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v.36-1, p.37-48
Expressões da sexualidade:
um olhar junguiano
Resumo Palavras-chave
Até o início do século XX havia uma definição dessa história, no Brasil, são revistos a fim de nos Identidade
rígida do que era ser homem e do que era ser mul- situarmos no panorama atual. Ao despirmos os con- de gênero,
her, da masculinidade e da feminilidade. Atual- ceitos de anima e de animus de seu viés cultural e orientação
sexual,
mente as questões de identidade de gênero e de de padrões rígidos, podemos compreender que o
binarismo,
orientação sexual vão além do binarismo e config- arquetípico se expressa nas mais diferentes polar- anima e
uram uma sexualidade mais fluida que desafia a idades, no feminino e no masculino, na alma e no animus.
consciência coletiva. Nossa cultura judaico-cristã corpo, dentro e fora de nós e que a psique individu-
levou a uma sobrevalorização do masculino em det- al bem como a coletiva se transforma e desenvolve
rimento do feminino e às repressões daí decorrentes seu potencial criativo a partir da diferenciação e da
na história de nossa sexualidade. Alguns aspectos integração das diferentes polaridades. ■
que eles fossem urgentemente vestidos, afinal passam a ser normais a existência das chamadas
era inaceitável vê-los nus na missa e menos ain- “teúdas e manteúdas” e a de seus filhos bastar-
da cabia assistir, durante a celebração, à exci- dos. A iniciação sexual dos filhos dos senhores de
tação que as índias causavam nos portugueses. engenho, bem como o prazer destes, era vivido na
Na visão dos portugueses, o indígena era sombra social da senzala. A religião e o Estado ca-
um animal lascivo que vivia sem nenhum cons- minhavam juntos, o pecado era crime, atentado a
trangimento os seus desejos carnais. Para os jo- Deus e ao Rei. A Inquisição portuguesa teve início
vens colonos, era a própria imagem do paraíso, em 1536 e só se encerrou em 1821. O homosse-
libertos que estavam das repressões e restrições xual, chamado de sodomita, era julgado pelas
impostas à sexualidade pela cultura de origem. Ordenações Manuelinas com pena de morte na
De acordo com Freyre (1983, p. 101): “Era natural fogueira, confisco dos bens e infâmia de todos
a europeus surpreendidos por uma moral sexual os descendentes até a terceira geração. Embora
tão diversa da sua concluírem pela extrema lu- isso não tenha chegado a acontecer no Brasil, os
xúria dos indígenas; entretanto, dos dois povos, sodomitas que fossem acusados poderiam ser
o conquistador talvez fosse o mais luxurioso”. presos e enviados ao Santo Ofício de Lisboa. Iro-
Cabia aos missionários coibir os atos consi- nicamente, muitos haviam sido mandados pelo
derados libidinosos, como a poligamia e a sodo- Santo Ofício, em degredo, ao Brasil.
mia, hábitos naturais entre os índios habitantes Havia uma rede de comunicação bastante ex-
da nova terra. Entre os índios Tupinambá, por tensa entre a colônia e o Santo Ofício, além dos
exemplo, que ocupavam a maior parte da costa membros da igreja, pessoas da elite poderiam ser
brasileira naquela época, havia os Tibira, homens aceitas como representantes da Inquisição. Fazer
homossexuais e as Çacoimbeguira, as mulheres parte do quadro da Inquisição trazia status na co-
homossexuais; entre os Kadiweu havia os kudina lônia, além de privilégios como a isenção fiscal.
que eram homem-mulher e assim por diante entre Significava que tal pessoa era reconhecida como
as outras tribos nativas (FERNANDES, 2016). tendo “limpeza de sangue”, isto é, sem misturas
Esse projeto da igreja, ao mesmo tempo ca- de índios ou de negros. Cabia aos representantes
tequista e repressor, repetiu-se, possivelmente do Santo Ofício oficializar delações que seriam
de forma mais violenta, com a população negra, enviadas ao Tribunal de Lisboa. E, eventualmen-
pouco tempo depois, com o início do tráfico de te, oficiais da Inquisição visitavam o Brasil.
escravos em 1526. É interessante verificar que muito do que se
Às índias (no século XVI) e às negras (no século sabe da vida sexual daquela época constava
XVII) coube o papel de prostitutas e/ou amantes. dos registros minuciosos das denúncias e das
De acordo com o ditado popular da época: “bran- confissões. Havia dúvidas, por exemplo, do que
ca para casar, mulata para foder e negra para tra- se fazer com as delações de homossexualidade
balhar” (Del Priore, 2014, p. 46). As brancas de feminina. A penalidade para a homossexualida-
elite eram vendidas em casamento. de se referia à chamada sodomia completa, que
Para as autoridades religiosas, o ato sexual significava penetração anal. Mas como poderia
e qualquer atrativo feminino eram sinônimos de haver sodomia entre mulheres? Outra questão
tentação diabólica. À mulher cabia o papel de que suscitava dúvidas era se a sodomia pratica-
reprodutora, seu corpo era demonizado. O único da entre um homem e uma mulher também seria
aspecto do feminino aceito era a maternidade. A passível de pena.
