Você está na página 1de 13

CONTABILIDADE: ASPECTOS RELEVANTES DA EPOPÉIA DE SUA EVOLUÇÃO

CONTABILIDADE: ASPECTOS RELEVANTES


DA EPOPÉIA DE SUA EVOLUÇÃO

SÉRGIO DE IUDÍCIBUS
Professor Emérito da FEA/USP
E-mail: siudicibus@osite.com.br

ELISEU MARTINS
Professor Titular do Depto. de Contabilidade e Atuária – FEA/USP
E-mail: emartins@usp.br

L. NELSON CARVALHO
Professor Doutor do Depto. de Contabilidade e Atuária – FEA/USP
E-mail: lnelson@usp.br

RESUMO ABSTRACT

Trata o presente ensaio, como objetivo princi- As a main objective, this paper aims at discus-
pal, de aspectos relevantes da epopéia da evolução sing relevant aspects in the epopee of accounting
da Contabilidade, através das várias fases históricas evolution through several historical stages, from a
de seu desenvolvimento, desde o estado de simples simple method of bookkeeping based on double en-
método de escrituração baseado nas partidas do- try until its ripening as a social science with a strong
bradas até sua maturação como ciência social apli- economic basis. Some views and approaches to the
cada de forte fundo econômico. Ao longo do traba- concept of accounting will be revisited, as well as
lho são analisados os vários enfoques, abordagens theories and the historical circumstances and other
e teorias, bem como circunstâncias históricas e ou- factors that may explain accounting as a genuine
tras que possam explicar a Contabilidade enquanto social science.
ciência genuinamente social. In the more advanced interpretation of our dis-
Na interpretação mais atualizada dessa disci- cipline, the scientific quality of accounting should be
plina, a cientificidade contábil deve ser procurada, searched preferentially in a series of characteristics,
preferencialmente, numa série de características such as, for example: the understanding and mea-
como, por exemplo: no entendimento e mensura- suring of equity elements; the preponderant applica-
ção aplicados aos elementos do patrimônio; na tion of economic value rather than simple costs or
preponderância do valor econômico em lugar de prices; the predictive power of financial statements;
simples custos ou preços; no caráter preditivo das the introduction of the risk factor and time value
demonstrações contábeis; na introdução do fator of money in accounting evaluations, as well as the
risco e do conceito do valor do dinheiro no tempo consideration of imputed costs and of opportunity
nas avaliações contábeis, bem como na conside- costs. The relevance of accounting stems from the
ração de custos imputados e de oportunidade etc. observation of the above-mentioned key issues as
A Contabilidade pontifica pela observação das ca- well as by the incorporation of the prevalence of
racterísticas anteriormente vistas e pela incorpora- essence over form into its conceptual framework,
ção, em seu arcabouço conceitual, da premissa da in the field of socially applied knowledge area of an
prevalência da essência sobre a forma, no campo economic-financial nature, with ramifications in the
do conhecimento social aplicado, de natureza eco- areas of productivity, environment protection and
nômico-financeira, com ramificações nas áreas de social responsibility, with necessary quantitative
produtividade, ambiental e social e com evidentes features as to its mechanics of functioning.
conotações quantitativas quanto à sua mecânica It is evident that, for research purposes and
patrimonial. to enhance certain dimensions, accounting may be

Recebido em 07.03.05 • Aceito em 04.04.05 • 2ª versão aceita em 06.06.05

R. Cont. Fin. – USP, São Paulo, n. 38, p. 7 – 19, Maio/Ago. 2005

RC-USP_pg007-019.indd 7 7/22/aaaa 09:49:28


Sérgio de Iudícibus • Eliseu Martins • L. Nelson Carvalho
8

É claro que, para efeito de pesquisa e para re- studied under a variety of approaches, such as the
alçar certas dimensões, a Contabilidade pode ser ethical, the macroeconomic, the institutional and
estudada sob as mais variadas ênfases, como a social, the behavioral, the systemic and the his-
ética, a macroeconômica, a institucional e social, a torical, among others, but accounting is much more
comportamental, a sistêmica e a histórica, entre ou- than any of its particular approaches. Finally, one
tras, só que a Contabilidade é muito mais que qual- subsidiary objective of this paper is to help trying
quer dessas suas abordagens individualmente to- to answer, at least partially, on the question which
madas. No fundo, um dos objetivos deste trabalho addresses to almost an enigma: after all, what is
é, também, subsidiariamente, o de ajudar a respon- accounting?
der, pelo menos em parte, à pergunta cuja resposta Keywords: Accounting; Epopee; Historical
se apresenta quase como um enigma: afinal, o que Evolution; Approaches; Scientific Quality; Theories;
é a Contabilidade? Value.
Palavras-chave: Contabilidade; Epopéia; Evo-
lução Histórica; Abordagens; Cientificidade; Teorias;
Valor.

1 INTRODUÇÃO accountability, de avaliação da entidade e de seus


gestores, da prestação de contas destes e como in-
A Contabilidade, campo de conhecimento es- sumo básico para a tomada de decisões dos agen-
sencial para a formação dos agentes decisórios dos tes econômicos, tanto internos quanto externos à
mais variados níveis, é fruto concebido da relação entidade. Talvez, seu caráter científico, na verdade,
entre o desenrolar dos fatos econômico-financeiros repouse exatamente no entrelaçamento harmônico
e sua captação e processamento segundo os pa- e conceitual de seus objetivos, acima delineados, e
radigmas de uma metodologia própria e potencia- não em visionárias concepções fundadas no vazio
lizada pela racionalidade científica. Logo, a pedra de uma lógica formal fria, infértil e privada de con-
fundamental que apóia e sustenta o edifício contábil seqüências.
pode ser definida como “a contabilidade seguindo, A urgência na procura de modelos que sirvam
relatando e respeitando a essência dos eventos para a solução de problemas reais só pode acelerar
econômicos que captura e mede”. o desenvolvimento da Contabilidade. Na verdade,
A capacidade de capturar, primeiro, a ocorrên- as técnicas são os braços, no mundo real, das dou-
cia dos eventos econômicos que impactam em um trinas, da mesma forma que o desenvolvimento tec-
determinado estado de riqueza, depois a de preci- nológico é a conseqüência da pesquisa pura.
ficá-lo e, por último, de comunicar seus efeitos, é Há os que se comprazem em fazer recair suas
o desafio a que a Contabilidade está, não apenas concepções teóricas num mundo abstrato e distan-
preferencialmente, mas de fato unicamente, habili- te da realidade, de uma ciência que a si se basta,
tada a enfrentar, apoiando-se sempre em discipli- sem se lembrarem que essa disciplina nasceu das
nas afins dentre as quais o Direito, a Economia, os necessidades prementes de gestores, comercian-
Métodos Quantitativos e a Ciência da Informação. tes, banqueiros, agentes econômicos de maneira
A doutrina contábil é a face científica desse geral, à procura de um modelo descritivo, primei-
encontro fértil entre a realidade e o modelo para ramente, e, com sua evolução, previsional, para o
acolhê-la e descrevê-la. Do lento, mas maravilhoso mundo dos negócios. E sem se lembrar que a vali-
crescimento multiforme, nascem, primeiramente, a dação de qualquer teoria contábil se dá única e ex-
escrituração e, mais tarde, a ciência contábil e, por- clusivamente pela sua utilidade gerada perante os
tanto, sua doutrina. usuários no mundo prático.
O irromper das questões práticas, que devem Hendriksen e Van Breda (1999:39) pontificam:
ser resolvidas a fim de a Contabilidade ter sua fun-
ção na vida real das organizações e das entidades, [...] A contabilidade é um produto do Renasci-
de forma alguma pode perturbar, mas sim poten- mento Italiano. As forças que conduziram a essa
cializar, as especulações teóricas enquanto ciência. renovação do espírito humano foram as mesmas
Não se pode esquecer que a Contabilidade, genu- que criaram a contabilidade [...]
ína e amplamente explicada por teorias de caráter
científico, tem sua faceta prática, extremamente Na verdade, os autores acima se referem à
importante, que é a de servir como instrumento de Contabilidade como hoje a conhecemos (como

