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A subjetividade como anomalia: contribuições

TEMAS LIVRES FREE THEMES


epistemológicas para a crítica do modelo biomédico

Subjectivity as anomaly: epistemological contributions


for a criticism of the biomedical model

Carla Ribeiro Guedes 1


Maria Inês Nogueira 1
Kenneth R. de Camargo Jr. 1

Abstract The purpose of this paper is to open a Resumo Este artigo tem como proposta estabele-
discussion on biomedicine focused on a reflection cer uma discussão sobre a biomedicina trazendo à
about the role subjective phenomena related to the tona uma reflexão sobre o lugar que os fenômenos
experience of illness are playing in that model. We subjetivos relacionados ao adoecimento ocupam
use epistemology as our main analytic tool, with nesse modelo. Utilizaremos como principal instru-
emphasis to the work of Thomas Kuhn and his mento de análise a epistemologia, com destaque
ideas of paradigm and anomaly and the contri- especial a Thomas Kuhn e às noções de “paradig-
butions of Ludwik Fleck and his concepts of ex- ma e anomalia”, e à contribuição de Ludwick Fleck
ceptions to theories and the persistence of thought com os conceitos de “exceções das teorias e a ten-
styles. We believe that the reflections presented here dência à persistência nos sistemas de idéias”. Acre-
can become a fundamental and suitable exercise ditamos que a presente reflexão possa vir a ser um
for improving/transforming the biomedical para- exercício fundamental e oportuno para a otimiza-
digm, principally in view of the high degree of sub- ção/transformação do paradigma biomédico, na
jectivity involved in the medical practice. medida em que é consensual o alto grau de subjeti-
Key words Biomedicine, Subjectivity, Epistemo- vidade que envolve a prática médica.
logy, Paradigm, Anomaly Palavras-chave Biomedicina, Subjetividade,
Epistemologia, Paradigma, Anomalia

1Instituto de Medicina
Social, Uerj. Rua São
Francisco Xavier, 524.
Pavilhão João Lyra Filho, 7o
andar, blocos D e E
Maracanã. 20550-900 Rio
de Janeiro RJ.
carla.guedes@globo.com
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Guedes, C. R. et al.