virgindade, evidentemente, era obrigatória para O fato de não haver tribunais da Inquisição
o casamento. O adultério feminino era passível no Brasil trazia uma liberdade muito maior aos
de ser punido com a morte. Já as traições reali- habitantes da nova terra em comparação com a
zadas pelos homens eram tidas como naturais, e população de Portugal.
Para a trilha sonora da peça de teatro Cala- porque o cérebro da mulher poderia ser domi-
bar, o Elogio da Traição, de 1973, Chico Buarque nado pelo útero. Na versão de um médico da
compôs um frevo “Não existe pecado ao sul do época, a excessiva voluptuosidade era de fácil
equador”. Essa frase o compositor encontrou diagnóstico: essas mulheres são péssimas do-
em uma nota de rodapé do livro Raízes do Bra- nas de casa (DEL PRIORE, 2014). Os remédios
sil, de seu pai Sérgio Buarque de Holanda. É uma eram os mesmos dos 200 anos anteriores: ba-
frase que faz parte do livro Histórias de Feitos nhos frios e caminhadas.
Recentemente Praticados no Brasil, do historia- A dissociação entre a virgem santa, mãe dos
dor holandês Caspar von Barlaeus, da corte de filhos e a prostituta com quem se pode viver o
Maurício de Nassau, em Pernambuco durante o prazer, tem ecos até hoje na psique coletiva.
século XVII. Neste, Barleus diz que é como se a O corpo e o prazer saem então da jurisdição re-
linha que divide o mundo em dois hemisférios ligiosa e passam para o campo da ciência, não
também dividisse a virtude do vício. mais pecado, mas sim doença. A homossexuali-
A partir do século XIX, a medicina passou dade deixa de ser pecado ou crime e passa a ser
a ocupar o espaço da religião na instrução de uma patologia degenerativa: falhas biológicas e
como deveria ser o relacionamento sexual. A psíquicas que colocam em risco a espécie huma-
nudez completa estava associada ao sexo no na. O homossexual não mais é preso em cárcere,
bordel, as relações deveriam ocorrer no escuro mas sim em clínicas e manicômios. No Brasil,
e com corpos cobertos. A ciência explicava que a homossexualidade saiu do código penal em
a ejaculação extraia o que haveria de mais puro 1830, mas as prisões continuaram a ocorrer sob
no sangue do homem: 30 gramas de sêmen cor- a justificativa de atentado ao pudor ou vadiagem.
responderiam à hemorragia de 1.200 gramas de Somente em 1973 a Associação Americana de
sangue, portanto não se aconselhava o desper- Psiquiatria deixou de considerar a homossexua-
dício. Nada de masturbação, e as relações de- lidade como sendo transtorno mental e a retirou
veriam ser rápidas visando a fecundação (DEL do Diagnostic and Statistical Manual Disorders
PRIORE, 2014). Entre 1840 e 1850, dois médicos (DMS). Mesmo assim continuou a constar como
franceses descobriram os mecanismos da ovula- doença mental no Classificação Internacional de
ção feminina; isto demonstrou, com clareza, que Doenças (CID) até 1990, quando a Organização
o orgasmo feminino era totalmente desnecessá- Mundial da Saúde (OMS) publicou a décima ver-
rio! (DEL PRIORE, 2014). são dessa classificação (CID-10). Essa versão só
O prazer nessa época era também vivido na entrou em vigor, para os países-membro das Na-
sombra social. Havia, no século XIX, no Rio de ções Unidas, em 1993 (OMS, s.d.).
Janeiro, três categorias de prostitutas: as aristo- Apenas em março de 1999, ou seja, há menos
cráticas ou de sobrado, que eram em geral fran- de 20 anos, o Conselho Federal de Psicologia edi-
cesas, mantidas por políticos ou fazendeiros e tou a Resolução nº 001/1999, que define que a
estavam associadas ao luxo no morar e no vestir; homossexualidade não é doença, nem distúrbio,
as de sobradinho, que eram mais pobres e traba- nem perversão. Nessa Resolução, os psicólogos
lhavam em hotéis, eram polacas ou mulatas; e são orientados a não exercer qualquer ação que
as da escória, mulheres que atendiam em case- favoreça a patologização de comportamentos
bres ou em fundos de barbearias. ou práticas homoeróticas e nem colaborar com
Já as mulheres honestas não deveriam sen- eventos e serviços que proponham tratamento e
tir prazer. A elas era reservado o papel de ser cura da homossexualidade (CONSELHO FEDERAL
boa mãe, submissa e doce. O instinto materno DE PSICOLOGIA, 1999).
