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A psicanálise em face da colonialidade: 18 possíveis usos

anticoloniais da herença freudiana


Por David Pavón-Cuéllar, via Blog do autor, traduzido por Daniel Alves Teixeira

LavraPalavra
novembro 23, 2020

https://lavrapalavra.com/2020/11/23/a-psicanalise-em-face-da-colonialidade-18-
possiveis-usos-anticoloniais-da-herenca-freudiana/

Intervenção na Segunda Mesa, Racismo e Colonialismo como Sofrimento Sociopolítico.


O que pode a psicanálise?, no Seminário da Rede Interamericana de Pesquisa em
Psicologia e Política (REDIPPOL), na quarta-feira, 16 de setembro de 2020. A sessão foi
coordenada por Priscila Santos e realizada remotamente no site da Faculdade de
Ciências Sociais da Universidade do Chile. Além do autor, participaram Deivison
Faustino e José Miguel Bairrão, ambos do Brasil.

No ano passado meditei muito no funcionamento colonial da herança freudiana na


América Latina. Eu me perguntei se nós, latino-americanos, deveríamos tentar
descolonizar a psicanálise, ou se seria melhor simplesmente nos livrar dela, ou seja,
nos descolonizar dela. Eu estava inclinado para o primeiro, para preservar o que Freud
nos legou, mas fazendo todo o possível para descolonizá-lo e até mesmo utilizá-lo
como instrumento para uma certa descolonização de nossas vidas. Esse uso é
exatamente o que eu gostaria de considerar agora.

Meu propósito hoje é refletir sobre a forma como a psicanálise pode ser usada em face
da colonialidade moderna, sendo usada de forma crítica, insubordinada e subversiva.
Minha reflexão me fará discernir dezoito possíveis usos anticoloniais da herança
freudiana em um contexto pós-colonial ou neo-colonial como o da América Latina.
Descrevo esses usos como “anticoloniais” porque se opõem à colonialidade, porque
estabelecem uma relação antagônica com ela, porque aspiram de alguma forma a uma
certa descolonização, o que não significa necessariamente que a realizem e nem
mesmo que possam se livrar das estruturas coloniais em que estão inseridos. Por isso,
fala de usos anticoloniais e não descoloniais ou descolonizantes.

O agente dos usos anticoloniais da herança freudiana será, em cada caso, alguém a
quem designarei com o enigmático pronome “nós”. Por este “nós”, quero dizer nós
latino-americanos, asiáticos e africanos, os habitantes das chamadas “periferias”, os
descendentes diretos do colonialismo europeu e do imperialismo norte-americano, os
despojados dos impérios, os eternamente desatualizados em relação à modernidade,
os inevitavelmente europeizados e não europeus. Somos os sujeitos pós-coloniais,
híbridos, mestiços, não necessariamente da mestiçagem racial ou étnica, mas da
mestiçagem cultural, ideológica e simbólica em que está gestada nossa subjetividade.

Somos nós, produtos da colonialidade moderna, que podemos realizar os usos


anticoloniais da psicanálise aos quais me referirei agora. Note que estou apenas
concebendo o colonial como algo a que devemos nos opor, o que é, para mim, fora de
qualquer debate, uma posição política pessoal. Minha oposição à colonialidade
moderna e ao capitalismo do qual faz parte me confronta logicamente com aqueles
que buscam reabilitar e revalorizar o colonialismo, especialmente na direita e na
extrema direita do espectro político, embora às vezes também na esquerda como a do
filósofo esloveno Slavoj Žižek, a que me refiro agora por sua proximidade com o campo
psicanalítico.

Alguém como Žižek nunca poderia entender por que diabos queremos usar a
psicanálise contra a colonialismo moderno. Tal uso lhe pareceria estranho, talvez
absurdo, aberrante. De fato, há uma certa aberração em empregar de forma
anticolonial algo tão moderno e europeu quanto o que Freud nos deixou. Comecemos
com isso abordando agora, um por um, os possíveis usos anticoloniais da herança
freudiana.