Introdução sentação dos manuais médicos poderia levar a


supor, a dimensão epistemológica segue se im-
Ao se examinar o campo da prática biomédica, pondo, no mínimo, como norma técnica de legi-
vários problemas tornam-se imediatamente apa- timação e validação da ação médica 4, 5. Adicio-
rentes: a insatisfação de pacientes e médicos, os nalmente, parece-nos plausível e heuristicamen-
custos crescentes de tratamentos e exames, a for- te útil empregar noções-chave que emergem dos
mação inadequada de recursos humanos, o mer- modelos kuhniano e fleckiano para estudar a in-
cantilismo e a competição entre os próprios pro- teração saber-prática no domínio da atividade
fissionais da área, a precariedade dos programas profissional do médico, por supormos que a
de saúde, etc. – problemas graves e complexos mesma é ao menos análoga àquela dos cientistas
que, entretanto, parecem se banalizar, dada a fre- no seu fazer: Penso que supor, como Kuhn, a ciên-
qüência com a qual somos confrontados com eles cia como um empreendimento apenas parcialmen-
no cotidiano. te racional, e considerar o paradigma como deter-
No entanto, sabemos serem muitas as pro- minante fundamental na forma como o cientista
postas e as soluções possíveis, tanto no nível ins- percebe o mundo, abre novas perspectivas no estu-
titucional, quanto na organização e na gestão dos do de que chamei de paradoxos da clínica. Refi-
serviços de saúde. A crise na saúde é uma ques- ro-me em especial ao papel condicionante que as
tão política, e como tal poderia ser equacionada teorias correntes acerca das categorias diagnósticas
com vontade política e algum refinamento téc- e de sua gênese têm no modo como o médico tra-
nico-administrativo – somos tentados a afirmar, duz o sofrimento que seus pacientes apresentam,
ao lançarmos um olhar mais superficial sobre a supervalorizando os aspectos objetiváveis, tradu-
medicina, os serviços de saúde e os seus desca- zidos em doença, e deixando de lado o universo
minhos. subjetivo do sofrer. Proponho como hipótese de tra-
É inegável que maiores investimentos no se- balho que essa dissociação deve-se a existência de
tor, melhor estruturação do sistema e melhorias um paradigma clínico-epidemiológico, que con-
na gestão teriam um impacto positivo e produ- diciona a percepção do médico ao modelo da teo-
ziriam resultados mais satisfatórios na situação ria das doenças. Sendo um paradigma, não é com-
médico-sanitária atual. pletamente enunciável em termos objetiváveis, e seu
Não obstante, neste artigo, gostaríamos de aprendizado tampouco se faz por proposições lógi-
chamar a atenção para uma outra dimensão do cas analiticamente decompostas, mas mediante
problema, ou seja, examinar as dificuldades pro- exemplos6.
duzidas por obstáculos internos à própria racio- Assim, acreditamos que realizar essa discus-
nalidade biomédica. Desse modo, a nossa pro- são epistemológica da biomedicina, investigan-
posta é estabelecer uma discussão sobre o mode- do a forma como se dá a produção do conheci-
lo da biomedicina em sua profundidade esotéri- mento neste modelo, seria um exercício funda-
ca, trazendo à tona uma reflexão sobre o lugar, mental e oportuno para a otimização/transfor-
ou o não-lugar, que os fenômenos subjetivos re- mação do paradigma biomédico, na medida em
lacionados ao adoecimento ocupam nesse mo- que é consensual o alto grau de subjetividade que
delo. envolve a prática médica.
Utilizaremos como principal instrumento de Ao fazermos um breve histórico sobre esta
análise a epistemologia, mais precisamente uma questão podemos identificar que no início do
vertente específica, com destaque especial para século 20 existiram as primeiras manifestações
Thomas Kuhn1,2 e as noções de “paradigma e ano- negativas no interior da medicina sobre a forma
malia”, e ainda a contribuição de Ludwick Fleck3 em que esta se achava constituída, privilegian-
com os conceitos de “exceções das teorias e a ten- do-se a doença e não o doente7. Entretanto, foi
dência à persistência nos sistemas de idéias”. através de Michel Balint que as críticas em rela-
Antecipando-nos à crítica da utilização de ção ao modelo médico tiveram uma grande re-
modelos epistemológicos na reflexão sobre a prá- percussão mundial, foram trazidos à tona a ne-
tica assistencial, gostaríamos de assinalar que, se cessidade de se resgatar a relação humanizada
por um lado é fato que esta última não é deter- entre médico-paciente e direcionar a escuta te-
minada pelo “estoque de conhecimentos” (para rapêutica não só para os relatos objetivos da do-
citar uma expressão de Fleck), tampouco lhe é ença, mas para todos os aspectos psicológicos que
indiferente. Embora as relações entre saber e prá- permeiam o adoecer. Movimento este que veio a
tica no domínio da biomedicina sejam mais su- ser conhecido como medicina psicossomática,
tis e confusas do que o discurso de auto-apre- com vários representantes e propostas que se
