconscientes, mas da incidência de um tempo não cronológico em todo o
suceder psíquico, não importa quão remota e obscura possa ser essa
incidência. Os graus da duração são os graus do real. O “é” exprime a
coexistência de uma grande infância esquecida com o presente atual; indica a
reunião de todos os tempos em um único alto tempo. “É com o nosso passado
inteiro, inclusive com a curvatura primordial da nossa alma, que desejamos,
queremos e agimos”, escreve Bergson em A evolução criadora. Toda
interpretação de sonhos se parece assim a uma arqueologia. O mesmo se pode
dizer, no entanto, de toda sublimação. Aliás, uma ação é tanto mais
sublimatória quanto mais inclui, depura e transmuta todas as outras,
envolvendo suas respectivas temporalidades. A transmutação em jogo
denuncia a presença do intempestivo.
O outro aspecto, a transformação da idéia em imagem sensível, tem
íntima relação com o intempestivo, mas de um modo que é preciso ainda
esclarecer. Com o relaxamento da atenção e com a suspensão da atividade
motora durante o sono, o sistema sensório-perceptivo, que responderia pelo
início de todo o processo psíquico, volta a ser investido e acionado. Na
verdade, estamos sempre remontando no tempo. Ao distinguir na formação do
sonho, assim como no sintoma neurótico e nos delírios psicóticos, três classes
de regressão – uma tópica, no sentido dos sistemas CS-PCS-ICS, uma
temporal, por tratar-se de um retorno a formações psíquicas anteriores, e uma
formal, em que as formas de expressão e representação são substituídas por
correspondências primitivas – Freud apenas desdobra o que a regressão
temporal já reunia. “Essas três classes de regressão são no fundo a mesma
coisa, e coincidem na maioria dos casos, pois o mais antigo temporalmente é
também o primitivo na ordem formal e o mais próximo na tópica psíquica ao
extremo da percepção”. A idéia de regressão, porém, pode gerar limitações no
entendimento do tempo onírico. Pareceria apenas um retorno ao mundo
rudimentar, primitivo, ao início sensório do acontecimento psíquico, no qual
as idéias, as relações e problemas do texto latente buscariam uma expressão
possível, obedecendo às leis do processo primário. Como se os pensamentos
sofressem uma espécie de derrocada em imagens, em dados sensíveis, e
fossem dispostos em linguagem hieroglífica, arcaica. Ora, é a potência do
pensamento onírico que afeta a sensibilidade, que extrai dela sua virtude
sensível... Bergson distingue a imagem-sensória da imagem-lembrança, e esta
da lembrança pura, que é o elemento próprio do passado puro ou do tempo
como tal. É no espaço das segundas que se intercala toda a memória e, por

221
assim dizer, todo o tempo 249. O sonho indica, sem dúvida, um investimento
especial que escapa ao regime sensório-motor da atenção generalizante e
utilitária do estado de vigília. Operando sempre no mesmo plano, essa atenção
segue preferencialmente um movimento automático. Mas se no sonho ou na
alucinação estamos diante de imagens sensíveis, enquanto são elementos
primitivos aos quais as idéias, buscando expressão, recorrem por via
regressiva, não devemos esquecer que o tratamento desse sensível se dá em
um spatium metapsicológico onde os diferentes planos de memória são
convocados. O sensível aí se aprofunda, se refina, se singulariza. As escolhas
se graduam. Diríamos, a princípio, que o afeto se faz intelecção, ou melhor,
que ele ganha a tonalidade da idéia. Na verdade, em sua operação real, o afeto
é uma idéia clara, uma intelecção superior, uma lucidez em devir. Toda a
questão é precisamente esta: como ele se torna sensível? Como a consciência
o alcança? Não é certamente sem esforço, dedicação, sobriedade. Nem sem
ousadia, firmeza e exame desimpedido. Essas condições do salto ou da
passagem já constituem, em si mesmas, graus do real. O sonho, dizia Freud, é
uma via régia para o inconsciente. Existem outras. A análise serve para tornar
real aquele alcance, ou seja, para fazer dele uma prática.
Lu sonha que faz amor com T, sua mais recente paixão. A relação é
deliciosa e envolvente. As sensações, porém, vão se tornando mais fortes, ela
tem a impressão de um sexo real, e logo de um estupro. Sente internamente os
movimentos da outra pessoa, e pensa: “existe alguém dentro de mim”.
Continua o relato do sonho dizendo: “Me forcei a acordar”. Encontrava-se em
uma casa estranha, alugada para sua mãe e seu padrasto, mas fazia sentido
estar ali. Eles ocupavam um quarto separado. Era, possivelmente, alguém do
hotel que a havia estuprado. Entra no banheiro com a mãe. Escorre sangue
pelas suas pernas.
Por que ela se força a acordar no meio do sonho? Segundo Freud, um
processo onírico se resolve, em última análise, como realização de desejo.
Neste caso, de que desejo se trata? Nunca cessamos de testar a teoria freudiana
da realização de desejo. Até onde ela é válida? É quase sensível que Lu dá

249
“Vimos que a subjetividade já se manifestava na imagem –movimento: ela surge desde que haja separação
entre movimento recebido e movimento executado, entre ação e reação, excitação e resposta, imagem-
percepção e imagem-ação. E, se a afecção também é uma dimensão desta primeira subjetividade, é porque ela
pertence à separação, constitui o „dentro‟ desta, de certo modo a ocupa, mas sem preenchê-la ou suprimi-la.
Agora, ao contrário, a imagem-lembrança vem preencher a separação, supri-la efetivamente, de tal modo que
nos leva individualmente à percepção, em vez de prolongá-la como movimento genérico. Tira proveito da
separação, a supõe, já que se insere nela, mas é de outra natureza. A subjetividade ganha então um novo
sentido, que já não é motor ou material, mas temporal e espiritual: o que „se acrescenta‟ à matéria, e não mais
o que a distende; a imagem-lembrança, e não mais a imagem-movimento”. Cinema II - imagem-tempo, op.
cit. p. 63. Convém observar que a “afecção” não é ainda o afeto; este não é senão a subjetividade mesma,
inclusive com o sentido que adquire na perspectiva do tempo.

222
nascimento a si mesma, que o sexo real compreende, ao mesmo tempo, uma
separação e uma lucidez, sendo o estupro uma espécie de violência capaz de
vencer suas resistências, a inércia de continuar dormindo, equacionando suas
relações amorosas segundo o modelo de relação com a mãe, não no sentido de
que adotou esse modelo, mas de que foge incessantemente dele. Não era sua
casa, e sim uma casa estranha. Mãe e padrasto apenas a ocupavam em uma
relação decididamente à parte, em quarto separado. Não era alguém de casa
que a violentara, tal como sucedera no passado, o abuso que, ainda menina,
sofrera por parte do antigo padrasto. No banheiro com a mãe... O sangue é,
sem dúvida, o da castração, ou seja, o signo de uma separação real. Por certo
foi dela o trabalho de se separar, de se engendrar a si própria 250. Houve um
esforço para se fazer acordar e existir. Nesse caso, o analista, que faz parte do
conceito prático e ético de inconsciente, tem algo do estuprador.
Na medida em que é um extrato de entendimento, o processo onírico
alcança um pico do tempo. Escava tanto mais o real quanto mais tempo
aglutina em si. Os sonhos sempre são imagens-tempo. No caso de Lu, o mais
sensível, a sensação real do estupro, envolvia o estado de maior lucidez, bem
como a duração própria do desejo que, também ela, precisa ser exercida (“me
forcei a acordar”). A casa estranha ou sua nova casa sucede a esse esforço, e
esclarece assim o acordar no meio do sonho. É nesse meio, nesse entre-céus
que localizamos o intempestivo. “O real, a gente o encontra é no meio do
caminho mesmo”, diz Riobaldo. Não se trata, contudo, de um ponto do
percurso subjetivo, mas de uma clareira do tempo. Lu se depara com um
vazio, que não é senão a ausência das narrativas já conhecidas, moldadas pelas
alternativas que a relação-modelo estabelecera como uma espécie de
programa, tendo em vista um único resultado – que ela pudesse ficar só. Mas
esse vazio é o do tempo não curvado, sem finalidade e sem fim. É o tempo da
ação grande demais para o eu. Por isso Lu vive o assomo selvagem desse
tempo, o do sexo real, ou seja, da pulsão (“alguém dentro de si”), como um
estupro. É quando o desejo do sonho se esclarece, sendo ele próprio a
interpretação.
O tempo se degrada, na medida em que a pulsão deixa de ser exercida.
Inversamente, quanto mais ela se exerce, mais o tempo se gradua. O
intempestivo, enquanto força obscura, é a insinuação do tempo originário na
vida cotidiana, nos sonhos, nos lapsos, nos acontecimentos. E ele apresenta
certa curvatura de acordo com a resistência que encontra no meio onde se
insere, bem como por parte de quem o experimenta e nas condições de vida
em que o experimenta, segundo atesta, por exemplo, o devir judeu de
250
“Separare, separar”, dizia Lacan, “conclui-se aqui em se parere, gerar a si mesmo”. Escritos, op. cit.,
Posição do inconsciente, p. 857.

223
Monsieur Klein. A abertura inconsciente, sob a forma do não-senso, denuncia
nada menos que a presença do intempestivo, de tal modo que as formações do
inconsciente não fazem senão nos aproximar desse outro tempo, tornando
sensíveis as graduações de sua força. Na verdade, as formações do
inconsciente são essas graduações. O tema da pulsão nos conduz , assim, ao
do tempo, e vice-versa.

O domínio do tempo II - Pulsão de morte

A morte se desloca ao longo da especulação analítica: da morte como


finalidade, em uma primeira leitura de Freud (Além do princípio do prazer) à
morte como processo, tal como será tratada por diversos autores, inclusive por
Deleuze (por exemplo, em Diferença e repetição), é todo um entendimento
acerca da pulsão que se altera e se aprofunda, sem que se possa dizer que essa
alteração não estivesse virtualmente presente em Freud. É toda uma
perspectiva do tempo que se abre – a partir da noção de pulsão...
Certamente a morte interfere de modo profundo em nossa experiência
do tempo. Mas qual morte? Em Blanchot aparecem duas mortes, a pessoal e a
impessoal. Dada a nossa descrição inicial da pulsão, aplicando-a ao singular e
impessoal, a morte só poderia ser situada pulsionalmente como experiência
impessoal. Trata-se então de um morrer no infinitivo, de um “morre-se”, e não
do pessoal “eu morro”. Algo dessa distinção já se verificava em Freud a
propósito da primeira teoria das pulsões. Segundo os critérios de auto-
conservação, o indivíduo é o principal e a sexualidade apenas mais uma de
suas atividades vitais; mas para as pulsões sexuais, que se projetam além do
indivíduo e assinalam seu caráter mortal, ele é acessório e passageiro, e não
faz mais que transmitir “o plasma germinativo que lhe é confiado pelo
processo da geração” 251. A morte pessoal e a morte que não cessa (mas
também poderia ser a vida que não cessa) – aí se perfilam como duas
perspectivas distintas sobre a vida e a morte. O “plasma germinativo” evoca a
ação grande demais para o eu, aquela que concerne ao intempestivo, na
medida em que esse tempo é apenas vislumbrado, entre-céus, e raras vezes
apreendido diretamente. Aquele plasma imortal evoca, portanto, os devires, as
passagens, as metamorfoses. Lu já não tem pressa, desapareceu sua
impaciência, a urgência de ter alguém porque tudo estaria no fim. “Faz sentido
estar ali”, na estranha casa do sonho, que é também a do tempo. A ação
intempestiva é grande demais para o eu, mas não para a pulsão.

251
Obras completas, op. cit., Los instintos y sus destinos, p. 2040.

224
A idéia de um tempo selvagem (seja o do estupro), indomável, não
ordenado, de um “pai do tempo” 252 que desviou dos homens o seu rosto,
como dizia Hölderlin a propósito da tragédia em Sófocles, será referida por
alguns autores à pulsão de morte, na medida em que esta se caracteriza por
uma energia caótica, indiferenciada, livre ou não-ligada . Mas vimos a
coalescência do tempo com a pulsão no filme de Losey, e como esta se
transformava em pulsão de morte no meio derivado, inclinando-o para um
fim. A precipitação de Klein era simplesmente precursora. Como não
perceber, frente à multidão de indivíduos já destituídos de traços particulares,
e que ao modo de um vagalhão se afunila e escoa, em uma aceleração
angustiada, para dentro dos vagões, que esse comboio da morte antecipava
nada menos que o fim do Terceiro Reich? Tudo parecia desembocar em
campos de extermínio e ansiar por uma solução final. É um dos modos de
viver a pulsão, o modo como ela se arranja no meio derivado, como se mescla
ao que resiste a ela e como, finalmente, impele todas as coisas à exaustão,
todos os destinos ou formas de vida ao esgotamento. A imagem que se extrai
dela nesse processo incontrolável de destruição, também passível de ser lido
como tendo um fim autodestrutivo, é de uma força indômita, selvagem,
caótica e desumana (o deus desviou dos homens o seu rosto), fora de qualquer
domínio. Todas as temporalidades são igualmente arrastadas por essa
desmedida. O tempo cíclico, obediente e ordenado dos mitos e da
reminiscência platônica, mas também o tempo da história e sua pretendida
racionalidade, já não passam de quimeras. Respondendo à pulsão selvagem, o
que pode se abrir agora, não ligado a nada que o curve, é um tempo vazio de
razão ou de justiça, uma espécie de tempo de exceção 253. Monsieur Klein,
assim como acontece aos heróis sofocleanos, experimenta a duração sob a
forma da tragédia, do desamparo e do abismo.
Existe uma modalidade kafkeana de experimentação pulsional que
mereceria um exame demorado, mas apenas a mencionaremos aqui,
acreditando que possa refletir, à sua maneira, as relações da pulsão com o
intempestivo. K., à espera de Klamm, se dá conta de que já anoiteceu. “Ainda

252
Hölderlin traduzia Zeus por “pai do tempo”, de modo a sensibilizar a alma hespérica: “De forma
determinada ou indeterminada, é Zeus que deve ser dito. Preferencialmente, na maior seriedade: pai do
tempo ou pai da terra...” Reflexões, op. cit., p. 104.
253
Jô Gondar, fazendo coincidir tempo e pulsão, observa que a pulsão de morte introduz uma não-ligação, um
vazio de sentido que o psiquismo, desenvolvendo suas estratégias, busca capturar, dominar. “Podemos
considerar a pulsão como determinante da temporalização humana: é o seu tempo selvagem e não-ligado que
o psiquismo tentará dominar, produzindo modos de encadear lógica ou cronologicamente o antes e o depois,
transformando o tempo puro em ordenações temporais”. Gondar, Jô, Os tempos de Freud, p. 123, Revinter,
RJ, 1995. Ou ainda: “Não poderíamos pensar o tempo da pulsão de morte sem enfatizar o seu aspecto
demoníaco, que faz advir a dispersão e o excesso a uma superfície precariamente equilibrada, ameaçando-a
constantemente de dissolução”. Idem, p. 104.

