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Meu propósito hoje é refletir sobre a forma como a psicanálise pode ser usada em
face da colonialidade moderna, sendo usada de forma crítica, insubordinada e
subversiva. Minha reflexão me fará discernir dezoito possíveis usos anticoloniais
da herança freudiana em um contexto pós-colonial ou neo-colonial como o da
América Latina. Descrevo esses usos como “anticoloniais” porque se opõem à
colonialidade, porque estabelecem uma relação antagônica com ela, porque
aspiram de alguma forma a uma certa descolonização, o que não significa
necessariamente que a realizem e nem mesmo que possam se livrar das estruturas
coloniais em que estão inseridos. Por isso, fala de usos anticoloniais e não
descoloniais ou descolonizantes.
O agente dos usos anticoloniais da herança freudiana será, em cada caso, alguém
a quem designarei com o enigmático pronome “nós”. Por este “nós”, quero dizer
nós latino-americanos, asiáticos e africanos, os habitantes das chamadas
“periferias”, os descendentes diretos do colonialismo europeu e do imperialismo
norte-americano, os despojados dos impérios, os eternamente desatualizados em
relação à modernidade, os inevitavelmente europeizados e não europeus. Somos
os sujeitos pós-coloniais, híbridos, mestiços, não necessariamente da mestiçagem
racial ou étnica, mas da mestiçagem cultural, ideológica e simbólica em que está
gestada nossa subjetividade.
Alguém como Žižek nunca poderia entender por que diabos queremos usar a
psicanálise contra a colonialismo moderno. Tal uso lhe pareceria estranho, talvez
absurdo, aberrante. De fato, há uma certa aberração em empregar de forma
anticolonial algo tão moderno e europeu quanto o que Freud nos deixou.
Comecemos com isso abordando agora, um por um, os possíveis usos
anticoloniais da herança freudiana.
3. Além de nos servir para mostrar nossas diferenças quanto às razões impostas
pela Europa, a psicanálise pode nos ajudar a lembrar a história dessas diferenças
e da imposição violenta do europeu. É preciso entender que a colonialidade é
história e que, por isso, não pode ser tratada adequadamente por abordagens a-
históricas, amnésicas e presentistas, como as da psicologia dominante. Em vez
disso, o que é colonial requer uma abordagem como a da psicanálise: uma
abordagem totalmente histórica que busca recordar a violência com a qual fomos
constituídos. Como disse Ignacio Martín-Baró, “precisamos de memória, uma
memória histórica clarividente, para perceber tudo o que bloqueou, oprimiu e
esmagou o nosso povo”.[5] Essa memória da colonialidade, indispensável em
todo combate anticolonial, é outra coisa que podemos cultivar por meio da
psicanálise.
13. A eficácia da psicanálise é mudar a relação com o europeu e não nos purificar
do europeu. Em todo caso, essa purificação seria impossível porque também
somos o que nos colonizou. Nossa colonização também foi um processo
irreversível de europeização, alienação, transmutação em outros de quem fomos e
ainda somos. O que resulta, a experiência de ser outro, não é exclusiva de nós. O
europeu não é apenas um, mas também é sempre outro, não europeu. Devemos
atender a Cheikh Anta Diop revelando-nos o negro do egípcio[21], assim como
devemos prestar a maior atenção ao velho Freud quando nos revela o egípcio do
judaico-cristão.[22] O que aprendemos aqui, com Edward Said, é que o outro
está inevitavelmente no núcleo do um.[23] Foi também para tratar essa condição
alienada que Freud inventou a psicanálise. Agora podemos usar sua invenção
para enfrentar nossa alienação na colonialidade, não para curá-la ou remediá-la,
mas simplesmente para viver e lidar com ela, elaborá-la e superá-la, não nos
deixando perder, confundir ou sermos totalmente absorvidos por algumas de suas
manifestações. O método psicanalítico poderia, assim, nos oferecer uma margem
de manobra diante dos efeitos alienantes de nossa condição pós-colonial como os
analisados por Stuart Hall, entre eles o de ser outro no “híbrido”, o de estar em
outro lugar no “diaspórico”, o desdobrar-se nas “inscrições duplas”[24] ou “ver-
nos e experimentar-nos como outros” nos regimes europeus de representação.
