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CONTABILIDADE CRIATIVA E RESPONSABILIDADE DOS AUDITORES

CONTABILIDADE CRIATIVA E
RESPONSABILIDADE DOS AUDITORES
Ariovaldo dos Santos
Professor Doutor do Departamento de Contabilidade e Atuária – FEA-USP
E-mail: arisanto@usp.br

Ivan Ricardo Guevara Grateron


Profesor de la Universidad Centroccidental Lisandro Alvarado – UCLA – Barquisimeto – Venezuela
E-mail: ivanrguevara36@hotmail.com

RESUMO ABSTRACT

Nos contextos nacional e internacional da profis- In the national and international contexts of
são contábil, o auditor tem exercido um papel funda- professional accounting, the auditor has played a fun-
mental. A atividade profissional do auditor indepen- damental role. The professional activity of the
dente tem ajudado a impulsionar o desenvolvimento independent auditor has both helped to encourage
dos mercados, além de contribuir para o estabeleci- market development and contributed to the
mento da ordem socioeconômica mundial. Na visão establishment of a global socio-economic order. From
dos usuários externos da informação contábil, e dos the point of view of the external users of accounting
próprios clientes, a atuação do auditor é sinônimo de information and the clients themselves, the
confiança e credibilidade. professional activity of the auditor is a synonym of
Nos últimos meses, a onda de escândalos trust and credibility.
contábeis, com grandes empresas de auditoria en- In the last few months, the wave of financial
volvidas, e até sentenciadas (no caso Enron, a scandals involving large auditing companies, some
Andersen foi considerada culpada, por um Júri de of which were even convicted for their demonstrated
Houston – Texas, pela destruição de documentos), – direct and indirect - intervention in cooking the
marcou a atividade profissional dos auditores e pa- books, left marks in the professional activity of
rece ter mudado a visão de responsabilidade des- auditors, and changed the view on these
ses profissionais sobre esses fatos. professionals’ responsibility for these facts.
No presente artigo são estudados e apresenta- This article studies and presents the basic
dos alguns conceitos fundamentais relacionados com concepts related to the phenomenon of earnings
o fenômeno da contabilidade criativa, assim como management, as well as the factors that induce it,
os fatores que induzem sua utilização, dentre os quais among which we can highlight: ethical and moral
pode-se destacar: valores éticos, morais e vácuos values, loopholes or flexible accounting regulations.
ou flexibilidade normativa. Tais fatores acabam por These factors end up acting as catalyzers of
funcionar como catalisadores da engenharia contábil accounting engineering in the design of financial
no desenho das demonstrações contábeis e passam statements and start to serve the interests of those
a atender os interesses de quem as elabora em vez who elaborated them instead of seeking to give a true
de buscar a imagem fidedigna do patrimônio. and fair view of the equity.

Palavras-chave: contabilidade criativa, responsa- Keywords: earning management, auditor


bilidade do auditor, ética. responsibility, ethics.

Recebido em 17.12.2002 • Aceito em 02.06.2003 • 2ª Versão 27.06.2003

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INTRODUÇÃO contábeis. Paralelamente, a função de auditoria se


desenvolveu com muita rapidez e vem ocupando
A expressão “Earnings Management”, utilizada posições de grande importância na sociedade. A base
para se referir à Contabilidad Creativa, como tem sido desse desenvolvimento da profissão do auditor
freqüentemente traduzida para a língua espanhola1 , lastreou-se, fundamentalmente, na crescente neces-
ou, em português, Contabilidade criativa, como será sidade das informações requeridas pelos usuários,
utilizada no contexto deste trabalho, tanto na sua prá- previstas com a objetividade de um profissional in-
tica como quando é utilizada como estratégia em- dependente que agrega credibilidade e fidúcia aos
presarial, vem ganhando cada dia uma maior pre- dados oferecidos pela entidade auditada.
sença na informação contábil das empresas. O que se discute atualmente é se a responsabili-
É impor tante considerar que a expressão dade do auditor deve restringir-se à emissão de um
earnings management deve ser desmembrada nas parecer que contenha sua opinião profissional, em
duas palavras que a compõem. De um lado a pala- relação à aplicação dos princípios fundamentais de
vra management, que em português significa ge- contabilidade, ou também incluir a necessidade de
rência ou manuseio, e, por outro, a palavra earnings, informações atuais dos usuários, já que o modelo de
cujo significado é, fundamentalmente, o resultado. As- parecer utilizado atualmente não foi concebido para
sim, earnings management pode ser entendida ser utilizado para tomada de decisões. Nesse senti-
como gerenciamento ou manuseio dos resultados, do, cabe a pergunta: deve-se requerer dos auditores
com a intenção de mostrar uma imagem diferente uma posição mais clara sobre a adequação das de-
(estável no tempo, melhor ou pior) da entidade. monstrações contábeis vis a vis as decisões que
Diversos autores têm escrito sobre a tênue bar- delas se podem inferir ou induzir, ou seja, deve-se
reira que separa a chamada Contabilidade criativa requerer uma responsabilidade social maior do que
da fraude contábil, ressalvando-se inclusive que al- aquela assumida até o presente momento? Em ou-
guns desses autores as tratam como sinônimas. A tras palavras, cabe perguntar se se pode exigir dos
transparência na informação tem se convertido num auditores opiniões que possam ser utilizadas para a
requisito fundamental para o funcionamento dos tomada de decisões.
mercados internacionais, e isso exige um conjunto
de medidas, normas e regras com o objetivo de ga- 2. PREMISSAS BÁSICAS
rantir que a “adequada” informação contábil chegue
até seus usuários. Esse adjetivo, “adequada”, atri- O desenvolvimento do mundo dos negócios e a
buído à informação contábil, pode ser interpretado globalização têm impulsionado a necessidade mun-
de muitas formas diferentes e deverá, neste traba- dial de organizar e padronizar ou harmonizar as prá-
lho, ser entendido como a aplicação natural dos prin- ticas contábeis dos diferentes países. Essa padroni-
cípios fundamentais da contabilidade. Aparentemen- zação (que nos parece utópica) também deverá ser
te, a aplicação das normas e regulamentos estabe- buscada nas técnicas de revisão e emissão de pare-
lecidos, tanto no âmbito legal como no normativo pro- ceres2 por parte dos auditores.
fissional, não tem conseguido seu principal objetivo As mudanças dos negócios e a globalização, ali-
no sentido de impedir ou diminuir a prática da Conta- adas ao desenvolvimento tecnológico, têm ocorrido
bilidade criativa e quiçá deva apelar-se às suas im- com extrema rapidez e vêm deixando as empresas
plicações éticas. cada vez mais vulneráveis, obrigando-as a uma con-
Tal prática nem sempre tem sido evidente na in- corrência acirrada. Tal processo tem tornado as ope-
formação contábil que as empresas oferecem; ao rações e transações das empresas cada vez mais
contrário, na maioria das vezes essa prática encon- numerosas e complexas, implicando demandas de
tra-se escondida nas complexas demonstrações serviços de auditoria cada vez mais adaptadas às

1
Um dos autores é venezuelano.
2
Em Bruxelas, a Comissão Européia está revisando a última versão sobre o Documento de Incompatibilidades que prevê mudanças no trabalho dos auditores e no parecer
padrão. http://www.expansiondirecto.com/edicion/noticia/0,2458,132569,00html