R. Cont. Fin. – USP, São Paulo, n. 38, p. 7 – 19, Maio/Ago. 2005

RC-USP_pg007-019.indd 8 7/22/aaaa 09:49:30


CONTABILIDADE: ASPECTOS RELEVANTES DA EPOPÉIA DE SUA EVOLUÇÃO
9

sistema de escrituração e posteriormente de infor- Pacioli. O Líber Abaci também popularizou o siste-
mação), pois suas formas mais rudimentares já se ma numérico arábico na Europa.
evidenciavam há muito mais tempo. Hendriksen e Van Breda (1999), também, res-
Mas, que forças foram essas a não ser a con- saltam a importância da invenção de uma vela trian-
jugação de espiritualidade e racionalidade casadas gular, a vela latina, que facilitou, por suas caracte-
com a vibrante atividade comercial das cidades do rísticas técnicas, a era dos descobrimentos, muito
norte da Itália, como Gênova, Veneza, Pisa e Floren- importante para o florescer da escrituração.
ça, entre outras? O próprio trabalho de Pacioli enquadra, perfei-
Claramente, a contabilidade, antes de ciência, tamente, o método contábil como um dos capítulos
foi, em seus inícios, um sistema completo de escri- de um livro de aritmética, geometria e álgebra. Não
turação. O método das partidas dobradas, base do se sabe muito bem quem “inventou” o método das
sistema, encontra seus registros iniciais já em 1299- partidas dobradas, mas não há dúvidas de que Pa-
1300 em uma empresa de mercadores de Florença cioli lhe emprestou um significado eminentemente
e uma forma mais completa, em 1340, na cidade de matemático. As explicações posteriores, tanto do
Gênova. Personalismo, quanto do caráter eventualmente
Está-se a falar, ainda, de sistema de escritu- dialético da antítese entre débito e crédito e muitas
ração e de método das partidas dobradas. Por en- outras são, até, interessantes, mas, ao ver dos au-
quanto, naquelas antigas eras, eram sinônimos de tores deste ensaio, não destituem o método de sua
contabilidade. Faltava muito, entretanto, para o nas- essência quantitativa.
cimento da ciência da contabilidade. Ressalte-se também que, à época do surgi-
Fica, assim, bem patente, desde seu “renasci- mento das partidas dobradas e, crê-se, até na épo-
mento” como sistema perfeitamente desenvolvido, ca de Pacioli, possivelmente não se conhecia, ain-
que a contabilidade da época era a resposta às ne- da, o conceito de número negativo. Daí, por incrível
cessidades práticas dada pela criatividade do ser que possa parecer, haver surgido uma das maiores
humano em desenvolver técnicas para resolver pro- forças do método, representado pela figura da dua-
blemas reais. lidade débito/crédito, ou seja, os escrituradores da
época desenvolveram, a seu modo, uma espécie de
2 UMA GESTAÇÃO DE RISCO nova teoria matemática com a figura do saldo deve-
dor e credor para suprir o que faltava. Entre outras,
A Contabilidade, como sistema de escrituração surgiu daí, inclusive, a conseqüência seguinte: se for
e como hoje a conhecemos, surgiu através da inte- debitada uma conta representativa de um ativo, por
ração e integração de grande número de eventos, exemplo, quando esse, por outra operação, diminui,
fatores históricos, com a participação de várias civi- não se registra como número negativo ou dedução
lizações e vários povos. Apesar de seu desabrochar do lançamento anterior no lado do débito, mas sim
formal ter-se dado na Itália da Renascença, como se como crédito, no lado direito, permanecendo ambos
viu, as sementes de sua gestação são as mais varia- os registros, bem como valendo seu resultado algé-
das. Fenícios, Persas, Egípcios, Gregos, os antigos brico (o saldo). E esse saldo, “devedor” ou “credor”
habitantes do hodierno Iraque, Romanos etc., todos não chocava o conhecimento da época que ainda
são importantes para explicar os antecedentes da não aceitava a existência de valores negativos para
Contabilidade, antes da Renascença Italiana. representação de qualquer coisa concreta (como
Entretanto, uma influência predominante e as dívidas, ou as despesas, por exemplo). Geniais
persistente deve-se aos Árabes, de maneira geral, esses criativos escrituradores. Uma verdadeira epo-
a partir do século VII, influenciados pelos Indianos. péia essa conquista!
O conceito do zero e toda a lógica aritmética e algé- Se quase não mais existem dúvidas de que
brica, bem como o sistema numérico arábico, são as partidas dobradas foram utilizadas já no Sécu-
fundamentais nessa evolução. Imagine como se- lo XIII, a pergunta que se pode formular é: quais
ria difícil somar, multiplicar e dividir com o sistema teriam sido os motivos que fizeram com que não
Romano! Os comerciantes, matemáticos e aventu- tivessem aparecido antes, nas civilizações mais an-
reiros europeus aprenderam muito com os Árabes. tigas, já que sinais de registros contábeis primitivos,
Um dos mais conhecidos desses europeus, Leonar- na forma de contagens e inventários, já existiam?
do Fibonacci, trouxe para o continente europeu as Provavelmente, a melhor explicação tenha sido a
experiências e os conhecimentos adquiridos com dada por Littleton, citado por Kam (1990). Segun-
os árabes, escrevendo, em 1202, o Líber Abaci, um do aquele autor, é lógico supor-se que as partidas
precursor dos livros de escrituração que adviriam dobradas tivessem surgido quando de fato surgi-
mais tarde, a partir, principalmente, da obra de Luca ram devido à existência de certas condições plenas

R. Cont. Fin. – USP, São Paulo, n. 38, p. 7 – 19, Maio/Ago. 2005

RC-USP_pg007-019.indd 9 7/22/aaaa 09:49:30


Sérgio de Iudícibus • Eliseu Martins • L. Nelson Carvalho
10

que não estiveram presentes nas civilizações mais 3 CONTABILIDADE: NASCEU


antigas, como condições materiais e de linguagem GERENCIAL OU FINANCEIRA?
(comunicação). Nas civilizações mais antigas, tais
condições, embora presentes, não tinham, segun- Questão que poucos discutem, uma exceção
do Littleton, a “energia” suficiente para provocar a notável sendo a linha de defesa da genética geren-
mudança. Mais adiante, o próprio Kam (1990) expli- cial apresentada em palestras, discussões e artigos
ca melhor o conceito, afirmando, textualmente, em por Eliseu Martins (1988; 2005), um dos autores do
tradução livre (página 2): presente ensaio. É importante, para entender a evo-
lução da disciplina, perpassar as várias fases de seu
[...] As explicações que avançamos aqui é desenvolvimento. Essas fases se alinham ao surgi-
que a força primária para o desenvolvimento da mento dos vários “interessados” – ou stakeholders
contabilidade a partidas dobradas é a formação – na informação contábil.
e o crescimento das entidades empresariais num Sem dúvida, o que se conhece da evolução
ambiente de mercado complexo. Primeiro, exis- da Contabilidade, primeiro como sistema de escri-
te a motivação inicial que impele as pessoas a turação, evoluindo, lentamente, para o estado de
procurar lucros para si, que denominaremos de ciência, faz meditar que o impulso inicial para seu
espírito capitalista. Segundo, certos eventos surgimento tenha sido (1) de natureza sócio-econô-
econômicos e políticos criam as condições às mica ampla, ou seja, o surgimento, conforme Kam,
quais as entidades respondem. Terceiro, certas já citado, do “espírito capitalista”, espírito esse
inovações tecnológicas provêm o estímulo para a que se traduzia em necessidades prementes de
formação e o crescimento das entidades comer- acompanhar a evolução da riqueza patrimonial das
ciais. Essas três razões para o desenvolvimento entidades, a partir, principalmente, do Século XII,
das organizações, que por sua vez resultam no fortalecendo-se no XIII (já com as partidas dobra-
desenvolvimento das partidas dobradas, podem das) indo até inícios do Século XIX, aperfeiçoando-
ser denominadas de forças sociais [...]. se em suas técnicas escriturais. Praticamente, é no
século XIX que a Contabilidade, através de autores
A pergunta que Kam formula à página 33 da talentosos de vários países, não sem predecessores
obra citada é contundente, plena de dúvidas e in- em épocas anteriores, assume vestimenta científi-
certezas, bem como de indagações, e ainda não ca, saindo do estreito âmbito da escrituração para
completamente respondida. Dramaticamente, ques- as especulações sobre avaliação, enquadramen-
tiona: O que é Contabilidade? Certamente, não se to da Contabilidade entre as ciências, introdução
haverá de ter, neste ensaio, a pretensão da explica- dos raciocínios sobre custos de oportunidade, ris-
ção cabal, mas procurar-se-á, através da explora- cos e juros etc; (2) uma vez constituída a entida-
ção de argumentos históricos, lógicos e derivantes de, era necessário, portanto, seguir a evolução de
da observação, tentar reconstituir o caminho, a evo- seu patrimônio. Claramente, como ainda era vaga
lução havida até o presente e indicar as tendências ou inexistente, no alvorecer da contabilidade, a no-
futuras. A maioria dos autores procura definir o que ção de separação entre proprietário e gerente ou
é, pelo que ela faz e realiza, mas tal definição peca administrador da entidade, inclusive, via de regra,
por restringir as potencialidades desse campo de com exceções, devido à menor dimensão dos em-
conhecimento. De qualquer forma, do que foi trata- preendimentos, o proprietário era, também, gerente
do até aqui, ressalta, clara e cristalina, a ligação en- da entidade. Parece proceder, assim, o pensamento
tre as necessidades prementes derivantes da ativi- do referido professor.
dade econômica e o desenvolvimento de respostas Adicionalmente, cumpre revisitar a postura do
contábeis. Certamente, só isso não caracteriza uma Estado em face da Contabilidade para analisar sua
ciência. A ciência deve ser capaz de estabelecer re- evolução. É imperativo encarar como interessado
lações entre causas e efeitos, além de dar ao cam- ou stakeholder natural, o Estado, com seu poder
po de conhecimento e ao universo de eventos nele de arrecadar tributos. Mas, para isso, ou para esse
contido um amplo guarda-chuva conceitual. Mas, é stakeholder privilegiado, a contabilidade sempre se
inegável a grande intimidade entre os incentivos e denodou em apresentar soluções e atenção especial.
problemas derivantes da atividade econômica de- No entanto, embora seja inegavelmente nobre a fun-
senvolvida pelas entidades e as técnicas contábeis ção arrecadadora do Estado para que possa cumprir
imaginadas para resolver ou equacionar tais proble- o mandato que a Sociedade lhe confere, há que se
mas e anseios. Em nada diminui a nobreza des- seguir contestando e refutando o excesso de intro-
sa disciplina revelar seu caráter eminentemente missão governamental determinando à contabilidade
utilitarista. práticas, métodos e regras que, para atingir o objeti-