1. É verdade que a psicanálise faz parte de uma modernidade europeia inseparável da


colonialidade. Porém, nessa modernidade, a descoberta freudiana aparece como
crise, ruptura, fracasso ou fenda. É uma fenda no mundo colonial moderno, uma fenda
em que há lugar para nós, não europeus, em que podemos nos alojar e talvez assim
alargar a fenda, aprofundar a crise daquilo que nos colonizou. A crise da modernidade
colonial pode logicamente se aprofundar por meio de um espaço, como o da
psicanálise, em que se revela o que a Escola de Frankfurt conceituou como a
irracionalidade inerente à racionalidade europeia moderna.

2. Entre os aspectos irracionais da racionalidade europeia moderna, um fundamental é


a alegação infundada de universalidade. Essa afirmação é contestada pela casuística
freudiana e por sua demonstração do caráter não universalizável das razões que regem
a existência de cada sujeito. Cada histérica de Freud tem suas razões, as razões de seu
desejo, que desafiam a suposta racionalidade universal da modernidade europeia. Se
essa racionalidade é traída como irracional por aspirar à dominar a existência das
mulheres do Império Austro-Húngaro, é muito mais irracional em sua pretensão de se
aplicar a todo o mundo, a mulheres e homens na África, Ásia e América Latina. “Nada
menos racional”, como diz Aníbal Quijano, do que “a afirmação de que a visão de
mundo específica de uma determinada etnia se impõe como racionalidade universal,
ainda que tal etnia seja a Europa Ocidental”[1]. O caráter irracional desse
universalismo colonial fica evidente quando a psicanálise permite que o sujeito fale
de tudo o que é singular e particular, de si mesmo e de sua cultura, o que difere dos
imperativos da pretensa universalidade europeia moderna. O que descobrimos
então, espantados, é que o sujeito chega a refutar a suposta universalidade de algo tão
europeu quanto a metapsicologia freudiana, concordando assim com Malinowski[2] e
Lacan[3] ao pôr fim ao que podemos chamar com Derrida de “colonização
psicanalítica”[4]. A própria psicanálise pode servir, então, para nos descolonizar da
racionalidade europeia da teoria freudiana.

3. Além de nos servir para mostrar nossas diferenças quanto às razões impostas pela
Europa, a psicanálise pode nos ajudar a lembrar a história dessas diferenças e da
imposição violenta do europeu. É preciso entender que a colonialidade é história e
que, por isso, não pode ser tratada adequadamente por abordagens a-históricas,
amnésicas e presentistas, como as da psicologia dominante. Em vez disso, o que é
colonial requer uma abordagem como a da psicanálise: uma abordagem totalmente
histórica que busca recordar a violência com a qual fomos constituídos. Como disse
Ignacio Martín-Baró, “precisamos de memória, uma memória histórica clarividente,
para perceber tudo o que bloqueou, oprimiu e esmagou o nosso povo”.[5] Essa
memória da colonialidade, indispensável em todo combate anticolonial, é outra coisa
que podemos cultivar por meio da psicanálise.

4. A abordagem psicanalítica nos ajuda não apenas a lembrar a colonialidade, mas a


explicar a maneira como ela atuou sobre o sujeito, constituindo-o ao danificá-lo. Nossa
subjetividade colonial danificada é o produto de complexas operações relacionais
inconscientes do tipo tradicionalmente estudado pela psicanálise. É o caso da
operação descrita por Frantz Fanon como “internalização” ou “epidermização da
inferioridade”[6], como “inferiorização” do correlativo não europeu da
“superiorização” européia[7]. É também o caso da europeização como “aspiração” em
Quijano, ou seja, do “colonialismo interior” em substituição do “exterior”, a “sedução”
que vem depois da “repressão”[8]. Talvez tudo isso não pudesse ter sido pensado sem
a sensibilidade freudiana que permeia o pensamento crítico atual no subsolo, incluindo
o pós-colonial, o decolonial e o anticolonial. O que é certo é que a crítica da
colonialidade pode tirar proveito da psicanálise para explicar muitas das operações
coloniais mais insidiosas, sutis e subterrâneas.

