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TODA A

ORFANDADE
DO MUNDO
escritos sobre
ROBERTO BOLAÑO

organização
Antonio Marcos Pereira
Gustavo Silveira Ribeiro
© Relicário Edições
© Autores

cip –Brasil Catalogação-na-Fonte | Sindicato Nacional dos Editores de Livro, rj

T633

Toda a orfandade do mundo : escritos sobre Roberto Bolaño /


Organização Antonio Marcos Pereira, Gustavo Silveira Ribeiro. --
Belo Horizonte, MG : Relicário Edições, 2016.

216 p. ; 15,5 x 22,5 cm.


ISBN: 978-85-66786-42-2

1. Roberto, Bolaño, 1953-2003 – Crítica e interpretação. 2.Literatura chile-


na - Ensaios. I. Ribeiro, Gustavo Silveira. II. Pereira, Antonio Marcos. III.
Título IV. Título: escritos sobre Roberto Bolaño

CDD C864

conselho editorial

Eduardo Horta Nassif Veras (unicamp)


Ernani Chaves (ufpa)
Guilherme Paoliello (ufop)
Gustavo Silveira Ribeiro (ufmg)
Luiz Rohden (unisinos)
Marco Aurélio Werle (usp)
Markus Schäffauer (Universität Hamburg)
Patrícia Lavelle (ehess/Paris)
Pedro Süssekind (uff)
Ricardo Barbosa (uerj)
Romero Freitas (ufop)
Virginia Figueiredo (ufmg)
Davidson de Oliveira Diniz (ufrj)

coordenação editorialMaíra Nassif Passos


projeto gráfico& diagramação Ana C. Bahia
revisão Mariana Di Salvio

RELICÁRIO EDIÇÕES
www.relicarioedicoes.com
contato@relicarioedicoes.com
Un historiador que trabaja con documentos del porvenir.
Ricardo Piglia, Respiración artificial
PREFÁCIO
Ana Cecília Olmos   9

Bolaño no Brasil
Antonio Marcos Pereira & Gustavo Silveira Ribeiro  13

A HISTÓRIA É ASSIM, UM CONTO CURTO DE TERROR


[América Latina, literatura e violência]

“Da violência, da verdadeira violência”


Marcos Natali  19

Todos os nomes, o nome


arquivo e violência na cultura
latino-americana contemporânea
Gustavo Silveira Ribeiro  45

Roberto Bolaño: o segredo do mundo é óbvio


Sobre “La parte de Amalfitano”
Graciela Ravetti  65

“Por que não assim, se assim foi pra mim”:


Pasolini e Bolaño
Maria Betânia Amoroso  83
NOVOS TREMORES FORMAIS
(As aventuras da forma)

Três quadros em um quarto:


a poesia lança um olhar para a cena do crime
Tiago Guilherme Pinheiro   95

A dinâmica formal de La literatura nazi en América


Kelvin Falcão Klein   123

Los detectives salvajes, sua promessa de sentido


Clarisse Lyra  135

Uma breve história do latino-americanismo e


o último escritor latino-americano
Mariana Di Salvio  149

A SOPA NEGRA DA VIDA


(Biografia, recepção, reinscrição)

Coragem e verdade
Uma defesa do mito Bolaño
Matt Bucher  165

Os detetives selvagens – diário de releitura


Felipe Charbel  175

Pós-escrito ou de como não consegui


escrever um ensaio sobre Bolaño
Rafael Gutiérrez  201

SOBRE OS AUTORES  213


PREFÁCIO

Nas últimas décadas, a literatura de Roberto Bolaño imantou a cena lite-


rária, atraindo para si a atenção de críticos, editores e inúmeros leitores
de diferentes línguas. Poucos escritores da América Latina atingiram uma
relevância internacional dessa magnitude. Se pensarmos no século XX,
Bolaño poderia se incorporar a uma lista de autores reconhecidos, na qual
os nomes de Borges, Neruda e García Márquez se destacam, embora eles
não se projetem no âmbito internacional da mesma forma. Pode-se dizer
que, para além do valor literário de suas obras, os nomes de Neruda e García
Márquez não deixam de remeter, nos dias de hoje, a uma representatividade
latino-americana que se sustenta no voluntarismo político das utopias de
esquerda e no exotismo identitário do realismo mágico. Pelo contrário, os
nomes de Borges e Bolaño resistem a qualquer mandato de representatividade
e suas obras convocam a um trabalho crítico de desarticulação ideológica
do latino-americano que liberta a literatura dessas vocações localistas. O
contraponto entre esses autores é óbvio e não pretende colocar em ques-
tão a importância que suas obras tiveram ao longo do tempo. No entanto,
se levarmos em conta a marcada desterritorialização que singulariza a
literatura das últimas décadas, poderíamos nos referir a esse contraponto
retomando o jogo paródico que tanto divertia ao próprio Bolaño e dizer
que os quatro escritores mais importantes da América Latina no século XX
são três: Borges e Bolaño.
Apelar a esse jogo paródico é um recurso fácil, não obstante, ele com-
porta uma dose de verdade ou, pelo menos, uma apreciação bastante apro-
ximada da literatura do final do século passado, que colocou em questão os
mandatos de representatividade local. Nesse sentido, pode-se afirmar que,
na esteira da proposta borgeana, Bolaño desvencilhou de vez a literatura
latino-americana desses compromissos territoriais, na medida em que des-
montou criticamente o horizonte ideológico de esquerda que marcou a sua
geração, desmantelou as essências identitárias que sujeitavam a literatura a

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uma eterna reiteração do mesmo, desestimou uma fala de origem localista e
abriu a escrita a uma multiplicidade de vozes que desnorteia as cartografias
da língua espanhola, desenhou nos seus ensaios de leitura bibliotecas alter-
nativas que subvertem o nacionalismo dos cânones. Por certo, essa rápida
descrição da escrita de Bolaño não esgota as suas possibilidades de leitura,
apenas busca colocar em evidência o trabalho de demolição do estabelecido
que ela empreende. É nesse sentido que se pode afirmar que a escrita de
Bolaño traçou o último movimento de um processo de desterritorialização
que desmontou definitivamente a aparelhagem de uma literatura que se
esclerosava nas fórmulas consabidas da identidade latino-americana. Não
é casual, portanto, que ele defina o ofício de escrever como a tentativa de
destruir a “máquina acorazada” da literatura e que convoque a figura do
guerreiro como emblema de uma empresa que comporta não poucos riscos
e que – tal como ele insiste em assinalar nos seus ensaios – demanda a co-
ragem de “internarse por territorios desconocidos”. A imagem é eloquente.
Para Bolaño, a possibilidade da literatura não é outra senão a de sua con-
dição de deriva, de trânsito entre línguas, culturas, tradições e discursos,
vale dizer, a literatura como um movimento de exploração permanente
que privilegie a fugaz surpresa do encontro e não a fixidez das formas e
dos sentidos já dados.
Trata-se, não obstante, de uma deriva literária que não cessa de traçar,
nas palavras do próprio Bolaño, “el atroz crucigrama latinoamericano”, isto
é, uma cartografia excêntrica e, por vezes, anacrônica onde ecoa o horror
do mundo, o horror da agonística história do século XX. Em qualquer um
de seus livros – basta mencionar Nocturno de Chile, Estrella distante, La
literatura nazi en América, Los detectives salvajes ou o fantasmático 2666 –
é possível reconhecer o retorno insistente e perturbador de uma violência
que desvenda uma dimensão sinistra do real habitualmente oculta nas
perspectivas iluministas da história. Essas narrativas se embrenham por
zonas obscuras da experiência das quais nada nem ninguém sai indemne;
nem sequer a literatura, o escritor ou o próprio leitor que não podem se
furtar à interpelação incômoda que lança cada um desses livros e que Bolaño
condensa na pergunta sobre “nuestro grado de implicación en el crimen”.
Essa relação perturbadora entre ética e estética que permeia as narrati-
vas coloca a literatura sob suspeita, confrontando o leitor de uma maneira
perturbadora. Porém, é nos ensaios onde a voz do autor expõe, às vezes
com uma ironia não menos provocativa, os valores que sustentam sua

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ideia de literatura, a qual, em última instância, deve trabalhar em favor
da emancipação e esclarecimento humanos. Chama a atenção como, nos
seus ensaios, Bolaño insiste em lembrar que os latino-americanos “somos
hijos de la Ilustración”, isto é, “somos seres humanos razonables (pobres
pero razonables), no entelequias salidas de un manual de realismo mági-
co, no postales para consumo externo y abyecto disfraz interno. Es decir:
somos seres que pueden optar en un momento histórico por la libertad y
también, aunque resulte paradójico, por la vida”. Nessas palavras parece
ecoar o ideal de um humanismo crítico que, nos termos de Edward Said,
resiste a se esclerosar na exaltação mesquinha da própria cultura, se abre
ao mundo e se assume como questionamento permanente de tudo aquilo
que se oferece como certeza incontroversa, codificada e transformada em
produto de mercado. Embora isto seja discutível, penso que não é outro o
horizonte da literatura de Bolaño, certo resgate de um humanismo crítico
que propõe fazer da literatura, segundo suas próprias palavras, “algo razo-
nable y visionario, un ejercicio de inteligencia, de aventura y de tolerancia.
Si la literatura no es esto más placer, ¿qué demonios es?”
Os leitores brasileiros não foram indiferentes à sedução da literatura
de Bolaño e, nos últimos anos, as traduções dos seus livros sucederam-se
rapidamente, multiplicando o número de seguidores e dando lugar a leituras
instigantes, que se debruçam na prolífera escrita deste autor não apenas
para propor abordagens críticas de suas obras, mas também como uma
forma de indagar acerca do próprio ser da literatura nos dias de hoje. O
livro que temos em mãos, Toda a orfandade do mundo: escritos sobre Roberto
Bolaño, é uma excelente amostra disso, tanto da irresistível atração que essa
literatura exerce, quanto das provocativas interrogantes que ela desperta.
Organizado em três partes, o livro foca aspectos centrais da obra deste au-
tor: as relações entre literatura e violência, as sugestivas experimentações
formais e as instigantes relações entre escritura e vida. As leituras que se
desdobram nestas páginas abordam questões tais como o peculiar retorno
de uma mimese realista ante uma experiência de mundo violenta, caótica
e carente de sentido; a revisão crítica da utopia das vanguardas estéticas e
políticas que nortearam a geração dos anos 1970; o trânsito entre a poesia
e as formas mais variadas da prosa que faz da indeterminação discursiva
um estratégia de demolição da literatura; a experimentação com formas
literárias abertas e móveis, cuja potência de significação abre a palavra
literária a filiações antes impensadas; o sutil entrelaçamento de vozes que

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tecem as narrativas, colocando em cena instigantes relações entre sujeito,
experiência e verdade; a marcante inscrição da vida num fazer literário que
não aceita as formas assépticas de um esteticismo vácuo.
Por certo, esse rápido comentário não dá conta da sensibilidade e
inteligência dessas leituras, ele apenas sinaliza em linhas gerais alguns dos
aspectos abordados. No entanto, o que quero destacar é que, em todas
essas leituras, se inscreve a singularidade de uma perspectiva própria que
não se submete aos parâmetros domesticados da crítica acadêmica, pelo
contrário, em todas elas coloca-se em jogo uma subjetividade que não se
omite perante a comoção que lhe provocou a leitura do texto literário.
Talvez seja isso o melhor que este livro oferece: uma forma de celebrar,
como diz Bolaño de sua amizade com Juan Villoro, que “no nos hemos
vuelto ni cobardes ni caníbales”.

Ana Cecília Olmos


São Paulo, março de 2015

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BOLAÑO NO BRASIL
Antonio Marcos Pereira
Gustavo Silveira Ribeiro

O impacto da leitura e da recepção crítico-criativa da obra do chileno


Roberto Bolaño (1953-2003) no Brasil é inegavelmente imenso, com pro-
duções na imprensa, ensaios acadêmicos, dissertações e teses em número
considerável circulando à disposição do interessado. O trabalho de recen-
seamento detalhado e exaustivo dessa recepção ainda está para ser aferido,
e não é nossa ambição fazê-lo aqui, nesse breve texto introdutório. Apesar
do grande número de leitores alcançado por seus principais romances e
volumes de contos (e considerando que nem toda a obra de Bolaño está
publicada entre nós, restando ainda inéditos no país, entre outros, livros
decisivos como La literatura nazi en América e El gaucho insufrible, além
dos ensaios e depoimentos de Entre paréntesis e do material retirado da
gaveta póstuma, recolhido em El secreto del mal), do sucesso de sua tra-
jetória de publicação nacional por uma grande casa editorial, em belas
edições e caprichadas traduções, é perceptível a existência de uma lacuna
crítica, de uma espécie de titubeio do comentário, tanto no que se refere
à obra de Roberto Bolaño, em particular, quanto, em geral, à literatura
latino-americana contemporânea. O que podemos dizer, nesse sentido, a
respeito de Bolaño, vale para inúmeros outros, ainda por se fazerem ouvir
com o devido vigor e presença no campo crítico brasileiro, como Cesar
Aira, Pedro Lemebel, Mario Levrero e Mario Bellatin, entre outros, todos
produtores de obras pujantes e desafiadoras e todos, ao contrário de Bolaño,
ainda muito timidamente traduzidos e circulantes entre nós.
O desequilíbrio, no caso de Bolaño, entre seu sucesso enquanto esti-
mulador do interesse de leitores e estudantes universitários, de um lado, e
a ausência de reflexão que seja, ao mesmo tempo, sistemática e acessível, de
outro, é notável, dando a ver uma espécie de falha, de abismo que se estende

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diante de nós. A constatação dessa falha foi uma de nossas motivações na
produção deste volume, pois se tal lacuna estimula a queixa (“– Não tem
nada mais consolidado na recepção de Bolaño no Brasil”), também indica a
aventura aberta para aqueles que se propuserem a perseguir o fio de Ariadne
lançado sutilmente por um autor como Bolaño no labirinto da história social
e literária do tempo presente: (“– Não custava tentar organizar um volume
que desse conta de parte da recepção de Bolaño no Brasil”).
O livro que lançamos agora, Toda a orfandade do mundo: escritos so-
bre Roberto Bolaño, é, assim, marcado pelo nosso interesse simultâneo de
trabalhar pela disseminação e desdobramento crítico da obra do escritor
chileno, e construir tal recolha de ensaios a partir de uma pauta que bus-
casse se afinar com o convite à ruptura formal e à inovação presentes na
obra, procurando mapear, por meio da reunião de diversos especialistas em
sua obra ou em temas conexos, algumas linhas de força que a percorrem
e estruturam, construindo aquilo que resumimos ao indicar que a obra é
interessante. Aqui, são exploradas várias motivações para esse interesse,
marcadas por diversas soluções estilísticas encontradas pelos autores dos
ensaios em seus distintos percursos para responder a uma ou outra solici-
tação ou provocação da leitura. Conforme propomos, o livro se divide em
três partes, que imaginamos corresponder, cada uma, a um aspecto decisivo
tanto da produção literária de Bolaño quanto da recepção crítica que vai se
erguendo em torno dela na cena brasileira. A primeira, A História é assim,
um conto curto de terror, põe em destaque a continuada reflexão que os
textos do escritor chileno elaboram sobre a onipresente e dramática questão
da violência, elemento que permeia, de ponta a ponta, a história e a cultura
da América Latina. Disseminada de modo quase incontrolável pelo tecido
social, conforme dá a ver a obra de Bolaño, a violência está presente seja
no universo burocrático-militar das ditaduras que submeteram o subcon-
tinente em décadas anteriores, seja nas disputas canônicas e nas práticas
acadêmicas que, no passado e no presente, perfazem o campo literário. A
figura ambígua e infame de Alberto Ruiz-Tagle/Carlos Wieder – poeta de
vanguarda e torturador da Força Aérea chilena – sintetiza a proximidade
tantas vezes incômoda entre essas duas instâncias, apontando para alguns
dos impasses que a obra de Bolaño coloca e que os ensaios de Marcos Natali,
Graciela Ravetti, Maria Betânia Amoroso e Gustavo Silveira Ribeiro vão
explorar em seus artigos sob diferentes ângulos e perspectivas teóricas.

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A segunda seção, Novos tremores formais, traz ao centro do palco o
trabalho de experimentação narrativa e poética levado a cabo por Roberto
Bolaño, fazendo da fruição do conjunto de seus textos uma verdadeira
aventura da forma, na medida em que, conforme propôs o autor em mais
de um momento, parece não haver possibilidade de separação entre a
atividade literária e o risco do desconhecido e do inesperado. A tarefa da
forma é cumprida não só como exigência estética e escolha pessoal, mas
como compromisso antes de tudo político e ético: repropor a representa-
ção, repensar a linguagem e a técnica são partes essenciais do pensamento
crítico e da ação política, uma vez que permitem compreender o mundo
novamente, com outros e distintos olhos. Nesse sentido, destacam-se na
recepção dos escritos do autor os textos que procuram desfazer a trama
complexa que estrutura romances experimentais como, por exemplo, La
literatura nazi en América, conjunto de resenhas e notas biográficas relativas
a todo um campo literário imaginário e ao mesmo tempo bastante reco-
nhecível, e Los detectives salvajes, cuja forma coral e multifacetada, mistura
inextricável de gêneros e vozes e pontos-de-vista, encaminha o leitor para
uma resolução que é ao mesmo tempo clímax, enigma e aporia. Os ensaios
de Tiago Guilherme Pinheiro, Kelvin Falcão Klein, Clarisse Lyra e Mariana
Di Salvio, recolhidos nessa segunda parte, procuram todos, cada um a sua
maneira, construir mapas setoriais que ajudem a identificar os caminhos
formais percorridos pelo autor, bem como inventar, a partir deles, novos
sentidos e novos territórios.
Por fim, na terceira e última seção do livro, A sopa negra da vida, dois
elementos vêm à tona: o lastro biográfico e experiencial da obra de Roberto
Bolaño (dado ressaltado tantas vezes pelo próprio escritor e por muitos dos
seus críticos) e o convite permanente à reescrita que seus textos parecem
oferecer aos leitores, instando-os a refazer os movimentos fundamentais
da obra e a mergulharem, eles também, no universo da ficção, abrindo
mão da distância e dos critérios científicos estritos exigidos em trabalhos
acadêmicos e propostas de leitura formatadas de maneira mais ortodoxa.
Desdobrada em inúmeros alter egos e jogos ficcionais, a presença magnética
e sedutora do escritor (revolucionário, vagabundo, imigrante) atraiu sobre
si a curiosidade do público e o interesse dos leitores especializados, que
procurou – e ainda procura – os resíduos e vestígios biográficos astutamente
espalhados por Bolaño ao longo de suas narrativas e poemas. Tal procedi-
mento, se pode levar a resultados verdadeiramente extraordinários, pode

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também derivar em textos de baixa intensidade crítica, às vezes próximos
do superficial e da curiosidade. Pois bem, os ensaios reunidos nessa seção,
escritos por Matt Bucher, Felipe Charbel e Rafael Gutiérrez, se lançam no
terreno incerto em que se encontram literatura e vida em Bolaño, aceitan-
do o desafio lançado pela sua obra e respondendo à ficção com a ficção,
fazendo do duplo movimento leitura-escrita (tão comum e tão central no
escritor chileno) o cerne de seus esforços.
Dos muitos temas que atravessam e marcam a obra de Bolaño um, deci-
sivo e iniludível, é o da amizade. Amigos, Arturo Belano e Ulisses Lima – os
célebres alter egos do próprio Bolaño e seu amigo mexicano, o escritor Mário
Santiago Papasquiaro – aparecem em Os detetives selvagens e caminham,
vidas paralelas, até o fim da obra. Peripatéticos no contemporâneo, a maior
parte do tempo distantes e perdidos um do outro, mas sempre próximos
da poesia, dos poetas e suas vidas vãs e boêmias, da contracultura e das
Esquerdas, da memória das utopias e suas perdições, desvarios e esgarça-
mentos. Esse tema é, também, matéria-prima e dinamizador desta coletânea,
que se construiu em amizade, sendo concebida e desenvolvida ao longo dos
anos em que os dois organizadores trabalharam juntos, ensinando literatura,
no mesmo departamento na Universidade Federal da Bahia. Ainda, é por
força do apoio fraterno da Relicário Edições, na pessoa de Maíra Nassif, e
do pessoal de apoio à edição (tradução, revisões, arte e design), que a ideia
foi viabilizada como proposta editorial. E, por fim, o livro se fez a partir do
contato cordial com as autoras e autores dos ensaios aqui apresentados: as
relações de amizade, em diferentes graus de longevidade e espessura, que
aqui se celebram, são todas animadas pela generosidade e pela motivação
comum de dizer a que veio a obra de Roberto Bolaño. Nossa esperança
como organizadores é que os ensaios aqui coligidos se mostrem eloquentes
também ao leitor, e se constituam como mais oportunidades e estímulos
à conversação em torno da obra que tanto já ofereceu a cada um de nós.

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A HISTÓRIA É ASSIM,
UM CONTO CURTO DE TERROR
[AMÉRICA LATINA, LITERATURA E VIOLÊNCIA]
“DA VIOLÊNCIA, DA VERDADEIRA VIOLÊNCIA”
Marcos Natali

“Lo que son las cosas” são as palavras que abrem “El Ojo Silva”, conto de
Roberto Bolaño, e na expressão é possível escutar um apelo, a convocação
que uma voz faz a um olhar. “Fíjate cómo son las cosas”, talvez dissesse a
fala buscando, no momento em que a narração se descortina, conduzir o
olhar do ouvinte àquilo que não pode deixar de ser visto (Bolaño, 2006a,
p. 11).1 Mas com o “Lo que son las cosas” a narrativa faz uma promessa,
prenunciando o relato de um acontecimento que pode até parecer pertencer
ao campo do anedótico, mas que ao mesmo tempo possuiria, apesar de sua
particularidade, um sentido geral, que desde esse momento passará a pairar
sobre o relato. Este será, portanto, um episódio que carregará o peso da
exigência de ser exemplar, o caso específico do qual se espera a capacidade
para apontar algo a respeito de um conjunto maior, talvez até sobre o próprio
funcionamento geral desse aglomerado. Estamos entrando, tudo indica,
nos terrenos da fábula e da parábola, com a narração prometendo dar a ver
algo que pertence ao domínio da generalidade: é de como são as coisas, de
como é a vida, e do que é feito o mundo que o conto tratará – e de como o
mundo é infelizmente, pode-se pressentir desde já, pois aquele que narra não
parece estar em sintonia com o estado que começa a descrever. Há desde
o início dissonância, ou em todo caso a encenação de uma discordância e

1. Na tradução do conto ao português feita por Eduardo Brandão, o que se lê é “Vejam


como são as coisas”, onde, além de uma referência justamente à visão e ao gesto de apontar
em determinada direção com o dedo do discurso, o que se insere no texto é também a
especificação de um destinatário coletivo, ausente do original, que omite qualquer deli-
mitação (Bolaño, 2008, p. 11). Já na tradução ao inglês a expressão é suprimida por inteiro,
e o conto inicia-se com as palavras “Mauricio Silva, also known as ‘The Eye’...”, como se
o preâmbulo ali fosse dispensável (Bolaño, 2007a, p. 106).

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uma diferença, entre essa voz que passa a historiar uma vida alheia (a de
Mauricio Silva, o “Ojo” do título) e o mundo em que esta vida transcorreu.
Não se trata, pois, de uma descoberta a ser anunciada com entusiasmo,
e será certo tom de resignação e tristeza que predominará no relato. O que
a história tem a ensinar não é aprazível (poderia ser alguém a dizer: “Veja
só como são as coisas: meu vizinho cuidava tanto da saúde e foi morrer
atropelado”). Estamos num território em que já não parece haver muito a
se fazer, talvez já não exista mesmo mais nada a ser feito – inclusive porque,
afinal, “ya han pasado tantos años” desde os acontecimentos. Se isto for
mesmo uma fábula, já se pode antecipar que será daquele subgênero que
se aproxima das histórias de terror.
Se isso tudo está na expressão inicial, que serve como um prefácio à
narrativa, antes, no título, o que se anunciava era que se trataria de uma
biografia (ficcional), o simulacro da história da vida daquele que lá é nome-
ado. Juntando um e outro, título e prefácio, o que se tem é a promessa de
pertencimento a uma série ainda mais restrita: a história de uma vida que
possui um sentido maior. Não é outra coisa o que a narração logo procla-
mará: “El caso del Ojo es paradigmático y ejemplar” (Bolaño, 2006a, p. 11).
Há outra promessa insinuada na expressão introdutória “Lo que son
las cosas”, esta referente a uma propriedade estrutural do relato que ainda se
inicia: em algum momento da narrativa haverá um giro. Essa característica
estrutural não está desconectada daquilo que pode ser o sentido do relato,
pois é esse movimento brusco no interior da narrativa que fará com que a
verdade das coisas, que é possivelmente a verdade do mundo, venha à tona,
comprovando sua inevitabilidade e, se a expectativa inicial se confirmar, seu
horror. O caráter enigmático é portanto parte do sentido das coisas, e é seu
desvelamento o que o receptor aguarda a partir desse momento. Assim, a
existência de uma regra geral para aquilo que o mundo é, para aquilo que
as coisas são, é anunciada, mas ainda terá que ser exposta, e justamente
pelo desenrolar desta história; a narração será a exposição. O “Lo que son
las cosas” é deste modo tanto ponto de partida para o relato quanto seu
prometido ponto de chegada. É de onde se sai e aonde se espera chegar, ao
mesmo tempo origem e destino.
Essa promessa será, aparentemente, cumprida, e antes do que se espe-
raria (talvez cedo demais), pois a revelação do sentido geral da existência
e do princípio organizador da história (e também da História?) virá logo
em seguida, ainda na primeira frase do conto: “Mauricio Silva, llamado el

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Ojo, siempre intentó escapar de la violencia aun a riesgo de ser considerado
un cobarde, pero de la violencia, de la verdadera violencia, no se puede
escapar…” (Bolaño, 2006a, p. 11). O giro narrativo que havia sido anun-
ciado portanto já ganha nome: há o desejo de exterioridade em relação à
violência, há tentativas de fuga, mas haverá também, superior aos dois, o
retorno avassalador da violência.
Formalmente, o recurso não é diferente daquele encontrado na aber-
tura do romance Amuleto, que também está fundado sobre uma promes-
sa, nesse caso relacionada ao pertencimento a um gênero: “Ésta será una
historia de terror”, pressagia a narradora Auxilio Lacouture. (No romance
o movimento e a tensão virão da diferença entre a definição do gênero da
narrativa e sua aparência: “Pero no lo parecerá” [Bolaño, 1999, p. 11].) Já
em 2666, romance posterior aos dois, não é preciso esperar sequer até as
primeiras linhas, o anúncio aparecendo já na epígrafe tomada da tradução
de um verso de Baudelaire: “Un oasis de horror en medio de un desierto
de aburrimiento” (Bolaño, 2004, p. 9). (Aí o movimento imaginável é entre
o oásis distópico e o deserto que o cerca e contém, isto é, entre o horror e
o tédio). Na verdade, no romance póstumo a profecia é inclusive anterior
à epígrafe, pois seu título ao mesmo tempo aponta para o futuro (dois mil
e...) e o nomeia e define como apocalipse e catástrofe. Violência, terror,
horror e catástrofe, portanto: como com outros textos do autor, ler “El Ojo
Silva” é confrontar, por um lado, a expectativa gerada pela proclamação
feita no início da narrativa, o sentido da parábola sombria proposto já em
sua abertura, e, por outro lado, o que sobra – o que sobra na história e
também da história, pois o que sobrevive e chega até nós é também uma
narrativa. Trata-se, assim, do exercício de examinar a equivalência entre
o princípio organizador e a narrativa, isto é, do trabalho de discernir se
existe na narrativa algo que exceda e desestabilize o princípio geral. Assim,
como em todo discurso profético, tudo no conto se jogará na relação entre
a profecia e o seu resto.

***

A questão é enorme. Dizer que é do tamanho do mundo seria pouco,


pois ela é maior do que ele, abarcando inclusive aquilo que ainda não é e
está ainda por vir (só isso justificaria a contundência da afirmação: “no
se puede escapar”). Por onde começar, por onde começar a falar sobre o

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futuro? E se começarmos, onde terminará uma história como essa, uma
história do futuro?
Ela poderia passar, por exemplo, pelo futuro nos versos de César Vallejo
(que Bolaño insere como personagem no romance Monsieur Pain ), pelas
súplicas dirigidas neles a alguém já reconhecido como morto: “¡No nos
dejes!”, “¡Vuelve a la vida!” (Vallejo, 1996, p. 475). Dolorosamente, o amor,
a intensidade de um amor será apresentada como argumento contra a
morte – “¡No mueras; te amo tanto!” –, para encontrar a indiferença fria
com que a morte trata o afeto: “Pero el cadáver ¡ay! siguió muriendo”. E no
entanto, nos últimos versos, quando o poema caminha para sua catástrofe
particular, ele sonha que uma reunião de toda a humanidade seria capaz
de tocar o morto:
Entonces, todos los hombres de la tierra
le rodearon; les vio el cadáver triste, emocionado;
incorporóse lentamente,
abrazó al primer hombre; echóse a andar...
Os versos são a cena para a irrupção de um futuro além da morte – mas
justamente quando o cadáver se levanta termina o poema, que encontra
seu próprio fim.
É também a um moribundo que será dirigido o apelo dos versos de
Pier Paolo Pasolini, em poema de 1962: “Te suplico, ah, te suplico: não quei-
ras morrer” (Pasolini, 2014, p. 314-316). Aqui, como em Vallejo, a súplica
sucede ao anúncio do fim: “Era o único modo de sentir a vida, / a única
cor, a única forma: agora acabou” (citado em Didi-Huberman, 2011, p. 7)2.
Décadas mais tarde, o mesmo poema, esse sobre tudo aquilo que já teria
acabado, será o início e o ponto de partida de outro texto, um estudo de
Georges Didi-Huberman sobre a possibilidade da sobrevivência daquilo
que, mantendo a referência a Pasolini, será chamado de “vaga-lume”.
Ao aparecerem como uma das epígrafes de Sobrevivência dos vaga-lu-
mes, os versos de Pasolini terão um funcionamento mais furtivo do que o
anúncio do que está por vir (no livro, em cujo começo aparecem, mas não
só). “Supplica a mia madre” (“Súplica à minha mãe”) abre o livro de Didi-

2. Era l’unico modo per sentire la vita,


l’unica tinta, l’unica forma: ora è finita.
Sopravviviamo: ed è la confusione
di una vita rinata fuori dalla ragione.
Ti supplico, ah, ti supplico: non voler morire.