R. Cont. Fin. – USP, São Paulo, n. 38, p. 7 – 19, Maio/Ago. 2005

RC-USP_pg007-019.indd 10 7/22/aaaa 09:49:30


CONTABILIDADE: ASPECTOS RELEVANTES DA EPOPÉIA DE SUA EVOLUÇÃO
11

vo admitido – computar a base de arrecadação – res- Em Economia (hoje em seu ramo denominado de
vale ferindo objetivos que não lhe são próprios, como Institucional), Jensen e Meckling (1976), no que se
a medição do desempenho empresarial na ótica do refere à proposta para reduzir custos contratuais,
sócio ou do credor. O ramo tributário do leque de escrevem trabalho pioneiro.
especializações contábeis não deve ter o direito de No que se refere a essa teoria, especificamen-
conspurcar outros ramos, como o da Contabilidade te o aspecto da assimetria informacional é apenas
dita Financeira ou Societária, por exemplo. um dos resultantes da dicotomia entre proprietários
À medida que foram aparecendo, como con- e gerentes e parte da premissa de que, internamen-
seqüência da evolução dos tempos e das organi- te à empresa, os gerentes (chamados de agentes
zações, os outros “players”, a Contabilidade foi se na Teoria) dispõem de muito mais informação do
transformando, aos poucos, de um engenhoso sis- que os proprietários (chamados de Principais). Da
tema de escrituração e demonstrações contábeis mesma forma, como a sociedade em geral é uma
simplificadas, num complexo sistema de informa- rede de contratos de agência, se for considerada
ção e avaliação, com características científicas, ins- a empresa em relação ao mercado, esse tem menos
titucionais e sociais de grande relevo e tendo, como informações do que aquela. Diminuir ou conter a as-
objetivo central, suprir a necessidade informacional simetria informacional é uma das tarefas mais impor-
de seus usuários internos e externos à entidade a tantes da moderna Contabilidade, agora sim, nesse
que se refere. aspecto (e em outros, como se verá mais adiante), já
Um dos motivos que provocaram mudança atingindo a estatura de ciência. Com relação aos as-
substancial no escopo e complexidade da contabi- pectos do surgimento da Teoria Positiva, com os tra-
lidade foi, sem dúvida, o surgimento do gestor ou balhos pioneiros de Ball e Brown (1968), de Beaver
gerente como agente separado do proprietário, (1968) e muitos outros, constituem linhagem distinta
principalmente a partir de final do século XVIII, avo- de pesquisa, diferente da Teoria da Agência a qual,
lumando-se essa tendência no século XX, com as embora em sua modelagem mais avançada seja ex-
grandes sociedades por ações. pressa em formulações quantitativas, é um mode-
A dicotomia de interesses e objetivos de pro- lo analítico e não um teste de hipóteses, uma das
prietários e gerentes (esses últimos também perten- premissas da pura teoria positiva. Voltar-se-á a dis-
cem a outro subgrupo, o dos funcionários da en- correr sobre essa última, brevemente, mais adiante.
tidade), embora, por definição, os administradores No que se refere à Teoria da Agência, em sua apre-
devessem gerir por conta e em benefício dos donos sentação mais formal, não se podem esquecer as
do capital, levou a evoluções extraordinárias, na contribuições de Jennergren (1980), Wilson (1968),
Contabilidade. Uma delas, o (re)nascimento da Con- Ross (1973), Demski (1976) e muitos outros. Vê-se,
tabilidade Gerencial como subárea específica de in- assim, uma plêiade de outros inovadores a ousar e
teresse e de estudo. Apesar de a Contabilidade ter se arriscar nessa epopéica evolução.
nascido gerencial quanto ao interesse do proprietá- Finalizando este tópico, depreende-se que o
rio (pois dono e gerente eram a mesma pessoa), foi que se informa, em Contabilidade, e como, é algo
somente a partir da separação que a Contabilidade extremamente importante. Assim, quando uma em-
Gerencial, filha extraída de uma costela da Conta- presa, sem levar em conta seus aspectos operacio-
bilidade Geral, se expande, se desvincula dos rígi- nais intrínsecos, simplesmente adota, no cálculo da
dos parâmetros da Financeira (voltada aos usuários depreciação, uma taxa linear de 10% ao ano (a taxa
externos e, entre nós, conhecida por Societária) e fiscalmente admitida para fins de dedutibilidade),
cria vida própria, principalmente a partir da segunda e assim informa ao mercado, sendo que, por suas
metade do século XX, sendo o trabalho de Anthony características operacionais, a taxa correta deve-
(1966) um dos precursores no gênero. ria ser outra, estará, simplesmente, aumentando a
A dicotomia de interesses aparece porque ge- assimetria informacional do mercado em relação à
rentes e proprietários, no pressuposto da teoria do empresa. Sob a fácil égide da padronização fiscal,
comportamento racional dos agentes econômicos, pode-se estar levando os agentes a uma visualiza-
procuram maximizar suas satisfações. Embora os ção errônea da situação da empresa. (Ver IUDÍCI-
gerentes, em princípio, trabalhem para os proprie- BUS e BROEDEL, 2002).
tários, eles acabam criando suas motivações pes-
soais, seus objetivos de maximização de satisfação 4 OBJETO E OBJETIVOS
que nem sempre coincidem com os dos proprietá-
rios. Para modelar essa dicotomia de interesses e Até o item anterior, discutiram-se vários aspec-
objetivos, tentando a convergência possível, surge, tos da evolução histórica e da genética contábil.
na terceira parte do século XX, a Teoria da Agência. O entrelaçamento entre o que se pretende alcançar

R. Cont. Fin. – USP, São Paulo, n. 38, p. 7 – 19, Maio/Ago. 2005

RC-USP_pg007-019.indd 11 7/22/aaaa 09:49:31


Sérgio de Iudícibus • Eliseu Martins • L. Nelson Carvalho
12

em Contabilidade e o contexto patrimonial dentro do lação e comunicação de informações contábeis.


