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Sermão de Santo António (aos Peixes)

De Padre António Vieira

1 – Tipo de texto

O sermão, é uma forma de oratória. A sua estrutura é a mesma de um texto argumentativo: o


exórdio corresponde à introdução; a narração/exposição e a confirmação correspondem ao
desenvolvimento e a peroração corresponde à conclusão.

2 – Síntese

O Sermão é uma obra que procura advertir para um conjunto de comportamentos humanos e
motivar para a sua alteração. Ao longo do Sermão, Vieira começa a louvar as virtudes dos peixes para, de
seguida, repreender com ironia, os seus defeitos.
Neste sermão, Padre António Vieira, através da identificação das virtudes e dos defeitos dos peixes,
aproveita para dar lições aos homens. O pregador destaca o vício que mais o escandaliza nos ei xes: o facto
de os peixes se comerem uns aos outros, o que é agravado pelo facto de serem os peixes grandes a
comerem os pequenos. Recorrendo à metáfora, Vieira denuncia a traição, o roubo, a exploração, todas as
ações criminosas cometidas pelos colonos do Brasil. Ou seja: tanto os peixes como os homens não se
devem aproveitar dos mais fracos, das suas desgraças e misérias, sob pena de serem amaldiçoados.
Para ele, a grande qualidade dos peixes resume-se à expressão: “Ouvem e não falam”. O que
sobressai de todo o Sermão é a censura ao comportamento dos homens, nomeadamente nas terras de
missão onde observa “falsidades, enganos, fingimentos, embustes, ciladas, e muito maiores e mais
perniciosas traições”…

3 – Razões para o título

 Homenagear Santo António (por ter sido pregado no dia de Santo António);
 Aproveitar o exemplo do sermão pregado aos peixes por Santo António;
 Tal como Santo António tentou converter os hereges (para que conseguissem expulsar os demónios
dentro de si), também o Padre António Vieira tenta convencer os colonos portugueses no Brasil a
mudar o seu comportamento.

4 – Objetivos a atingir com o Sermão

 Agitar as consciências;
 Conduzir à reflexão;
 Evitar o mal;
 Preservar o bem.
5 – As partes do Sermão de Santo António aos Peixes (síntese)
Capítulos do Sermão Conteúdo temático
Exórdio Capítulo I  Conceito predicável –
(exposição do plano a “Vos estis sal terrae”
desenvolver e das ideias a (“Vós sois o sal da terra”)
defender)  Exploração a Santo
António como modelo a
seguir
 Invocação à Virgem Maria
no final do capítulo –
“Ave-Maria”
Nota: Embora não fosse
obrigatório, os sermões
podiam conter também uma
Invocação (pedido de auxílio
divino).
Exposição e Confirmação Capítulo II Louvores aos peixes em geral
(desenvolvimento da (Exposição)
argumentação “para que
procedamos com clareza,
dividirei, peixes, o vosso sermão
em dois pontos: no primeiro
louvar-vos-ei as vossas atitudes,
no segundo repreender-vos-ei os
vossos vícios.”)
Capítulo III Louvores aos peixes em
(Confirmação) particular:
 Peixe de Tobias
 Rémora
 Torpedo
 Quatro-olhos
Capítulo IV Repreensões aos peixes em geral:
(Exposição)  Denúncia de casos de
antropofagia social
Capítulo V Repreensões aos peixes em
(Confirmação) particular:
 Roncadores
 Pegadores
 Voadores
 Polvo
Peroração Capítulo VI  Apelo aos ouvintes numa
(utilização de um desfecho forte (“Com esta última advertência última advertência aos
para impressionar o auditório) – vos despido, ou me despido de peixes (cf. “Peixes dai
uma conclusão com uma última vós, meus peixes. E para que muitas graças a Deus de
advertência aos peixes; retrato vades consolados do sermão, que vos livrar deste perigo
dele próprio como pecador; hino não sei quando ouvireis outro, […]”)
de louvor. quero-vos aliviar de uma  Retrato dele próprio como
desconsolação mui antiga, com pecador
que todos ficastes desde o tempo  Hino de Louvor a Deus (cf.
em que se publicou o Levítico.”) Repetição anafórica
“Louvai a Deus”)
5.1 – Capítulo I

Exórdio – Exposição do plano a desenvolver e das ideias a defender a partir do conceito predicável
“vós sois o sal da terra”.
Uso do conceito predicável “Vós sois o sal da terra” para desenvolver a sua argumentação.