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Huberman para que este possa, por sua vez, mais de quarenta anos depois,
ensaiar outro final para o discurso profético, esboçando um desfecho alter-
nativo para o poema (e talvez para a história do mundo!). Didi-Huberman
passará a escrever sobre o texto de Pasolini, voltando a ele obstinadamente
e em cima dele gravando sua própria escrita. Segundo a hipótese de leitura
que será exposta, em seus textos tardios Pasolini teria procurado teorizar,
como tese histórica, o fim da possibilidade do acontecimento, naquilo que
será chamado de “tese do desaparecimento dos vaga-lumes”:
o improvável e minúsculo esplendor dos vaga-lumes, aos olhos de Pasolini
– esses olhos que sabiam tão bem contemplar um rosto ou deixar o gesto per-
feito se desdobrar no corpo de seus amigos, de seus atores -, não metaforiza
nada mais do que a humanidade reduzida a sua mais simples potência de nos
acenar na noite. (Didi-Huberman, 2011, p. 30)
Para o Pasolini de Didi-Huberman, “O vaga-lume está morto, perdeu
seus gestos e sua luz na história política de nosso contemporâneo sombrio,
que condena à morte sua inocência” (2011, p. 24). Com pesar, Didi-Huberman
acompanhará Pasolini por um bom tempo, permanecendo próximo de
seus textos e inserindo-os no próprio ao longo de dezenas de páginas, onde
aparecerão uma e outra vez versões das figurações do horror que teriam
levado Pasolini a ressaltar aquilo na democracia que era a continuação do
fascismo:
Em 1974, Pasolini desenvolverá amplamente seu tema do “genocídio cultural”.
O “verdadeiro fascismo”, diz ele, é aquele que tem por alvo os valores, as almas,
as linguagens, os gestos, os corpos do povo. É aquele que “conduz, sem car-
rascos nem execuções em massa, à supressão de grandes porções da própria
sociedade”, e é por isso que é preciso chamar de genocídio “essa assimilação
(total) ao modo e à qualidade de vida da burguesia”. Em 1975, perto de escrever
seu texto sobre o desaparecimento dos vaga-lumes, o cineasta dedicar-se-á
ao tema – trágico e apocalíptico – de um desaparecimento do humano no
coração da sociedade atual: “Faço simplesmente questão de que tu olhes em
torno de ti e tomes consciência da tragédia. E que tragédia é esta? A tragédia
é que não existem mais seres humanos; só se veem singulares engenhocas que
se lançam umas contra as outras”. (Didi-Huberman, 2011, p. 29-30)3

3. Veja-se, como contraste com estas imagens sombrias, o que, décadas antes, nos anos
quarenta, Pasolini enxergara numa reunião de amigos:

23
Até que, no primeiro grande giro no livro, Didi-Huberman interrompe
o raciocínio e suas certezas para se deter no anúncio de que “agora acabou”.4
“Diabos!”, escreverá ele,
Tudo isso não se assemelha à descrição de um pesadelo? Ora, Pasolini insiste
em nos dizer: esta é a realidade, nossa realidade contemporânea, esta reali-
dade política tão evidente que ninguém quer vê-la pelo que ela é, mas que
“os sentidos” do poeta – esse vidente, esse profeta – acolhem tão fortemente.
(2011, p. 38)
Para continuar, algumas páginas adiante:
uma coisa é designar a máquina totalitária, outra coisa é lhe atribuir tão
rapidamente uma vitória definitiva e sem partilha. Assujeitou-se o mundo,
assim, totalmente como o sonharam – o projetam, o programam e querem
no-lo impor – nossos atuais “conselheiros pérfidos”? Postulá-lo é, justamente,
dar crédito ao que sua máquina quer nos fazer crer. É ver somente a noite
escura ou a ofuscante luz dos projetores. É agir como vencidos: é estarmos
convencidos de que a máquina cumpre seu trabalho sem resto nem resistência.
(Didi-Huberman, 2011, p. 42, grifo meu)
Como contraponto à figura da vitória definitiva e absoluta de uma
“máquina” capaz de colonizar inteiramente o mundo, Didi-Huberman lan-
çará mão então do vocabulário de restos, lampejos e faíscas, perguntando
finalmente se não teriam sido destruídos não os vaga-lumes propriamente,

“A amizade é uma coisa belíssima. Na noite da qual te falo, jantamos em Paderno e, em


seguida, na escuridão sem lua, subimos até Pievo del Pino, vimos uma quantidade imensa
de vaga-lumes (abbiamo visto una quantità immensa di lucciole), que formavam pequenos
bosques de fogo nos bosques de arbustos, e nós os invejávamos porque eles se amavam,
porque se procuravam em seus voos amorosos e suas luzes. (...) Pensei então no quanto é
bela a amizade, e as reuniões dos rapazes de vinte anos, que riem com suas másculas vozes
inocentes e não se preocupam com o mundo a sua volta, continuam vivendo, preenchendo
a noite com seus gritos” (Didi-Huberman, 2011, p. 19).
Esses rapazes “continuam vivendo”, é importante lembrar, em plena guerra.
4. Uma extensa genealogia, antes e depois de Pasolini, concordará que já é tarde demais.
Francisco de Oliveira, por exemplo, escrevendo sobre Lula: “O avesso do avesso da ‘he-
gemonia às avessas’ é a face, agora inteiramente visível, de alguém que vestiu a roupa às
pressas e não percebeu que saiu à rua do avesso. Mas agora é tarde...” (Oliveira, 2009,
grifo meu). O “agora” não é, evidentemente, o mesmo em cada caso, nem é a mesma a
oportunidade que teria passado, mas fica o registro, nessa aproximação rápida demais,
das semelhanças no tom, na estrutura e no vocabulário.

24
mas algo no desejo de ver – “no desejo em geral, logo, na esperança política
– de Pasolini” (2011, p. 59).
Para o francês, a questão não é exatamente Pasolini (embora a tristeza e
a empatia presentes em suas observações estejam relacionadas àquilo que o
cineasta parece representar para ele). No segundo movimento importante de
Sobrevivência dos vaga-lumes, o Pasolini tardio será aproximado de Giorgio
Agamben, em particular do Agamben de Infância e história, onde, na esteira
de Benjamin, o filósofo italiano volta à ideia da destruição da experiência
na sociedade contemporânea. A longa citação inserida abaixo é do livro
de Agamben, reproduzida aqui tal como é citada por Didi-Huberman (in-
clusive com uma supressão, à qual voltarei depois). A referência no início
do trecho é a Benjamin, nomeado no parágrafo anterior.
Porém, nós hoje sabemos que, para a destruição da experiência, uma catástrofe
não é de modo algum necessária, e que a pacífica existência cotidiana em uma
grande cidade é, para esse fim, perfeitamente suficiente. Pois o dia a dia do
homem contemporâneo não contém quase nada que seja ainda traduzível
em experiência: nem a leitura do jornal, tão rica em notícias do que lhe diz
respeito, a uma distância insuperável; nem os minutos que passa, preso ao
volante, em um engarrafamento; nem a viagem às regiões ínferas nos vagões
do metrô; nem a manifestação que de repente bloqueia a rua; nem a névoa
dos lacrimogêneos que se dissipa lenta entre os edifícios do centro e nem
mesmo os súbitos estampidos de pistola detonados não se sabe onde; nem
a fila diante dos guichês de uma repartição ou a visita ao país de Cocanha
do supermercado; nem os eternos momentos de muda promiscuidade com
desconhecidos no elevador ou no ônibus. O homem moderno volta para
casa, à noitinha, extenuado por uma mixórdia de eventos – divertidos ou
maçantes, banais ou insólitos, agradáveis ou atrozes –, entretanto nenhum
deles se tornou experiência.

É esta incapacidade de se traduzir em experiência que torna hoje insuportável


– como em momento algum no passado – a existência cotidiana. [...] Uma
visita a um museu ou a um lugar de peregrinação turística é, desse ponto de
vista, particularmente instrutiva. Posta diante das maiores maravilhas da
terra (digamos, o patio de los leones, no Alhambra) a esmagadora maioria da
humanidade recusa-se hoje a experimentá-las: prefere que seja a máquina
fotográfica a ter experiência delas. (Agamben, 2005, p. 21-22; citado em Didi-
Huberman, 2011, p. 75)

25
Chama a atenção no trecho, que está nas primeiras páginas de Infância
e história, a confiança com que o diagnóstico totalizante é enunciado, com
a acumulação vertiginosa de referências à “destruição da experiência”, à
“distância insuperável”, à “catástrofe”, à “incapacidade” de tradução, ao
caráter “insuportável” do cotidiano, à “mixórdia de eventos”, que podem
ser “agradáveis ou atrozes”, mas são sempre incapazes de se transformar
em “experiência”.
Para Didi-Huberman, que colocará em questão inclusive a precisão da
leitura que Agamben faz de Benjamin, seria uma necessidade da “matriz
filosófica” do italiano primeiro afirmar a destruição radical, para depois
poder erigir uma nova “transcendência” (2011, p. 77), em movimento pen-
dular entre os extremos da destruição e da redenção (que pode estar tanto
na origem quanto no destino). Continuamos no campo das profecias, então,
como é o caso também do seguinte comentário, extraído de uma entrevista
de Jacques Rancière, com o qual encerro esta série:
Existem muitas maneiras de entender o papel do filósofo – em geral ou na
situação atual. A maioria das pessoas parece associá-lo hoje a uma espécie de
profecia a respeito do desastre que ameaça a cultura, a civilização, a ordem
simbólica, e assim por diante. Todos os elementos da crítica social e da crítica
da cultura foram reciclados com o intuito de amparar essas profecias sobre o
desastre iminente produzido pelo individualismo, a democracia, o consumo,
o espetáculo, etc. (2008, p. 188)
Cada um dos elementos que, de acordo com a fala cética de Rancière,
são comumente apontados em discursos proféticos como responsáveis pela
catástrofe iminente – individualismo, democracia, consumo, espetáculo –
aparecem, um por um, nos prognósticos de Pasolini.

***

Voltemos a “El Ojo Silva”, que havíamos abandonado no momento


em que ocorria a nomeação do que parecia ser o princípio organizador da
existência, princípio introduzido por uma conjunção adversativa que dá
ao enunciado forma semelhante à do trecho retirado de Infância e história
acima (passando do “Porém, nós hoje sabemos que” de Agamben ao “pero
de la violencia, de la verdadera violencia, no se puede escapar”). Ainda
não se sabe se serão estabelecidos limites geográficos ou temporais para a
afirmação, se esta seria, por exemplo, uma definição válida apenas para a

26
vida “contemporânea”, mas o que já é possível vislumbrar é que a questão
narratológica decisiva será mesmo a relação entre a profecia e seus restos:
o que restará do conto (após o anúncio de um sentido geral já no primeiro
parágrafo) e o que restará da vida (após a intervenção da violência). Os
restos, aqui, são também excessos: nessas circunstâncias, o que haverá
num relato que justifique sua existência, apesar de tudo? Professado o
sentido daquilo que virá, e que é justamente o inescapável, por que insistir
em narrar? Ou então, dobrando o problema do comando de um princípio
organizador sobre a questão dos limites da liberdade da leitura: para que
ainda ler? Para que ainda ler quando, como algumas leituras de Bolaño
sentem-se tentadas a assegurar, num princípio geral como esse já estaria a
chave para toda a obra do autor?
No conto algo acontecerá com a contundência da afirmação generalizan-
te quase imediatamente após a sua enunciação: sim, o narrador prossegue,
parece mesmo certo que da violência “no se puede escapar” – para então
titubear: “al menos no nosotros, los nacidos en Latinoamérica en la década
de los cincuenta, los que rondábamos los veinte años cuando murió Salvador
Allende” (Bolaño, 2006a, p. 11). Haveria então dentro do grupo maior um
subconjunto, e para este, agora sim, seria incontestável o domínio da vio-
lência. A ressalva implanta já na apresentação uma dúvida a respeito da
existência de um possível limite – geopolítico? geracional? – para o alcance
da violência. O movimento é do maior ao menor, do geral ao específico,
e a afirmação inicial – ninguém, presume-se, escapa – é circunscrita, não
sem antes situar o narrador e o Ojo Silva dentro dos marcos desse grupo
menor que é delineado. A biografia de Mauricio Silva prometida no título
ganhará assim ares de autobiografia coletiva, uma impossível autobiografia
na primeira pessoa do plural, e aquilo que seria o relato de uma vida passa
a aludir à história de uma geração. Desse modo, se é até possível que a
violência não seja evitável para qualquer um, e se para o narrador parece
provável que assim seja, o que é certo é que dela não pôde se evadir a ge-
ração de latino-americanos que eram jovens durante os golpes militares,
que atravessaram boa parte do continente nos anos 1960 e 1970.
Será necessário voltar depois – ainda não saímos da primeira frase! – à
pergunta sobre o que há de particular na relação entre a violência, a experi-
ência de uma geração que chegou à vida adulta e foi formada pela irrupção

27
ditatorial, e o nome de Allende (e sua morte),5 mas que pelo menos fique
constatado desde o início que a fórmula tomada como ponto de partida do
conto e desta leitura continha mais instabilidade do que parecia à primeira
vista, suscitando o disparo de uma série de perguntas – vertiginosas, mas
plausíveis diante da hesitação do narrador. Em primeiro lugar, que tipo
de conhecimento seria necessário para que fosse possível estabelecer, sem
hesitação, que de fato não se poderá, jamais, fugir da violência? Desde qual
lugar seria legítima e teria sentido uma afirmação dessa ordem?
O acesso a respostas pareceria estar disponível apenas a quem estivesse
já além do fim da história, e não apenas além do fim da história de Mauricio
Silva – que é justamente o lugar de enunciação do narrador – mas também
além de todas as histórias para as quais este relato particular serve como um
caso “paradigmático y ejemplar”. Mas mesmo que nos fosse dado conhecer
que efetivamente a fuga da violência não é em qualquer circunstância re-
alizável, imagina-se que sobrariam ainda diferenças entre as tentativas de
escapar. Em outras palavras, existiriam ainda diferenças entre as formas do
fracasso. Se nos fosse revelado que é o inferno o que nos aguarda no fim do
percurso, restaria a questão da relevância de percorrer o trajeto com o filho
no colo – e escrevendo.6 Haveria aí uma fórmula, uma teoria da literatura?
Se houver, parece ser algo como o seguinte: embora seja comum em muitas
tradições literárias a crença na imunidade da literatura ao horror, nem nela
se escapa da violência.
Na sequência do conto, os movimentos seguintes serão mais uma vez
semelhantes àqueles vistos em Amuleto: primeiro definição e promessa (“esta
será una historia de terror”), depois recuo e narração (“Yo llegué a México
Distrito Federal en el año 1967 o tal vez en el año 1965 o 1962” [(Bolaño,
1999, p. 12]). Em “El Ojo Silva”, o recuo será como o de uma mola ou um
gato, encolhendo-se para aumentar o alcance do salto. Do anúncio de que
a história é uma parábola (paradigmática, exemplar), da enunciação do

5. Para uma leitura do conto que aborda sua relação com o golpe militar chileno, além de
tocar na questão da violência sacrificial que também aparecerá aqui, ver Ginzburg, 2013.
6. Escribiendo poesía en el país de los imbéciles.
Escribiendo con mi hijo en las rodillas.
Escribiendo hasta que cae la noche
con un estruendo de los mil demonios.
Los demonios que han de llevarme al infierno,
pero escribiendo.
(Bolaño, 2007c, p. 7-8)

28
princípio geral, da referência à morte de Allende, ao começo da história
do Ojo, que é na verdade a história da tentativa de fuga:
En enero de 1974, cuatro meses después del golpe de Estado, el Ojo Silva se
marchó de Chile. Primero estuvo en Buenos Aires, luego los malos vientos
que soplaban en la vecina república lo llevaron a México, en donde vivió un
par de años y en donde lo conocí. (Bolaño, 2006a, p. 11)
Trata-se portanto, e muito concretamente, de uma série de tentativas de
fuga, primeiro do Chile rumo à Argentina, depois dali ao México, aparente
refúgio em meio às ditaduras militares que foram tomando os governos de
outros países latino-americanos. No entanto, o México que Silva, o narrador
e outros exilados chilenos encontrarão não será propriamente um oásis
(embora também seja o lugar da experiência decisiva de uma comunidade
poética possível, o exílio mexicano será, em Amuleto, Los detectives salvajes
e 2666, o lugar de novos massacres). Então a história de Silva terá que dar
um salto para fora da América Latina, para atravessar a Europa e encontrar
seu desfecho (seu fracasso particular?) num vilarejo na zona rural da Índia.

***

Se este ensaio tem se deslocado entre duas línguas, não havendo entre
ele e o conto examinado uma língua comum, no relato, onde a linguagem à
primeira vista não parece estar cindida pela presença de dois idiomas, tam-
bém surgem entraves para a instituição de uma mesma língua, começando
pelo fato de que não está claro, como ocorre também em outros textos de
Bolaño, que não exista mais de uma língua dentro do espanhol.7 Além disto,
a incerteza sobre a existência de uma língua comum aparece diversas vezes
na conversa – delicada, frágil, hesitante – entre os dois amigos, e inclusive
na relação difícil entre eles e os objetos:
El Ojo parecía de cristal, y su cara y el vaso de vidrio de su café con leche
parecían intercambiar señales, como si se acabaran de encontrar, dos fenó-
menos incomprensibles en el vasto universo, y trataran con más voluntad que
esperanza de hallar un lenguaje común. (Bolaño, 2006a, p. 13)

7. Em “La parte de Fate”, em 2666, por exemplo, o idioma utilizado não será exatamente
o espanhol, embora pareçam pertencer ao espanhol as palavras que lemos. Sobre a língua
em Bolaño, ver Ruggieri (2013) e Levinson (2009).

29
O trecho aparece em meio à descrição de um encontro no Café La
Habana, quando o Ojo revela ao amigo que é homossexual e vai deixar o
México (Bolaño, 2006a, p. 37).8 O narrador, supondo haver uma relação de
causalidade entre as duas coisas, entende que Silva deixará o país por ser
homossexual, como se entre “México” e “homossexualidade” houvesse uma
discordância insuperável. É também nessa conversa, um pouco adiante,
que Silva afirma que “la violencia no era cosa suya”, para então completar,
dirigindo-se ao narrador: “Tuya sí, me dijo con una tristeza que entonces
no entendí, pero no mía. Detesto la violencia” (Bolaño, 2006a, p. 14).9
A proclamação da diferença em relação à violência, definida pelo Ojo
como externa e estranha, como algo que não lhe pertence, é assombrada
aqui por aquilo que já foi dito ao leitor, e que venho chamando de sentido
geral desta parábola, aquilo que foi anunciado nas primeiras linhas. A
confiar na narração, o Ojo Silva parece saber nesse momento menos do
que o narrador, esse escritor que, embora afirme compartilhar a aversão
à violência (“Yo le aseguré que sentía lo mismo”), já sabe – já nos disse –
onde terminará a esperança numa fuga possível. O sentido da asseveração
do início do conto começa aqui a ganhar contornos mais claros: “pero de
la violencia, de la verdadera violencia, no se puede escapar” é uma espécie
de resposta ao “la violencia no es cosa mía” do Ojo.
Silva logo deixará o México e na França trabalhará numa agência de
fotografia, até que “pasaron los años. Muchos años”, tantos que para o narra-
dor o rosto do amigo começa a perder nitidez (embora persista a lembrança
de sua forma de ser, que paradoxalmente é um modo de estar ausente).
Con el paso del tiempo empecé a olvidar hasta su rostro, aunque siempre
persistió en mi memoria una forma de acercarse, un estar, una forma de opi-
nar desde cierta distancia y desde cierta tristeza nada enfática que asociaba

8. Silva fugira do Chile ao México, onde reencontraria o conservadorismo de que tentara


escapar, entre os exilados chilenos, “gente de izquierdas que pensaba, al menos de cintura
para abajo, exactamente igual que la gente de derecha que en aquel tiempo se enseñoreaba
de Chile” (Bolaño, 2006a, p. 39). A passagem, mesmo breve, é suficiente para complicar
qualquer relato monológico ou homogêneo de resistência. Não há, aqui, uma comunidade
sem fraturas anterior à ruptura do exílio, como não haverá após o seu fim. Nas palavras
de Bolaño, num ensaio onde também aparecerá a referência à geração nascida nos anos
1950, “luchamos por partidos que de haber vencido nos habrían enviado de inmediato a
un campo de trabajos forzados” (2006b, p. 37).
9. Ao declarar seu ódio à violência, Silva afirma que ela não era odiada pelo escritor, seu
interlocutor, observação que se desdobra de inúmeras maneiras nos textos de Bolaño.

30
con el Ojo Silva, un Ojo Silva que ya no tenía rostro o que había adquirido
un rostro de sombras, pero que aún mantenía lo esencial, la memoria de su
movimiento, una entidad casi abstracta pero en donde no cabía la quietud.
(Bolaño, 2006a, p. 14)
Um novo encontro entre os dois, desta vez numa praça de Berlim, vai
espelhar o anterior no Café La Habana, com o retorno da dificuldade no
diálogo e no reconhecimento do outro diante de si. Quando se encontram,
o narrador inicialmente não reconhece o amigo, não reconhece seu olhar,
que por sua vez será desviado, ao chão e aos lados, esquivando o contato.
Mesmo assim, “Reencontrarlo, pensé, había sido un acontecimiento feliz”
(Bolaño, 2006a, p. 15).
A conversa que segue e que atravessará a noite consiste na história
da vida do Ojo entre a saída do México e aquela madrugada em Berlim,
história que Silva parece estar contando pela primeira vez, como se o relato
tivesse se tornado possível graças ao reencontro com o amigo. Essa será
“la verdadera historia del Ojo”, a referência à verdade ecoando a anterior:
a verdadeira história do Ojo é a história de seu encontro com a violência,
cuja verdade é ser inescapável.
Silva fora enviado à Índia para tirar fotos que acompanhariam textos
sobre o país em duas reportagens francesas, entre elas uma especialmente
exotizante sobre zonas de prostituição. O texto já estava pronto, sendo
portanto anterior às fotografias, que eram aguardadas como confirma-
ção da palavra escrita: “sus fotos iban a ilustrar un texto de un conocido
escritor francés que se había especializado en el submundo de la prosti-
tución” (Bolaño, 2006a, p. 17).10 Os cafetões indianos, informantes nativos
do fotógrafo que desejava documentar a prostituição local, procuraram
oferecer ao estrangeiro algo que correspondesse a seu desejo, passando por
mulheres, homens e, diante de sucessivas recusas, chegando finalmente a
meninos muito novos, vítimas de uma cerimônia religiosa em que haviam
sido castrados. Um deles, uma criança que parece ter menos de dez anos, é
levado a Silva: “parecía una niña aterrorizada”, lembra-se ele, “aterrorizada
y burlona al mismo tiempo” (Bolaño, 2006a, p. 20, grifo do autor).

10. O conto, por sua vez, dialoga com a longa tradição de relatos colonialistas da barbárie
oriental, narrativas de viagens a um interior cada vez mais abjeto, tradição por vezes
reproduzida por escritores latino-americanos, até como modo de inserção no cânone
literário europeu.

31
“¿Lo puedes entender?”, pergunta o Ojo ao amigo em Berlim, ele mesmo
respondendo à pergunta: “Nadie se puede hacer una idea. Ni la víctima, ni
los verdugos, ni los espectadores”. No entanto, lá, diante do olhar do menino,
o que faz o Ojo é tirar uma foto. “Saqué mi cámara”, conta, “y le hice una
foto. Sabía que estaba condenándome para toda la eternidad, pero lo hice”
(Bolaño, 2006a, p. 20).
Em resposta à fragilidade do rosto do menino aterrorizado, portanto,
uma foto. Lembremos o final do trecho de Infância e história reproduzido
acima:
É esta incapacidade de se traduzir em experiência que torna hoje insuportável
– como em momento algum no passado – a existência cotidiana. (...) Uma
visita a um museu ou a um lugar de peregrinação turística é, desse ponto de
vista, particularmente instrutiva. Posta diante das maiores maravilhas da
terra (digamos, o patio de los leones, no Alhambra) a esmagadora maioria da
humanidade recusa-se hoje a experimentá-las: prefere que seja a máquina
fotográfica a ter experiência delas. (Agamben, 2005, p. 21-22)
No trecho não citado por Didi-Huberman, onde em Sobrevivência dos
vaga-lumes aparecem reticências entre parênteses (como no trecho acima),
há uma página inteira sobre a “recusa aparentemente disparatada” da ex-
periência, culminando na constatação de que experiências, hoje, quando
existem, “se efetuam fora do homem”. São elas – essas experiências exter-
nalizadas, como aquelas diante das “maiores maravilhas da terra” – que o
ser humano sente a necessidade de afastar com a prótese da máquina. A
questão é o poder do dispositivo, que certamente não é apenas a máquina
nas mãos do fotógrafo, mas todo um modo de ver (e deixar de ver) o outro.
Encontraríamos muitas avaliações semelhantes ao longo da atribu-
lada história da recepção da fotografia, como esta, por exemplo, feita por
Lévinas: “Se você concebe o rosto como objeto do fotógrafo, decerto você
está lidando com um objeto como um outro objeto qualquer” (Poirié, 2007,
p. 85). Caberia aqui a pergunta de Didi-Huberman, formulada em meio
à leitura dos momentos mais angustiados de Agamben: quem negará que
eles têm razão?
Não o Ojo, o fotógrafo do conto, cuja desconfiança levará a uma pre-
visão (mais uma, a se somar às outras já feitas no conto): tirar a foto seria
suficiente para sua condenação, e “para toda la eternidad”. E mesmo assim,
diante do menino indefeso, o Ojo transforma seus dois olhos em um só,

32
os dois os que emolduram o j de seu nariz convergindo no dispositivo
singularizante (será a violência justamente essa passagem do dois ao um?).
Segura a câmera e aponta a lente, seu novo olho, e acontece o nascimento
do ciclope anunciado desde o título. Toda a construção da cena, nessa nova
História do olho, assinala a indecência da fotografia e do gesto que frente
ao olhar aterrorizado do outro reage com a captura de seu sofrimento.
E no entanto, apesar da foto, que é mesmo feita, na verdade apesar de
tudo,11 a história dará um giro desconcertante: o dispositivo da máquina
fotográfica não será capaz de anular a possibilidade do acontecimento, o
distanciamento da máquina não garantirá a recusa e a indiferença ao outro
e não será suficiente para assegurar a imunidade do Ojo a ele. Não parece
possível, continuando com a história, concluir que a câmera impede que
se “tenha experiência” do outro, para usar a expressão de Agamben, ou
(apenas) transforma o rosto em um objeto fotográfico comparável a qual-
quer outro, para falar com Lévinas. O que acontece é, parece, outra coisa:
após a foto, há a insistência do cafetão, que quer levar o fotógrafo a outro
bordel, com tentações de outros tipos, mas Silva permanece imóvel, incapaz
de escapar, já refém do olhar do menino: “No podía irse. Se lo dijo así: no
puedo irme todavía. Y era verdad, aunque él desconocía qué era aquello
que le impedía abandonar aquel antro para siempre” (Bolaño, 2006a, p.
20). Começa a ganhar outro sentido a profecia de condenação de Silva, seu
perder-se diante de outro. Jogado do cavalo, cegado pelo rosto do menino,
este é o começo de sua conversão – a palavra utilizada não é outra: “el Ojo
se convirtió en otra cosa” (Bolaño, 2006a, p. 22).12 Perder-se, aí, é reconhe-
cer-se já e para sempre preso àqueles olhos, olhos que suplicam, ordenam,
arrebatam um espectador que, levado por uma espécie de “amor místico”
(“mystical love”) (Critchley, 2012, p. 20),13 terá que abolir o ser antigo para
que algo novo possa surgir, transformando-o em outro. No caso, em algo
bastante específico: “la palabra que él empleó no fue ‘otra cosa’ sino ‘madre’”
(Bolaño, 2006a, p. 22).14

11. Sobre “aquilo que aparece apesar de tudo”, ver Didi-Huberman (2011, p. 65).
12. Na tradução ao português desaparece a conversão: “o Olho se transformou noutra
coisa” (Bolaño, 2008, p. 22).
13. Critchley entende a expressão como “aquele ato de ousadia espiritual que busca destripar
o antigo ser para que algo novo possa vir a ser” (2012, p. 20).
14. Um homem poder ser mãe é também o que se aprende aqui: a “família”, no conto, está
desvinculada da “biologia”, também ela contingente. Forma-se quase por acidente, como
resultado de um encontro improvável, e a qualquer momento pode ser desfeita. Sem a

33
Ao invés do rosto como objeto, então, comparável a qualquer outro
e por ele intercambiável, o que se narra é o encontro com um rosto que
não é da ordem do visto, não é um objeto, é aquilo cujo aparecer conserva
uma exterioridade que é também um chamado – ou um imperativo dado à
sua responsabilidade. Encontrar um rosto é, de pronto, ouvir um pedido e
uma ordem. (...) Pode-se dizer uma vez mais: o rosto, por trás da feição que
ele se dá, é como exposição de um ser à sua morte, o sem defesa, a nudez e a
miséria de outrem. Ele é também o mandamento de tomar a si, a seu cargo,
outrem, de não o deixar só; você ouve a palavra de Deus. (...) se você encontra o
rosto, essa responsabilidade está nessa estranheza de outrem e em sua miséria.
O rosto se oferece à tua misericórdia e à tua obrigação. (Poirié, 2007, p. 85)
Mais até do que uma decisão ou a escolha de uma alternativa entre
várias possíveis – o que fazer? – o que ocorre é a experiência da passividade
que vem de se descobrir refém do outro: “Eu fui eleito para ser o responsável
por outrem; nessa posição, para essa função, eu sou único, insubstituível”
(Poirié, 2007, p. 29).
A partir daí tudo no conto será excessivo, hiperbólico, em uma palavra,
ridículo15 (de fato, “Pinche Robert Bolãno: / besa en la boca lo patético y lo
ridículo”16). “A exigência ética de Jesus é uma exigência ridícula”, escreve
Simon Critchley sobre as demandas infinitas proferidas nos Evangelhos.
O mandamento de amar os inimigos e “ser perfeito”, por exemplo, não
tem como não colocar o “sujeito ético numa situação de pura sobrecarga
ética” (2012, p. 220). É assim também com o desenrolar dessa parábola de
Bolaño: os atos de Silva – inicialmente inabalável em sua passividade diante
da insistência do cafetão, mas logo cegado pela busca de uma escapatória
– transformarão a narrativa, onde até então predominava o tom resignado,
num relato do qual não faltarão elementos que não sem razão poderiam
ser tidos como melodramáticos e sentimentais, próprios de gêneros fre-
quentemente considerados suspeitos.
E o que haverá, no conto, será o seguinte: tensão e conflito; resgate de
dois meninos do bordel; fuga da cidade, primeiro de táxi, depois em ônibus e

garantia de continuidade, a filialidade também não tem como ser pretexto para o desejo
de reprodução de um pai ou uma mãe.
15. Como no conto “Muerte de Ulises”: “Lo que sigue es caótico y sentimental” (Bolaño,
2007b, p. 169). Resta a questão sobre o que acontece exatamente – intensificação? matiza-
ção? negação? – quando algo é anunciado como sentimental.
16. São versos do poema “Calles de Barcelona” (Bolaño, 2007c, p. 78).

34
trem; chegada a um refúgio (“hasta que finalmente se detuvieron en una aldea
en alguna parte de la India y alquilaron una casa y descansaron” [Bolaño,
2006a, p. 23]). O Ojo “adota” as crianças e a família recém-formada passa a
ter uma vida campestre numa província indiana, com Silva se dedicando a
educar os meninos em meio à pobreza de uma região em que até os mais ricos
são pobres. Tudo isso será efetivamente narrado, mas com uma mudança
de velocidade em relação à prosa que predominara até então, ao longo de
parágrafos em que prevalecerão a incerteza e a imprecisão, quase como se
a narrativa tivesse perdido interesse pelos detalhes do narrado, tivesse se
desinteressado de sua mecânica, como se nada sobrasse de relevante após
o registro do acontecimento decisivo: “Lo que sucedió a continuación de
tan repetido es vulgar”, ou “El resto, más que una historia o un argumento,
es un itinerario” (Bolaño, 2006a, p. 22). Inclusive o heroísmo que poderia
haver no ato extraordinário de Silva será diluído, com a passagem à vida
doméstica e à longa duração de sua “maternidade”.
Difícil escapar, aqui, da constatação de que o que ocorre é rigorosa-
mente o contrário daquilo que fora anunciado (por Silva, por Agamben,
por Lévinas...): mesmo após fotografar o outro, é o Ojo quem será tomado
por ele e arremessado à conversão. De fotógrafo errante, morador transi-
tório de apartamentos alugados e quartos de hotéis ao redor do mundo, se
transforma em pequeno agricultor e educador, residente numa aldeia rural
indiana. Sem que isto tenha sido em momento algum um plano, um pro-
grama ou um projeto, torna-se mãe solteira de dois meninos abandonados.
Em contos e romances de Bolaño são muitas as cenas estruturadas de
maneira semelhante a esse apogeu de “El Ojo Silva”. Nessas narrativas, como
em “El Ojo Silva” – e é esse o elemento decisivo – seria difícil sustentar que
já não há o que fazer e que o mundo é indiferente aos atos do sujeito ético.
Parece até incerto que se poderia afirmar, baseando-se nessas cenas, que
“de la violencia, de la verdadera violencia, no se puede escapar”. Na história
do Ojo Silva, por exemplo, apesar de todos os riscos que a atravessam,17 o
resultado é a fuga, tortuosa mas bem-sucedida, de um recinto deplorável.
Em poucas palavras, no conto o Ojo consegue fugir – do bordel, da cidade
em que se encontrava, de seus perseguidores.

17. E tudo nela é arriscado, evidentemente, persistindo como uma das consequências
possíveis de sua decisão o risco maior da reprodução do colonialismo. Mas esta é, afinal,
a possibilidade que assombra toda pedagogia, toda paternidade. “No me siento seguro /
En ninguna parte. / La aventura no termina” (Bolaño, 2007c, p. 160).