qual se desenvolvem os efeitos dos eventos que são Assim, o objeto da Contabilidade, ou seja, o patri-
registrados deixa não muito clara, às vezes, a dife- mônio e suas variações quantitativas e qualitativas,
rença entre objeto e objetivos da Contabilidade. é a resposta ou a forma mais inteligente, conforme
Na visão destes ensaístas, os objetivos têm a aceitação da própria sociedade (pois, se assim
um alcance e uma hierarquia muito mais amplos não fora, ela teria se casado com outro parceiro),
do que o objeto. Objetivo é onde se quer chegar e de se atingirem os objetivos. Note-se, todavia, que,
quem se quer encontrar; objeto representa o con- antes de se atingirem os objetivos, é preciso um
texto formal da estrutura patrimonial que se altera à processo de comunicação claro no qual o usuário
medida que os eventos são captados e registrados perceba com nitidez o que a linguagem contábil
pela técnica contábil. quer transmitir. Essa última parte do processo está
Suponha-se, assim, que o objetivo da Con- longe, ainda, de ter sido resolvida eficientemente,
tabilidade seja o de transmitir, de forma inteligível pois envolve transmissor e receptor, ruídos de in-
e inteligente, informação estruturada de natureza formação, capacidades distintas de absorção do
econômico-financeira, física, de produtividade e significado da informação transmitida etc. Está a
social aos vários grupos de usuários da informação desenvolver-se, nos últimos decênios, o estudo da
contábil, para sua avaliação e decisões informadas, Semiótica Contábil, parte aplicada da Teoria da
conforme a definição da Estrutura Conceitual Bási- Comunicação, com resultados prometedores, mas
ca da Contabilidade da CVM1, ligeiramente adap- ainda incipientes. Por outro lado, não existem pes-
tada: conquanto se possam discutir variantes, no quisas conclusivas apontando que efeito se teria na
que se refere aos objetivos, poucos contestarão a qualidade das decisões por parte dos usuários, se,
definição. Surge, agora, a questão: será que a forma em vez da Contabilidade, outra fosse a fonte de in-
como a Contabilidade, em sua função de sistema formação econômico-financeira sistemática. Note-
receptor, processador e transmissor dos resultados se, todavia, que os usuários não se utilizam apenas
de eventos e transações, obtém essas informações da informação contábil para suas avaliações e deci-
seria a única viável ou possível? Parece que não, sões, atualmente.
pois se poderia, através de outro sistema ou até O objetivo nasce da necessidade dos usuá-
mediante outra técnica que não a contábil, trans- rios. O objeto, o patrimônio, é a grande resposta
mitir aos usuários informações de natureza tal que, contábil. O núcleo através do qual, se o contador
de alguma forma, suprissem as necessidades dos for além da mera equação patrimonial histórica, se
usuários. Apresentando outro exemplo e analogia, contemplar os desafios do valor em lugar do cus-
suponha-se que o objetivo seja o de se chegar a um to, introduzindo as noções de custos imputados e
determinado destino: poder-se-ia chegar de avião, econômicos, de custo de oportunidade, de valor
de automóvel ou até andando. Variarão o tempo, o do dinheiro no tempo, aprofundando a análise dos
custo, o conforto, a segurança, mas o objetivo final elementos patrimoniais pelo seu Value at Risk e pela
poderá ser alcançado por qualquer forma. pluralidade dos resultados possíveis em face da va-
Objetivo e objeto, todavia, estão intimamente riabilidade das premissas subjetivas inerentes, terá
ligados em Contabilidade. A natureza única e dis- construído um modelo de validade científica com-
tinta da Contabilidade, como técnica e ciência, é a provada, único, como avaliador do desempenho de
ligação entre objetivos (o quê fazer, aonde chegar) e uma entidade. Note-se que alguns autores, como
o objeto (a estrutura viária (patrimonial) que levará a Broedel Lopes (2002), consideram que o patrimônio
alcançar o objetivo). não pode ser o tecido científico da Contabilidade,
Por estranho que possa parecer, talvez o fato pois quem define patrimônio é a própria contabili-
de os objetivos poderem ser atingidos, pelo menos dade. Isso faria recair o campo dos eventos a serem
em parte, através de outro campo de conhecimen- estudados pela ciência contábil, efetivamente, no
to, que não o estritamente contábil, realce a força estudo da informação, ligado aos objetivos, e não
do modelo contábil e da integração entre objeto e no patrimônio, propriamente. Na verdade, como foi
objetivo. Só a Contabilidade consegue atingir os visto, o patrimônio é a forma primária (o acompa-
objetivos propostos, de forma sistemática e com nhamento de sua evolução no tempo) que a Conta-
uma relação custo/benefício favorável, através de bilidade escolheu para iniciar o processo de geração
sua técnica formal de captação, registro, acumu- de informações úteis para os usuários.

1
Deliberação CVM no 29/86, que aprovou esse Pronunciamento do IBRACON – Instituto dos Auditores Independentes do Brasil e o tornou obrigatório no âmbito das
companhias abertas brasileiras.

R. Cont. Fin. – USP, São Paulo, n. 38, p. 7 – 19, Maio/Ago. 2005

RC-USP_pg007-019.indd 12 7/22/aaaa 09:49:31


CONTABILIDADE: ASPECTOS RELEVANTES DA EPOPÉIA DE SUA EVOLUÇÃO
13

5 BIOLOGIA, EMBRIOLOGIA E como já se analisou, por volta do século XIII, até a


MORFOLOGIA DA CONTABILIDADE sistematização definitiva por Pacioli.
A embriologia contábil é muito importante no
A Contabilidade pode ser estudada em analo- contexto evolutivo, pois explica como certas espé-
gia com o estudo dos seres vivos. Em seus aspec- cies contábeis evoluem, aparentemente, para ou-
tos biológicos, estudam-se as manifestações vitais tras, guardando, porém, algumas características do
da Contabilidade, bem como seu relacionamento embrião inicial. Assim, a Contabilidade, que nasceu
com o mundo que a cerca. Em seus aspectos em- para finalidade gerencial, mas sob a forma de Con-
briológicos, estuda-se o fenômeno da transforma- tabilidade Financeira, apresenta uma mutação e se
ção de um estado para outro. E, em sua morfologia, transforma, mais tarde, em Contabilidade Geren-
analisam-se as medidas classificatórias e os indi- cial, entre outras espécies derivadas. Na verdade,
cadores extraídos das demonstrações contábeis. O a essência da Contabilidade Financeira faz parte
todo deve servir como uma explicação para a teoria da genética inicial da Contabilidade Gerencial. Por
da evolução dessa disciplina. Usualmente, os estu- isso que uma verdadeira teoria da contabilidade
diosos da matéria limitam-se aos aspectos morfoló- não poderia deixar de tratar da contabilidade geren-
gicos. Mas, a observação interligada dos três esta- cial. Grande parte dos autores não atacou de frente
dos é extremamente importante para caracterizar a esse problema pelo receio de amarrar a gerencial à
evolução da espécie contábil. fogueira punitiva e implacável dos princípios funda-
As demonstrações da vivência e existência da mentais de Contabilidade, aparentemente inibido-
Contabilidade e seus relacionamentos com o mun- res. Não se concorda com essa visão pois, se os
do que a cerca podem ser inferidas de várias for- princípios de fato existirem e se forem definidos de
mas: a mais importante é a paleontologia contá- forma mais ampla, com aceitação de valor em lugar
bil, ou seja, o estudo dos arquivos históricos e dos de preços, de custos imputados, de oportunidade
signos pictóricos e numéricos deixados pelos con- etc., é perfeitamente possível enquadrar as práticas
tadores de antanho, de várias civilizações, para se da Contabilidade Gerencial sob um amplo guarda-
avaliar como atuava e como se relacionava em cada chuva conceitual teórico.
época histórica. Sua evidenciação atual, também, é A morfologia contábil estabelece as medidas
extremamente importante, mas deve ser encarada e classificações das espécies e sub-espécies. As-
como um estágio da evolução, nunca como final. sim, as sub-espécies poderiam ser a Contabilida-
Percebe-se que a Contabilidade esteve presente de Gerencial, a de Custos, a Estratégica (essa, por
na vida das sociedades, das mais variadas formas, sua vez, uma sub-espécie da gerencial), a Auditoria,
desde as mais remotas eras, que remontam, apro- as revisões e as perícias etc. Dentro de cada sub-
ximadamente, às civilizações: mesopotâmica, egíp- espécie existem classificações específicas, bem
cia, fenícia, grega, romana e de todos os povos da como medidas e indicadores especiais que se atêm
Antiguidade, evoluindo continuamente, passando às características da sub-espécie, embora alguns
pela fase da Renascença, pela Revolução Industrial, indicadores sejam comuns a todas, como Lucro
até chegar à Era do Conhecimento e da Informação. sobre Patrimônio Líquido, Lucro Operacional sobre
Como já se viu, em tópico anterior, a Contabilida- Ativo Total e poucos outros. A morfologia contábil é
de, à semelhança dos seres vivos, evolui lenta mas importante no processo evolutivo pois caracteriza
seguramente através dos séculos (às vezes com e monitora a evolução das espécies contábeis dan-
saltos heróicos, como em todas as ciências), pas- do condições aos pesquisadores de proteger as em
sando pela fase embrionária, de 6.000 anos antes extinção, se necessário.
de Cristo até, aproximadamente, 2.000 anos antes
de Cristo, em que era um rudimentar instrumento 6 AS VÁRIAS ABORDAGENS
pictográfico e numérico para inventariar bens, di- À CONTABILIDADE
reitos e obrigações. Com as civilizações clássicas
já em plena maturidade, como a Egípcia e outras, A Contabilidade pode ser visualizada conforme
mais tarde a Grega e a Romana, de 800 a.C. até várias abordagens, enfoques, o “approach” dos po-
o século XIII, passando pela longa noite da Idade vos de língua inglesa. Conquanto nenhuma das vá-
Média, continua aperfeiçoando sua evolução, atra- rias abordagens seja suficientemente ampla e den-
vés de documentos contábeis estáticos, de posição sa para explicar toda a prática contábil, elas lançam
patrimonial cada vez mais avançada, até se chegar luzes e fazem vislumbrar aspectos interessantes e
à invenção do método das partidas dobradas e da peculiares.
Contabilidade como técnica completa de escritu- Não se tratará, neste trabalho, de todas as
ração e de emissão de demonstrações contábeis, principais abordagens, nem mesmo da maior par-

