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Sociologia - Módulo 2

A unidade do homem e as diferenças entre os homens

Carlos Rodrigues Brandão e Alfredo Bosi

O olho transformou-se em olho humano quando seu objeto se converteu


em um objeto humano, social, criado pelo homem e a este destinado [...]
(MARX, 1932, p. 132 apud FROMM, 1970, p. 41).

Esta frase, cunhada por Marx, um dos três nomes exponenciais (ao lado de Émile
Durkheim e Max Weber) da formação do pensamento sociológico, desde a constituição da
Sociologia como ciência até os dias de hoje, é absolutamente emblemática do entendimento
do conceito de cultura como trabalho que constrói e permanentemente reconstrói a
humanidade do homem.
Ao se considerar, por exemplo, a noção de cultura trabalhada por dois importantes
pensadores brasileiros contemporâneos, Carlos Rodrigues Brandão e Alfredo Bosi, é
possível apontar a continuidade da influência do pensamento marxiano na produção
intelectual humanista. Quando observamos que ambos enfatizam a compreensão do
homem como produtor e produto da cultura — isto é, o homem não só como produtor de
objetos, instrumentos, técnicas, mas também, de palavras, ideias, regras e normas de
organização social, valores, símbolos, crenças e sentimentos, que, por sua vez, determinam
seu modo de agir, pensar e existir.
Para Brandão e Bosi, cultura pode ser definida como o mundo criado pelo homem
por meio do trabalho que este realiza sobre a natureza, da qual também faz parte.
Portanto, cultura é por eles entendida como trabalho. É o trabalho pelo qual o
mundo dado ao homem se transforma no mundo construído pelo homem. Ou seja, com o
trabalho entendido como atividade humana, o ser humano transforma a natureza e a
ressignifica, e esta torna-se, assim, uma segunda natureza, na qual ele constrói a sua
humanidade e se distingue dos outros seres da natureza de que faz parte.
Por meio da cultura, o homem se afirma como senhor do trabalho que transforma o
mundo, sendo este o fundamento da cultura, pois, mais que o fato de ela ser produzida de
um modo material e concreto, o que importa é que a cultura constitui a construção social da
consciência humana. O que significa dizer que o homem faz parte da natureza mas a
transcende, ao transformá-la e ao se transformar com essa ação. Portanto, ao conhecer a
natureza que irá transformar, o homem se torna capaz de se conhecer a si mesmo.
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A unidade do homem e as diferenças entre os homens

Nesse sentido, Carlos R. Brandão (BRANDÃO, 1986) argumenta que só se pode


conceber a noção de cultura associada, simultaneamente, às ideias de trabalho, história e
dialética — entendendo-se, no âmbito da primeira, a ação social e consciente do homem
sobre a natureza (que inclui o próprio homem e os outros com os quais se relaciona), que
resulta em uma prática social e socializada, capaz de recriar o que foi criado,
ressignificando, assim, a natureza significada pelo homem por meio do trabalho social.
Porém, além da ideia de trabalho, Brandão também concebe a noção de cultura
associada, simultaneamente, às ideias de história - como espaço e tempo de realização do
trabalho humano e de seu produto — e de dialética, entendida como a determinação das
relações do homem com a natureza e dos homens entre si, estabelecendo um movimento
pelo qual o ser humano cria a cultura enquanto faz a história.
Portanto, se é pelo trabalho que o homem transforma e dá significado ao mundo, é
também pelo trabalho — como atividade humana agindo sobre a natureza — que o próprio
homem se transforma e adquire um significado, resultado de uma prática coletiva. É nesse
sentido que sociedade e cultura estão em completa relação, já que a sociedade é parte da
cultura, que, por sua vez, é produto da ação social.
No entanto, na sociedade de classes — como o alerta Alfredo Bosi (1987) —, a
cultura é entendida como uma mercadoria, algo que se pode obter, e, nesse sentido
específico, ter cultura significa, então, ter acesso a objetos culturais e poder consumir livros,
discos, quadros etc. Por isso, a cultura aparece como um bem especial, que dá acesso a
bens de luxo e confere privilégios e distinções àqueles que os possuem.
Em outras palavras, Bosi chama a atenção para uma forte contradição da sociedade
capitalista, na qual a cultura — que, conceitualmente, é entendida como fruto de um
trabalho humano coletivo — pode ser vivida como uma divisão entre os que têm e os que
não têm cultura. O que significa dizer que a cultura deixa de ser um conceito democrático
para tornar-se classista, dividindo a sociedade entre os que possuem e os que não possuem
cultura, isto é, ― bens culturais‖.
Bosi adverte, então, que a única possibilidade de reverter tal problemática reside em
restabelecer a noção de cultura associada à ideia de trabalho, uma vez que somente
assim todos os indivíduos terão acesso à cultura, pois todos serão cultos caso trabalhem,
realizem obras — enquanto processo e resultado —, produzam conhecimentos que possam
ser compartilhados e, com isso, gerem uma ação social capaz de transformar a vida em
sociedade.
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A unidade do homem e as diferenças entre os homens

O reconhecimento da cultura como trabalho questiona, portanto, a hegemonia de


uma cultura do homogêneo, na qual a diversidade social e cultural não têm lugar,
propondo, em contrapartida, a ideia de uma sociedade capaz de integrar o local, o nacional
e o global, sem, contudo, deixar de atentar para as especificidades de cada um desses
níveis. Assim, são reconhecidas as diferenças sociais e as particularidades e
especificidades internas aos grupos sociais de crianças, jovens, mulheres, idosos, diversos
grupos religiosos e étnicos, migrantes e imigrantes, desempregados, albergados, moradores
de rua, favelados, incapacitados, entre outros.
É no sentido, portanto, de não deixar de considerar as respostas articuladas pelas
minorias sociais, que Bosi narra a mobilização popular empreendida, durante o ano de
1984, pelos moradores do município de Cotia, na Grande São Paulo, para tentar
salvaguardá-lo da poluição provocada pela instalação de fábricas altamente tóxicas,
beneficiadas pela ausência de uma lei de zoneamento.
Seu relato vai expondo, paulatinamente, o processo de organização dessa
população para a aquisição de uma cultura ecológica, não por meio da leitura de livros sobre
ecologia — ainda que esta leitura também faça parte do processo de construção do
conhecimento —, mas sim pela consciência e prática ecológicas, construídas no exercício
da participação política em movimentos sociais.
Assim, dando um exemplo concreto de como cultura significa trabalho, Bosi permite
que o leitor consiga avaliar como o movimento organizado pelos moradores de Cotia os
estimulou a estudar e conhecer as leis de zoneamento, as diretrizes de administração do
poder público e suas relações com os órgãos técnicos e consultivos do Estado (Sabesp,
Cetesb etc.), e, ainda, a investigar o papel dos poluentes químicos industriais. Seu relato
nos mostra, enfim, o processo pelo qual essa população aprendeu a construir uma cultura
ecológica por meio de uma educação formativa e, simultaneamente, multiplicadora, capaz
de motivá-la não só para essa luta ecológica como também para a conquista e defesa de
tantos outros direitos sociais.

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