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David Pavón-Cuéllar – fichamento 1

Intervenção na Segunda Mesa, Racismo e Colonialismo como Sofrimento


Sociopolítico. O que pode a psicanálise?, no Seminário da Rede Interamericana
de Pesquisa em Psicologia e Política (REDIPPOL), na quarta-feira, 16 de
setembro de 2020. A sessão foi coordenada por Priscila Santos e realizada
remotamente no site da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade do
Chile. Além do autor, participaram Deivison Faustino e José Miguel Bairrão,
ambos do Brasil.

No ano passado meditei muito no funcionamento colonial da herança freudiana


na América Latina. Eu me perguntei se nós, latino-americanos, deveríamos tentar
descolonizar a psicanálise, ou se seria melhor simplesmente nos livrar dela, ou
seja, nos descolonizar dela. Eu estava inclinado para o primeiro, para preservar o
que Freud nos legou, mas fazendo todo o possível para descolonizá-lo e até
mesmo utilizá-lo como instrumento para uma certa descolonização de nossas
vidas. Esse uso é exatamente o que eu gostaria de considerar agora.

Meu propósito hoje é refletir sobre a forma como a psicanálise pode ser usada em
face da colonialidade moderna, sendo usada de forma crítica, insubordinada e
subversiva. Minha reflexão me fará discernir dezoito possíveis usos anticoloniais
da herança freudiana em um contexto pós-colonial ou neo-colonial como o da
América Latina. Descrevo esses usos como “anticoloniais” porque se opõem à
colonialidade, porque estabelecem uma relação antagônica com ela, porque
aspiram de alguma forma a uma certa descolonização, o que não significa
necessariamente que a realizem e nem mesmo que possam se livrar das estruturas
coloniais em que estão inseridos. Por isso, fala de usos anticoloniais e não
descoloniais ou descolonizantes.

O agente dos usos anticoloniais da herança freudiana será, em cada caso, alguém
a quem designarei com o enigmático pronome “nós”. Por este “nós”, quero dizer
nós latino-americanos, asiáticos e africanos, os habitantes das chamadas
“periferias”, os descendentes diretos do colonialismo europeu e do imperialismo
norte-americano, os despojados dos impérios, os eternamente desatualizados em
relação à modernidade, os inevitavelmente europeizados e não europeus. Somos
os sujeitos pós-coloniais, híbridos, mestiços, não necessariamente da mestiçagem
racial ou étnica, mas da mestiçagem cultural, ideológica e simbólica em que está
gestada nossa subjetividade.

Somos nós, produtos da colonialidade moderna, que podemos realizar os usos


anticoloniais da psicanálise aos quais me referirei agora. Note que estou apenas
concebendo o colonial como algo a que devemos nos opor, o que é, para mim,
fora de qualquer debate, uma posição política pessoal. Minha oposição à
colonialidade moderna e ao capitalismo do qual faz parte me confronta
logicamente com aqueles que buscam reabilitar e revalorizar o colonialismo,
especialmente na direita e na extrema direita do espectro político, embora às
vezes também na esquerda como a do filósofo esloveno Slavoj Žižek , a que me
refiro agora por sua proximidade com o campo psicanalítico.

Alguém como Žižek nunca poderia entender por que diabos queremos usar a
psicanálise contra a colonialismo moderno. Tal uso lhe pareceria estranho, talvez
absurdo, aberrante. De fato, há uma certa aberração em empregar de forma
anticolonial algo tão moderno e europeu quanto o que Freud nos deixou.
Comecemos com isso abordando agora, um por um, os possíveis usos
anticoloniais da herança freudiana.

1. É verdade que a psicanálise faz parte de uma modernidade europeia


inseparável da colonialidade. Porém, nessa modernidade, a descoberta freudiana
aparece como crise, ruptura, fracasso ou fenda. É uma fenda no mundo colonial
moderno, uma fenda em que há lugar para nós, não europeus, em que podemos
nos alojar e talvez assim alargar a fenda, aprofundar a crise daquilo que nos
colonizou. A crise da modernidade colonial pode logicamente se aprofundar por
meio de um espaço, como o da psicanálise, em que se revela o que a Escola de
Frankfurt conceituou como a irracionalidade inerente à racionalidade europeia
moderna.

