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A virada descolonial da psicose:

Frantz Fanon, inventor da esquizoanálise

Guillaume Sibertin‑Blanc

28 de dezembro de 2015 (Revista Cult, Edição 208)

A obra do psiquiatra e militante Frantz Fanon é reconhecida hoje, merecidamente, como


uma contribuição pioneira à análise do papel fundamental desempenhado pela dominação
colonial na formação do discurso psicopatalógico europeu. Ela é, ao mesmo tempo, uma
reflexão contínua sobre a parte tomada pelo “saber-poder” psiquiátrico, por meio de seu
misto de positivismo neurobiológico, de “criminologia científica” e da antropologia
naturalizante do “primitivismo”, na racialização do “indígena”; e de modo mais extenso,
sua obra reflete sobre a constituição do racismo institucional, que garante mutuamente as
certezas da Ciência e os interesses do Estado, coextensivo à era imperialista.

Seria possível seguir o caminho de sua reflexão a partir dos capítulos de Pele negra,
máscaras brancas (1952) sobre o “suposto complexo de dependência do colonizado” e a
psicopatologia do “Negro”, indo até as análises de O quinto ano da Revolução
argelina (1959) sobre a sobredeterminação da relação terapêutica com a situação
colonial, e chegando à desmontagem do estereótipo da “impulsividade criminal do norte-
-africano” que conclui as “notas psiquiátricas” coletadas no último capítulo
de Condenados da terra (1961).

Esse último momento de seu trabalho, por investigar a relação entre psicanálise e política,
desperta um interesse específico, que se torna claro de antemão pela singularidade de seu
lugar de enunciação. No duplo epicentro clínico (o hospital de Blida-Joinville e a Escola
de Alger) e político (a Argélia em guerra) da psiquiatria colonial francesa, não estava
mais na hora de uma “psicanálise interpretativa”, de uma “aplicação” de conceitos
psicanalíticos para interpretar uma situação política. Era a hora de uma urgência prática,
na qual a conjuntura política confronta a clínica com o real do sintoma como tal.
Mas esse real não tem a estrutura de um impossível, mas de dois: em forma
de double bind. É, por um lado, a impossibilidade de qualquer enunciação clínica que seja
na situação colonial, a impossibilidade de um ponto de vista clínico, do acolhimento da
experiência singular que um sujeito tem de sua doença. A não ser que se perseverasse na
“aposta absurda”, escreve Fanon em sua carta de pedido de demissão dos encargos de
médico-chefe do hospital de Blida-Joinville já em dezembro de 1956, de querer desalienar
indivíduos em um país onde o autóctone é um “alienado permanente em seu país [e] vive
em um estado de despersonalização”, de querer tornar o indivíduo menos estrangeiro a
seu mundo em um mundo que organiza “uma desumanização sistemática”.

Por outro lado, é a tentação, face a esse campo clínico barrado, de promover sua
foraclusão projetando-o no campo político imediato, onde a preocupação clínica seria
pura e simplesmente suplantada pela luta de liberação. É, além disso, esse fantasma de
uma liquidação política dos sintomas que se quis por vezes ler nos aportes famosos do
primeiro capítulo de Condenados da terra (talvez os mais imprudentes, em todo caso os
mais “dialeticamente” idealizantes) sobre a transformação de economias psíquicas da
violência na passagem a uma luta ofensiva contra o sistema colonial, tendendo a fazer
desaparecer as formas mais virulentas de autoagressão, de prostração melancólica e de
condutas suicidas.

Mas algo devia vir cortar essa continuidade radicalmente suturada entre a situação
colonial (onde a clínica tende a ser impossível) e a situação de guerra de descolonização
(onde o projeto de uma clínica desalienante seria, no limite, realizado pelo próprio
movimento de liberação nacional): os “distúrbios mentais nascidos da guerra de
liberação nacional que dirige o povo argelino”, um trabalho do sintoma diretamente
articulado à luta política.

É esse jogo politicamente sobredeterminado do sintoma que faz necessário, então,


especificar as incidências da guerra na colônia sobre as formações sintomáticas com as
quais se confronta a clínica, mas que impõe também medir as implicações da guerra de
liberação em uma hermenêutica clínica que, encontrando-se mobilizada pela luta, vê-se
inelutavelmente politizada em todas as dimensões de seus “saberes” (sintomatológicos,
nosográficos, etiológicos) bem como em suas práticas (psiquiátricas e transferenciais,
institucionais e subjetivas).
Farei uma breve observação voltando ao modo pelo qual Fanon investiga a especificidade
das formas traumáticas do sintoma na Argélia, em relação àquelas com que se preocupou
a clínica europeia na saída de duas guerras mundiais. Seu ponto de partida toca o sentido
que toma na colônia a categoria de “psicose reacional”, quando se constata que o “evento
disparador” do processo patológico – se pudermos, em alguns casos, assim identificá-lo
–, confunde-se frequentemente com a extrema violência “atmosférica” que já organizava
o regime colonial. As figuras extremas de esfacelamento e de despersonalização
psicóticas, a virulência das formas melancólicas de culpabilização e de autoagressão, as
produções sintomáticas mortíferas invadindo o real do corpo, o deslocamento do material
sociocultural das elaborações simbólicas, catalisam em uma sintomatologia traumática
um traumatismo que já tecia o pano de fundo da clínica na colônia, nessa situação de
“colonização bem-sucedida” que não era nada mais que uma situação de guerra
materializada, incorporada nas formas da objetividade social, econômica, jurídica e
militar do Estado colonial.