225
pode demorar muito tempo”, disse o cocheiro, bocejando. “O que pode
demorar tanto assim?”, pergunta K., como quem espera a resposta de que
Klamm, conquanto tarde, chegará em algum momento. “Até que o senhor vá
embora”, replicou o cocheiro. Não é Klamm que finalmente aparece, mas um
dos seus secretários. Ao mesmo tempo em que é hostilizado silenciosamente
pela atitudes do cocheiro, K. enceta um diálogo redundante com o secretário,
que também procura demovê-lo da espera. “– Estou aqui esperando alguém –
disse K. já sem esperança de êxito, mas por uma questão de princípio. – O
senhor não vai vê-lo de todo modo, ficando ou indo embora – disse o
secretário, manifestando bruscamente a sua opinião...” Aquelas palavras não
teriam o poder de expulsar K., nem mesmo de intimidá-lo. O secretário, dando
de ombros, desviando o olhar de K. e voltando a si próprio como quem volta à
sensatez, ordenou ao cocheiro que desatrelasse os cavalos. O trenó não seria
usado. K. percebeu que estava sendo deixado para trás – de um lado o trenó se
afastava em direção ao estábulo, de outro o jovem senhor seguia na direção da
porta por onde K. entrara, ambos devagar, como se ainda lhe dessem uma
chance. “Parecia a K. que agora todas as ligações com ele tivessem sido
rompidas e estivesse sem dúvida mais livre que nunca e pudesse ali esperar no
local antes proibido para ele quanto tempo quisesse e tivesse lutado por essa
liberdade como quase nenhum outro e ninguém tivesse permissão para tocá-lo
ou mandá-lo embora, nem mesmo interpelá-lo. No entanto, essa convicção era
no mínimo igualmente forte, como se, ao mesmo tempo, não existisse nada
mais sem sentido, nada mais desesperado do que essa liberdade, essa espera,
essa invulnerabilidade.”
Não se submetendo à palavra do secretário, não se intimidando com os
gestos do cocheiro, K. alcança uma autonomia inesperada. Em sua espera
decidida, vitoriosa, adquire certo domínio do tempo – “pode ali esperar quanto
tempo quiser”. Alcança, por assim dizer, uma posição de desejo inteiramente
legítima, precisamente por não abrir mão dele. A estranheza e o não sentido
que às vezes pareciam emanar do diálogo, apesar da “sensatez” muito natural
dos personagens do Castelo, invadem totalmente a atmosfera rarefeita de K,
quando ele fica só. E é isso o intempestivo, a abertura de um tempo que não
tem qualquer serventia atual. Não se subordina a nada do que vigora
atualmente, é excessivo, sem finalidade. O meio derivado perdeu a eficácia, o
poder de determinar os acontecimentos. Seus personagens saíram de cena.
Não há mais nenhum fantasma, o secretário de Klamm enveredou por um
corredor escuro e o cocheiro desapareceu na neblina. Mas com a destituição
do meio derivado, que serventia tem essa vitória, a liberdade recém
conquistada? Não decorre daí nenhum contentamento (exceto, talvez, no
primeiro momento), apenas a impressão de que o tempo liberado é um tempo

226
para nada. Pulsão de morte. Quase adotaríamos a versão de MDMagno para
descrever esse movimento de K. até o ponto culminante da espera – o empuxo
pulsional ao Não-Haver. E, em face dessa versão, como não recuar? Como
não retornar, em algum ponto, ao meio derivado? Como não
“reterritorializar”? É que o tempo, não sendo mais curvado, é ainda um vazio
de desespero, um estranho nada deixado pela superação do meio derivado.
Ainda não é lido em sua positividade. Nessa altura recém atingida ainda não o
vemos aliado à pulsão de vida. Ainda não vemos que abaixo e acima do meio
derivado, insinuando-se como vazio e não senso em suas encostas e franjas,
em seus acidentes e escuridões, assim como em seus altiplanos (“essa
invulnerabilidade”), existe para sempre a claridade do tempo e da pulsão. O
intempestivo parece ser o tempo da pulsão de morte, mas isto em vista do
modo como se concebe a pulsão mesma. É preciso ir além da versão negativa
– e, em última instância, ilegítima – que o meio derivado oferece de sua
própria superação.
Se a pulsão mobiliza o psiquismo por contrariedade, se impõe um
limite, um fim e uma indeterminação frente ao que estava determinado,
concluído e deveria durar, não o faz por ser, de seu ponto de vista – porque ela
é um ponto de vista –, ausência de ordem, dispersão e caos, mas por
introduzir, incessantemente, uma ordenação superior, relativa a outra altura do
tempo. Daí, certamente, advém o conflito, o embate, que compreende as
modalidades de visão das instâncias que se enfrentam, dentre elas uma visão
psíquica, imaginária e narcísica, porém não menos simbólica, cultural e
metafísica, de que a pulsão é dispersão e caos. O narcisismo e a perversão no
plano subjetivo, assim como boa parte da filosofia ocidental e do pensamento
psicanalítico no plano cultural, sustentam essa mesma visão, seja para
predispor ao caos ou para conjurá-lo, não raro propondo uma espécie de
composição instável dessas duas tendências. No primeiro caso, o dito caos
será concebido como criativo ou favorável à criação; no segundo, como vetor
de abolição psíquica ou existencial; no terceiro, será visto ainda como vital,
porém em doses moderadas. Não adotamos nenhuma dessas medidas,
simplesmente porque o real (ou a pulsão) não é um caos.
Cocaína, alcoolismo e pornografia, que antes pareciam “pequenos
excessos” multiplicadores de possibilidades, tornaram-se eles mesmos
excessivos para a avaliação algo hesitante de H. Ele hesita, pois não sabe bem
que posição tomar frente ao que lhe parece, por um lado, o que realmente
quer, o que lhe proporciona uma satisfação real, o gesto mais livre, e, por
outro, aquilo a que se sente coagido, as obrigações sociais, produtivas e
familiares, embora reconheça que elas também compõem o universo de suas
escolhas. Um dia chega à sessão dizendo que abomina os mentores da paz

227
interior. Parado em um engarrafamento de trânsito, pensava que era
intolerável a placidez iogue dos motoristas. A vida é tumulto, intensidade,
dissonância interna. Defendia, portanto, a inquietação e combatia o gosto pelo
nirvana, e embasava o seu argumento, não sem alguma ironia, evocando a
pulsão de morte de Freud, ou seja, essa sombria tendência do ser vivo à inércia
e à morte. Confessa certo alívio, contudo, em poder partilhar agora uns dias de
férias com a família, que lhe serve de contenção e de limite oportuno. Na
verdade, a onda de excessos, discreta socialmente, porém já ruinosa à vida
familiar, é motivo de preocupação crescente para ele e a mulher. Eis aqui uma
oscilação de H. cuja conseqüência é a de deixar-se conduzir, até o momento,
pela tendência mais pronunciada – de vida ou de morte?
“Alto lá!”, parece dizer. “Não vão me pegar”. Como K., ele parece se
esquivar aqui e avançar ali, de modo a não ser capturado pela lógica dos
dispositivos molares nem pela mecânica flexível dos fascismos micro-fisicos.
Pois se trataria de exercer uma auto-vigilância, um policiamento que inibisse
as práticas do excesso. Ora, o que H. mais teme, o que requer da sua parte o
máximo cuidado, aquilo para o que se sente particularmente prevenido, são os
fascismos de qualquer espécie, inclusive os da saúde “gorda”, como a
chamava Deleuze. Todavia, os pequenos excessos sempre foram linhas de
fuga que, segundo ele, só faziam sentido em relação ao sistema de obrigações
e compromissos sociais, às determinações gregárias. Pensa que essas linhas
precisam do regime molar como de um inimigo que lhes dá a medida, que é
daí que retiram a sua função liberadora. É uma questão de dosagem. E
novamente a imprecisão se instala, como se essa imprecisão se beneficiasse
das recomendações de Deleuze e Guattari: algumas doses de significante, de
estrutura, de molaridade, seriam medidas de prudência. Mas, justamente, não é
esse o velho modelo da transgressão, que Deleuze e Guattari chamam de
“derrisório em relação à lei”? 254 Por que não se lê adequadamente esses
autores? É fascista, segundo H., a recomendação de que você deve se cuidar.
O fato é que, no seu caso, os excessos ampliaram seu domínio. Parecia
desconcertá-lo a observação de que os excessos do gozo também podiam
denotar fascismo, pois prevaleciam, tirânicos e inflexíveis, sobre qualquer
outra consideração, e mais perturbador ainda parecia ser o problema do
cuidado de si – pois, afinal, a quem atribuir essa função? No momento, ele
deixava à família a incumbência de amenizar suas intensidades e frear sua
aceleração, de outro modo desimpedida. Logo mais poderia ser o Estado. E já
não teria mais do seu lado nem Deleuze e nem Foucault. É por isso que, para
uma perspectiva ética e política do desejo, o problema analítico das pulsões de

254
Cf. O anti-Édipo, op. cit.

228
vida e de morte ascende rapidamente ao primeiro plano, colocando em tela de
juízo a noção de pulsão de morte. É que a noção de pulsão de morte, mesmo
em seus reviramentos mais críticos, não compreende o discernimento das
linhas de destino, que tanto podem ser de fuga como de abolição. Umas e
outras participam igualmente da mesma tendência. Novamente o empuxo ao
Não-Haver... Assim considerado, o cuidado de si termina por comungar com
certo fascismo necessário, o bom recalque. Essa conhecida solução de
compromisso apenas ressalta a necessidade de um ponto de vista superior,
capaz de avaliar as linhas, discernindo a de maior vitalidade. Avaliar as
linhas, eis o que chamamos de cuidado de si. Avaliar é também estimar,
degustar, gozar. E isto, note-se bem, já é linha de fuga, ou seja, linha de força
ou de desejo. O gozo do excesso transgressor é uma falsa imagem da
avaliação pulsional e, sem dúvida, o modo mais insidioso, mais reativo, de
distorção e captura.
Diríamos que a hesitação, a margem de uma quase realidade em que nos
instalamos, o tempo e sua dilatação para compreender, sua graduação para
avaliar e assim por diante, abrem perspectivas ao pensamento, ampliam o
campo de escolhas, insinuam aqui e ali nos processos da subjetividade a
indeterminação que, como temos visto, é originária – a verdadeira fonte da
pulsão. Os benefícios da hesitação são claros. Freud viu seu valor para a
função do pensamento. À maneira de uma ação virtual, o pensar, como o Deus
de Riobaldo, “se economiza”, ensaia a variação possível dos atos, inclusive os
do pensamento. Agir de modo decidido, movido por uma certeza inamovível,
sem a menor hesitação, caracteriza não raro a ação fascista, com sua política
de identificação. Desse ponto de vista, a hesitação é mesmo um antídoto ao
fascismo, principalmente o do pensamento. Ela é não-fascista, mas não
seguramente, uma vez que tudo depende do que está em jogo. Pode-se hesitar
frente ao desejo, ou ainda frente ao fascismo, e quase adotá-lo, quando seria
preciso ser firme, não hesitar, não colaborar, passar adiante, não enfermar.
Mas – girando ainda em torno do argumento de H. – como se distingue
o momento em que a linha de fuga se transforma em linha de abolição? A
princípio, não parece difícil. Ela perde seu poder de multiplicar encontros
favoráveis, de abrir possibilidades ideo-afetivas, e essa redução ou diminuição
de potência, para falar como Spinoza, assinala o desvio a ser corrigido. Conta-
se com o menos para descobrir o mais, com a negação da potência para
restabelecer a potência em seu curso, e assim por diante. Ora, a diminuição da
vida, a tristeza, a negação são condições contingentes, não essenciais, para que
a linha de desejo ou de força se oriente. Ela se orienta por seus próprios
critérios, embora nada nesse domínio seja assegurado de uma vez por todas.
Ou seja, o que chamamos anteriormente de dupla afirmação abole, como

229
pretendia Nietzsche, o negativo (ou o reativo), mas não, repetimos, de uma
vez por todas. De fato, ele não retorna, desde que a dupla afirmação se exerça
na constância que lhe é própria, ou seja, a cada vez. O alto tempo é, assim,
uma conquista decisivamente ética. Eis um modo de dizer que a ontologia se
esclarece pela ética. Pelo que sabemos, não há outro sentido para a imanência.
No caso clínico de H., assim como em qualquer outro, as diferentes
visões em jogo, incluindo a pulsional, não são um problema de representação,
mas de uso. Já dissemos que o tempo é também uma prática. A pulsão utiliza
as demais instâncias não pulsionais e seus recursos, mas essas instâncias
resistem ao poder pulsional em nome delas próprias. Procuram cercá-lo,
neutralizá-lo, reduzi-lo a outra coisa – é seu modo de captura. Não há
diferença aqui entre capturar e induzir à reação. A distorção do processo
pulsional que resulta dessa operação não é, porém, apenas uma máscara, sob a
qual sobrevive a experiência real; a distorção é agora a matéria da experiência.
A isso, em psicanálise, deu-se o nome de recalque.

O domínio do tempo III - A vida e a arte

Há uma estreita afinidade entre a sublimação e o que chamamos de


tempo originário. Toda obra de arte que mereça esse nome tem uma duração
expressiva e antecipa o porvir. O poeta é a antena da raça, dizia Pound. Mas se
tivermos em conta a dimensão pulsional e o seu tempo, o que vale para a
experiência do grande artista vale, em princípio, para toda a vida humana. O
alto tempo da criação não cessa de vigorar, não cessa de não passar. Por isso é
o tempo redescoberto ou o tempo em estado puro. É o pressuposto de todas as
temporalizações.
De acordo com Deleuze em Proust e os signos, o tempo se distribui em
séries, em linhas, segundo seus signos específicos. Façamos uma breve
incursão por esse livro, que é um verdadeiro tratado sobre o tempo. O que nos
afeta constitui signo, hieróglifo a ser decifrado. Dada a impressão que um
signo causa, como decifrá-lo, como interpretá-lo? Ele só revelará sua verdade
(a razão de seu poder de nos afetar), ao longo de uma interpretação, a qual não
se distingue do próprio desenvolvimento do signo. A interpretação do signo
requer um tempo, o tempo de um esclarecimento. Talvez nunca se tenha
precisado tão bem o elo entre a verdade e o tempo, se tomarmos a verdade
como interpretação, decifração, e não como adequação do intelecto à coisa,
como correção. Já dissemos que a verdade coincide com o grau de exame de
que somos capazes, e que o grau de exame corresponde a uma altura do
tempo. É claro, no entanto, que deste ponto de vista a idéia de correção não
pode ser inteiramente descartada, pois estamos sempre corrigindo nosso

230
entendimento, de acordo com o grau de exame e o tempo em que ele se
exerce. Os signos de La recherche du temps perdu se ordenam segundo linhas
de temporalização, isto é, segundo uma graduação do tempo e da verdade:
signos do mundo, signos do amor, signos da sensibilidade (ou da natureza) e
signos da arte. Adivinhamos, assim, todo um devir dos signos em direção à
sublimação, toda uma leitura da vida em direção à arte, toda uma mobilização
do pensamento em direção à pulsão e em nome dela.
A natureza dos signos nos dá, portanto, a medida de uma graduação do
tempo e da verdade, se esta verdade for, não esqueçamos, a da pulsão
avaliadora.
Até certo ponto genéricos e convencionais, os signos mundanos não
deixam de ter suas sutilezas, conforme as classes ou as “famìlias espirituais”
que eles compõem. Aprendê-los é identificar as razões pelas quais alguém será
ou não recebido em determinado mundo de relações, e descobrir os “papas” e
“legisladores” que decidem a extensão e a profundidade desse mundo. São
signos que valem diretamente como tais, sem remeter a outra coisa, e por isso
são vazios ou de sentido nulo. Algo como o brinde que o anfitrião de O anjo
exterminador repete, fora de contexto, enquanto os convivas, sem notá-lo,
conversam e riem. “Por essa razão, a mundanidade, julgada do ponto de vista
das ações, é decepcionante e cruel e, do ponto de vista do pensamento,
estúpida. Não se pensa, não se age, mas emitem-se signos”. 255 As modas se
sucedem, mas como signos que renascem, vazios, de suas próprias cinzas. Sob
um aparente imobilismo, as famílias e as sociedades se alteram e passam. Uma
das meditações de Marco Aurélio é luminosa a esse respeito: “Considera, por
exemplo, a época de Vespasiano, e o que vês? Homens e mulheres se casando,
criando família, ficando doentes, morrendo, guerreando, banqueteando-se,
fazendo comércio, cultivando, bajulando, sendo arrogantes, invejando,
amaldiçoando, murmurando contra o presente, amando, enriquecendo,
ambicionando o poder. De todas essas vidas perdidas, nada sobreviveu. Passa
agora à época de Trajano: de novo é a mesma coisa; as mesmas cenas, e tudo
desapareceu...” Eis uma primeira linha de tempo, a do tempo que se perde.
Ora, como já dissemos anteriormente, a pulsão é uma medida e uma potência
avaliadora. E é isso, medida e potência, que nos interessa articular ao feixe das
linhas de tempo, tal como são desfiadas por Deleuze no texto sobre Proust.
Pois a relevância dos signos mundanos está subordinada, clinica e eticamente,
ao critério pulsional; o uso desses signos, bem como a sua valorização,
recebem ao longo de certo tempo uma espécie de sanção clínica, que poderia
se resumir, por exemplo, no veredito: “vida que se perde”. Tal veredito, no