R. Cont. Fin. – USP, São Paulo, n. 38, p. 7 – 19, Maio/Ago. 2005

RC-USP_pg007-019.indd 13 7/22/aaaa 09:49:31


Sérgio de Iudícibus • Eliseu Martins • L. Nelson Carvalho
14

te delas, pois estão devidamente tratadas nos tex- aplicadas a seus ativos depreciáveis. Via de regra,
tos de Hendriksen e Van Breda (1999) e Iudícibus utiliza-se a porcentagem aceita para fins de dedu-
(2004). Apenas, invadir-se-á o âmago de algumas tibilidade pelo Fisco. Como se viu, longe de padro-
delas, sob alguns aspectos que melhor explicam a nizar, essa prática aumenta a assimetria informacio-
evolução da espécie contábil. nal entre empresa e mercado. Embora a Lei das S/A
Assim, à luz da moderna teoria positiva da Con- tenha tentado separar Contabilidade Fiscal da So-
tabilidade, alguns conceitos, princípios e abordagens cietária2, a influência fiscal é assombrosa e reflete,
podem ser questionados. A abordagem ética, nes- também, um certo grau de comodismo e conformis-
se sentido, pode ser objeto de contestação, pois, no mo dos contadores, muito típicos da tradição ema-
pano de fundo das pesquisas sobre mercado de capi- nada do direito romano-germânico. Na verdade, a
tais, o fato de os agentes econômicos sempre procu- Lei, no caso, permite a utilização de outras taxas
rarem o melhor para si, em termos econômicos, não na Contabilidade Societária, mas a tradição legal é
deixa muita margem para valores como ética, justiça, tão forte que os contadores não se utilizam da prer-
distribuição social e outros. Cada um age de acordo rogativa. O tratamento contábil que ainda se dá às
com o que é melhor para sua situação econômica. operações de arrendamento mercantil financeiro
Como disciplina eminentemente social, todavia, a (apesar da tímida, mas louvável investida do Conse-
Contabilidade não pode ser imoral ou privilegiar, em lho Federal de Contabilidade sobre o assunto – não
prejuízo de outros, certos stakeholders. Veja que se seguida na prática), ao “sale-lease-back”, a muitos
disse [...] em prejuízo de outros. Isso significa que provisionamentos (quando não dedutíveis, é claro),
não se pode aumentar a assimetria informacional que às subvenções para investimento (em desacordo
existe entre os conhecedores da situação da empre- com as práticas mundiais), às vendas (com base,
sa (os agentes internos) e os outros. Não impede que comumente, nas emissões de notas fiscais e não
certos agentes possam ter um grau de detalhe de no momento econômico em que a receita é “ganha”
informação maior do que outros, de acordo com as ou auferida pelo agente ou entidade, principalmente
necessidades de seu modelo decisório. Desde que os no caso dos serviços) etc. são alguns dos exemplos
outros tenham o mínimo necessário para poder fazer dessa preponderância das regras fiscais sobre as
inferências com relação à entidade. Essa situação é informações econômicas que deveriam estar efeti-
bastante delicada e os limites entre o comportamento vamente refletidas nas demonstrações contábeis.
hedonista, de um lado, e a inobservância de regras de Inadequação da Abordagem Macroeconô-
eqüidade, de outro, são muito tênues. Assim, a deno- mica: Freqüentemente apontada como inteligente e
minada abordagem ética da Contabilidade perma- sofisticada, essa abordagem, se utilizada, subjuga
nece quase que como um santuário de propósitos, os critérios de apropriação contábil, principalmente
uma promessa que se faz, da mesma forma que os no que se refere à utilização dos provisionamentos,
crentes procedem com relação a Deus, ou seja, de dedutibilidade ou não de gastos para efeitos tribu-
não pecar, de comportar-se com justiça e retidão, de tários etc. à política macroeconômica de um país,
não prejudicar ninguém. É claro que o mundo real da visando servir como ação anticiclo. A mais conheci-
competitividade provoca outros comportamentos. da, mas não única diretriz, nesse sentido, é a práti-
Mas não se pode, socialmente, desistir de se procu- ca da depreciação acelerada contábil para efeito de
rar um comportamento ético, como entidade inserida incentivar investimentos em equipamentos a fim de
num contexto social. Claramente, não se deve, nun- estimular a atividade econômica. Conquanto útil em
ca, extravasar para o que não se possa caracterizar circunstâncias especiais ou para setores definidos,
como legal. Ético, justo e legal é o comportamento a prática generalizada da contabilidade a serviço
ideal. O obtido, muitas vezes, é apenas o legal. da macroeconomia é totalmente inadequada à luz
A Abordagem Fiscal, tratada por Hendriksen da verdadeira função da Contabilidade. De forma
e Van Breda, tem descaracterizado, principalmente alguma se servirá bem à sociedade obedecendo a
em muitos paises de origem ibérica e germânica, critérios mutáveis de políticas econômicas ditadas
as aplicações mais nobres da Contabilidade. Entre- por equipes econômicas, às vezes, de duvidosa ca-
tanto, isso se deve à exagerada influência do Fisco pacidade técnica. A sociedade será muito mais bem
na utilização de critérios dentro do regime de com- servida se a contabilidade apurar o resultado eco-
petência. No Brasil, por exemplo, quase nenhuma nômico mais correto possível, à luz da melhor téc-
empresa se preocupa em calcular da forma mais nica de que se possa dispor, do que perseguir um
correta possível as taxas de depreciação a serem resultado desejado. Nesse aspecto, estar-se-ia a