O sal - metáfora dos pregadores


A terra – metáfora dos ouvintes

Então, se a terra está corrupta/ “estragada” – de quem é a culpa?


Pode ser atribuída a duas causas

O pregador não prega (ensina) A terra não "ouve" a palavra


em condições do pregador

Os ouvintes não querem


Não pregam a verdadeira
receber a doutrina que lhes
doutrina
dão
Os ouvintes antes querem
Dizem uma coisa e fazem imitar o que os pregadores
outra fazem, do que fazer o que lhes
dizem
Os ouvintes em vez de
Pregam-se a si e não a Cristo servirem a Cristo, servem os
seus apetites

 A solução de Santo António: “Mudou somente o púlpito e o auditório, mas não desistiu da
doutrina. Deixa as praças, vai-se às praias; deixa a terra, vai-se ao mar”.
A solução do orador: imitar Santo António.

5.2 – Capítulo II: Louvores em geral

Exposição – referência às obrigações do sal; indicação das virtudes dos peixes em geral; crítica aos
homens.

 As duas qualidades de ouvinte: ouvir e não falar.


 Retoma o conceito predicável. As propriedades das pregações de Santo António:
o Louvar o bem
o Repreender o mal
Sermão aos peixes (e obviamente aos homens) será divido em dois pontos:
o Louvar as qualidades
o Repreender os vícios

As qualidades e as virtudes dos peixes:


 A obediência;
 “ordem, quietação e atenção” com que ouviram as palavras de Santo António;
 Respeito e devoção ao ouvirem a Palavra de Deus;
 Seu “retiro” e afastamento relativamente aos homens (“Peixes! Quanto mais longe dos homens,
tanto melhor; trato e familiaridade com eles, Deus vos livre!”)
 “Só eles entre todos os animais não se domam nem domesticam”.

Santo António para se aproximar de Deus, afastou-se dos homens:


“que quanto mais buscava a Deus, tanto mais fugia dos homens”;
“ocultando sua grande sabedoria debaixo da opinião de idiota”;
“tanto mais unido com Deus, quanto mais apartado dos homens”.

5.3 – Capítulo III: Louvores em particular

Confirmação – os louvores a alguns peixes em particular; a crítica aos homens.

Outros peixes:
 Servem de alimento (as sardinhas – sustendo dos pobres; solhos e salmões –
sustento dos ricos);
 Ajudam à abstinência (jejum)
 Sustentam as Cartuxas, os Buçacos (ordens religiosas) e as santas famílias
 Com peixes, Cristo festejou a Páscoa
 Ajudam a ir ao Céu
 Multiplicam-se rapidamente (aqueles que são consumidos pelos pobres)

5.4 – Capítulo IV: Repreensões em geral

Exposição – indicação das repreensões aos peixes em geral; crítica aos homens.
As repreensões aos peixes vão ser feitas como objectivo se não for de corrigir, ao menos que seja,
de perturbar.O grande defeito dos peixes é comerem-se uns aos outros. Este defeito agrava-se quando os
grandes comem os pequenos, por isso, para alimentar um grande são precisos muitos pequenos.

Desde o início do sermão que o pregador prega aos peixes apontando-lhes os seus vícios e virtudes.
Agora, ao falar-lhes dos vícios, aponta-lhes como o exemplo os vícios dos homens. Ora, considerando a
alegoria do sermão – os peixes são a representação dos homens que Vieira utiliza indirectamente para os
poder criticar – é interessante, nesta parte, a forma hábil como fala directamente aos homens dos seus
vícios (inversão peixes/homens).

Sabendo que o grande defeito dos homens é comerem-se uns aos outros e tendo em conta que os
colonos pensariam imediatamente nos rituais antropófagos dos índios, o orador afirma que está a referir-
se aos brancos, pois ‘’muito mais se comem os brancos’’ – inferiorizam os escravos. Os defeitos apontados
são a ignorância e a cegueira originadas pela riqueza.

