LavraPalavra
novembro 23, 2020
https://lavrapalavra.com/2020/11/23/a-psicanalise-em-face-da-colonialidade-18-
possiveis-usos-anticoloniais-da-herenca-freudiana/
Meu propósito hoje é refletir sobre a forma como a psicanálise pode ser usada em face
da colonialidade moderna, sendo usada de forma crítica, insubordinada e subversiva.
Minha reflexão me fará discernir dezoito possíveis usos anticoloniais da herança
freudiana em um contexto pós-colonial ou neo-colonial como o da América Latina.
Descrevo esses usos como “anticoloniais” porque se opõem à colonialidade, porque
estabelecem uma relação antagônica com ela, porque aspiram de alguma forma a uma
certa descolonização, o que não significa necessariamente que a realizem e nem
mesmo que possam se livrar das estruturas coloniais em que estão inseridos. Por isso,
fala de usos anticoloniais e não descoloniais ou descolonizantes.
O agente dos usos anticoloniais da herança freudiana será, em cada caso, alguém a
quem designarei com o enigmático pronome “nós”. Por este “nós”, quero dizer nós
latino-americanos, asiáticos e africanos, os habitantes das chamadas “periferias”, os
descendentes diretos do colonialismo europeu e do imperialismo norte-americano, os
despojados dos impérios, os eternamente desatualizados em relação à modernidade,
os inevitavelmente europeizados e não europeus. Somos os sujeitos pós-coloniais,
híbridos, mestiços, não necessariamente da mestiçagem racial ou étnica, mas da
mestiçagem cultural, ideológica e simbólica em que está gestada nossa subjetividade.
Alguém como Žižek nunca poderia entender por que diabos queremos usar a
psicanálise contra a colonialismo moderno. Tal uso lhe pareceria estranho, talvez
absurdo, aberrante. De fato, há uma certa aberração em empregar de forma
anticolonial algo tão moderno e europeu quanto o que Freud nos deixou. Comecemos
com isso abordando agora, um por um, os possíveis usos anticoloniais da herança
freudiana.
3. Além de nos servir para mostrar nossas diferenças quanto às razões impostas pela
Europa, a psicanálise pode nos ajudar a lembrar a história dessas diferenças e da
imposição violenta do europeu. É preciso entender que a colonialidade é história e
que, por isso, não pode ser tratada adequadamente por abordagens a-históricas,
amnésicas e presentistas, como as da psicologia dominante. Em vez disso, o que é
colonial requer uma abordagem como a da psicanálise: uma abordagem totalmente
histórica que busca recordar a violência com a qual fomos constituídos. Como disse
Ignacio Martín-Baró, “precisamos de memória, uma memória histórica clarividente,
para perceber tudo o que bloqueou, oprimiu e esmagou o nosso povo”.[5] Essa
memória da colonialidade, indispensável em todo combate anticolonial, é outra coisa
que podemos cultivar por meio da psicanálise.
5. O uso da psicanálise para explicar as operações coloniais não exclui o uso de outras
interpretações da subjetividade, entre elas as dos povos originários, que, me atrevo a
dizer, são às vezes profundamente compatíveis com as interpretações psicanalíticas.
Como a psicanálise, as psicologias mesoamericanas ancestrais, como pude apreciar nas
pesquisas que estou realizando, reconhecem a singularidade irredutível de cada
sujeito, mas descartam a ideia individualista e solipsista do eu ao tempo que
encontram o mais externo no mais íntimo da subjetividade, em extimidade, como diz
Lacan. Talvez não seja tão difícil pensar em uma aliança estratégica entre visões
indígenas como essas e a psicanálise, uma aliança que pode nos servir, por um lado,
para explicar as operações coloniais em seu caráter último, transindividual e singular
em cada sujeito, mas também, por outro lado, questionar uma psicologia dominante
que é perfeitamente funcional no capitalismo global e que só pode ser parte e não
uma solução para o problema colonial.