5. O uso da psicanálise para explicar as operações coloniais não exclui o uso de outras
interpretações da subjetividade, entre elas as dos povos originários, que, me atrevo a
dizer, são às vezes profundamente compatíveis com as interpretações psicanalíticas.
Como a psicanálise, as psicologias mesoamericanas ancestrais, como pude apreciar nas
pesquisas que estou realizando, reconhecem a singularidade irredutível de cada
sujeito, mas descartam a ideia individualista e solipsista do eu ao tempo que
encontram o mais externo no mais íntimo da subjetividade, em extimidade, como diz
Lacan. Talvez não seja tão difícil pensar em uma aliança estratégica entre visões
indígenas como essas e a psicanálise, uma aliança que pode nos servir, por um lado,
para explicar as operações coloniais em seu caráter último, transindividual e singular
em cada sujeito, mas também, por outro lado, questionar uma psicologia dominante
que é perfeitamente funcional no capitalismo global e que só pode ser parte e não
uma solução para o problema colonial.

6. Há um ponto crucial onde vemos como a psicanálise e as psicologias ancestrais


coincidem entre si ao mesmo tempo que diferem da psicologia convencional. Esse
ponto é o reconhecimento do sujeito como sujeito, como sujeito que fala, que sabe de
alguma forma o que lhe está acontecendo, que deve ser escutado no que lhe diz
respeito e que não é algo que possa ser falado e conhecido, resultando irredutível à
condição de objeto de conhecimento e da palavra de qualquer outro. A objetivação do
sujeito inobjetivável, objetivação que o neutraliza como sujeito, é típica da psicologia
dominante, mas também da colonialidade em que esta psicologia objetiva está
inserida. Se começa por objetificar psicologicamente o sujeito, conhecendo-o como
objeto, e se termina dominando-o como tal por meio dos dispositivos políticos do
capitalismo ou do colonialismo. No regime colonial em que ainda vivemos, como
assinalou Quijano, “as culturas não europeias não podem ser nem abrigar sujeitos”,
mas sim “apenas podem ser objetos de saberes e/ou práticas de dominação”[9]. A
resistência contra essa objetivação é um gesto anticolonial e antipsicológico
fundamental para o qual a psicanálise e as concepções indígenas de subjetividade
podem nos servir.

7. Ao permitir-nos resistir simultaneamente contra a objetificação e contra a


generalização universalista, a psicanálise pode também ajudar a desmontar várias
operações da colonialidade que pressupõem essa objetificação e essa generalização. É
o caso das operações que começam objetivando o que é culturalmente diferente para
depois generalizá-lo ao incluí-lo em uma classificação ou hierarquia objetiva
pretendentemente universal. Essas operações coloniais permitem patologizar ou
estigmatizar o diferente, bem como rebaixá-lo, transformando a diferença cultural
entre seres incomensuráveis em uma desigualdade entre o melhor e o pior, entre o
mais alto e o mais baixo. Refutando a falácia da desigualdade, a psicanálise pode nos
ajudar a restabelecer o que Lacan chama de “diferença absoluta”[10], a qual, por si
mesma, já tem implicações políticas igualitárias decisivas como as enfatizadas por
Jorge Alemán em sua proposta de esquerda lacaniana.[11]