Momentos essenciais:
1ª parte – crítica e repreensão aos peixes grandes que comem os pequenos;
2ª parte – o escândalo: afinal os homens também se comem uns aos outros (“Morreu algum deles,
vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo. Comem-no os herdeiros…”);
3ª parte – o escândalo, o horror e a crueldade maior: “também os homens se comem vivos assim
como vós”.

5.5 – Capítulo V: Repreensões em particular

Confirmação – repreensões a alguns peixes em particular; crítica aos comportamentos dos homens
ambiciosos, vaidosos, hipócritas e traidores.

Neste capítulo do sermão, o pregador censura quatro criaturas marinhas em particular; estas
simbolizam os pecados ou vícios humanos condenáveis.

Os Roncadores, peixes pequenos e que emitem um som grave,


são sempre facilmente pescados e apesar de serem pequenos têm muita
língua («É possível que sendo vós uns peixinhos tão pequenos, haveis de
ser as roncas do mar?»). Representam a arrogância e o orgulhoso.

Os Pegadores/ Rémoras, pequenos e que se fixam a peixes


grandes ou ao leme dos navios («Pegadores se chamam estes de que
agora falo, e com grande propriedade, porque sendo pequenos, não
só se chegam a outros maiores, mas de tal sorte se lhes pegam aos
costados, que jamais os desferram.»). Representam o oportunismo, o
parasitismo social e a subserviência. Uma vez que vivem na
dependência dos grandes e morrem com eles, Vieira argumenta que
os grandes morrem porque comeram, os pequenos morrem sem
terem comido.

Os Voadores, peixes de grandes barbatanas que saltam


para fora de água como se voassem. Representam o defeito da
presunção e da ambição desmedida e desse modo, porque não se
contentam com o seu elemento, são pescados como peixes e
caçados como aves («Dizei-me, voadores, não vos fez Deus para peixes? Pois porque vos meteis a ser aves?
[...] Contentai-vos com o mar e com nadar, e não queirais voar, pois sois peixes.») . Simão Mago e Ícaro
exemplificam-no entre os homens. Por contraste, Santo António tinha sabedoria e poder, mas não se
vangloriou.

O Polvo, detentor de um «capelo», tentáculos, um corpo


mole e podendo camuflar-se, é considerado um hipócrita e
traidor pois utiliza a capacidade mimética (varia a sua coloração
e a sua forma, de acordo com o meio em que se encontra) para
atacar os peixes desprevenidos («E debaixo desta aparência tão
modesta, ou desta hipocrisia tão santa [...] o dito polvo é o
maior traidor do mar.»). Entre os homens, encontramo-lo em
Judas. Mais uma vez, por contraste, Santo António foi sincero e verdadeiro - nunca enganou.

5.6 – Capítulo VI

Peroração – Utilização de um desfecho forte para impressionar o auditório

Conclusão – Com uma última advertência aos peixes; retrato dele próprio como pecador; hino de louvor

O capítulo VI é a conclusão de todo “O Sermão de Santo António aos Peixes”, e Santo António tem
como objetivo a conversão dos homens á Fé de Deus.

Santo António revela que tem inveja dos Peixes, pois estes não ofendem Deus com a sua memória e
cumprem o objetivo da sua criação, enquanto que os Homens ofendem Deus com as suas palavras, com os
seus pensamentos e com a sua vontade, não atingindo o objetivo da sua criação.

Assim, Santo António reflete sobre os Peixes e os Homens e conclui que os Peixes são melhores que
os Homens, e que a única solução para o Homem é a conversão, porque só assim é que os Homens podem
dar glória a Deus.