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diferenciavam entre si. No Brasil, a medicina anátomo-clínica. Bichat, ao estudar as superfíci-
psicossomática se propagou por intermédio de es tissulares, inaugurou uma nova concepção,
Perestrello e trouxe para o centro do debate as denominada por Foucault11 de medicina moder-
principais questões abordadas por Balint. Con- na. Nessa perspectiva, passa-se a pensar a doença
tudo, estas propostas, apesar de inicialmente se como localizada no corpo humano, e a anatomia
mostrarem revolucionárias, foram perdendo for- patológica, até então sem nenhuma função para
ça ao longo de seu percurso e hoje demonstram uma medicina eminentemente erudita, insere-se
pouco ou nenhum papel de destaque na prática na prática médica.
médica 8,9. Desde o surgimento da racionalidade médi-
Apesar disto, podemos detectar que o questi- ca moderna, vem se consolidando o projeto de
onamento à prática médica continua pungente. situar o saber e a prática médica no interior do
Numerosos autores criticaram o reducionismo modelo das ciências naturais. Com isso, a medi-
organicista da medicina vigente. Dentre outros, cina faz sua opção pela naturalização de seu ob-
podemos nomear os trabalhos clássicos de Cla- jeto através do processo de objetivação, ou seja,
vreul10 e Foucault11, e, mais recentemente, Camar- o de fazer surgir a objetividade da doença, com a
go Jr. 12 e Bonet13. Além disto, verificamos no cam- exclusão da subjetividade e a construção de ge-
po da saúde coletiva a emergência de novas abor- neralidades 15.
dagens para se pensar o adoecimento, tais como Desse modo, estabeleceu-se uma dicotomia
a clínica ampliada, a humanização do atendimen- importante entre o diagnóstico, seara da ciência,
to, as discussões sobre a integralidade das ações e a intervenção terapêutica, território da “arte”,
de saúde e a produção do cuidado com vistas à sendo a última permeada de incerteza e a possi-
transformação do modelo tecnoassistencial. Con- bilidade de fracasso, além de ser compartilhada
comitantemente a estas propostas tem-se obser- com o paciente. Verificou-se, então, uma verda-
vado nos últimos anos uma crescente aceitação deira cisão entre teoria e práticas médicas, que
das medicinas ditas alternativas em nossa socie- termina por fragmentar também o paciente (sin-
dade. A capacidade resolutiva dos problemas de tomas objetivos x sintomas subjetivos). Na mai-
saúde por estes sistemas de cura deve-se funda- oria das vezes, os sintomas subjetivos não são le-
mentalmente à peculiar interpretação do binô- vados em conta, ou mesmo, não se sabe como
mio saúde-doença, no qual os aspectos psíqui- “dar conta” deles.
cos e físicos são indissociáveis na busca do resta- Assim, entendemos que a subjetividade do
belecimento do equilíbrio 14. adoecimento, isto é, a complexidade e a singula-
Entendemos que estes sinais indicam que a ridade do sofrimento humano, e mais ainda, a
prática biomédica apresenta impasses, o que Luz15 sua dimensão fenomenológica, experiencial, nun-
considera uma crise nas suas dimensões ética, ca chegou a ser objeto das ciências biomédicas,
política, pedagógica e social. uma vez que o modelo da medicina ocidental é
Partimos da premissa de que há também obs- herdeiro da racionalidade científica moderna.
táculos no interior do próprio saber médico oci- Para Canguilhem 16, a medicina contemporâ-
dental que podem afetar a melhoria da atenção à nea estabeleceu-se cindindo a doença e o doente:
saúde e para que haja uma mudança efetiva des- a medicina de hoje fundamentou-se, com a eficá-
se modelo assistencial torna-se imprescindível cia que cabe reconhecer, na dissociação progressiva
um repensar contínuo da teoria, da prática e das entre a doença e o doente, ensinando a caracteri-
ações de saúde. Para que a alteração ocorra, con- zar o doente pela doença, mais do que identificar
vém ter em mente como é a situação, como fun- uma doença segundo o feixe de sintomas esponta-
ciona esse modelo e para o que se quer transfor- neamente apresentado pelo doente16.
má-lo. Esperamos que este trabalho possa vir a Essa forma de se configurar a medicina é hoje
ser mais uma contribuição na busca do germe da denominada de biomedicina, pela sua estreita
transformação da biomedicina. vinculação com disciplinas oriundas das ciênci-
as biológicas. O referencial da clínica médica pas-
sa a ser a doença e a lesão, isto é, o objetivo do
O modelo biomédico e a subjetividade médico é identificar a doença e a sua causa. Bas-
ta remover a causa para que haja a cura da doen-
No final do século 18, houve uma ruptura de ça. Doença e lesão estabelecem uma relação de
paradigma no interior do saber e da prática mé- co-dependência, uma necessita da outra para
dica; a medicina segundo a conceituação de Fou- existir 4. Essa díade aparece tão fortemente nas
cault11 deixa de ser classificatória para tornar-se representações do saber médico que se estabele-
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Guedes, C. R. et al.