8. A psicanálise consequente não está em condições de relativizar o diferente,


reduzindo-o ao desigual, por uma razão simples: porque não fala sobre dele, ela mas
apenas o escuta. Essa escuta já é em si uma subversão do poder colonial europeu
sobre a palavra. Como observou Stuart Hall, a Europa “não para de falar, não para de
falar de nós”, o que implica um “jogo de poder”.[12] O jogo cessa com o silêncio da
psicanálise. Este silêncio interrompe a verborragia europeia e o correlativo
silenciamento colonial do não-europeu. Nós podemos finalmente falar, expressar o
que é articulado por nossas outras culturas, mas também expressar nosso
sofrimento com a colonialidade. Falamos, por exemplo, como Aimé Césaire, de
“medo”, “desespero” e “sentimento de inferioridade”.[13] Confessamos o que nos
paralisa e por isso já estamos elaborando, simbolizando, assimilando, superando. Por
tudo isso, basta que possamos falar, que sejamos ouvidos, como o faz a psicanálise.

9. Na verdade, se a escuta psicanalítica é tão subversiva, é porque ela escuta não


apenas o que temos a falar, mas também o que não podemos falar. Isso é fundamental
em uma situação colonial em que o subalterno, o colonizado, “não pode falar”, como
bem alertou Gayatri Chakravorty Spivak.[14] Incapaz de falar, o colonizado tem muito
a dizer em silêncio. Este silêncio é o de todas as palavras que nos foram tiradas. É o
silêncio em que ressoa constantemente a verborragia europeia. Enquanto servimos
como porta-vozes daquilo que nos colonizou, algo está sendo dito em silêncio. Esse
silêncio pode ser ouvido no campo psicanalítico.
10. A psicanálise já subverte algo da colonialidade prestando atenção em nós, o que
faz não apenas ouvindo o que dizemos em silêncio, mas considerando até mesmo o
que pensamos por meio do que não podemos pensar. Isso também é fundamental em
uma situação colonial em que nossa parte não europeia é inacessível à nossa
autoconsciência irremediavelmente europeia. Como observou Luis Villoro, “na
tentativa de encontrar seu próprio ser, o movimento reflexivo tem patentemente
raízes ocidentais” em “sua linguagem, sua formação e suas ideias”, em “seus métodos
de estudo e pesquisa”, que faz com que os indígenas colonizados não apareçam
“claramente à consciência”, permanecendo “sombrios e escondidos nas profundezas
do eu mestiço”.[15] Mais além da consciência, o indígena é para o mestiço uma
questão do inconsciente. Reivindicar verdadeiramente o inconsciente em um país
colonizado também teria que significar de alguma forma reivindicar o colonizado. Se
não significa isso, talvez seja porque o suposto inconsciente que reivindicamos é tão
somente uma dobra pré-consciente da consciência colonial. Torná-lo consciente é
então desdobrá-lo. Ao contrário, tornar consciente o inconsciente do colonizado nada
mais é do que romper com a consciência colonial. É trair o discurso do Outro que o
sustenta. É delatar o sistema colonial. É talvez o primeiro passo para nos
descolonizarmos.

11. A psicanálise ajuda a dissipar as ilusões com as quais se dissimula a colonialidade.


Várias dessas ilusões são devidas a uma ilusão transcendental que deve desaparecer
no tratamento psicanalítico: a ilusão de um Outro do Outro, a ilusão de um lugar fora
do universo para julgar universalmente qualquer coisa no universo, que é a ilusão do
universalismo europeu subjacente à consciência colonial. Uma das consequências de
tal ilusão é o que Santiago Castro-Gómez chamou de “arrogância do ponto zero”,
entendendo-a como uma arrogante “ignorância da espacialidade” pela qual se
pretende “carecer de lugar de enunciação” e se acredita ter “um ponto de vista sobre
o qual não é possível adotar nenhum ponto de vista”.[16] Essa crença em um Outro do
Outro, em uma metalinguagem fora de qualquer linguagem, é ameaçada pela
psicanálise, que nos remete incessantemente ao nosso ponto de vista, à nossa posição
no discurso do Outro, ao nosso lugar de enunciação como lugar nossa verdade. Não há
lugar aqui nem para o que Walter Mignolo concebe criticamente como “suposta
deslocalização do pensamento europeu”[17] nem para o que Ramón Grosfoguel exclui
na forma de “possibilidade de conhecimento para além do tempo e do espaço”,
conhecimento de um sujeito carente de “todo corpo e território”, sujeito sem
“sexualidade, gênero, etnia, raça, classe, espiritualidade, linguagem ou localização
epistêmica”.[18] Este sujeito da colonialidade é também o da psicologia. É um
fantasma que deve ser percorrido na psicanálise.