6 – Linguagem e estilo
Alegoria:
“falando com os pregadores, sois o sal da terra; e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na
terra o que faz o sal”
“O polvo, com aquele seu capelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus raios estendidos,
parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma
mansidão”

Apostrofes:
“Estes e outros louvores, estas e outras excelências de vossa geração e grandeza vos pudera dizer, ó
peixes..."
"Ah moradores do Maranhão..."
"Esta é a língua, peixes, do vosso grande pregador (...)"
"Peixes, contente-se cada um com o seu elemento."
"Oh alma de António, que só vós tivestes asas e voastes sem perigo (...)"
"Vê, peixe aleivoso e vil, qual é a tua maldade (...)"

Antíteses:
Tanto pescar e tão pouco tremer!"
"No mar, pescam as canas, na terra pescam as varas (...)"
"(...) deu-lhes dois olhos, que direitamente olhassem para cima (...) e outros dois que direitamente
olhassem para baixo (...)"
"A natureza deu-te a água, tu não quiseste senão o ar (...)"
"(...) traçou a traição às escuras, mas executou-a muito às claras."
"(...) António (...) o mais puro exemplar da candura, da sinceridade e da verdade, onde nunca houve dolo,
fingimento ou engano."
"Oh que boa doutrina era esta para a terra, se eu não pregara para o mar!"

Comparações:
Certo que se a este peixe o vestiram de burel e o ataram com uma corda, parecia um retrato marítimo de
Santo António."
"O que é a baleia entre os peixes, era o gigante Golias entre os homens."
"(...) com aquele seu capelo na cabeça, parece um monge;
com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela;
com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura (...)"
"As cores, que no camaleão são gala, no polvo são malícia (...)"
"(...) e o salteador, que está de emboscada (...) lança-lhe os braços de repente, e fá-lo prisioneiro. Fizera
mais Judas?"
"Vê, peixe aleivoso e vil, qual é a tua maldade, pois Judas em tua comparação já é menos traidor

Paralelismos e Anáforas:
"Deixa as praças, vai-se às praias;
deixa a terra, vai-se ao mar..."
"Se está nos limos, faz-se verde;
se está na areia, faz-se branco;
se está no lodo, faz-se pardo (...)"

Enumeração:
“No mar, pescam as canas, na terra pescam as varas (e tanta sorte de varas); pescam as ginetas, pescam
as bengalas, pescam os bastões e até os cetros pescam (...)"
"(...) que também nelas há falsidades, enganos, fingimentos, embustes, ciladas e muito maiores e mais
perniciosas traições."
"Eu falo, mas vós não ofendeis a Deus com palavras; eu lembro-me, mas não ofendeis a Deus com a
memória; eu discorro, mas vós não ofendeis a Deus com o entendimento; eu quero, mas vós não
ofendeis a Deus com a vontade."

Metáforas
"(...) pois às águias, que são os linces do ar (...) e aos linces que são as águias da terra (...)"
"(...) onde permite Deus que estejam vivendo em cegueira tantos milhares de gentes há tantos séculos ?!"
" (...) vestir ou pintar as mesmas cores (...)"
"(...) e o polvo dos próprios braços faz as cordas

Paradoxos:
“a terra e o mar tudo era mar."
"E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa (...) o dito polvo é o maior traidor
do mar."
"hipocrisia tão santa"

Trocadilhos
Os homens tiveram entranhas para deitar Jonas ao mar, e o peixe recolheu nas entranhas a Jonas, para o
levar vivo à terra."
"E porque nem aqui o deixavam os que o tinham deixado, primeiro deixou Lisboa, depois Coimbra, e
finalmente Portugal."
"(...) o peixe abriu a boca contra quem se lavava, e Santo António abria a sua contra os que se não
queriam lavar."

Interrogações retóricas
qual será, ou qual pode ser, a causa desta corrupção?"
"Não é tudo isto verdade?"
"(...) que se há de fazer a este sal, e que se há de fazer a esta terra?"
"Que faria neste caso o ânimo generoso do grande António? (...) Que faria logo? Retirar-se-ia? Calar-se-
ia? Dissimularia? Daria tempo ao tempo?"
"(...) onde permite Deus que estejam vivendo em cegueira tantos milhares de gentes há tantos séculos?!"

Ironia
“Mas ah sim, que me não lembrava! Eu não prego a vós, prego aos peixes."
"E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa (...) o dito polvo é o maior traidor
do mar."

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