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mudanças e, conseqüentemente, tornando mais vul- A existência de práticas criativas pode induzir os
neráveis as responsabilidades do auditor perante administradores das entidades relacionadas à
seus clientes e terceiros. auditada, ou com interesses sobre ela, a tomar deci-
Esta situação, em muitos casos, tem obrigado os sões erradas, inexatas ou, no mínimo, diferentes da-
gestores da entidade a introduzir modificações, mui- quelas que tomariam se tivessem o mesmo conheci-
tas vezes por via de artifícios nos registros contábeis, mento sobre a entidade que têm aqueles que prepa-
que são avalizadas nos pareceres de auditores in- raram e divulgaram as respectivas informações. As
dependentes. De forma geral, os usuários entendem práticas de Contabilidade criativa distorcem a infor-
os pareceres dos auditores como um plus, ou valor mação contábil e é provável, inclusive, que seja essa
agregado, de qualidade à informação e tomam o a principal razão de sua existência, pois modifica ou
nome do auditor como um símbolo de credibilidade, induz a matriz de decisões dos usuários.
confiança e segurança. É bastante comum encontrar, na bibliografia téc-
De alguns anos para cá, os resultados dos traba- nica, divergências profundas na delimitação do sig-
lhos das auditorias independentes ultrapassaram os nificado e as razões que motivam a inclusão das prá-
interesses específicos dos administradores das en- ticas de contabilidade criativa. A forma para definir a
tidades auditadas. As próprias leis e normas que re- Contabilidade criativa utilizada por um autor pode ser
querem esses serviços citam outros interessados completamente diferente da utilizada por outro. As-
indiretos. Em outras palavras, todos aqueles que, de sim, pode-se encontrar a utilização do termo conta-
alguma forma, tenham qualquer tipo de relação com bilidade criativa como um sinônimo de manipulação
a entidade auditada terão interesse na opinião dos contábil, maquiagem contábil, arbitrariedade contábil
auditores e nela basearão suas decisões. Tais inte- e até como uma técnica para “melhorar” o conteúdo
ressados podem resumir-se nos seguintes grupos: da informação contábil. Em nossa opinião, a contabi-
investidores, credores, devedores, financiadores, re- lidade criativa não pode ser entendida apenas como
ais ou potenciais, sindicatos de empregados e sindi- uma forma de manipulação dos resultados da enti-
catos patronais. Em outras palavras, o relatório do dade. Ela é muito mais ampla e deve considerar ou-
auditor tem usuários internos e externos iguais em tras alterações que podem ser feitas no sentido de
importância e isso está consagrado nas Normas In- se alterarem, além dos resultados, itens que possam
ternacionais de Auditoria, emitidas pelo Comitê In- mascarar a apuração de índices ou coeficientes, cal-
ternacional de Práticas de Auditoria do International culados com base nas demonstrações contábeis.
Federation of Accountants - IFAC, de cujo texto se Com o estudo e análise da responsabilidade
pode extrair que a auditoria é um serviço que se pres- que poderiam ter os auditores independentes
ta à empresa auditada e que interessa não só a pró- sobre a existência de práticas de Contabilidade
pria empresa, mas também a terceiros, evidencian- criativa nas demonstrações contábeis de seus
do sua função social. clientes, pretende-se oferecer uma contribuição aos
Os gestores das organizações, regra geral, se usuários da informação contábil, reais e potenciais,
servem dos pareceres de auditoria para incluir ou e, muito especialmente, aos auditores que come-
tomar decisões de caráter econômico-financeiro e çam seus passos nessa fascinante atividade pro-
requerem informação objetiva e oportuna que lhes fissional. Para isso, serão necessárias a discussão
permitam que tais decisões sejam as mais ade- e a análise de aspectos relevantes, que têm sido
quadas. A informação que se oferece atualmente objeto de amplas e profundas reflexões por parte
não permite identificar claramente as práticas de dos profissionais que trabalham em empresas de
Contabilidade criativa existentes nas demonstra- auditoria e por pesquisadores e profissionais rela-
ções contábeis, e a opinião do auditor, contida no cionados a essa atividade.
parecer tradicional, não estabelece seu grau de As demonstrações contábeis das entidades têm
responsabilidade com respeito a esse fenômeno, sido, até o presente, uma das maneiras como a or-
e isso, no atual contexto, pode acabar criando in- ganização se comunica com o mundo exterior; ao
certezas nos usuários. mesmo tempo, têm sido o resultado da aplicação de

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princípios e normas de contabilidade que buscam, colha dos procedimentos que melhor se adaptem aos
fundamentalmente, a consecução de informação fi- requerimentos estratégicos da organização, algumas
dedigna, real, objetiva e oportuna, que sirva aos di- vezes em detrimento dos interesses dos usuários da
ferentes tipos de usuários. Através do processo de informação.
auditoria, a entidade busca um profissional, indepen- A contabilidade criativa tem se desenvolvido em
dente da organização, que lhe possa agregar essa todas as áreas, sendo cada vez mais comum, com
credibilidade requerida pelos usuários da informação. práticas que têm sido cada vez mais complexas, de-
Em resumo, com a falta de harmonização contábil, mandando de seus criadores profundos e detalha-
a falta de especificidade das normas existentes e a dos conhecimentos técnicos e tornando mais difícil
conseqüente margem de interpretação e arbitrarie- sua identificação. De um lado, parte dos administra-
dade na aplicação que isso permite, pode-se identi- dores e gerentes da empresa utiliza a informação
ficar um problema de comunicação que afeta os contábil para mostrar a cara que desejam que seus
emissores da informação contábil e muito mais seus usuários conheçam, mesmo que esta não seja a mais
usuários. fidedigna. Por outro lado, diversos usuários se valem
da informação contábil e financeira produzida e
3. O ESTÁGIO DA CONTABILIDADE divulgada pela empresa, mesmo que alguns dados
CRIATIVA COMO FENÔMENO CONTÁBIL nem sempre estejam presentes, ou até estejam apre-
sentados de maneira confusa para dificultar sua com-
Muitos são os fatores que favorecem o exercício preensão.
da criatividade contábil, mas talvez o maior dos in-
centivos seja a impunidade, em todos os sentidos 3.1 Uma revisão bibliográfica sobre o tema
(jurídico, social, mercantil, etc.) do manipulador da
informação. Os auditores citam as seguintes causas Antes de abordar os conceitos técnicos específi-
como origem da contabilidade criativa: cos utilizados neste trabalho, é conveniente definir
a) Características dos princípios e normas alguns termos que se consideram fundamentais. O
contábeis: Novo Dicionário Básico da Língua Portuguesa, do
• existência de múltiplas estimativas; professor Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, defi-
• flexibilidade, arbitrariedade e subjetividade ne Auditoria como “Exame analítico e pericial que
na aplicação; segue o desenvolvimento das operações contábeis,
• diferentes, porém válidas, interpretações desde o início até o balanço”. Gestão, por sua parte,
dos princípios e normas contábeis; é definida como “Ato de gerir; gerência, ou adminis-
• conceito base de Imagem Fidedigna pou- tração”.
co claro ou indeterminado; e Uma das correntes que estuda a Contabilidade
• cuidados da administração na aplicação de criativa, mais especificamente a anglo-saxônica, a
princípios como prudência, confrontação de define como um conjunto de técnicas e práticas rea-
receitas e despesas e uniformidade. lizadas por parte de um gestor com a finalidade de
b) Características sociais e de comportamento manipular e obter um nível de resultados (lucros ou
humano: prejuízos) desejado. Outros a definem como a sele-
• valores éticos e culturais; e ção das melhores alternativas, válidas do ponto de
• atitude do administrador diante da fraude. vista da norma aplicável, utilizando-a como sinôni-
Como se pode observar, para a prática da conta- mo de estratégias criativas. Estes extremos, passan-
bilidade criativa, o gerente utiliza, principalmente, a do por diferentes estágios intermediários, evidenci-
flexibilidade dos princípios e normas contábeis a que am que uma definição consensual é praticamente
a empresa se obriga. Mesmo apresentando certas impossível.
restrições, no que se refere à elaboração, tratamen- O IFAC (1997), define que “O objetivo de uma
to e apresentação da informação contábil/financeira, auditoria das demonstrações contábeis é habilitar o
em muitos casos contempla a prudência para a es- auditor a expressar uma opinião sobre se as demons-