12. Ao nos fazer atravessar o fantasma colonial desencarnado e desterritorializado, a


psicanálise nos permite aceder ao sujeito da enunciação, aquele que tem seu território
na linguagem, o mesmo sujeito que sofre a falta de seu corpo despojado, marcado por
uma castração que pode assumir várias formas históricas, incluindo a colonial. O
contexto da colonialidade faz com que a castração constitutiva do sujeito se torne
consistente na “mutilação dos colonizados pelo regime colonial” a que se refere
Fanon”.[19] Esta mutilação reconfigura a nossa castração e a representa como uma
ferida colonial, uma ferida que liga internamente o nosso desejo à colonialidade, à
Europa, como lugar da nossa falta. O resultado é a fantasia de ser um pedaço de um
ser que só podemos conceber como europeu. Temos a fantasia de que, por não ser
totalmente europeus, somos apenas parcialmente o que somos, “não de todo”, como
disse Homi Bhabha.[20] Somos assim não-todos, como qualquer outro sujeito, é
claro, mas com uma incompletude especificamente colonial, dependentes
colonialmente de uma completude universal que nossa fantasia projeta na Europa.
Nossa emancipação dessa dependência do europeu exige o desligamento de nossa
condição colonial da castração que nos constitui e da qual certamente não podemos
nos libertar. Para tanto, o meio psicanalítico pode ser um dos mais eficazes.

13. A eficácia da psicanálise é mudar a relação com o europeu e não nos purificar do
europeu. Em todo caso, essa purificação seria impossível porque também somos o que
nos colonizou. Nossa colonização também foi um processo irreversível de
europeização, alienação, transmutação em outros de quem fomos e ainda somos. O
que resulta, a experiência de ser outro, não é exclusiva de nós. O europeu não é
apenas um, mas também é sempre outro, não europeu. Devemos atender a Cheikh
Anta Diop revelando-nos o negro do egípcio[21], assim como devemos prestar a maior
atenção ao velho Freud quando nos revela o egípcio do judaico-cristão.[22] O que
aprendemos aqui, com Edward Said, é que o outro está inevitavelmente no núcleo do
um.[23] Foi também para tratar essa condição alienada que Freud inventou a
psicanálise. Agora podemos usar sua invenção para enfrentar nossa alienação na
colonialidade, não para curá-la ou remediá-la, mas simplesmente para viver e lidar
com ela, elaborá-la e superá-la, não nos deixando perder, confundir ou sermos
totalmente absorvidos por algumas de suas manifestações. O método psicanalítico
poderia, assim, nos oferecer uma margem de manobra diante dos efeitos alienantes
de nossa condição pós-colonial como os analisados por Stuart Hall, entre eles o de ser
outro no “híbrido”, o de estar em outro lugar no “diaspórico”, o desdobrar-se nas
“inscrições duplas”[24] ou “ver-nos e experimentar-nos como outros” nos regimes
europeus de representação.[25] Talvez possamos até nos reapropriarmos da
alteridade subjacente aos efeitos alienantes por meio de um trabalho psicanalítico de
ressignificação. Conseguiríamos então com a psicanálise o mesmo que já havíamos
conseguido com operações como a que Oswald de Andrade chamou de
“antropofagia”[26] ou a outra que Rodolfo Kusch chamou de “fagocitação”,
entendendo-a como “absorção das coisas boas do Ocidente pelas coisas da América” e
como confirmação de que“ tudo o que é dado em estado puro é falso e deve ser
contaminado pelo seu oposto ”.[27]