ceu um conjunto de proposições implícitas nor- cado por uma ambigüidade em relação ao que
teadoras à prática do médico, a teoria das doen- os médicos devem saber e ao que sentem ao fa-
ças: zer; o saber e o sentir seriam a expressão de uma
As doenças são coisas, de existência concreta, tensão estruturante que se encontra no interior
fixa e imutável, de lugar para lugar e de pessoa para da prática médica. Durante os anos de forma-
pessoa, as doenças se expressam por um conjunto ção, o médico aprenderia a manejar esta tensão,
de sinais e sintomas, que são manifestações de le- e gradativamente as manifestações relacionadas
sões, que devem ser buscadas por sua vez no âmago à subjetividade, ao emocional, iriam sendo ex-
do organismo e corrigidas por algum tipo de inter- cluídas da prática cotidiana. A tensão estrutu-
venção concreta4. rante apareceria em ocasiões de interações soci-
Essas proposições não aparecem explicita- ais que favorecessem a eclosão de conflitos. Como
mente em livros ou manuais de ensino da medi- exemplo o autor menciona o momento de pas-
cina, sendo entretanto familiares a qualquer mé- sagem das visitas médicas, o contato com o paci-
dico. A partir disto notamos que há pouco ou ente terminal e dá um destaque especial à diag-
nenhum questionamento sobre essa condição por nose.
parte dos médicos; as doenças não são vistas No momento de construção do diagnóstico,
como construções, ficções criadas e categoriza- aparecem vários elementos como sentimentos,
das por homens, mas efetivamente como entida- dúvidas, tentativas e erros, porém, no resultado
des que existem. Estas se apresentam e cabe ao final, isto desaparece, adquirindo um estatuto de
médico identificá-las, encontrar a lesão para, saber científico. Sendo assim, perdem-se as con-
como diria Foucault em O nascimento da clínica, textualizações históricas e sociais que se apresen-
dar visibilidade àquilo que está invisível. tavam no momento da sua construção: Com isso
Enquanto os referenciais teóricos do médico queremos dizer que nesse processo de constituição
são os acima citados, o sofrimento do paciente do diagnóstico ocorrem negociações, tácitas ou ex-
torna-se irrelevante; “quando a doença passa a plícitas, avaliação dos enunciados produzidos e do
ser ‘real’ o paciente virtualiza-se” 17. Paradoxal- agente que os produz, mas que na formulação “ci-
mente, ignora-se aquilo que deveria ser a catego- entífica” do diagnóstico ficam eliminadas. Deste
ria central, a qual nortearia a prática médica: o modo, a esse diagnóstico construído lhe é outorga-
médico, em última instância, deveria trabalhar do um critério de “objetividade”13.
sabendo que lida com um paciente que sofre e Os médicos, ao buscar a objetividade dos exa-
que esta experiência envolve uma série de ques- mes clínicos, relegando a segundo plano a obser-
tões as quais escapam ao biológico, pois se refe- vação clínica, não se atentam para o fato de que
rem a questões psicológicas, culturais e sociais. É os dados produzidos nos exames, por mais obje-
freqüente encontrarmos na prática discursiva da tivos que sejam, sempre vão passar por um pro-
medicina referências à necessidade de uma abor- cesso interpretativo4. Segundo Hacking19, as ins-
dagem biopsicossocial, mas há uma total prima- crições produzidas pelos dados, como gráficos,
zia do campo biológico sobre os demais: Catego- tabelas, fotografias e registros, são chamadas por
rias fundamentais no que concerne ao adoecer ele de “marcas”, e estas, para serem decifradas,
como, por exemplo, SOFRIMENTO, SAÚDE, requerem a interpretação.
HOMEM (no sentido de “ser humano”),VIDA, Embora a biomedicina tente se adequar ao
CURA encontram-se perdidas nas brumas do ima- modelo preconizado pela ciência, o médico em
ginário ou empurradas para o terreno da metafísi- sua prática clínica não consegue cumprir este
ca4. ensejo, pois a subjetividade apresenta-se em vá-
A partir desses referenciais, os médicos são rios momentos: na sua experiência, nas interpre-
guiados por comportamentos que tentam se ba- tações dos exames, ao tomar decisões e julgamen-
sear em padrões científicos mais que em parti- tos20.
cularidades e procuram fazer com que seu tra- Luz21 afirma que na sociedade contemporâ-
balho esteja focado na competência técnica e na nea existiria uma crise na medicina. Esta não es-
objetividade sem envolvimento emocional com taria ligada à produção de conhecimento da dis-
o paciente18. No entanto, nem sempre a ideal po- ciplina, mas sim às dimensões ética, política, pe-
sição de neutralidade e objetividade consegue ser dagógica e social. Dentre algumas questões abor-
mantida, pois há no interior do saber médico uma dadas pela autora podemos mencionar os pro-
grande valorização da experiência pessoal do gramas de atenção médica precários, ênfase na
médico 4, 18. diagnose em detrimento da cura do sujeito do-
Bonet13 afirma que o trabalho médico é mar- ente, relação médico-paciente perpassada pelo
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mercantilismo, competição entre as especialida- lidar com essa situação. Na maioria das vezes, a
des médicas e demais profissionais de saúde, con- única resposta disponível diante disto seria a de
flitos entre médicos e os cidadãos que estão em afirmar que o paciente não teria nada. Para a
busca de atenção à saúde, e a incapacidade de se autora, “nada que seja passível de se inscrever no
formarem profissionais de saúde que sejam ap- discurso médico” 25. Entretanto, nesses casos, ape-
tos à resolução dos problemas na área de saúde. sar de o médico negar a existência da doença, ele
Sem dúvida, os pontos levantados acima já saberia que o paciente tem “alguma coisa”, que,
nos dão indícios de muitos problemas no cam- muitas vezes, o profissional diagnostica de for-
po. No entanto, ressaltaremos neste trabalho ma pejorativa, no intuito de atingir aquele que o
uma outra dimensão em que se revelam impas- agride:
ses na prática médica atual – contradições inscri- Ele (médico) diagnostica esta coisa como “piti”,
tas no interior do próprio modelo biomédico. diagnóstico que tem como função desqualificar o
Nem todas as manifestações da doença po- sujeito tanto quanto ele se sente agredido, desqua-
dem ser explicadas a partir do modelo doença- lificado e impotente diante de um doente que pela
lesão e seus correspondentes; e aquelas que não própria doença tenta derrogar o seu saber de mes-
se encaixam nos referenciais da biomedicina tor- tre25.
nam-se um problema para o diagnóstico, colo- O médico, em seu cotidiano, trabalharia no
cando em xeque o saber médico, já que estes pa- sentido de decodificar as falas dos pacientes em