35
Para pensar o conto talvez ajude lê-lo não em termos de sua veros-
similhança, em busca de uma avaliação de sua referencialidade ou seu
“realismo”. Em outras palavras, o que parece se revelar enfim é: a promessa
que era para ser levada a sério era exatamente a de que o texto seria uma
parábola! A história precisa mesmo ser lida como “exemplar”, a palavra aqui
significando excepcional, extraordinária, única. Assim, não conheceremos
os nomes das cidades indianas pelas quais o Ojo passou, não saberemos
sequer os nomes dos meninos resgatados, dificultando a circunscrição do
enredo e aproximando-o também nesse sentido da parábola, embora seja
uma estranha parábola que tem como movimento principal a subversão
do princípio que parecia enunciar desde o início, desembocando em algo
como o seguinte: de la violencia, de la verdadera violencia, esta vez se pudo
escapar.18

***

Na continuação da entrevista de Rancière citada na primeira parte


deste ensaio, após a caracterização de algumas tendências na filosofia con-
temporânea como profecias de desastres iminentes, o autor propõe, como
alternativa, um exercício imaginativo de outra ordem:
De meu ponto de vista, a verdadeira tarefa filosófica ou crítica consiste em
eliminar essa chamada tendência crítica, que se tornou nada mais do que o
discurso de uma ordem policial. É eliminar o tom profético e o enredo de
decadência, que é simplesmente a inversão da antiga confiança no sentido da
história, para nos concentrarmos nas formas existentes de invenção intelec-
tual, artística e política. A esperança não é condição prévia para a ação. Ao
contrário, é o resultado das aberturas e anseios gerados pela dinâmica dessas
invenções. (2008, p. 188)
Seria possível, e poderia quem sabe até ser um gesto em direção a
uma tarefa criativa como a que Rancière descreve, ao mesmo tempo em
que serviria como análise da complexidade formal de alguns desses tex-

18. É verdade que, após o idílio no vilarejo provinciano, com ensino para os meninos
e brincadeiras diárias no campo, os dois morrerão. Mas essas mortes não parecem ser
resultados do fracasso da fuga, não ocorrendo com a chegada de policiais ou cafetões,
perseguidores que na trama acabarão tendo contornos mais espectrais do que reais, sem-
pre prestes a alcançar o Ojo apenas em seus pesadelos paranoicos. Os meninos morrem
graças a uma “doença” não nomeada que atinge a aldeia: “Después llegó la enfermedad a
la aldea y los niños murieron” (Bolaño, 2006a, p. 24).

36
tos proféticos, empreender leituras de trechos de textos de Agamben que
também identificam heterogeneidade no presente, apesar de todas as refe-
rências a uma destruição já realizada. No trecho do começo de Infância e
história citado acima, por exemplo, o “nós” do início (“nós hoje sabemos
que, para a destruição da experiência, uma catástrofe não é de modo algum
necessária”) serve para distanciar o autor dos anos 1930, quando Benjamin
“havia diagnosticado com precisão esta ‘pobreza da experiência’” (o livro
de Agamben é de 1978), e funciona portanto como delimitação histórica.
Unida a seu complemento – “e que a pacífica existência cotidiana em uma
grande cidade é, para esse fim, perfeitamente suficiente”, tendo portanto
efeito equivalente ao da catástrofe (a guerra para Benjamin) – a construção
sugere uma circunscrição ainda maior, permitindo que seja formulada a
pergunta sobre variedades de experiência dentro do mundo contemporâneo.
Em outras palavras, se Agamben tem o seu “de la violência no se puede
escapar”, também tem o “al menos no nosotros”. A mera qualificação dessa
experiência como própria de cidades de determinado tamanho indica a
possiblidade, mesmo que frágil, de uma situação diferente fora das me-
trópoles. Ou ainda, quando lemos, na continuação do texto de Agamben,
que a vida cotidiana “não contém quase nada que seja ainda traduzível em
experiência”, tanto o “quase” quanto o “ainda” (que indicam, ao menos no
nível da memória, acesso a uma experiência anterior) inserem certo jogo
em formulações que apontavam para totalizações.
Mais do que uma questão de evidência empírica, que comprovaria ou
não essas possibilidades, chamo atenção aqui para a persistência dentro
do texto de fendas de diversos tipos, abrindo-se e fechando-se com o en-
cadeamento das frases. Assim, enquanto uma anuncia que “Todo discurso
sobre a experiência deve partir atualmente da constatação de que ela não
é mais algo que ainda nos seja dado fazer” (Agamben, 2005, p. 21), não
muito distante encontraremos referências a uma “humanidade que vem”
(Agamben, 2005, p. 17) e ao fato de que a incapacidade de transformar em
experiência a vida cotidiana não impede que, “talvez”, “se esconda, no fundo
desta recusa aparentemente disparatada, um grão de sabedoria no qual
podemos adivinhar, em hibernação, o germe de uma experiência futura”
(Agamben, 2005, p. 23).
De Pasolini – de seus filmes, poemas e ensaios – também seria possível
extrair imagens menos homogêneas do presente e do futuro , algo que a
leitura de Didi-Huberman também se esforçará por mostrar, citando o epi-

37
sódio de 1975 em que o cineasta observara que, apesar da angústia e da visão
apocalíptica, se “não houvesse também em mim uma parte de otimismo,
ou seja, o pensamento de que é possível lutar contra tudo aquilo, eu sim-
plesmente não estaria aqui, no meio de vocês, para falar” (Didi-Huberman,
2011, p. 53). Há aí o reconhecimento da presença de outros, interlocutores e
destinatários, diante dos quais se encontra aquele que fala, e nesse mesmo
momento se identifica no ato de falar algo próximo da esperança, isto é, da
expectativa de alguma espécie de encontro com os ouvintes.
Além de profecias, então, o que é possível entrever na fala de Pasolini,
como no conto de Bolaño, são promessas, sendo a primeira delas aquela que
está presente já em toda fala. Na estrutura de “El Ojo Silva” essa promessa
é pelo menos dupla, pois coexistem desde o início dois relatos – primeiro
o de Silva ao narrador em Berlim, depois o do narrador a um destinatário
indefinido. Este, que é quem começa com “Lo que son las cosas”, tem como
objetivo principal o registro de uma fala anterior (a do Ojo), como se o
que fosse necessário dar testemunho era como havia sobrevivido no Ojo
o compromisso com um amigo, e portanto com um futuro. Pois mais do
que diálogo, o que há na fala de Silva é exposição, o que vai exigir do outro
uma decisão, uma versão atualizada da decisão que o fotógrafo precisou
tomar diante dos olhos suplicantes do menino indiano. Através do relato,
essa cena é transmitida ao escritor como um legado: agora é ele quem se
encontra na praça de Berlim, diante de um par de olhos em sofrimento.
Os olhos de Silva, que até então vagavam inquietos pelas sombras da noite
alemã, se insurgem e transbordam, tomados por lágrimas. O que fazer
quando o olho diante do qual se está, mais do que ver, mais do que me ver,
chora, expandindo-se para fora de si?
Nessas lágrimas há um apelo e uma demanda, um mandamento e uma
súplica, de modo que o sequestro de que foi vítima o Ojo se repete, com o
testemunho do sofrimento agora despejado sobre o escritor, que passa a ser
ele também testemunha. Mesmo no suspiro ou no grito do padecer, dirá
Lévinas, apesar do aparente encerramento em si, há já busca de alteridade,
talvez já “a primeira prece” (Poirié, 2007, p. 96). Para Didi-Huberman, uma
prece sempre pede outra prece: sobre Stephen Dedalus, ele escreverá que
vê “com seus olhos os olhos de sua própria mãe moribunda erguerem-se
para ele, implorarem alguma coisa, uma genuflexão ou uma prece, algo,
em todo caso, ao qual ele terá se recusado, como que petrificado no lugar”
(Didi-Huberman, 1998, p. 31). Se diante do olhar aterrorizado do outro –

38
o que Silva fez foi, primeiro, tomar uma foto dos olhos do menino, para
depois ser tomado por eles – o conto se dobra sobre si mesmo e o narrador
subitamente se encontra no lugar do Ojo, precisando responder ao sofri-
mento do outro, como se agora se colocasse também para ele o desafio da
conversão em mãe.
O escritor evita os olhos de Silva, a quem escuta soluçar a seu lado no
banco da praça alemã. Vê, através de uma janela, uma luz se acender, vê os
faróis de um carro que passa, enquanto os olhos do Ojo se nublam por trás
das lágrimas. Se sua primeira tarefa era escutar o Ojo até o fim, a seguinte
é renovar a promessa contida em sua fala, em sua prece, na estrutura de
uma nova narração, que o conto representará. É pouco? Certamente, e aí
as possibilidades de “associação”, de “comunidade”, de “política” são fragi-
líssimas. Mas não é nada: como se lê em outro conto de Bolaño, “parecían
fiarlo todo al sexo, a la seducción, a gustar y ser gustados, lo que no era
mucho, (...) pero al menos era algo” (2007b, p. 174).
Nesse espírito, seria mais preciso afirmar, a respeito daquilo que passou
a ser conhecido como a “obra” de Bolaño, que ao longo dela há conflitos
recorrentes entre um princípio sombrio, frequentemente reconhecido e
anunciado explicitamente no texto, muitas vezes já no início do relato, e
aquilo que sobra dele – o que sobra nas 15 páginas de “El Ojo Silva”, por
exemplo, nas 150 páginas de Amuleto ou nas 1100 páginas de 2666. Em cada
caso a sobrevivência e a instabilidade se darão de modo particular, mas o
que não poderá haver é uma força capaz de garantir que a narrativa será
um horror sem sobras, mesmo quando é isso que é anunciado como lema.19
A possibilidade do transbordamento durante a própria narração é afinal o
risco (e a potência) de toda parábola, e é a exposição desse funcionamento
o sentido mais importante da obra.
Assim, se em textos como “El Ojo Silva” o triunfo da violência não está
dado, a questão passa a ser a disposição comum entre leitores de Bolaño
para aceitar o prognóstico inicial e confirmar a profecia, insistindo neles
mesmo quando eles se desfazem dentro do próprio texto. Isto acaba sendo
outro futuro monstruoso da narrativa: por que, afinal, se aceita com tama-
nha prontidão o diagnóstico que mais parece uma metafísica da agressão?20

19. Lema, princípio ou segredo: “Nadie presta atención a estos asesinatos, pero en ellos se
esconde el secreto del mundo” (Bolaño, 2004, p. 439).
20. A expressão “metafísica da agressão” aparece em texto de Jonathan Lear a respeito
de Freud, em quem Lear enxerga o julgamento de que a agressão é parte da ordem fun-

39
E assim nos encontramos de volta à pergunta inicial: quem, em que lugar,
desde qual perspectiva, teria a confiança necessária para dizer, estenden-
do a sentença indefinidamente ao futuro, que da violência não se poderá
jamais escapar?
Muito diferente disso, o inesperado gesto amoroso do conto é aquele
que, como um vaga-lume na escuridão das piores expectativas, desenterra
das profundezas da profecia violenta dois encontros: um, carregado de
retidão, com o olhar de um menino apavorado, e outro, delicado e terno,
com um amigo numa praça alemã. A decisão sobre como narrar cada uma
dessas histórias está associada à pergunta sobre como viver, que por sua
vez se aproxima de outra: como amar? Em Critchley, por exemplo, onde
as duas perguntas são formuladas em inglês, a diferença é mínima, apenas
uma letra separando “how to live?” de “how to love?”, viver e amar sendo
então praticamente a mesma coisa (2012, p. 20).

***

Há ainda uma última possibilidade a considerar, uma que atenua o tom


afirmativo que predominou nas páginas anteriores. A hipótese de leitura
construída ao longo deste ensaio propôs que em “El Ojo Silva” não haveria
propriamente uma metafísica da agressão, embora algumas leituras do conto
se aproximem dessa conclusão e inclusive busquem definir toda a obra de
Bolaño em termos semelhantes. Como parte desse esforço, foram realçados
os movimentos na narrativa que escapavam do domínio da violência e não
tinham a agressão como origem ou fim. Viu-se como, diante de uma con-
juntura difícil, num prostíbulo indiano, o Ojo Silva decide agir (é tomado
pela necessidade de agir), o que o conduz a um ato ético hiperbólico. Após
a descrição dessa guinada, e após a mudança no tom da narração, o relato
que segue – isto é decisivo – não traz a revelação de motivos sórdidos
escondidos por trás da decisão do fotógrafo. Também não veremos, no
desenrolar da narrativa, a deformação progressiva do ato primeiro, com a
retidão aos poucos se transformando em vileza. Contrariando aquilo que se
anunciava desde o início, contrariando até um horizonte de expectativas que

damental do nosso universo, estando portanto fora do alcance da análise (2000, p. 153).
Lear recomendará que essa metafísica seja abandonada: “Podemos aceitar o óbvio – a
saber, que a agressão é um problema fundamental para os seres humanos, individual e
socialmente – sem cometermos a falácia de concluir que portanto deve existir uma força
fundamental que a exprime” (p. 154).

40
em certos ambientes talvez já tenha se tornado habitual (a “ordem policial”
de que fala Rancière?), a força da violência como princípio organizador da
existência será abalada, através de um movimento no interior da narrativa
que responde a outras forças.
Continuo convencido de que essa leitura se sustenta, mas lhe acres-
centaria agora um elemento complicador. A violência da qual não se pode
escapar, a violência da qual não se pôde escapar, pode ter sido na verdade
outra: aquela que foi exigida de Silva após o encontro com o menino, a
violência que foi necessária para levar a cabo o resgate e a fuga. Nesse caso,
o inescapável não teria sido sofrer mas praticar a violência. Efetivamente,
diante do impasse no bordel, são tentadas primeiro formas mais amenas
de pressão – o diálogo, o suborno, a ameaça – mas, quando todas essas
alternativas fracassam, a violência, contra aquilo que Silva afirmara ser
de seu feitio, se torna um dever: “Lo único cierto es que hubo violencia”
(Bolaño, 2006a, p. 22).
Exatamente qual foi a violência que houve no episódio não ficamos
sabendo. Golpes, ferimentos, assassinato? A questão é crucial, mas fica sem
resposta. Sabe-se, isso sim, do ódio de Silva à violência, o que é suficiente ao
menos para instaurar a economia sacrificial (para alguém que não odiasse
a violência, não haveria propriamente decisão a ser tomada; não haveria
aporia, paradoxo, dilema ou impasse). Mas ao ocultar do leitor a forma e
a extensão da violência praticada por Silva fica impossível fechar a conta
(valeu a pena, afinal?), deixando a estrutura sacrificial em suspenso mesmo
após o fim do conto. Interdita-se, assim, o conforto de uma avaliação que
poderia justificar definitivamente, de uma vez por todas, o preço que teve
que ser pago, a violência menor que foi preferida, diante da ameaça de uma
violência maior. Talvez não seja mesmo uma metafísica da agressão, então,
mas uma violência triste e trêmula que não foi possível evitar,21 com o que
regressamos enfim à ressalva presente na fórmula do início do conto – “de
la violencia, de la verdadera violencia, no se puede escapar, al menos no
nosotros, los nacidos en Latinoamérica en la década de los cincuenta, los que
rondábamos los veinte años cuando murió Salvador Allende”. Agora com

21. Embora até aí não seja possível estabelecer se suficientemente triste, isto é, até que ponto
a violência não terá sido na verdade uma tentação: ao narrar a história, Silva “Recuerda
con viveza la sensación de exaltación que creció en su espíritu, cada vez mayor, una alegría
que se parecía peligrosamente a algo similar a la lucidez, pero que no era (no podía ser)
lucidez” (Bolaño, 2006a, p. 22).

41
outros olhos, é possível olhar mais uma vez para aquilo que representou em
algum momento o nome de Allende: a possibilidade de uma aproximação
entre as palavras democracia e socialismo.

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42
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43
TODOS OS NOMES, O NOME
arquivo e violência na cultura
latino-americana contemporânea

Gustavo Silveira Ribeiro

O que se vai chamar contemporâneo aqui também se poderia chamar


pós-ditadura, na medida em que a caracterização fundamental do tempo
a que recorro para pensar a história e a cultura latino-americanas tem a
ver com essa categoria, proposta por Alberto Moreiras (cf. Moreiras, 1993)
e, principalmente, Idelber Avelar (cf. Avelar, 2003). Refletir a partir dela,
isto é, caracterizar o presente a partir do corte pós-ditatorial, significa re-
conhecer que a temporalidade complexa que define o presente entre nós
está carregada ainda das tensões e traumas do período autoritário vivido
pelos países latinos, e todos os campos que definem a vida desses países
(economia, política, direitos, vida institucional, projetos de segurança,
afetos públicos) estão marcados, inescapavelmente, pelo evento disruptivo
das ditaduras e dos regimes de exceção das décadas de 1960 e 1970. Mesmo
que a hegemonia estética da alegoria não seja mais observável na literatura
latino-americana, conforme lucidamente assinala Tiago Guilherme Pinheiro
(cf. Pinheiro, 2014, p. 104), o que mais diretamente interessa reconhecer, na
esteira de Avelar, é que neste contexto específico (ainda) se parte de “um
tempo para o qual a derrota histórica está assinalada como determinação da
cultura”, conforme afirmou o autor (Avelar, 2003, p. 27), e que a literatura e
a arte participam de um impossível trabalho do luto, virtualmente infinito,
mas que por isso mesmo deve ser realizado sem cessar. Uma vez que esse
trabalho não se esgotaria na compreensão e na reapropriação do objeto
perdido, como propõe Freud e o lê Avelar, mas se estenderia ao infinito

45
diante do(s) sujeito(s) – para falar aqui com o Jacques Derrida (1994) de
Espectros de Marx – (seja esse sujeito um indivíduo, uma comunidade ou
uma nação). Dado o caráter irredutível da morte e da perda do outro, nun-
ca assimilável na sua totalidade, é imperativo reconhecer a sua alteridade
radical e aceitar o desafio ético permanente que lança, já que o trabalho do
luto permanece numa condição de instabilidade perpétua, entre o dever
de memória e a necessidade da elaboração (que comporta, como se sabe,
não só transformação, mas igualmente o esquecimento, a abertura para o
novo e o impensado). É preciso reconhecer também, por outro lado, que
o período histórico inaugurado com as ditaduras, e aprofundado depois
delas, tem na América Latina o sentido de uma abertura total ao universo
violento e cego do Império Neoliberal do Mercado, erguido, literalmente,
sobre as ruínas da destruição levada a cabo pelos regimes autoritários, além
de conservar e ampliar o sistema de modernização conservadora e exclusão
social que esses regimes instituíram ou ampliaram pela força.
Dito isso, será necessário buscar compreender algumas das estratégias
narrativas e de composição que, muito frequentemente, têm sido utilizadas
por escritores e artistas para dar conta desse contexto específico, observando
que tais estratégias, para efetivar-se, têm que recusar as facilidades muitas
vezes reconfortantes de um realismo codificado, voltado para a denúncia e
para o julgamento. Dado o seu caráter mimético tradicional, comprometido
com uma noção convencional de representação e compreensão do real, tal
opção estética pouco problematiza as contradições e complexidades da cena
contemporânea, em especial os descaminhos da história na América Latina,
cujas particularidades ideológicas e político-culturais resistem à redução
naturalista e ao maniqueísmo que a costuma acompanhar. O investimen-
to na experimentação formal, por outro lado, a permanente inquietação
estética que marca uma série decisiva de artistas do presente responde, de
maneira mais sólida e incisiva, às exigências de um horizonte histórico
problemático, no qual o compromisso ético do artista só se pode realizar
plenamente a partir do alargamento e da renovação continuada dos meios
e da linguagem artística. Como em outros momentos já foi possível à crí-
tica verificar, questionar a história é sempre interrogar as formas da sua
apreensão e representação; é tornar densa e opaca, estranhando-a a trama
de signos que nos rodeia, apresentada sempre como se fosse transparente,
espontânea, natural.

46
Nesse sentido, uma tendência estética do presente me parece significativa
no contexto da arte e da literatura do subcontinente: o recurso à seriação,
isto é, o uso sistemático de listas e enumerações, catálogos e inventários
como estratégia narrativa e modo composicional privilegiado. Tal tendência,
se não pode ser identificada exclusivamente ao universo latino-americano,
posto que parece ser uma das linhas de força da literatura e da arte contem-
porânea em boa parte do mundo – conforme demonstraram, em estudos
de naturezas muito diversas mas nesse aspecto coincidentes, Hal Foster
(cf. Foster, 2004) e Maria Esther Maciel (cf. Maciel, 2010) – revela-se uma
constante na produção cultural das últimas décadas, assumindo muitas
formas e diferentes significados, a depender da obra em que se faz visível.
Um sentido, no entanto, deve ser destacado desse cenário multifacetado,
dada a sua atualidade e urgência, dado o ajustamento que ele semelha
manter com a vida social e a cultura da América Latina. Refiro-me ao efeito
de acumulação e circularidade, de repetição cega, para dizer em uma só
palavra, que o recurso à seriação vai produzir quando associado a uns dos
temas fundamentais da cultura em questão: a violência e seus efeitos, o
trauma e suas consequências imprevisíveis.
Quase onipresente na vida das nações latino-americanas, a violência
é um dado incontornável tanto de sua história quanto da dinâmica de
sua vida cultural, no passado mais remoto da colonização e no presente
imediato da era pós-industrial. Ferida aberta, problema premente ainda
por resolver, a violência secular que assola e constitui a América Latina,
ora emanando do Estado e de seus agentes (como nos recentes e repetidos
períodos autoritários), ora derivando dos mecanismos de empobrecimento
e exclusão social, vem sendo pensada e representada no campo da litera-
tura de diversas formas, das quais o testemunho experiencial e a refração
alegórica – estudados com brilhantismo por, entre outros, Beatriz Sarlo (cf.
Sarlo, 2007), Alberto Moreiras (cf. Moreiras, 2001) e Idelber Avelar – são
algumas das mais instigantes, mesmo que, no cenário contemporâneo, pa-
reçam dar sinais inequívocos de limitação e esgotamento. A aproximação
proposta entre a tendência estética da seriação e as estratégias narrativas
desenvolvidas na contemporaneidade insere-se nesse contexto de esforço
contínuo em torno das formas de representação da violência, e é a partir
dele que gostaria de propor uma leitura comparativa de quatro obras de
artistas muito diferentes entre si, mas que vêm se reunir aqui justamente
pelo trabalho que desenvolvem ao redor de formas de seriação e catalogação.

47
São elas, em ordem cronológica: a instalação Violencia, do artista plástico
argentino Juan Carlos Romero, montada inicialmente em Buenos Aires
entre 1973 e 1977, e depois retomada, em caráter permanente, em 2011, no
museu Reina Sofia, Madrid; a instalação 111, do multiartista brasileiro Nuno
Ramos, exposta pela primeira vez em 1992; o romance 2666, do escritor
chileno Roberto Bolaño, lançado postumamente em 2004; e o recente poema
Totem, do poeta e designer brasileiro André Vallias, publicado em 2014.
Todos esses trabalhos são atravessados por uma contradição funda-
mental, constitutiva da proposta criativa que apresentam: todos eles pa-
recem querer quantificar, catalogar, ordenar aquilo que, por definição,
não é mensurável ou mesmo plenamente inteligível: a morte, o trauma, o
luto. O efeito terrível que produzem e a novidade estética que apresentam
está assentada justamente nesse paradoxo: os modelos da série e da lista,
matriz formal do dispositivo que constroem, assume o pressuposto de que
a realidade pode ser compreendida, no sentido, por assim dizer, mais ime-
diato do termo, isto é, interiorizada, arrancada do universo das coisas e das
aparências e submetida ao crivo da razão, que lhe daria necessariamente
sentido e direção ao dividi-la, hierarquizá-la, controlá-la. Pois a matéria
que informa essas obras mostra estar no extremo oposto desse imaginário
quadro de referências filosófico, resistindo à simbolização e à linguagem,
subvertendo explicações e esforços de contextualização, escapando, en-
fim, a toda cronologia e a toda ordem, na medida em que, por remeter
a eventos traumáticos que não se esgotam em si mesmos, continuam a
retornar indefinidamente, de modo fantasmático, à consciência e ao curso
dos acontecimentos cotidianos.

II

Em Violencia, do artista portenho, o que poderia parecer um imenso tra-


balho de historicização e ordenamento contextual de imagens do horror
termina por repropor, continuamente, aquelas cenas de carnificina à per-
cepção presente do espectador, que diante de tais peças tem a impressão
de que elas não se esgotam na sua moldura histórica e ideológica, mas
transbordam-na, invadindo o presente e confundindo-se com as inúmeras
outras imagens de dor e destruição que se dão a ver todos os dias na TV e
nos jornais de qualquer grande cidade. A obra, constituída por uma série

48
contínua de fotografias e painéis ilustrados, está organizada em torno da
palavra VIOLENCIA, grafada obsessivamente, e em enormes caracteres; ela
apresenta um inventário de cenas e textos retirados da imprensa sensacio-
nalista dos primeiros anos da década de 1970 – quase sempre do jornal Asi,
que mostram, cada uma delas, e de modo cru e direto, pessoas baleadas,
corpos torturados, cadáveres expostos. Não há preocupação em realizar
uma montagem que procure arrancar das imagens qualquer tipo de beleza
ou efeito visual mais complexo. A disposição linear e progressiva, repetida
como cartazes coloridos de rua, vai pouco a pouco revelando o aspecto
mais intolerável daquelas imagens, justamente a sua banalização terrível e
normalizada. Estampadas diariamente na imprensa, incorporadas à rotina
dos olhos e do espírito como fato da vida, tão comuns quanto o futebol
e as notícias do mercado de ações, as imagens parecem tornar-se opacas,
difíceis de ver e experienciar em toda a sua extensão. As fotos em preto e
branco, meras ilustrações de um relato desinteressado da dimensão social
daquelas mortes, vão tornando invisíveis, pela repetição dessacralizada,
aquilo que elas mesmas querem documentar e alardear com espalhafato.
Diante desse material e desse contexto, a escolha formal feita por Romero,
apoiada na ironia e na subversão dos sentidos, revela-se precisa. O modo
e o método de exposição, a construção de seu código próprio, por assim
dizer, são decisivos: o estranhamento provocado pela linguagem visual
construída, que se aproxima das técnicas da publicidade mais agressiva e
imperativa (a semelhança dos painéis do artista com os conhecidíssimos
lambe-lambes que inundam os muros e tapumes de qualquer metrópole não
é gratuita), mostra a relação que a violência espetacularizada tem, em nível
mais profundo, com o universo das mercadorias e do consumo.
Feitas matéria comercial, rebaixadas à condição de entretenimento
bárbaro e instrumento de controle social dos afetos – uma vez que a ex-
posição da violência pela mídia tende a ser, na Argentina daquela época e
na cena contemporânea do Brasil ou dos EUA, por exemplo, capitalizada
pelos poderes constituídos em nome de projetos de governo ou demandas
políticas bastante específicas – as fotografias da morte e da dor anônimas
são peças de um mecanismo muito mais amplo, de natureza francamente
ambígua. Por um lado, o medo, a revolta, a indignação ou a compaixão que
inspiram tais imagens, mesmo que desgastadas e repisadas mil vezes, são
usados como forma de coerção e organização da sociedade como um todo,
já que servem – como serviram na fase mais dura da ditadura de Videla

49
e outros generais – de aviso aos demais cidadãos das consequências da
transgressão à lei ou estimulam a aceitação (às vezes mesmo o desejo) de
medidas conservadoras que restringem a liberdade geral em nome de uma
suposta proteção à segurança da comunidade. Por outro lado, entretanto,
vão também aumentando, pela via da naturalização, a disseminação de uma
indiferença tolerante em relação ao extermínio ou à brutalidade policial. É
justo nesse terreno que a obra de Romero vai operar, provocando um curto-
circuito na maneira como se expõem, consomem e pensam as imagens da
violência. Interpelando muito acintosamente o espectador, ferindo-o com
letras garrafais e cores berrantes, o artista reativa a percepção, põe de novo
as cenas do horror diante dos olhos, destacando-as, fazendo com que se
perceba o quão repugnante é a sua representação banalizada e midiática,
tão descartável como um simples cartaz de rua. Ao trazer para o espaço
do museu algo da desorganização da vida urbana, do caráter frenético das
trocas comerciais que a anima, o artista mostra como o sangue derramado
pelas perseguições políticas e pela repressão generalizada aos indesejáveis
(pobres, criminosos comuns, imigrantes) é mais um produto, na dupla
acepção do termo, de uma sociedade que violentou (e continua a violentar)
a si mesma para ordenar-se, e funcionar, como uma engrenagem perfeita,
uma máquina impessoal e eficiente.
Se Juan Carlos Romero procurou dar maior visibilidade às cenas ter-
ríveis da violência política argentina, clandestina e velada apesar de ter
como centro as questões de Estado, Nuno Ramos, em 111, procurou exe-
cutar movimento contrário. No intuito de devolver alguma dignidade aos
prisioneiros da Casa de Detenção de São Paulo, assassinados pela PM
paulista em outubro de 1992, naquele que ficou conhecido como Massacre
do Carandiru – vítimas de tripla e diferenciada violência: das balas, da
indiferença geral e da exposição sensacionalista, pornográfica, dos seus
cadáveres – o artista irá propor uma instalação fundamentalmente opaca,
obscura, na qual não há nem uma imagem sequer que remeta aos corpos e
ao sangue dos mortos. O aspecto geral da obra é sombrio, fúnebre, e as suas
peças mais significativas são como “pequenos túmulos”, conforme observou
o crítico Alberto Tassinari (1997, p. 192): são 111 paralelepípedos negros, co-
bertos de breu e asfalto, um para cada morto. Em cada um deles, de forma
repetida e exaustiva, a gravação do nome completo de um dos assassinados,
feita com chumbo, de modo que aquela pedra transforme-se também em
monolito, pedra sepulcral, parte do processo de luto coletivo que a obra

50
impõe a todos diante da morte não pranteada daqueles homens. Armada
numa sala ampla, dividida em dois ambientes distintos mas comunicáveis,
a obra encena um ritual sacro de rememoração dos mortos. Cinzas, uma
cruz, salmos bíblicos, textos do próprio artista – dispostos à maneira de
epitáfios coletivos – e três imensos sarcófagos, chamadas comumente de
“múmias”, saturam a sala de elementos funerários, escuros, anunciando ao
mesmo tempo a perda e a necessidade de não esquecê-la jamais. No outro
lado da obra, no ambiente contíguo, Nuno Ramos confere uma perspectiva
cosmogônica a 111, utilizando imagens de satélite da Terra no momento dos
ataques, como que a apresentar a alienação do universo (ou de Deus) em
relação aos crimes humanos. A cor predominante nesse espaço é o bran-
co, e as esculturas em vidro que se espalham pelo chão sugerem, talvez, o
reinício da vida, o ciclo do mundo que se completa e renova indiferente
ao sofrimento e à violência.
O dado reflexivo fundamental da obra, a dialética entre o que se pode
ver e o que não deve ser visto, entre a transparência e a opacidade, está
colocada de modo arguto pelo texto escolhido pelo artista para emoldu-
rar a primeira sala da instalação. Trata-se de um fragmento do que viria
a ser o livro Cujo, publicado quase um ano depois, trecho que condensa,
sintomaticamente, todas as questões que atravessam e dão estofo a 111, de
forma especial a tríade morte, visão, divindade:
Eu quis ver mas não o vi. Eu quis ter mas não o tive. Eu quis. Eu quis o deus
mas não o tive. Eu quis o homem, o filho, o primeiro bicho mas não os pude
ver. Estava deitado, desperto. Estava desde o início. Quis me mover mas não
me movi. Eu quis. Estava debruçado, morto desde o início. A grama alta quase
não me deixava ver. Estava morto desde o comecinho. Eu quis o medo mas
não o pude ter. Estava deitado, debruçado bem morto. Quis ver o primeiro
bicho e a raiz da primeira planta. A grama alta não me deixava ver. Os olhos
esbugalhados quase morriam pela última vez. Estava ali desde o comecinho.
Eu quis o medo mas não o pude ter. Quis o sono, a arca, algum algarismo
romano. Quis o homem, mas não este aqui [...]. (Ramos, 1993, p. 27)
A voz que nos fala no texto é a do artista, cola-se ao ponto de vista
dele, mas é também a de um cadáver, de um ser que se sabe morto “desde
o comecinho”, mas que ainda assim, mesmo ausente e impossibilitado de
mover-se, de ver, deseja conhecer a origem das coisas, o instante inicial e
mítico da vida. O artista aqui é um demiurgo, um pequeno deus criador que

51
no entanto está paralisado, tem suas ações bloqueadas e seus movimentos
restritos. A morte detém a sua potência, e ele partilha com os mortos a
angústia do desejo não satisfeito, da ação interrompida bruscamente. O
seu ponto de vista identifica-se, simultaneamente, ao das vítimas (a voz
narradora morre junto com elas) e a um observador externo e absoluto,
que como uma divindade, tudo pode ver. Sem nenhuma concessão ao leitor
-espectador, sem qualquer relação de continuidade ou tradução a respeito
daquilo que a instalação apresenta, Nuno Ramos aposta na contradição entre
a insistência na visão, no texto, e a opacidade dos sentidos que ele instaura.
Por seu turno, o gesto da seriação visível na instalação apresenta-se de
um modo bastante peculiar: trata-se de um processo de repetição, inegavel-
mente, mas de repetição em diferença, posto que, para além dos elementos
que não variam (a pedra, o breu, as páginas da bíblia e as folhas de jornal
do dia da tragédia coladas em cada um daqueles túmulos mínimos) são
os nomes dos mortos que vão aparecer, repetidos e variados, ao longo do
trabalho. São às vezes os mesmos nomes (‘José’, 17 vezes), quase que os mes-
mos sobrenomes (‘Silva’, 25 vezes; ‘Santos’, 16 vezes) que se acumulam em
111, conferindo uma sutil e estranha regularidade (talvez seja o caso de falar
em cadência) à obra. Lateralmente, não é ocioso acrescentar que o trabalho
teve, por assim dizer, uma continuação, vinte anos depois: para marcar duas
décadas de luto e impunidade (até àquela altura não haviam sido julgados
nenhum dos responsáveis pelo massacre), Nuno Ramos e outros vinte e
três artistas passaram 24 horas completas lendo sem cessar os nomes dos
prisioneiros mortos, criando uma estranha forma de instalação: despojada
de tudo, ela é só uma massa de sons hipnótica, nauseante, insuportável.
A intervenção (24 horas 111), verdadeiro réquiem sonoro, foi levada
a público no dia 2 de outubro de 2012, numa plataforma digital, a Mobile
Radio, e pôde ser ouvida na internet ainda por muito tempo depois dessa
data. Nas duas obras, a opção do artista, enfim, por eludir as imagens e
gravar os nomes, elevando-os à visibilidade pública e à audição perfeita,
sem ruídos, retirando-os assim do anonimato completo que sua condição
social e jurídica lhes impunha (por serem pobres e condenados), é a res-
posta estética possível e contundente ao circo midiático armado em torno
do massacre, paradoxalmente entregue à exposição desrespeitosa dos ca-
dáveres, submetendo-os a um regime de visibilidade total, regime que, por
estranho que possa parecer, aponta para a reiteração da invisibilidade e do
esquecimento daquelas vítimas e de seu sofrimento. Expor os seus corpos

52
nus e feridos era escamotear, até mesmo na hora final da morte violenta, a
identidade, a história daqueles homens, suas relações familiares, seu aspecto
humano, enfim. Eram apenas carne morta dada à curiosidade e (talvez)
à piedade geral. Retirar de cena os cadáveres, cobri-los, por assim dizer,
com uma trama densa de linguagem, era o único ato estético que, parece-
nos, poderia enfrentar, ainda no calor dos acontecimentos, o circuito de
alienação coletiva instaurado, forçando novas leituras e nova compreensão
daquele acontecimento terrível.