14. A contaminação do colonizador pelo colonizado significa que a alienação do sujeito


nunca é total, que o eu nunca é apenas outro, que o mestiço não é apenas europeu, já
que o europeu, como se apresenta no mestiço, está sempre já contaminado pelo
indígena. Em termos lacanianos, o Outro já está sempre barrado, riscado, porque é
também uno e por isso mesmo nenhum. E ainda assim aparece como Outro. O sujeito
não deixa de existir com respeito à alteridade alienando-se nela. Sua alienação
também é uma divisão. É por estar dividido que o sujeito sofre de estar alienado, mas
é também por sua divisão que ele resiste à sua alienação, existindo a respeito do Outro
em que está alienado. Essa situação de existência e resistência, sistematicamente
reprimida pela modernidade europeia, retorna sintomaticamente na psicanálise, que,
ao contrário da psicologia dominante, pode ajudar o sujeito a se reconhecer e se
assumir como sujeito dividido que existe e resiste contra a mesma alteridade que o
habita. O mestiço pode assim encontrar na psicanálise respaldo para afirmar e
reafirmar sua estrutura de borda, sua condição identitária, não sintética ou unitária,
mas dupla, tão indígena quanto europeu, como um como outro, dividido e dilacerado,
“cindido” em seu ” próprio espírito”, disse Villoro[28]. Jairo Gallo nos mostrou em uma
conversa informal que essa dupla condição, da qual somos baluartes nos quais os
indígenas continuam existindo e resistindo, pode ser caracterizada de forma
insuperável com o conceito aimará de Ch’ixi recuperado por Silvia Rivera Cusicanqui
para descrever a “coexistência em paralelo” de culturas que “não se fundem, mas se
antagonizam ou se complementam”.[29]

15. É claro que a cultura indígena não existe mais em seu estado puro na população
mestiça e nem mesmo na maioria dos povos originários. Nossa subjetividade pós-
colonial perdeu para sempre sua identidade pré-colonial e o melhor que pode fazer
agora é consumar seu luto, seguindo assim o conselho de Stuart Hall de evitar o
“conluio” com as potências coloniais que nos “congelam” em um “passado primitivo,
imutável ”.[30] Sem embargo, iluminado pela psicanálise, nosso luto pode nos revelar
dois aspectos do perdido: sua eternidade sob uma forma simbólica inconsciente de
nosso ser e sua presença e transformação incessantes em uma lógica retroativa. Esses
dois aspectos nos fazem nunca deixar de ser, não os índios que éramos na origem
desconhecida, mas os que teremos sido conforme o que somos agora e de acordo com
nosso interesse político atual, como acontece no famoso “uso estratégico do
essencialismo” proposto por Spivak.[31]

16. Na realidade, o indígena que teremos sido não deveria ser decidido apenas pelo
nosso interesse político, mas também e sobretudo pela política do nosso desejo, que é
também o da psicanálise. Precisamos da abordagem psicanalítica para dar lugar àquele
desejo inconsciente que é irredutível a qualquer interesse e que representa a principal
forma como o excluído aparece em um sistema de exclusão como o colonial. Nas
regiões colonizadas, como já observou Martín-Baró, não podemos adotar uma
abordagem positivista que “não reconhece nada além daquilo que é dado”, ignorando
“o que a realidade existente nega, ou seja, o que não existe mas que seria
historicamente possível, se outras condições fossem atendidas”[32]. Esse possível e
negado, com uma existência puramente negativa, é o que se manifesta no desejo que
ouvimos na psicanálise. É algo ainda pendente e futuro, mas também passado, que
insiste desde o ponto mais remoto da nossa história, desde o pré-colonial, tão eterno
como tudo no inconsciente.

