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Guillaume Sibertin‑Blanc
Seria possível seguir o caminho de sua reflexão a partir dos capítulos de Pele negra,
máscaras brancas (1952) sobre o “suposto complexo de dependência do colonizado” e a
psicopatologia do “Negro”, indo até as análises de O quinto ano da Revolução
argelina (1959) sobre a sobredeterminação da relação terapêutica com a situação
colonial, e chegando à desmontagem do estereótipo da “impulsividade criminal do norte-
-africano” que conclui as “notas psiquiátricas” coletadas no último capítulo
de Condenados da terra (1961).
Esse último momento de seu trabalho, por investigar a relação entre psicanálise e política,
desperta um interesse específico, que se torna claro de antemão pela singularidade de seu
lugar de enunciação. No duplo epicentro clínico (o hospital de Blida-Joinville e a Escola
de Alger) e político (a Argélia em guerra) da psiquiatria colonial francesa, não estava
mais na hora de uma “psicanálise interpretativa”, de uma “aplicação” de conceitos
psicanalíticos para interpretar uma situação política. Era a hora de uma urgência prática,
na qual a conjuntura política confronta a clínica com o real do sintoma como tal.
Mas esse real não tem a estrutura de um impossível, mas de dois: em forma
de double bind. É, por um lado, a impossibilidade de qualquer enunciação clínica que seja
na situação colonial, a impossibilidade de um ponto de vista clínico, do acolhimento da
experiência singular que um sujeito tem de sua doença. A não ser que se perseverasse na
“aposta absurda”, escreve Fanon em sua carta de pedido de demissão dos encargos de
médico-chefe do hospital de Blida-Joinville já em dezembro de 1956, de querer desalienar
indivíduos em um país onde o autóctone é um “alienado permanente em seu país [e] vive
em um estado de despersonalização”, de querer tornar o indivíduo menos estrangeiro a
seu mundo em um mundo que organiza “uma desumanização sistemática”.
Por outro lado, é a tentação, face a esse campo clínico barrado, de promover sua
foraclusão projetando-o no campo político imediato, onde a preocupação clínica seria
pura e simplesmente suplantada pela luta de liberação. É, além disso, esse fantasma de
uma liquidação política dos sintomas que se quis por vezes ler nos aportes famosos do
primeiro capítulo de Condenados da terra (talvez os mais imprudentes, em todo caso os
mais “dialeticamente” idealizantes) sobre a transformação de economias psíquicas da
violência na passagem a uma luta ofensiva contra o sistema colonial, tendendo a fazer
desaparecer as formas mais virulentas de autoagressão, de prostração melancólica e de
condutas suicidas.
Mas algo devia vir cortar essa continuidade radicalmente suturada entre a situação
colonial (onde a clínica tende a ser impossível) e a situação de guerra de descolonização
(onde o projeto de uma clínica desalienante seria, no limite, realizado pelo próprio
movimento de liberação nacional): os “distúrbios mentais nascidos da guerra de
liberação nacional que dirige o povo argelino”, um trabalho do sintoma diretamente
articulado à luta política.
Dito de outro modo, essa patologia não é produzida pela exacerbação dos mecanismos de
defesa que poderia assimilá-la ao que a nosologia europeia identificou como neurose de
defesa ou psico-neurose narcísica. Ela é testemunha, ao contrário, da impossibilidade
dessa saída psicótica, ou da impossibilidade de toda reconstrução narcísica suscetível de
ser um patamar para o desmoronamento das estruturas “egoicas”. Estaríamos tentados,
assim, a qualificar a situação clínica “normal”, naquele momento sem a sombra da “calma
colônia”, como uma situação de traumatismo permanente, quando as defesas falham até
o ponto de tornar impossível uma entrada na psicose, onde se indicaria, no mínimo, o
investimento narcísico com o qual um sujeito seria ainda capaz de “fazer com” seu
sintoma.
Que Fanon lembre que “a colonização, em sua essência, se apresentava já como uma
grande fornecedora de hospitais psiquiátricos”, não quer dizer que ela cedia lugar para a
loucura. Lembramos como, ao se demitir de suas funções no hospital de Blida, ele
respondeu a esse esmagamento de toda acolhida da loucura como essa
última possibilidade da liberdade humana. Mas a recíproca é tal que a subjetivação da
resistência à opressão terá inevitavelmente a atitude de uma reconstrução de mecanismos
de defesa, ou seja, a reabertura de uma produtividade do sintoma psicótico, fazendo
entender que um vetor de psicotização redobra inevitavelmente, e até suporta
necessariamente a posição de uma consciência anticolonial. Tudo se passa como se os
mecanismos de defesa, no processo patológico que os exacerba, testemunhassem
simultaneamente da reconstrução de uma capacidade política, ou como uma
potencialidade “metapolítica” de adversidade, nas estruturas do sujeito em sofrimento.
Que a luta de liberação nacional suscite, e talvez passe necessariamente por modalidades
de psicotização da subjetividade, certamente não leva a minimizar as feridas psíquicas
onde elas têm fundo, e a fantasiar uma supressão do incômodo clínico de se encarregar
da luta política pela liberação. É, ao contrário, nomear um desses momentos no qual a
operação do sintoma em que se sustenta um sujeito, as modalidades de deslocamento de
seu gozo a seu sintoma, e a ação de resistência a uma ordem opressiva, no limite
impossível de ser vivida, que entram em relações de indiscernibilidade, ou de
indecidibilidade, lá onde tanto a clínica quanto a política contestam que sejam
discerníveis.