2. Entre os aspectos irracionais da racionalidade europeia moderna, um


fundamental é a alegação infundada de universalidade. Essa afirmação é
contestada pela casuística freudiana e por sua demonstração do caráter não
universalizável das razões que regem a existência de cada sujeito. Cada histérica
de Freud tem suas razões, as razões de seu desejo, que desafiam a suposta
racionalidade universal da modernidade europeia. Se essa racionalidade é traída
como irracional por aspirar à dominar a existência das mulheres do Império
Austro-Húngaro, é muito mais irracional em sua pretensão de se aplicar a todo o
mundo, a mulheres e homens na África, Ásia e América Latina. “Nada menos
racional”, como diz Aníbal Quijano, do que “a afirmação de que a visão de
mundo específica de uma determinada etnia se impõe como racionalidade
universal, ainda que tal etnia seja a Europa Ocidental”[1]. O caráter irracional
desse universalismo colonial fica evidente quando a psicanálise permite que o
sujeito fale de tudo o que é singular e particular, de si mesmo e de sua cultura, o
que difere dos imperativos da pretensa universalidade europeia moderna. O que
descobrimos então, espantados, é que o sujeito chega a refutar a suposta
universalidade de algo tão europeu quanto a metapsicologia freudiana,
concordando assim com Malinowski[2] e Lacan[3] ao pôr fim ao que podemos
chamar com Derrida de “colonização psicanalítica”[4]. A própria psicanálise
pode servir, então, para nos descolonizar da racionalidade europeia da teoria
freudiana.

3. Além de nos servir para mostrar nossas diferenças quanto às razões impostas
pela Europa, a psicanálise pode nos ajudar a lembrar a história dessas diferenças
e da imposição violenta do europeu. É preciso entender que a colonialidade é
história e que, por isso, não pode ser tratada adequadamente por abordagens a-
históricas, amnésicas e presentistas, como as da psicologia dominante. Em vez
disso, o que é colonial requer uma abordagem como a da psicanálise: uma
abordagem totalmente histórica que busca recordar a violência com a qual fomos
constituídos. Como disse Ignacio Martín-Baró, “precisamos de memória, uma
memória histórica clarividente, para perceber tudo o que bloqueou, oprimiu e
esmagou o nosso povo”.[5] Essa memória da colonialidade, indispensável em
todo combate anticolonial, é outra coisa que podemos cultivar por meio da
psicanálise.

4. A abordagem psicanalítica nos ajuda não apenas a lembrar a colonialidade,


mas a explicar a maneira como ela atuou sobre o sujeito, constituindo-o ao
danificá-lo. Nossa subjetividade colonial danificada é o produto de complexas
operações relacionais inconscientes do tipo tradicionalmente estudado pela
psicanálise. É o caso da operação descrita por Frantz Fanon como
“internalização” ou “epidermização da inferioridade”[6], como “inferiorização”
do correlativo não europeu da “superiorização” européia[7]. É também o caso da
europeização como “aspiração” em Quijano, ou seja, do “colonialismo interior”
em substituição do “exterior”, a “sedução” que vem depois da “repressão”[8].
Talvez tudo isso não pudesse ter sido pensado sem a sensibilidade freudiana que
permeia o pensamento crítico atual no subsolo, incluindo o pós-colonial, o
decolonial e o anticolonial. O que é certo é que a crítica da colonialidade pode
tirar proveito da psicanálise para explicar muitas das operações coloniais mais
insidiosas, sutis e subterrâneas.

5. O uso da psicanálise para explicar as operações coloniais não exclui o uso de


outras interpretações da subjetividade, entre elas as dos povos originários, que,
me atrevo a dizer, são às vezes profundamente compatíveis com as interpretações
psicanalíticas. Como a psicanálise, as psicologias mesoamericanas ancestrais,
como pude apreciar nas pesquisas que estou realizando, reconhecem a
singularidade irredutível de cada sujeito, mas descartam a ideia individualista e
solipsista do eu ao tempo que encontram o mais externo no mais íntimo da
subjetividade, em extimidade, como diz Lacan. Talvez não seja tão difícil pensar
em uma aliança estratégica entre visões indígenas como essas e a psicanálise,
uma aliança que pode nos servir, por um lado, para explicar as operações
coloniais em seu caráter último, transindividual e singular em cada sujeito, mas
também, por outro lado, questionar uma psicologia dominante que é
perfeitamente funcional no capitalismo global e que só pode ser parte e não uma
solução para o problema colonial.