17. Nosso desejo é traído pelo Eu, o que não deveria nos surpreender, considerando
que o Eu sempre foi um instrumento de repressão, dominação e colonização. Dussel
deve ser levado a sério ao revelar o “ego conquistado”, o eu conquistado da civilização
europeia, dentro do “ego cogito”, o “penso, logo existo” em que a própria civilização
foi encerrada. Como Ramón Grosfoguel muito bem explicou, o “solipsismo” do eu
isolado está no centro do mito do europeu autogerado na “racionalidade universal que
se confirma como tal”.[33] O universalismo europeu é inseparável do narcisismo do Eu
que é questionado na psicanálise. O questionamento psicanalítico do narcisismo pode
servir para tornar transparente o espelho europeu de nossa identidade colonial, quiça
desaparecendo não apenas o outro especular de nosso eu, o indivíduo isolado com seu
egoísmo e solipsismo, mas também o universalismo e o imperialismo como expressões
coletivas da mesma individualidade solipsista e egoísta.

18. Liberando nossa palavra, a palavra em que duvidamos de nosso Eu e de tudo o que
ele se imagina com absoluta certeza, a psicanálise está sitiando e ameaçando o mais
poderoso bastião da colonialidade no sujeito. A identidade, a certeza de ser idêntico a
si mesmo, constitui a garantia última do europeu com o qual nos identificamos. Ao
permitir a desidentificação, o método psicanalítico já está minando a colonialidade no
sujeito. Também o está minando ao permitir que nos separemos de nosso ser, que nos
desatemos dele, que existamos com respeito ao que a colonialidade nos destinou a
ser. Ao nos desvencilharmos dessa maneira de nossa essência e de nossa identidade,
talvez já estejamos efetivamente nos libertando da opressão colonial com a ajuda da
psicanálise. Talvez, em última análise, como sugeriu Thamy Ayouch, o método
psicanalítico já esteja nos descolonizando ao contribuir para nossa desidentificação e
desessencialização.[34]

[1] Aníbal Quijano, Colonialidad y Modernidad/Racionalidad, Perú Indígena 13 (29)