2
Art. 177, § 2o da Lei no 6.404/76.

R. Cont. Fin. – USP, São Paulo, n. 38, p. 7 – 19, Maio/Ago. 2005

RC-USP_pg007-019.indd 14 7/22/aaaa 09:49:31


CONTABILIDADE: ASPECTOS RELEVANTES DA EPOPÉIA DE SUA EVOLUÇÃO
15

manipular a Contabilidade pior ainda do que se faz, a laborial e a Demonstração de Valor Adicionado,
às vezes, no gerenciamento de resultados, pelos bem como a comunicação de serviços prestados à
gerentes da entidade. Estes, pelo menos, conhe- sociedade em geral. A abordagem social, todavia,
cem sua empresa. A boa alocação de recursos na poderia ser considerada com um espectro mais am-
economia estará muito mais amparada, crê-se, com plo, como o de abranger demonstrações contábeis
uma Contabilidade correta, executada por milhares de resultados sociais, como no caso de uma Uni-
de entidades, do que por uma rígida padronização versidade, por exemplo, em que, num sentido social
de práticas contábeis a serviço de autocracias, amplo, sua receita social seria muito maior do que o
mesmo que competentes, nunca o suficiente para valor das anuidades e contribuições recebidas, para
substituir o mercado. A denominada contabilidade abraçar o valor social no mercado dos que vierem
macroeconômica (ou abordagem macroeconômica) a se formar na dita Universidade. Essa sub-espécie
é, assim, totalmente condenável numa economia de de abordagem social, todavia, conquanto atrativa,
mercado. A Contabilidade é muito útil, como resul- não tem prosperado, pelas evidentes dificuldades
tado das ações tomadas pelos agentes em função de mensuração e devido a seu exagerado subjeti-
das informações por ela prestadas, à macroecono- vismo. Mais recentemente, têm-se desenvolvido es-
mia, mas não pode ser induzida, em suas normas, tudos na área institucional, tendo Hopwood (1983)
por ditames macroeconômicos, a não ser em casos como um dos pioneiros, a fim de descobrir novas
excepcionais e por curto lapso de tempo. No Brasil, facetas e aspectos do processo contábil. No Bra-
felizmente, essa abordagem normalmente não afe- sil, interessantíssimo exemplo tem sido o do Metrô
ta tanto a Contabilidade como em outros países no de São Paulo que procura identificar todos os be-
caso das depreciações, já que os incentivos fiscais nefícios sociais por ele trazidos, como economia de
que têm existido com esse fim têm sido controlados combustível, redução da poluição etc., cotejando-os
extra-contabilmente, no livro de apuração do lucro com o seu resultado contábil normalmente negativo,
tributável – conhecido como Lalur; mas as seguidas procurando evidenciar um saldo positivo.
investidas nos diferimentos de variações cambiais Segundo Meyer e Rowan (1992), a institucio-
com a tecnicamente insustentável desculpa de não nalização é um processo mediante o qual valores
se quebrar regras contratuais de relação capital sociais (práticas, crenças, obrigações) assumem a
próprio/de terceiros, ou para se continuar a distri- condição de regra no pensamento e na ação dos in-
buir dividendos onde lucros podem até inexistir são divíduos, quer estejam aglutinados numa organiza-
exemplos infelizmente presentes. ção ou dispersos na sociedade de forma geral. As-
Continuando com a análise crítica das várias sim, nem sempre as pessoas e as organizações se
abordagens, exemplo de uma que se apresenta comportam de forma absolutamente racional. Mas,
como desafiadora é a que se poderia denominar de adotam esse ou aquele procedimento por conside-
Abordagem Social e Institucional, mais freqüente- rá-lo melhor, mais adequado, mais justo, mais legí-
mente referida como Social ou Sociológica. Nesta timo socialmente, mais “respeitável” etc. No fundo,
resenha, realçam-se as características institucio- essa nova visão traz conceitos e elementos cogni-
nais, pois confunde-se, muitas vezes, abordagem tivos da Sociologia, abrindo novas fronteiras para
social com balanço social, forma de evidenciação a pesquisa contábil, pois se parte da admissão de
contábil para stakeholders específicos, como em- que o mundo das empresas, dos agentes econô-
pregados da entidade, aspectos ambientais e de micos, da Contabilidade, não é totalmente racional
extensão de serviços à comunidade. No Brasil, tem ou movido apenas por desejos de lucro máximo a
estado bastante em evidência, nos anos mais recen- curto prazo e a qualquer custo. (Para um estudo
tes, essa abordagem entendida em seu sentido mais mais aprofundado, veja o Capítulo 1 do livro “Teoria
restrito. Apesar de notáveis trabalhos, como o de Avançada da Contabilidade”, IUDÍCIBUS e LOPES,
Tinoco (2001) e alguns outros como Ribeiro (1992; 2004.). Essas visões sociais, sociológicas e insti-
1998), Antunes (1999) e de algumas empresas te- tucionais abrem um vasto campo de investigação
rem empreendido sérios esforços para elaborar um para a Contabilidade, e metodologias de pesquisa
balanço social significativo, boa parte das eviden- empírica podem perfeitamente ser utilizadas, como
ciações atêm-se mais a aspectos de promoção ins- se faz em Sociologia e Psicologia.
titucional das entidades do que a verdadeiros e fide-
dignos reportes sociais. De todas as sub-espécies 7 ABORDAGENS QUE JÁ SE
do balanço social, sem dúvida, a faceta ambiental, CONSTITUEM EM TEORIAS
para estes autores, representa a interface mais inte-
ressante e que, provavelmente, se desenvolva bas- As abordagens Normativa e Positiva contêm
tante no futuro, sem desmerecer as demais, como tal densidade e abrangência que, efetivamente, ga-

R. Cont. Fin. – USP, São Paulo, n. 38, p. 7 – 19, Maio/Ago. 2005

RC-USP_pg007-019.indd 15 7/22/aaaa 09:49:31


Sérgio de Iudícibus • Eliseu Martins • L. Nelson Carvalho
16

nham o “status” de Teorias. Evidentemente, qual- período não muito longo de tempo surgirá uma for-
quer abordagem, as analisadas no tópico anterior ma de entender melhor o entrelaçamento entre as
e outras, (veja IUDÍCIBUS, 2004), pode, no futuro, pesquisas e de formar uma teoria geral. De qualquer
atingir a dimensão de teoria. maneira, finalmente começa a se notar no Brasil a
A teoria normativa, apoiada, preferencialmente, tendência do incremento do número de pesquisas,
no método dedutivo, faz hipóteses sobre o universo trabalhos e dissertações e teses que utilizam me-
contábil e deriva prescrições de como a Contabili- todologias empíricas, em contraste com a absoluta
dade deveria proceder para maximizar a utilidade predominância de trabalhos descritivos, que carac-
da informação para os variados tipos de usuários. terizou a produção literária contábil até recentemen-
A teoria positiva foca aspectos mais restritos da fe- te. Para um maior aprofundamento no estudo da
nomenologia contábil, estabelece hipóteses e tes- epistemologia contábil, veja-se Theóphilo (2004).
ta, muitas vezes através de métodos quantitativos,
mas nem sempre, tais hipóteses. Procura entender 8 DO CUSTO HISTÓRICO AO
o mundo contábil como ele é, porque é assim e VALOR: A DIFÍCIL TRAVESSIA
não como deveria ser. Já se tratou bastante, em
livros, artigos e palestras, das diferenças entre as Quando se cristalizou a excelência do “méto-
duas teorias e não se vai aprofundar o assunto aqui. do” contábil para registro, ficou visível a viabilida-
Apenas se destaca que as duas formas de enca- de de ele permitir relatos ou relatórios a partir dos
rar a Contabilidade se transformaram em teorias, a quais análises de desempenho ficariam mais robus-
primeira pela sua abrangência e pela lógica de sua tas – entenda-se aqui tais análises tanto do passado
derivação e a segunda (a positiva) pelas evidências, quanto prospectivas. Essa a gênese da Contabilida-
totalmente insuspeitadas algumas, que revela, após de, como meio de informação, e sua característica
as hipóteses terem sido testadas. de disciplina utilitária: primeiro, aos interessados
É claro que a metodologia de preferência da te- em desempenhos pretéritos (autoridades tributárias
oria positiva é a indutiva. Os autores que preferem para arrecadar, acionistas para esperar dividendos)
a abordagem (teoria) positiva são bastante críticos a Contabilidade acudia e acode com métricas inteli-
com relação à normativa. Os seguidores dessa úl- gíveis. Aos demais, ela se presta a mostrar como foi
tima, usualmente, são mais ávidos em conhecer as o passado eminentemente como base para es-
vantagens do positivismo do que em criticá-lo. Tal- timar como será o futuro. O caráter preditivo da
vez por ser uma abordagem (teoria) que somente ini- Contabilidade alcançou tal relevância que no mun-
ciou seu desenvolvimento na década de 60, sendo, do dos mercados de capitais, é pacífico o enten-
ainda, relativamente recente, o positivismo contábil dimento de que demonstrações contábeis servem,
(não confundir com o positivismo de A. Comte, filó- primária e fundamentalmente, para auxiliar a prever
sofo) ainda se constitui em algo “excêntrico”, para a fluxos futuros de caixa. É o ato de conhecer a “cau-
maior parte dos pensadores contábeis, no Brasil. sa mortis” destinando-se a pesquisar remédios que
O grande defeito da abordagem (teoria) nor- a evitem no futuro.
mativa é que é preciso muito tempo e experimen- Nesse contexto, ao evoluir a Contabilidade
tação para verificar se as prescrições deram certo, vestiu, desde sua origem, as sandálias da humilda-
no mundo real da Contabilidade. O risco é muito de e, tendo em vista que o modelo contábil trata,
grande, pois depende das premissas serem válidas preferencialmente, de transações realizadas e seu
e das normas vencerem o teste da realidade. efeito no patrimônio, o valor de transação tem sido
A limitação da abordagem (teoria) positiva é o paradigma central para a mensuração. A Conta-
a dificuldade que se tem em traçar um elo entre as bilidade é um excelente meio para se apurar o re-
várias pesquisas e testes de hipóteses, no sentido sultado e efeitos no patrimônio da entidade de suas
evolutivo. Na primeira vez que se lê um texto positi- operações com o mundo exterior. Apesar dos avan-
vo, tem-se a impressão de que se trata de uma série ços da Contabilidade Gerencial e de Custos, ainda
de pesquisas, sem poder se estabelecer uma ordem há dificuldades para alocar tal resultado às divisões
e uma seqüência lógicas. Evidentemente, classifica- internas da entidade, mesmo as operacionais. Mais
ções dos tipos de pesquisa podem ser feitas, como: ainda para as de serviços. Mas, é indiscutível a efe-
pesquisas de mercado de capitais, pesquisas de tividade do modelo, dentro de suas limitações. Com
value-relevance, pesquisas de gerenciamento de re- a evolução das formas organizacionais, levando a
sultados etc., mas, ainda assim, para o pesquisador grandes conglomerados, os contadores responde-
iniciante, é difícil estabelecer uma visão de conjunto. ram com a técnica de consolidação de balanços,
Pensa-se que, com a evolução e aprimora- um grande passo. Mas, note-se que a essência
mento da teoria positiva e sua experimentação, num é sempre a de evidenciar o resultado do grupo