[25] Talvez possamos até nos reapropriarmos da alteridade subjacente aos efeitos
alienantes por meio de um trabalho psicanalítico de ressignificação.
Conseguiríamos então com a psicanálise o mesmo que já havíamos conseguido
com operações como a que Oswald de Andrade chamou de
“antropofagia”[26] ou a outra que Rodolfo Kusch chamou de “fagocitação”,
entendendo-a como “absorção das coisas boas do Ocidente pelas coisas da
América” e como confirmação de que“ tudo o que é dado em estado puro é falso
e deve ser contaminado pelo seu oposto ”.[27]
15. É claro que a cultura indígena não existe mais em seu estado puro na
população mestiça e nem mesmo na maioria dos povos originários. Nossa
subjetividade pós-colonial perdeu para sempre sua identidade pré-colonial e o
melhor que pode fazer agora é consumar seu luto, seguindo assim o conselho de
Stuart Hall de evitar o “conluio” com as potências coloniais que nos “congelam”
em um “passado primitivo, imutável ”.[30] Sem embargo, iluminado pela
psicanálise, nosso luto pode nos revelar dois aspectos do perdido: sua eternidade
sob uma forma simbólica inconsciente de nosso ser e sua presença e
transformação incessantes em uma lógica retroativa. Esses dois aspectos nos
fazem nunca deixar de ser, não os índios que éramos na origem desconhecida,
mas os que teremos sido conforme o que somos agora e de acordo com nosso
interesse político atual, como acontece no famoso “uso estratégico do
essencialismo” proposto por Spivak.[31]
16. Na realidade, o indígena que teremos sido não deveria ser decidido apenas
pelo nosso interesse político, mas também e sobretudo pela política do nosso
desejo, que é também o da psicanálise. Precisamos da abordagem psicanalítica
para dar lugar àquele desejo inconsciente que é irredutível a qualquer interesse e
que representa a principal forma como o excluído aparece em um sistema de
exclusão como o colonial. Nas regiões colonizadas, como já observou Martín-
Baró, não podemos adotar uma abordagem positivista que “não reconhece nada
além daquilo que é dado”, ignorando “o que a realidade existente nega, ou seja, o
que não existe mas que seria historicamente possível, se outras condições fossem
atendidas”[32]. Esse possível e negado, com uma existência puramente negativa,
é o que se manifesta no desejo que ouvimos na psicanálise. É algo ainda
pendente e futuro, mas também passado, que insiste desde o ponto mais remoto
da nossa história, desde o pré-colonial, tão eterno como tudo no inconsciente.
17. Nosso desejo é traído pelo Eu, o que não deveria nos surpreender,
considerando que o Eu sempre foi um instrumento de repressão, dominação e
colonização. Dussel deve ser levado a sério ao revelar o “ego conquistado”, o eu
conquistado da civilização europeia, dentro do “ego cogito”, o “penso, logo
existo” em que a própria civilização foi encerrada. Como Ramón Grosfoguel
muito bem explicou, o “solipsismo” do eu isolado está no centro do mito do
europeu autogerado na “racionalidade universal que se confirma como tal”.
[33] O universalismo europeu é inseparável do narcisismo do Eu que é
questionado na psicanálise. O questionamento psicanalítico do narcisismo pode
servir para tornar transparente o espelho europeu de nossa identidade colonial,
quiça desaparecendo não apenas o outro especular de nosso eu, o indivíduo
isolado com seu egoísmo e solipsismo, mas também o universalismo e o
imperialismo como expressões coletivas da mesma individualidade solipsista e
egoísta.