6. Há um ponto crucial onde vemos como a psicanálise e as psicologias


ancestrais coincidem entre si ao mesmo tempo que diferem da psicologia
convencional. Esse ponto é o reconhecimento do sujeito como sujeito, como
sujeito que fala, que sabe de alguma forma o que lhe está acontecendo, que deve
ser escutado no que lhe diz respeito e que não é algo que possa ser falado e
conhecido, resultando irredutível à condição de objeto de conhecimento e da
palavra de qualquer outro. A objetivação do sujeito inobjetivável, objetivação
que o neutraliza como sujeito, é típica da psicologia dominante, mas também da
colonialidade em que esta psicologia objetiva está inserida. Se começa por
objetificar psicologicamente o sujeito, conhecendo-o como objeto, e se termina
dominando-o como tal por meio dos dispositivos políticos do capitalismo ou do
colonialismo. No regime colonial em que ainda vivemos, como assinalou
Quijano, “as culturas não europeias não podem ser nem abrigar sujeitos”, mas
sim “apenas podem ser objetos de saberes e/ou práticas de dominação”[9]. A
resistência contra essa objetivação é um gesto anticolonial e antipsicológico
fundamental para o qual a psicanálise e as concepções indígenas de subjetividade
podem nos servir.

7. Ao permitir-nos resistir simultaneamente contra a objetificação e contra a


generalização universalista, a psicanálise pode também ajudar a desmontar várias
operações da colonialidade que pressupõem essa objetificação e essa
generalização. É o caso das operações que começam objetivando o que é
culturalmente diferente para depois generalizá-lo ao incluí-lo em uma
classificação ou hierarquia objetiva pretendentemente universal. Essas operações
coloniais permitem patologizar ou estigmatizar o diferente, bem como rebaixá-lo,
transformando a diferença cultural entre seres incomensuráveis em uma
desigualdade entre o melhor e o pior, entre o mais alto e o mais baixo. Refutando
a falácia da desigualdade, a psicanálise pode nos ajudar a restabelecer o que
Lacan chama de “diferença absoluta”[10], a qual, por si mesma, já tem
implicações políticas igualitárias decisivas como as enfatizadas por Jorge
Alemán em sua proposta de esquerda lacaniana.[11]
8. A psicanálise consequente não está em condições de relativizar o diferente,
reduzindo-o ao desigual, por uma razão simples: porque não fala sobre dele, ela
mas apenas o escuta. Essa escuta já é em si uma subversão do poder colonial
europeu sobre a palavra. Como observou Stuart Hall, a Europa “não para de falar,
não para de falar de nós”, o que implica um “jogo de poder”.[12] O jogo cessa
com o silêncio da psicanálise. Este silêncio interrompe a verborragia europeia e o
correlativo silenciamento colonial do não-europeu. Nós podemos finalmente
falar, expressar o que é articulado por nossas outras culturas, mas também
expressar nosso sofrimento com a colonialidade. Falamos, por exemplo, como
Aimé Césaire, de “medo”, “desespero” e “sentimento de inferioridade”.
[13] Confessamos o que nos paralisa e por isso já estamos elaborando,
simbolizando, assimilando, superando. Por tudo isso, basta que possamos falar,
que sejamos ouvidos, como o faz a psicanálise.

9. Na verdade, se a escuta psicanalítica é tão subversiva, é porque ela escuta não


apenas o que temos a falar, mas também o que não podemos falar. Isso é
fundamental em uma situação colonial em que o subalterno, o colonizado, “não
pode falar”, como bem alertou Gayatri Chakravorty Spivak.[14] Incapaz de falar,
o colonizado tem muito a dizer em silêncio. Este silêncio é o de todas as palavras
que nos foram tiradas. É o silêncio em que ressoa constantemente a verborragia
europeia. Enquanto servimos como porta-vozes daquilo que nos colonizou, algo
está sendo dito em silêncio. Esse silêncio pode ser ouvido no campo
psicanalítico.