255
Proust e os signos, op. cit., p. 6.

231
entanto, já se insinuava obscuramente nas formações do inconsciente, como
sua engrenagem invisível. É o que sustentamos, quando atribuímos
consistência ética à noção de pulsão.
Tomemos, a propósito, um exemplo simples, psicanalítico: um médico
sofre um acidente grave e fica, por certo tempo, afetado mentalmente;
recupera-se e volta a clinicar. Um dia, em análise, diz não ser insubstituível –
o paciente que desejar trocá-lo por um desses médicos “quebra-galhos”, que se
sinta à vontade; com o tempo verá o erro cometido e desejará voltar ao bom
profissional. Como podia ter dito que não era insubstituível, se em seguida
adverte que os “quebra-galhos” nunca alcançarão a qualidade dos seus
serviços? Os termos contraditórios fazem sentido quando distribuídos em
momentos diferentes da vida: não ser insubstituível diz respeito ao tempo
anterior ao acidente, quando se dedicava ao atendimento de pacientes em
ritmo intenso, acelerado, mais voltado, segundo ele, à quantidade que à
qualidade, e excessivamente mobilizado pelo retorno financeiro de suas
atividades. Com isso deixou de lado os princípios que o nortearam desde o
inicio da profissão, e que prescreviam uma atenção meticulosa no exame de
cada situação clínica, não importando o tempo que exigisse – princípios,
portanto, de zelo e consideração. Havia se destacado entre os colegas e agora
corria o riso de ser substituído. Não é a observância moral dos princípios da
atividade médica que está em jogo, não do ponto de vista originário; e sim o
saber real e portanto irredutível do que convém enquanto sublime ação – o
saber do inconsciente e a graduação do tempo que lhe corresponde. O que é
recalcado, em última instância, senão o saber? Já dissemos que o saber do
afeto (avaliador) e o sujeito da pulsão são o mesmo. Ao tirá-lo de cena por
alguns meses, com um prognóstico incerto, o acidente tornou ainda mais real o
perigo de que ele fosse substituído por outros médicos. Não é preciso dizer
que o acidente de automóvel fazia parte do processo de aceleração e descuido
que dominara a sua vida e terminou por colocá-la em risco. Ele próprio se
tornara “quebra-galho” para si mesmo, incompetente para cuidar de si. Teria
de retornar aos bons cuidados? Atualmente esmerava-se em sua prática, de
maneira a não ser facilmente substituìdo. Que ele “não era insubstituìvel”
indicava, sobretudo, que naquele tempo fora arrogante, imaginando-se
inatingível em sua posição de destaque no meio clínico e social. Precisou
desenvolver esse raciocínio passo a passo, pois a princípio, mediante a
intervenção analítica, ficou aturdido com a contradição de suas palavras. Estas
se anteciparam à consciência, à compreensão clara, graças ao saber depositado
em sua matéria sutil – o mais elementar descobrimento freudiano, mas ainda e
sempre uma das mais surpreendentes percepções acerca da condição humana e
da vida como tal. Concentra-se na palavra inadvertida toda uma ciência do

232
caminho percorrido, todo um devir concreto da verdade ou simplesmente a
verdade do devir. As palavras parecem lançadas de um modo desordenado,
insensato, no curso do que pretendia ser seu uso comunicativo; o que parece
desordenar, porém, é também o que as reúne, o que as conjuga, a saber, a
ordem pulsional do entendimento. É claro que a comunicação, longe de ser
suspensa, se refina, se aprofunda. Por mais distante que esteja da experiência
subjetiva, aquela perspectiva dominante – posto que supera, sob a forma do
lapso, toda visão menor – deve, no entanto, ser exercida como prática de
entendimento, sem o que a vida que existe nela, e que é ela, ficará, por assim
dizer, perdida. “Aquilo está no encoberto”, continua Riobaldo, “mas fora
dessa conseqüência, tudo o que eu fizer, o que o senhor fizer, o que beltrano
fizer, o que todo-o-mundo fizer, ou deixar de fazer, fica sendo falso, e é o
errado. Ah, porque aquela outra é a lei, escondida e visível mas não achável,
do verdadeiro viver”. A lei escondida, o fio de Ariadne, é a própria pulsão,
enquanto prática de avaliação e entendimento. Será que, antes dessa prática,
as palavras do médico, formulando versões contraditórias sobre o valor de sua
atividade, apontam ainda uma presunção dura, residual, e um perigo à vida? A
propósito, por que Riobaldo fala em “lei escondida e visível mas não
achável”? Fala assim porque essa lei mesma precisa ser feita e exercida,
desde as trevas mais profundas.
O médico que “não era insubstituìvel” fazia um balanço de suas
escolhas e avaliava o quanto se guiara, durante um período de sua vida, por
signos mundanos, por sua velocidade, em detrimento do modo como
concebera inicialmente a “arte médica”.
Mas, se depois de aprendidos, os signos mundanos deixam a impressão
decepcionante de artificialismo, de esnobismo e frivolidade, ensinam, em
contrapartida, uma perfeição ritual e um formalismo não encontráveis em
outro domínio. De fato se aprende o que toma o lugar da ação, embora
mantenha seu aspecto exterior (o rito), assim como o que toma o lugar do
pensamento, embora conserve dele uma espécie de vestígio (a forma, a
formalidade). A noção de rito, o trato com a forma e o sentimento da “perda
de tempo”, se não resumem todo o aprendizado, deixam entrever o caráter
vazio dos signos mundanos. E tal é a verdade obtida ao longo do tempo que se
perde. Ora, a busca da verdade não poderia se subtrair à aprendizagem desses
signos e de sua temporalidade 256.
Quanto aos signos amorosos, sua verdade é a do tempo perdido, na
medida em que ela só se revela quando deixou de nos interessar, quando o eu
do intérprete, o eu que amava, não existe mais. Não são vazios de sentido

256
“Na realidade, a Recherche du temps perdu é uma busca da verdade”. Idem, p. 15.

233
como os mundanos, mas sua verdade, além de ter um desenvolvimento
impreciso, equívoco, pois se combina com a mentira (os signos do amor são
enganosos), chega sempre tarde demais. É, portanto, a verdade de um tempo
perdido. Já não estamos nele de corpo e alma no momento em que o sentido
dos signos se esclarece. Os signos do amor vêm acoplados aos do ciúme e do
sofrimento, ou seja, trazem o germe de sua própria ruína. A traição parece
inevitável. O amor sempre se mescla ao sentimento de traição – de trair, de ser
traído, de trair-se a si mesmo –, e por isso o desenvolvimento de seu sentido é
equívoco e doloroso. As promessas que pretendíamos ler nos signos do amor
não se cumprem. O objeto amado não corresponde inteiramente ao signo, e
guardará para sempre o mistério de um mundo remoto, desconhecido, a que o
amante ciumento jamais terá acesso. É o ensinamento da Recherche. À
decepção objetiva, isto é, à decepção com o objeto que não revela, por fim, o
que esperávamos do signo que ele emitia, segue-se um ensaio de compensação
subjetiva com o qual reconstruímos, mediante nossos próprios recursos,
conjuntos associativos destinados a salvar o objeto e, assim, o tempo
despendido. Operação que se mostrará, mais cedo ou mais tarde, insuficiente,
pois nada revela de essencial – apenas o exercício das associações ao bel
prazer do sujeito. Tempo perdido. “Não mais amar, não mais se dar, não mais
tomar” 257, enquanto lema ético, decorre em parte disso. No seio desse tempo
perdido subsiste, todavia, um tempo de aprendizado, obscuro, necessário.
Subimos na escala do tempo
Mais uma vez, tendo em vista nossos propósitos, caberia aqui uma
leitura suplementar. Seria preciso investigar as condições do amor e de seus
signos, bem como de sua temporalidade, a partir de critérios pulsionais. Sem
dúvida é o que Deleuze, por seus próprios meios, realiza com Proust e os
signos – uma exploração dos signos da Recherche a partir da Recherche
mesma, ou seja, a partir da obra de arte, o que coincide rigorosamente com o
pensamento de Proust e o próprio desenvolvimento de sua obra. Nesse ponto,
sustentando a nossa noção de pulsão, encontramos tanto o escritor como o
filósofo. Pois sendo a sublimação o destino originário da pulsão, todos os
outros destinos serão avaliados a partir dela, legitimados ou não por ela. É da
sublimação que o amor recebe, finalmente, a sua sanção. Para poder estar à
sua altura, precisa existir em ato e se beneficiar do traço extra-pessoal e
singular que atribuímos à pulsão.
É que no desenvolvimento dos signos do amor, intervém, certamente, a
função do eu, tal como esta se esclarece no pensamento analítico, isto é, como
função de desconhecimento. Lembremos que Freud faz uma distinção

257
Tal como aparece no texto de Deleuze sobre Lawrence, em Crítica e clínica, op. cit., p. 61 e 62.

234
importante no que diz respeito às relações do eu e da pulsão com os afetos de
amor e ódio: o enunciado de que a pulsão ama seu objeto é pensável,
adequado, mas não o de que ela o odeia. Este último sentimento jamais tem
origem na pulsão. Logo, sua fonte é o eu, o eu narcísico, o eu-prazer do qual já
falamos, e que apenas equivocadamente foi reconhecido como o primeiro, o
original. O eu real o antecede lógica e eticamente, a despeito de ser alcançado
(= exercido) por último, nos termos do que chamamos acima de sujeito
pulsional. É no nível desse sujeito que encontraremos o amor além da lei
mencionado por Lacan 258, um amor extra-pessoal ou impessoal que não
compreende mais os signos enganosos, nem os sofrimentos da traição. Estes
eram apenas a reverberação da diferença no psiquismo, dessa diferença que o
amor pessoal, narcísico, voltado para o gozo de um eu idealizado (seja o do
próprio sujeito ou o do objeto amado), se esforçava por elidir. O amor pessoal
encontra em Narciso sua medida. É por isso que tão freqüentemente se
transforma no seu oposto, o ódio, segundo híbridismos afetivos que, de modo
geral, aprofundam a divisão do sujeito. Na verdade, a divisão do sujeito, sendo
basicamente afetiva (amoródio), faz do amor um signo equívoco, enganoso,
traiçoeiro, afetado intrinsecamente pelo seu contrário, de maneira simultânea
(conforme a neurose obsessiva) ou sucessiva (conforme a histeria, a fobia,
etc.). Os ciúmes em relação ao objeto amado – dado envolver um mundo que
escapa inexoravelmente ao cálculo pessoal do amante – denunciam o ingresso
sutil do ódio na composição dos afetos. Esse ódio, a princípio meramente
virtual, era como que o horizonte e o futuro daquele amor, tanto do ponto de
vista do real como do tempo. O ódio nasce da condição pessoal e, portanto,
essencialmente narcísica do amor, e em sua efetuação pode penetrar, aos
poucos ou de uma vez só, em todos os processos afetivos, inclusive nos atos.
É desse modo que, gradual ou abruptamente, a força pulsional deixa de ser
exercida e é separada do que pode. No lugar de sua prática entra em vigor o
que chamamos de pulsão de morte.
Seria ocasião para evocar a filosofia dos afetos de Spinoza, tal como é
desenvolvida na Ètica, e observar que as paixões tristes como o ciúme, a
inveja e o ressentimento traçam a linha de decomposição cujo extremo é o
ódio. E tais são, de fato, as afinidades do eu com esse último afeto. Ele é mais
antigo que o amor no que concerne ao objeto, uma vez que este, enquanto
separado e localizado no exterior, se constitui pela expulsão para fora do eu
narcísico, auto-suficiente, de tudo o que possa destruir sua completude e
provocar desprazer. O objeto fóbico é uma decorrência direta desse
procedimento de defesa e projeção no exterior do que causa a desestabilização

258
O seminário, Livro 11, op. cit., p. 260.

235
narcísica, por isso ele é a pulsão nas condições permitidas pela defesa. Assim
se erige a unidade ideal do eu, com a condição de expulsar o que iria rompê-la
– em última instância, a própria diferença, o vivo em pessoa. Daí a virtude
subversiva do objeto a de Lacan, o objeto do qual não se tem imagem nem
idéia, e isso na medida em que traz o selo da pulsão. Uma de suas encarnações
é o objeto transicional de Winnicott, intersecção de criança e mundo. Pois
bem, para que o amor não seja apenas narcísico deve compreender os mesmos
traços que atribuímos à pulsão, aplicar-se simultaneamente ao impessoal e ao
singular, ao simples e ao refinado, ao abstrato e ao real. Não é, pois, o eu que
decide pela natureza última do amor, mas a pulsão de vida. Nela se inscreve,
por seu caráter extra-pessoal, toda relação verdadeira, isto é, toda relação viva.
É o que vimos, desde o início, com o trans-monadismo pulsional,
especialmente a propósito da interpretação do sonho e da implicação do
analista no conceito de inconsciente. O verdadeiro tem parte com a diferença,
com a força, não com o idêntico e o mesmo. “Ora, um eu é algo feito para ser
dado ou tomado, que deseja amar ou ser amado, é uma alegoria, uma imagem,
um Sujeito, não uma verdadeira relação (...) Tem a tendência a identificar-se
com o mundo”, mas já é um declive para a morte. É por força de uma
idealização que se fixa assim o caráter do eu, feito figura e sentença, e é nesta
fixação que reside a pulsão de morte. O eu ideal e o ideal de eu são os dois
pólos dessa fixação: o primeiro, narcísico, é pleno e, do ponto de vista dele
próprio, só pode se dar; enquanto o segundo é a instância ideal que o eu
histérico precisa tomar para si, incorporar. Assim, o núcleo da relação
constituída pelo eu não é mais a vida, mas uma idéia, e por isso não é uma
verdadeira relação. Em O homem que morreu, o encontro do renascido com
Madalena exprime esse veneno do amor idealizado, subjetivado, e sua
potência mortal: “Ele olhou-a e percebeu que ela tentava agarrar-se ao homem
que antes havia nele e morrera e agora estava morto, de sua vida pequena, de
dar sem tomar (...) – Agora tenho de ascender até meu Pai – explicou ele,
recolhendo-se aos arbustos, e assim virou-se depressa e saiu, dizendo a si
próprio: „Agora não sou de ninguém, e nada me prende a ninguém, já não
tenho missão nem Evangelho. Ah! Não sei sequer construir minha própria
vida, e que tenho eu a salvar?... Posso aprender a ser só”. 259 Trazido, porém,
para o campo pulsional, o amor adquire sua feição originária, extra-pessoal, a
tal ponto que mesmo as antipatias, como diz Deleuze, são abraço, conjunção.
Esse campo já é, bem entendido, o da sublimação. “Era a vida do dia pequeno,
a vida da gente pequena. E o homem que morrera disse a si próprio: „A menos

259
Apocalipse – O homem que morreu, op. cit., p. 141 e 142.

236
que o englobemos no dia maior, e coloquemos a vida pequena no círculo da
vida maior, tudo é desastre”. 260
Segundo Deleuze, e retomando Proust e os signos, cada faculdade do
pensamento responde pelo esclarecimento final de determinados signos. No
caso da mundanidade e do amor, essa faculdade é a da inteligência 261. Ela nos
faz compreender, ao termo da pesquisa, que os signos frívolos do mundo
correspondem a certas leis (leis gerais do vazio), e que os signos do amor
exprimem repetições (de um tema amoroso original e suas variações). É a
inteligência que nos salva do aspecto malévolo de cada um desses signos
quando tomado isoladamente. “Um a um os seres que amamos nos fizeram
sofrer; mas a cadeia interrompida que eles formam é um alegre espetáculo da
inteligência” 262. Pensando que perdíamos tempo, aprendíamos. Tudo adquire
assim o aspecto de um ensaio, de um ensaio de sublimação.
A partir dos signos sensíveis, porém, ocorre um processo distinto, uma
espécie de elevação do tempo, correspondendo ao tempo que se redescobre.
Seja aroma, impressão visual ou sabor, uma qualidade sensível desencadeia
nossa memória involuntária e, por meio dela, uma antiga lembrança. Esta, por
sua vez, deixa vislumbrar, como se até então recolhido dentro dela, o
esplendor de um acontecimento que nunca foi propriamente vivido, mas
detém o brilho de uma verdade eterna. Clareira que se abre no meio do tempo
perdido (do passado) e nos oferece uma imagem da eternidade. É, talvez, o
sentido do passado puro bergsoniano, passado em si, que não se confunde com
o passado que um dia foi presente. Assinalamos, a propósito, o em si desse
passado, evocando com ele a temporalidade do wo Es war soll Ich werden de
Freud e seu caráter originário. As faculdades convocadas agora são a memória
involuntária, o desejo e a imaginação. Não se trata mais de leis gerais ou de
repetição de casos, mas de singularidades. Não são as leis e nem o intelecto
que esclarecem esses signos. Falamos deles anteriormente, quando abordamos
os afetos originários e sua grande razão, não sem vincular essa razão superior
à duração como tal, ou seja, ao mais alto tempo. Breve parêntese: a memória
involuntária, o desejo e a imaginação são potências do tempo. Ao contrário,
portanto, da verdade do amor, própria de um tempo perdido e de um eu que
não existe mais, a verdade dos signos sensíveis (ou o seu poder de nos afetar)
é acompanhada de um renascimento do eu tal como nunca foi vivido, a par de
uma alegria intensa e genuína. Recorde-se o verso da “Canção da Meia
Noite”, de Assim falava Zaratustra: “A dor diz „passa e perece‟, mas a alegria
quer a eternidade, a profunda eternidade”. Contudo, a alegria que acompanha