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trações foram preparadas, em todos seus aspectos consegue apresentar uma definição muito coerente
relevantes, de acordo com uma estrutura conceitual com a de autores reconhecidos na área: “Todas as
identificada para relatórios contábeis.” IBRACON empresas do país estão escondendo seus resultados.
(1998, p. 23). Os resultados anuais se baseiam em livros que têm
O termo gestão normalmente é associado a ad- sido ‘cozinhados’ ou ‘completamente assados’. As
ministração, e algumas vezes utilizado como seu demonstrações apresentadas duas vezes ao ano ao
sinônimo. Para o professor NAKAGAWA (1987, p. público investidor têm sido todas manipuladas para
50), da Universidade de São Paulo, o termo gestão proteger os culpados. ... De fato esta fraude é comple-
tem a conotação da palavra inglesa manage, per- tamente legítima. É a contabilidade criativa”.
mitindo deduzir-se o envolvimento do ato de condu- Por outro lado, o especialista contábil JAMESON
zir ou gerenciar. Esse autor define gestão como “a (1988, p. 8-9) afirma: “O processo contábil consiste
atividade de conduzir uma empresa ao alcance de em tratar com diferentes tipos de opiniões e resolver
um resultado desejado (planejado) por ela, apesar conflitos entre aproximações diferentes, para apre-
das dificuldades”. sentação dos resultados, dos fatos e transações fi-
Por outro lado, se revisarmos, no contexto do Di- nanceiras. Essa flexibilidade facilita a manipulação,
reito Internacional, o significado etimológico e jurí- mentira e tergiversação. Estas atividades – pratica-
dico da palavra fraude, encontraremos que se refe- das por elementos menos escrupulosos da profis-
re à tergiversação da verdade com intenção de en- são contábil - começam a ser conhecidas como Con-
ganar e pela qual se causam danos a terceiros, que tabilidade criativa”.
normalmente são de caráter econômico. Em nossa Outra perspectiva diferente é apresentada por
opinião, qualquer manipulação da informação SMITH (1992, p. 4-6), que, baseando-se em sua ex-
contábil que contenha uma distorção na conforma- periência como analista de investimentos, afirma:
ção correta desta deve ser entendida como uma “Nos dá a impressão que grande parte do aparente
espécie de fraude. crescimento, ocorrido no final dos anos 80, tenha sido
A fraude é definida nas Normas Internacionais de mais um resultado da manipulação contábil do que
Auditoria (IFAC, Tema 240, p. 53) como: “um ato in- um verdadeiro crescimento econômico, e queremos
tencional por parte de um ou mais indivíduos dentre expor as principais técnicas utilizadas e dar alguns
os membros administrativos, empregados ou tercei- exemplos de empresas que as estão utilizando.”
ros, que resulta em declarações falsas das demons- Nesta análise não pode ficar de fora o ponto de
trações contábeis”. Feitas essas considerações, é vista de um acadêmico. Neste sentido, NASER (1993,
conveniente revisar o que alguns autores definem p. 2) define a contabilidade criativa como: “a transfor-
como Earnings Management para poder entender mação das cifras da contabilidade financeira uma vez
o amplo sentido que este termo envolve, e assim que são, na atualidade, o que se deseja que sejam,
poder sustentar as afirmações finais. aproveitando as normas existentes e/ou ignorando
De forma geral, o termo em questão tem sido uti- algumas delas”.
lizado para referir-se ao processo mediante o qual O próprio AMAT (1997, p. 9-11) expõe que a Con-
os contadores aplicam os conhecimentos da norma tabilidade criativa consiste na manipulação que se
contábil para manipular, de acordo com sua conve- faz da informação contábil, aproveitando-se dos va-
niência, os valores das demonstrações contábeis. zios das normas existentes e as possíveis alternati-
Vários autores, citados por AMAT (1997, p. 11-12), vas que têm o gerente à sua disposição sobre as
expõem seus argumentos e definem o termo desde diferentes práticas de avaliação utilizadas.
suas diferentes perspectivas, ou seja, de jornalista, Como se pode notar, até este ponto todos os au-
especialista contábil, analista de investimentos e aca- tores citados entendem que existe manipulação da
dêmicos, tal como se mostra a seguir. “verdadeira” informação, alegando-se causas ou
Para o jornalista econômico GRIFFITHS (1986, p. motivos de questionável aceitação do ponto de vista
1), a contabilidade criativa tem um singular significa- da ética profissional, qualquer que seja a área de
do. Apesar de não ser um especialista da área contábil, atividade.