R. Cont. Fin. – USP, São Paulo, n. 38, p. 7 – 19, Maio/Ago. 2005

RC-USP_pg007-019.indd 16 7/22/aaaa 09:49:31


CONTABILIDADE: ASPECTOS RELEVANTES DA EPOPÉIA DE SUA EVOLUÇÃO
17

de entidades com relação às transações com o de trabalhos acadêmicos de autores da USP e ou-
mundo fora do conglomerado. tros de outros centros de pesquisa no Brasil, por ser
Talvez que, se não tivesse sido inventado o mé- demasiado conhecida de nossos estudiosos.
todo das partidas dobradas, se a Contabilidade, com É forçoso reconhecer, entretanto, que, mesmo
dificuldades enormes, tivesse continuado a ser ape- entre alguns acadêmicos, tratou-se mais de dar res-
nas o levantamento periódico de inventários de bens, postas parciais e espaçadas no tempo para proble-
direitos e obrigações (balanços patrimoniais), a ava- mas emergenciais, do que de erigir uma verdadeira
liação dos elementos patrimoniais teria sido, desde o teoria da avaliação patrimonial a valores econô-
início, a valores de mercado, atuais, pelo menos na micos, de forma estruturada e integral, com exce-
data de cada avaliação. Não existindo a sistemática ção do notável trabalho de Edwards e Bell (1961).
de acumulação propiciada pelas partidas dobradas, Trabalhos nessa linha, principalmente na trilha do
provavelmente, o contador, ao levantar o balanço, custo de reposição, transformaram-se em marcos
avaliaria seus elementos patrimoniais por um valor no Brasil, como o primeiro dos autores deste en-
mais atualizado possível. Mas, essa é apenas uma hi- saio, Iudícibus (1966) e Szüster (1985).
pótese de impossível comprovação. O fato é que as Estranhamente, por volta de meados a fins
partidas dobradas, pela tempestividade e eficiência dos anos 90, e anos iniciais do Século XXI, foram
com que permitiram o registro das operações (com os órgãos reguladores internacionais, como o FASB
as fases posteriores de balancetes, ajustes, balan- e IASB, a dar o toque de avançar, instituindo, limi-
ços etc.), privilegiaram o valor de transação (custo tadamente é verdade, a avaliação a valores de mer-
histórico). O valor histórico para determinados ele- cado e, finalmente, o fair value, enquanto os aca-
mentos patrimoniais (estoques e imobilizado, princi- dêmicos ficavam extasiados ao contemplar, como
palmente), por significar a retenção, na memória, do novos Narcisos, no espelho das vaidades, suas an-
valor do caixa despendido na sua aquisição, a fim de tigas imagens, distorcidas por modelos parciais de
se descarregar esse fluxo contra o da entrada propi- correção. Rara exceção, nesse contexto, é a obra
ciado pelo reconhecimento da receita também pare- da FIPECAFI, organizada por Eliseu Martins (2001),
ce explicar fortemente a manutenção dessa base de intitulada “Avaliação de Empresas: Da Mensuração
registro. Veja-se Martins (1999; 2001). Contábil à Econômica”, editada pela Atlas.
Apesar de, ao longo da história, terem se veri- Os contadores têm sido criticados por pro-
ficado, em vários países, surtos inflacionários de di- vidências que “deveriam” ter tomado, segundo os
mensões às vezes extraordinárias (como na Alema- críticos, mas que, na verdade, representariam um
nha, por volta da Primeira Grande Guerra, no Brasil, excesso de subjetivismo, talvez não totalmente res-
nas décadas de 80/90 e em muitos outros países, ponsável, como tentar inserir no ativo o valor do Ca-
inclusive nos EUA, na década de 70, com taxas, para pital Intelectual, ou do Goodwill criado internamente,
aquele país, altas), a profissão contábil foi relativa- conceitos reconhecidamente importantes, mas ain-
mente lenta em responder com técnicas e modelos da pouco suscetíveis de uma avaliação que, embora
compensatórios, talvez com exceção do Brasil e de sempre subjetiva, tivesse um mínimo de sustenta-
poucos outros paises (como Argentina, Chile e Isra- ção. Entretanto, nada impediria, a não ser conside-
el). De fato, desde 1958, o Brasil institui a reavaliação rações de custo/benefício, de apresentar tais ava-
de ativos fixos e, em seguida, adotou vários modelos liações em quadros suplementares, indicando com
de correção, culminando com a Correção Monetária clareza os critérios utilizados. Existem, todavia, tópi-
Integral, em 1987. Abruptamente, em meados da dé- cos mais urgentes a serem atacados no Brasil como
cada de 90, o Governo Federal extinguiu a correção Relatórios por Segmentos, Resultado de Operações
monetária, como se a inflação tivesse desaparecido Descontinuadas, Leasing, Concessões e outros para
completamente de nosso cenário econômico. os quais existem encaminhamentos parciais.
Os pesquisadores e acadêmicos, entretan- A travessia do custo histórico para o valor,
to, dedicaram-se, desde os primórdios dos surtos como detalhada em trabalho anterior por Iudíci-
inflacionários, a moldar modelos compensatórios. bus (1998), não é isenta de dificuldades e perigos.
Antigos trabalhos acadêmicos com relação ao cus- Acadêmicos e profissionais divergem sobre o que
to histórico corrigido pela inflação geral remontam seria exatamente valor para a Contabilidade. Será
a 1919, com E. Schmalenbach e F. Schmidt (este um custo de reposição calculado? Ou um valor de
mais em relação ao custo de reposição) na Alema- cotação de mercado (de compra ou de venda?). Ou
nha, década de 20 com G. Zappa (GALASSI e MAT- o valor presente dos fluxos de caixa que um ativo é
TESSICH, 2004; MATTESSICH e KUPPER, 2003), capaz de gerar? Um ativo isoladamente, ou em con-
culminando, em 1936, com a extraordinária obra de jugação com outros e outros fatores? A definição
Sweeney. Não se contará, aqui, sobre a cronologia de Fair Value, ou seja, “... importância pela qual um

R. Cont. Fin. – USP, São Paulo, n. 38, p. 7 – 19, Maio/Ago. 2005

RC-USP_pg007-019.indd 17 7/22/aaaa 09:49:31


Sérgio de Iudícibus • Eliseu Martins • L. Nelson Carvalho
18

ativo poderia ser transacionado entre um compra- buscar os pontos de convergência, sempre se pri-
dor disposto e conhecedor do assunto e um ven- vilegiando o usuário da informação contábil. Estu-
dedor também disposto e conhecedor do assunto, diosos de grande capacidade pertencem ou perten-
em uma transação sem favorecimento” (IUDÍCIBUS, ceram a uma dessas orientações, obviamente com
MARION e PEREIRA, 2003), também é repleta de di- muitos ajustes finos. Diga-se que, usualmente, são
ficuldades, pois, no fundo, dever-se-ia reproduzir, já os que vestem a camisa de uma escola a classificar
passado certo tempo da transação original, a con- os outros no outro time, “arqui-rival”. Não se pode
dição da própria transação, até expurgada de even- deixar de comentar, todavia, que, na opinião destes
tuais situações de força de barganha por parte do ensaístas, a forma de encarar a Contabilidade, sim-
vendedor ou comprador, tendo em vista sua posi- plesmente taxada de “anglo”, encontra muito mais
ção no mercado. Entretanto, não se vê como deixar amparo e seguidores nas empresas de ponta e entre
de enfrentar o desafio. A Contabilidade repousou os profissionais mais atualizados num número cada
por longo tempo, longo demais, na auto-satisfação vez maior de países. Na verdade, na prática, possi-
de sua “objetividade” presumida, como se, mesmo velmente nem se cogitaria da aplicação das normas
avaliando a valores de custo histórico, as cifras con- emanadas da “outra” escola, mesmo que existis-
tábeis, exceto algumas, não fossem meras estimati- sem. Academicamente, entretanto, as discussões
vas. Já que se trata de aproximações, está na hora sérias e profundas são sempre bem-vindas, sempre
de assumir, de vez, o subjetivismo responsável, no pressuposto do respeito intelectual e pessoal em
de que falam Iudícibus e Carvalho (2001). face das divergências de visão.

9 O PROBLEMA DAS 10 O ENIGMA PERMANECE: AFINAL,


LINHAS DOUTRINÁRIAS O QUE É CONTABILIDADE?