260
Idem, p. 162.
261
O amor além da lei, contudo, é supra-intelectual.
262
Proust e os signos, op. cit., p. 24.

237
essa recordação pura, a ressurreição do eu que lhe corresponde e o vislumbre
de eternidade, sofrem de uma limitação, de uma espécie de desgaste devido à
impressão material que subsiste ainda, ao dado contingente e à determinação
exterior (que inclui o nível da imagem mnemônica) em que a recordação pura
se encarnou.
Só os signos da arte são inteiramente bem sucedidos, só o seu
desenvolvimento encontra, segundo Proust e os signos, a realização integral
do sentido. Há uma progressão na relação do signo e do sentido conforme
avançamos na escala do tempo, isto é, na aprendizagem dos signos do mundo,
do amor, da natureza... Embora o “signo” remeta a um objeto, não se confunde
com o objeto em sua contingência e determinação extrínseca (ele não se
distingue do fato de sermos afetados por ele); e embora o “sentido” remeta a
um sujeito, tampouco se confunde com o sujeito e o curso das associações
subjetivas (ele não se distingue do poder de sermos afetados, na medida em
que esse poder antecede e sucede o regime das associações). Ora, a relação do
signo com o objeto – contingente, determinado extrinsecamente – e a do
sentido com o sujeito – enquanto referido ao complexo de associações
subjetivas – perdem sua força e se tornam menos determinantes na medida em
que nos aproximamos da essência, que “é exatamente essa unidade do signo e
do sentido, tal qual é revelada na obra de arte”. 263 Os signos da arte são
imateriais, e seu sentido desenvolvido é puramente espiritual. De fato as
essências se encarnam nas matérias, com maior ou menor perfeição. No caso
da arte, porém, as matérias que ela trabalha, sejam as cores, os sons ou as
palavras, são a tal ponto penetradas e desfiadas pelo estilo do artista, pelo seu
savoir-faire, que se tornam espiritualizadas, vitais, capazes de “refratar a
essência”. Os outros signos eram ainda muito pesados, opacos, contavam
sempre com uma referência extrínseca, e por isso refratavam a essência de
maneira obscura, insuficiente. Daí falarmos, insistentemente, no
esclarecimento gradual da pulsão. Em nossos termos, a revelação da essência
pela arte corresponde ao exercício esclarecido da pulsão. O que se ganha com
essa aproximação? Elucidamos a análise como saber prático, sublimatório,
como retorno clínico à imanência, conforme a significação mais apurada do
circuito pulsional. É o que chamamos de direção da análise (ou da cura).
Seguindo ainda Proust e os signos, é somente com a arte que alcançamos um
plano propriamente ativo. Na medida em que a arte porta os signos mais
importantes, atinge os níveis mais profundos do inconsciente. O tempo das
essências que a sublimação freqüenta é assim o originário, em estado puro – o
tempo redescoberto.

263
Idem, p. 41.

238
Uma aventura do involuntário fomentaria toda a busca da verdade,
precisamente ali onde se trata dos signos e do seu poder de nos afetar. A
inteligência, assim como a memória e a imaginação (nascida do desejo), são
involuntárias no que diz respeito aos signos. A inteligência só se anima a
decifrá-los sob a pressão de seu vazio angustiante ou do seu caráter doloroso;
do mesmo modo, somos forçados a buscar o sentido dos signos sensíveis, e é
através da memória involuntária que nos acercamos dele. E os signos da arte,
a que eles nos forçam? Ao ato de pensar: “eles mobilizam o pensamento puro
como faculdade das essências” 264. É todo um dinamismo de pressões que
ascende na escala do tempo: os signos coagem uma faculdade como a
inteligência ou a memória, e estas põem em movimento o pensamento, de
maneira a que ele pense a essência. Pode-se dizer, inversamente, que o
pensamento puro, enquanto faculdade das essências, se diversifica em
imaginação, memória ou inteligência, de acordo com a espécie de signo em
questão e a faculdade exigida. Se antes dissemos que o sofrimento neurótico
não é o desencadeador principal da análise, não excluímos de seu início e de
toda a sua evolução a aventura do involuntário. Pulsão é seu primeiro nome,
Dräng... É verdade que uma vez querido, o involuntário se transmuta em
voluntário, de acordo com o procedimento ético instaurado por Freud e
descrito em sua Interpretação dos sonhos. Essa transmutação é o que
chamamos de dobra pulsional.
Mas o que é uma essência, nos termos em que a tratamos aqui,
buscando estabelecer as afinidades da sublimação com o tempo? Como fizera
antes Spinoza, Deleuze aplica essa noção a um campo de imanência, o que
difere por completo de seu uso transcendente. No caso deste uso, a essência é
referida à identidade, à identidade a si, não sem implicar logicamente uma
forma de re-conhecimento ou de re-cognição. É o Mesmo, o Um que se revela,
finalmente, sob a diversidade das máscaras. Por isso o caminho de seu
desvelamento é necessariamente o da representação, e sua determinação, em
última instância, é conceitual e lógica. No caso do uso imanente, a essência só
se revela pela arte, mesmo que seja por uma arte filosófica, pois ela se deixa
apreender como potência e como diferença irredutível, tão sensível como
supra-sensível (a unidade do signo e do sentido). Trata-se então de um ser que
é diretamente volição, atividade, prática. Para Spinoza, a essência é toda a
potência de ser e de agir de uma coisa. Já em Proust e os signos, como em
outros textos de Deleuze, a essência é uma diferença última e irredutível – não
remete jamais a um modelo. “O essencial”, diz ele, “é a diferença
interiorizada, tornada imanente”. Seja entretanto potência que se efetua ou

264
Idem, p. 97.

239
diferença que se encarna, trata-se sempre de uma operação que exige firmeza
e constância. Diga-se de passagem, aí reside, enquanto garantia do processo, a
ética do analista (ou do inconsciente). É que a repetição da diferença é, sem
nenhum deslocamento, afirmação da diferença. É somente na decisão que age,
constante, que atingimos a imanência. Não dissemos outra coisa a propósito
da pulsão – ela é uma prática. Por isso também o ser é, sem nenhuma
mediação, o domínio dos afetos e dos atos. Decorre daí a razão ontológica
para que Spinoza escrevesse uma Ética. Esta ressoa, junto com Proust e os
signos, em nosso pragmatismo pulsional.
Se cada sujeito exprime um mundo de certo ponto de vista, o ponto de
vista é mais profundo que ele. Reside em seu âmago, mas não se confunde
com ele 265. É nesse lugar, todavia, capaz de autorizar um novo dizer, que
situamos o “sujeito-artista” ou, como se fala em psicanálise, o sujeito do
inconsciente, não para designar a instância obscura de um eu, e sim uma
essência imanente, uma potência, inseparável de decisão e ato. Como foi
observado anteriormente, a vida, a partir de um ponto extremo, passa a se
pronunciar em nome de uma legitimidade intrínseca – a da exceção, para falar
ao modo de Godard –, de onde retira a sua autoridade.
O que se revela com a sublimação é a diferença em pessoa e, com ela,
um tempo original, em estado puro, “complicado, enrolado na essência,
abarcando de uma só vez todas as suas séries e dimensões” 266. Enquanto
atividade e alvo pulsional, a sublimação coincide, portanto, com a explicitação
dessa diferença originária e com o tempo redescoberto. Opera no nível mais
profundo, ali onde a “essência é revelada”. Só então descobrimos a razão
última, até então oculta, da relação do signo e do sentido, e o pressuposto de
suas variações nos níveis anteriores. Nestes havia ainda muita generalidade,
muita contingência e muita determinação exterior. No plano da arte, que é o
plano do inconsciente, a individuação se aguça, a par e passo com a
necessidade da obra, como uma espécie de “imperativo do ser”. Esse
imperativo, note-se bem, é de ordem ética. Mas o que aí difere radicalmente
do platonismo? Os pontos de vista singulares, extra-pessoais. Eles
determinam, em alta repetição, o começo dos mundos. Eram eles que
animavam os signos mundanos, os signos amorosos e os signos sensíveis, mas
de maneira obscura, diluídos na generalidade e na contingência. Quanto mais
subimos na escala da relação do signo com o sentido, mais individuada e
necessária ela se torna, mais ilumina a si própria e aos seus níveis mais baixos,
como um problema que se esclarece progressivamente. Do mesmo modo, pela
arte tenho acesso a esse outro mundo, a esse outro ponto de vista, diferenciado
265
Idem, p. 108 e 109.
266
Idem, p. 46.

240
e absoluto, que não é aquele pelo qual se constitui o meu mundo. A arte revela
assim uma insuspeitada fraternidade.
“Estamos, então, em condições de dar à essência o que lhe pertence e
recuperar todas as verdades do tempo, como também todas as espécies de
signos, para fazer delas partes integrantes da própria obra de arte” 267. Tudo,
por força da sublimação, se esclarece e se reordena no tempo redescoberto ou
na linha do inconsciente. Essa “recuperação”, porém, pode sugerir um uso
estritamente estético das verdades e signos, quando é mais que isto. Para que
os signos do amor, por exemplo, deixem de ser enganosos e não se resolvam
apenas na verdade do tempo perdido, para que sejam transmutados, eles
mesmos, em signos verídicos, é preciso que o nível superior da essência (a
sublimação) os alinhe e conserve vivos no tempo redescoberto. É o que
acontece aos amantes de Hiroshima, mon amour, de Resnais: acabaram de se
conhecer e estão a poucas horas da separação, ora mergulhando no passado
melancolicamente, ora perscrutando, angustiados, o futuro, isto é, o
insondável processo de esquecimento mútuo, e no entanto são tomados, ao
longo do filme, por verdadeiros “picos de presente”. Todos os tempos
confluem para o tempo redescoberto. Semelhante transformação dos signos do
amor não é uma finalidade, mas um resultado da sublimação originária.
Pelo que vimos até aqui, duas conclusões são exigidas: 1) A essência
(ou a potência de fazer existir) é inseparável do ato sublimatório, entendido
que “revelar” é também “produzir” (producere = trazer à luz). 2) A linha do
tempo redescoberto jamais poderia ser chamada de linha natural ou de acaso,
mas somente de desejo, de discernimento (e portanto de escolha) e decisão.
Compreende-se, assim, porque é preciso remeter à pulsão de vida as
derradeiras questões relativas à sublimação e ao tempo, de maneira a serem
devidamente colocadas...

O domínio do tempo IV. Pulsão de vida

Porque deus nada mais é do que tempo 268

Uma idéia que, num primeiro momento, pode gerar equívocos, é no


entanto retomada com certa insistência pela abordagem deleuziana de Proust.
Trata-se das relações valorativas entre vida e arte. Parece-nos provisória a
idéia de que a vida deva ser suplantada pela arte, uma vez que é próprio da

267
Idem, p. 88.
268
Hölderlin, F., Reflexões, p. 100, Relume-Dumará, RJ, 1994.

241
vida suplantar artisticamente a vida 269. A redundância apenas assevera que a
arte é o supremo expediente da vida, “sua atividade metafìsica”. É o que
chamamos de arco pulsional. A redescoberta do tempo, enquanto verdade da
arte, compreende as decisões mais altas, aquelas pelas quais a vida ingressa
em um tempo que não cessa de não passar, tão original quanto ela. Problema
analítico: como destravar a arte – ou a vida maior – no seio da vida cotidiana?
Que a arte suplante a vida, sem que a superação seja própria da vida,
coloca a arte na dependência da pulsão de morte. É o que justificaria o
reviramento da noção de pulsão, tal como esta havia sido formulada
inicialmente por Freud, e sua resolução exaustiva como pulsão de morte.
Nesta residiriam os poderes da diferença e da repetição. A diferença, a
princípio atribuída à pulsão de vida, seria deslocada para junto da repetição,
desde sempre associada à pulsão de morte. Retomando: por que esse
reviramento não satisfaz inteiramente, embora represente um progresso em
relação à metáfora meio metafísica e meio biofísica de Freud de retorno ao
inorgânico e anulação das diferenças vitais? A pulsão de morte não envolve o
discernimento, o poder de avaliar e nem, por conseqüência, o poder de
escolha, no entanto essenciais ao conceito de pulsão de vida, quando este
recebe o tratamento devido. Não compreende o fato de que a pulsão é uma
prática, exercendo-se em diferentes graus. Nem que esses graus são graus do
tempo, ou seja, alturas do tempo em que as perspectivas vitais se ampliam,
aprofundando e singularizando as escolhas. Finalmente, está longe, enquanto
conceito, de implicar que existe outra vitalidade além da vitalidade conhecida,
dominada, assim como, de acordo com Nietzsche, no fundo da derradeira
caverna surge uma nova, e depois outra ainda...
Ou seja, há uma vida vivida, mas há também o invivível da vida 270, do
mesmo modo que, em nome de uma nova lucidez, é preciso sondar o escuro

269
Em Proust e os signos, são freqüentes as observações que fazem da arte o estágio superior à vida, próprio
das essências: “Nisto consiste a superioridade da arte sobre a vida: todos os signos que encontramos na vida
ainda são signos materiais e seu sentido, estando sempre em outra coisa, não é inteiramente espiritual”. (Idem,
p. 41). As duas potências da essência, a diferença e a repetição, diriam respeito à arte e não à vida. “A vida
não possui as duas potências da arte; ela só as recebe degradando-as e só reproduz a essência no nível mais
baixo, no mais fraco grau”. (Idem, p. 50). É que Deleuze reserva o domínio da vida aos outros signos, aos
signos menores que obscuramente nos põem no caminho da arte e das essências, mas ao mesmo tempo
resistem, em sua opacidade, a essa progressão, assim como constituem as quedas, as descidas na escala do
tempo em relação à leveza superior da arte e de seu tempo redescoberto. Mas o que garante a firmeza na
progressão e a constância nesse estágio superior? Em que consiste a força da repetição?
270
Cf. Pelbart, Peter Pál, A vertigem por um fio – Políticas da subjetividade contemporânea, p. 81 e 82,
Iluminuras, SP, 2000. Pelbart observa que, para Deleuze, “a literatura tem menos a ver com a morte do que
com a vida, apesar de toda uma tradição recente, e que inclui até mesmo Blanchot (...); menos a ver com a
vida vivida do que com o invivível da vida, menos a ver com a vida tal como ela é do que com o
Acontecimento que dela se extrai...” Assim, as proposições de Proust e os signos a respeito da vida e da arte
precisariam ser nuançadas, recolocadas, tendo em vista as formulações ulteriores de Deleuze sobre o tema,
como veremos adiante.