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Também se observa expressamente em forma ções contábeis, o que não é nada novo. Contudo,
subjacente nas afirmações dos autores anteriormente agrega Monterrey que a prática da contabilidade
citados, a referência ao não cumprimento de certos criativa exige a não aplicação das normas e prin-
parâmetros e a alusão à fraude, ambos relacionados cípios contábeis ou o abandono de sua aplicação
amplamente com valores éticos. Mais especificamen- uniforme; essa posição é diferente da oferecida
te, por exemplo, GRIFFITHS (1988, p. 11-14) assi- pelos autores anteriores que consideram a conta-
nala em seu artigo frases como “escondendo bene- bilidade criativa dentro da margem de cumprimen-
fícios”, “livros contábeis cozinhados ou assados”, “as to da norma contábil aplicável.
cifras que se mostram aos investidores têm sido Se nos referirmos ao significado jurídico e à ori-
manipuladas para proteger os culpados”. Possivel- gem etimológica da palavra fraude, apresentada
mente, essas frases, comuns nas definições dos previamente, em seu conceito aparecem as mes-
autores, servem para suportar com muita força a hi- mas palavras que se utilizam para descrever a con-
pótese da grande implicação dos valores éticos den- tabilidade criativa. No sentido jurídico da palavra
tro da contabilidade criativa, mesmo que não seja fraude, deve existir a culpa e/ou culpado. Podería-
difícil encontrar quem se negue a admiti-lo. mos, então, afirmar que este culpado, no contexto
GRIFFITHS (1988), citado por LAINEZ (1999, p. da contabilidade criativa, se refere ao gestor da
17), apresenta a contabilidade criativa em uma posi- empresa? Será que quando o autor afirma na fra-
ção intermediária entre o que é legal e o que é ético; se “escondendo resultados”, isso deve ou pode ser
entre a criatividade e a fraude contábil. Griffiths ain- interpretado como uma forma de ocultar a verda-
da utiliza o adjetivo “artimanhas”, de forma pejorati- de para enganar ou prejudicar terceiros? Como
va, para definir a contabilidade criativa e acaba por vemos, o debate a esse respeito parece ser suma-
afirmar que tais artimanhas “são legítimas e não in- mente controverso, contudo cremos que poderá ser
fringem as regras do jogo”, abrindo mais a brecha amenizado se a análise restringir-se ao campo da
que separa a norma de seu espírito em qualquer ética profissional.
âmbito de aplicação. GRIFFITHS (1995, p. 20-24) O conceito de fraude antes tratado, que
também descreve a Contabilidade criativa como a corresponde à premissa básica deste estudo, co-
manipulação da realidade da empresa para se che- incide completamente com o desenvolvimento das
gar em uma informação que reflita a situação dese- Normas Internacionais de Auditoria do IFAC que
jada e não a real. estabelecem que “Ao planejar e executar procedi-
Por sua parte, JAMESON op. cit. faz uma refle- mentos de auditoria e ao avaliar e relatar seus re-
xão mais coerente com nosso ponto de vista ético, sultados, o auditor deve considerar o risco de
ao afirmar que a contabilidade criativa opera em- distorções relevantes nas demonstrações
baixo da sombra da lei e das normas contábeis, e contábeis, como resultado de fraude ou erro.” O
que por isso está em contradição com o espírito de mesmo texto, na referida Norma Internacional de
ambas, qualificando-a como uma prática, no míni- Auditoria, estabelece que o termo fraude “refere-
mo, inadequada. se a um ato intencional por parte de um ou mais
Outros autores que têm escrito mais recente- indivíduos dentre os membros administrativos,
mente sobre a contabilidade criativa apresentam empregados ou terceiros, que resulta em declara-
posições um pouco mais radicais. Da mesma for- ções falsas das demonstrações contábeis.” Agre-
ma que Griffiths, Jameson e Amat, MONTERREY ga, também, que a fraude pode envolver:
em 1997, em seminário apresentado em Madrid – • manipulação, falsificação ou alteração de re-
Espanha - sustentou que a contabilidade criativa gistros ou documentos;
está for mada pela manipulação de valores • apropriação indébita de ativos;
contábeis através da flexibilidade, imprecisão ou • supressão ou omissão dos efeitos de transa-
inexistência de normas contábeis, que são utiliza- ções nos registros;
das individualmente ou em conjunto, para obter e • registro de transações sem comprovação; e
apresentar os valores desejados nas demonstra- • aplicação indevida de políticas contábeis.

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Por sua parte, JAMESON op. cit. identifica a con- distorcido que provoca nas informações contábeis.
tabilidade criativa dentro dos conflitos que podem Alguns organismos como a Security and Exchange
existir nas diversas alternativas sob as quais o gestor Commission (SEC), o American Institute of Certified
ou contador podem construir as demonstrações Public Accountants (AICPA) e o International
contábeis. Se observarmos a flexibilidade entre os Federation of Accountants (IFAC) estão trabalhando
diversos critérios que o autor cita como fonte de para limitar e reduzir o crescimento da prática da
manipulação para consumar o “engano” contábil, tal- contabilidade criativa, já que consideram que sua
vez devêssemos estar completamente de acordo. utilização pode ter efeitos perniciosos consideráveis,
Contudo, se colocarmos como parâmetro o “de- inclusive no âmbito macroeconômico, como os que
ver ser”, guiado pelos princípios e valores éticos estão presenciando, por exemplo, os Estados Uni-
do profissional, é possível que o gestor possa di- dos da América com os escândalos contábeis da
ferenciar facilmente entre decisões contábeis e Enron e WorldCom, entre outros não menos impor-
arbitrariedade. tantes. Isso nos permite inferir que será muito difícil
É oportuno considerar que a contabilidade criati- descobrir aqueles que, valendo-se de seus apura-
va está sempre localizada entre: a) a existência de dos conhecimentos técnicos-contábeis, manipulam
normas, regras ou parâmetros inexatos, pouco es- os dados da entidade para obter e apresentar situa-
pecíficos ou pouco detalhados que permitem sua di- ções irreais.
ferenciada interpretação e, por conseqüência, sua Acreditamos que a intenção representa um ele-
particular aplicação e b) a inexistência de tais pre- mento importante para qualificar as práticas criati-
ceitos normativos; é possível que os organismos vas como “más ou piores”, pois isso representa um
nacionais, colegiados ou associações profissionais agravante e não um elemento que permita diferenci-
regulem determinadas práticas com finalidade pura- ar os tipos de contabilidade criativa. A dificuldade ou
mente econômica e não ética. Isso significa o mes- impossibilidade de identificar a intenção dos gestores
mo que dizer que a contabilidade criativa pode ser nos leva a não considerar este elemento, apesar de
originada por uma lei e/ou norma/regulamento e tam- reconhecer sua grande importância.
bém pela ausência desses instrumentos legais. Para todos os autores citados, e outros não inclu-
Para LAINEZ & CALLAO (1999, p. 28-31), existe ídos neste trabalho, parece ser coincidente que o
um componente adicional que deve ser considerado termo “manipulação de resultados” associado à con-
ao estudar a contabilidade criativa e que, no nosso tabilidade criativa está identificado por dois fatores
modo de ver, complica a análise desse conceito. As- fundamentais:
sinalam os autores que a existência da contabilida- • resultado de uma atitude consciente ou pro-
de criativa está determinada pela flexibilidade e sub- duto da vontade de manipular as demonstra-
jetividade da norma; contudo, acrescentam que o ções contábeis; ou seja, apresenta-se uma
componente fundamental que determina a existên- informação que não coincide com a que se
cia dessa contabilidade criativa é a intenção do emis- poderia qualificar como “mais objetiva”. Por
sor da informação ao fazer uso dessa flexibilidade, esta razão, o objetivo dessa prática é confun-
subjetividade, dubiedade e imprecisão para obter os dir ou enganar os usuários acerca da situação
resultados desejados. Isso significa dizer que é pra- real da entidade; e
ticamente impossível identificar a contabilidade cria- • para todos os autores, a contabilidade criativa
tiva nas demonstrações contábeis. A análise da in- é vista como uma concepção pejorativa da ati-
tenção de quem constrói e apresenta resultado ma- vidade e que contraria os princípios da ética
nipulado é altamente subjetiva e sempre será um profissional.
componente que se presume, mas que raramente Por outro lado, CANO (2002, p. 2-3) estabelece
se pode comprovar. que existem outros dois aspectos ou fatores que
Até o presente tem-se a contabilidade criativa denotam as diferenças nas definições dos diferen-
como uma atividade inadequada e de pouca aceita- tes autores. Os primeiros desses fatores são de-
ção, principalmente quando se considera o efeito nominados, pelo autor, “manipulação real” e