10. A psicanálise já subverte algo da colonialidade prestando atenção em nós, o


que faz não apenas ouvindo o que dizemos em silêncio, mas considerando até
mesmo o que pensamos por meio do que não podemos pensar. Isso também é
fundamental em uma situação colonial em que nossa parte não europeia é
inacessível à nossa autoconsciência irremediavelmente europeia. Como observou
Luis Villoro, “na tentativa de encontrar seu próprio ser, o movimento reflexivo
tem patentemente raízes ocidentais” em “sua linguagem, sua formação e suas
ideias”, em “seus métodos de estudo e pesquisa”, que faz com que os indígenas
colonizados não apareçam “claramente à consciência”, permanecendo “sombrios
e escondidos nas profundezas do eu mestiço”.[15] Mais além da consciência, o
indígena é para o mestiço uma questão do inconsciente. Reivindicar
verdadeiramente o inconsciente em um país colonizado também teria que
significar de alguma forma reivindicar o colonizado. Se não significa isso, talvez
seja porque o suposto inconsciente que reivindicamos é tão somente uma dobra
pré-consciente da consciência colonial. Torná-lo consciente é então desdobrá-lo.
Ao contrário, tornar consciente o inconsciente do colonizado nada mais é do que
romper com a consciência colonial. É trair o discurso do Outro que o sustenta. É
delatar o sistema colonial. É talvez o primeiro passo para nos descolonizarmos.

11. A psicanálise ajuda a dissipar as ilusões com as quais se dissimula a


colonialidade. Várias dessas ilusões são devidas a uma ilusão transcendental que
deve desaparecer no tratamento psicanalítico: a ilusão de um Outro do Outro, a
ilusão de um lugar fora do universo para julgar universalmente qualquer coisa no
universo, que é a ilusão do universalismo europeu subjacente à consciência
colonial. Uma das consequências de tal ilusão é o que Santiago Castro-Gómez
chamou de “arrogância do ponto zero”, entendendo-a como uma arrogante
“ignorância da espacialidade” pela qual se pretende “carecer de lugar de
enunciação” e se acredita ter “um ponto de vista sobre o qual não é possível
adotar nenhum ponto de vista”.[16] Essa crença em um Outro do Outro, em uma
metalinguagem fora de qualquer linguagem, é ameaçada pela psicanálise, que nos
remete incessantemente ao nosso ponto de vista, à nossa posição no discurso do
Outro, ao nosso lugar de enunciação como lugar nossa verdade. Não há lugar
aqui nem para o que Walter Mignolo concebe criticamente como “suposta
deslocalização do pensamento europeu”[17] nem para o que Ramón Grosfoguel
exclui na forma de “possibilidade de conhecimento para além do tempo e do
espaço”, conhecimento de um sujeito carente de “todo corpo e território”, sujeito
sem “sexualidade, gênero, etnia, raça, classe, espiritualidade, linguagem ou
localização epistêmica”.[18] Este sujeito da colonialidade é também o da
psicologia. É um fantasma que deve ser percorrido na psicanálise.

12. Ao nos fazer atravessar o fantasma colonial desencarnado e


desterritorializado, a psicanálise nos permite aceder ao sujeito da enunciação,
aquele que tem seu território na linguagem, o mesmo sujeito que sofre a falta de
seu corpo despojado, marcado por uma castração que pode assumir várias formas
históricas, incluindo a colonial. O contexto da colonialidade faz com que a
castração constitutiva do sujeito se torne consistente na “mutilação dos
colonizados pelo regime colonial” a que se refere Fanon”.[19] Esta mutilação
reconfigura a nossa castração e a representa como uma ferida colonial, uma
ferida que liga internamente o nosso desejo à colonialidade, à Europa, como
lugar da nossa falta. O resultado é a fantasia de ser um pedaço de um ser que só
podemos conceber como europeu. Temos a fantasia de que, por não ser
totalmente europeus, somos apenas parcialmente o que somos, “não de todo”,
como disse Homi Bhabha.[20] Somos assim não-todos, como qualquer outro
sujeito, é claro, mas com uma incompletude especificamente colonial,
dependentes colonialmente de uma completude universal que nossa fantasia
projeta na Europa. Nossa emancipação dessa dependência do europeu exige o
desligamento de nossa condição colonial da castração que nos constitui e da qual
certamente não podemos nos libertar. Para tanto, o meio psicanalítico pode ser
um dos mais eficazes.