242
de nosso tempo. Todas as questões relativas à subjetividade se recolocam na
perspectiva do invivível: em que altura do tempo, e mediante quais
procedimentos, a linha que parecia mortal revela novos graus de potência e
vitalidade ainda desconhecidos? O invivível é também o pensamento que
continua não pensado, e não existe senão a arte para introduzi-lo no mundo.
As formações do inconsciente são esboços de experimentação similar que
receberão ou não o tratamento analítico. Em um misto de ousadia e prudência,
o sonho do automóvel planador investigava o que era para Jorge, naquele
momento, o invivível da vida.
Um segundo ponto, articulado ao primeiro, e que também não aparece
claramente em Proust e os signos, é no entanto da maior importância para se
entender a sublimação. Certamente o estivemos repisando ao longo destas
páginas: é o fato de ela ser um destino tão ético quanto estético. O tempo
redescoberto é inseparável de uma decisão, tanto que esta se anunciava na
procura (recherche) inquieta, insistente, pela qual se desenvolvida o
aprendizado dos signos. É certo igualmente que apenas a boa vontade não
impele a esse gênero de aprendizado. Movidos por uma necessidade
imperiosa, sob o impacto explosivo dos signos afetivos, começamos a pensar,
isto é, começamos a querer lê-los, interpretá-los. Alexandre e o poema de
Borges, Jorge e sua vertigem onírica... No caso deste último, pode-se constatar
que o não-senso do gran finale, percorrendo todo o processo, sendo mesmo
sua linha de fuga, revela a duração maior do inconsciente, lá onde isso estava
em vigor todo o tempo.
A propósito, façamos mais um breve interlúdio clínico. Algum tempo
depois de sonhar com o carro planador de rodas para o ar, Jorge teve outro
sonho decisivo. Era um domingo e, em vista do almoço em família, acordou
cedo com a intenção de preparar uma carne assada e um mignon, não ao
molho madeira, como era de sua preferência, e sim na cerveja, para atender ao
pedido do primogênito. Mas era ainda muito cedo, e resolveu dormir mais um
pouco. Sonhou então que estava em casa com os filhos, preparando as carnes.
Logo ingressou em outro ambiente, não menos familiar, onde se encontravam
sua mãe, seus irmãos e cunhados. Trouxeram para o recinto o pai, que se
esforçava visivelmente para ver – quem? Jorge, que acabava de chegar. Dois
dos irmãos dizem ao pai que é o “barbudo” que vem ali, que é ele que está
chegando. Dos olhos do pai saem muitas lágrimas.
Acompanhemos o diálogo analítico, tal como se desenvolveu após o
relato do sonho:

J: Parece mais um sonho direto, como os infantis, onde não há disfarce, onde
tudo é imediatamente manifesto. E é como se passasse sem turbulência

243
alguma do primeiro ao segundo fragmento do sonho. É interessante como o
pensamento se move claramente, compondo uma cena após a outra. Pois tudo
se relaciona com a véspera e os dias anteriores. Durante a semana, meu filho
pediu que eu preparasse um mignon na cerveja, e assim dispus as coisas para
o domingo... Acredito que o sonho encena a relação pai e filho, que é isso que
o motiva. É claro que há realizações de desejo – tanto a de preparar a carne
desejada por meu filho, como a de que meu pai estivesse vivo. Estivemos
reunidos na véspera, como sempre fazemos nesse dia do mês (que é o dia de
falecimento do pai) – em nome dele, e para dar uma satisfação à mãe. Além
de ser um rito familiar quase religioso, é uma ocasião de congraçamento.
A: Sim, parece óbvio. Mas existem detalhes, como por exemplo as lágrimas
que saem dos olhos de seu pai...
J: Minha mãe contou que ele se mostrava emotivo, demasiado sensível nas
últimas semanas de vida, e que muitas vezes o viu chorando copiosamente.
Deve ser por isso que aparece em meu sonho naquele estado.
A: E o “barbudo”? Você é chamado assim?
J: Não. Aquela designação só fazia algum sentido para mim, pois usei barba
numa época. Mas não, em casa (dos pais) me chamam somente de Jorginho.
A: Que época era aquela?
J: Eu tinha uns 34 anos, minha filha acabara de nascer... Meu pai também
usou barba por um tempo, antes de mim. Além disso, havia X, irmão mais
novo que, na verdade, usava apenas um bigode e um cavanhaque. Não era
como usar uma barba, que cobre todo o rosto.
A: A barba lhe cobria o rosto?
J: Que coisa! Agora ela está parecendo mais um disfarce! O “barbudo” é
isso, uma máscara, cobrindo o rosto!
A: É como se, chamando-o de “barbudo”, o denunciassem. Quem o chamava
assim no sonho?
J: Creio que eram meus irmãos A e Z. Havia certo tom jocoso em me
anunciarem assim. No meio familiar são aqueles que não param de fazer
chistes. Curioso, pois são também os carolas, os devotos, os católicos.
A: Você, ao contrário, embora esteja ali...
J: Não tenho nada a ver com aquela beatice. Neste sentido sou um estranho
em família, embora não pareça...
A: É o “barbudo”...
J: Sim, é pelo chiste que me revelo, talvez fosse o único modo de deixar
aparecer a verdade.
A: Deixando cair a máscara.

244
J: É, a verdade do inconsciente. Mas agora me ocorre que o “barbudo” é
meu verdadeiro rosto. É o bicho. Jorginho era o disfarce. O barbudo é Leon
Tolstoi, Dostoievski, Marx, Jesus...
A: Os nomes do bicho...

Ao mesmo tempo que introduz o desconcerto na placidez linear do


pensamento, inicialmente reivindicada por Jorge, o “barbudo” assinala o
invivível, o “bicho” e sua temporalidade extra-pessoal. “Jorginho era apenas
um disfarce”. Os nomes da história servem para nomear essa potência
estranha, controversa, inexplicável, sem idade. Potência do alto tempo?
O “barbudo” faz voar pelos ares o regime familiar dos signos. Não é a
boa vontade, como dizíamos, que mobiliza o pensar, mas os choques nas
fronteiras subjetivas. E no entanto, sem que haja uma decisão implícita,
sempre renovada, de decifrar, de investigar, sem que haja uma disposição de
desejo que faça do aprendizado uma necessidade imperiosa, ele não ocorreria,
ou ocorreria parcial e ocasionalmente. E nisto o aprendizado em questão é
uma prova, ou uma série delas, e seu resultado, não sendo natural, é
indeterminado. O andamento da pesquisa pela qual se atinge, finalmente, a
revelação sublimatória, não pode ser separado do desejo enquanto vetor ético
originário.
O que desconcerta, o que abala as convicções, as certezas do
pensamento, aproxima-nos do trágico. E é esta, como vimos, uma imagem
mais avançada do tempo – o tempo selvagem, fora dos eixos de Hamlet. Ao
circuito do cotidiano ou do habitual – da vida pequena, como dizia Lawrence
– e ao círculo da reminiscência platônica e da re-cognição, a “forma vazia” do
tempo – porque não dobrada, não sujeita a nenhuma finalidade – impõe sua
linha reta, a linha direita, ética, pela qual o novo – isto é, a diferença – retorna.
Ela é diretamente o surgimento, a cada vez, do informal puro, que aqui
denominamos de pulsão. Por isso o trágico parecia ser a última palavra da
experiência do tempo. Mas se esta aparece em aberto, destampada, se não há
mais o ciclo da reconciliação, nem por isso ela se esgota em dilaceramento e
abismo. O tempo do desamparo humano era ainda demasiado humano. Era o
alto tempo, todavia experimentado sob a forma do vazio e da morte 271. Qual é

271
Encontramos em Deleuze uma espécie de filosofia pulsional do tempo, tanto mais por se graduar
temporalmente. Podendo ser designada também de filosofia da repetição, como quer esse autor, ela se
desenvolve segundo alguns passos necessários. Para alcançar o último estágio da repetição, que é o da
diferença, é preciso atravessar os anteriores, preenchendo suas exigências, não sem que o derradeiro imponha
sua tensão aos primeiros. Cada estágio compreende uma sorte de problemas cuja saída é o estágio seguinte. O
primeiro diz respeito à fundação do tempo enquanto presente vivo, segundo o qual a repetição dos instantes
sucessivos depende de um poder de contemplação (“primeira sìntese passiva”) que os contrai, não sem
transvasar uma diferença para o que se repete. É que os instantes nunca atingiriam o estágio de repetição se

245
não houvesse essa outra instância – o eu contemplativo – que insinua a diferença entre um e outro, sendo o
“e” o elemento da contração. A repetição se resolve em hábito, e a tendência a repetir por contração, isto é,
por contemplação e transvasamento de uma diferença ao que se repete, se converte em princípio, o chamado
princípio do prazer. O presente vivo, porém, sofre de uma insuficiência. Por maior que seja o número de
instantes que ele contrai, encontrará sempre um limite a partir do qual ele passa e se torna, inevitavelmente,
um antigo presente em relação ao atual. Aquela diferença deixa de ser transvasada, a repetição é abolida, e
isso em nome de um novo presente vivo. Embora Deleuze não o designe assim em Diferença e repetição, o eu
contemplativo da primeira síntese passiva corresponde a uma subjetividade pessoal, definida pela
conformação do organismo individual e de suas funções sensíveis.
Coloca-se, então, a exigência de um fundamento para o tempo, distinto de sua fundação, e que se
estenda além do presente vivo. Esse fundamento poderia ser o passado puro (ou Mnemósina), tal como
Bergson soube abordá-lo com seus quatro célebres paradoxos. Todavia, o modelo colocado em questão por
Deleuze será o da reminiscência platônica, é ela, muito especialmente, que dá a tonalidade e o sentido desse
passado. Todos os níveis da memória não fazem senão repercutir, em diferentes graus de pureza, o estado
original da idéia. O tempo tem a forma circular, pois é decidido pelo movimento da reminiscência. Ainda em
vigor, o princípio do prazer atinge uma extensão supra-sensível, ideal. Eros se junta a Mnemósina, uma vez
que a libido é energia ligada, inscrição que se repete, representação investida, repercussão indefinida do
Mesmo. O que, para Freud, punha em movimento o psiquismo, senão a busca de uma identidade de
percepção, ou seja, a tendência a repetir uma satisfação primária? Este movimento supõe, em Platão, o
esquecimento da idéia originalmente vista e o processo de sua reconquista. Assim, o tempo é o da
reminiscência, é definido e determinado por ela. Haverá sempre uma identidade de origem, A = A, e a
exigência de uma recitação mítica; sempre o perfilar de todos os graus de semelhanças representados no (e
representativos do) grande ciclo da Representação. Agora a diferença (que é o tempo em estado puro), salva
de sua redução à ordem pessoal do organismo, se ressente de sua sujeição à ordem mítica, arquetípica e
rememorativa. Por isso o tempo tem uma terceira e última versão, como que destacada das duas primeiras
(como que extraída do passado puro...). Em Diferença e repetição, essa nova ordem do tempo é introduzida
pela pulsão de morte. Esta ainda dormitava sob o sistema do princípio do prazer, oculta pela forma do hábito,
pelas tessituras da Representação e a ordem do Mesmo (Eros ou Mnemósina). Era ainda recoberta pela forma
circular de um passado puro que corresponde, em Platão, ao ideal do Amor.
A dessexualização de Eros (ou a pulsão de morte) comporta o investimento de um eu narcísico,
porém rachado, separado, dissonante em relação aos conjuntos organizados, à ordem gregária promovida por
Eros, ao sistema do Mesmo e dos semelhantes. Uma energia neutra, dessexualizada, responderá pela gênese
do pensamento, como queria Freud, e explicará tanto o processo da apatia sadiana como o procedimento
masoquista, ambas as perversões dissociadas do móvel imediato do prazer. Aqui, no entanto, surgem novos
problemas, que mais tarde tornarão a noção de pulsão de morte equívoca e inoperante. É que ela não detém
em si o poder de afirmar a diferença como tal. Ao eu contemplativo do presente vivo sucede o eu ideal,
idealizado, do passado puro. Esse passado introduz uma exigência de temporalização, ou seja, de um processo
sob o empuxo do ideal de eu, não importa se em sentido regressivo ou progressivo, platônico ou hegeliano. É
o grande ciclo da reminiscência ou da evolução, do movimento que perfaz um retorno à origem ou daquele
que alcança o fim da história. Até esse ponto encontrar-se-ia em vigor o princípio do prazer. O além desse
princípio envolveria a dessexualização do pensamento, a pulsão de morte e um eu rachado, sem dúvida
perverso, mas sobretudo trágico. A partir, porém, de O anti-Édipo, e mais decisivamente de Mil platôs, livros
em que a colaboração com o clínico Guattari foi certamente decisiva, Deleuze deixará de utilizar a noção de
pulsão de morte em favor do conceito de imanência, invocando a perspectiva de um pensamento prático,
corporal. “O corpo não é mais o obstáculo que separa o pensamento de si mesmo, aquilo que deve superar
para conseguir pensar. É, ao contrário, aquilo em que ele mergulha ou deve mergulhar, para atingir o
impensado, isto é, a vida. Não que o corpo pense, porém, obstinado, teimoso, ele força a pensar, e força a
pensar o que escapa ao pensamento, a vida. Não mais se fará a vida comparecer perante as categorias do
pensamento, lograr-se-á o pensamento nas categorias da vida” (Cinema II – imagem-tempo, op. cit., p. 227).
Esse retorno (insistente, repetitivo) do pensamento à vida e da vida ao pensamento é o que chamamos de
ressexualização do pensamento ou, simplesmente, de arco pulsional. Pois bem, Deleuze vinculará ainda ao
conceito de imanência a idéia de uma vida inorgânica, originária, passível de se tornar uma prática constante –
pulsão de vida (ou o tempo em estado puro). Não se sofre mais da diferença, ela se tornou interna: para além
da dor trágica, o riso beatífico. O que os psicanalistas, de modo geral, não parecem conceber, é que o além do

246
o futuro de Édipo senão a desgraça, a peregrinação nas trevas? Mas Édipo se
torna um vidente, um Tirésias, e entrará vivo no Hades.
É preciso mais uma volta e uma nova espécie de círculo para que todo
acaso, isto é, toda a vida seja afirmada. As potências do acaso, introduzindo o
fator indesejável em todo acontecimento, eram acolhidas, na melhor das
hipóteses, como prova de resignação estóica. O tempo não fora tocado ainda
em seu estado puro, de puro desejo, e portanto não havia adquirido a feição
real e soberana de uma dupla afirmação – todo acaso querido, afirmado todo
tempo, o que Nietzsche chamava de amor fati. Sabedoria da análise, destinada
a reverter o acaso em querer, o tempo selvagem em tempo de criação.
Como se propõem, então, as relações da vida com a arte no domínio do
tempo? É somente na altura do tempo redescoberto que iremos encontrar,
sempre de novo, em alta repetição, uma nova vitalidade. Daí que o artista,
enquanto artista, é aquele que não envelhece 272. Pode-se dizer o mesmo da
pulsão e seu saber intempestivo.

princípio do prazer não se esgota com a pulsão de morte – ele inclui muito especialmente a pulsão de vida, em
sua consistência ética ainda inadvertida.

272
Cf. Proust e os signos, op. cit. p. 49.

247
248
SABER DA CURA (CONCLUSÃO)

Quando se viu rodeado de cegos e paralíticos, e incitado por um


corcunda a curá-los, sob o argumento de que acreditariam mais facilmente
em sua doutrina, Zaratustra se desvencilhou de todos eles dizendo não se
preocupar nem um pouco se faltava um olho a este, uma orelha àquele, a
língua ou a cabeça àquele outro. Tinha visto males piores, homens que eram
apenas uma grande goela, um grande olho ou uma grande pança. De fato, ao
retornar de sua solidão deparou-se, um dia, com uma orelha tão grande
quanto um homem. Aproximou-se. Sob a orelha se erguia um ser
lastimavelmente pequeno e débil, um caule fininho e curto com o aspecto de
um homem; através de uma lente era possível ver, na extremidade do caule,
um minúsculo rosto invejoso e uma alma empolada. Asseguraram-lhe que
aquela orelha não só era um homem, como era um grande homem, um gênio.
Pareceu-lhe, no entanto, apenas um enfermo às avessas, com muito pouco de
tudo e demasiado de uma coisa só. Em toda parte, concluía Zaratustra, só se
encontram restos, pedaços, acasos horríveis – e em lado algum, homens 273.

Com esta passagem de Assim falava Zaratustra, convidamos a pensar,


entre outras coisas, e a propósito da grande orelha, na figura do psicanalista, e
em que medida ele não se tornou, ao longo do tempo, um especialista
presunçoso, julgando ter ouvido tudo ou ser capaz de ouvir tudo. É de se
esperar que tenha ainda um corpo, que sinta, intervenha, fale, que esteja, de
preferência, vivo, ativo, que seja íntegro... Mas o que é ser ativo e íntegro do
ponto de vista analítico? Que não seja apenas uma orelha, ciente, por
antecipação, de tudo o que pode ser ouvido, já é um dos aspectos da
integridade.
Essa pretensão de saber tudo de antemão, tão avessa ao savoir-faire
analítico, não é de forma alguma rara. Eis um exemplo: é comum nos meios
psicanalíticos o entendimento de que todas as vicissitudes humanas se
resolvem em algumas estruturas clínicas – neurose, perversão ou psicose. O
humor dissolvente de Lacan, elevando o psicanalista à condição de psicótico,
não alterou o gosto pela norma. Todas as variações se fazem em torno de três
invariantes estruturais, e assim, de um modo ou de outro, tudo será ouvido
dentro de limites dados. A linha do horizonte subjetivo está previamente
desenhada. E no entanto, as linhas de desejo que atravessam as estruturas
clínicas, que não se deixam captar nesta ou naquela estrutura, são as linhas da

273
Transcrição livre de uma passagem que aparece na Segunda Parte de Assim falava Zaratustra, op. cit.,
capítulo Da redenção, p. 147.