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“manipulação contábil”, que a seguir são explica- 4. Obtenção ou manutenção de subvenções para
dos: “Determinados autores incluem em suas defi- a indústria, ramo de atividade ou setor;
nições tanto as decisões estritamente contábeis – 5. Alcançar medidas de proteção das agências
por exemplo, aquelas referidas na eleição de crité- governamentais e organismos internacionais
rios contábeis ou as estimativas necessárias para de financiamento;
levar a cabo a contabilidade (métodos de amorti- 6. Obtenção de benefícios fiscais através da isen-
zação, métodos de avaliação de estoques, ativa- ção e redução das bases de tributação;
ção ou não de despesas...), como aquelas que te- 7. Controle de dividendos; e
riam um efeito nas transações reais e não só em 8. Estratégias competitivas e de mercado, além
seu reflexo contábil (redução de orçamento, de des- de outras não menos importantes.
pesas, decisões sobre capital circulante líquido, Parece que será muito difícil justificar a boa
postergação de investimentos...). Outros autores, intenção dos gestores ou profissionais da contabili-
pelo contrário, consideram como contabilidade cri- dade no sentido de manipular dados que busquem
ativa somente as alterações estr itamente uma suposta “imagem mais fidedigna do patrimônio”.
contábeis, considerando as decisões sobre as tran- As questões que se poderiam colocar são: Para quem
sações reais como uma atividade lícita por parte e sob quais argumentos as demonstrações contábeis
dos gestores, totalmente independente dos artifí- serão mais confiáveis? Será possível haver
cios contábeis”. (tradução livre) homogeneidade na informação contábil?
O segundo dos fatores diferenciadores dos con-
ceitos dos autores apresentados é o que se refere 4. CONSIDERAÇÕES DE CARÁTER
ao alcance das práticas de contabilidade criativa. ÉTICO EM RELAÇÃO À CONTABILIDADE
Assim, por um lado alguns autores consideram que CRIATIVA
devem definir-se como práticas criativas aqueles
comportamentos que, mesmo com a transgressão É evidente que o desenvolvimento da atividade
ao espírito da norma contábil, não atentem expres- profissional dos auditores requer um componente
samente contra seu conteúdo. Exemplo disso é a uti- comportamental. Muitas vezes, o processo de tomada
lização de lacunas legais existentes ou de ambigüi- de decisões pode estar mais ligado aos princípios e
dade em sua interpretação. Por outro lado, outros valores éticos elementares do que aos aspectos técni-
autores consideram como contabilidade criativa não cos. Continuamente o auditor é submetido a questões
só aquelas práticas de interpretação conveniente das de caráter ético, devendo adotar uma de várias alter-
normas, mas também aquelas ações que infringem nativas de decisão, muitas vezes assumindo riscos
ou ignoram tais normas. Pesquisas empíricas reali- relacionados com a boa imagem do profissional.
zadas em países chamados “do primeiro mundo” A ética é um princípio fundamental e neces-
destacam que, dentro das principais motivações para sário para o bom funcionamento da sociedade, es-
manipulação contábil, os incentivos econômicos, tan- pecialmente para o exercício de diferentes profissões
to para os gestores como para as próprias empre- entre as quais se inclui a do auditor. Entendemos que
sas, são os mais freqüentes impulsionadores da con- a formação ética de um profissional definirá sua con-
tabilidade criativa. Entre os incentivos mais comuns duta no futuro e isso, conseqüentemente, se refletirá
podem-se mencionar os seguintes exemplos: na cultura e respectiva saúde econômica de seu país.
1. Obtenção de benefícios diretos sobre os re- Tal como escreve KNECHEL (1997, p. 422), “uma
sultados alcançados, margens das vendas, das restrições mais importantes que tem a pessoa
participação no mercado; que toma decisão na hora de fazê-lo é seu código
2. Obtenção de concessões, bonificações e prê- pessoal de ética ou moral. A ética pessoal não muda
mios extras; a natureza do processo de auditoria, mas a sensa-
3. Melhoria da imagem para inclusão no merca- ção individual de se fazer as coisas corretamente e
do financeiro (bolsas de valores e financiamen- não se equivocar terá um impacto direto na hora de
tos externos); definir o problema, estudar os critérios e avaliar as

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CONTABILIDADE CRIATIVA E RESPONSABILIDADE DOS AUDITORES
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alternativas possíveis em cada decisão” (tradução Por outro lado, CARMICHAEL e outros (1996, p.
livre). Por isso, pode-se afirmar que o comportamen- 46) identificam cinco preceitos chamados por eles
to ético é bastante relevante para se poder entender “Princípios da Ética” que, como veremos, se adap-
o conceito abstrato, muito utilizado pelo auditor, que tam perfeitamente ao exercício profissional do audi-
é o juízo profissional. tor. Estes preceitos são: a) Independência, integrida-
A pesquisa ética se concentra na solução dos de e objetividade; b) normas gerais e técnicas; c) res-
potenciais conflitos éticos que são produzidos como ponsabilidade com seus clientes; d) responsabilida-
resultado da confluência de diferentes interesses de com os colegas e; e) outras responsabilidades e
sobrepostos, o qual tem sido denominado pelos pes- práticas.
quisadores como “o dilema ético”. Nesse sentido, Outros conceitos que devem ser citados são os
podemos estabelecer uma relação direta e proporci- códigos de ética descritos pelos Guias de Auditoria
onal entre o crescimento das empresas e a comple- publicados pelo IFAC, os quais estão orientados no
xidade de suas operações com o aumento de de- sentido de melhorar a qualidade dos trabalhos de
mandas e litígios contra os auditores. auditoria, objetivando satisfazer as quatro necessi-
Como demonstrado na primeira parte, a in- dades principais dos clientes e os usuários em ge-
clusão de práticas criativas de contabilidade nas de- ral, ou seja: 1) Credibilidade; 2) Profissionalismo; 3)
monstrações contábeis das empresas pode ser um Qualidade dos serviços; e 4) Confiança.
problema legal, técnico de interpretação ou ético SHAFER et al. (2001, p. 256) afirmam que os va-
moral. Cada uma dessas posições é defendida por lores pessoais exercem uma notável influência so-
diferentes autores. Depois das considerações éticas bre a tomada de decisões no contexto das organiza-
descritas neste ponto, o que parece ser claro é que ções e dos negócios. O efeito potencial que têm os
em todos os casos o componente ético-moral está valores éticos nos modelos de decisão gerencial e
presente, ou seja, tanto nos conflitos de interpreta- pessoal sobre os modelos de decisão empregados
ção dos aspectos técnicos quanto nos de aplicação é amplamente reconhecido na atualidade, demons-
e cumprimento das normas legais. trando a estreita relação que têm as práticas criati-
Neste sentido, segundo WILLIANSON (1990), vas com o sistema de crenças e valores dos gestores
citado por SIERRA e outros (2001, p. 47-59), exis- e da própria entidade, e todos eles exercem um efei-
tem três níveis principais de responsabilidade que to significativo sobre o trabalho do auditor.
sustentam um sistema de disciplina:
a) a responsabilidade legal que é imposta pelos 5. CONSIDERAÇÕES SOBRE A
códigos de conduta da sociedade como requi- RESPONSABILIDADE DO AUDITOR
sito mínimo para quem recebe um reconheci-
mento profissional; O termo “Responsabilidade” está muito relacio-
b) a responsabilidade moral que são os códigos nado à atividade do auditor, e falar de um sem men-
de conduta que as pessoas se impõem a si cionar o outro seria muito difícil. No âmbito inter-
mesmas, normalmente de forma consensual. nacional, o termo inglês Accountability parece ser
Essa responsabilidade exige um padrão de o mais indicado para definir a responsabilidade
conduta superior ao requerido pela responsa- dentro do âmbito da atividade do auditor indepen-
bilidade ética. Pode ser de caráter individual dente. Para DÁVILA-GUZMÁN (1991, p. 18), res-
ou de uma associação de profissionais, como ponsabilidade: “É a obrigação de responder a uma
as empresas de auditoria; e tarefa que lhe tenha sido conferida e pressupõe a
c) a responsabilidade ética, que é a que se im- existência de, pelo menos, duas pessoas: a que
põe a um conjunto de profissionais sobre seus confere ou outorga a responsabilidade e a que acei-
membros para assunção voluntária de respon- ta com a obrigação de prestar contas sobre a ma-
sabilidades, pelo interesse público, diante dos neira como a exerceu.” Acrescenta em seguida o
colegas, clientes e a comunidade (Códigos de mesmo autor que “Prestação de contas é a obri-
Ética Profissional). gação assumida, por aqueles que exercem