III

A questão dos nomes próprios, ao mesmo tempo da sua banalidade conven-


cional e de sua enorme força simbólica, está presente também, e de modo
quem sabe mais decisivo, nos dois textos literários que procuro convocar
a partir de agora. Em ambos, escritos por Bolaño e Vallias, eles estão no
centro do processo de seriação e catalogação destacado, revelando-se peça
incontornável na elaboração de novas formas narrativas e novos sentidos
possíveis para palavras – nomes – já inúmeras vezes enunciados, de modo
insípido, pelo discurso científico, pela retórica judicial, pelo relato jornalísti-
co. No intuito de realizar isso, os dois textos, curiosamente, parecem investir
num processo de esvaziamento estético, que tem como base a redução da
linguagem a uma espécie de nível elementar da significação, no qual só o
registro material dos nomes, sem qualquer operação de deslocamento ou
transformação formal, se faz notar.
O procedimento em tela, a partir da redução muito acentuada dos
elementos que de comum se associam ao trabalho artístico, vai ressaltar,
num primeiro momento, a crueza da pura informação e o despojamento
dos substantivos próprios, parecendo apenas querer descrever com distan-
ciamento os seres (em certo sentido, as vítimas históricas) a que se colam.
Se põe em destaque a objetificação e a insignificância social dos sujeitos
que apresentam, tal uso de linguagem vai também recuperar, num sentido
que se aproxima do mítico e do sagrado, as potências ocultas do nome,
mostrando como a sua invocação e registro podem sobrepujar a violência
e a destruição, sobrevivendo aos corpos e às incertezas da história. O que
os dois escritores mostram tem a ver com isso: o nome é, nos seus textos,
presença, vestígio inapagável de uma vida que se afirma mesmo sobre a

53
morte – individualizando cada perda para além da irrealidade da estatística,
recordando a permanência, no presente, de povos e culturas ameaçadas.
Em 2666, último e imenso romance de Roberto Bolaño, espécie de
meditação em escala planetária sobre a catástrofe e o mal, há cinco partes,
cinco pequenos romances dentro do quadro geral da narrativa. Cada um
deles se passa num período específico do século XX e num lugar distinto do
planeta, mas todos convergem para o México dos primeiros anos da década
de 1990, onde uma chacina lenta e segura de mulheres (na sua maioria jo-
vens e pobres) está em curso, sob a aparente normalidade da vida comum
numa cidade da fronteira mexicana-estadunidense. O momento histórico é
perturbador: os Estados Unidos declaram guerra às drogas, implementando
uma política de controle de fronteiras e perseguição ao tráfico nunca antes
vista. Seu alvo imediato são os cartéis da América do Sul, da Colômbia em
particular, e a presença militar na região (que está, nesse instante histórico,
saindo de períodos ditatoriais mais ou menos longos) cresce enormemente,
fazendo com que a passagem da cocaína (principalmente, mas não só) das
áreas produtoras para os principais mercados consumidores se tornasse um
negócio ainda mais lucrativo e violento, na medida em que maiores riscos
implicam, por óbvio, maiores possibilidades de lucro. E é aí que entra o
México, nação estratégica no jogo internacional do tráfico, dada a extensão
da sua fronteira com os Estados Unidos. Os muitos grupos armados do país
se aproximam decisivamente dos narcóticos, fazendo com que algo como
uma guerra civil em surdina explodisse no país, arrastando consigo quase
todos os setores da sociedade. A corrupção de políticos e forças policiais,
o aumento vertiginoso da violência e abandono do Estado de áreas inteiras
do país faz com que parcelas significativas da população fiquem bastante
vulneráveis à ação das quadrilhas e das próprias forças governamentais,
preocupadas ambas em garantir o funcionamento de um negócio milioná-
rio, pouco importando as consequências sociais do processo. Num período
de uns poucos anos, no universo da narrativa, mais de trezentas mulheres
foram estupradas e mortas nas zonas fronteiriças, em ações com evidentes
traços de misoginia e machismo. Seus corpos são profanados, a motivação
sexual é ostensiva e chocante, assim como choca ir acompanhando, ao
longo do texto, a ineficiência e o desinteresse da Polícia e da Justiça locais
em relação aos crimes. A conivência do Estado mexicano com a barbárie,
como sugere 2666, a larga penetração que têm no governo tanto os grupos de
extermínio quanto as práticas discricionárias do patriarcalismo são alguns

54
dos elementos que conferem o tom melancólico e algo fatalista que trechos
como este, que se multiplicam no livro, deixam transparecer:
Viver neste deserto, pensou Lalo Cura enquanto o carro dirigido por Epifanio
se afastava do terreno baldio, é como viver no mar. A fronteira entre Sonora
e o Arizona é um grupo de ilhas fantasmais ou encantadas. As cidades e os
povoados são barcos. O deserto é um mar interminável. É um bom lugar para
os peixes, principalmente para os peixes que vivem nas fossas mais profundas,
não para os homens. (Bolaño, 2010, p. 533)
Uma estratégia narrativa muito utilizada por Bolaño, e que dialoga
com a aproximação à pura referencialidade ensaiada no texto, tem a ver
com o constante adiamento narrativo que organiza o relato, fazendo com
que a resolução dos mistérios propostos (a tradição do romance policial é
importante para o autor, assim como fora também para Jorge Luis Borges,
com quem mantém laços estreitos – muito visíveis nesse e em outros de seus
romances) seja permanentemente denegada, dando origem a uma prolife-
ração quase infinita de casos e sub-tramas paralelas, todas elas atravessadas
de algum modo pelas circunstâncias dos crimes. Parece que, quanto mais
o narrador lança o leitor para o centro da narrativa, para uma suposta rede
que interliga e explica todos os delitos, mais a trama se esgarça e repete,
eludindo respostas e saídas para o labirinto que o romance constrói. É, em
certo sentido, a forma romanesca replicando as formas, os sentidos e as
estruturas sociais o que se dá aqui (recolocando, em outros termos e no
horizonte contemporâneo, a premissa teórica proposta por Georg Lukács
na Teoria do romance e diversos outros textos): é a própria forma, e não
necessariamente a matéria, que guarda relações de proximidade e homologia
com o mundo social. Nesse sentido, a relativa circularidade das narrativas
que compõem 2666, a ausência de respostas para as tramas que se abrem
a cada momento, guarda semelhança estrutural com o novelo burocrático
e administrativo que faz com que a investigação dos crimes termine sem-
pre em becos sem saída, pistas que só levantam novas alternativas, novas
conexões perversas, novas descobertas parciais e inúteis.
O relato, nesse quarto capítulo mais do que nos outros, termina por se
transformar num enorme arquivo dos assassinatos. O desaparecimento de
cada uma das mulheres, seu nome completo, sua profissão e seus últimos
movimentos conhecidos, ocupará boa parte do texto, e será narrado por
Bolaño de maneira quase idêntica, numa forma seriada em que mudam tão

55
somente os nomes (ou parte deles) e uma ou outra circunstância criminal.
Elaborando uma lista que parece interminável – e que se alonga por quase
300 páginas, conforme a edição brasileira – o autor vai apresentando as
moças assassinadas numa linguagem neutra, rudemente objetiva e descar-
nada, próxima do estilo anódino e puramente descritivo dos boletins de
ocorrências policiais ou das peças documentais de um cartório, por exemplo.
O efeito angustiante do catálogo que se arma ante o leitor é potencializado
por essa linguagem, que reforça a repetição indiferente dos acontecimen-
tos e como que reduplica a sua falta de sentido. Recupero duas passagens
de “A parte dos crimes”, nas quais o feminicídio será narrado com mais
detalhes e cuidado:
Em junho morreu Emília Mena Mena. Seu corpo foi encontrado no lixão
clandestino perto da rua de Yucatecos, na direção da Olaria Hermanos Corinto.
No laudo médico-legal indica-se que foi estuprada, esfaqueada e queimada,
sem especificar se a causa da morte foram as facadas ou as queimaduras, e
sem especificar tampouco se no momento das queimaduras Emília Mena
Mena já estava morta. No lixão onde foi encontrada ocorriam constantes
incêndios, a maior parte voluntários, outros fortuitos, de modo que não se
podia descartar que as calcinações de seu corpo se devessem a um fogo dessas
características e não à vontade do homicida. O lixão não tem nome oficial,
porque é clandestino, mas tem sim um nome popular: chama-se El Chile.
(Bolaño, 2010, p. 360)
E também:
Na mesma colônia Lomas del Toro, um mês depois, encontraram o cadáver
de Rebeca Fernández de Hoyos, de trinta e três anos, morena, cabelo até a
cintura, que trabalhava como garçonete no bar El Catrín, situado na rua
Xapala, na colônia vizinha Rubén Darío, e que antes havia sido operária
das maquiladoras Holmes & West e Aiwo, de que fora despedida por querer
organizar um sindicato. Rebeca Fernández de Hoyos era natural de Oaxaca,
mas morava havia mais de dez anos no norte de Sonora. Antes, aos dezoito,
estivera em Tijuana, onde consta num registro de prostitutas, e também
tentou sem sucesso a vida nos Estados Unidos, de onde a migra a mandou
de volta para o México em quatro ocasiões. Seu cadáver foi descoberto por
uma amiga que tinha a chave da sua casa e que estranhou o fato de Rebeca
não ter ido trabalhar na El Catrín, pois, tal como declarou posteriormente,

56
a vítima era uma mulher responsável que só faltava ao trabalho se estivesse
muito doente. (Bolaño, 2010, p. 397)
Conforme sugerem os exemplos, o mesmo tom, a mesma linguagem,
os mesmos (e distintos) nomes vão se repetindo e acumulando no texto,
formando uma série infernal: o absurdo das mortes baratas, motivadas por
nada e por ninguém reclamadas, impõe-se à sensibilidade do leitor pela
força próxima do encantório que emana do texto, na medida em que ele
parece mobilizar um procedimento narrativo e poético muito antigo – a
recolha dos nomes, a enumeração retrospectiva dos atos, a genealogia,
enfim, (visível, por exemplo, no episódio do catálogo das naus, da Ilíada,
ou em largas passagens do Antigo Testamento) para tentar representar não
mais a origem nacional e o orgulho identitário, como no poema homérico,
ou mesmo os altos atributos divinos, anunciados nas litanias e ladainhas
cristãs, mas simplesmente o inumerável da morte e do trauma, entretanto
tornados acontecimentos absolutamente banais, anti-épicos por excelência,
no território conflagrado da América Latina, território atravessado pelos
resquícios de Estados autoritários e pelas forças globais do capital trans-
nacional, tenham elas a aparência legal das maquiladoras tão comuns no
lado mexicano da fronteira com os Estados Unidos (e não convém esquecer
que a maioria esmagadora das vítimas nelas trabalhava), ou a face bestial
das quadrilhas de traficantes de drogas, subproduto da miséria comum e
da mercantilização extrema das formas de vida.
A frieza com que o narrador apresenta os corpos e as histórias das
mulheres, o contraste entre a selvageria das torturas a elas infligidas e a
imparcialidade distante da linguagem posta em jogo acentuam a conivência
social que cerca os crimes do México, e no fundo cerca também as muitas
violências que se praticam, ontem e hoje, contra sujeitos subalternos e invisí-
veis. A aparente neutralidade da língua em “A parte dos crimes” replica, pela
emulação, a naturalidade indiferente com que foram recebidos pela opinião
pública da época dos assassinatos, bem como enfatiza uma espécie de ética
da representação que atravessa o romance de Roberto Bolaño. Diante do
mal absoluto (absurdo, impessoal, quase onipresente), o texto parece recuar,
buscando refúgio na denotação mais descarnada, como que reconhecendo
as suas limitações – daí a quase ausência da metáfora, do elemento poético
nessas passagens. A brevidade das descrições dos corpos, contrastando com
a relativa abundância de detalhes laterais, dá a dimensão desse recuo, uma
vez que o texto não se furta à apresentação forense dos cadáveres mas opta

57
por mantê-la apenas assim, sem qualquer traço de emoção ou intensidade.
Sobressai no romance, dessa forma, a aproximação ao arquivo: o registro
das mortes e de sua mecânica própria, bem como da biografia mínima das
vítimas (ainda que esses dados sejam produto da ficção, como uma leitura
contrastiva entre o texto e o livro Huesos en el desierto, de Sergio González
Rodríguez, o mais completo relato investigativo do episódio, vai revelar),
assume importância decisiva em 2666, respondendo ao apelo inestético que
atravessa e organiza parte do romance.
Por sua vez, no poema visual de André Vallias, Totem, a presença dos
nomes próprios e da seriação está intimamente relacionada, uma vez que
o texto constitui-se quase que apenas disso, nomes próprios de dezenas de
povos indígenas brasileiros, dispostos, em caracteres especialmente criados
pelo poeta, sobre montagens feitas a partir de um mapa geográfico e etno-
gráfico do Brasil. Escrito em 2013 e publicado no ano seguinte (primeiro
numa exposição, no Centro Oi Futuro, do Rio de Janeiro, e a seguir em
livro de formato especial, pela editora catarinense Cultura e Barbárie), no
rastro tanto de um gesto de solidariedade aos índios guarani-kaiowá (no
qual milhares de usuários do Facebook acrescentaram aos seus nomes o
prenome nativo), quanto das manifestações do mês de junho de 2013, que
tiveram como pauta – ainda que não hegemônica – a dramática situação
de inúmeros povos indígenas, ameaçados por um projeto de ocupação
geopolítica da Amazônia que inclui grandes obras de energia e transporte
(a hidrelétrica de Belo Monte, em particular), e também o aumento da
presença econômica (o agronegócio, principalmente) e militar na região.
Nesse sentido, o poema de Vallias pode ser lido de maneira ambígua,
uma vez que o gesto da seriação nele presente amplia as possibilidades de
produção de sentido dessa estratégia textual cumulativa. Conforme des-
taca o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (2014, p. III) no texto de
apresentação do livro, Totem é uma invocação, ao mesmo tempo mítica e
política, da presença não-rasurável dos povos indígenas brasileiros na terra,
na história, na cultura e na genealogia social do país, num gesto crítico de
dimensões filosóficas, que vai relacionar a nomeação à existência, a palavra
ao ser. Entretanto, não seria também impertinente considerar que o poe-
ma – e é o que eu gostaria de propor – é igualmente um lamento fúnebre,
uma espécie de invocação ritual dos mortos, na medida em que muitos dos
nomes listados por Vallias descrevem etnias e culturas desaparecidas ou
em vias de desaparecimento; muitos deles nomeiam, assim, um fantasma,

58
a memória de povos cujas línguas se extinguiram e que, como o nome
que restou, são, tragicamente, a indicação de um signo esvaziado, ainda
que não apagável. A própria forma obsessiva do poema, sua musicalidade
difícil e suas imagens quase idênticas (trata-se de um texto para ser visto,
sobretudo) sugerem essa ambiguidade. A mesma força de invocação que se
aproxima de um chamado à resistência pode também ser lamentação dos
mortos, cujos nomes são pequenas peças de memória, ainda que indiquem
igualmente a sua presença no mundo dos vivos. Para reforçar o dito, cito
algumas estrofes do texto, armadas na forma de quadras, em versos de sete
sílabas poéticas rimados de modo alternado:
sou guarani kaiowá
munduruku, kadiwéu
arapium, pankará
xokó, tapuio, xeréu
yanomami, asurini
cinta larga, kayapó
waimiri atroari
tariana, pataxó
kalapalo, nambikwara
jenipapo-kanindé
amondawa, potiguara
kalabaça, araweté
migueleno, karajá
tabajara, bakairi
gavião, tupinambá
anacé, kanamari
deni, xavante, zoró
aranã, pankararé
palikur, ingarikó
makurap, apinayé
matsés, uru eu wau wau
pira-tapuya, akuntsu
kisêdjê, kinikinau
ashaninka, matipu

59
sou wari’, nadöb, terena
puyanawa, paumari,
wassu-cocal, warekena
puroborá, krikati
ka’apor, nahukuá
jiahui, baniwa, tembé
kuikuro, kaxinawá
naruvotu, tremembé
kuntanawa, aikanã
juma, torá, kaxixó
siriano, pipipã
rikbaktsá, karapotó
krepumkateyê, aruá
kaxuyana, arikapu
witoto, pankaiuká
tapeba, karuazu
desana, parakanã
jarawara, kaiabi
fulni-ô, apurinã
charrua, issé, nukini
aweti, nawa, korubo
miranha, kantaruré
karitiana, marubo
yawalapiti, zo’é
parintintin, katukina
wayana, xakriabá
yaminawá, umutina
avá-canoeiro, kwazá
(Vallias, 2014)
A junção dos nomes proposta pelo poeta quebra toda linearidade his-
tórica, toda animosidade fratricida e qualquer separação espacial. Povos de
diferentes condições e latitudes, de distintos grupos linguísticos ou matrizes
culturais se encontram em Totem, indiferentes à cronologia da colonização
e às compartimentações que a ordem do poder no Brasil criou e continua a

60
criar para classificá-los e controlá-los. O poema é congraçamento, encontro
possível que dá unidade aos povos continuamente confinados, às vezes, ao
isolamento e à incomunicabilidade. A inscrição das letras sobre um mapa
do país é significativa, nesse sentido: a escrita de Vallias se afirma como
escrita em palimpsesto, escrita que se dá, literalmente, sobre as palavras e as
imagens oficiais do país, representadas pela carta geográfica que, apesar de
indicar também a presença das populações indígenas no território, contempla
de maneira especial os significantes – topônimos e linhas divisórias – que
configuram a geopolítica do Estado brasileiro, suas zonas de ocupação e
seus fluxos de movimento; a apropriação, enfim, econômica e militar da
terra e sua transformação em território administrado e administrável. A
relação que o poema propõe, baseado na afinidade sonora e na configuração
de uma série de imagens, fratura as continuidades e as relações impostas
ao espaço e aos seus habitantes primordiais.
Através da recitação grave dos nomes e da formulação plástica original
a que os submete, o texto-instalação de André Vallias vai instaurar um recuo
diante dos imperativos midiáticos da hiper-exposição de uma identidade
indígena estereotipada – colonial, pacífica e anacrônica –, propondo no
seu lugar a criação de um intervalo singular, um espaço para a memória
dos mortos que seja também o lugar da afirmação da indestrutibilidade da
sua presença entre os vivos, de acordo com o que indica, mais uma vez, o
prefácio de Eduardo Viveiros de Castro. Infiltrando-se com sua proposta
anti-narrativa, descolada de uma noção estanque e tradicional de identidade
e pertencimento, Vallias vai reinscrever, no coração da cultura brasileira e la-
tino-americana (os conceitos de limite geográfico e Estado-nação revelam-se
insuficientes, repito, diante das fronteiras instáveis que o saber não-ocidental
dos povos indígenas propõe) o gesto estético e político da forma seriada,
da acumulação e do arquivo como procedimento privilegiado, alterando-
lhes, contudo, o significado: Totem deixa de lado a repetição monológica
de uma única voz, de uma única sonoridade na história do subcontinente,
para trazer sons outros, nomes outros que, muito embora sejam parte de
um catálogo dos mortos, quebram a ordem e o sentido unitário do poder e
seus discursos, subvertendo o estabelecido e (re)atualizando, no presente,
modos de resistência e possibilidades heterodoxas do pensamento.

61
IV

Visto em perspectiva histórica, é possível dizer que o recurso estético às listas


e séries não é novo na produção cultural latino-americana. Trata-se aqui,
quem sabe, de um processo de apropriação e ressignificação formal, uma
vez que, à parte todas as diferenças discursivas e contextuais que se pode
apontar, a presença de enumerações e estruturas seriadas era já marcante
na América Latina dos séculos XVIII e XIX (e talvez até antes disso, se in-
cluirmos textos conhecidos como os do cronista indígena peruano Felipe
Guamán Poma de Ayala, por exemplo, ou ainda do missionário espanhol
Frei Bartolomé de Las Casas), especialmente na literatura produzida por
colonizadores e viajantes. Percorrendo os vastos territórios do continente,
esses escritores (que eram também, conforme o caso, cientistas, aventureiros,
geógrafos ou religiosos) procuraram registrar tudo o que viam e imaginavam
por meio de inventários narrativos do paradisíaco e do desconhecido, do
fantástico e do estranho que se encontrava nesse novo mundo que, da sua
perspectiva, quedava por conquistar e cartografar.
Flora Süssekind, estudando o caso das viagens e dos viajantes-narradores
no Brasil (cf. o capítulo “A literatura como cartografia”, Sussekind, 1990, p.
35-154) pôde medir a presença e o peso das listas e dos catálogos nos relatos
de viagem – segundo a pesquisadora, eles habitam, com seu imaginário
enciclopédico, seu deslumbramento diante do exótico e sua curiosidade
científica diante do desconhecido, o momento da formação das literaturas
e da cultura letrada dos países da América Latina. Tomando o título de um
dos livros de poemas de João Cabral de Melo Neto como referência, Flora
chama os textos produzidos no período de “museus de tudo”, pondo em
destaque o aspecto cumulativo e catalográfico que têm, em consonância
com a lógica organizativa que preside instituições de memória como mu-
seus. A impregnação do imaginário enciclopédico e inventariante vindo
dessa literatura de viagem vai atingir em cheio, continua a pesquisadora, a
produção dos primeiros românticos brasileiros, com destaque para textos
de Teixeira e Souza (Tardes de um pintor) e Joaquim Manuel de Macedo
(A carteira do meu tio), que revelam-se leitores atentos de Saint-Hilaire,
Spix, Denis, entre outros.
A passagem a que me propus observar pressupõe a transformação de
um significado e uso das séries para outro. Implica numa metamorfose
significativa na paisagem histórica e natural, indo de um polo a outro da

62
cultura (em sentido iluminista, é verdade) e da escrita: num momento trata-
se de reconhecer que as listas, as séries e os catálogos narrativos e artísticos
participavam de um tipo de operação de desvelamento (revelação do ma-
ravilhoso e não-familiar, não-europeu) muito específico, cujo significado,
pode-se dizer, estava ligado a um aspecto construtivo e de formação. De
outro lado e a partir da observação de outra época, justamente o tempo
presente, naquele em que todos vivemos, as formas do inventário vão tomar
parte no processo lutuoso de rememoração do esquecido (ou denegado),
da descoberta daquilo que jamais deveria ser necessário pôr a nu.

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64
ROBERTO BOLAÑO:
O SEGREDO DO MUNDO É ÓBVIO
Sobre “La parte de Amalfitano”

Graciela Ravetti

Para Mariana Di Salvio e Tida Carvalho

“Fate recordó las palabras de Guadalupe Roncal. Nadie presta aten-


ción a estos asesinatos, pero en ellos se esconde el secreto del mundo.”
(Bolaño, 2066)
“Bueno, pues, les dije, ¿cuál es el misterio? Entonces los muchachos me
miraron y dijeron: no hay misterio, Amadeo.”
(Bolaño, Los detectives salvajes)

“...y qué es esta sombra que produce algún efecto sobre esta verdad, a
la que siempre tenemos que interrogarla en su estructura de ficción.”
(J. Lacan)

2666 é o último romance escrito por Roberto Bolaño, chileno, que viveu
parte de sua primeira juventude no México, cenário de algumas de suas
mais conhecidas histórias, e que morreu na Espanha, onde passou suas
últimas décadas até o ano de sua morte, 2003. Um dos maiores de língua
espanhola do século XX, considerado por muitos o maior depois de Borges,
García Márquez, Cortázar e outros mestres da literatura hispano-ameri-
cana. Embora de outro modo, Bolaño se inscreve na mesma linhagem de
Jorge Luis Borges: a constante reflexão e experimentação sobre os modos
de representação narrativa, as inquisições a propósito do tempo, a obser-
vação insistente da literatura e de seus agenciamentos em épocas e línguas
longínquas, a prática com tramas nas quais são criadas personagens cujos

65
destinos se cruzam na hora menos previsível e ajudam a tecer as histórias
que saltam à superfície e que só a ficção literária desvenda como projeções
imaginárias que tomam estatuto de real, a imersão na desolação pela falta de
sentido amenizada pela firme decisão de criar esses sentidos, apesar de tudo.
O volume está dividido em cinco partes, que admitem leituras em
separado, como foi o desejo mercadológico do autor, que escreveu o livro
lutando contra a morte e que o pensou como legado para os filhos. Neste
ensaio, vou me concentrar em “La parte de Amalfitano” (Bolaño, 2010, p.
209-291), apesar de acreditar que todos os apartados preservam uma es-
tranha semelhança, tão íntima, que não tenho dúvidas de estar lendo um
romance extenso, estruturado com um laço que enfeixa os incidentes, por
mais separados que tais fragmentos possam estar. No entanto, o exercício
de ler cada episódio em separado, e como se fosse o único, traz certas
descobertas consideráveis. Em todas as partes há vários fios de enredo, pre-
dominantes no meio de um conjunto complexo de uma miríade de pontas,
que se desenvolvem de modo nem sempre claro, como mapas em aberto:
há a narração que sobrevoa sobre um estado de crise social dramática e
violenta, que funciona não só como pano de fundo mas também como fator
de intervenção nas tramas relativas a cada uma das personagens; há uma
atmosfera que paira sobre cada episódio, como cifra de um desastre iminente,
sem margem para a fuga, o que abre intervalos temporais ou fissuras espa-
ciais semelhantes à irrupção de um espaço onírico ou de insanidade, e que,
objetivamente, manifesta-se em eventos específicos como a escuta de vozes
vindas do desconhecido, sonhos vívidos, ações incontroláveis ou, enfim,
a imersão pessoal de sujeitos no universo aberto por obras de arte, muitas
vezes a própria poesia ou algum tipo de performance art. Embora impoten-
tes para evitar a dor, tais irrupções artísticas funcionam como instalações
conceituais no meio da catástrofe, como sinalizadores programáticos da
criação possível de sentido e acabam revelando a crise geral de significação
que acomete a América Latina no século XX; crise que se revela como um
verdadeiro impasse tanto na tensão referencial, que é constituinte essencial
da arte, quanto ao que pode ser trazido para a reflexão na voz do narrador
ou na das personagens sobre o andamento social, como dados em bruto. Ao
mesmo tempo em que fortalece convenções pós-modernas já cristalizadas
– o tom geral e a temática de base, muito borgeanos, por sinal – há uma
anacrônica retomada explícita de ideais vanguardistas que funcionam ora
como débitos a serem ainda pagos pela arte, ora como nostalgias de certas

66
utopias extemporâneas que permanecem com um valor de energia só para
alguns poucos artistas, todos os quais poderiam vir a ser hoje rotulados,
no mínimo, como poetas da fome ou da precariedade, longe, portanto, de
qualquer narrativa de sucesso no cenário sócio-histórico no qual 2666 foi
escrito. Cenário que não apresenta nenhuma relação do homem com a téc-
nica ou a ciência, a não ser pela repetida referência à presença monstruosa
das maquiladoras, a principal fonte de trabalho da região.
Os novos realismos, como o de Bolaño, primam por projetar uma
perspectiva teórica na ficção cujo ponto de partida é a consciência da
dimensão complexa da verdade, que inclui o próprio ato de enunciá-la: a
forma e o conteúdo, o suporte, o meio no qual se divulga e outras valências
não menos importantes. 2666 está articulado por uma trama que radicaliza
algumas das mais significativas tensões da época e dos embates éticos, tendo
como base um panorama social e cultural de intensidade dramática que
exigiria, a rigor, respostas tão claras e evidentes que todo tipo de dilação ou
mascaramento aparece claramente como hipocrisia ou dissimulação, dada
a violenta e clara interpelação das vítimas por tomadas de posição claras,
convincentes e efetivas em todos os ramos do conhecimento.
Que resposta dilatória é factível dar, sem faltar com a ética, para uma
sociedade que permite que centenas de mulheres jovens, trabalhadoras em
sua maioria, sejam assassinadas de forma brutal e anônima? Ou que com-
pressas colocar sobre uma situação tão clara como a que se mostra articulada
com base na brutalidade impune de uns sobre a fragilidade de muitos, com
as consequências da fome, da precariedade de todos os serviços, enfim, da
pobreza e da evidente quebra no pacto pelos direitos humanos? E que dizer
sobre as relações que o romance de Bolaño estabelece entre trabalho, per-
formance social , e os âmbitos da política e da ética, tudo conduzindo para
a redução das complexidades ideológicas que embaçam as respostas que
seriam óbvias a demandas também óbvias, que dispensam interpretações
sofisticadas, pelo menos numa primeira abordagem, digamos, exercendo a
função primária da verdade? E, a pergunta que se impõe ao crítico, como
ler esses troços de real, dados em bruto, que se misturam na ficção mas que
parecem ser um revulsivo que revela a fronteira entre saber e verdade, entre
escrita e real, onde as palavras cedem à epifania do entorno e desprezam
qualquer clichê e resposta estereotipados? Novos realismos implicam nova
crítica, nova escuta, nova leitura.