13. A eficácia da psicanálise é mudar a relação com o europeu e não nos purificar
do europeu. Em todo caso, essa purificação seria impossível porque também
somos o que nos colonizou. Nossa colonização também foi um processo
irreversível de europeização, alienação, transmutação em outros de quem fomos e
ainda somos. O que resulta, a experiência de ser outro, não é exclusiva de nós. O
europeu não é apenas um, mas também é sempre outro, não europeu. Devemos
atender a Cheikh Anta Diop revelando-nos o negro do egípcio[21], assim como
devemos prestar a maior atenção ao velho Freud quando nos revela o egípcio do
judaico-cristão.[22] O que aprendemos aqui, com Edward Said, é que o outro
está inevitavelmente no núcleo do um.[23] Foi também para tratar essa condição
alienada que Freud inventou a psicanálise. Agora podemos usar sua invenção
para enfrentar nossa alienação na colonialidade, não para curá-la ou remediá-la,
mas simplesmente para viver e lidar com ela, elaborá-la e superá-la, não nos
deixando perder, confundir ou sermos totalmente absorvidos por algumas de suas
manifestações. O método psicanalítico poderia, assim, nos oferecer uma margem
de manobra diante dos efeitos alienantes de nossa condição pós-colonial como os
analisados por Stuart Hall, entre eles o de ser outro no “híbrido”, o de estar em
outro lugar no “diaspórico”, o desdobrar-se nas “inscrições duplas”[24] ou “ver-
nos e experimentar-nos como outros” nos regimes europeus de representação.
[25] Talvez possamos até nos reapropriarmos da alteridade subjacente aos efeitos
alienantes por meio de um trabalho psicanalítico de ressignificação.
Conseguiríamos então com a psicanálise o mesmo que já havíamos conseguido
com operações como a que Oswald de Andrade chamou de
“antropofagia”[26] ou a outra que Rodolfo Kusch chamou de “fagocitação”,
entendendo-a como “absorção das coisas boas do Ocidente pelas coisas da
América” e como confirmação de que“ tudo o que é dado em estado puro é falso
e deve ser contaminado pelo seu oposto ”.[27]

14. A contaminação do colonizador pelo colonizado significa que a alienação do


sujeito nunca é total, que o eu nunca é apenas outro, que o mestiço não é apenas
europeu, já que o europeu, como se apresenta no mestiço, está sempre já
contaminado pelo indígena. Em termos lacanianos, o Outro já está sempre
barrado, riscado, porque é também uno e por isso mesmo nenhum. E ainda assim
aparece como Outro. O sujeito não deixa de existir com respeito à alteridade
alienando-se nela. Sua alienação também é uma divisão. É por estar dividido que
o sujeito sofre de estar alienado, mas é também por sua divisão que ele resiste à
sua alienação, existindo a respeito do Outro em que está alienado. Essa situação
de existência e resistência, sistematicamente reprimida pela modernidade
europeia, retorna sintomaticamente na psicanálise, que, ao contrário da psicologia
dominante, pode ajudar o sujeito a se reconhecer e se assumir como sujeito
dividido que existe e resiste contra a mesma alteridade que o habita. O mestiço
pode assim encontrar na psicanálise respaldo para afirmar e reafirmar sua
estrutura de borda, sua condição identitária, não sintética ou unitária, mas dupla,
tão indígena quanto europeu, como um como outro, dividido e dilacerado,
“cindido” em seu ” próprio espírito”, disse Villoro[28]. Jairo Gallo nos mostrou
em uma conversa informal que essa dupla condição, da qual somos baluartes nos
quais os indígenas continuam existindo e resistindo, pode ser caracterizada de
forma insuperável com o conceito aimará de Ch’ixi recuperado por Silvia Rivera
Cusicanqui para descrever a “coexistência em paralelo” de culturas que “não se
fundem, mas se antagonizam ou se complementam”.[29]

15. É claro que a cultura indígena não existe mais em seu estado puro na
população mestiça e nem mesmo na maioria dos povos originários. Nossa
subjetividade pós-colonial perdeu para sempre sua identidade pré-colonial e o
melhor que pode fazer agora é consumar seu luto, seguindo assim o conselho de
Stuart Hall de evitar o “conluio” com as potências coloniais que nos “congelam”
em um “passado primitivo, imutável ”.[30] Sem embargo, iluminado pela
psicanálise, nosso luto pode nos revelar dois aspectos do perdido: sua eternidade
sob uma forma simbólica inconsciente de nosso ser e sua presença e
transformação incessantes em uma lógica retroativa. Esses dois aspectos nos
fazem nunca deixar de ser, não os índios que éramos na origem desconhecida,
mas os que teremos sido conforme o que somos agora e de acordo com nosso
interesse político atual, como acontece no famoso “uso estratégico do
essencialismo” proposto por Spivak.[31]