cientes possuem persistentes sintomas físicos sem sinais médicos. Desse modo, em nome de uma
que o médico possa detectar uma doença. Se- terapêutica baseada em procedimentos científi-
gundo Simonetti22, há vários termos em medici- cos, são descartadas as singularidades e diferen-
na para nomear estas manifestações. A termino- ças entre os casos25.
logia “histeria” seria, para este autor, a mais fre- Então, a partir da problematização das ques-
qüente para indicá-las. Entretanto, o caráter pe- tões referentes à biomedicina, buscaremos na
jorativo que foi se atribuindo ao termo no de- epistemologia contribuições para melhor com-
correr da história fez com que houvesse uma ten- preender as falhas existentes nesse modelo, rela-
dência hoje em dia de utilizar termos mais des- tivas à priorização dos fenômenos objetivos di-
critivos, tais como “distúrbio neurovegetativo” ante da subjetividade do adoecimento humano.
(DNV), “distúrbio conversivo ou dissociativo”,
“somatização”, “psicossomática”, “neurose con-
versiva”, entre outros. Além disto, haveria nomes Abordagem epistemológica de
usados pelos médicos no seu cotidiano para se Kuhn e Fleck
referir a estas manifestações como: “piripaque”,
“chilique”, “frescura”, “dramatização”, etc. A seguir, utilizaremos a abordagem epistemoló-
Ainda sobre os termos usados para designar gica complementar de Kuhn1, 2 e Fleck3 sobre o
estes transtornos, Almeida23 nomeia estes paci- modo de produção de conhecimentos científicos
entes como “refratários”, por não apresentarem como ferramenta principal para estudar a racio-
nenhum tipo de lesão e disfunção. Tais pacientes nalidade biomédica.
ocupam, assim, um lugar de marginalidade na
prática médica, e não conseguem se encaixar nos Kuhn: paradigmas e anomalia
serviços e tratamentos oferecidos nas instituições
de saúde. Por sua vez, Camargo Jr. 24 discorda Kuhn2 oferece uma significativa contribuição
dessa terminologia, pois a seu ver não são os à epistemologia, sobretudo ao desenvolver o con-
pacientes que não se enquadram, mas o sistema ceito de “paradigma”. Segundo ele, os paradig-
institucional que não consegue responder as suas mas seriam modelos e padrões consensualmente
demandas. Portanto, segundo ele, estes deveri- aceitos em uma comunidade científica os quais
am ser chamados de “pacientes rechaçados”. guiariam a prática do cientista.
Para Moretto25 estes pacientes, aos quais de- Um cientista estaria, em seu cotidiano, sen-
nomina de “histéricos”, ludibriariam o saber do regido por modelos e um conjunto de exem-
médico, uma vez que os seus sintomas podem plos que são compartilhados pelos seus mem-
regredir de forma súbita sem que seja necessária bros, submetendo-os a regras e padrões da prá-
qualquer intervenção médica, como também tica científica. Seu surgimento se daria quando
podem mostrar-se persistentes apesar de serem houvesse uma síntese capaz de cativar grande
utilizados todos os recursos disponíveis na me- parte de seus praticantes, em especial das novas
dicina. Esse tipo de postura criaria um impasse gerações.
para o médico, o qual não teria recursos para A prática de um cientista que envolve leis, te-
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orias, aplicação e instrumentação é o que Kuhn2 mal. Desse modo, embora não haja esforço em
denomina de ciência normal, isto é, todo o tra- produzir novidades, estas efetivamente ocorrem
balho que se dirige para a consolidação do co- e podem produzir descontinuidade, o que o au-
nhecimento. tor denomina de revolução científica 2.
A elevação de uma nova teoria ao status de As novas descobertas são um processo lento
paradigma é justificada de duas formas: por con- e demorado, e caracterizam-se pela recorrência
seguir partidários que se convençam de que aque- de uma estrutura, isto é, esse processo se inicia
le paradigma pode solucionar questões as quais com a consciência de uma anomalia – aquilo que
os cientistas consideram graves e, concomitante- não estava previsto – com a qual o pesquisador
mente, ser amplo o suficiente para trazer uma não se encontra preparado para lidar: a descober-
gama de problemas que devem ser resolvidos por ta começa com a consciência da anomalia, isto é,
eles. com o reconhecimento de que, de alguma maneira,
Parte-se da noção de que o paradigma deve a natureza violou as expectativas paradigmáticas
ser constantemente aperfeiçoado e lapidado, fun- que governam a ciência normal2.
ção dos cientistas ao fazer a ciência normal que, Após o seu reconhecimento, os cientistas de-
mesmo sem se dar conta, estariam trabalhando dicam-se a adequar essa anomalia ao paradigma,
para a sua manutenção. O fazer ciência não in- e para isto é feita uma exploração na área onde
cluiria novos fenômenos, e tampouco a invenção esta ocorreu. Há uma tentativa de ajustamento
de teorias novas; o enfoque estaria “dirigido para deste elemento inesperado. Em síntese, todas as
a articulação dos fenômenos e teorias já forneci- descobertas apresentam três traços básicos: a
dos pelo paradigma” 2. consciência da anomalia, a verificação desta no
Desse modo, os cientistas teriam um traba- plano conceitual e da observação e, finalmente,
lho restrito no que tange à produção de concei- uma modificação das categorias e procedimen-
tos, não iriam além das cercanias dos padrões e tos de um paradigma. A transformação geralmen-
modelos paradigmáticos nos quais estão incluí- te é seguida de uma resistência por parte dos ci-
dos. Essas áreas seriam minúsculas, e não have- entistas.
ria nenhum interesse por parte dos cientistas em Kuhn2 relata o processo de consciência de
ampliá-las, produzindo novidades. uma anomalia, demonstrando como uma nova
Segundo Kuhn2 o cientista resolve “quebra- descoberta fora do padrão paradigmático é rece-
cabeças” em sua pesquisa normal. A utilização bida com resistência, e como esta irá garantir que
deste termo estaria relacionada à exposição de o cientista tente incorporar a novidade ao para-
enigmas que colocariam em teste a habilidade dos digma.
indivíduos na solução de problemas. No proces- A anomalia produz fracasso na resolução dos
so de fazer ciência, problemas de grande impor- enigmas (os “quebra-cabeças”) cotidianos enfren-
tância não são considerados os “quebra-cabeças”. tados pelos cientistas na ciência normal, geran-
Assim, estes não são definidos pela sua relevân- do insegurança profissional, modificações nos
cia, mas pela sua capacidade de serem solucioná- aparatos técnicos e produção de novas teorias.
veis. Essas características seriam o enunciado de uma
O autor ainda afirma que um paradigma pos- crise.