67
As características mencionadas foram os traços que me pareceram
estar muito marcados em “La parte de Amalfitano”, o que me inclinou a
tratá-la como foco neste estudo. Além de tudo isso, o autor e a matéria
narrada pertencem ao mesmo campo temporal e espacial: a idade da
personagem e a do autor do livro é a mesma; a nacionalidade – chilena – e
os lugares de residência – México e Espanha – são idênticos, o que garante
um mínimo comum de práticas e de experiências compartilhadas que
permite equacionar uma possível, ainda que dificultosa, associação de certos
aspectos da trama na construção conceitual de sujeitos e conhecimentos
determinados culturalmente, que é um mero ponto de partida e não de
chegada. Não estou propondo nenhum tipo de conclusão antecipada de
identidade entre autor e personagem, ou alguma forma de confissão, nem
postulando a revelação de artifícios enganosos para projetar a personagem
Amalfitano em alter-ego de Bolaño, espelhamento ou jogo de remissões
que 2666 não autoriza.
Em “La parte de Amalfitano”, a personagem do professor chileno que,
vindo de Barcelona vive com a filha adolescente na cidade imaginária de
Santa Teresa – modelada com base na Ciudad Juárez –, no deserto de Sonora,
e sua angústia crescente são o fio do enredo que embrulha as pontas soltas
do apartado. As causas da progressiva e “dilatada aterrissagem em para-
quedas” de Amalfitano – uma referência irônica e remoçada de “Altazor”,
o extenso poema de Vicente Huidobro? – podem ser contadas a partir de
vários eixos. Um histórico aspecto social – os assassinatos de mulheres em
Sonora, escandalosos feitos ocorridos na área e que ainda persistem sem
solução, atestados não só pela crônica policial e jornalística mas também
pela vox populi, fazem parte já de uma espécie de lenda urbana e regional
que extrapola os limites da escrita literária e da conversa familiar para im-
pactar outras expressões, como é o caso da série policial norte-americana
The Bridge, criada e exibida no ano de 2013. Ao redor desse ápice que são os
assassinatos de mulheres trabalhadoras – o nó temático que amarra as cinco
partes –, Amalfitano e sua mulher Lola vivem seus enigmáticos e separados
estados de alma e seus atos concentram alguns dos aspectos que fazem a
densidade sócio-histórica de um final de festa do capitalismo declinante.
Bolaño, à maneira dos mais radicais escritores, coloca a constante aporia
do realismo, que é o impasse fundamental da literatura. O narrador encara
os seus leitores, como inquirindo: Que mundos vocês estão preparados para
apreciar? Suportam, aguentam o status quo violento, injusto e construído

68
sobre hipocrisia onde você e eu somos partícipes e responsáveis? Há alguma
possibilidade de acatar o óbvio? E, como entram a literatura e a arte nesse
diálogo social e cultural, qual o grau de incidência mútua? A literatura pode
se utilizar da dor como componente explícito? Ou existe uma dinâmica do
espetáculo que impede o aparecimento do óbvio, transformado em truís-
mo, para proteger a hipocrisia? Não há pensador contemporâneo que não
coloque, de formas diversas, a pergunta pela ética, mas são os performers
contemporâneos – sejam escritores, artistas plásticos, ativistas ou não, in-
tervencionistas diretos ou não – os que fazem essas perguntas do ponto de
vista da imersão concreta nas situações da falta, da carência, da pobreza e
da miséria. É o que configura os novos realismos, que são interpelados por
uma crítica que se vê obrigada a transitar entre a contaminação de níveis
ontológicos – poéticos, políticos, biográficos – na composição de qualquer
romance, e a subsistir, ao mesmo tempo, nos termos das exigências da so-
ciedade – conservadora por natureza – que não só permite o sofrimento,
a violência e a injustiça, como também constrói hábil e continuamente os
anteparos necessários para se proteger das contínuas ameaças à manuten-
ção do equilíbrio social, salvaguardas especialmente no campo retórico e
do imaginário, com o que reduz ao mínimo o lugar de funcionamento da
crítica, sinalizando, inclusive, até sua extinção.
A personagem Amalfitano tem um trajeto de vida que sobredetermina
a encruzilhada na qual se encontra no presente da narrativa, situação cons-
truída por um conjunto de tropos que apontam a falta de sentido existencial
– de precário e frágil a inexistente – e funcionam como um conjunto de
ações que ecoam na memória da personagem, ao mesmo tempo em que
impregnam a narrativa de uma atmosfera de irrealidade e fantasmagoria,
provocada pelo uso que o autor faz de abruptas mudanças de foco e de vo-
zes narrativas que passam de Amalfitano a Lola e suas cartas, e a uma voz
de ultra-tumba, cuja efetiva ocorrência o narrador não ironiza, deixando
o leitor em uma completa perplexidade. O mesmo ocorre quando, para
cerrar o apartado, o narrador convoca o mundo onírico ao primeiro plano,
ao tentar explicar as motivações da angústia da personagem, o professor
chileno instalado no meio do deserto mexicano, que sonha com Boris
Yeltsin. Ou quando mergulha de cabeça na arte performática, duchampiana,
que acaba sendo lida como uma estratégia que espelha o modo operante
do romancista Bolaño, já uma marca registrada na literatura da América
Latina, de raiz borgeana, no sentido da forte sugestão da iminência da arte

69
entrar no mundo e se instalar como corpo estranho, fazendo a realidade
ceder em mais de um ponto, como afirma o narrador de Tlön, ou, como
explicou uma vez Duchamp, com referência ao ready-made que Amalfitano
toma como modelo para sua instalação, no quintal da casa:
“Me divertía introducir la idea de la felicidad y la infelicidad en los ready-mades,
y luego estaba la lluvia, el viento, las páginas volando, era una idea divertida”.
Me retracto, en realidad lo que Duchamp hizo en Buenos Aires fue jugar al
ajedrez. Yvonne, que estaba con él, terminó harta de tanto juego-ciencia y
se marchó a Francia. Sigue Tomkins: En los últimos años, Duchamp confesó
a un entrevistador que había disfrutado desacreditando “la seriedad de un
libro cargado de principios” como aquél y hasta insinuó a otro periodista que,
al exponerlo a las inclemencias del tiempo, “el tratado había captado por fin
cuatro cosas de la vida”. (Bolaño, 2010, p. 246, grifo do autor)
O homem está numa vertigem de pulsões subjetivas e forças sócio-his-
tóricas que o avassalam, entre seus conflitos advindos de ser pai de uma
adolescente, na circunstância dos crimes impunes contra mulheres em
Sonora, e o fato de não saber ao certo os motivos de sua decisão de migrar
de Barcelona a Santa Teresa. A tensão que se depreende desse conflito gerado
pelo lugar em que se encontra, pelos perigos que a filha corre e pelo dano
emocional e intelectual que está sofrendo consolida um ambiente propício
para o surgimento da inspiração duchampiana da performance do livro de
Dieste. A princípio, essa ação intempestiva da personagem pode ser lida
como mais uma das inúmeras digressões que são próprias da técnica de
Bolaño e que, ao mesmo tempo em que o ajudam a conseguir sua máxima
potência, são também a causa dos efeitos mais deletérios sobre sua escrita:
seja por despertar o espírito paranoico no leitor, que vai tecendo sentidos
em tudo e atando e desatando os nós até enfeixar o conjunto numa leitura
fechada que tudo abrange, seja por fazê-lo desistir no meio das incongru-
ências produzidas por tanto transbordamento que nunca cessa nem chega
a ter um fecho apaziguador.
O leitor tem uma antecipação da performance do livro de Dieste em
“La parte de los críticos”, durante uma visita que Pelletier e Espinoza fa-
zem ao professor chileno. Em “La parte de Amalfitano”, este encontra o
livro do poeta e geômetra galego quando se vê pensando na forma em que
certas sensações ou desvarios o desorientam, e considerando que o lado
satisfatório dessas vivências é que convertem a dor dos outros na memória

70
própria, transformam “un relato bárbaro de injusticias y abusos, un ulular
incoherente sin principio ni fin, en una historia bien estructurada en donde
siempre cabía la posibilidad de suicidarse” (Bolaño, 2010, p. 244). O que
não deixa de ser uma tentativa de postular a funcionalidade da narrativi-
dade humana no geral e a da literatura em particular. “Convertía la fuga
en libertad, incluso si la libertad sólo servía para seguir huyendo” (Bolaño,
2010, p. 244). Procurando coerência na experiência desapontadora de achar
um livro inesperado entre seus pertences ainda embrulhados em caixas de
mudança, pensa na ideia de pôr ordem no caos, procura informação sobre
o autor e lê com detalhe o livro, tentando entender o porquê de seu per-
turbador esquecimento, não só do livro como também de algum provável
incidente que lhe produzira semelhante amnésia sobre o Testamento geomé-
trico, título do livro em questão. Achar o livro lhe produz uma importante
comoção; afeta seu raciocínio, que se vê contaminado pela apreensão que
o embarga pelos perigos a que a filha se expõe a cada dia. Amalfitano sente
“como si le faltara oxígeno” e, nesse mesmo momento, decide pendurar o
livro de Dieste no varal, o que mitiga de imediato a tensão que o aflige.
Com isso, a performance com o livro adquire um estatuto mais amplo,
influindo diretamente no corpo da personagem e na situação de angústia.
Nas palavras do narrador:
La idea, por supuesto, era de Duchamp.
De su estancia en Buenos Aires sólo existe o sólo se conserva un ready-made.
Aunque su vida entera fue un ready-made, que es una forma de apaciguar el
destino y al mismo tiempo enviar señales de alarma. Calvin Tomkins escribe
al respecto: Con motivo de la boda de su hermana Suzanne con su íntimo
amigo Jean Crotti, que se casaron en París el 14 de abril de 1919, Duchamp
mandó por correo un regalo a la pareja. Se trataba de unas instrucciones para
colgar un tratado de geometría de la ventana de su apartamento y fijarlo con
cordel, para que el viento pudiera “hojear el libro, escoger los problemas,
pasar las páginas y arrancarlas”. Como se puede ver, Duchamp no sólo jugó
al ajedrez en Buenos Aires. (Bolaño, 2010, p. 245)
Primeiramente, Amalfitano sente alívio e, a continuação, alegria e
entusiasmo. Tudo parece ser resultado do seu envolvimento com esse gesto
aggiornado das vanguardas dos anos de 1920. Da primeira das ações in-
controláveis de Amalfitano, a reflexão sobre o livro de Rafael Dieste – sua
estrutura física, a materialidade da impressão, o sentido literal de algumas

71
partes, como a apresentação, se segue a realização de uma série de gráficos
que o professor de filosofia vai desenhando enquanto transcorre a aula, ato
que se configura também como uma operação espacializadora, consequên-
cia ou complemento da ação empreendida anteriormente quando decidiu
pendurar o livro ao relento, e que se integra ao esforço por explicar, em
forma de desenho, o trajeto de uma mente que se volta sobre si mesma para
refazer seus percursos indigestos, com o colapso à vista. Voltando de um
passeio familiar, Amalfitano corre para ver sua instalação duchampiana e o
que enxerga lhe parece mais claro, mais firme, mais razoável que tudo o que
acabava de observar na periferia de Santa Teresa e na própria cidade, cenas
e imagens que continham em si toda a orfandade do mundo, “fragmentos,
fragmentos”, pensa. A instalação tem como cenário o quintal da casa de
Amalfitano, situado num bairro nobre de Santa Teresa, nas adjacências do
lugar em que está acontecendo o massacre das jovens trabalhadoras e um
dos pontos de partida da peregrinação de Lola atrás da poesia, do poeta e
da vida. São três os núcleos narrativos ancorados nesse quintal onde está
hasteado agora o livro do geômetra – o percurso de Amalfitano e sua filha,
a jornada de Lola e, ainda, o andamento dos acontecimentos locais, com o
que se configura um desenho também geométrico, ou pelo menos triangular,
que atua como duplicação do conteúdo do livro de geometria. Amalfitano
fica, no fim da parte da qual é protagonista, recuperando seu tônus vital e
sentindo o consolo de perceber que o perigo iminente não aconteceu efe-
tivamente, ainda que, num exercício quase que de ficção científica, o leitor
pode se afastar e contemplar a personagem no vértice desses três núcleos
que parecem ser, em larga medida, um esboço em abismo de muitas das
dramáticas situações da época: a violência social e de gênero ameaçando a
todos; a crueldade específica contra os trabalhadores da base da pirâmide
social e contra os jovens; o descaso da sociedade como um todo que faz
vista grossa e pretende não ver o óbvio; o efeito dramático das doenças
contemporâneas que cegaram a vida de parte importante de uma geração,
como a AIDS e as sequelas do uso de drogas; os impasses educativos; as
revoltantes diferenças de classe. O triângulo assim projetado, que concentra
tensão e premência, potencia a formulação retórica que revela o caráter da
personagem e a urgência da trama e seus desdobramentos. O que está em
jogo é a angústia produzida pela ordem geral, estilhaçada em fragmentos
desapontadores, que incapacitam Amalfitano a seguir um raciocínio coe-
rente e, em contraste pacificador, o repentino abrigo emocional e intelectual

72
que encontra na súbita saída salvadora pela arte, que não exige a ficção de
um argumento esclarecedor nem o preciosismo de uma ekphrasis erudita.
Digamos, por enquanto, que “La parte de Amalfitano” condensa alguns
núcleos da obra de Bolaño. Primeiro, uma ideia peculiar de como narrar,
muito borgeana na teoria, sempre projetando intervenções iminentes da
literatura sobre a realidade. Segundo, uma maneira de criar outras fronteiras,
se for o caso, entre práticas de escrita e temáticas, que não a antiga entre
alta e baixa cultura. Terceiro, uma dinâmica de integração da literatura e
outras artes que não abandona práticas antigas na elaboração do novo, que
se mostra como uma experiência completa e diferente da vida na demanda
por novas formulações para a mistura de saberes que é qualquer cultu-
ra. Saberes criados e desconstruídos em meio a tensões e conflitos onde
as antigas promessas chegam a sua hora de execução, quando é preciso
demonstrar a eficácia prometida. Sabe-se, no entanto, que as utopias do
século dezenove não encontraram, no século vinte, a esperada realização.
A refutação de tantas previsões positivas outrora projetadas com a paixão
da construção intelectual é evidente na configuração contemporânea do
mundo, estigmatizada pela aniquilação de qualquer pretensão de totalização,
povoada de enunciados de supostos valores que evidenciam a sua condição
de palavras ocas e pátinas coloridas, discursos esvaziados – a igualdade, a
fraternidade, a liberdade, só para ficar com os mais batidos –, com a qual
cresce a urgência por uma nova conformação humana, integral, que não
dispense a composição holística, performática, na qual teria que confluir
tudo o que é humano. Os novos experimentalismos do século vinte e um
trabalham com uma mais abrangente pretensão de exaurir o real, indo na
contramão do sistema de especialização heurístico em compartimentos
estanques, cuja inoperância é manifesta e, o que é pior, em grande parte
causa eficiente dos desastres reconhecíveis tanto no campo do pensamento
quanto no da vida cotidiana, vide as guerras, as ditaduras e o diagrama do
tempo colocado em perspectiva universal. Esse é o panorama que está à
mostra no último romance de Bolaño.
O tema central de 2666 parece ser: já acabaram de mostrar sua viabili-
dade os mais famosos e reconhecidos esquemas utópicos ou programáticos
inovadores do século XX; já demonstraram sua inconsistência para servir
de base a movimentos revolucionários, razão pela qual é chegada a hora de
renovadas proposições e, para isso, alguma coisa das vanguardas históricas
e da alta modernidade parecem ter muita vigência ainda, como sugere a

73
citação do ready-made de Duchamp e, em outros textos de Bolaño, exem-
plificada tal sobrevivência pelo movimento recuperativo de certa poesia do
século dezenove e da primeira metade do século vinte. Mas essa força que
vem, pelo menos em parte, da vanguarda, bastante eclipsada e esquecida
nas últimas décadas do século passado, tende a renascer no presente do
romance, entre cemitérios e manicômios, em lapsos de experiências limites.
E o sujeito histórico que assume essa volta do poético experimental per-
formático que não se separa da vida é o intelectual fracassado no cenário
capitalista, estudioso e praticante das chamadas ciências humanas, literárias
ou filosóficas: Amalfitano e Archimboldi, Lola, Auxilio, Arturo Belano,
Ulises Lima e outros. Esses homens e mulheres são os que ressuscitam as
experiências daqueles agora reconhecidos e legitimados como precursores
para tentar apropriar-se dos modos de ver e de sentir perdidos, cuja pro-
dutividade ainda não foi exaurida. Esse procedimento fica mais claro em
Los detectives salvajes, em “La parte de Archimboldi” e em alguns contos,
quando os protagonistas treinam com fontes mais antigas para conseguir
dar conta de seu presente. Como se o novo precisasse se alimentar do antigo.
Vejam-se: a) o livro da performance (Dieste) e o roteiro (Duchamp); b) a
poesia do poeta que persegue Lola. Sem analisar o que talvez seja o dado
mais elucidativo deste argumento, que é o caso da genealogia da escrita de
Archimboldi, cujos modelos e detonantes têm que ser buscados na literatura
russa da primeira metade do século vinte.
Tudo parece convergir a um tipo de realismo performático que, no caso
de Bolaño, se ancora numa diegese obsessiva pela recuperação dos fios das
histórias que interagem umas com as outras entre o absurdo narrativo, o
possível e o relato histórico, criando efeitos de “libro de arena” ou de “jardín
de senderos que se bifurcan”, onde situações aparentemente fortuitas ad-
quirem status de disparadores de narração e de efeitos de real que acabam
dando consistência a mapas – Santa Teresa, o bairro e a universidade, para
Amalfitano; a rota de fuga de Lola; o percurso do exílio para pai e filha –
que se desdobram em inesperadas zonas de fuga, que permitem vislumbrar
espaços potencialmente energéticos: a instalação do livro no quintal, os
diagramas que convocam a fazer inesperadas relações entre pensamentos
filosóficos díspares, a peregrinação de Lola, a mudança na constituição do
grupo familiar nuclear e, como o leitor saberá posteriormente, a grande
fuga de Rosa, a filha de Amalfitano.

74
O narrador fugidio, que oscila entre a contundência e a apatia enquanto
carrega as mais rocambolescas histórias, parece remeter ao surgimento de
uma nova dominante na forma do romance, que engendra e enfatiza uma
articulação entre o que se narra na ficção e o que pode ser formulado para
a vida fora da literatura, estabelecendo uma espécie de estrutura figurativa
concomitante que poderia se aplicar a uma teoria da leitura na contempo-
raneidade, por exemplo. A impressão que se tem é que os tais fragmentos
que provocavam o esgotamento existencial de Amalfitano e as inúmeras
e torrenciais digressões alcançam, à medida em que o romance avança, o
status de única possibilidade de percepção do real, o que, assim determi-
nado no enunciado narrativo, passa a se tornar uma marca da percepção
aguda das limitações de acesso ao conhecimento, percepção muito clara de
certas personagens de Bolaño, como Amalfitano. Tal estado de coisas gera a
construção em simetria de uma hipótese do que seria o ato de leitura que,
se de saída já se sabe que não poderá tornar inteligível o mundo, contudo,
pode se tornar um mecanismo para contrabalançar tanta dispersão e criar
uma ilusão de completude e totalidade. Ler como quem se digladia com
a verdade, ler como quem pode resistir à banalização, ler como quem se
coloca como leitor, como um oposto simétrico do autor. No parágrafo que
antecede o relato do sonho com que a narrativa se fecha, valendo-se de
um discurso indireto livre, o narrador inclui umas frases sobre o caráter
virtuoso de um tipo de leitura em extinção:
resultaba revelador el gusto de este joven farmacéutico ilustrado, que tal vez
en otra vida fue Trakl o que tal vez en ésta aún le estaba deparado escribir
poemas tan desesperados como su lejano colega austriaco, que prefería clara-
mente, sin discusión, la obra menor a la obra mayor. Escogía La metamorfosis
en lugar de El proceso, escogía Bartleby en lugar de Moby Dick, escogía Un
corazón simple en lugar de Bouvard y Pécuchet, y Un cuento de Navidad en
lugar de Historia de dos ciudades o de El Club Pickwick. Qué triste paradoja,
pensó Amalfitano. Ya ni los farmacéuticos ilustrados se atreven con las gran-
des obras, imperfectas, torrenciales, las que abren camino en lo desconocido.
Escogen los ejercicios perfectos de los grandes maestros. O lo que es lo mismo:
quieren ver a los grandes maestros en sesiones de esgrima de entrenamiento,
pero no quieren saber nada de los combates de verdad, en donde los grandes
maestros luchan contra aquello, ese aquello que nos atemoriza a todos, ese
aquello que acoquina y encacha, y hay sangre y heridas mortales y fetidez.
(Bolaño, 2010, p. 289-290)

75
Digressões reflexivas e teóricas como essa que, à maneira de comentário,
o narrador dissemina por todo o texto, ajudam a criar a melancolia que
contagia o texto e dá a ele a atmosfera de épica da poesia, que caracteriza
quase todas as narrativas de Bolaño, épica que pretende contar, em termos
e figuras quase que fantasmais, a história de um tempo ido, provavelmente
nunca existente, no qual talvez a poesia poderia ter tido seu espaço e tempo
de realização.
Quando tudo tende a convergir para a quebra do sentido na narrativa
explicativa que Amalfitano conta para si mesmo – e para o leitor –, abalada
a consistência, aparentemente em definitivo, quando ele começa a escutar
uma voz incorpórea, talvez a do pai, talvez a do avô, talvez produto de sua
própria alucinação, essas irrupções parecem estar de algum modo previstas
no arquivo tropológico do romance quase como uma conexão que ainda
demanda uma formulação teórica pertinente, de alguma forma ligada tan-
gencialmente a uma tradição crítica que associa certos procedimentos a
títulos antitéticos como realismo mágico, maravilhoso ou fantástico assim
como a outra vertente mais ampla e universal, a da ficção científica.
No caso do capítulo de 2666 que estou comentando aqui, a maior
parte da narração acompanha as divagações, as reflexões, o sofrimento
mental de Amalfitano e sua leitura das cartas de Lola, relatadas ao leitor
em estilo indireto. Essas ações são as vias de acesso aos acontecimentos da
trama, que recebe também a descrição de um exterior mais panorâmico,
em certas intervenções do narrador que, como uma figura de prosopopeia,
não se identifica com nenhuma personagem e faz intervenções de ilação do
relato, como: “Amalfitano recibió la siguiente carta desde San Sebastián” ou
“Amalfitano pasó cinco años sin saber nada de Lola…”. Contudo, é a voz
do narrador a que conduz os monólogos interiores de Amalfitano, alguns
deles alimentados pela leitura das cartas de Lola, cruciais para dimensio-
nar a força da divergência e da distância entre essas subjetividades entre
si e com o entorno, e para formular, de alguma forma, o febril trabalho de
criar tanto sentido quanto laços de pertencimento, que parece ser a tarefa
crucial com a qual a narrativa está comprometida. Nos dois casos – Lola e
Amalfitano –, as formas artístico-performáticas que os sobre-determinam
condensam os esforços individuais e os reúnem em núcleos maiores de
sentido. Assim, o ready-made de Duchamp e os versos e gestos perfor-
máticos do poeta de Mondragón se amarram com o tema da loucura dos
poetas e dos que os rodeiam e entendem, e que participam do rito total que

76
exige a poesia – internados em um manicômio, no presente da narração –,
vagamente associados os loucos a “1978 ou 1979”, datas carregadas de peso
sócio-histórico na América Latina e que fazem o contraponto com um
futuro utópico enunciado pelo médico e biógrafo Gorka: “Algún día yo
también saldré de aquí”. E emenda: “Y todos mis pacientes y los pacientes
de mis colegas. Algún día todos, finalmente, saldremos de Mondragón y
esta noble institución de origen eclesiástico y fines benéficos se quedará
vacía” (Bolaño, 2010, p. 224-225). Afirmação que se reporta, por um lado,
a um provável confinamento institucional em que se encontra uma classe
de sujeitos – os poetas? –, e, por outro, serve também para fortalecer uma
figuração da impotência e da alienação em contraste com o valor máximo
alegado, o da poesia, tal como diz o jovem Guerra: “Antes leía de todo,
maestro, y en grandes cantidades, hoy sólo leo poesía. Sólo la poesía no
está contaminada, sólo la poesía está fuera del negocio” (Bolaño, 2010, p.
288-289). Tudo relacionado, também, com as doenças contemporâneas
e seus rituais e ressonâncias sociais, especialmente a AIDS, que evocam
vivências atávicas de espanto e terror e gestos incompreensíveis, como
as cenas que Lola relata em algumas das cartas: “Talvez, decía Lola en su
carta a Amalfitano, era mi locura la que se reía” (Bolaño, 2010, p. 230-231).
Um dos fatores de historicidade do texto de Bolaño, e que pode aju-
dar a elucidar os tropos que utiliza na construção histórica, é a colocação
em simultâneo de algumas ações artístico-contestatárias de outras épocas
como para produzir um curto circuito no presente da narração, um tipo de
relampejo benjaminiano. Isso ocorre, por exemplo, na relação dos poetas
com os cemitérios, agora vividos com naturalidade por pessoas como Lola,
que não o fazem pelo senso poético e sim pela mais aguda das necessidades
vitais: não tendo lugar onde morar, boa saída é entrar numa cripta aberta
e aproveitar o abrigo. Ou as conexões que se estabelecem com as cenas de
trabalho dos imigrantes nas grandes cidades europeias: Lola acaba subsis-
tindo graças a um trabalho noturno em Paris, fazendo faxina, segundo conta
o narrador, acompanhando o pensamento de Amalfitano no momento em
que lê uma das cartas de sua mulher:
Después lo vio claro. Vio la aspiradora aparcada entre dos hileras de mesas,
vio la máquina de encerar como un cruce de mastín y cerdo junto a una planta
de interior, vio un enorme ventanal a través del cual parpadeaban las luces de
París, vio a Lola con el guardapolvo de color azul, sentada escribiendo la carta
y tal vez fumando con suprema lentitud un cigarrillo, vio los dedos de Lola,

77
las muñecas de Lola, los ojos inexpresivos de Lola, vio a otra Lola reflejada
en el azogue del ventanal, flotando ingrávida sobre el cielo de París, como
una fotografía que está trucada pero que no está trucada, flotando, flotando
reflexiva sobre el cielo de París, cansada, enviando mensajes desde la zona
más fría, gélida, de la pasión. (Bolaño, 2010, p. 235)
Outro momento é quando a situação da fronteira que divide Chihuahua
de Sonora entra em fusão com a lembrança dos indígenas do século XIX,
cujos ex-votos enfeitam as paredes de uma eremita que os turistas visitam.
É também o caso da voz que parece vinda do além que Amalfitano ouve,
que traz à tona objetos culturais de tempos idos, e está misteriosamente
relacionada com os acontecimentos de Santa Teresa: a primeira vez que ele
escuta a voz, ao mesmo tempo, pensa que está ficando louco, sofre pesade-
los e toma conhecimento de novos cadáveres sendo achados em terrenos
abandonados. Numa situação parecida, o deprimido professor tem sonhos
nos quais ouve falar de um tipo de história decomposta ou desarmada e
volta a armar na voz de uma mulher com sotaque francês que se refere ao
azougue americano, o “triste espejo americano de la riqueza y la pobreza y
de las continuas metamorfosis inútiles, el espejo que navega y cuyas velas
son el dolor”(Bolaño, 2010, p. 264).
Se esses fatos e figuras vindas do passado entram em rivalidade e con-
flito com os fatos e figuras do presente, o que está em jogo parece ser uma
formulação da ideia de continuidade e, no limite, remetem também a uma
reflexão sobre a tradição, pensada como recorrência. A voz surge no auge
da crise pessoal de Amalfitano e, junto com a instalação performática no
quintal, decidem a sua volta ao entusiasmo de viver, depois de descartada
a possibilidade de ser a tal voz o produto de uma aparição fantasmal e de
resultarem infrutuosas as tentativas de achar outra explicação plausível. À
ideia inicial de tratar-se de uma alma em pena, se segue uma consideração
do conteúdo literal do discurso da voz que tinha se apresentado, em um
primeiro momento, como a voz do pai. Amalfitano cogita, ainda, numa
improvável telepatia mapuche, tema que já aparecera em outros romances
de Bolaño para concluir com um outro sonho. Todas as distorções da per-
cepção que aí se narram, ao redor do tema da voz incorpórea que a perso-
nagem ouve, não chegam a produzir uma leitura que poderia se equiparar
à que demanda, por exemplo, um texto afiliado ao realismo mágico ou ao
realismo maravilhoso, no qual, supostamente, as personagens vivem as
circunstâncias maravilhosas ou mágicas com naturalidade, e a surpresa, o

78
incômodo e a confusão ontológica correm por conta do leitor. Pelo con-
trário, no caso do romance de Bolaño, são as personagens as que ficam
comovidas e, mais do que isso, perturbadas pelas situações não previstas na
descrição racionalista do mundo e, com isso, fica o convite para optar por
outras possibilidades de leitura. Uma primeira estratégia, de tipo cognitiva,
estaria de algum modo formulada por Gorka, quando explica a Lola o que
ele entende sobre a poética do poeta de Mondragón: que o poeta transita
entre a ordem e a desordem verbal, trânsito esse que esconderia, com uma
estratégia que ele, o futuro biógrafo do poeta, acredita compreender mas
cujo fim ignora, uma desordem verbal que, se for experimentada, ainda que
só como espectadores de uma montagem teatral, colocaria o tal espectador
num grau de estremecimento que seria difícil de experimentar. Na forma
de leitura assim esboçada, na medida em que convoca uma gestualidade e
disposição que supera em muito o exercício intelectual de seguir com os
olhos um escrito – ainda que esse tipo de leitura mais convencional seja
também corporal, evidentemente –, não é difícil entender que se propõe
uma leitura de tipo performática, na qual estaria implicado o corpo como
um todo, na potência de seu poder experimental. Uma segunda estratégia
estaria ligada à percepção de uma forma diferente de referencialidade,
que toma como matéria-prima precisamente o intervalo produzido pela
distância que separa a experiência individual da coletiva, ainda que seja
coletiva de grupos restritos, uma espécie de coletivo singular, onde os fatos
provindos do entorno resultam estranhos por longínquos e não vividos e,
ainda, discrepantes com qualquer tentativa de compreensão ou de síntese.
Essas percepções, que seriam a maneira como os dados do real afetam
as personagens, funcionariam como dissonâncias e incongruências que
contrastam com a consistência e estabilidade do experimento estético, cuja
natureza parece ser a de criar constantemente sentidos e se dispor como uma
fonte possível de atribuições de qualquer tipo, sejam alegóricas, simbólicas
ou mais literais, pelo menos em aparência. No texto que corresponde a “La
parte de Amalfitano”, as vozes no mínimo estranhas que a personagem
ouve podem ser lidas como manifestações dissonantes e incongruentes que
surgem de tanta resistência abafada, do sofrimento e da apreensão que o
obsedam. Essa segunda estratégia de leitura revela-se mais como especu-
lação reflexiva do que como decifradora de tramas, ou desvendamento de
caracteres psicológicos, ou de enredos com lastro empírico.