249
cura. Mas se eu julgar que o desejo é histérico por natureza, ele já terá seu
destino analítico traçado antes mesmo de iniciar a jornada 274.
A análise deve restaurar uma integridade, e para tanto se dirige às
condições originárias do homem, este ser, como dizia Nietzsche, que não está
determinado. “Condições originárias” não dizem respeito, portanto, a uma
essência do homem que o determinaria a ser o que ele deve ser. Não é este o
sentido profundo do wo Es war... Antes pensaríamos nas condições
polimórfico-perversas da criança e, para dar a isso um tom místico, em seu
reino dos céus.
Parece um paradoxo, restaurar a integridade de um ser indeterminado.
Mas é precisamente esse destino que define a cura psicanalítica. O saber
daquelas condições, nas quais se inclui, muito especialmente, a
indeterminação, é o nódulo da cura.
O que se quer dizer com indeterminação, se uma noção como a de
sobre-determinação é imprescindível ao pensamento psicanalítico, tendo em
vista que um sujeito humano, de acordo com essa noção, é um ser
multiplamente determinado? Não determinado pode soar, porém, de diversas
maneiras: em aberto, ou que permanece obscuro, ou ainda que se auto-
determina. Mas que natureza poderá ter uma auto-determinação, depois de
toda a crítica psicanalítica à idéia de consciência autônoma? Uma primeira
resposta é que ela será de natureza ética e, portanto, não-natural. Com isso a
“indeterminação” adquire todo o seu valor clìnico.
Há quem diga que o nódulo da cura é o “gozo” – a ser desimpedido,
recusado, temperado, circundado ou circunscrito. O que não se costuma dizer
é que saber e gozo são o mesmo. É claro que, para vê-lo coincidir com o gozo,
entendemos o saber como avaliação, estimativa, apreciação. O saber é erótico,
e como tal o praticaram e desenvolveram as mais antigas civilizações. Nesse
sentido, o Banquete é apenas um epígono. Eros é um deus avaliador. Existem,
sem dúvida, diversas alturas para este poder que avalia e discerne.
Nunca é demais lembrar a passagem em que Nietzsche, num texto sobre
a “filosofia na época trágica dos gregos”, e a propósito de Tales, distingue o
cientista do filósofo, o primeiro interessando-se por tudo e cada coisa,

274
Sugerindo a possibilidade de se fazer uma clínica estética, Deleuze aproxima a pintura da histeria, na
medida em que essa arte afeta diretamente o sistema nervoso. Uma leitura ligeira, porém, faria crer que
Deleuze tende a assimilar a experiência do corpo histérico ao corpo sem órgãos que a pintura dá a ver (“Mas a
realidade viva desse corpo poderá ser chamada de „histeria‟?”). Lógica da sensação, op. cit. p. 53. Na
verdade, a histeria compreende o transito e a oscilação de um plano a outro, do organismo ao corpo sem
órgãos, mas também uma espécie de capitulação constante frente ao organismo. “A pintura é histeria, ou
converte a histeria, pois faz ver a presença, diretamente”. Por isso Deleuze é mais preciso quando diz que “o
que o histérico é incapaz de fazer, um pouco de arte, a pintura faz” (p. 58). Preferimos o termo “reversão”
para descrever o procedimento pelo qual a pintura torna visìvel “a presença do corpo sem órgãos sob o
organismo” (p. 56), pois se trata de reconstituir as condições originárias do corpo vivo.

250
evoluindo por passos, circunspecto, prudente, contando com apoios fixos e
sucessivos para avançar, enquanto o segundo percorre de uma única vez, em
sobrevôo perigoso, todo o percurso. É este, diz Nietzsche, o homem do gosto
mais apurado, ao qual interessam as coisas mais importantes. O filósofo
“busca fazer ressoar em si mesmo o clangor total do mundo”, para em seguida
exprimi-lo em conceitos. A ele interessa o originário, denominado, no caso de
Tales, de “água”. Ao associarmos satisfação, gozo, ao saber analìtico, não
estamos, certamente, nos referindo ao Bem, o que não autoriza de modo
algum a pensar que se trate, então, do Mal. Não pensamos em uma boa
finalidade para o gozo. Por isso vale repetir a sentença de Aristóteles sobre os
primeiros filósofos, mencionada naquele texto: “Aquilo que Tales e
Anaxágoras sabem será chamado de insólito, assombroso, divino, mas inútil,
pois não se importavam com os bens humanos” 275. O saber ou o gozo
pulsional tem esse traço de não servir, a princípio, a nenhum bem, o que,
apesar de tudo o que já foi dito, deve desconcertar, tendo em vista o título do
presente escrito: “pragmatismo pulsional”. Se o saber em questão é uma
avaliação, uma apreciação, operando em diversos graus de profundidade e de
agudeza, não seria o mais útil dos saberes? Repetimos, ele não serve a nenhum
bem, não serve a nada, mas isto porque é dele que decorrem todos os bens
possíveis e todas as utilidades. É o não sujeitável. A princípio “tudo é bom e
nada presta”, não fosse a eminência desse saber inatual e inútil. Portanto, não
estaríamos errados em afirmar, em aparente contradição com o que dissemos
acima, que ele serve a tudo, na medida em que, situando-se além do bem e do
mal, discerne o bom e o mau em todos os acontecimentos, bem como aquilo
de que não se deve abrir mão em momento algum, não importa o que mais
possa estar em jogo.
A pulsão é a phisis freudiana, indica a presença do originário no
homem. Não se deve esquecer, em nome de uma justa apreciação do saber
analítico, que a pulsão é uma autoridade no que diz respeito ao vivo, ao
desejo. Ela só precisa ser exercida, e cura é o nome que damos a esse
exercício.
Neste capítulo, colocaremos em discussão algumas vicissitudes do saber
analítico – ou pulsional – e suas implicações na direção da cura.

O originário e o conceito de pulsão: a medida da cura

Sempre é possível perguntar, a propósito da finalidade da análise, o


mesmo que se perguntaria sobre o seu fim, enquanto término: quando estamos

275
Citado em Obras incompletas, op. cit., p. 41

251
à sua altura? Quando se alcançou o fim, o alvo? Quando estamos certos de que
a concepção de alvo não decorre de uma medida neurótica, menor, de uma
vida menor, de um fragmento de vida? Quem está em condições de decidir
pela medida, pela envergadura da cura? Para que não se confundisse com um
ideal de eu e nem se conformasse a um discurso de mestre, preferiu-se
subverter a noção de cura, ressaltando a idéia de processo. Mas se este tem
uma direção, mantém-se a referência a um alvo. É para fazer face a uma
interrogação sempre renovada sobre esse alvo que existe em psicanálise a
noção de pulsão, conceito extemporâneo, destinado a cobrir muitos tempos,
pouquíssimo explorado, conforme dissemos no início, apesar das pretensões
expressas aqui e ali, de modo implícito ou explícito, de havê-lo exaurido.
Temos, de modo geral, uma noção de pulsão mutilada, um pedaço de pulsão,
um ponto de vista menor, freqüentemente não contextualizado e, por isto,
insuficiente e equivocado: parcial, de morte, sexual, de vida, etc., são
maneiras de ser da pulsão segundo diferentes pontos de vista, diferentes
planos de visão, e se ordenam e se esclarecem de acordo com esses mesmos
planos. Já assinalamos que em algumas vertentes do pensamento psicanalítico
essa noção é considerada inócua, metafísica, inútil a uma clínica, pois até
quando se concede à pulsão uma existência obscura, ela só se fará apreender
na experiência analítica como representação. Remeter às pulsões de vida e de
morte os acontecimentos psíquicos, subjetivos, seria assim reificar o
psiquismo com uma teoria especulativa, insinuar na práxis e na sua
inteligência o que não é mais que o horizonte teórico da psicanálise. Uma
decisão desta natureza, em que se destitui o conceito de sua pertinência
clínica, acaba por deixá-lo inexplorado 276. Nem bem a pulsão despontou no
horizonte com sua face estranha, tanto na clínica como no pensamento, e já
nos desviamos dela? A psicanálise morre aos poucos à medida que se
distancia da pulsão. A insistência das pequenas línguas, porém, parece renová-
la a cada vez, restituindo-lhe a obstinada vitalidade. Por isso Miller chega a
dizer, a propósito de Lacan & Joyce, que a psicanálise é salva pela literatura.
Em razão do abandono precoce do conceito de pulsão e de sua
utilização, inclusive com argumentos que o colocam definitivamente à
margem de qualquer uso, como aqueles que asseveram seu caráter metafísico
– quando é a persistência de uma visão metafísica ou transcendente da vida
humana que impede de conceber sua virtude prática –, há uma forte tendência,
ali onde ainda se pensa, a abandonar a psicanálise, às vezes com uma crítica
profunda e contundente como a realizada por Deleuze e Guattari em O anti-
Édipo e em Mil platôs. Ora, a pulsão e os devires deleuzianos são a mesma
276
“Libido ou Tanatos e qualquer outro fundamento do desejo não fazem parte do consultório, sendo
reificações do psiquismo”. Introdução à teoria dos campos, op. cit., p. 45.

252
coisa, medidas e critérios de experimentação que não coincidem mais com as
medidas e os juízos do Homem enquanto ser já determinado. E, por isso
mesmo, evocam condições e afetos originários. Um devir animal é um trajeto
de involução analítica às condições originárias do homem.
A noção de pulsão é afetada de um teor crítico e polêmico; reabre, à
maneira do lapso, pela via da suspeita e do desconcerto, novos campos de
interrogação no domínio clínico e teórico, inclusive renovando a cada vez a
pergunta pelo sentido da própria psicanálise. É ao mesmo tempo elemento de
inquietação teórica e de precisão clínica. Definindo-se como prática de
exame constante – pois ela não é simplesmente uma força obscura, mas a
força do que não se conhece, ou seja, do conhecimento –, a pulsão exerce
função curativa de primeira ordem. Trata-se de noção essencialmente clínica.
Portanto, além de ser uma energia (libido) e uma tendência, é uma medida e
um critério.
A pulsão é a boa nova psicanalítica. Por seu intermédio se entenderá a
arte da interpretação – espécie de adivinhação das linhas de um destino, como
a definiu Lacan. É notável, escreve ele, como na experiência freudiana a
“tendência” (Trieb), coisa muito diferente do velho instinto com o qual foi
logo confundida, já compreendia em si mesma a potência do significante 277.
Este parece esclarecê-la num primeiro momento, é o que explica que ela seja
decifrável; mas sobrevém a exigência de uma exploração mais minuciosa do
seu campo, uma vez que esse campo orienta, em última instância, a trama
significante. Há mais coisas do lado da pulsão do que se imaginava. A
pesquisa freudiana tinha se colocado à altura do tesouro do significante, da
linguagem viva dos processos inconscientes, de suas leis de composição, bem
antes de fixar esse novo conceito. Reverte-se o sentido da proposição de
Lacan: ao que antecede se chega por último, e o significante, que parecia
elucidar o campo pulsional, agora prepara e anuncia seu entendimento mais
avançado.
Em que a pulsão é exigível além do significante? Não basta dizer que
ela demarca a diferença cujo significante, na teoria e na experiência, a títulos
diversos, é o falo; há mais coisas a serem ditas acerca dessa diferença que a
noção de significante não recobre. Por exemplo, que a pulsão seja em essência
atividade, o que fez Lacan situar, como primeira operação analítica, uma
retificação das relações do sujeito com o real, ou seja, com sua vertente ativa,
mediante a qual constrói a realidade de que sofre e de que eventualmente se
queixa. Acrescente-se outro componente essencial da pulsão que é seu alvo
invariável – a satisfação. Claro que um bom número de satisfações são efeitos

277
Escritos, op. cit., A direção do tratamento e os princípios de seu poder, p. 603.

253
de significante, compreendendo – para usar uma expressão lacaniana – o que o
real sofre do significante, mas isto não é tudo. É apenas a face passiva do
gozo. Pois existem satisfações a-significantes, originárias, que estão, por
assim dizer, na gênese da linguagem, ou melhor, na origem de sua efetuação,
numa altura em que a vida não pode mais ser ferida. Vislumbra-se, aqui, a
mais alta virtude pulsional, aquela que abre a perspectiva de um tempo de
criação. A pulsão é uma perspectiva, como não cessamos de repetir, um plano
de visão, uma altura do tempo. Se é essencial à interpretação analítica,
fornecendo os elementos que irão propiciar a decifração das linhas de um
destino – sendo ela mesma a decifração, o saber –, é porque freqüenta
diferentes alturas do tempo, inclusive aquela que reúne todas as outras. É o
originário que preside a todo o processo.
Duas conseqüências decorrem do esclarecimento pulsional de um
destino – destino, entenda-se, da pulsão. Primeiro, a experiência do originário
pode transformar um destino impedido e, desde então, inibidor, em destino
desenvolto, maior; segundo, essa experiência irá aprofundar e iluminar tal
destino, de modo que a construção de uma vida, neste caso, passa a coincidir
com um processo de reconstituição e de restituição. “Sempre sei, realmente”.
Que ao exercer a escuta flutuante Freud já intuísse a pulsão – cuja
elaboração conceitual se dará somente em 1915 – e por isso chegasse antes
dos lingüistas ao significante (não certamente antes dos poetas) – isto se deve
a quê? Deve-se justamente ao fato de possuir uma visão voltada para a saúde e
a doença, voltada primeiramente à vida e à sublimação, e não exatamente às
leis da linguagem e aos sistemas lingüísticos. Questão de privilégio, de ordem,
na consideração dos fenômenos da vida humana. Alcança a linguagem desde
baixo, desde antes, lógica e eticamente, alcança-a na sua criação contínua.
A boa nova é o ponto de vista do inconsciente. Toda investigação em
análise, para ser consistente, orienta-se por este ponto de vista. Ativo,
integrativo, superativo 278, deve-se a ele o movimento real do sujeito. Pulsão
designa assim um poder de avaliação, de apreciação, uma estimativa de valor
(o que vem antes? o que vem depois?), um saber. É uma ciência, uma
filosofia, uma ética, uma ontologia em estado nascente. Algo assim como o
pensar-nato que Antonin Artaud teria encontrado no México, junto aos
tarahumara, denominados por ele de “raça-princìpio”. “Os tarahumara estão
obcecados por sua filosofia; e o estão até uma espécie de embruxamento
psicológico; para eles não há gesto perdido, não há gesto que não tenha um
sentido de filosofia direta. Os tarahumaras vão se fazendo filósofos da mesma

278
Ao integrar linhas de sobre-determinação, a pulsão supera os sentidos em curso em favor de avaliações
mais precisas, amplia o campo experimental e freqüenta outras alturas do tempo. Cf. O caminho do campo
analítico, op. cit., p. 117.

254
maneira que uma criança vai se fazendo maior e chega a ser homem; são
filósofos ao nascer” 279.
É em relação ao saber do inconsciente, lugar da cura, que destacarei
alguns equívocos no entendimento teórico e clínico da psicanálise. E é mesmo
notável que sejam equívocos sobre o saber! Como é de se esperar, eles são
convergentes na concepção do início e do fim de uma análise.