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autoridade, de reportar sobre a forma como a au- trabalho. Para os usuários, de outro lado, a percep-
toridade foi exercida.” (Traduções livres) ção sobre a responsabilidade dos auditores é mais
No trabalho do auditor, a norma internacional exi- que evidente. Na maioria dos casos, quando os au-
ge a apresentação de um relatório ou parecer com a ditores são questionados sobre os fracassos empre-
opinião imparcial e independente sobre o resultado sariais de seus clientes, a reação instintiva os leva a
da revisão efetuada, o que se pode considerar como declarar que a administração da empresa é de intei-
a prestação de contas do auditor. ra responsabilidade do cliente e que seu fracasso é
A importância de alguns fracassos empresariais oriundo de práticas de gestão; contudo, a diferença
acompanhados de irregularidades na apresentação entre as expectativas geradas pelo auditor com seu
da informação contábil e financeira referente à em- trabalho e as esperadas pelos usuários parecem cada
presa tem conseguido macular a imagem de objeti- dia mais distantes.
vidade e independência do auditor e tem sensibiliza- Para os auditores parece estar bastante clara a
do a opinião pública, fundamentando sérias dúvidas delimitação de responsabilidades, contudo é eviden-
sobre a capacidade profissional dos auditores e da te a existência de um “gap” ou diferença, com res-
responsabilidade que se espera que assumam dian- peito à responsabilidade que os usuários esperam
te de seus atos e omissões. Isso é o que afirma Juan deles por seu trabalho profissional. Atualmente se
del CID (1994, p. 827). discute a necessidade de definição clara da respon-
Na Norma Internacional do IFAC está escrito que sabilidade dos auditores nos fracassos empresari-
os auditores serão responsáveis por todos os preju- ais de seus clientes. Apesar de não estarem obri-
ízos causados a terceiros como conseqüência do gados a evitá-los, pode se dizer que os auditores
descumprimento de suas obrigações profissionais, têm uma grande responsabilidade social, e também
entendendo-se por obrigações profissionais o cum- com seu cliente, de identificar possíveis indicado-
primento rigoroso das normas que regem o desen- res de fracassos para alertar a própria administra-
volvimento da atividade profissional; contudo, a falta ção e seus usuários.
de especificações sobre as mencionadas obrigações É possível que diante de uma situação delicada a
e os casos de descumprimento que ocasionam res- empresa proceda de maneira mais agressiva, poden-
ponsabilidade não estão claramente definidos, não do recuperar-se ou falir. Neste caso, o auditor está
só nas normas de caráter nacional de cada país, mas obrigado a reconhecer que terá sua responsabilida-
também na norma internacional do IFAC que tem sido de se não alertar em seu relatório uma possível con-
utilizada como modelo. seqüência negativa como produto da agressividade
Devemos destacar que a mencionada norma des- da Direção. Lamentavelmente, o problema discutido
creve como objeto de auditoria a emissão de um re- é de caráter conceitual apenas para os pesquisado-
latório, com a opinião profissional sobre a fidelida- res e acadêmicos; para os auditores prevalece o in-
de da informação prestada pela administração, a fim teresse profissional e isso pode ser entendido como
de que seja avaliada e conhecida por terceiros. Isso corporativismo.
permite afirmar que no trabalho do auditor está im- Quando se discute sobre os termos de respon-
plícito seu caráter social, pois considera a necessi- sabilidade dos auditores e as diferentes expectati-
dade de responder às expectativas dos usuários da vas sobre seu trabalho, é importante destacar a
informação contábil e financeira. definição de alguns aspectos como: 1) a respon-
Como dito anteriormente, os auditores não acei- sabilidade que tem e a que aceita o auditor pela
tam a responsabilidade pelos fracassos empresari- detecção e comunicação de fraudes e irregulari-
ais, nem sequer a relação desses fracassos com o dades; 2) posição e imagem independente do au-
processo de auditoria. Tampouco aceitam a respon- ditor com seus clientes frente a isso e a comunida-
sabilidade pela emissão de informação “manipulada de em geral; 3) compromisso de serviços públicos
com dados falsos” com a utilização da Contabilidade dos auditores ou responsabilidade social; e 4) sig-
criativa, o que poderia ser considerado como condu- nificado da utilidade da informação para clientes e
ta fraudulenta, tal como foi descrito no início deste usuários externos.

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CONTABILIDADE CRIATIVA E RESPONSABILIDADE DOS AUDITORES
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Mesmo que pareça estar claro para os auditores, informação dos usuários, convertendo-se em um pro-
de acordo com as normas profissionais emitidas no blema da profissão que ultrapassa fronteiras. Mes-
âmbito internacional, o fato é que os auditores não mo assim, a existência de práticas criativas que des-
têm assumido nenhum tipo de responsabilidade pela virtuam o objetivo descrito na norma internacional
não detecção de erros e irregularidades que provo- de auditoria representa um dos mais importantes
quem fraudes. Segundo a norma de auditoria SAS problemas atuais da profissão do auditor, principal-
82 e 993 , só em caso de tais irregularidades atingi- mente se se considerar sua responsabilidade social
rem materialidade significativa, o auditor assume a assumida ou aquela que se espera que deveriam
responsabilidade pela não detecção. Contudo, a im- assumir.
precisão utilizada para definir este ponto tem sido
objeto de grandes debates. 5.1 – O papel do auditor frente ao
Não podemos nos esquecer que a profissão de fenômeno da Contabilidade criativa
auditor nasceu com a intenção de cuidar do
patrimônio de seus clientes contra manuseios Para analisar a relação que guarda o auditor com
indevidos dos empregados, objetivo que evoluiu no a contabilidade criativa, é importante definir quais são
tempo até converter-se no que atualmente representa as possibilidades de manipulação das informações
de forma indiscutível: emitir uma opinião profissional contábeis. Os incentivos que podem levar os admi-
independente sobre a veracidade e fidelidade da in- nistradores a realizar práticas criativas, com a inten-
formação contida nas demonstrações contábeis de ção de mostrar a seus usuários uma imagem dife-
seus clientes. rente da “real”, são múltiplos, contudo podem ser
Esta última afirmação é consistente com o fato agrupadas em três grandes categorias. Nesse senti-
de que, de acordo com as próprias normas interna- do, a empresa pode optar por mostrar uma imagem
cionais da profissão, para chegar à opinião profissio- melhorada, deteriorada ou estável, em comparação
nal antes descrita é necessário e obrigatório elabo- com a imagem “natural ou real”.
rar um plano de auditoria que possa detectar irregu- Em nossa opinião, é de ampla aceitação a afir-
laridades significativas, escusando-se de responsa- mação de que o profissional de auditoria desempe-
bilidade pela não detecção de outras de menor im- nha um papel importante no grau de confiança que
portância. É possível que estes tipos de divergênci- depositam os usuários da demonstração contábil e
as, distâncias, diferenças de princípios contábeis na relativa garantia que devem suportar as decisões
sejam diminuídos se se fizer uma revisão do caráter dos entes com base nas demonstrações auditadas
autoregulador da profissão. e, inclusive, que representem o suporte do mercado
Cabe ressaltar que na atualidade, talvez como financeiro, o qual pode evidenciar-se se estudarmos
uma forma de resposta diante desta marcada e evi- o conteúdo do parecer do auditor, ao menos em al-
dente diferença de expectativa, ou simplesmente gumas de suas frases mais importantes.
uma nova fonte de receita, algumas empresas de Os conhecedores da atividade de auditoria en-
auditoria como Ernst & Young e Coopers & Lybrand, tendem com facilidade o alcance da opinião do au-
atualmente PricewaterhouseCoopers, oferecem ditor; essas pessoas, normalmente, sabem como
serviços específicos para detectar e prevenir frau- interpretar e tratar cada parágrafo do parecer do au-
des. Como é lógico, o marcado desenvolvimento ditor. Contudo, é bastante comum entre os usuários
da profissão nos últimos anos gerou as correspon- menos advertidos considerar, por exemplo, um pa-
dentes expectativas nos clientes e usuários na recer limpo ou sem ressalvas como uma garantia
mesma proporção que a velocidade do dito cresci- total de que todas as demonstrações contábeis que
mento e desenvolvimento. o acompanham são corretas e exatas. Talvez isso
Fica evidente que existe um divórcio entre a fun- se deva ao conteúdo e significado altamente técni-
ção da auditoria independente e as necessidades de co das frases que compõem o parecer padrão tais