79
Entre o momento da maior intensidade da crise e do desfecho insólito
com o sonho, em que aparece aquele que é nomeado como talvez o “último
filósofo do comunismo”, sonho despropositado que, no entanto, não afeta
a Amalfitano como o faria um pesadelo, porque se manifesta de modo
pacífico e ameno em seu estado de espírito e, ainda, lhe proporciona uma
sensação de bem-estar que o faz sentir-se leve como uma pena, segundo
afirma o narrador, e lhe oferece um suposto ensinamento sobre como fazer
com que a vida humana não desabe no lixo da história e se desfaça no vazio.
E o ensinamento consiste na revelação da equação que resume o conheci-
mento: vida é oferta + demanda + magia. Trata-se de uma afirmativa que,
por estar na boca de um ser da estrutura do sonho ainda que de existência
histórica comprovável, acrescenta mais uma ressonância bizarra, se isso
for possível, ao artifício narrativo com que conclui o segundo capítulo do
romance. À pergunta retórica sobre qual é a magia a que está se fazendo
referência, Yeltsin, ou quem quer que esteja falando no sonho, responde
que “magia es épica y también es sexo y bruma dionisíaca y juego” (Bolaño,
2010, p. 291). E, à continuação, explica o narrador, Yeltsin se sentava na
cratera ou na latrina e, como para aumentar o pathos da situação, mostrava
para Amalfitano os dedos que lhe faltavam, antes de desaparecer no buraco
vermelho, ainda cantando. Cantava em russo, acompanhando uma espécie
de dança. Cantava canções misturadas, baladas de música pop ou tangos,
melodias sobre álcool e amor, canções russas muito tristes, ou relatos ou as
queixas de um navegante do Volga que canta para a lua o triste destino dos
homens e seu destino de nascer e morrer. Note-se que, por mais que esse
desfecho possa parecer incoerente – do ponto de vista de quem tem em
mente estruturas mais convencionais de como organizar uma trama – o fato
é que essa cena final acaba tendo um peso considerável de ironia, ironia à
moda de Bolaño, diga-se de passagem, que tudo naturaliza e enuncia mais
ou menos no mesmo tom apático, onde não há lugar para melodrama – em
relação a todos os movimentos que dão o tom da narrativa desta “Parte”,
e dimensiona o curto espaço que se abre entre a privação da lucidez do
protagonista e o cenário insano da história.
“La parte de Amalfitano” deixa em aberto o desafio que emana de todo
pensamento sobre a experiência quando colocado em tensão com a série
literária, tendo em vista que esse nó se encontra no cerne da ação referencia-
lizante que torna a reavivar a pergunta pelo realismo e suas funções, a cog-
nitiva e a estética-experimental. Em “La parte de Amalfitano” é essa questão

80
que acena como um tema e ao mesmo tempo como tropo comparativo que
enfeixa a relação entre o texto e a circunstância referencial, entre a narração
de circunstâncias e a descrição de espaços, entre a dramatização de cenas e
a reflexão pura, postas as partes como figurações umas das outras. Bolaño
parece querer fundamentar suas estratégias retóricas com a permanente
remissão àquela herança setentista de revoluções políticas e artísticas que hoje
ocupa a melancólica posição de peça de museu e carrega o peso normativo
expresso com o adjetivo utópica, com o qual se esvaziaria toda ou grande
parte de sua produtividade. Mas, se todo aquele passado é mesmo passado,
se o legado das vanguardas não é mais que uma ruína, munição desativada
em mãos de preciosistas que nada têm a dizer, como é que a obra de Bolaño
passou a despertar tanto interesse na contemporaneidade? A fala de Lola, da
qual o leitor toma conhecimento pela leitura que Amalfitano faz das cartas
que ela envia, depois de ter abandonado a família para sair em busca do po-
eta, remanescente dos anos setenta, internado em um manicômio, está toda
tomada pela reflexão sobre a experiência da poesia como excesso, loucura e
anomalia contra o pano de fundo do cenário do mundo na sua normativi-
dade capitalista. Já nas palavras quase solipsistas de Amalfitano ganha luz
uma experiência da falta, como se, no limite, na carência de um discurso
aurático que transforme os episódios e incidentes mais ou menos sórdidos
da vida cotidiana em situações vivíveis, dentro da lógica da dramatização,
da espetacularização ou da simples encenação pela linguagem, a lógica da
experiência passasse a ser uma lógica da fuga e da negação obrigatórias
num marco de sobrevivência. À experiência real de Lola correspondem as
perturbações mais ou menos metafísicas e intelectuais de Amalfitano e à
vivência romantizada da fuga de Lola corresponderiam as circunstâncias
trágicas muito tangíveis da vida agônica de Amalfitano e sua filha na cidade
de Santa Teresa, destruída pela violência e desumanização. Esse quadrado
mágico é o que parece responder pela desarticulação e instabilidade a que
progride a narrativa de 2666, nesta parte que estou comentando. O curioso,
todavia, é que as obras de arte e o pensamento que atraem as experiências
do presente das personagens, e as únicas fontes de consolo e de garantia
pelo menos da luta pelo sentido, vêm de longe: o poeta dos anos setenta,
no caso de Lola; Duchamp, no caso de Amalfitano; são, como já foi dito,
peças de museu de diferente valor canônico, mas que acabam revelando
uma energia insólita, uma misteriosa eficácia para a vida, na medida em
que provocam ações que conduzem as duas personagens para além de si

81
mesmas, à experiências do coletivo singular que parecem prenunciar novas
formas políticas de agenciamento. No caso de Amalfitano, prevalece a força
da repetição, estratégia que tende a se constituir em padrão da própria
construção do romance de Bolaño, o que pode ser dito não só para 2666
como também para o conjunto de sua obra, que não hesita em introduzir
vozes – algumas reconhecíveis imediatamente para um leitor versado em
literatura, outras que parecem direcionadas a receptores mais familiarizados
com ícones da cultura popular da época que está sendo referencializada,
ícones que podem ser tanto do espetáculo, do esporte, da política ou das
artes. São sempre saltos bruscos nos quais o romance parece aumentar sua
porosidade e se deixar invadir pela série de forças antagônicas que compõem
a cena do real, não só pela descontinuidade repentina que instauram mas
também pelo que convocam, o que efetivamente dizem. Esse modus operandi
disruptivo de Bolaño, uma marca de autoria que me parece bastante clara,
revela-se como uma das estratégicas de uma política da literatura, política
como resistência a se incorporar ao sentimento do mundo dominante: nem
a tecnologia, nem um sistema de pensamento estruturante se apresentam
como modos possíveis de operação; a solidão de todas as personagens –
assim Amalfitano, Archimboldi, Rosa, os críticos, Fate – resiste à enganosa
configuração do mundo no qual se encontram e que demanda aprovação
e adesão. Em 2666, o mundo será Tlön, sim, sendo Tlön um lixão no qual
artistas isolados atiram e projetam objetos intoleráveis e enigmáticos com a
esperança de desintegrar o universo tal como conhecido e percebido como
realidade. O segredo do mundo é óbvio.

Referências bibliográficas

BOLAÑO, Roberto. 2666. Barcelona: Editorial Anagrama, 2010. Undécima


edición. Primera edición, 2004.
BORGES, Jorge Luis. Tlön, Uqbar, OrbisTertius. In: Obras completas.
Ficciones. El jardín de senderos que se bifurcan. Buenos Aires: Emecé
Editores, 1966. p. 213-220.
CHARTIER, Roger. À beira da falésia. A história entre certezas e inquietude.
Trad. Patricia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Editora Universidade/
UFRGS, 2002.

82
“POR QUE NÃO ASSIM, SE ASSIM FOI PRA MIM”:
Pasolini e Bolaño

Maria Betânia Amoroso

Para o Antonio

Parto de uma antiga questão, meio andarilha e até hoje pouco elaborada,
sobre literatura e revolução, literatura e guerra, não enquanto temas, mas
como modo crítico de conceber a literatura. Não existe um sentido e um
valor únicos, universais para esse termo – literatura – como sabemos e
também sabemos que ao longo do século XX, mais do que nunca, os auto-
res exercitaram-se em explicitar seus modos de concebê-la, fazendo assim
com que o ensaísmo passasse a elemento da composição formal. Os 50
anos do Golpe Militar no Brasil1 reacenderam o tema para mim, tornando
próximos escritores que, sem dúvida, são muito diferentes entre si, mas
se cruzaram na minha imaginação de leitora e na memória dos anos de
juventude: faço parte do grupo daqueles que viveram 21 anos sob ditadura.
Os autores escolhidos não são brasileiros: Pier Paolo Pasolini e Roberto
Bolaño; o primeiro italiano, nascido em 1922 e morto em 1975; o segundo,
chileno, nascido em 1953 e morto em 2003.
Não foram escolhidos por falarem do golpe, mas por terem uma enorme
familiaridade com a história contemporânea, da Itália e da América Latina
respectivamente, e por nascer daí suas literaturas.
Começo por Pasolini.
Em 1963, portanto um ano antes do golpe de Estado impetrado pelos
militares brasileiros, Pasolini lança o documentário Raiva (La Rabbia), feito
com material de arquivos de imagens, em grande parte extraídos do cine-

1. A versão preliminar deste texto foi apresentada em Roma, na Fondazione Basso, em 10


de dezembro de 2013 em mesa de mesmo tema.

83
jornal italiano Mundo livre (Mondo libero). As imagens mais numerosas são
as de guerras, revoluções e contrarrevoluções européias do século XX, mas
há também referências às guerras, revoluções e contrarrevoluções da África,
da Ásia e das Américas. E há ainda o jazz, Sofia Loren e Marilyn Monroe.
O filme parte de uma pergunta – “por que nossa vida é dominada pelo
descontentamento, pela angústia, pelo medo da guerra, pela guerra?” – e
dois nomes importantes da cultura italiana da época, Pier Paolo Pasolini
e Giovannino Guareschi, respondem fazendo um filme.
Embora o documentário seja em si algo excepcional, o que interessa
aqui destacar são os primeiros parágrafos do tratamento, essa espécie de
introdução ao filme escrito por Pasolini.
Partindo da pergunta lançada, e se concentrando não no tempo da
guerra, mas no momento a partir do seu fim, lança outra pergunta:
O que aconteceu no mundo, depois da guerra e do fim da guerra? A normalidade.
Pois é, a normalidade. No estado de normalidade não se olha ao redor: tudo
ao redor se apresenta como normal, estando ausentes a excitação e a emoção
dos anos de urgência. O homem tende a se adormentar na sua normalidade,
esquecendo-se de refletir, perdendo o hábito de se julgar/observar, não sabe
mais se perguntar quem ele é.
Eis então que é criado, artificialmente, o estado de emergência e são os poetas
quem pensam em criá-lo. Os poetas, esses eternos indignados, esses campeões
da raiva intelectual, da fúria filosófica. (Pasolini, 2001, p. 407)
As duas expressões remetem ao que sempre soou como o mais legiti-
mamente pasoliniano: “raiva intelectual” e “fúria filosófica”. Corroboram a
convicção de que as guerras – as chamadas “grandes”, parte integrantes da
experiência pessoal do escritor italiano – acabaram, mas o tempo que as
segue instaura uma vida apagada, ou melhor, que espera apagar da memória
os tempos de guerra. Ao lado disso, diz Pasolini, cabe à literatura – e aqui
surge a sua definição de literatura – reinstaurar o clima de urgência, de
desassossego, de agitação, que a vida na sua normalidade quer esquecer.
Essas considerações, a meu ver, não são somente a introdução a La
Rabbia; definem o que é literatura (as artes) para Pasolini. Literatura como
estado de guerra constante, artificialmente provocado pelo poeta.
Se passarmos os olhos por sua extensa obra veremos que nela há sempre
intervenção poética e política sobre o mundo: aqueles primeiros poemas

84
numa língua escrita inventada por ele, o friulano/casarsese escrito, dão
existência a uma comunidade, a dos falantes do dialeto, é um ato de in-
tervenção, intervenção poética-política; o longo estudo que faz da poesia
dialetal e popular italiana reorganizando, reinterpretando, repropondo os
lugares ocupados por esses poetas na historiografia literária italiana; a en-
xurrada de intervenções que desperta com sua conferência “Novas questões
linguísticas”, abrindo a polêmica sobre a mudança da língua italiana, que
perdera sua expressividade, sendo substituída por uma língua tecnologizada
ou então a operação lírica intervencionista de reescrever nos anos 70 poemas
anteriores, quando a juventude lhe inspirara um tom elegíaco, bucólico,
mas, ao deixar de reconhecer essa juventude, intervém e reescreve o livro,
num tom de desencanto e apreensão, ou ainda, a partir dos anos 60, seus
artigos para jornais que são libelos políticos, escritos sempre a partir de um
clima de apreensão quanto ao presente. São gestos políticos, frutos de uma
visão do escrever (ou do filmar) que não aceita a adequação aos tempos de
normalidade. O famoso episódio da abjura dos filmes conhecidos como
os da Trilogia da Vida também indica o mesmo movimento: os corpos
de jovens populares exaltados no filme foram descobertos pela cultura de
massa que também os passa a exaltar; é hora de rejeitá-los. Estão assim
normatizados ou administrados. O poeta lança sua abjura e compõe um
filme, Salò, onde esses corpos são torturados, massacrados.
A palavra “raiva” adquire assim um valor programático na sua poética.
Na década de 60, aliás, a palavra rabbia ecoa em todo Pasolini.
Em abril de 1960, publica Poesie incivili e, entre estas, um poema com
o mesmo título do documentário, sem que se confunda com o texto lido
no filme.
(...) Com quase 40 anos
me encontro em relação à raiva, como um jovem
que não sabe sobre si mesmo nada de novo
e luta obstinadamente contra o velho mundo
E, como jovem, sem piedade
ou pudor, não escondo
este meu estado: não terei jamais paz, jamais. (Pasolini, 2003, p. 1053)
A raiva seria, por um lado, uma prerrogativa da juventude, mas, por
outro, o modo do poeta viver fora da normalidade, em estado permanen-
te de exceção: “não ter jamais paz” não é somente um estado do espírito

85
romântico evocado no poema, mas uma espécie de plataforma, de sentido
para ser poeta, artista, escritor. Não ter paz e escrever no clima de guerra.
Esse é o programa.
É isso que acabo por concluir depois de assistir ao documentário: o
mundo contemporâneo é uma eterna guerra, uma única e grande catás-
trofe, um estado de exceção, como dirá Agamben depois de Pasolini. Ou
a literatura é capaz de traduzir isso ou não é literatura.
Mas como efetivamente Pasolini consegue criar esse estado de exceção
em La rabbia? Ao mesmo tempo em que as imagens se sucedem, há três
vozes que se alternam e são o achado estilístico de Pasolini. Há a voz da
prosa – a voz que abre o filme e que pronuncia a frase “por que nossa vida
é dominada pelo descontentamento, pela angústia, pelo medo da guerra,
pela guerra?”. Essa é a voz da crítica, da razão. Pasolini anota que deva ser
uma voz neutra, quase como que paralisada pela gravidade dos fatos que
as imagens comentam, sem procurar se sobrepor a eles. Essa voz se reveza
e contrasta com a voz da poesia, doce, elegíaca, lírica, dolorosa. Há ainda a
voz oficial, aquela do tom neutro, normal dos cine e telejornais que conhe-
cemos de longa data, porque foram e são as mesmas em todo o mundo. O
contraste que os comentários da voz da prosa e da poesia estabelecem com
a voz oficial, tendo ao fundo as imagens de rostos contraídos, tristes, em
lágrimas, ao lado de corpos que dançam, que desfilam em passeatas, com
os braços levantados e com as bocas abertas em gritos, criam algo carac-
teristicamente pasoliniano e que vem sendo nomeado às vezes “dialética”,
ou como “predominância do oximoro como recurso poético e retórico”,
mas que é mais forte do que isso porque faz coincidir o eterno mundo
em guerra, o contemporâneo, com a literatura. Não há outra poesia. A
poesia – e aqui a distinção entre os gêneros e as linguagens é totalmente
sem importância – é a luta contra a ideia de normalidade. O choque das
imagens que transpiram violência e dor, alegria e surpresa, contrastadas
ainda pelo movimento ensaístico dos três tons de vozes que tornam tão
forte o filme de Pasolini.
Há guerras velhas e guerras novas, mas há sempre guerras. Há guerras
que os pais contam para os filhos; há guerras que os filhos protagonizam e
os pais não as entendem tão bem assim. É a partir dessa visão geracional
que estabeleci a relação entre Pasolini e Bolaño. As guerras de Pasolini
soam como guerra dos pais e não somente por uma questão cronológica.
Há outro ponto envolvido nessa percepção, o de uma origem geográfica e

86
historicamente marcada. Pasolini é o pai, é a Itália e a Europa. Ele próprio
aponta para um outro horizonte quando a voz da poesia declama em La
Rabbia:
Explode um novo problema no mundo. Se chama Cor
Se chama cor, a nova extensão do mundo. (Pasolini, 2001, p. 371)2
As imagens que seguem são de meninos árabes, fotos de Gandhi menino,
do assassinato de Gandhi, de Lumumba, fotos de homens de pele escura
de várias partes do mundo não ocidental que guerreiam, comemoram
vitórias, choram o fracasso e a morte. Mais para frente, a mesma voz da
poesia celebra a revolução em Cuba e anuncia a esperada contrarrevolução;
o mesmo se dá na África.
A entrada em cena de Cuba, da África, dos homens e mulheres ne-
gros, pardos, amarelos, vermelhos, não brancos enfim, expande o mundo
de Pasolini na década de 60, ele que nasceu na segunda década do século
XX, na Itália, na Europa. Fala como pai. Um pai esperançoso de que a re-
volução seja feita pelos novos e humildes personagens do então chamado
Terceiro Mundo, no qual se insere a América Latina e, dentro dela, o Brasil.
“Se chama cor a nova extensão do mundo” é a entrada em cena das novas
revoluções feitas por não europeus. O tom é profético ou visionário como
o faria um pai idealista, alguém que já viu muito, mas revela a surpresa
diante do novo cenário e aposta nessas revoluções.
O golpe de 64 que marcou nossa juventude é a minha experiência de
contrarrevolução, antecedida pela revolução, como guerra, enfim, que não
termina nunca. Foi através dela que soube o que é viver na espera de que
a violência acabe e o medo desapareça. Com certeza as imagens do que
antecedeu o golpe ocorrido em 1964 no Brasil poderiam construir mais
uma estrofe do poema/filme La rabbia. Ou imagens do próprio golpe, como
as da contrarrevolução.
Já Roberto Bolaño é filho de outra geração. A minha geração. E se
contrapõe aos pais. Nascido em 1953, também passou pela experiência
da revolução e da contrarrevolução, independente do fato de ter estado
ou não no Chile no momento do golpe dos militares contra Allende. A
experiência chilena, sem dúvida, marcou sua vida e sua literatura para
sempre. Há nele a mesma raiva intelectual, a fúria filosófica, mas não há
nenhuma esperança sobre a realização de novas revoluções pelos homens

2. Tradução da autora.

87
de cor. Não há salvaguardas para partidos. É como se tudo o que escreve
girasse justamente ao redor de uma única questão: como é o mundo – e a
literatura – quando parece já não haver crença possível naquelas revoluções
que Pasolini ainda acreditava. Escreve quando os corpos já tinham sido
contados e a história sanguinolenta da América Latina é assumida como
a nossa história.
Suas narrativas se concentram sobre poetas, jovens, pobres, drogados e
desgarrados, todos obcecadamente dedicados à literatura. Há um combate
furioso contra tudo aquilo que significa a “normalidade”, principalmente
na literatura: os poetas que se projetam com auras e louros, a celebração da
literatura como vida em sociedade ou a redução da literatura a uma prática
acadêmica e anódina. Quando seus personagens poetas não são jovens –
também para ele a raiva é uma prerrogativa da juventude e ser furioso é
o que define o poeta – são derrotados, vivendo em condições miseráveis
ou quase miseráveis. E são andarilhos. Viajam muito, mudam de país, de
cidade, de casa. E sempre vivem precariamente. O que se elenca não é o
assunto de Bolaño, é sua definição de literatura, o gesto de dar as costas
para o mundo na sua normalidade e fazer da literatura sua razão de ser, de
modo que as sombras projetadas por aqueles corpos mortos e já contados
se façam notar. Bolaño escreve como se tivesse dando um ultimato, ou
melhor, sua literatura elege o ultimato como estilo.
Para aqueles da mesma geração de Bolaño, como eu, não é difícil lê-lo
em referência ao mundo extremamente degradado, humilhado. Presumo que
Bolaño esteja nos lembrando a todo momento das revoluções na América
Latina, que depois de derrotadas, tiveram sobre suas ruínas a construção
de uma vida que cinicamente desconhece a guerra que sempre houve.
Tudo o que escreve remete para a ideia da violência como palavra que
provoca sentimentos contraditórios e ricos: lê-se literatura e, ao mesmo
tempo, debate-se entre tristezas e alegrias que permanecem na memória
dos latino-americanos dessa mesma geração.
Ler Bolaño é sofrer o impacto de uma escrita que não faz concessões
e que imita na sua forma o cinismo dos tempos de normalidade citados
por Pasolini. Ele próprio, entretanto, não é cínico como nunca foi cínico
Pasolini (nem mesmo quando tentava sê-lo): Bolaño imita o mundo como
somente a grande literatura o faz, não se confundindo, porém, com ele.
O início do conto “O Olho Silva” diz:

88
Vejam como são as coisas: Maurício Silva, vulgo o Olho, sempre tentou es-
capar da violência, mesmo com o risco de ser considerado covarde, mas da
violência, da verdadeira violência, não se pode escapar, pelo menos não nós,
os nascidos na América Latina na década de cinquenta, os que rondávamos
os vinte anos quando morreu Salvador Allende. (Bolaño, 2008, p. 11)
Esses mesmos 20 anos assombram Bolaño – e através dele, a mim tam-
bém –, reaparecendo em seu autorretrato que funde o ano de 1953, ano de
seu nascimento, com o de 1973, ano do golpe militar chileno. Desenha-se
assim – e eu o acompanho – o mito fundante existencial e literário, o ponto
zero de nossas crônicas pessoais que são político-literárias: Stálin e Dylan
Thomas bebem até cair num boteco da Cidade do México: é a metáfora
perfeita da experiência dos vinte anos daqueles que nasceram em 50 (acres-
cida pela sombra do outro Dylan que também entra a compor o retrato).
Nasci em 1953, o ano em que morreram Stálin e Dylan Thomas. Em 1973,
estive oito dias detido pelos militares golpistas do meu país e no ginásio no
qual mantinham os presos políticos encontrei uma revista inglesa com uma
reportagem fotográfica da casa de Dylan Thomas no País de Gales. Eu acha-
va que Dylan Thomas tinha morrido pobre e a casa me pareceu magnífica,
quase como uma casa encantada no meio de um bosque. Não havia nenhu-
ma reportagem sobre Stálin. Mas naquela noite sonhei com Stálin e Dylan
Thomas: eles estavam num bar da Cidade do México, sentados a uma mesa
pequena e redonda, uma mesa própria para uma queda-de-braço, mas eles
não disputavam uma queda-de-braço e sim competiam qual deles aguentava
beber mais. (Bolaño, 2004, p. 121-122)3
O espaço sonhado mistura México e Chile, o boteco do DF com o estádio
feito prisão; as datas também se misturam num ponto de encontro que é
uma definição de um lugar. O amálgama conflui nesses vinte anos: além de
marco lítero-biográfico de origem é auto-apresentação pública de Bolaño
escritor. Stálin faz-se imagem, exata e irônica, do sentido adquirido para a
vida da e na política no século XX; é ele quem desfaz o sonho e instaura o
terror.4 Dylan é mais um dos poetas citados, em enorme abundância, nos
livros de Bolaño e, mais uma vez de modo irônico, este se surpreende por

3. Tradução do trecho de Cassiano Elek Machado.


4. Stálin (talvez pudéssemos dizer o mesmo Stálin?) foi personagem de Pasolini, que
pretendia instalá-lo em um dos círculos dantescos a ser recriado por ele em um livro,
não publicado, intitulado Mortaccia. Bolaño, por sua vez, naquela espécie de Manual de

89
encontrar um poeta importante que não viveu modestamente, mas, sem
dúvida, foi bêbado e autodestrutivo – traço encarnado pela literatura, desde
o romantismo, a anormalidade necessária que os caracterizaria enquanto
poetas. Bolaño herda essas mortes, forças que tramam seu nascimento lite-
rário. A imagem de Stálin e Dylan que disputam uma viril queda-de-braço,
trocada por outra, a de ambos que competem “qual deles aguenta beber
mais”, metaforiza esse lugar que é o da literatura, o encontro-confronto
como resistência desesperada (alcoólica).
A centralidade da política e da literatura, feitas uma coisa só, razão
crítica, poética e existencial, se manifesta com límpida clareza e precisão
em alguns momentos dessas obras. Ou, ao menos, é assim que as leio. E,
desnecessário acrescentar, comovem como testemunhos, como espelhos
que refletem o que envelhece mas não desaparece. Em versos que foram
publicados em 1964 e compõem uma seção intitulada “Uma desesperada
vitalidade” Pasolini, mais uma vez, faz sua abjuração5:
(...)
Grito, aos céus onde se embalava meu berço:
“NENHUM DOS PROBLEMAS DOS ANOS CINQUENTA
ME INTERESSA MAIS! TRAIO OS LÍVIDOS
MORALISTAS QUE FIZERAM DO SOCIALISMO UM CATOLICISMO
TÃO ENTEDIANTE QUANTO! HA, HA, HA, A PROVÍNCIA ENGAJADA!
HA, HA, HA, A DISPUTA EM SER UM POETA MAIS RACIONAL DO
QUE O OUTRO!
A DROGA PARA PROFESSORZINHOS DA IDEOLOGIA!
ABJURO O RIDÍCULO DECÊNIO!” (Pasolini, 2001, p. 1174) 6
A abjura se faz discurso. Mais uma vez é o personagem-poeta de Bolaño,
ao se apresentar, que me dá a mais feliz e completa síntese daquilo que
procuro dizer neste texto:
[...] em grande medida tudo o que escrevi é uma carta de amor ou de despedida
à minha própria geração, os que nascemos na década de cinquenta e os que
escolhemos num momento dado o exercício da milícia, neste caso seria mais

zoologia fantástica que é seu “Notas de uma aula de literatura contemporânea: o papel
do poeta” classifica Pasolini como “el más atacado de los nervios”.
5. São tão presentes as abjurações do poeta e cineasta ao longo de sua obra que levam a
pensá-las como mais um “gênero” que Pasolini explora.
6. Tradução da autora.

90
correto dizer da militância, e entregamos o pouco que tínhamos, o muito que
tínhamos, que era nossa juventude, a uma causa que acreditávamos a mais
generosa das causas do mundo e que de certa forma o era, mas que na rea-
lidade não o era. Nem é preciso dizer que lutamos com unhas e dentes, mas
tivemos chefes corruptos, líderes covardes, um aparato de propaganda que
era pior que um leprosário, lutamos por partidos que, se tivessem vencido,
teriam nos enviado de imediato a um campo de trabalhos forçados, lutamos
e pusemos toda nossa generosidade num ideal que fazia mais de cinquenta
anos já estava morto, e alguns de nós o sabíamos, e como não o saberíamos se
haviamos lido Trótski ou éramos trotskistas, mas do mesmo modo o fizemos,
porque fomos estúpidos e generosos, como são os jovens, que tudo entregam
e não pedem nada em troca, e agora desses jovens já não resta nada, os que
morreram na Bolívia, morreram na Argentina ou no Peru, e os que não ma-
tariam ali matariam-nos depois na Nicarágua, na Colômbia, em El Salvador.
Toda a América Latina está semeada com os ossos destes jovens esquecidos.
(Bolaño, 2004, p. 37-38)7
Bolaño e Pasolini se aproximam, ao contar, com raiva e fúria, o drama
de uma geração que é geração justamente por esse destino inexorável.

Referências bibliográficas

BOLAÑO, Roberto. Discurso de Caracas. In: Entre paréntesis. Ensayos,


artículos y discursos (1998-2003). Barcelona: Anagrama, 2004.
_________. O olho Silva. In: Putas assassinas. Trad. Eduardo Brandão. São
Paulo: Companhia das Letras, 2008.
PASOLINI, Pier Paolo. Pasolini per il cinema (a cura di Walter Siti e Franco
Zabagli) v. I, Milano: Mondadori, 2001.
_________. Tutte le poesie (a cura di Walter Siti) v.I Milano: Mondadori, 2003.

7. Tradução de Eduardo Sterzi.

91
NOVOS TREMORES FORMAIS
(AS AVENTURAS DA FORMA)
TRÊS QUADROS EM UM QUARTO:
a poesia lança um olhar para a cena do crime

Tiago Guilherme Pinheiro

“A única descrição satisfatória, que é também uma análise do mobiliário da


segunda metade do século XIX, é-nos fornecida por certo tipo de romance
policial em cujo centro se encontra o terror provocado pela casa. A disposição
dos móveis é ao mesmo tempo a planta topográfica das armadilhas mortais,
e a sequência das salas indica à vítima qual é o caminho da fuga. O fato de
esse tipo de romance policial ter começado com Poe – portanto, numa época
em que tais casas ainda não existiam – em nada invalida essa constatação.”
(Walter Benjamin, Rua de mão única – Infância berlinense: 1900)

Ao retomar as leituras e os depoimentos acumulados em torno de Roberto


Bolaño, tais como os encontrados em La escritura como tauromaquia (2002)
ou El hijo de Míster Playa (2012), uma tendência acaba por se destacar
dentre as posturas adotadas diante dessa obra. Trata-se de um movimento
que se inicia com uma demonstração apaixonada pelo autor, para logo em
seguida expor certas ressalvas, apontando alguns de seus momentos me-
nos fortuitos. Assim, por vezes, se objeta sobre as diatribes contra outros
autores, muito presentes nos artigos e ensaios, como se tais conflitos não
devessem ser levados a sério; por outras, escalonam-se seus textos em fases
de maturação, esforçando-se para ver as marcas de indecisão e de prefigu-
ração em suas primeiras tentativas no campo da prosa, como Consejos de
un discípulo de Morrison a un fanático de Joyce e El Tercer Reich; ou então se
diminui a importância de seus poemas, resultados de uma experimentação
“juvenil”, cuja redenção seria a de servir como tema para romances futuros,
dos quais, entretanto, seriam pudicamente suprimidos. Chega-se a repensar
inclusive o tamanho excessivo de Los detectives salvajes e 2666, que poderiam
ter páginas e páginas suprimidas. Essas admoestações, ironicamente, não

95
deixam de repetir, ainda que em menor escala, os ataques mais vulgarmente
desferidos contra Bolaño: a verborragia e a imaturidade. É notável que o
discurso apologético, tão frequentemente dirigido, não consiga se formular
irrestritamente, como se houvesse uma dificuldade inerente em aceitar essa
produção em toda a sua extensão, ainda mais levando em consideração tudo
aquilo que ela concentra, em termos de tempo (a maior parte publicada
num período de dez anos) e de material impresso (duas dezenas de livros,
alguns com um tamanho superior a 600 páginas).
Esse impulso seletivo talvez seja inevitável num primeiro momento, no
qual o leitor especula uma maneira de lidar com um corpus tão extenso (além
de tudo, povoado por inumeráveis outros corpos), funcionando quase como
um mecanismo de defesa. Entretanto, talvez seja mais interessante adotar
outra perspectiva, perguntando-nos que tipo de problemática impulsiona
uma produção a se expandir a tal ponto, encarando assim sua dimensão
maciça e massiva como um elemento formal significativo. Para tanto, este
artigo pretende buscar uma breve imagem, na qual se dispõem esses livros
como quadros em um quarto, ou como rastros de sangue na cena de um
crime, cada um em relação aos outros, ao invés de simplesmente alinhá-los
ou hierarquizá-los. Essa visão fornecida desde os textos de Bolaño não nos
proporciona um modo menos violento de organizá-los, mas estampa nas
paredes desse quarto a violência que essa obra descreve, em meio a qual
ela se encontra, procurando estratégias de enfrentá-la.
Parece-me que, a esta altura do debate, tomar a poesia como pon-
to de partida é algo incontornável, pois essa faceta parece ser a que gera
maiores constrangimentos. Assim, existe uma tendência a deslegitimá-la
que se escora sobre certa leitura do lugar fantasmal que o infrarealismo/
real-visceralismo possui em Los detectives salvajes, conjugada com uma
lenda biográfica de que o autor teria simplesmente abandonado o verso
pelo mercado da prosa, gerando uma profusão de julgamentos que vão
desde a versão sobre o poeta fracassado que se salva pela narrativa (Ayala,
2008) chegando inclusive a proporções de ruptura epocal, no qual o próprio
Bolaño seria um divisor de águas, instaurando um período “pós-poético”,
realizando uma grande despedida melancólica do verso (Lemus, 2011). É
verdade que essas discussões ganham uma dimensão compreensiva e crítica
quando levamos em consideração o panorama contra o qual elas se dirigem,
isto é, os campos literários chileno e mexicano. Neles, a própria noção de
“poesia” acaba implicitamente se confundindo com a de vanguarda e insti-

96
tuição literária, e, portanto, com as figuras de Pablo Neruda e Octavio Paz
(e sucessores), algo que sem dúvida se apresenta nas narrativas de Bolaño.
Contudo, não creio que essa metonímia ou a polarização entre romance e
poesia, para o prejuízo desta última, deem conta do que se passa com esse
autor. Deveríamos levar a finco a declaração, tão repetida, de que não há
lugar seguro, que “en literatura es casi imposible mantenerse a salvo, todo
mancha” (Bolaño, 2008, p. 92), como bússola de um direcionamento ético.
Neste caso específico, parece-me, estaria bem interpretá-la como um outro
modo de dizer que não há, mesmo em função de uma dada situação, uma
modalidade privilegiada de produção, garantidora de antemão da capaci-
dade estética e crítica de uma obra, algo que demonstram continuamente
os personagens de Bolaño, já que o infame bestiário literário lança mão dos
mais variados recursos materiais e gêneros artísticos, sendo que essa varie-
dade, essa capacidade de se apropriar seja do que for é onde reside o horror.
Portanto, no que se refere à relação entre prosa e poesia desse autor,
trata-se, sobretudo, de ver uma tensão, e não o inquérito pela forma mais
vantajosa.
Apesar de guardar em si um grande potencial de tópicos para discus-
são, gostaria de abordar essa poesia a partir de uma pequena “anomalia”
que se instaura em determinado ponto de Los perros románticos, presente,
a princípio, unicamente em sua primeira edição, datada de 1993, publicada
pela Fundación Social y Cultural Kutxa, no país Basco. Nela, além de um
número menor de poemas, há uma divisão por seções, organizando os
poemas em uma sequência distinta daquela empregada posteriormente,
que se baseia num arquivo de computador pertencente aos espólios do
escritor. Uma dessas seções é o foco do nosso interesse: aquela chamada
“Detectives”. 1 Lembremos um de seus poemas:

OS DETECTIVES HELADOS
Soñé con detectives helados, detectives latinoamericanos
que intentaban mantener los ojos abiertos
en medio del sueño.
Soñé con crímenes horribles
Y con tipos cuidadosos
que procuraban no pisar los charcos de sangre

1. Os textos que formam essa seção, em sua sequência original, são: “Soñé com detectives...”,
“Los detectives”, “Los detectives helados”, “Fragmentos”.