Um primeiro equívoco sobre o saber: afetos secundários passam por


primários (ou de como se começa depois do começo e se termina antes do fim)

Afetos freqüentemente reconhecidos como originários nas pesquisas


psicanalíticas são ainda derivados, secundários. Uma prova disso é que
raramente se liga o afeto ao saber, e no entanto a análise deve conduzir a
ambos, ao afeto (= sujeito, segundo um Lacan mais secreto) e ao saber. É
comum que se chegue a um saber sobre tal ou qual afeto, mas não a um saber
próprio do afeto, a um saber que é ele próprio afeto, um afeto lúcido,
esclarecido. Daí o lugar de saber que reservamos à pulsão, não obviamente o
do saber intelectual, mas o do gozo, ao qual, bem entendido, não falta
intelecção. Não faríamos mal em associar saber, no infinitivo, com saborear,
de maneira a sugerir uma aprendizagem, uma pesquisa e uma experimentação.
Deve surpreender a proposição de que um afeto originário seja ele mesmo um
saber, pois, justamente, é comum se ter do originário uma idéia inadequada.
Um saber acerca da pulsão, o saber sendo uma coisa e a pulsão outra, é um
equívoco completo do ponto de vista clínico, pois a pulsão é saber – ativo,
prático, ético.
Leia-se o que se tem escrito sobre psicanálise: na maioria das
elaborações teóricas e descrições do processo clínico há uma forte tendência a
se começar depois do começo e terminar antes do fim. O que é originalmente
recalcado? Quando estamos na altura dos afetos originários? Um exemplo: em
mais de um autor encontra-se a idéia de uma ficção original com a qual o
sujeito se defende da angústia e, ao mesmo tempo, se prende a ela e a
preserva; ficção de um todo, de um eu fálico, ideal, narcisista, às vezes
concebido como a criança magnífica, e da qual o sujeito terá de se separar ao
longo e a certa altura precisa da análise – o que poderíamos chamar de seu
clímax. Nas digressões teóricas, ora a perda desta ilusão aparece no início da
experiência de vida do sujeito – a perda de seu “bastar-se a si mesmo” geraria
uma experiência primordial de luto, graças à qual a criança desenvolveria
estratégias de vida, recursos simbólicos, etc.; ora essa perda, esse corte, são

279
Los tarahumara, op. cit., p. 76.

255
tratados como uma conseqüência da análise, como um fim buscado por ela e
até mesmo sua razão de ser. Nos dois casos há uma dor e um luto que resultam
da separação ou auto-separação do sujeito – um luto, portanto, pela perda do
que não poderia de maneira alguma ser mantido. É evidente que se registram
experiências importantes desse gênero no decurso de uma análise. As pessoas
de fato sofrem com a perda de uma ilusão de poder, a falência de uma ficção,
a morte da “criança maravilhosa do inconsciente dos pais”, assim como
sofrem a perda de um bem, de um ente querido ou do usufruto de uma
circunstância de vida, de acordo, inclusive, com a percepção mais penetrante
de que a dor decorre não diretamente da perda, da separação do objeto, mas do
superinvestimento de sua representação quando ele se encontra, no entanto,
irremediavelmente perdido 280. Seja como for, em tais digressões o saber
aparece sob a forma da perda e da dor – a realidade da morte, a ilusão querida
e cultivada porém insustentável. É enfatizada, inclusive, a dor de um luto que
se infinitiza, pois se trata, sempre de novo, de reencontrar e perder a tal
criança 281. Fala-se numa serenidade (“tristeza serena” 282) finalmente
alcançada face a uma perda que seria impossível evitar, mas não se fala em
alegria. Por quê? O saber, neste caso, está associado à perda e ao corte, não à
potência. É preciso haver, de fato, uma propensão spinozista ao saber para ver
nele ocasião de contentamento, gozo, e só não diremos de beatitude em razão
de seu traço bélico.
É certo que o saber inconsciente corta, mas ele também une, o que se
esquece freqüentemente de dizer – por não ser pensado? não ser vivido? Pois
cortar pode consistir em unir o sujeito à sua potência, à pulsão; é inclusive o
que convém chamar de exercício da pulsão (do qual o lapso é o mais simples e
cabal exemplo), sua justiça 283. Isso não compreende em princípio a
experiência de uma perda, mas de uma distinção e o gozo desta distinção.
Qual é o objeto desta distinção? A condição ativa, pulsional – é dela que se
goza e é nela que consiste o saber. Essa distinção, Lacan a formulou como
uma retificação das relações do sujeito com o real, entendendo-a como um
primeiro passo da intervenção analítica, seguido da transferência e da

280
Conf. Nasio, J.-D., A histeria – teoria e clínica psicanalítica, Zahar, RJ, 1995.
281
“Longe de ficar quites com sua perda, ele a reencontrará inúmeras vezes no curso de sua existência, agora
compreendida como um longo e sereno trabalho de luto”. Idem, p. 100 e 101.
282
“A dor agudiza a percepção endopsìquica, leva a perceber a verdade e dá acesso a uma tristeza serena”.
Idem, p. 104.
283
Quando Guattari fala em ruptura de sentido, em corte, em separação de um conteúdo semiótico de uma
significação dominante, reinveste ainda o corte analìtico, opera com as noções de “extração” e de
“separação”, mas precisará ainda acrescentar que os operadores existenciais que procedem à extração ou à
separação, ou seja, que desencadeiam o processo existencial, devem adquirir, por sua vez, consistência e
persistência (Caosmose, op. cit, p. 31). É aqui, precisamente, que cortar deve ser também unir, unir a
subjetividade à pulsão que é, ela própria, a prática constante, o saber-fazer e o seu exercício.

256
interpretação 284. Não disse, porém, que essa retificação preside a todo o
processo e seu término, sendo por isso o derradeiro passo – graus do real
revisitados. Separare, diz Lacan em algum lugar, se conclui em se parere,
engendrar-se a si próprio. Mas o “engendrar-se” é originário, é ele que
fomenta a separação no nível e na modalidade em que ela irá se verificar.
Assim, aquele outro saber, o da separação e da perda, não deixa de ter uma
feição pulsional, se é a pulsão que, em última instância, denuncia a ficção de
completude e procede à separação (o exemplo definitivo: o lapso, que rompe a
unidade narcisista do discurso); mas é um saber que apenas denuncia a
presunção, a ilusão de unidade, a divisão. Sem o giro inteiro, ele se reduz à
desilusão, ao não-senso, ao nada, à morte. É preciso alcançar o saber prático e
positivo da saúde. É este, afinal, que está na origem de todo o saber.
Mas cabe perguntar se mais uma vez não deixamos equívoco o
problema do alvo da análise, ora dizendo que não se busca com ela nenhum
bem, nenhuma finalidade prescritível, ora definindo o alvo, muito
simplesmente, como a prática da saúde. As duas formulações não se
contradizem, se considerarmos o que se deve entender por prática da saúde.
Até aqui não fizemos outra coisa que procurar esclarecê-la, identificando-a ao
exercício da pulsão de vida cujos traços não paramos de estabelecer.
Não alcançando, portanto, o saber prático da saúde, se terá dado
somente meia volta e não a volta inteira pela qual o sujeito retorna às suas
condições originárias. A volta inteira é o derradeiro ritornelo, destino abstrato
ou cósmico. Parando a meio caminho, a psicanálise ganha ares niilistas – a
perda, a falta-a-ser, a falência do sentido, a redução do campo pulsional à
pulsão de morte (que é apenas outro nome para o narcisismo e seu destino) e o
indefectìvel “saldo cìnico” ao final da análise. Em franca deserção ética
elevada a dito espirituoso, Charles Melman chega a afirmar que a “máxima”
freudiana, o Wo Es war soll Ich werden, “é otimista mas irrealizável” 285.
Muito antes de fazer o giro inteiro 286 – que é rigorosamente ético, pois
consiste na reconstrução de uma integridade – pode-se parar a qualquer altura,
em qualquer estação, porque é irrealizável, já se ouviu tudo... Como na visão
de Zaratustra, a realidade humana apresentaria apenas pedaços, restos de
processos, acasos horríveis que, a crer nesse tipo de realismo esclarecido,
dispensariam, no limite, a própria psicanálise.

284
Escritos, op. cit., A direção do tratamento e os princípios de seu poder, p. 602.
285
Melman, C. Estrutura lacaniana das psicoses. Artes Médicas, Porto Alegre, 1991.
286
Não fosse o entendimento que Magno tem do alvo da pulsão, que ele designa de Não-Haver, e em razão do
qual se opera o “revirão”, usarìamos de bom grado essa expressão para indicar o giro inteiro. Pois o giro
inteiro é, ele próprio, o alvo da pulsão, a dupla afirmação.

257
Será preciso dizer que o íntegro – não sendo fragmento ou parcialidade
e nem se definindo como terminado ou completo – se refere ao aberto, isto é,
ao processo de reconstituição incessante das condições de potência e
desprendimento?
O reencontro do objeto de que falava Freud, baseado numa identidade
de percepção que inclui – é preciso não esquecer – componentes cinéticos do
sujeito, pode muito bem indicar o retorno da pulsão; deste modo, o reencontro
não se refere exatamente a um objeto, mas ao poder de constituir objetos
libidinais. É o retorno do Afeto. O objeto e a perda do objeto são secundários
em relação a este poder. Assim, no já citado Mar Paraguayo, de Wilson
Bueno, assiste-se à criação de um cão infinitesimal, feito de afeto e linguagem
– o minúsculo foxito-terriê cujo nome, Brinks, se distende, interminável, com
os diminutivos do guarani: Brinks’i, Brinks’imi, Brinksmichi, Brinksmichimi,
Brinksmichimíra’ymi, Brinksmichimíra’ytotekemi...287
A questão analítica se centra na tendência (Trieb) e não no objeto – sim,
irremediavelmente perdido, mítico ou o que se queira, porque nunca se tratou
dele, mas da tendência, do poder de constituir (conservar, substituir,
reencontrar) objetos libidinais. É na reconstrução desta tendência, deste poder
de afetar e ser afetado (definição deleuziana de força), e não na perda do
objeto, na falta ou na castração, que reside em última instância o saber. O
objeto é o valor que ele tem, e este depende da altura em que se exerce a
pulsão. Dessa altura derivam as realidades e os próprios objetos. A sublimação
é o caminho, o veículo e o norte, e não a castração que, no melhor dos casos,
vai de roldão.

Um segundo equívoco sobre o saber: o afeto originário desligado da idéia é


um absurdo

Afetos obscuros, deslocados, ligados a idéias substitutivas, não são mais


originários. Eles têm a feição dada aos afetos pelo recalcamento.
Uma maneira já habitual de conceber o destino do afeto na mecânica do
recalque nos dá uma idéia das resistências relativamente sutis à análise ou, o
que vem a ser o mesmo, à experiência da pulsão, advindas, é claro, dos
próprios analistas. Ao contrário do que se está inclinado a pensar nos meios
psicanalíticos, a análise depende do analista, a resistência é dele, como soube
ver Lacan. No caso do entendimento sobre o afeto a questão atinge, muito
depressa, seu clímax. Não há inocência.

287
Mar paraguayo, op. cit., p. 62 e 63. .

258
Tendo como ponto de partida o conjunto idéia-afeto, costuma-se pensar
que o recalque incide sobre o significante ou a representação, não sobre o
afeto, e que este deriva, desligado de sua representação, para outros circuitos
ideativos, às vezes muito distantes da situação de origem, ali insinuando sua
carga de investimento. Pode-se dizer, inversamente, que no interesse das
instâncias recalcantes, esses novos circuitos ideativos captam a energia afetiva
liberada, separada da idéia original. Sem dúvida a descoberta psicanalítica dos
processos inconscientes inclui muito especialmente a derivação do afeto (seu
deslocamento, sua metonímia) e suas diversas traduções ideacionais,
sobrepondo-se umas às outras como tantas metáforas de metáforas e
constituindo, ao longo do tempo, cadeias significantes inconscientes cada vez
mais profundas. O que interessa aqui, no entanto, é a concepção de que se
recalca apenas o significante ou a representação originária do afeto, mesmo
quando se admite ser o elemento afetivo o alvo final do recalque. Lacan dá
provas de uma visão assim em seu seminário sobre a angústia. A certa altura, e
especialmente a propósito do afeto, que o autor, contra as interpretações
ligeiras de seu discurso, afirma estar no centro de suas preocupações, há a
seguinte observação: “Ao contrário (de desatendê-lo), o que eu disse sobre o
afeto foi que ele não é recalcado. Isso, Freud o diz como eu. Ele se desprende,
fica à deriva. Podemos encontrá-lo deslocado, enlouquecido, invertido,
metabolizado, mas ele não é recalcado. O que é recalcado são os significantes
que o amarram” 288. Freud, se seguirmos a trama de sua investigação ultra-
flexível, nem sempre sustentou essa idéia, e oferece claros indícios de um
entendimento diferente em textos-chaves de sua obra, como o conciso artigo
sobre A negativa (Die Verneinung), onde se lê que a aceitação intelectual do
recalcado não significa ainda o levantamento do recalque. Se a pressão
afetiva, Dräng, sinaliza, seja pela angústia ou outro sinal, que o afeto insiste e
se desloca sob as representações, isso não impede de pensar que aí se trate,
precisamente, do retorno do recalcado nas condições do recalque. O afeto
insiste, mas enquanto ele é também sua idéia; não haveria insistência se ele
não fosse, por assim dizer, quem é. A idéia, não menos que o afeto, pode ser
enlouquecida, invertida, metabolizada.
Seja como for, o recalque incidindo apenas sobre a representação e
deixando o afeto à deriva tornou-se um bê-a-bá doutrinário pouco
questionado. Até hoje esta concepção não foi submetida a uma revisão crítica
e menos ainda a uma denúncia. Segundo o entendimento de uma tal mecânica
tudo se passa como se, com a derivação do afeto, vivêssemos ainda no mesmo
nível afetivo, a questão analítica se colocando a propósito de significantes, de

288
O seminário, Livro 10 – a angústia, op. cit., p. 23.

259
idéias, de representações mais ou menos inadequadas, incluindo aí as ficções
de completude e as fantasias de castração. A psicanálise deixa de ser assim um
expediente inovador da vida para se converter em mero instrumento de reforço
e refinamento dos modelos culturais em curso, de legitimação de sua
racionalidade e de suas formações discursivas. Mas não é certo dizer, por
exemplo, que a tensão da sexualidade excessiva, a tensão do desejo, passe tal e
qual, com igual quantidade, para a fantasia de castração sob a forma da
angústia e, em seguida, conforme o caso, derive para a conversão
propriamente histérica, para o pensamento obsessivo ou para o objeto fóbico,
sob a forma do sofrimento neurótico. A carga não é mais a mesma, não é mais
a mesma tensão, nem a mesma disposição; pois não é apenas uma questão
energética, é também ética e prática: da condição originária para a
secundária houve uma queda considerável do exercício pulsional. Ora, é claro
que o afeto foi recalcado, ele não aparece mais como na origem, a vida sofreu
uma diminuição. Se foi desfigurado a ponto de se tornar irreconhecível, o
afeto tornou-se outro afeto. Desapareceu a sua experiência naquele grau, e
aquele grau era simultaneamente intensidade e sentido, força e entendimento.
Como não se viu logo que o afeto originário é, sem mediação alguma,
sua idéia? Que visão temos do afeto para que, uma vez separado de sua idéia,
persista como tal? Claro, foi transformado, metabolizado, mas é como se ainda
fosse ele, efetuando-se na mesma medida, com outra face. Ao deixar, no
entanto, de ser exercido, experimentado, já não se distingue do recalcado –
aliás, é o recalcado por excelência. A partir daí, também ele, não menos que a
idéia, insinua uma ausência em todo acontecimento subjetivo.
Por que esta questão é importante e vale uma denúncia? Concomitante à
inversão ou ao deslocamento do afeto, há um distanciamento do saber e, note-
se bem, uma diminuição de vida. A concepção de que um afeto possa ser
desligado da idéia e continuar a ser ele próprio – o que, já dissemos, é um
absurdo, ao menos ao nível dos afetos originários – deve-se à noção precária,
reduzida, que se tem desses últimos, como se fossem matéria bruta a ser
moldada pelas representações, cargas primitivas de atração e repulsão,
quantidades nuas, forças cegas que receberiam das idéias sua qualidade, sua
luz. De fato, nesse nível a idéia é luz, mas isso é o afeto; sem dúvida ele já é o
entendimento de si próprio. Está longe, portanto, de ser rudimentar ou
primitivo 289.
289
“O conceito de afeto ou o de relação pática indica a possibilidade de apreender globalmente uma situação
relacional complexa, tal como a melancolia, ou a relação com a subjetividade esquizofrênica. Mas temos a
tendência a pensar que esse modo de conhecimento por afeto não-discursivo permanece rude, primitivo,
espontaneísta. Essa abordagem não discursiva é igualmente a da hipercomplexidade, tal como é estudada
atualmente em diversos domìnios cientìficos”. Caosmose, op. cit., p. 77. Aqui se reúnem o afeto e seu saber
intrínseco, o aumento de vida e seu enriquecimento, sua complexidade (o simples e o refinado), e tudo isto