Disso se tira uma primeira consequência dessa análise: a impossibilidade de assinalar


uma clínica diferencial entre a situação de “colonização bem-sucedida” e a situação de
guerra colonial. Exceto se for identificada com uma clínica diferencial
imediatamente política, a saber: esse índice de resistência à violência e à opressão
coloniais no qual Fanon vê com tanta frequência a marca no coração das sintomatologias
dos colonizados, e que é igualmente um modo de fazer dizer à patologia que a colonização
nunca é completamente “bem-sucedida”.

É preciso, ainda, destacar as implicações para a linguagem da enunciação clínica. O


trabalho realizado por Fanon sobre o conceito metapsicológico de “mecanismo de defesa”
é, nesse ponto, emblemático. Retomando uma acepção econômica das defesas do eu, para
qualificar a fonte etiológica maior na base de quadros altamente psicotisantes com os
quais se confronta a psiquiatria na colônia, ele ressemantiza a noção em um registro
agonístico e militar. Ou ainda, ele provê uma literalidade política a noções que a
psicopatologia havia metaforizado para integrá-las a sua conceitualidade (como por
exemplo a metáfora da guarnição militar em uma cidade conquistada por meio da qual
Freud dava imagem ao trabalho “civilizacional” realizado pela instância do Super-Eu).

É esse jogo de condensação clínico-política do conceito de defesa que orienta então o


destaque diferencial das patologias produzidas pela opressão e dos mecanismos
patogênicos da resistência à opressão: “No período de colonização não contestada pela
luta armada, quando a soma de excitações nocivas ultrapassa um certo umbral, as posições
defensivas dos colonizados desmoronam, e eles se encontram então em soma
considerável nos hospitais psiquiátricos. Há então nesse período calmo de colonização
bem-sucedida uma regular e importante patologia mental produzida diretamente pela
opressão”.

Dito de outro modo, essa patologia não é produzida pela exacerbação dos mecanismos de
defesa que poderia assimilá-la ao que a nosologia europeia identificou como neurose de
defesa ou psico-neurose narcísica. Ela é testemunha, ao contrário, da impossibilidade
dessa saída psicótica, ou da impossibilidade de toda reconstrução narcísica suscetível de
ser um patamar para o desmoronamento das estruturas “egoicas”. Estaríamos tentados,
assim, a qualificar a situação clínica “normal”, naquele momento sem a sombra da “calma
colônia”, como uma situação de traumatismo permanente, quando as defesas falham até
o ponto de tornar impossível uma entrada na psicose, onde se indicaria, no mínimo, o
investimento narcísico com o qual um sujeito seria ainda capaz de “fazer com” seu
sintoma.

Que Fanon lembre que “a colonização, em sua essência, se apresentava já como uma
grande fornecedora de hospitais psiquiátricos”, não quer dizer que ela cedia lugar para a
loucura. Lembramos como, ao se demitir de suas funções no hospital de Blida, ele
respondeu a esse esmagamento de toda acolhida da loucura como essa
última possibilidade da liberdade humana. Mas a recíproca é tal que a subjetivação da
resistência à opressão terá inevitavelmente a atitude de uma reconstrução de mecanismos
de defesa, ou seja, a reabertura de uma produtividade do sintoma psicótico, fazendo
entender que um vetor de psicotização redobra inevitavelmente, e até suporta
necessariamente a posição de uma consciência anticolonial. Tudo se passa como se os
mecanismos de defesa, no processo patológico que os exacerba, testemunhassem
simultaneamente da reconstrução de uma capacidade política, ou como uma
potencialidade “metapolítica” de adversidade, nas estruturas do sujeito em sofrimento.

Que a luta de liberação nacional suscite, e talvez passe necessariamente por modalidades
de psicotização da subjetividade, certamente não leva a minimizar as feridas psíquicas
onde elas têm fundo, e a fantasiar uma supressão do incômodo clínico de se encarregar
da luta política pela liberação. É, ao contrário, nomear um desses momentos no qual a
operação do sintoma em que se sustenta um sujeito, as modalidades de deslocamento de
seu gozo a seu sintoma, e a ação de resistência a uma ordem opressiva, no limite
impossível de ser vivida, que entram em relações de indiscernibilidade, ou de
indecidibilidade, lá onde tanto a clínica quanto a política contestam que sejam
discerníveis.

Ao cabo, o termo “resistência” se presta bem a essa dupla compreensão, borrando a


partilha da passividade e da atividade, do sofrido e do agido, do pático e da agency.
Podemos ver aí, como indiquei em outro lugar, o problema nodal em torno do qual
caminham os autores de O anti-Édipo dez anos mais tarde, e a razão pela qual retomarão
as análises de Fanon, as sintomatologias dos colonizados que exibem, talvez melhor que
toda outra, a dificuldade em determinar onde começa a resistência, mas também a
necessidade de sobre ela se decidir. Pois trata-se, aqui, não de idealizar os tormentos do
corpo e do espírito em resistência política (a que Fanon psiquiatra se recusava
explicitamente), mas sim de colocar o paradoxo de umbrais ou de modalidades de
resistência do sujeito, “no” sujeito ou “diante/ em torno” dele, que não lhe são contudo
simplesmente inacessíveis: umbrais onde a clínica diferencial de uma politização da
subjetividade e de um impolitizável do sintoma é absolutamente decisiva, mas
irredutivelmente incerta, e ambas ao mesmo tempo.

Tradução de Mario Sagayama

Guillaume Sibertin-Blanc é filósofo, professor associado da Universidade de Toulouse


(França) e membro do Centro de Estudos Internacional de Filosofia Contemporânea
Francesa da École Normale Supérieure, em Paris

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