deveria anular o instinto sexual. Caso contrário, As mulheres, por sua vez, tiveram a alforria ao
tratava-se de patologia, ninfomania ou histeria, próprio prazer a partir do lançamento da pílula
anticoncepcional, que se deu nos EUA em 1960 formas variadas de neutralidade, ambiguidade,
e que chegou ao Brasil em 1962. Inicialmente multiplicidade e fluidez de gênero. Por exem-
pensada como forma de possibilitar o planeja- plo, um gênero não binário é o agênero que se
mento familiar, passa a ser usada por mulheres caracteriza basicamente pela ausência de gê-
solteiras, o que configura a revolução sexual. A nero ou o bigênero que se caracteriza pela vi-
sexualidade passa a poder ser vivida plenamen- vência de dois gêneros simultaneamente.
te, em sua dimensão do prazer, sem associação Já a orientação sexual tem a ver com a ex-
com a gravidez. A mulher passa a poder ser dona pressão da sexualidade, do desejo, da atração
de seu prazer e de seu corpo, como nunca tivera afetivo sexual. Nesse sentido, a orientação sexu-
a condição antes. al pode ser hetero, homo, bi ou pansexual, que
O início da liberdade sexual é vivido nessa seria a atração sexual ou amorosa entre pessoas
época, no Brasil e no mundo, junto a enormes independentemente do sexo ou da identidade
movimentos de transformações de costumes. de gênero.
Iniciam-se no Brasil, os primeiros movimen- Não raro hoje temos notícia de novas forma-
tos pelos direitos gays no final dos anos 1970. ções de casais e de famílias. No Equador, houve
Na ocasião, eram predominantemente formados recentemente o relato de um casal: ela, Diane
por homossexuais masculinos, mas logo as lés- (que nasceu Luis), e ele, Fernando (que nasceu
bicas passaram a participar. Nos anos 1990, os Maria). Ambos tomam hormônios, mas não fize-
travestis e transexuais aderiram e, no início de ram a cirurgia de redesignação sexual e tiveram
2000, os bissexuais. um filho. Logo, é o pai que deu à luz e amamenta.
Até o começo do século XX há uma definição É interessante ver imagens de homens barbados
rígida do que é ser homem e do que é ser mulher, amamentando (CRELLIN, 2017). Os transexuais
da masculinidade e da feminilidade. A homosse- podem ser heterossexuais, como é o caso do ca-
xualidade é vista, ainda nos anos 1970, dentro sal equatoriano. Mas podem também ser gays,
da perspectiva do masculino dominante e do lésbicas ou bissexuais tanto quanto as pessoas
feminino passivo. A bicha, como era chamado, cisgênero. Ou seja, por exemplo, alguém nas-
é o passivo; o homem que transa com a bicha cido mulher pode se identificar como homem e
não é, necessariamente, considerado homos- sentir atração por outro homem. Seria, então, um
sexual. Sapatão é a mulher que se exerce mas- homem trans homossexual.
culinamente, a parceira feminina, não. Ou seja, Na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de
é homossexual o homem feminino e passivo ou São Paulo, os alunos podem solicitar o uso de
a mulher masculina e ativa. um nome social, o que significa começar o curso
O movimento GLS (gays, lésbicas e simpa- com um nome masculino e terminar com um fe-
tizantes) passa a ser LGBT: lésbicas, gays, bis- minino ou vice-versa. Recentemente, foi instituí-
sexuais, travestis, transexuais e em algumas do ali também, além dos banheiros para homens
regiões do Brasil o “T” inclui transgêneros (even- e para mulheres, o banheiro unissex.
tualmente é também acrescido o Q de queer). Há ainda uma comunidade que se autode-
Para além do sexo anatômico, homem e mu- nomina assexual. A assexualidade, segundo a
lher, há a questão da identidade de gênero e definição da própria comunidade, é diferente
da orientação sexual. A identidade de gênero do celibato, porque este seria uma escolha e
está ligada à maneira como a pessoa se auto- diferente do desejo sexual hipoativo, que seria
define. Nascer homem e sentir-se mulher ou patologia. Essa comunidade entende a asse-
nascer mulher, mas sentir-se homem, ou ser xualidade como sendo uma orientação sexual,
cisgênero, ou seja, identificado com o sexo de ou seja, não sentem atração sexual por outros
nascimento. A não binaridade de gênero inclui indivíduos, mas podem ser heterorromânticos,
Resumen
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