3
O Comitê de Normas de Auditoria do AICPA aprovou a nova Declaração de Normas de Auditoria Nº 99 (SAS 99) que contém considerações sobre fraude em auditoria
financeira que antes estava regida pelo SAS 82. A nova norma começa a vigorar a partir das auditorias iniciadas a em 15/12/02.

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como: “Em nossa opinião...”; “...nossos exames fo- auditor, claro que no caso de alterações que pu-
ram conduzidos de acordo”; “...considerando a re- dessem ser consideradas relevantes.
levância dos saldos...”. Diante da generalização de práticas criativas,
Tanto para os usuários conhecedores dos as- entendemos que os auditores deveriam refletir so-
pectos técnicos como para os menos advertidos, bre a possibilidade de considerar em seus parece-
o trabalho do auditor representa uma garantia adi- res a indicação específica da inexistência de conta-
cional relativa e independente que lhes permite bilidade criativa, mesmo entendendo que a opinião
tomar decisões com maior confiança do que teri- do auditor se baseia no relatório por exceção; isso
am sobre as demonstrações contábeis não significa dizer que só se inclui no relatório aquilo que
auditadas. Talvez isso seja conseqüência do signi- não é adequado aos princípios e normas contábeis.
ficado, tanto técnico como semântico, de uma fra- Entendemos que a necessidade de se incluir infor-
se incluída no parecer do auditor, mais especifica- mação referente à existência ou não de práticas cri-
mente quando se afirma que “as demonstrações ativas levará o auditor a ajustar seus planos de audi-
financeiras apresentam adequadamente, em todos toria, obrigando-os a buscar provas específicas para
aspectos relevantes, a posição patrimonial e finan- detectar tais práticas. Isso poderá ajudar a diminuir a
ceira ...” oferecendo uma idéia de que tudo está imagem de “posição cômoda”, “complacente” ou até
certo nas contas da entidade. de “cumplicidade”, entendida por muitos cidadãos
Diante dessa afirmação do auditor, os usuários diante desse fenômeno, agravada ainda mais pelos
passam a ter a sensação de segurança de que as últimos escândalos.
demonstrações contábeis não contém manipula- As empresas de auditoria, e os auditores em ge-
ções e isso pode lhes assegurar a confiança ne- ral, têm sido alvo de fortes críticas da opinião pública
cessária para tomada de decisões. Para enfatizar especializada pela posição tomada diante da proble-
a idéia, o auditor conclui o parágrafo citado de seu mática da contabilidade criativa. Alguns justificam
parecer dizendo que as demonstrações contábeis suas críticas a esses profissionais pela atitude com-
estão “de acordo com os princípios fundamentais placente, para outros até pouco profissional, frente à
de contabilidade” ou “de acordo com as práticas existência de práticas criativas por parte dos admi-
emanadas da legislação societária”, “aplicados de nistradores das empresas. Há casos em que os au-
forma consistente ou uniforme com os aplicados ditores chegaram a ser acusados de cúmplices dos
no exercício anterior”, o que permite a seus usuá- administradores. A essa discussão pode-se adicio-
rios realizar qualquer análise comparativa, tanto nar que é bastante comum empresas entrarem em
em termos relativos como absolutos, com garantia processo concordatário ou falimentar depois de apre-
de que haverá continuidade. sentarem pareceres de auditoria totalmente limpos
É nosso entendimento que o referido parecer e sem ressalvas.
apresenta indicações de obsoletismo diante do fe- A imensa gama de incentivos existentes ou a fal-
nômeno da contabilidade criativa. Esse entendimen- ta de sanções específicas para quem manipula in-
to se sustenta na constatação do significado da con- formações contábeis, seja qual for o motivo, nos per-
tabilidade criativa e de seus efeitos no poder infor- mitem inferir que o fenômeno da contabilidade criati-
mativo dos relatórios contábeis e financeiros das va é de difícil erradicação. A isso deve ser acrescido
entidades, onde observamos perplexos a falta de que no futuro tais práticas deverão ser cada vez mais
qualquer referência a esse tipo de prática. Nossa sofisticadas, o que nos faz prever que serão mais
afirmação anterior consegue sustentação nas idéi- difíceis de identificar ou descobrir. Se isso é verdade
as de autores anteriormente citados, mais especifi- para os profissionais da auditoria, o que então pen-
camente Monterrey, quando afirma que a prática da sar das dificuldades que representarão para os usu-
contabilidade criativa exige o descumprimento dos ários não afeitos às práticas contábeis tradicionais?
princípios e normas contábeis ou abandono da apli- Dentre as normas internacionais de auditoria promul-
cação uniforme dos mesmos. Esta situação exigiria gadas pelo IFAC, existe uma denominada “Fraude e
parágrafos de ênfase ou ressalvas na opinião do erro”, que têm como objetivo o estabelecimento de