sui problemas que podem ser resolvidos, e os seus Novas teorias ocorrem precedidas de uma
membros são estimulados a fazê-lo. A habilidade crise, cuja anomalia necessariamente se encon-
de solucionar “quebra-cabeças” é a demonstra- tra presente. Entretanto, os fenômenos anôma-
ção de que um indivíduo é um perito nesta sea- los não seriam razão para que cientistas abando-
ra: o que o incita ao trabalho é a convicção de que, nassem um modelo paradigmático, por mais que
se for suficientemente habilidoso, conseguirá solu- estes sejam persistentes. Uma das razões para essa
cionar um quebra-cabeça que ninguém resolveu ou, posição é que, ao negar um paradigma, é neces-
pelo menos, não resolveu tão bem2. sário que já se tenha um substituto: “rejeitar um
A orientação do trabalho do cientista pode paradigma sem simultaneamente substituí-lo por
se dar sem a presença de regras explícitas. As re- outro é rejeitar a própria ciência” 2.
gras somente são colocadas em questão quando Além disto, o fato de se encontrarem anoma-
os paradigmas mostram-se inseguros. Nos perí- lias não significa que haja uma crise. Kuhn2 in-
odos em que está para ocorrer uma substituição daga-se sobre o que diferencia a ciência normal
paradigmática, é constante a indagação sobre os e aquela em estado de crise. Segundo ele, não se-
métodos, solução de problemas, e tudo aquilo ria a presença de fenômenos anômalos. Os “que-
que envolve os procedimentos da ciência nor- bra-cabeças” no cotidiano dos cientistas se
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apresentam porque não existem paradigmas que cada por meio de dois conceitos: o coletivo de
tenham solucionado todos os seus problemas. pensamento e o estilo de pensamento. O primei-
Assim, com exceção dos enigmas instrumentais, ro “designaria uma unidade social de uma co-
cada “quebra-cabeça” poderia ser visto como um munidade de cientistas de um campo específico”,
contra-exemplo, e logo, como um princípio de enquanto o segundo seria definido como “as pres-
crise. suposições de acordo com um estilo sobre as
Assim, esta diferenciação não pode ser vista quais o coletivo construiria seu edifício teórico” 3.
de uma forma causalista. Se, por um lado, uma Sendo assim, o conhecer não se daria como
anomalia grave e persistente pode não levar a um processo individualizado, mas fruto de uma
uma crise, por outro, uma que não apresentava atividade social que teria uma característica co-
nenhuma importância aparente poderá desen- ercitiva: O coletivo de pensamento se compõe de
cadeá-la. indivíduos, entretanto, o indivíduo não tem nun-
Para Kuhn2, a presença de anomalias não sig- ca, ou quase nunca, consciência do estilo de pensa-
nifica que possam causar a emergência de teorias mento coletivo, que quase sempre exerce sobre seu
as quais vão se configurar em um novo paradig- pensamento uma coerção absoluta e contra o que é
ma. O advento de uma crise nem sempre é sufici- sensivelmente impensável uma oposição3.
ente para a substituição paradigmática. Algumas Para Fleck3, não haveria um olhar que não
vezes, a ciência normal acaba revelando-se capaz estivesse impregnado por pressuposições, pela
de tratar do problema que provoca a crise. Em mediação de um estilo de pensamento. Desse
outras ocasiões, o problema resiste até mesmo a modo, a aquisição do conhecimento em uma dis-
novas abordagens. Nesse caso, o problema rece- ciplina passaria por dois momentos: um ver con-
be um rótulo e é posto de lado para ser resolvido fuso inicial e um ver formativo. O último so-
posteriormente. Ou, finalmente, pode terminar mente seria possível após uma vivência prática e
com a emergência de um novo paradigma. teórica em um determinado campo. Após isto os
A transição paradigmática é marcada por indivíduos passariam a ver segundo os cânones
uma ruptura, ou seja, abandona-se toda a tradi- daquela área. Paralelamente a este processo, ha-
ção científica anterior e introduz-se uma nova, a veria uma diminuição da capacidade de ver aqui-
qual é guiada por teorias, regras e muitas vezes lo que se contrapõe ao sistema.
métodos completamente diferentes dos vigentes Sendo assim, a inserção em um campo de
até então. A revolução científica implica rompi- conhecimento teria mais a característica de dou-
mentos, e não processos cumulativos. trinação do que de incentivo a um pensamento
Assim, as revoluções científicas acarretariam crítico. E o ensino comportaria o sugestionamen-
mudanças na forma de conceber o mundo do to de idéias autoritárias: “toda introdução didá-
cientista – deixam-se de lado as percepções ante- tica é, portanto, um conduzir –dentro, uma sua-
riores e adota-se uma nova. O cientista, então, é ve coerção” 3.
obrigado a se familiarizar com um novo olhar, e A propensão a pensar e agir de uma determi-
quando isso é feito passa a efetivamente ver e a nada maneira seria a principal característica de
trabalhar num novo universo. um estilo de pensamento. Este seria constituído
por duas partes que estariam intrinsicamente
Fleck: as exceções e a tendência à relacionadas: “disposição para um sentir seletivo
persistência dos sistemas de idéias e para a ação conseqüentemente dirigida” 3. A
partir disso, Fleck o define como: “um perceber
Através de sua epistemologia, Fleck3 oferece dirigido com a correspondente elaboração inte-
uma significante contribuição aos estudos refe- lectiva e objetiva do percebido” 3. Desse modo,
rentes à medicina. Em seu livro A gênese e o desen- não seria possível pensar de outra forma que não
volvimento de um fato científico realiza um estu- fosse aquela do estilo de pensamento vigente.
do sobre o desenvolvimento histórico da sífilis e Segundo Fleck3, em todo estilo de pensamen-
da reação de Wasserman, demonstrando como to, há um período de classicismo, ao qual todos
os “fatos científicos” estariam condicionados a os fatos encaixam-se à teoria, e um momento de
circunstâncias históricas e culturais. complicações em que as exceções começam a apa-
O autor ressalta desde o início de sua obra a recer. Entretanto, para que se possa manter a es-
característica coletiva, interdisciplinar e coopera- trutura coletiva, costuma-se negar, afastar e re-
tiva da investigação em medicina. Segundo ele, o interpretar (de acordo com o estilo) todas as
fazer ciência é sempre um processo coletivo e de- contradições do sistema. Desse modo, ocorre
limitado por estruturas sociológicas, históricas e uma tendência à persistência das concepções. Uma
culturais. Esta “imposição” cognitiva seria expli- vez que haja formado um sistema de opiniões es-
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Guedes, C. R. et al.