260
Ao se pensar desde Freud num quantum de afeto, reconhecendo aí algo
de paradoxal, pois se trataria de uma quantidade que não é mensurável, tende-
se a situar o afeto como algo diferente de uma mera quantidade – o que é
inteiramente justo – sem achar, contudo, uma saída que não seja paradoxo e
mistério. O paradoxo é falso, pois um afeto é um grau de avaliação das
condições subjetivas, é uma apreciação, envolve uma medida, uma
mensuração de valor e intensidade. É um grau de avaliação e uma avaliação de
graus. Por que, então, se atribuiu ao afeto esta imagem menor, reduzida e
opaca, senão para melhor desconhecê-lo, de modo que as noções sobre seus
destinos validem uma vida menor como se fosse a única, a vida neurótica e
seu mundo como o melhor dos mundos possíveis?
O afeto despojado de sua idéia, ligado a outras idéias substitutivas, não
é mais o mesmo, já se perdeu de vista quem se é, quem se terá sido e quem se
pode ser ainda. Sofre-se, na verdade, da supressão do afeto naquele grau,
sofre-se de uma diminuição de vida. Disso é possível resultar, de fato, uma dor
real, ao se adquirir a noção desse esquecimento, a clareza de não ter estado à
altura da pulsão quando ainda era tempo, isto é, á altura do que se pode, do
que se sabe, do que se sente. Neste caso não se trata mais de uma tristeza
serena, mas de uma dor trágica. É uma razão para se preconizar, como
inerente ao trabalho analítico, o cuidado heideggeriano – que a palavra latina
caritas poderia expressar adequadamente –, ou seja, uma atenção com aquilo
que é mais caro, com aquilo que é mais importante do ponto de vista das
condições originárias. O que é mais importante, porém, nada tem a ver com
uma essência redescoberta, no sentido do que seria idêntico a si, e sim com a
condição de saber e seu exercício. É da ordem do acontecimento, não da coisa
em si 290.
Talvez se argumente que não é possível eliminar o mundo neurótico,
que cada qual deve se arranjar com as condições de vida de que for capaz, etc.,
e que cabe ao sujeito se responsabilizar pelo seu destino, decidindo pelo que é
mais importante para ele. A questão, porém, não é esta, e sim de se pretender

aquém ou além da representação ou, como diz Guattari, aquém ou além das coordenadas discursivas. Mais
uma vez, isso não significa ausência de verbo, muito pelo contrário.
290
“O problema do pensamento não está ligado à essência , mas à avaliação do que tem importância e do que
não tem; está ligado á repartição do singular e do regular, do relevante e do ordinário...” Diferença e
repetição, op. cit., p. 307. Nesse livro, Deleuze distingue o saber, que depende da representação da
consciência, do aprender, que concerne à apresentação do inconsciente, isto é, dos problemas sub-
representativos que são, como tais, os verdadeiros atos do inconsciente. A noção de saber que propomos se
esclarece, contudo, quando o saber diz respeito à diferença e envolve o afeto. Já dissemos que, primeiro, a
diferença é indissociável de uma atividade, sendo ela própria ativa; segundo, que é uma avaliação, pela qual
suas próprias condições e as do entorno são avaliadas; e, terceiro, que ela é diretamente ética, ou seja,
diretamente posição de desejo – em nome dela própria.

261
que uma vida diminuída enuncie, em nome da psicanálise, as últimas palavras
sobre a vida, a lucidez ou a saúde.
É verdade que um afeto invertido conta hoje a história obscura de sua
origem e de sua inversão. Não deixa, portanto, de exprimir o tempo de
transformação e de esquecimento de suas condições originárias, evocando-as
por meio das chamadas formações do inconsciente. Pode-se dizer que um fio
histórico – ou ainda, uma cadeia de significantes – reconduz o afeto
secundário às suas origens, de tal modo que esse fio é sua identidade, seu ser
de afeto, independente das vicissitudes pelas quais esteve passando. Presume-
se, aliás, que é o que sucede ao sujeito, de sorte que se manteria válida a idéia
de que o afeto não é recalcado, simplesmente sofre transformações. Acontece
que os afetos originários são ativos, são verdadeiros atos e, como os atos
falhos, procedem diretamente do inconsciente, onde eles ex-sistem, como diria
Lacan, “sem o abrigo do amanhã” 291. Ora, o recalque originário incide sobre o
ato do inconsciente do mesmo modo que incide sobre o sujeito do
inconsciente. É a mesma coisa. O saber do ato e o ato são igualmente a mesma
coisa. A emergência do ato e a do desejo se decidem no levantamento do
recalque, como uma espécie de desimpedimento do sujeito. A separação entre
saber e sujeito, por permitir a postulação de um inconsciente, isto é, de um
saber sem sujeito, “lá onde isso era”, não exclui que esse saber interesse a
alguém, precisamente na altura da destituição subjetiva promovida pela
análise. Não é ao sujeito do cogito que isso interessa, pois isso o subverte, na
mesma medida em que a subjetividade se esclarece como desidero.
O domínio ético toma a dianteira, mas em termos tais que a ética não
remete mais a uma aplicação da razão aos impulsos e inclinações, dando
origem aos bons costumes, como em Aristóteles, mas ao que garante não só o
uso da razão como também uma espécie de firmeza no pensamento e uma
visão do futuro.
Quando se fala de significantes em psicanálise, ao menos em Lacan,
trata-se do saber que reside neles, tanto mais próximo da experiência subjetiva
quanto menos esta se guiar pelos trilhos da ignorância douta, ou seja, pelos
discursos de mestre. Eis a razão da livre associação. É por isto que não se
ensina este saber e o analista se autoriza a si mesmo. Mas como os
significantes (implicados, por exemplo, num lapso de linguagem) são
precipitações de saber, e o saber do ato é o mesmo que o ato – de tal modo que
este porta em si o saber de si e só age na vigência desse saber que ele é –,
recalcar significantes é recalcar, em última instância, essa condição ativa que,
por seu teor de vida ou de real, é também afeto originário.

291
O sinthoma, op. cit.

262
Coincidência do virtual e do atual, acontecimento “temporalmente
eterno” 292, o desrecalque originário é a grande aventura da memória e do
tempo. É o caso em que o saber vem ocupar o lugar da verdade, para empregar
a fórmula do discurso analítico proposta por Lacan. A verdade do sujeito do
inconsciente – ou da pulsão – é o saber em ato. Pois bem, é este conjunto, que
se compõe de uma única coisa, a coisa íntegra por excelência, já que saber e
ato são as duas faces do sujeito do inconsciente – é este conjunto que se
encontra originariamente recalcado. Daí Lacan ter dito que “o saber passa em
ato”. É o gozo do ato = o saber do ato = a subjetividade do ato. Entende-se
assim porque o afeto originário é ativo? O ato é tão mais presente quanto mais
ele porta em si o saber da mais profunda memória; traça a transversal que
reúne os cumes ou os pontos luminosos dos vários estratos do tempo, segundo
uma linha que não se faria mal em chamar de linha de retidão. Note-se bem,
essa linha do tempo não se constitui senão como um ethos, ou seja, como
morada do espírito, não no âmbito da tradição e dos costumes, nem, portanto,
da religião, mas no contínuo de suas escolhas e atos, no seio da duração. Eis o
que distingue o saber do inconsciente dos demais saberes: é um saber ético das
escolhas e, sobretudo, da condição de escolha. É o fora do pensamento, o
impensável que o pensamento se esforça, no entanto, em pensar. Deleuze
chamará a este ponto de fora de acaso ou graça, definindo assim uma região
para além do saber, à qual só tem acesso o homem “da escolha ou da crença”
293
. Seria o caso de dizer – o homem do desejo?
Neste ponto, porém, convém remanejar a noção de saber inconsciente.
Não mais entendê-lo como relativo a algo que até então não se sabia ou que
sempre se soube, ou os dois ao mesmo tempo, de acordo com uma primeira
idéia acerca do inconsciente e com a divisão do sujeito que essa idéia implica,
mas assimilá-lo a um exercício ético e a uma prova do desejo. É a segunda
idéia acerca do inconsciente, concebido agora eticamente, e de seu correlato,
o sujeito íntegro. O saber já não se distingue de uma confiança, não em algo,
mas num caminhar, num proceder, que pode ser inclusive de desconfiança,
reserva, exame: desejo-luz, desejo-caminho, garantia de que a condição de
escolha não se distingue de quem se é. É, portanto, mais que uma crença, é
uma convicção. Mas esta convicção parece, de fato, uma fé, uma crença, por
não ter apoio senão em si mesma. Daí um dos modos de conceber a pulsão –
como sendo (mais que tendo) seu próprio critério de verdade.

292
“No cruzamento das duas linhas travava-se o „temporalmente eterno‟ – o liame da Idéia e do atual, o pavio
de pólvora – e se decidia nosso maior domínio, nossa maior potência, a que concerne aos próprios
problemas...” Diferença e repetição, op.cit., p. 306. Deleuze fala da concepção de acontecimento em Péguy e
suas duas linhas, a horizontal e a vertical.
293
Cinema II – Imagem-tempo, op. cit., p. 214.

263
O afeto invertido, deslocado ou metabolizado conta a história do afeto
originário, mas o faz de modo obscuro. Ao ser revertido às condições
originárias, vê-se bem que este afeto desfigurado fazia parte do sistema de
recalcamento e, assim, impedia o surgimento do originário; se mantivéssemos
que o afeto é ainda o mesmo, porém modificado, e que o significante ou a
representação é que desaparecem sob o recalcamento, deveríamos sustentar
que tudo prossegue no mesmo nível afetivo, quando apontamos, pelo
contrário, um desnível entre o recalcado e o recalcamento e, com isto, uma
diminuição de vida. Antes era o nível do afeto, agora é o do recalcamento,
com seu cortejo de afetos derivados. O afeto originário, porém, persiste
inconsciente, como rastro de ausência em todos os níveis da experiência, por
não alcançarem o seu grau.

Um terceiro equívoco sobre o saber: o saber dissociado do gozo ou o gozo


dissociado do saber. A propósito do final da análise

Que o saber apareça dissociado do gozo percebe-se facilmente nas


considerações usuais sobre um final de análise. Esclarecido, de posse do saber,
o sujeito pode escolher tal ou qual satisfação, ou mesmo recusá-las; o analista,
em exercício ético, deixa ao sujeito a questão de se permitir ou não a
satisfação da vertente pulsional agora elucidada. O saber se situa num ponto e
a satisfação em outro. Tome-se, mais uma vez, a título de exemplo, o texto de
Collete Soler, Variáveis do fim da análise. A autora evoca três destinos
pulsionais para um final de análise: um consentimento à satisfação pulsional,
uma sublimação das pulsões (“consentimento indireto”) e um “recalque bem-
sucedido”. Privilegia o terceiro, “que nos dá”, diz ela, “a finalidade do
tratamento analítico, segundo Freud, que é corrigir, rever (...) o processo de
recalque” 294. Esse privilégio determinará, no texto, o gênero de argumentos
com os quais serão em seguida tratados os temas do sentido, do gozo, do fim
da análise e da posição ética do analista. Para irmos logo a este último tema,
resumindo o que pretendemos dizer, basta apreciarmos o quanto se incorre
num equívoco enorme ao se afirmar, sem uma reflexão mais rigorosa, que
uma coisa é o saber sobre o gozo, outra a aceitação do mesmo. Freud, é
verdade, esclarece seu procedimento nestes termos: depois que a análise
decifrou o sintoma e revelou a exigência pulsional, com a espécie de
satisfação que esta implica, cabe ao sujeito a decisão de aceitá-la e passar ao
ato ou de rejeitá-la, numa nova modulação do recalque. Soler observa,
acertadamente, que essa atitude ética de reserva sustentada por Freud se

294
Variáveis do fim da análise, op. cit., p. 54.

264
distingue inteiramente da atitude do mestre. Assim, assevera ela, “o fim de
análise não proclama que o gozo antes recusado tenha de passar para a prática,
contrariamente a certos ecos, que algumas vezes escutamos...”. Com tais
formulações dá-se prova, sem dúvida, de um esteio ético, mas também de que
se está apenas no meio do caminho, pois a exigência pulsional decifrada ao
fim do processo analítico é a exigência do saber, e é nele que consiste a
satisfação – entenda-se: na medida em que é praticado. Muitas são as
modalidades de gozo, o originário, porém, é o do saber. Se assim é ao final,
pode-se dizer que terá sido assim todo o tempo.
Quando, por exemplo, uma mulher, depois de reconhecer o quanto se
precipita fantasiando uma relação futura, maravilhosa, com um homem que
esteve longe de encorajá-la a tal, deixa escapar que não desiste de “fazer um
casal” – a que se deve o deslize, a revelação? Que ela, sozinha, não desiste de
“fazer um casal” poderia ser uma expressão direta da pulsão ou do desejo.
Mas se entendermos que a pulsão acaba por trazer à luz, empurrando à fala, o
que precisa ser compreendido, ouvido, teremos da força pulsional uma idéia
mais profunda e apropriada. Teremos a noção de que ela é, além de ativa,
integrativa, pois, no deslize, na revelação, ela dá a ver a imagem que se fez
dela e o entendimento de que era apenas uma imagem, uma ficção e mesmo
um desconhecimento. Lembremo-nos da advertência de Freud: um sonho não
é o inconsciente.
Saber pulsional versus paixão da ignorância. Se esta fosse própria da
pulsão, não haveria análise e nem inconsciente.
Assim, contrariamente à advertência de Soler, o gozo, isto é, o saber
antes recusado, deve passar imediatamente à prática, ou melhor, deve ser
imediatamente prático, ou a análise não encontrou ainda seu termo. E ela só é
interminável por se tratar, desde então, de uma prática constante do saber.
Vale acrescentar que este se resolve, em última instância, como saber das
condições de saber 295. O homem, diz Heidegger, sabe pensar porque tem a
possibilidade de pensar, mas isto não significa ainda que seja capaz de pensar.
É claro que o analista não deve forçar o sujeito a ir adiante e, na
verdade, nem poderia, mas isto se impõe desde o início do processo. Ora, ir
adiante em análise significa, necessariamente, respeitar (= praticar) o saber
295
O saber das condições de saber remete à natureza do inconsciente. Que este seja o lugar das questões e dos
problemas, como sustenta Deleuze em Diferença e repetição, traduz em boa medida o que entendemos por
originário no caso do saber. “As questões e os problemas não são atos especulativos que, por esta razão,
permaneceriam totalmente provisórios e marcariam a ignorância momentânea de um sujeito empírico. São
atos vivos, investindo as objetividades especiais do inconsciente, destinados a sobreviver ao estado provisório
e parcial que, ao contrário, afeta as respostas e as soluções”. Op.cit, p. 180. Ao falar de uma prática constante
do saber, aludindo ao mesmo tempo à força constante que caracteriza a pulsão, situamos o campo próprio do
inconsciente e seu vetor: “A potência das questões vem sempre de outra parte que não das respostas e desfruta
de um livre fundo que não se deixa resolver”. Idem, p. 183.

265
que nela se obtém. Não há resistências senão ao saber, e este não se distingue
de sua prática.
Os equívocos sobre o saber destacados acima não se verificam apenas
no domínio analítico; eles certamente fazem parte da experiência humana, e a
psicanálise, que não deixa de pertencer ao campo desta experiência, traz
consigo seus vestígios. E contudo se exerce, à maneira de uma indagação
constante, com um pé fora daquela experiência, no seu exterior indeterminado,
como é próprio do inconsciente, que pertence e já não pertence ao sujeito. Os
equívocos sobre o saber são, por isso, um de seus temas privilegiados. Que o
afeto possa ser despojado de sua idéia, que o saber se resolva apenas como
corte, separação, perda ou morte, e que no final da análise o saber e a
satisfação pulsional não coincidam, e sejam ainda considerados distintos na
prática, são equívocos, como é possível verificar de um só golpe,
perfeitamente articulados. Exprimem todo um plano de entendimento e de
experiência e, decididamente, um limite. Usamos o conceito de pulsão para
indicar a transposição incessante dessa espécie de limite. Assim, a maior
precisão no uso do conceito tende a revelar as imprecisões relativas ao saber
no âmbito da experiência analítica. A própria análise, enquanto processo real,
enquanto prática, se esclarece por seu avanço em precisão nos modos de
conceber e de explorar o campo pulsional (ou campo do saber inconsciente). É
nisso, aliás, que consiste a cura.

266
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