16. Na realidade, o indígena que teremos sido não deveria ser decidido apenas
pelo nosso interesse político, mas também e sobretudo pela política do nosso
desejo, que é também o da psicanálise. Precisamos da abordagem psicanalítica
para dar lugar àquele desejo inconsciente que é irredutível a qualquer interesse e
que representa a principal forma como o excluído aparece em um sistema de
exclusão como o colonial. Nas regiões colonizadas, como já observou Martín-
Baró, não podemos adotar uma abordagem positivista que “não reconhece nada
além daquilo que é dado”, ignorando “o que a realidade existente nega, ou seja, o
que não existe mas que seria historicamente possível, se outras condições fossem
atendidas”[32]. Esse possível e negado, com uma existência puramente negativa,
é o que se manifesta no desejo que ouvimos na psicanálise. É algo ainda
pendente e futuro, mas também passado, que insiste desde o ponto mais remoto
da nossa história, desde o pré-colonial, tão eterno como tudo no inconsciente.

17. Nosso desejo é traído pelo Eu, o que não deveria nos surpreender,
considerando que o Eu sempre foi um instrumento de repressão, dominação e
colonização. Dussel deve ser levado a sério ao revelar o “ego conquistado”, o eu
conquistado da civilização europeia, dentro do “ego cogito”, o “penso, logo
existo” em que a própria civilização foi encerrada. Como Ramón Grosfoguel
muito bem explicou, o “solipsismo” do eu isolado está no centro do mito do
europeu autogerado na “racionalidade universal que se confirma como tal”.
[33] O universalismo europeu é inseparável do narcisismo do Eu que é
questionado na psicanálise. O questionamento psicanalítico do narcisismo pode
servir para tornar transparente o espelho europeu de nossa identidade colonial,
quiça desaparecendo não apenas o outro especular de nosso eu, o indivíduo
isolado com seu egoísmo e solipsismo, mas também o universalismo e o
imperialismo como expressões coletivas da mesma individualidade solipsista e
egoísta.

18. Liberando nossa palavra, a palavra em que duvidamos de nosso Eu e de tudo


o que ele se imagina com absoluta certeza, a psicanálise está sitiando e
ameaçando o mais poderoso bastião da colonialidade no sujeito. A identidade, a
certeza de ser idêntico a si mesmo, constitui a garantia última do europeu com o
qual nos identificamos. Ao permitir a desidentificação, o método psicanalítico já
está minando a colonialidade no sujeito. Também o está minando ao permitir que
nos separemos de nosso ser, que nos desatemos dele, que existamos com respeito
ao que a colonialidade nos destinou a ser. Ao nos desvencilharmos dessa maneira
de nossa essência e de nossa identidade, talvez já estejamos efetivamente nos
libertando da opressão colonial com a ajuda da psicanálise. Talvez, em última
análise, como sugeriu Thamy Ayouch, o método psicanalítico já esteja nos
descolonizando ao contribuir para nossa desidentificação e desessencialização.
[34]