truturalmente completo e fechado, composto por Aplicação dos modelos de


numerosos detalhes e relações, persistirá tenazmen- Kuhn e Fleck à biomedicina
te contra tudo que o contradiga3.
Estas idéias constituem-se como estruturas Neste estudo, partimos da premissa de que a gran-
rígidas e persistentes e formam algo que Fleck3 de anomalia do paradigma biomédico está rela-
denomina de “harmonia de ilusões”. Dessa for- cionada a toda ordem de sofrimentos ligados ao
ma, para que um estilo de pensamento perma- mal-estar existencial, isto é, queixas dificilmente
neça harmônico ocorrem procedimentos ativos enquadráveis nos diagnósticos “tradicionais” da
os quais obedecem a alguns graus. biomedicina. Então, como a biomedicina está
1) A contradição do sistema parece impensá- calcada nas ciências biológicas, focada na díade
vel. Quando um coletivo de pensamento passa a doença-lesão, as manifestações que não apresen-
influenciar de tal maneira os indivíduos a ponto tam marcadamente esta relação de causalidade
de introduzir-se na vida cotidiana e nas suas ex- aparecem na contramão deste direcionamento
pressões lingüísticas, torna-se inadmissível a con- organicista.
trariedade. Sabemos que a biomedicina experimentou
2) Aquilo que não concorda com o sistema avanços extraordinários na área tecnológica e
parece inobservável. O processo de persistência medicamentosa, mas ainda assim apresenta mui-
dos sistemas funciona como um todo fechado, tos fracassos na prática clínica, sobretudo no que
só é possível perceber aquelas idéias que coadu- concerne em o médico lidar com fenômenos sub-
nam com o estilo de pensamento. O observar é jetivos no indivíduo que demanda por cuidado.
sempre dirigido e orientado a uma meta, e há Podemos extrair em Camargo Jr. 4 três estratégias
um alheamento de tudo que o contradiga. utilizadas pelos médicos ao lidar com esta situa-
3) No caso de uma contradição ser observa- ção. A primeira seria simplesmente afirmar que
da, pode-se fazer silêncio a respeito. Há uma ten- não há doença, tendo como justificativa a ausên-
dência a encobrir as exceções, por vezes elas são cia de lesão – estes pacientes são nomeados de
ocultas por muito tempo, visto que se opõem às funcionais, polissintomáticos e até mesmo “piti-
idéias dominantes e somente podem vir à tona áticos”. A última expressão denota claramente o
quando o estilo de pensamento é modificado. caráter pejorativo desse tipo de manifestação na
4) Quando uma exceção é observada, pode- prática médica. Existem também os médicos que
se também realizar grandes esforços para expli- encaminham o paciente à psiquiatria, assim não
cá-la em termos que não contradigam o sistema. deixam de oferecer algum tipo de atendimento
Há um empenho em explicar a contradição, em ao doente e, por outro lado, se vêem livres do
torná-la parte de um sistema lógico. Para Fleck3, problema que lhes é apresentado. Finalmente, há
entretanto, este intuito muitas vezes não passa os médicos que receitam tranqüilizantes, ofere-
de uma aspiração. Desse modo, todo o movi- cendo uma saída biologizante para a dimensão
mento é no sentido de reinterpretar o elemento do sofrimento subjetivo. Estas situações, com as
oponente até que ele se adéqüe ao estilo de pen- quais a biomedicina não está preparada para li-
samento. dar, são como uma “zona cinzenta”, espaço onde
5) Apesar dos legítimos direitos das concep- o desencontro terapêutico vai se dar5.
ções contraditórias, tende-se a ver, descrever e a No entanto, se entendemos as manifestações
formar somente as circunstâncias que corrobo- somáticas sem causas explicáveis pela biomedi-
rem com a concepção dominante. É como se pu- cina como um fenômeno anômalo no sentido
desse transformar esta idéia numa realidade. Toda kuhniano, devemos nos ater a como as mesmas
tendência à persistência dos sistemas comporta se expressam em um paradigma biomédico. Ape-
o que Fleck3 denomina de “ficção criativa”, ou sar das respostas habituais dos médicos apare-
seja, a idéia mágica de acreditar que todos os cerem no sentido de negar a existência de uma
sonhos científicos pudessem ser realizados. doença 69, é possível detectar na prática médica o
Entretanto, a tentativa de legitimar uma pro- reconhecimento de “algo que não estava previs-
posição tem sempre para o autor um caráter par- to” no seu modelo paradigmático, algo que esca-
cial, pois esta encontra-se intrinsecamente ligada pa ao saber teórico-prático aprendido – a sinto-
ao coletivo de pensamento, o qual, por sua vez, matologia sem a presença de uma doença reco-
está interligado a determinantes históricos, cul- nhecida pela biomedicina. E, por não saber como
turais e sociológicos. manejar estes pacientes, muitas vezes os médicos
os encaminham para outros profissionais – psi-
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Ciência & Saúde Coletiva, 11(4):1093-1103, 2006


quiatras e psicólogos. Podemos suspeitar, então, cólogos e psiquiatras. Movimento este que pode
que estes são sinais de que há uma consciência e ser entendido como o reconhecimento de uma
o reconhecimento da anomalia. exceção, mas que é evitado falar sobre.
O segundo movimento observado é o de tra- 4) Quando algo não previsto é observado,
zer esse desconhecido a um terreno conhecido, pode-se também realizar grandes esforços para
familiar. Para tal, a biomedicina recorre a um explicar a exceção nos termos que não contradi-
dos seus fundamentais instrumentos: a catego- gam o sistema. A biomedicina tem um impor-
rização. Apesar de Foucault11 demarcar uma rup- tante instrumento para tentar incorporar as ex-
tura no fim do século 18, momento em que se dá ceções em seu modelo: as classificações. O DSM-
a passagem de uma medicina classificatória para IV (Diagnostic and Statistical Manual of Mental
anátomo-clínica, a medicina ocidental moderna Disorders, 4a. ed.) e a CID-10 (Classificação In-
não deixou de ser eminentemente classificatória. ternacional das Doenças, - 10ª ed.) são recursos
Não mais como era nos séculos 16 e 17, quando nos quais se torna possível inserir o imprevisto
a taxonomia era baseada no modelo da botâni- na ordem do previsto.
ca, mas sim ancorada na anatomia patológica: 5) Apesar dos legítimos direitos das concep-
identifica-se a lesão e a enquadra nas possíveis ções contraditórias, tende-se a ver, descrever e,
categorias nosológicas. até mesmo, formar somente as circunstâncias que
Desse modo, iremos constatar que há um es- corroborem com a concepção dominante. Nesse
forço na biomedicina para incluir os sintomas sentido, é como se pudesse transformar esta idéia
físicos sem causas explicáveis dentro das suas inú- em realidade. Desse modo, a contradição do
meras categorizações, isto é, tornar objetivo o modelo anátomo-clínico dificilmente é admiti-
subjetivo, transformar o invisível em visível. da, e as doenças são coisificadas, vistas efetiva-
Por outro lado, ao nos remetermos a Fleck3, mente como “reais”.
podemos afirmar que estaríamos deixando para Assim, a partir da epistemologia de Fleck3
trás a época clássica da medicina, quando tudo verificamos que uma importante estratégia em
funcionava conforme o modelo dominante. O biomedicina para lidar com as exceções de seu
autor postula que as teorias passam por dois sistema é a tentativa de incorporação daquilo que
momentos: o de classicismo e o de complicações, não estava previsto. Podemos considerar, então,
nos quais as exceções tornam-se presentes. que desse modo parcial – através do estabeleci-
Como vimos anteriormente, para que pos- mento de categorizações – a biomedicina conse-
sam manter a sua estrutura coletiva e, por con- gue objetivar aquilo que não lhe parece visível.
seguinte, a sua harmonia, os sistemas de idéias Apesar de classificar, tem poucos recursos para
tendem a ser fechados e rígidos e desenvolvem tratar, ficando comumente restrita ao uso de fár-
uma tendência à persistência das concepções, as macos26. E talvez pela sua ineficácia terapêutica
quais obedecem a alguns graus. Acreditamos que para responder a estas questões, a prática médi-
este modelo oferecido por Fleck pode ser aplica- ca quando se depara com as manifestações sub-
do ao problema em questão, isto é, compreen- jetivas continua fracassando, tornando-as per-
der como a biomedicina lida com as manifesta- sistentes anomalias, como sugere Kuhn, ou exce-
ções somáticas não explicáveis por uma causali- ções, como afirma Fleck.
dade reconhecida. Poderíamos sintetizá-lo da se-
guinte forma:
1) A contradição parece impensável. A bio- Considerações finais
medicina apresenta-se como um sistema fecha-
do, o qual pode ser explicado através da díade Com as contribuições oferecidas pela epistemo-
lesão orgânica-doença e seus correspondentes. logia de Kuhn2 e Fleck3 pudemos refletir sobre os
2) Aquilo que não concorda com o sistema impasses e identificar alguns “nós” no interior
parece inobservável. Aquilo que foge à relação do modelo biomédico. Assim, identificamos que
lesão orgânica-doença e seus correspondentes toda a gama de sofrimentos e mal-estares – sem
não é observável. Quando um paciente apresen- que seja detectada uma lesão, uma disfunção ou
ta um sintoma, que não pode ser visto como reconhecida uma causalidade – aparece como
uma doença comprovada, se entende que o paci- uma anomalia ou exceção na biomedicina.
ente não tem nada. Segundo a terminologia de Kuhn2, as ano-
3) Quando se observa algo que não estava malias devem ser incorporadas ao paradigma;
previsto no sistema médico, pode-se fazer silên- para Fleck3, uma das formas de lidar com as ex-
cio a respeito e, muitas vezes, há o encaminha- ceções seria realizando grandes esforços para ex-
mento para profissionais da área “psi,” como psi- plicá-las em termos que não contradigam o sis-
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Guedes, C. R. et al.