97
y al mismo tiempo abarcar con una sola mirada
el escenario del crimen.
Soñé con detectives perdidos
en el espejo convexo de los Arnolfini:
nuestra época, nuestras perspectivas,
nuestros modelos del Espanto. (Bolaño, 1993, p. 35)
Aqui se apresentam alguns dos aspectos mais recorrentes dessa pro-
dução: a cadência de acontecimentos interligados como forma de organi-
zação, inclusive rítmica, do poema; a centralidade do encontro (seja com
uma cena, seja com uma pessoa) que depois deságua em toda uma época
ou uma multidão (que pode ser de policiais, poetas, hordas de escritores,
bando de jovens, etc); a dimensão onírica, instauradora do discurso poético,
através de uma fórmula (com possíveis variantes) que abre diversos textos:
“Soñé con...”. 2 A tal ponto que a estruturação do seu poema se insinua como
trama narrativa que, retrospectivamente, não podemos deixar de ver nele
protótipos para romances e contos.
Muitas vezes isso transcende o campo da mera intuição: não são raros
os casos de personagens (“Lume”, “El gusano”), imagens (“Mi poesia”, “El
ultimo salvaje”, “Horda”, vários momentos de Amberes) ou tramas (a des-
tes poemas policiais, é claro) que surgem primeiro sob a forma de poema
para depois migrar para a prosa, às vezes com muitos anos de diferença. E
como se tudo isso não bastasse, o deslocamento de certa tipologia literá-
ria – quase que exclusivamente aplicada a contos e romances – para esse
grupo de poemas apenas reforça essa sensação de que sua poesia estaria na
soleira de suas peças em prosa. Entretanto, deveríamos levar mais a sério
essa estranha junção – “poesia policial” – para além do apelo que ela possui
enquanto rótulo, algo que Pedro Donoso, numa entrevista realizada em

2. “El burro” e “Un paseo por la literatura”, para citar apenas dois exemplos. Poderíamos
ainda agregar certos momentos centrais dos romances, como o sonho do naufrágio em
Estrella distante. Por esse elemento, e outros aqui apontados (como o encontro), também
se insinua outra dimensão importante da poesia de Bolaño e que repercutirá em toda a
sua prosa: seu vínculo com o surrealismo. Ainda que não haja espaço para desenvolver
esse tópico, não podemos deixar de assinalar essa dimensão, já que ela se encontra disse-
minada, inclusive aqui. Para uma reflexão sobre a importância da recuperação feita por
Bolaño dessa tradição poética que percorre a história literária latino-americana, e que hoje
se encontra um tanto diminuída por parte da crítica, confira Atlas portátil de América
Latina de Graciela Speranza (2012), principalmente o capítulo que se intitula justamente
“Roberto Bolãno y el surrealismo”.

98
Madrid para a Arte y Letras, em fevereiro de 2003, não deixará de notar e
aproveitar, querendo alçar Bolaño à posição de inventor de um novo gênero,
sem, contudo, conseguir do autor o respaldo desejado.
Podemos encontrar alguma justificativa para esse desejo de ver aqui
certo ineditismo. Salvo pouquíssimas exceções – me lembro apenas de
algumas experimentações da vanguarda soviética, realizadas por Aleksei
Krutchônykh (1886-1968), ou ainda de parte significativa da obra de Sebastião
Uchoa Leite3 –, a noção de “policial” raramente se aplica à poesia. Isso talvez
se deva ao fato de que este gênero surge concomitantemente, quase como
uma contrapartida da prosa, num esforço que moverá parte significativa da
poesia desde o final do século XIX, repercutindo por todo o XX, ao buscar
excluir qualquer elemento narrativo do poema: ambas compartilham assim,
exemplarmente, aquela temporalidade que chamamos de modernidade.4
Essa tentativa empenhada, tornada projeto para um processo de escrita,
está presente em um grande número de afirmações notórias de Charles
Baudelaire, Stéphane Mallarmé, Paul Valéry e tantos outros depois.5
E, no entanto, tanto o gênero policial quanto o processo de destituição
de qualquer traço narrativo da poesia já se entrecruzam, paradoxalmente,
no autor que funciona como baliza para essas discussões: Edgar Allan Poe,
precursor dessa série heterogênea de poetas franceses, mas também de

3. A similitude entre Uchoa Leite e Bolãno não termina no entrecruzamento do policial


com a poesia. A profunda reflexão sobre o aspecto especular e especulativo do poema,
o uso dos duplos, a evocação do cinema como estratégia formal, além de toda uma ala
hospitalar da produção poética – basta comparar “Dentro e fora da UTI” de A regra secreta
com “Mi vida en los tubos de supervivencia” de La universidad desconocida – insinuam
uma série de relações possíveis entre esses dois autores, falecidos em 2003. Para uma
leitura desses aspectos na obra do poeta brasileiro, veja o pequeno volume a ele dedicado
na coleção Ciranda da Poesia, assinada por Franklin Alves Dassie (2010).
4. Já Pere Gimferrer, na apresentação às edições posteriores de Los perros românticos,
publicadas pela Lume (2000) e depois pela Acantillado (2003), esboçará uma percepção
similar na qual vê na “reconquista de um território” por Bolaño – o do “poema narrativo
de aparência coloquial” – uma estratégia para reativar uma série de conflitos que perpassa
a modernidade.
5. “A poesia pura [...] deve ser liberada de seus elementos prosaicos [...] isto é, tudo aquilo
que pode ser, sem prejuízo, dito em prosa”, como afirma Paul Valéry (1926, p. 66) em
uma de suas entrevistas a Fréderic Lefèvre. Ou ainda, no prefácio a Um lance de dados
de Mallarmé, na tradução de Haroldo de Campos (1991): “Tudo se passa, para resumir,
em hipótese; evita-se o relato” (p. 151). Essas afirmações e outras ganharão um estatuto
paradigmático sobre a poesia do século XX, a partir talvez da dimensão um tanto crista-
lizada que lhes é conferida por Hugo Friedrich em A estrutura da lírica moderna, onde
assumiria um lugar privilegiado no imaginário geral da crítica literária.

99
uma outra, com a qual se poderia comparar ou contrapor, a de narradores
latino-americanos. É curioso como “A filosofia da composição” – um texto
que se detém sobre a especificidade do processo de elaboração do poema
“O corvo” – tenha, nessas duas linhas de apropriação e interpretação, re-
sultados tão alheios a ele e entre si. A primeira detém-se principalmente
sobre a proposta de estabelecer uma psicologia da construção poética, des-
locando-a do palco da recitação pública para um atributo a ser desenvolvido
no espírito humano. Já a outra transfere, quase sempre sem mediações, o
debate de tais princípios para o campo da prosa (principalmente o conto,
mas depois isso se alarga para todas as vertentes), como modo de estruturar
o ritmo da narrativa em torno de um segredo, tal como o fizeram distinta-
mente Alfonso Reyes, Horacio Quiroga, Jorge Luis Borges, Júlio Cortázar
e outros.6 Assim, a partir dos mesmos preceitos desenvolvidos no ensaio
de Poe, surgiram elementos para o desenvolvimento de duas perspectivas
tradicionalmente entendidas como antitéticas entre si.7
E, já sob os ecos dessas duas vertentes, não será outro o autor que
Bolaño irá evocar quando interrogado sobre esse gênero especulativo (em
ambos os sentidos) que seria a “poesia policial”. Vejamos, após tanto adiar,
qual é a resposta que o autor tem ao se defrontar com esse termo:
– A veces, leyendo algunos de tus poemas tengo la impresión de que eres el
primer autor de “poesía policiaca”. ¿Tú qué piensas?
– Yo creo que el primer autor de poesía policiaca fue Poe, no en sus poemas,
sino en sus cuentos, que poseen más densidad poética que sus poemas. La
verdad es que lo que solemos llamar ‘policiaco’ recorre toda la literatura,
desde sus orígenes, y no es otra cosa que la búsqueda de la imagen del enig-
ma y la posibilidad subsiguiente de descifrar ese enigma. La poesía religiosa
es poesía policiaca, la poesía metafísica, la poesía simbolista. En realidad,
lo policiaco, como especificidad, no existe. Llamamos literatura policiaca a

6. Alguns exemplos mais imediatos de ensaios que exibem esse deslizamento do ensaio de
Poe para o campo do conto e da narrativa: “Decálogo del perfecto cuentista” de Horacio
Quiroga, “El arte narrativo y la magia” de Borges e “Algunos aspectos sobre el cuento”
de Cortázar.
7. Recordemos alguns tópicos centrais levantados pelo escritor norte-americano, e que
volta e meia reaparecerão em nossa discussão: 1) a determinação do efeito que se quer
causar por meios racionais de composição; 2) a extensão do texto, que deve ser breve, para
que se possa ler de uma só vez; 3) a produção específica de elementos estruturais (rimas,
estribilhos, assonâncias, imagens, etc.) que permitam intensificar o efeito proposto pelo
poema e retê-lo na memória de quem o lê.

100
aquellos textos que nacen con Poe y siguen con Conan Doyle y que llegan
hasta Hammett y Chandler y ahora el magnífico Ellroy, pasando por autores
tan dispares como Borges o Dürrenmatt o Robbe-Grillet, pero en realidad lo
hacemos por comodidad, la comodidad de lo etiquetado. Que tampoco está
mal. (Donoso, 2003)
Num primeiro momento, a reação lógica a essa afirmação seria a de
abandonar nosso caminho investigativo, pois este estaria assentado sob
um falso problema, uma questão que Bolaño desloca a ponto de apagá-la.
Contudo, se o termo policial não contém qualquer especificidade em si, e
que não está mal mantê-lo para sua poesia (o próprio Bolaño não o nega),
talvez possamos concluir que, para haver alguma singularidade neste caso,
devemos entender tal articulação conflituosa em outro nível, para além da
tipologia dos gêneros. Portanto, para que a definição de “poesia policial”
adquira dignidade crítica, teríamos que imaginá-la para além do evidente,
isto é, da simples transposição de imagens típicas do fabulário detetivesco,
reapresentadas pelo suporte dos versos. Ou ainda, devemos pensar em um
parâmetro diferente do segredo ou para o segredo nesta poesia.
Ao reafirmar o gênero policial como sendo mais um modo de dis-
posição entre texto e leitor, de armação do ato de leitura, do que uma
série de elementos e artifícios narrativos, Bolaño acaba enveredando pela
vertente latino-americana das leituras de Poe, ecoando Borges e Ricardo
Piglia. Aquilo que se inicia com uma pergunta sobre poesia acaba com um
esforço em retirar o domínio das questões de ordem poética do monopólio
do verso, aplicando-a aos textos em prosa e à narrativa, tal como o fizeram
seus precursores.
Essa oscilação, contudo, não está fora de propósito, pois é constitu-
tiva de sua produção. É dela que deriva sua preocupação com relação ao
ritmo na prosa, que inclusive transpõe a função de organização narrativa,
transformando a estratégia da somatória de elementos que se convergem
para provocar uma sensação única e perdurável no leitor (tal como Poe
pensava a construção do poema, numa definição que logo passaria à nar-
rativa policial), para um conflito mais profundo, que coloca em posições
antitéticas uma organização discursiva policial, os lugares que ela dispõe
para a enunciabilidade das vozes que a compõem enquanto narrativa, e
um ritmo adjacente que os transpassa, tal como ocorre ao fundo de Los
detectives salvajes.

101
Voltaremos a isso mais tarde. Por enquanto, cabe mostrar que os elos
entre essa preocupação rítmica no romance e a noção de poesia policial
ficam visíveis, paradoxalmente, na maneira distinta com a qual uma imagem
presente na resposta sob o ponto de vista da prosa – a história do gênero
criminal como sendo a da própria literatura – adquire uma dimensão
mais perturbadora quando formulada desde um poema. Eis o caso de um
texto incluído posteriormente em La universidade desconocida, alocado
em meio àqueles que faziam parte da antiga seção “Detectives”. Uma peça
sintomaticamente intitulada “Policías”.

POLICÍAS
Romeo y Julieta en un sistema policiaco
Todo Dante todo Bocaccio todo Ariosto
Marlowe en un sistema policiaco
El fulgor oculto de Velázquez
Acuático desértico arbóreo aéreo mi cuerpo en un sistema
de comisarías y coches patrulla y la radio
a medianoche
sólo diciendo que algo marcha mal en el Distrito V
entre la calle Hospital y la calle del Carmen
¡bloqueen Jerusalén, saquen a los negros
del bar Jerusalén!
Y entre los pescados y los puestos de fruta
y los puestos de verdura y los puestos de carne
pasean los hombros y las rodillas de los polis
¡Cada vez más jóvenes!
Busca en Arquíloco la presencia inevitable
de los detectives
busca en Anacreonte las estelas de los policías
Armados hasta los dientes o desnudos
son los únicos capaces de mirar
como si sólo ellos tuvieran ojos
son los únicos que podrán reconocernos
más allá de cualquier gesto:
brazo inmovilizado en indicaciones
que ya nada querrán decir.
(Bolaño, 2010, p. 336)

102
Note-se aqui como o vínculo entre o literário e o policial transpõe os
contornos analógicos com que trabalhavam os precursores de Bolaño, e
que ecoavam na resposta a Donoso: ele passa a ser o de uma equivalência
sistêmica, e não apenas um modo de formalizar dramaticamente os conflitos
entre polícia e justiça, entre literatura e lei. O leitor aqui não se posiciona
de maneira detetivesca diante de uma trama que se descortina ao longo
das páginas de um livro, mas é a visão mesma da literatura que parece se
colocar por ou enquanto estrutura policial.
E do mesmo modo que a polícia dá lugar ao literário (e vice-versa),
ela parece tomar o corpo do texto – que também é o corpo daquele que o
enuncia e dos lugares que compõem o mundo desde onde se enuncia. Há
uma sobreposição da trama discursiva, da constituição fisiológica humana
e dos quatro elementos do espaço físico (com o agravante de que “terra” foi
substituída por “deserto”) pelos quais os milicos atravessam, perpassando
“meu corpo”, que é “aquático desértico arbóreo aéreo”, mas também ruas e
distritos, marchando, por fim, por todos os versos desse poema.
Nesse ponto, contudo, há de se observar que o papel dos policiais não é
estritamente o de ocupar perímetros previamente definidos. Ao contrário,
é o próprio movimento invasivo que cria tais espaços. Mais: a cadência da
marcha não só dá lugar aos lugares, como também, no ato da sua aparição,
esses já se estabelecem sob divisão. É como se ao longo de todo o poema
ocorresse um processo acelerado de criação na e pela separação, fazendo
com que tais mapas urbanos, organismos e linguagens só passem a existir
na e para a repartição de suas partes.
Isso inclusive se projeta no modo como o poema se desenvolve, com-
pondo-se de listas, repartições e divisões – nomes de autores, tipos de bar-
racas, aparelhos policiais, etc. – que impõem pausas constantes na leitura do
poema, marcando, na vocalização do texto, os passos dos guardas. Soma-se
também o uso insistente da partícula conjuntiva “y”, que, a despeito da
sua função de agregar e elencar imagens, eventos e orações, reforçando o
aspecto narrativo do texto, é também o dispositivo pelo qual se dá a divisão
de cada uma das partes em si mesmas. Ambos os aspectos de constituição
do texto estão cadenciados por aquilo que os guardas realizam através de
seus passos: criam um campo social (para não dizer um mundo) ao mesmo
tempo uno e dividido, ao fornecer nessa somatória uma multiplicidade
desvinculada de si mesma, com “braços imobilizados em indicações/ que

103
já nada irão querer dizer”8. Portanto, a polícia funciona como força motriz
do enunciado, mas também como marcador estrutural de sua enunciação:
os guardas atravessam tematicamente o poema, dão lugar a ele, na mesma
medida em que cortam a respiração daquele que o recita. 9
Desse modo, podemos dizer que o chamado “aparelho formal de enun-
ciação” – que aqui transpassa a dimensão individual, levando em conta o
modo de distribuição do território físico e simbólico – está posto por um
sistema de delegacias e carros-patrulha. Ao tomar referências estabelecidas
como fundacionais pela historiografia, indissociáveis da própria noção de
literatura, o texto evoca um cenário que lhe antecede, que lhe oferece lugar
e condição de existência, ao mesmo tempo em que, possível apenas pelo
gesto performativo gerado pelo próprio poema (que gera o próprio poema),
é indissociável do presente de sua enunciação.10

8. Tradução do autor.
9. Há outros poemas em que elementos composicionais são deslocados de modo a reforçar
seu aspecto interruptivo, fazendo com que um verso comporte uma variedade daquilo
que poderia ser um conjunto de versos independentes. Com isso, o que seriam os fins de
alguns versos passa a ocupar o lugar das cesuras de um único, reforçando a pausa interna
pelos espaços em brancos subsistentes como resquícios das diferenças de linhas que os
separariam. Por outro lado, isso também força enjambements que de outro modo não
existiriam, pelo corte que ocorre nas últimas sílabas dessa trilha de versos. De um modo
ou de outro, certa inclinação à prosa se esboça aqui, justamente devido a essa profusão
dos processos de agregação na divisão interna do poema. Eis aqui um exemplo de poema
que utiliza esse recurso, intitutlado “San Roberto de Troya”: “Admirables troyanos En
la veteranía de la peste/ y de la lepra Sin duda vivos En el grado cero/ de la fidalidad
Admirables troyanos/ que lucharon por Belleza/ Recorriendo los caminos sembrados de
máquinas/ Inservibles Mi métricas mis intuiciones/ Mi soledad al cabo de la jornada/
(¿Qué rimas son éstas? dije sosteniendo la espada)/ Regalos que avanzan por el desierto/
ustedes mismo Admirables ciudadanos de Troya” (Bolaño, 2010, p. 113).
Poderia citar tanto outros poemas que empregam este recurso peculiar (“Niños de Dickens”,
“Una lectura de Conrad Aiken”, etc.), mas esse possui um eco que o torna particularmente
interessante: a remissão a Chértien de Troyes (1135-1183), fundador do roman medieval e dos
ciclos arturianos, nome crucial para a passagem das narrativas da poesia à prosa, devido
justamente à inclinação de seus versos a contínuos enjambements (cf. Zumthor, 2010, p.
417). Assim, não estaria fora de propósito colocar o compositor de Lancelot ou Percival
como um precursor desse peculiar recurso que Bolaño emprega em sua poesia – não por
acaso, toda uma seção de La universidad desconocida leva o mesmo nome desse poema.
10. E as obras citadas entram também em ressonância com a descrição deste presente: o
acento sobre o crime, a condenação e a negociação diabólica se vertem sobre essas estruturas
de organização em níveis de planos extraterrenos (como na Divina Comédia) ou na secção
que dá lugar para cada narrador e sua história (como em Decamerão). Essa visão que faz
combinar espaço, culpa e possibilidade de narrar terá volta na própria obra de Bolaño.
Lembremos por último seu projeto imaginário de escrever o roteiro cinematográfico da

104
Portanto, os dois caminhos de preocupações poéticas e literárias de-
rivados da obra de Poe começam a entrar em ressonância, como se diante
da situação colocada pelo presente (pela feição que a história adquire neste
presente), um se projetasse sobre o outro. Pois parece se formar um estranho
vínculo entre a possibilidade de realização da linguagem e a força policial,
como se esta concedesse um espaço próprio para aquela, enquanto, na
aceitação mesma dessa concessão, o ato de fala o legitimasse, (re)criando
a violência divisória-agregadora da polícia, permitindo sua passagem na e
pela língua. Essa só se explica pela mediação de outro dispositivo, reverso
complementar da polícia – o qual logo faremos depor.
Nessa problemática, vê-se como a imagética da narrativa detetivesca
se faz sentir numa dimensão particularmente sensível à atividade poética,
devido à sua atenção a esse modo singular de construção da enunciação
que é o gesto recitativo, historicamente vinculado a ela. Por outro lado, esse
nefasto entrecruzamento no qual se localizam os trabalhos com a linguagem
irá motivar uma investigação constante pelo cenário no qual tais práticas
ocorrem, devido justamente a esse lugar que se lhes oferece.
A interrogação por uma cena, que substitui ou se justapõe à do crime,
aparece, por enquanto, condensada no terceiro verso do poema “Policías”, no
“fulgor oculto de Velázquez”11. Junto com Jan van Eyck, esses pintores serão
referências persistentes por todo o conjunto dos poemas policiais. Essas
remissões funcionam como o reflexo ao fundo do Retrato dos Arnolfini ou
como a imagem capturada da produção artística em ato que Las meninas
busca ser. É a partir dessa analogia que podemos pensar o ponto de vista que
a poesia de Bolaño lança para a prosa: tal como um espelho convexo está
para o resto de um cômodo, buscando interiorizá-lo, ainda que de modo
condensado, e do qual, na verdade, procura estabelecer uma saída, uma
linha de fuga. Veem-se então o espaço e as condições da prática artística
adentrarem a tela, pois já não repousam como evidência subentendida
insignificante, entrando na zona de trabalho e responsabilidade da obra,
mesmo que esta não possa determiná-los para si, assim como tampouco
ser totalmente delimitada por eles. Assim se estabelece a tensão na região
limítrofe da peça, um jogo de forças que fornece a moldura para a pintura.12

obra de Dante, transformando-a em um thriller policial intitulado Aventuras en el séptimo


círculo, em referência àquela região do inferno destinada aos violentos (Bolaño, 2008, p. 103).
11. Tradução do autor.
12. Sobre essa noção de moldura, ver Derrida (1978).

105
Por isso, no caso de Las meninas, na pretensão mesma de representar
o ato de representação – levando em conta inclusive as linhas virtuais que
se abrem a cada vez que alguém se põe a observá-la –, a obra não deixa de
considerar os pontos-cegos, exibindo as fissuras de tal projeto, em fideli-
dade a ele, a despeito da aparente clareza dos espaços concretos (a corte do
rei Felipe IV [1605-1665]) e discursivos (a pintura) que se lhe atribuem.13
Similar à estratégia com a qual Velázquez problematiza o olhar em
relação à imagem, Bolaño também estabelece um jogo de encenação dos
posicionamentos enunciativos, armados por suas peças em prosa a partir
das forças que emergem desde sua poesia. Desse modo, podemos ver as
obras desse escritor não como uma sucessão progressiva feita de tentativas e
erros, de autocensuras pudicas e rememorações nostálgicas, mas como sendo
disposta para um cômodo, de onde se tentam estabelecer incessantemente
linhas de fuga, com formas mais dramáticas e desesperadas do que aquelas
desenhadas em Las meninas ou no Retrato dos Arnolfini. Desse modo, a
poesia permite-nos, como acontece em “Detectives helados”, tentar abarcar a
cena do crime com um só olhar, tomando cuidado para não pisar nas poças
de sangue ali espalhadas. O reflexo do espelho convexo que imaginávamos
estar na poesia de Bolaño revela-se como sendo a imagem que repousa no
fundo da retina de um detetive que hesita em adentrar esse cenário. De
fato, há uma gesto constante no qual os poemas policiais se encerram como
que frente à cena do crime, permanecendo em seu umbral, paralisados ou
(con)gelados, tal como ocorre, por exemplo, em “Los detectives”: “Y luego
vi al detective/Volver al lugar del crimen/Solo y tranquilo/Como en las
peores pesadillas/Lo vi sentarse en el suelo y fumar/En un dormitorio con
sangre seca/ Mientras las agujas del reloj/Viajaban encogidas por la noche/
Interminable” (Bolaño, 2007b, p. 338).

13. Encontramos uma descrição dessas aporias na clássica leitura que Foucault (2007) faz
do quadro de Velázquez. Para resumi-las, lembremo-nos das três principais: 1) esse lugar
que se abre diante do quadro, para onde apontam os olhos do pintor ali representado,
em direção ao seu modelo, na posição ocupada pelos virtuais observadores da obra; 2) a
tela na qual trabalha esse artista, e que, desde o ponto de vista desse mesmo observador-
modelo, está de costas, seu conteúdo permanecendo oculto, secreto, apontando assim a
impossibilidade de inserir na representação as circunstâncias de enunciação frente às quais
o quadro é constantemente submetido; 3) como que somando os dois outros “poréns”, o
próprio ato de pintura não se encontra de fato representado senão em seu intervalo – caso
contrário, o pintor desapareceria atrás da tela na qual trabalha –, deixando entrever apenas
um gesto suspenso, enquanto o artista observa o seu modelo, ao mesmo tempo presente
(diante dele) e ausente (de representação no quadro).

106
E, de fato, ambos os atos – o da prática artística e da violência assas-
sina – coincidem em um único cenário: o quarto. É nesse espaço cheio
de corpos, frente ao qual a poesia se detém e a prosa de Bolaño habitará,
descrevendo-o intensivamente, que se constrói o vínculo entre as duas
modalidades discursivas.
Esse espaço, diante do qual estão os poemas, possui em Bolaño um
sentido especial, pois funciona como o ponto de convergência no qual
sedimenta tantos os valores adjacentes que sustentam o processo policial
de criação de lugares, tal como em seu poema, como também a violência
obscena necessária para mantê-los.
E neste ponto reaparece, novamente, a figura de Poe. Não somente por-
que também nele o recinto privado é lugar tanto para o crime (“Os crimes
da Rua Morgue”, iconicamente) como da enunciação poética (como em “O
corvo”). Mas é no papel que certa leitura de sua obra terá em La literatura
nazi en América, que encontraremos o “chão sólido”, por assim dizer, tão
desejado pelos monstros dessa coleção.
Será a argentina Edelmira Thompson de Mendiluce (1894-1993), ma-
triarca dessas letras infames, a propor essa influente interpretação com um
texto que será considerado sua obra-prima: a recriação literal do quarto
imaginado no pequeno ensaio intitulado “Filosofia do mobiliário”, no qual
Poe descreve minuciosamente para a “aristocracia dos dólares norte-ame-
ricana” (Bolaño, 2005, p. 215) como seria um cômodo ideal para a leitura
e escrita literárias.
Ao contrário de “Filosofia da composição”, seu texto-irmão vinte anos
mais novo, que procura estabelecer os mecanismos internos ao poema para
atingir determinado efeito emocional no leitor, a “Filosofia do mobiliário”
está apegada à necessidade suplementar de um ambiente apropriado para
garantir tais relações, tanto no plano da formulação como da recepção.
Esse elemento, Edelmira tomará ao pé da letra, construindo-o peça por
peça, para depois nele poder escrever o livro intitulado El cuarto de Poe,
sem nunca desligar o texto do espaço físico enquanto partes da mesma
obra. É como se dessa forma se exibisse um projeto estético histérico, que
busca instaurar as condições adequadas e suficientes à atividade e ao texto
literário, que garantam seu valor e seu sentido. De certo modo, podemos
ler todos os esforços dos escritores biografados em La literatura nazi en
América como a tentativa de fixar esse lugar de legitimação na linguagem,
que deve preceder a obra, sendo exigido incessantemente por ela, por nunca

107
estar suficientemente assegurado. Lugar que já está posto, ao mesmo tempo
em que necessita, continuamente, ser reclamado e construído a todo custo
(inclusive o de associar-se com regimes nazistas, ditatoriais, socialistas, de-
mocráticos, etc. – ao que for), sem deixar sua condição de mera promessa.
É esse desejo por espaços de segurança e garantia – e aqui já começamos
a escutar novamente os passos da polícia – que constrói a cena literária dos
livros de Bolaño, que não só erige instituições oficiais, conspirações bestiais
ou clubes de crítica, mas o lugar simbólico que se vincula à prática literária,
no qual se quer ver essa prática transformada.
Se essa visão da acomodação nos fornece uma cena, então podemos
começar a elaborar uma triangulação dos pontos de fuga (bem ou mal suce-
didos) na obra de Bolaño. Podemos dizer que esse cenário está coberto por
provas, tal como ocorre com aquelas reproduções ovidianas que adornam
as paredes de Las meninas. Observemos três delas: Estrella distante, o conto
“Detectives” (de Llamadas telefónicas) e Los detectives salvajes – não por
acaso os que mais explicitamente estabelecem vínculos com o gênero policial.
Neles, é a posição enunciativa de Arturo Belano, enquanto poeta, dentro
da situação descrita pela narrativa, que indicará o jogo de fugas e capturas.
Com isso, o poema, ao interrogar o lugar que lhe foi dado pela marcha
policial, também lança um olhar à prosa para questionar a economia discur-
siva que se configura para a enunciação desse cenário que ali se desdobra. É
como se, ao exibir uma vida em que a literatura se coloca como mediação
de todos os vínculos ali estabelecidos, Bolaño buscasse enfatizar que a
violência que descreve a partir desse campo é na verdade a metonímia de
uma situação que vai se instalando na dimensão do comum na linguagem.
Assim, no primeiro livro, em Estrella distante, Belano, ao ocupar a
posição de sujeito da enunciação, vê-se necessariamente na figura de cúm-
plice do cenário de violência por ele narrado; no segundo texto, no conto
“Detectives”, ao ser assujeitado na história que se descortina pelo diálogo
de dois policiais, Belano não pode ocupar outro lugar que não o de uma
aparição; por último, no livro Los detectives salvajes , apesar de se fazer
sentir como sujeito do enunciado, nunca toma a frente na enunciação,
a despeito das inúmeras vozes que a constituem enquanto narrativa. Ao
contrário: percorre um roteiro de fuga em oposição aos lugares oferecidos
por sua estrutura. Esse último caso será também aquele que mais tema-
tizará o processo poético, ainda que elidindo quase que totalmente seus

108
resultados: tal como Ulises Lima e Arturo Belano, a poesia não tem lugar
em Los detectives salvajes, a despeito de todos aqueles que se lhe oferecem.
Tentemos estabelecer um registro dessas provas, como num catálogo
de exposição, sob o igual risco de incorrer na imperfeição da reprodução
reduzida.