No Brasil, limitadamente ao campo acadêmico, Não haverá relato da evolução passada da


ainda se discute que “escola” de Contabilidade de- Contabilidade, por mais completo e pormenorizado
veria ser seguida. A Européia Continental, primordial- que possa ser, que apresente o retrato perfeito e
mente Italiana, considerada pelos seus seguidores integral do que é e, mais ainda, do que possa vir
como a única capaz de atribuir conteúdo conceitual e a ser essa disciplina. Uma fotografia de uma paisa-
filosófico à essa disciplina, ou a “escola” denomina- gem ou de qualquer ser ou objeto transmite uma
da, por brevidade, de “anglo-saxônica”, e duramente visualização instantânea do ser; uma série de retra-
criticada pelos “supporters” da primeira (mas abra- tos, tirados em datas e épocas diferentes, traduzem
çada completamente pelo IASB – International Ac- a evolução. Da análise dessa evolução podem-se
counting Standards Board, pela União Européia para extrair algumas generalizações, com muito cuidado,
suas companhias abertas (o que inclui países latinos mas a integralidade do ser e sua tendência no futuro
e germânicos) a partir de 2005, e em direção à qual se apresentam como enigmáticos.
caminham a China, o Japão, o México, e, tímida e É confortante poder expressar as dimen-
tentativamente, o Brasil, entre outros), qualificando-a sões atuais da Contabilidade como uma forma
como privada de densidade teórica e apressadamen- eficaz de avaliação de desempenho econômico
te classificada e taxada de “empírica”. Interessante e financeiro (e social) de entidades e gestores;
que se destitui ao empirismo qualquer conotação como insumo essencial para a tomada de deci-
conceitual, como se os empíricos tivessem sido um sões econômico-financeiras; como instrumento
bando de aventureiros e de desprovidos de razão, de accountability eficiente de qualquer gestor
quando, na verdade, se tratou de uma corrente filosó- de recursos perante a sociedade. Isso é um fato.
fica extremamente nobre que baseava e baseia suas Acredita-se que a Contabilidade possa evoluir
visões do mundo na evidência e na constatação. muito mais, mas a dimensão e a direção dessa
Considera-se que, no estágio atual da evolu- evolução dependem de muitos fatores institucio-
ção da Contabilidade, com a globalização e a con- nais, econômicos e sociais.
vergência internacional da regulação, tal acalorada Querer, assim, prognosticar o que a Contabi-
discussão sobre as duas visões da Contabilidade lidade possa vir a ser é querer prever o que a so-
perde parte de seu significado na prática, sendo ciedade humana será, no futuro. Afinal, Melis (1950)
certo, todavia, que ambas são dignas (pelo menos expressou da forma mais feliz a complexidade do
para os “scholars”), de estudo e de meditação. O enigma: “A história da contabilidade confunde-se
mais importante, mesmo nesse exercício teórico, é com a história da própria civilização!”.

R. Cont. Fin. – USP, São Paulo, n. 38, p. 7 – 19, Maio/Ago. 2005

RC-USP_pg007-019.indd 18 7/22/aaaa 09:49:31


CONTABILIDADE: ASPECTOS RELEVANTES DA EPOPÉIA DE SUA EVOLUÇÃO
19

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANTHONY, R. N. Management Accounting. Homewood Irwin, 1966. LOPES, A. B.. A Informação Contábil e o Mercado de Capitais. São
ANTUNES, M. T. P.. Contribuição ao Entendimento e Mensuração Paulo: Thomson, 2002.
do Capital Intelectual. 1999. Dissertação (Mestrado em Ciências MARTINS, E.. Uma Geral na Contabilidade. Seleções ATC, COAD,
Contábeis. Área de concentração: Controladoria e Contabilidade). 1988. e 2ª. Convenção de Contabilidade do Rio Grande do Sul,
Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Canela, agosto/1988.
Universidade de São Paulo, São Paulo. . Contabilidade versus Fluxo de Caixa. Caderno de
BALL, R.; BROWN, P.. An Empirical Evaluation of Accounting Estudos EAC/FIPECAFI, v. 11, n. 20, janeiro/abril-1999.
Numbers. Journal of Accounting Research, v. 7, Out. 1968.
. Contabilidade versus Fluxo de Caixa. IOB – Caderno
BEAVER, W. The Information content of annual earnings de Temática Contábil, n. 20, 3a. semana, maio-2000.
announcement. Journal of Accounting Research, v. 6, suplemento,
. (org.) Avaliação de Empresas: Da Mensuração
1968.
Contábil à Econômica. São Paulo: Atlas, 2001.
DEMSKI, J.. Uncertainty and Evaluation Based on Controllable
; LISBOA, L. P.. Ensaio Sobre Cultura e Diversidade
Performance. Journal of Accounting Research X (autumn 1976),
Contábil. Revista Brasileira de Contabilidade, nº 152, ano XXXIV,
230-45.
Março-Abril, 2005.
EDWARDS, E.; BELL, P.. The Theory and Measurement of Business
MATTESSICH, R.; KUPPER, H.U.. Accounting research in the
Income. University of California Press, 1961.
German language area-first half of the 20th century. Review of
GALASSI, G.; MATTESSICH, R.. Italian Accounting Research in the Accounting & Finance, vol. 2, 2003, p. 106.
First Half of the 20th Century. Review of Accounting & Finance, vol.
MELIS, F. Storia della Ragioneria. Bologna: Dott. Cesare Zuffi,
3, 2004, p. 62.
1950.
HENDRIKSEN, E. S.; VAN BREDA, M. F.. Teoria da Contabilidade.
São Paulo: Atlas, 1999. MEYER, J. W.; ROWAN, B.. Institutionalized organizations: formal
structure as myth and ceremony. London: Sage, 1992.
HOPWOOD, A.G.. On trying to study accounting in the contexts in
which it operates. Accounting, Organizations and Society, 1983, RIBEIRO, M. S.. Contabilidade e Meio Ambiente. 1992. Dissertação.
8: 287-305. (Mestrado em Ciências Contábeis. Área de concentração:
Controladoria e Contabilidade) Faculdade de Economia,
IUDICIBUS, S.. Contribuição à Teoria dos Ajustamentos Contábeis. Administração e Contabilidade, Universidade de São Paulo, São
1966. (Tese de Doutoramento) Faculdade de Economia, Admi- Paulo.
nistração e Contabilidade, Universidade de São Paulo, são Paulo.
. Custeio das Atividades de Natureza Ambiental. 1998.
. Conhecimento, Ciência, Metodologias Científicas e Tese (Doutorado em Ciências Contábeis. Área de concentração:
Contabilidade, Parte II. Revista Brasileira de Contabilidade, Março- Controladoria e Contabilidade). Faculdade de Economia,
Abril de 1998. Administração e Contabilidade, Universidade de São Paulo, São
. Teoria da Contabilidade. 7ª ed., São Paulo: Atlas, Paulo.
2004.
ROSS, S.. The Economic Theory of Agency: The Principal’s
; CARVALHO, L. N.. Por que Devemos Ousar em Problem. American Economic Review, LXIII (March 1973), 134-39.
Contabilidade. Boletim do IBRACON, Maio de 2001.
SWEENEY, J.. Stabilized Accounting. 1936.
; LOPES, A.. De Volta para o Futuro: Óbito Presumido
SZÜSTER, N.. Análise do Lucro Passível de Distribuição. 1985.
e Outros Mitos que Habitam o Castelo da Contabilidade. UnB
Tese (Doutorado em Ciências Contábeis. Área de Concentração:
Contábil, 2002, 59.
Controladoria e Contabilidade). Faculdade de Economia, Admi-
; LOPES, A. B.. Teoria Avançada da Contabilidade. nistração e Contabilidade, Universidade de São Paulo, São Paulo.
São Paulo: Atlas, 2004.
THEÓPHILO, C. R.. Pesquisa em Contabilidade no Brasil: Uma
; MARION, J. C.; PEREIRA, E.. Dicionário de Termos Análise Crítico-Epistemológica. 2004. Tese (Doutorado em Ciências
de Contabilidade. 2ª ed., São Paulo: Atlas, 2003. Contábeis. Área de concentração: Controladoria e Contabilidade).
JENNERGREN, L. P.. On the Design of Incentives in Business Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade,
Firms-A Survey of Some Research. Management Science XXV Universidade de São Paulo, São Paulo.
(February 1980), 180-200. TINOCO, J. E. P.. Balanço Social: uma abordagem da transparência
JENSEN, M. C.; MECKLING, W. H.. Theory of the firm: managerial e da responsabilidade pública das organizações. São Paulo: Atlas,
behavior, agency costs and ownership structure. Journal of 2001.
Financial Economics, v. 3, Out. 1976. WILSON, R.. The Theory of Syndicates. Econometrica XXXVI
KAM, V. Accounting Theory. New York: John Wiley & Sons, 1990. (January 1968), 119-32.

NOTA:
Endereço dos autores:

FEA-USP
Av. Prof. Luciano Gualberto, 908
Cidade Universitária
São Paulo – SP
05508-900

R. Cont. Fin. – USP, São Paulo, n. 38, p. 7 – 19, Maio/Ago. 2005

RC-USP_pg007-019.indd 19 7/22/aaaa 09:49:31

Você também pode gostar