(1992), p. 20
[2] Bronislaw Malinowski, La sexualité et sa répression dans les sociétés
primitives (1932), París, Payot, 2016.
[3] Jacques Lacan, Les complexes familiaux dans la formation de l’individu (1938),
em Autres écrits, París, Seuil, 2001.
[4] Jacques Derrida, Géopsychanalyse and the rest of the world (1981), em Psyché.
Inventions de l’autre (1987), París, Galilée, 1998, p. 328.
[5] Ignacio Martín-Baró, I. (1974). Concientización y currículos universitarios.
Em Psicología de la liberación (pp. 131-160). Madrid: Trotta, 1998, p. 135
[6] Frantz Fanon, Peau noire, masques blancs, Paris, Seuil, 1952, p. 8
[7] Ibid., p. 75
[8] Aníbal Quijano, Colonialidad y Modernidad/Racionalidad, Perú Indígena 13 (29)
(1992), p. 12
[9] Ibid., p. 16.
[10] Jacques Lacan, Le Séminaire, livre XI, Les quatre concepts fondamentaux de la
psychanalyse, Paris, Seuil (poche), 1990, p. 307
[11] Jorge Alemán, Conjeturas sobre una izquierda lacaniana, Buenos Aires, Grama,
2013.
[12] Stuart Hall, Cultural Identity and Diaspora. En Jonathan Rutherford (Ed.), Identity:
Community, Culture, Difference (pp. 222-237). Londres: Lawrence & Wishart, 1990, p.
232
[13] Aimé Césaire, Discours sur le colonialisme (1955), París, Présence Africaine, 2004,
p. 24.
[14] Gayatri Chakravorty Spivak, G. C. (1988). Can the subaltern speak? (1988) En P.
Williams & L. Chrisman (eds.), Colonial Discourse and Postcolonial Theory (pp. 66-107).
Nueva York: Columbia University Press, 1994, p. 104
[15] Luis Villoro, Los grandes momentos del indigenismo en México (1950). Ciudad de
México: FCE, 2005.273
[16] Santiago Castro-Gómez, La hybris del punto cero : ciencia, raza e ilustración en la
Nueva Granada (1750-1816), Bogotá, Pontificia Universidad Javeriana, 2005, pp. 18-19
[17] Walter Mignolo, El pensamiento decolonial: desprendimiento y apertura. En S.
Castro-Gómez y R. Grosfoguel (Eds), El giro decolonial. Reflexiones para una diversidad
epistémica más allá del capitalismo global (pp. 25-46). Bogotá, Siglo del Hombre, 2007,
p. 33
[18] Ramón Grosfoguel, Descolonizando los universalismos occidentales: el pluri-
versalismo transmoderno decolonial desde Aimé Césaire hasta los zapatistas. En S.
Castro-Gómez y R. Grosfoguel (Eds), El giro decolonial. Reflexiones para una diversidad
epistémica más allá del capitalismo global (pp. 63-77). Bogotá: Siglo del Hombre, 2007,
pp. 63-64.
[19] Frantz Fanon, Les damnés de la terre (1961), París, La Découverte, 2002, p. 146.
[20] Homi Bhabha, Of Mimicry and Man: The Ambivalence of Colonial Discourse.
October 28 (1984), p. 126.
[21] Cheikh Anta Diop, Nations nègres et culture (1955), París, Présence africaine,
2007.
[22] Sigmund Freud, Moisés y la religión monoteísta (1939). Obras completas XXIII,
Buenos Aires, Amorrortu, 1998.
[23] Edward Said, Freud and the Non-European (2002), London and New York, Verso,
2003.
[24] Stuart Hall, ¿Cuándo fue lo postcolonial? Pensar el límite. En S. Mezzadra (comp.),
Estudios postcoloniales. Ensayos fundamentales (pp. 121-144). Madrid: Traficantes de
Sueños, 2008, p. 134
[25] Stuart Hall, Cultural Identity and Diaspora. En Jonathan Rutherford (Ed.), Identity:
Community, Culture, Difference (pp. 222-237). Londres: Lawrence & Wishart, 1990, p.
225.
[26] Oswald de Andrade, Manifiesto Antropófago (1928), en J. Schwartz (comp.), Las
vanguardias latino-americanas (pp. 171-180), Ciudad de México, FCE, 2006.
[27] Rodolfo Kusch, América profunda (1962), em Obras Completas Tomo II (pp. 1-
254). Buenos Aires: Fundación Ross, p. 19
[28] Luis Villoro, Los grandes momentos del indigenismo en México (1950). Ciudad de
México: FCE, 2005. 272-273
[29] Silvia Rivera Cusicanqui, Hambre de huelga y otros textos. Querétaro: La Mirada
Salvaje, 2014, p. 76
[30] Stuart Hall, Cultural Identity and Diaspora, Op. Cit., p. 231
[31] Gayatri Chakravorty Spivak, Estudios de la subalternidad (1985). En S. Mezzadra
(comp.), Estudios postcoloniales. Ensayos fundamentales (pp. 33-68). Madrid,
Traficantes de Sueños, 2008, p. 45
[32] Ignacio Martín-Baró, Hacia una psicología de la liberación (1986). En Psicología de
la liberación (pp. 283–302). Madrid: Trotta, 1998, pp. 289-290.
[33] Ramón Grosfoguel, Descolonizando los universalismos occidentales: el pluri-
versalismo transmoderno decolonial desde Aimé Césaire hasta los zapatistas. Op. Cit.,
pp. 63-64.
[34] Thamy Ayouch, Psychanalyse et hybridité: Genre, colonialité, subjectivations,
Lovaina, Leuven University Press, 2018.
 David Pávon-Cuellar participou da coletânea Contribuições Psicanalíticas
a uma Políticas dos afetos, lançada pela Editora LavraPalavra e
disponível aqui

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