13. A eficácia da psicanálise é mudar a relação com o europeu e não nos purificar do
europeu. Em todo caso, essa purificação seria impossível porque também somos o que
nos colonizou. Nossa colonização também foi um processo irreversível de
europeização, alienação, transmutação em outros de quem fomos e ainda somos. O
que resulta, a experiência de ser outro, não é exclusiva de nós. O europeu não é
apenas um, mas também é sempre outro, não europeu. Devemos atender a Cheikh
Anta Diop revelando-nos o negro do egípcio[21], assim como devemos prestar a maior
atenção ao velho Freud quando nos revela o egípcio do judaico-cristão.[22] O que
aprendemos aqui, com Edward Said, é que o outro está inevitavelmente no núcleo do
um.[23] Foi também para tratar essa condição alienada que Freud inventou a
psicanálise. Agora podemos usar sua invenção para enfrentar nossa alienação na
colonialidade, não para curá-la ou remediá-la, mas simplesmente para viver e lidar
com ela, elaborá-la e superá-la, não nos deixando perder, confundir ou sermos
totalmente absorvidos por algumas de suas manifestações. O método psicanalítico
poderia, assim, nos oferecer uma margem de manobra diante dos efeitos alienantes
de nossa condição pós-colonial como os analisados por Stuart Hall, entre eles o de ser
outro no “híbrido”, o de estar em outro lugar no “diaspórico”, o desdobrar-se nas
“inscrições duplas”[24] ou “ver-nos e experimentar-nos como outros” nos regimes
europeus de representação.[25] Talvez possamos até nos reapropriarmos da
alteridade subjacente aos efeitos alienantes por meio de um trabalho psicanalítico de
ressignificação. Conseguiríamos então com a psicanálise o mesmo que já havíamos
conseguido com operações como a que Oswald de Andrade chamou de
“antropofagia”[26] ou a outra que Rodolfo Kusch chamou de “fagocitação”,
entendendo-a como “absorção das coisas boas do Ocidente pelas coisas da América” e
como confirmação de que“ tudo o que é dado em estado puro é falso e deve ser
contaminado pelo seu oposto ”.[27]
15. É claro que a cultura indígena não existe mais em seu estado puro na população
mestiça e nem mesmo na maioria dos povos originários. Nossa subjetividade pós-
colonial perdeu para sempre sua identidade pré-colonial e o melhor que pode fazer
agora é consumar seu luto, seguindo assim o conselho de Stuart Hall de evitar o
“conluio” com as potências coloniais que nos “congelam” em um “passado primitivo,
imutável ”.[30] Sem embargo, iluminado pela psicanálise, nosso luto pode nos revelar
dois aspectos do perdido: sua eternidade sob uma forma simbólica inconsciente de
nosso ser e sua presença e transformação incessantes em uma lógica retroativa. Esses
dois aspectos nos fazem nunca deixar de ser, não os índios que éramos na origem
desconhecida, mas os que teremos sido conforme o que somos agora e de acordo com
nosso interesse político atual, como acontece no famoso “uso estratégico do
essencialismo” proposto por Spivak.[31]
16. Na realidade, o indígena que teremos sido não deveria ser decidido apenas pelo
nosso interesse político, mas também e sobretudo pela política do nosso desejo, que é
também o da psicanálise. Precisamos da abordagem psicanalítica para dar lugar àquele
desejo inconsciente que é irredutível a qualquer interesse e que representa a principal
forma como o excluído aparece em um sistema de exclusão como o colonial. Nas
regiões colonizadas, como já observou Martín-Baró, não podemos adotar uma
abordagem positivista que “não reconhece nada além daquilo que é dado”, ignorando
“o que a realidade existente nega, ou seja, o que não existe mas que seria
historicamente possível, se outras condições fossem atendidas”[32]. Esse possível e
negado, com uma existência puramente negativa, é o que se manifesta no desejo que
ouvimos na psicanálise. É algo ainda pendente e futuro, mas também passado, que
insiste desde o ponto mais remoto da nossa história, desde o pré-colonial, tão eterno
como tudo no inconsciente.
17. Nosso desejo é traído pelo Eu, o que não deveria nos surpreender, considerando
que o Eu sempre foi um instrumento de repressão, dominação e colonização. Dussel
deve ser levado a sério ao revelar o “ego conquistado”, o eu conquistado da civilização
europeia, dentro do “ego cogito”, o “penso, logo existo” em que a própria civilização
foi encerrada. Como Ramón Grosfoguel muito bem explicou, o “solipsismo” do eu
isolado está no centro do mito do europeu autogerado na “racionalidade universal que
se confirma como tal”.[33] O universalismo europeu é inseparável do narcisismo do Eu
que é questionado na psicanálise. O questionamento psicanalítico do narcisismo pode
servir para tornar transparente o espelho europeu de nossa identidade colonial, quiça
desaparecendo não apenas o outro especular de nosso eu, o indivíduo isolado com seu
egoísmo e solipsismo, mas também o universalismo e o imperialismo como expressões
coletivas da mesma individualidade solipsista e egoísta.
18. Liberando nossa palavra, a palavra em que duvidamos de nosso Eu e de tudo o que
ele se imagina com absoluta certeza, a psicanálise está sitiando e ameaçando o mais
poderoso bastião da colonialidade no sujeito. A identidade, a certeza de ser idêntico a
si mesmo, constitui a garantia última do europeu com o qual nos identificamos. Ao
permitir a desidentificação, o método psicanalítico já está minando a colonialidade no
sujeito. Também o está minando ao permitir que nos separemos de nosso ser, que nos
desatemos dele, que existamos com respeito ao que a colonialidade nos destinou a
ser. Ao nos desvencilharmos dessa maneira de nossa essência e de nossa identidade,
talvez já estejamos efetivamente nos libertando da opressão colonial com a ajuda da
psicanálise. Talvez, em última análise, como sugeriu Thamy Ayouch, o método
psicanalítico já esteja nos descolonizando ao contribuir para nossa desidentificação e
desessencialização.[34]