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CONTABILIDADE CRIATIVA E RESPONSABILIDADE DOS AUDITORES
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normas e a proposição de orientação sobre a res- organizações. Uma das sugestões que encontramos
ponsabilidade do auditor ao contemplar fraude e erro é a descrição de Comitês de Auditoria com funções
em uma auditoria de demonstrações contábeis. A estritamente de controle. Isso poderia minimizar a
norma de auditoria americana “Statement on Auditing falta de confiança que os usuários têm nas demons-
Standard” (SAS n. 82/1996), publicada pelo Instituto trações contábeis preparadas pela administração e
Americano de Contadores Públicos Certificados a pouca garantia que os auditores oferecem atra-
(AICPA), estabelece uma clara diferença entre erro vés de seus relatórios. Outra ação de controle que
e fraude. A diferença fundamental está na intenção tem sido identificada e utilizada nesse sentido é a
da prática da irregularidade, tornando-a sinônimo de de incorporação de pessoas independentes nos
fraude. Deve-se lembrar que esse componente “in- Conselhos de Administração e Fiscal, também de-
tenção” é considerado por Laínez – citado anterior- nominada de governança corporativa. Entendemos
mente – como um dos requerimentos básicos que que a posição do auditor independente frente à exis-
servem para qualificar uma prática contábil como tência da contabilidade criativa nas empresas que
contabilidade criativa. Por outro lado, o erro deve ser audita não é nada fácil.
entendido como simples omissões involuntárias, com Nos casos em que a prática da contabilidade cri-
efeitos que raramente são relevantes nas demons- ativa está dentro da margem de legalidade, devido à
trações contábeis. diversidade de alternativas e opções oferecidas pela
A norma internacional de auditoria do IFAC, ante- contabilidade, o auditor estará tecnicamente impos-
riormente citada, define o termo fraude como “Um sibilitado de considerá-la em seu parecer. Na verda-
ato intencional ...”. A norma ainda adiciona que “A de, nesse caso, ao auditor só restaria utilizar seu re-
fraude pode envolver manipulação, falsificação ou latório como uma forma de pressionar os adminis-
alteração de registros e documentos; apropriação tradores, pois, por razões óbvias, tais administrado-
indébita de ativos; supressão ou omissão de efeitos res não estarão dispostos a ver seus relatórios com
de transações nos registros e documentos; registro ressalvas ou parágrafos que possam colocar sua
de transações sem comprovação e aplicação contabilidade sob suspeição.
indevida de políticas contábeis.” Deve-se lembrar que, mesmo para o auditor, cujo
Diante dessa situação, o auditor deve incluir em acesso é irrestrito à informação que considere neces-
seu plano de trabalho procedimentos específicos que sária para suportar sua opinião – caso contrário, pro-
visem a identificar, ao menos, a existência das práti- duzir-se-á uma limitação ao trabalho e, por conseguin-
cas de contabilidade criativa mais comuns, adaptan- te, uma ressalva – é bastante difícil identificar as práti-
do tais provas aos riscos inerentes de cada setor, cas de engenharia contábil. Um dos aspectos que sus-
empresa ou negócio. Na pressuposição de que o tentam esta afirmação é a dificuldade de se identificar
auditor agregue em seus planos de auditoria proce- a verdadeira intenção que tem o administrador em optar
dimentos que permitam identificar práticas criativas, por um ou por outro princípio ou norma contábil.
e que a administração se negue a corrigi-las, o audi- Uma das sugestões feitas por diferentes comis-
tor deverá incluir em seu parecer a respectiva res- sões de auditoria, no âmbito internacional, é a
salva ou parágrafos de ênfase que julgar necessári- implementação de Comitês de Auditoria e a partici-
os. Dependendo dos valores envolvidos poder-se-á pação de auditores, como conselheiros independen-
chegar até a negativa da opinião. Tal posição do au- tes, nos Conselhos de Administração, além de ela-
ditor exporá a empresa e poderá fazer com que ela borar sofisticados códigos de comportamento ético
reveja sua posição em relação às práticas de mani- e promover sua efetiva aplicação. Desta maneira se
pulação da informação contábil. evidencia, uma vez mais, que o problema se encon-
Algumas medidas de controle também têm sido tra principalmente no desvirtuamento dos valores
sugeridas para minimizar as possibilidades de prá- éticos e morais dos profissionais e também da soci-
ticas de contabilidade criativa. A década de 90 foi edade na qual se desenvolvem. Em outras palavras,
profícua na publicação de documentos relaciona- quer nos parecer que o problema a ser considerado
dos com as novas filosofias de controle interno nas é muito mais de caráter ético do que técnico.

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6. CONCLUSÕES O parecer de auditoria é a principal ferramenta


do auditor para cumprir a norma e relatar o produto
Pode-se concluir que o papel do auditor inde- de seu trabalho. Atualmente, o parecer de auditoria
pendente, frente ao fenômeno das práticas de con- não contempla qualquer informação relacionada à
tabilidade criativa nas demonstrações contábeis de Contabilidade criativa e essa é a principal razão para
seus clientes, não é nada fácil de definir. De qual- nosso entendimento de que há certo grau de
quer forma, esse é um tema que os auditores deve- obsoletismo em sua forma e conteúdo. Felizmente,
rão enfrentar com muita coragem e determinação, nos dias atuais estão sendo desenvolvidos estudos
sob pena de aumentar a perda de confiança e o no sentido de se modificar o modelo-padrão de pa-
abismo entre o trabalho por eles produzido e as recer que vem sendo utilizado há anos. A inclusão
expectativas dos usuários. de frases que indiquem que o trabalho realizado pelo
O problema da contabilidade criativa parece ter auditor pode ou não estar considerando práticas de
sua origem na crise de valores éticos e morais da contabilidade criativa deveria constar das próximas
sociedade contemporânea, mais do que na modificações.
indefinição técnica e normativa. Ainda assim, quere- Finalmente, queremos destacar que, pela contri-
mos declarar nossas esperanças no comportamen- buição que representou, representa e continuará re-
to ético do profissional que elabora as demonstra- presentando o trabalho dos auditores para a socie-
ções contábeis, ainda que pareçam pouco otimistas. dade, os profissionais dessa área não poderão se
É possível inferir que as práticas de contabilidade furtar a reconhecer que é chegada a hora de fazer
criativa não são casuais e são realizadas, na maio- as mudanças que estão sendo requeridas.
ria dos casos, para distorcer e modificar a “imagem Capacitação técnica temos certeza que existe, e de
fidedigna” de uma entidade, podendo até fazer parte sobra; o momento é de uma decisão que possa acom-
de políticas e estratégias empresariais no sentido de panhar a evolução dos negócios e o ritmo da
modificar ou interferir na visão ou percepção que te- globalização, sem o ranço de um conservadorismo
rão os usuários a partir da informação contábil. que está na hora de ser enfrentado.
Estamos convencidos de que a normatização e a
harmonização contábil poderão contribuir de forma
muito positiva. A redução de alternativas de escolha
entre princípios e práticas contábeis, entre as regras
específicas de valoração de ativos e passivos, entre
os critérios de amortização etc. deverão influir de for-
ma determinante, principalmente porque a prática da
contabilidade criativa encontra campo fértil na ambi-
güidade ou inexistência de normas. Esta cada vez
maior limitação à contabilidade criativa deverá trazer
maior qualidade às infor mações analíticas
disponibilizadas aos usuários, já que limitará, cada
vez mais, o conceito abstrato e subliminar da “ima-
gem fidedigna” do patrimônio.
A crescente perda de credibilidade e confiança
por parte dos clientes e usuários no trabalho do au-
ditor, muitas vezes motivada pela falta de qualidade
dos trabalhos ou relatórios, tem aumentado as ex-
pectativas e influenciado de forma importante um
número cada vez maior de processos judiciais con-
tra auditores e empresas de auditoria.

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CONTABILIDADE CRIATIVA E RESPONSABILIDADE DOS AUDITORES
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