tema. Entendemos que esses autores nos dizem quisadores como Latour et al.28 demonstraram
algo muito semelhante – quando há algo não como se dá a produção de conhecimentos em
previsto em um modelo, sempre ocorre uma ten- laboratório de ciências. Por meio destes estudos,
tativa de incorporar o imprevisto em previsível. somos capazes de notar como a prática científica
Em biomedicina isso se daria, sobretudo, pela é marcada por processos parciais e subjetivos.
categorização. Kuhn1 coloca em debate o porquê de a subje-
Apesar disso, os recursos terapêuticos são tividade não poder ser aceita na produção cien-
parcos, os desencontros entre médicos e pacien- tífica. O autor indaga-se sobre essa insistente ne-
tes freqüentes, configurando-se um problema, gação dos fenômenos subjetivos na ciência: “por
com o qual a biomedicina parece ter poucas fer- que razão estes elementos (subjetivos) lhe pare-
ramentas para lidar, ou seja, não possui recursos cem um índice da fraqueza humana, e não um
teóricos e cognitivos para se defrontar com de- índice da natureza do conhecimento científico?” 1
mandas como essa. Demandas que não se inclu- O que vemos na prática médica é a intenção
em nas bases objetivas e organicistas científicas. de se aproximar do modelo de ciência em que o
Portanto, para que possa haver uma reestru- cientista é imparcial e foca seu olhar única e ex-
turação no paradigma biomédico, faz-se neces- clusivamente para o seu objeto de estudo – a ob-
sário questionar a estreita relação entre o discur- jetividade da doença. Modelo que, como demons-
so médico e o das ciências naturais. Estamos de trou Clavreul10, causa uma dessubjetivação do
acordo com Canguilhem 27 quando afirma que a próprio doente.
clínica não é uma ciência: Sayd29 nos mostra que a terminologia “tera-
Ora, a clínica não é uma ciência e jamais o será, pêutica” é originada do verbo therapeuien e que
mesmo que utilize meios cujo eficácia seja cada vez significa servir e prestar assistência. Funções
mais garantida cientificamente. A clínica é insepa- médicas estas colocadas em detrimento de refe-
rável da terapêutica e a terapêutica é uma técnica renciais cientificistas. Assim, como nos lembra
de instauração do normal, cujo fim escapou à ju- Camargo Jr. 5, perde-se a idéia de sofrimento a
risdição do saber objetivo, pois é a satisfação subje- qual Canguilhem afirma ser o ponto de partida
tiva de saber que uma norma é instaurada27. da terapêutica.
Além disto, é preciso desconstruir a noção de Entendemos que a noção de cuidado e o prin-
ciência como produtora de verdades absolutas e cípio de integralidade abordados por diversos
capaz de realizar um retrato neutro e objetivo da pesquisadores – como a recusa ao reducionismo
natureza, que ainda impera no Ocidente. Como e a objetivação dos indivíduos – podem ajudar a
vimos em Kuhn2, ela nada mais é que algo pro- construir caminhos alternativos para a assistên-
duzido por uma comunidade de cientistas que cia médica, oferecendo novos parâmetros con-
entrou em consenso em relação a um objeto in- ceituais e técnicos para o modelo biomédico.
vestigado. Também não é perene e cumulativa, Estariam estas novas propostas de atenção à
ao contrário, é marcada por descontinuidades e saúde criando espaço para abrigar a subjetivida-
substituições que melhor se adéqüem às exigên- de do adoecer que, até então, não teve lugar neste
cias de um dado momento histórico. Alguns pes- paradigma?
1103

Ciência & Saúde Coletiva, 11(4):1093-1103, 2006


Colaboradores

CR Guedes, MI Nogueira e KR de Camargo Jr.


participaram igualmente de todas as etapas da
elaboração do artigo.

Referências

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