[1] Aníbal Quijano, Colonialidad y Modernidad/Racionalidad, Perú Indígena 13


(29) (1992), p. 20
[2] Bronislaw Malinowski, La sexualité et sa répression dans les sociétés
primitives (1932), París, Payot, 2016.
[3] Jacques Lacan, Les complexes familiaux dans la formation de l’individu
(1938), em Autres écrits, París, Seuil, 2001.
[4] Jacques Derrida, Géopsychanalyse and the rest of the world (1981),
em Psyché. Inventions de l’autre (1987), París, Galilée, 1998, p. 328.
[5] Ignacio Martín-Baró, I. (1974). Concientización y currículos universitarios.
Em Psicología de la liberación (pp. 131-160). Madrid: Trotta, 1998, p. 135
[6] Frantz Fanon, Peau noire, masques blancs, Paris, Seuil, 1952, p. 8
[7] Ibid., p. 75
[8] Aníbal Quijano, Colonialidad y Modernidad/Racionalidad, Perú Indígena 13
(29) (1992), p. 12
[9] Ibid., p. 16.
[10] Jacques Lacan, Le Séminaire, livre XI, Les quatre concepts fondamentaux
de la psychanalyse, Paris, Seuil (poche), 1990, p. 307
[11] Jorge Alemán, Conjeturas sobre una izquierda lacaniana, Buenos Aires,
Grama, 2013.
[12] Stuart Hall, Cultural Identity and Diaspora. En Jonathan Rutherford (Ed.),
Identity: Community, Culture, Difference (pp. 222-237). Londres: Lawrence &
Wishart, 1990, p. 232
[13] Aimé Césaire, Discours sur le colonialisme (1955), París, Présence
Africaine, 2004, p. 24.
[14] Gayatri Chakravorty Spivak, G. C. (1988). Can the subaltern speak? (1988)
En P. Williams & L. Chrisman (eds.), Colonial Discourse and Postcolonial
Theory (pp. 66-107). Nueva York: Columbia University Press, 1994, p. 104
[15] Luis Villoro, Los grandes momentos del indigenismo en México (1950).
Ciudad de México: FCE, 2005.273
[16] Santiago Castro-Gómez, La hybris del punto cero : ciencia, raza e ilustración
en la Nueva Granada (1750-1816), Bogotá, Pontificia Universidad Javeriana,
2005, pp. 18-19
[17] Walter Mignolo, El pensamiento decolonial: desprendimiento y apertura. En
S. Castro-Gómez y R. Grosfoguel (Eds), El giro decolonial. Reflexiones para una
diversidad epistémica más allá del capitalismo global (pp. 25-46). Bogotá, Siglo
del Hombre, 2007, p. 33
[18] Ramón Grosfoguel, Descolonizando los universalismos occidentales: el
pluri-versalismo transmoderno decolonial desde Aimé Césaire hasta los
zapatistas. En S. Castro-Gómez y R. Grosfoguel (Eds), El giro decolonial.
Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global (pp.
63-77). Bogotá: Siglo del Hombre, 2007, pp. 63-64.
[19] Frantz Fanon, Les damnés de la terre (1961), París, La Découverte, 2002, p.
146.
[20] Homi Bhabha, Of Mimicry and Man: The Ambivalence of Colonial
Discourse. October 28 (1984), p. 126.
[21] Cheikh Anta Diop, Nations nègres et culture (1955), París, Présence
africaine, 2007.
[22] Sigmund Freud, Moisés y la religión monoteísta (1939). Obras completas
XXIII, Buenos Aires, Amorrortu, 1998.
[23] Edward Said, Freud and the Non-European (2002), London and New York,
Verso, 2003.
[24] Stuart Hall, ¿Cuándo fue lo postcolonial? Pensar el límite. En S. Mezzadra
(comp.), Estudios postcoloniales. Ensayos fundamentales (pp. 121-144). Madrid:
Traficantes de Sueños, 2008, p. 134
[25] Stuart Hall, Cultural Identity and Diaspora. En Jonathan Rutherford (Ed.),
Identity: Community, Culture, Difference (pp. 222-237). Londres: Lawrence &
Wishart, 1990, p. 225.
[26] Oswald de Andrade, Manifiesto Antropófago (1928), en J. Schwartz
(comp.), Las vanguardias latino-americanas (pp. 171-180), Ciudad de México,
FCE, 2006.
[27] Rodolfo Kusch, América profunda (1962), em Obras Completas Tomo
II (pp. 1-254). Buenos Aires: Fundación Ross, p. 19
[28] Luis Villoro, Los grandes momentos del indigenismo en México (1950).
Ciudad de México: FCE, 2005. 272-273
[29] Silvia Rivera Cusicanqui, Hambre de huelga y otros textos. Querétaro: La
Mirada Salvaje, 2014, p. 76
[30] Stuart Hall, Cultural Identity and Diaspora, Op. Cit., p. 231
[31] Gayatri Chakravorty Spivak, Estudios de la subalternidad (1985). En S.
Mezzadra (comp.), Estudios postcoloniales. Ensayos fundamentales (pp. 33-68).
Madrid, Traficantes de Sueños, 2008, p. 45
[32] Ignacio Martín-Baró, Hacia una psicología de la liberación (1986). En
Psicología de la liberación (pp. 283–302). Madrid: Trotta, 1998, pp. 289-290.
[33] Ramón Grosfoguel, Descolonizando los universalismos occidentales: el
pluri-versalismo transmoderno decolonial desde Aimé Césaire hasta los
zapatistas. Op. Cit., pp. 63-64.
[34] Thamy Ayouch, Psychanalyse et hybridité: Genre, colonialité,
subjectivations, Lovaina, Leuven University Press, 2018.

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