Primeira prova: autorretrato indesejado

Em Estrella distante temos os desdobramentos mais sinistros dos valores


apresentados por Edelmira Mendiluce em seu quarto, em conjunção com os
mecanismos disponibilizados pelo regime ditatorial chileno. Carlos Wieder
é aquele que levará até as últimas consequências o projeto de estabelecer
a arte como um espaço simbólico que assegura a liberdade do discurso.
Seus atos de violência se dão em nome dessa promessa, como modo de
demonstrá-la constantemente, de trazê-la dos céus ao chão, necessitando
sempre reiterá-la, porque ela jamais está suficientemente posta. Essa di-
mensão perversa, que adquire proporções messiânicas e redentoras (além
de apocalípticas), profetizadas em sua poesia aérea, não se dá como mera
subordinação ao estado pinochista, pois, se Wieder emprega a tortura e os
aparelhos técnicos de guerra e propaganda, ele o faz para alçar seus princípios
estéticos, que, como vemos em La literatura nazi, não só são anteriores a
ele, como também persistem para além dele, rearticulados.
E como contraparte do anúncio público dessa promessa, novamente é o
quarto que confere a dimensão concreta desses valores, a exibição das tenta-
tivas crescentes de realizá-los, com a exposição das fotografias das mulheres
torturadas e mortas, compondo uma narrativa “nostálgica e melancólica”14
(Bolaño, 2007a, p. 97). Esse é o ponto de quebra da aliança de Wieder com
o regime militar, mas também o lugar que o permite sobreviver (e também
praticar seus valores), subterraneamente, adentrando os anos 1990.
Se Carlos Wieder aproxima-se da figura da polícia é porque busca
estabelecer um tipo de enunciabilidade que o faça coincidir imediatamente
com o lugar que quer ocupar. Em um ensaio chamado “Exilios”, Bolaño irá
definir o policial como aquele que é, em oposição ao poeta que simplesmente
trabalha (2006, p. 56). Podemos dizer justamente que os personagens de
La literatura nazi são aqueles que querem ser (poetas), e Wieder, aquele

14. Tradução do autor.

109
que chega mais próximo de sê-lo. Se o hífen é o sinal que, ligando palavras,
enfatiza a necessidade da conexão de dois termos para definir um único,
realizando uma ponte para definir aquilo que é nessa ligação, então podemos
dizer que tais autores descritos por Bolaño praticam uma poesia-policial,
na qual sua enunciação pode garantir e ser garantida pelo lugar ontológico
que ocupam (ou ocupariam), por aquilo que são (ou seriam): poetas. Esse
tipo de ato performativo puro é muito próximo daquele que Derrida (2007)
descreve como definidor da figura da polícia ou do ditador, em que o gesto
perlocutório se quer ver concretizado plenamente, estabelecendo como
única condição para a realização de uma ordem o simples ato de articulá-la
(isto é, a condição do ato e o ato em si coincidem). Nesse sentido, a polícia
do estado ditatorial chileno está para a ordem, assim como Wieder está
para a liberdade em relação à arte – como algo natural, posto, mas que,
paradoxalmente, necessita ser continuamente reassegurada, a todo custo,
o que autoriza a dimensão perversa e cruel dessa estrutura.
Ora, devemos nos perguntar então por que, Arturo Belano, sendo
narrador e participante um tanto discreto, ainda que fundamental, dessa
história, não pode deixar de se colocar numa posição de cooptação com o
terror que busca contar. Suas identificações constantes com Wieder, princi-
palmente pelos sonhos (Bolaño, 2007a, p. 130-131), mas também na cena do
café, pouco antes deste último ser assassinado (Bolaño, 2007a, p. 151-153),
não só respaldam isso, mas apontam para um nível mais íntimo de relação,
ecoando para além desses momentos, mesclando-se ao próprio discurso de
Belano. Podemos dizer então que se há uma sensação de ressonância entre
os horrores ali narrados e o próprio ato de narrar, é porque essa história
é, além de tudo, a das condições que se oferecem a tais narrativas, que se
iniciam com a derrubada de Allende, passando pelos atos poético-perfor-
máticos do artista-torturador até um tipo de “justiça”, financiada por capital
privado chileno dos anos 1990 como pura vingança pessoal, operada pelo
ex-policial Abel Romero, da qual Belano atua como cúmplice. Tais condições,
portanto, não são as mesmas de Wieder, mas derivam delas e a ultrapassam.
A despeito da tentação imediata, altamente questionável, lançada pelo
predomínio do material narrado em Estrella distante, ou, no caso do poema
“Policías”, extraído de seu título, o estado totalitário e sua herança formam
apenas um dos níveis temporais problemáticos que se entrelaçam aqui.
Digamos, para seguirmos com a imagem, que esses são alguns retratos

110
temporais (ou, quem sabe, fotografias)15 que forram as paredes – a arquite-
tura do quarto, mas que, entretanto, oferecem uma outra dimensão a essa
história. Em outras palavras: a temporalidade e as condições do enunciado
não são as mesmas da enunciação, ainda que, sem dúvida, elas estejam
condicionadas.
Essa articulação é extremamente significativa em grande parte dos
romances de Bolaño: suas narrativas se desenrolam, em sua maior parte,
sob ou por agentes de violência totalitária, rumo ao presente em que o
próprio texto está sendo desenvolvido, isto é, ao momento em que se dá o
trabalho de narrá-lo ou de organizar os diversos discursos que o formam
(como em La literatura nazi ou Los detectives salvajes), e, posteriormente,
ao fim dos estados ditatoriais na América Latina. Ou seja, num período no
qual o regime democrático não só ascende como forma política (tendo sua
contraparte econômica no neoliberalismo), mas também como economia
hegemônica sobre os modos de circulação da palavra.
É nesse ponto que tanto o estatuto da linguagem como a existência
da polícia passam a existir enquanto direitos, e não apenas dispositivos de
ordenação. Tanto que até mesmo a suspensão do direito – poder que de-
fine a polícia – é colocada sob a forma de uma oferta do direito. Nenhum
ato performativo legal exibe melhor essa contradição que o velho bordão
policial norte-americano, incessantemente repetido em filmes e seriados
televisivos, no qual se diz “Você está preso em nome da lei. Você tem o
direito de ficar calado. Tudo aquilo que disser poderá e será usado contra
você no tribunal...”. Assim como todo ato de censura e violência se apresenta,
paradoxalmente, como ato necessário para garantir a liberdade oferecida
pela legalidade democrática. Talvez a sombra que passa sobre os livros de
Bolaño se dê como se o direito à liberdade de expressão, tal como estrutu-
ralmente fornecido pelos nossos estados democráticos, fosse apenas um
inverso complementar desse modo de interpelação da lei, fornecido pelo
policial. Algo como “você tem direito a dizer o que quiser. Você tem direito

15. Impossível não invocar aqui o conhecido alerta de Walter Benjamin (2008) com relação
à falta de legendas nas fotografias, que, ao confiar demasiadamente na força de exposição
da imagem, faz com que ela apague a violência ali inscrita. De certo modo, podemos dizer
que Estrella distante é de tal forma uma legenda não só para as fotografias de Wieder,
como também da moldura que envolve sua própria enunciação enquanto discurso. Na
verdade, nas narrativas de Bolaño, a confiança no lugar próprio das artes como sendo
auto-evidente é o motor de algum desastre.

111
a um espaço apropriado para tal. Se não tiver recursos para tal, o Estado
mesmo o fornecerá (enquanto promessa)”.16
Seria preciso se perguntar em que figuras da obra de Bolaño essa rei-
vindicação pela garantia da liberdade de discurso e de segurança prévia
à sua enunciação, tão investidas na literatura e nas artes, ganha maior
repercussão. A resposta, ironicamente perturbadora, está nos personagens
de La literatura nazi en América, Estrella distante ou Nocturno de Chile.
Se acompanharmos o percurso desses três livros, não é como se o projeto
artístico de seus infames personagens atingisse uma paradoxal “plenitude
em termos médios” ao fim de suas narrativas? Não é com o modo como
certa democracia se arma que Willy Schürholz (esse discípulo de Wieder)
encontra a recepção mais festiva para suas instalações e Sebastián Lacroix
vê com uma espécie de misto de furor e temor, ansioso por ser perdoado
e acolhido, mais que qualquer paraíso cristão?
Levando isso em conta, qualquer ato de enunciação literária – seja
narrativo, seja poético – que não deposite desconfiança sobre sua própria
condição de possibilidade, ao invés de aceitá-la simplesmente ou reclamá-la
histericamente, não corre o risco de prescrever a situação de tal economia
discursiva? Ao aceitar a posição de sujeito da enunciação, Belano não estaria,
na verdade, assumindo um lugar como “sujeito do direito”, construído e
mantido a troco da re-armação das estruturas de violência em outras, ao
invés de seu enfrentamento?

16. Aqui cabe voltar às razões que levaram à dissolução da seção “Detectives” após a pri-
meira edição do livro. Poderíamos imaginar que, tal como o jogo realizado por Nicanor
Parra em Poemas y antipoemas, no qual não podemos diagnosticar em qual categoria
cada um dos textos ali encontrados se encaixa (não podemos levantar uma categoria
estrutural que nos permita diferenciar os poemas dos antipoemas), em La Universidad
desconocida qualquer poema possui uma dimensão policial, alojado na possibilidade, no
direito, de sua própria enunciação. Do mesmo modo, podemos entender a expansão da
literatura como forma de mediação de todas as relações sociais nos romances de Bolaño,
isto é, como um modo de indicar que esse problema da liberdade de expressão e do direito
(entre outros) que parece se localizar tão especificamente nesse campo está, na verdade,
afetando a dimensão do comum da linguagem.

112
Segunda prova: o espelho baço

Recuperando a descrição da atuação que a polícia vinha fazendo desde o


poema, podemos dizer que o vínculo entre palavra e direito se transforma
agora, de uma tentativa de performatividade pura para instaurar e garan-
tir uma ordem hierárquica, em um dispositivo distribuidor de espaços e
direitos próprios e apropriados. A poesia-policial de Edelmira, Wieder e
dos outros deriva finalmente em direito à poesia e à literatura.
Assim como em “Policías”, no qual tinham a função de criar o espaço
na mesma medida em que o distribuíam, aqui os guardas são a força orga-
nizadora que confere múltiplas divisões de enunciabilidade, como artifício
de legitimação da própria situação. A duplicidade policial-direito se dá pela
oferta de um lugar próprio que dê condições apropriadas para o discurso
de cada um dos elementos dessa sociedade. Não estamos longe daquilo que
Walter Benjamin descreve em “Para uma crítica da violência”, em função
das democracias parlamentares europeias da década de 1920. A diferença
é que, na situação que se abre a partir dos anos 1990, com a expansão da
democracia como projeto hegemônico de política internacional, tal dimensão
policial não está apenas na forma como se mantém a ordem, mas em como
se oferta o direito. Não só pelo recurso mais crasso da “guerra democrati-
zante” que vemos adquirir rotação sistemática, via Estados Unidos pós-11 de
setembro de 2001, mas também como os próprios valores emancipatórios
ganham contornos pré-estabelecidos. É como se o dispositivo de concessão
do direito de greve enquanto mecanismo de neutralização de sua eficácia,
por convertê-la em mecanismo de chantagem, de negociação controlada e
redutiva, entre o Estado e os líderes sindicais, tal como descrito por Benjamin
(2011, p. 128-129), estivesse aplicado a todos os modos de relação que dão
forma à vida social. É esse suborno enunciativo que Bolaño busca encenar
e cindir neste cômodo, em que três narrativas estão expostas.
Vejamos a segunda delas: dois policiais, num carro-patrulha em pleno
movimento, conversam sobre o tempo da ditadura, relembrando como
um deles havia encontrado, preso no quartel, um antigo amigo de liceu,
chamado Arturo Belano, que depois ajudariam a escapar. Não sem antes
passarem pela estranha experiência, frente às reclamações do encarcerado,
de já não encontrarem mais a imagem de Belano refletida no espelho do
banheiro da prisão, mas sim uma outra, cheia de medo, envelhecida e fan-
tasmática. Não há nada, nessa tela narrativa, que não seja as vozes desses

113
dois guardas: todo o texto é composto unicamente pelo diálogo deles. Nesse
sentido, podemos ver a posição de Belano em “Detectives” como estando
sob um plano em paralaxe.
De uma perspectiva, temos sua presença-ausência através da fala desses
que o oprimem, reduzindo-o a uma imagem espectral num espelho roto,
que reflete esse assujeitamento do discurso no qual se vê confinado. Belano,
enquanto prisioneiro da ditadura chilena nos 1970, não passa de um resíduo
subalterno na voz policial que conta sua história. Ou seja: seu dizer pela
fala dos guardas é um não-dizer. Contudo, por outro ângulo de visão, desde
aquele que copila essa história vinda da boca dos guardas, dessa tentativa
de ausência absoluta de qualquer intromissão no diálogo, vislumbramos
um outro nível enunciativo atuando. Nesse caso, tal recusa parece ser a de
assumir o lugar deixado ao testemunho para a literatura do nosso presente,
sob o risco de subscrever as condições que o direito oferece a elas.
Por esse mesmo motivo, a posição de Belano oscila entre o risco de
tornar-se um “desaparecido” – que foi perdido na violência da história,
deixando quando muito alguns rastros – ou um aparecido (2003, p. 120),
uma aparição – que volta, porque uma voz foi-lhe concedida (uma voz que
em geral é a de outro, pela qual ele fala). Entre uma possibilidade e outra se
colocam e se mesclam as diferentes atuações do “policial” em cada uma das
perspectivas temporais: como suspensão do direito, abrindo a submissão da
violência, e como doação do direito, como modo de legitimação do estado
policial que separa a sociedade de si mesma.
Se levarmos a sério essa chave interpretativa, para um testemunho fazer
justiça, ou para se fazer justiça a um testemunho do período ditatorial lati-
no-americano (ou de qualquer outra violência histórica), é necessário fazer
uma crítica brutal do presente, não só no sentido daquilo que lhe aparece
como resquício da ditadura militar, mas também em relação à articulação
específica dos mecanismos de direito e violência que se fazem sobre o nome
e a legitimidade democrática. É preciso atentar, no ato de rememoração
crítica, às condições do espaço enunciativo que se oferecem a ela, mesmo
que (ou principalmente) se ofereçam sob o privilégio de uma lei. Reside
aí o conflito que se prolonga por toda a obra de Bolaño, entre a violência
histórica do enunciado e a violência que se instala pela situação dada pelo
presente da economia discursiva democrático-liberal, principalmente pela
e na associação entre noções de literatura e liberdade. A legitimidade e o
lugar assegurado conferidos às artes nesse processo, principalmente àquilo

114
que envolve o ato de formalizar e apresentar os silêncios e os horrores do
passado recente, são de que o tipo de reconciliação dada por essa “liberdade
de expressão”, ofertada como prévia, se converta em uma comunhão fática
(Benveniste, 2006, p. 89) que costura fragilmente certa multiplicidade social,
pela iterabilidade do direito enquanto sua condição.
A democracia faz com que a polícia se infiltre na enunciabilidade do
mesmo modo como os guardas da poesia de Bolaño entravam no poema,
distribuindo lugares – inclusive para o próprio poema. Essa situação é
mais sutil do que aquela descrita como uma linguagem instrumentalizada,
puramente comunicativa. Por isso mesmo, o modelo clássico do sujeito, de
uma exteriorização da voz em tentativa de adequação a um logos, é menos
importante nesse sistema que a pura proliferação da possibilidade do dizer
e do escrever (ou mesmo do se calar – enquanto direito à privacidade),
como formas de legitimar o sistema. Nesse sentido, a poesia e o testemu-
nho, pela sensibilidade do processo enunciativo para sua significação ética,
entrecruzam-se diante da mesma problemática.

Terceira prova: plano de fuga

Um diário, dividido em dois, ocupa as extremidades do livro, como que


exibindo suas margens. Entre elas, um conjunto de retratos-falados – alguns
deles repetindo-se, complementando as declarações uns dos outros – con-
figura um tabuleiro, onde já não se aposta nada, mas se busca recompor
uma história de partidas poéticas. No contra-fluxo dessas divisões, para
fugir não de uma perseguição, mas da possibilidade de ser realocado nesse
jogo, dois nomes – Arturo Belano e Ulises Lima – que aparecem como os
responsáveis por todos os eventos ali narrados, atravessam toda a narrativa,
de ponta a ponta, indo além dela , deixando nada mais que alguns sinais de
passagem. Aqui, torna-se difícil captar a imagem, porque, pelo empuxo da
fuga, a composição se vê arrastada para um quadrante vazado – um buraco
ou uma janela –, que esconde um escape, pacientemente escavado e cujas
linhas pontilhadas só podem ser vislumbradas na última entrada escrita
por García Madero.
Aqui, Belano torna-se verdadeiramente um sujeito do enunciado, mas
(e podemos dizer, porque) busca, continuamente, elidir a possibilidade
de se deparar com o lugar próprio para sua enunciação. Ele é, ao mesmo

115
tempo, o objeto de atenção de todas as vozes que compõem o livro, e a força
que arrasta atrás de si toda a narrativa. Podemos dizer que o deslocamento
contínuo de Belano e Ulises Lima compõe um tipo de agência sobre essa
distribuição de discursos.
De certo modo, essa estrutura gradeada de Los detectives salvajes não é
uma ampliação daquela ordem que atuava em “Policías”? Não deveríamos
ser apressados ao comemorar uma pretensa pluralidade de indivíduos a
qual o livro de Bolaño daria vazão: lembremos, sobretudo, que a forma de
organização que dá lugar a esses diversos relatos não é senão a do depoi-
mento criminal. E a única alternativa que se sugere ali é o discurso privativo
– e que esse ponha os limites para a multidão das mais de 50 vozes não
é pouco significativo. Novamente, os modelos de enunciabilidade tidos
como disponíveis são a polícia e o quarto... Atravessando o cálculo dessas
unidades,17 desses espaços de multiplicidade delineados pelo mecanismo
da lei, é que se dá a viagem que essa prosa tenta alcançar.
Aquilo que era distribuição de espaços físicos no poema assume, mais
claramente, o aspecto de divisão de lugares de enunciação em Los detec-
tives salvajes, mesclando o direito ao policial. Nessa chave, teríamos que
ler de modo menos evidente os versos de “Policías” sobre o bar Jerusalém:
os negros não estão sendo simplesmente “expulsos” de lá, mas “realoca-
dos”, para usar a terminologia eufemística corrente. Poderíamos inclusive
imaginar uma variante em que judeus fossem expulsos do bar Brooklyn:
a atribuição de um lugar-comum como atestação do direito torna-se o
aspecto mais visível da segregação social encenada como reivindicação de
partes para cada parte – a ideia de que uma sociedade pode conviver em
suas diferenças internas, ofertando a cada um o seu lugar apropriado, de
direito. Assim, impõe-se a noção de “comunidade” como agregação pela
tolerância cínica, neutralizando assim projetos de viver-junto e de justiça,
porque já o coloca como posto, realizando-os sem o realizar, impedindo
que outros venham re-propor outro modo de pensar o comum sob o risco
de ferir esse estado de equidade. Ela ganha um nível ainda mais violento,
quando esses diversos grupos marginais – índios, negros, homossexuais,
etc. – são tomados enquanto (possíveis) “sujeitos do direito”, sem, no entanto,
corresponder a uma força de desentendimento, isto é, por um reconheci-

17. Essa sociedade, resultante da somatória individual de cada um dos seus elementos,
não é exatamente aquilo que Jacques Rancière (1996) define como sendo policial, em
oposição à política?

116
mento que nenhum juízo posto pode suportar – isto é, por justiça. Como
se nenhuma luta política pudesse ser senão no direito e pelo direito liberal.
Ironicamente, as últimas linhas de cada depoimento coincidem com o
momento em que o interrogado em questão encontra uma posição social.
Assim, eles descrevem como abandonaram a vida de suas juventudes para
então se tornarem respeitáveis pais de família (Felipe Müller); políticos
(Moctezuma Rodríguez); escritores oficiais (todos aqueles que participam
da Feria del Libro em Madrid); advogados; críticos (Jacinto Requena); como
retornam para casa, após longos períodos em um manicômio (Joaquín Font)
etc. Há também aqueles que não resistiram, como Ernesto San Epifanio
– ainda que, não nos esqueçamos, ao morto também se oferece um lugar
social determinado. Inclusive, a última entrada registrada, levando em
consideração a data (dezembro de 1996), aquela que finaliza o processo de
inquérito sobre o real visceralismo, também se refere ao encontro deste com
seu lugar apropriado: a pesquisa acadêmica, realizada por um estudante
da Universidad de Pachuca, no México, chamado Ernesto García Grajales,
que se identifica humildemente como “el único estudioso de los real visce-
ralistas que existe en México” (Bolaño, 2009, p. 550). Seu relato consistirá
basicamente em descriminar o fim de cada um de seus representantes –
com exceção de Belano, cujo destino desconhece, e de García Madero, que
assegura nunca ter pertencido ao grupo (Bolaño, 2009, p. 551).
Isto é, no instante em que cada um passa a simplesmente ser, assu-
mindo o espaço ontológico previsto na estrutura social, esses personagens
deixam a condição de casos de polícia. E, no entanto, Belano e Ulises Lima
persistem trabalhando, como que para fazer com que essas diversas experi-
ências sobrevivam para além daqueles que as vivenciaram, desdobrando-se
virtualmente para o futuro, no qual outro modo de comunidade parece
ser esperado.
Devemos então lembrar que Belano e Ulises Lima não são os únicos
desaparecidos onipresentes: a poesia produzida pelo grupo de real-visce-
ralistas também se coloca nessa falta que transborda o livro. A necessidade
de descrever a situação desde a qual se produz os poemas em Los detectives
salvajes atinge um tal grau que faz com que essas personagens virem ao
avesso, a ponto de fazê-los aparecerem apenas às nossas costas, por assim
dizer, como se já tivéssemos passados por eles, indo em direções contrárias.
Ou seja, como se a poesia estivesse vindo desse lugar para onde Arturo
Belano e Ulises Lima se dirigem.

117
Reverberando Velázquez, é como se não pudéssemos ter a representa-
ção da produção e o resultado desta ao mesmo tempo, sob o risco de traçar
uma relação determinativa entre elas. Por outro lado, também fica suspensa
a descrição do ato poético em processo, como se tal trabalho – que é o de
fuga – nunca terminasse. E, no entanto, para não assumir a auto-evidência
da possibilidade de enunciação como modo de subscrever a condição (ou
aquilo que é tomado como sua condição) de sua enunciação, tal disposição
intensiva passa a ser requisitada. O tipo de vínculo que Bolaño estabelece
entre poesia e prosa acaba se tornando a aposta desse autor para respon-
der a essa situação em que o direito reserva para os indivíduos e para a
linguagem uma estabilidade policial baseada nos valores de segurança e
liberdade – uma sociedade desmotivada, em outros termos.
Por outro lado, em contraponto a essa estrutura divisória-agregadora
da poesia real-visceralista virada ao avesso, não posta, ecoa um elemento
formal importante: o ritmo. Um ritmo que, como aponta Meschonnic (1982),
tem potencial político. Não o ritmo das repetições, mas o da fluidez; não o
ritmo da persistência das igualdades, mas dos encontros e desencontros,
linhas de contacto que, no entanto, não negam a dispersão, que de um modo
ou de outro, marcam um compasso e um contratempo.
Essa comunidade pressentida por Bolaño só é possível, paradoxalmente,
no exílio, tal como ele aponta no ensaio que leva esse nome: não no sentido
de outro território, mas no esforço permanente de abandonar os lugares
próprios que vão se oferecendo, seja o lar, a terra-natal, a infância, sua língua
ou sua biblioteca. Essa outra forma de vida não está feita pela recuperação
daquela comunhão de poetas (que em Bolaño sempre se perverte numa
espécie de sociedade gangsteril),18 mas pela possível canção (lembremos as
últimas páginas de Amuleto) resultante dessa poesia posta para tocar ao
revés e em baixa rotação.
Não por acaso, tanto em “Policías”, quanto no ensaio “Exilios”, duas
figuras clássicas importantes aparecem: Arquíloco e Anacreonte, este últi-
mo alçado à condição exemplar de poeta exilado de seu ofício. Do mesmo
modo como abandonaram a guerra como lugar que determinava a honra,

18. Além dos inúmeros exemplos encontrados na própria obra de Bolaño, esse conjunto
de poetas transformados com o tempo em sociedade de poder não pode ser entrevisto no
próprio projeto de Mónica Maristain em El hijo de mister playa? Não é como se alguém
tivesse partido em viagem em busca dos “verdadeiros real-visceralistas de Los detectives
salvajes” e tivesse saído debaixo do braço, absolutamente satisfeita, com um bom número
de páginas que mais parecem saídas de La literatura nazi en América?

118
no momento em que esta se degenerara em automatismo, o verdadeiro
poeta, ou melhor, qualquer sujeito ético, deve estar disposto a exilar-se da
atividade que assegura o seu lugar de antemão (e vice-versa). No poema,
esse dois poetas clássicos estão numa posição de conflito com os policiais,
uma disputa que é sentida na ambiguidade tensa dos últimos versos do
poema. Retomemos:
Busca en Arquíloco la presencia inevitable
de los detectives
busca en Anacreonte las estelas de los polícías
armados hasta los dientes o desnudos
son los únicos capaces de mirar
como si sólo
ellos tuvieran ojos
son los únicos que podrán reconocernos
más allá de cualquier gesto:
brazo inmovilizado en indicaciones
que ya nada querrán decir. (Bolaño, 2010, p. 336)
Por um lado, é como se os guardas estivessem inclusive e inevitavel-
mente neles, somando-os ao repertório literário e transformando-os em
sistema da polícia, já que esses – os milicos – são os que monopolizam o
olhar, para não dizer o próprio sensível. Por outro, podemos ler nessas
linhas a busca de outro modo de ver, como se só esses dois poetas gregos
pudessem fornecer outro regime de visibilidade. Tudo depende de como
se constituirá o sujeito a lançar esse olhar, de quem são “aqueles que po-
derão nos reconhecer para além de qualquer gesto”19. Assim se vislumbra
uma comunidade que não está equilibrada sobre frágeis indicações que “já
nada querem dizer” – esses gestos vazios do convívio automático –, mas
numa inter-relação motivada entre as partes. Isto é, um quadro que não é
mais uma tela de uma representação oculta do “nós”, mas uma janela que
se desfaz na medida em que a atravessamos...

19. Tradução do autor.

119
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121
A DINÂMICA FORMAL DE
'LA LITERATURA NAZI EN AMÉRICA'
Kelvin Falcão Klein

Quantas histórias Roberto Bolaño conta em La literatura nazi en América?


Apenas uma, eu diria, a história de sua forma, de sua configuração frag-
mentada. É essa primeira e única história – que condensa inúmeras leituras
e estratégias de filiação de Bolaño, como veremos – que torna possível a
proliferação dos relatos no livro, essa “antologia vagamente enciclopédica
da literatura filo-nazi produzida na América de 1930 a 2010”, como diz a
contracapa. Quero posicionar meu olhar antes do nazi do título, dedicando
atenção à literatura, aos elementos que caracterizam o romance como uma
espécie de experimento, um jogo de tentativa e erro em torno do tema da
criação literária. “En La literatura nazi en América”, escreve Bolaño em seu
“Autorretrato”, “hablo de la miseria y de la soberanía de la práctica literaria”
(2006, p. 20).

***

Falo da prática literária: não é segredo que a obra de Bolaño como um


todo é dedicada, de forma intensa e reiterada, ao ato de escrever, à condição
de ser escritor. Los detectives salvajes são os escritores – o novato García
Madero, os mentores Ulises Lima e Arturo Belano, Cesárea Tinajero, o
realismo visceral e assim por diante; o misterioso poeta moribundo em
Monsieur Pain; Benno von Archimboldi em 2666; Auxilio Lacouture, “mãe
da poesia mexicana”, em Amuleto; o poeta-aviador Alberto Ruiz-Tagle e
as irmãs Verónica e Angélica Garmendia em Estrela distante; os encontros
literários na casa de María Canales, “o célebre Farewell” e o padre/críti-
co literário Sebastián Urrutia Lacroix em Noturno do Chile; o professor

123
Amalfitano, catalisador de um vasto conjunto de nomes e textos em As
agruras do verdadeiro tira; dois dos três narradores de A pista de gelo, Remo
Morán e Gaspar Heredia; Luis Antonio Sensini, Henri Simon Leprince e
Enrique Martín, escritores em seus respectivos contos de Chamadas tele-
fônicas; entre outros.
Mas La literatura nazi en América é o único caso em que a presença
temática de escritores é reforçada por uma configuração formal dedicada à
atualização constante do experimento da prática literária. O livro operaria,
portanto, em dois níveis – aquele mais amplo, do contexto geral da poética
de Bolaño, voltada para a criação e o acúmulo de imagens e situações acerca
da prática literária como rotina, forma de vida e integração comunitária;
e o nível mais restrito, próprio de sua constituição, que é a performance
formal do texto, aquilo que ele mais indica do que relata, seu procedimento
de concatenação progressiva de projetos de escrita.

***

Em primeiro lugar, La literatura nazi en América encena também uma


performance de filiação, pois resgata e atualiza outras ficções a partir de
sua construção, como Bolaño indica ao dizer, em entrevista, que o livro
“debe muchísimo a La sinagoga de los iconoclastas, de Rodolfo Wilcock” e
La sinagoga de los iconoclastas, “a su vez”, continua ele,
le debe muchísimo a Historia universal de la infamia, de Borges, cosa nada de
rara porque Wilcock fue amigo de Borges y admirador de Borges. A su vez,
el libro de Borges le debe mucho a uno de los maestros de Borges, que fue
Alfonso Reyes, el escritor mexicano que tiene un libro que creo que se llama
Retratos reales e imaginarios, que es una joya. A su vez, el libro de Alfonso Reyes
le debe mucho a Vidas imaginarias, de Marcel Schwob, que es de donde parte
eso. Pero, a su vez, Vidas imaginarias le debe mucho a toda la metodología y
la forma de servir en bandeja ciertas biografías que usaban los enciclopedistas.
Creo que ésos son los tíos, padres y padrinos de mi libro, que sin duda es el
peor de todos, pero que ahí está. (Bolaño apud Braithwhaite, 2006, p. 42)
Mais do que se alinhar a uma espécie de gênero biográfico paralelo
(“biografias infames”, “vidas imaginárias”, “retratos reais”), movimento
que não recuso de forma alguma, penso que o livro de Bolaño leva em sua
forma um gesto mais produtivo e radical – ele sugere a emergência de um
arquivo virtualmente inesgotável de reminiscências literárias. Antes mes-

124
mo de chegarmos às histórias, antes mesmo da efetiva leitura do conteúdo
dos verbetes de La literatura nazi, tem início esse sortilégio da memória,
desencadeado pela visualidade da forma. Borges, Schwob, Wilcock, Reyes
e os enciclopedistas, sim; mas também as Vidas de Plutarco e as Vidas e
doutrinas de filósofos ilustres, de Diógenes Laércio; as Brief Lives de John
Aubrey; as Memórias biográficas de pintores extraordinários de William
Beckford e as Mortes imaginárias de Michel Schneider; Deutsche Menschen
de Walter Benjamin; Celina Manzoni relembra Memorias de un vigilante, de
Fray Mocho, e Vida de los ladrones célebres de Buenos Aires y sus maneras
de robar (Manzoni, 2006, p. 25); Álvaro Bisama relembra La velocidad de
las cosas, de Rodrigo Fresán, e Bartleby y compañía, de Enrique Vila-Matas,
“metanarradores”(Bisama, 2003, p. 92); Rosa Pellicer segue a rota conhecida
de Borges, Wilcock e Schwob, acrescentando “A vida dos homens infames”
de Michel Foucault (Pellicer, 2011, p. 657).
Cada leitor desenvolve seu próprio conjunto de afinidades, fazendo
de La literatura nazi uma sorte de organismo intertextual que opera na
heterogeneidade entre aquilo que oferece e aquilo que lhe é acrescentado.
Ocorre aqui uma atualização imprevista do projeto de Cortázar em Rayuela,
ou seja, aquele de requisitar a participação do leitor através do sistema de
capítulos não-sucessivos e fragmentos de contextualização variável. No caso
de Bolaño, ocorre uma intensificação da experiência de leitura a partir do
contato com a forma da ficção – a lista, a enumeração, o catálogo, o dicionário,
a enciclopédia, o inventário –, que é repetida, encenada e elaborada pelo
leitor no momento em que ele intervém sobre o texto com o seu conjunto
de afinidades. Ao invés de restringir a experiência de leitura à manipulação
do livro, como acontece em Rayuela, Bolaño desloca tal experiência em
direção à imaginação, em direção ao jogo interminável de afinidades e
analogias que se depreende da configuração formal de La literatura nazi.
Aí também está o cerne definidor da poética da “prática literária” de
Bolaño, sua insistência com as imagens de escritores e escrituras: no decorrer
dessa poética, fica claro que o primeiro gesto do escritor deve ser o gesto da
leitura, do acúmulo de referências e da constituição de um arquivo pessoal
(um repertório íntimo que será sempre um gesto radical de renúncia ao
resto da existência, a tudo aquilo que não é literatura, transformando-se,
paradoxalmente, no caso de Bolaño, numa espécie de sobrepujar a própria
morte). La literatura nazi opera, portanto, nessa posição desarticulada,
intermitente e instável que combina leitura e escritura.

125
No comentário que faz a La sinagoga de los iconoclastas de Wilcock,
por exemplo, Bolaño recorda o “placer enorme” e o “consuelo en unos
días en los que todo más bien apuntaba a la tristeza” que encontrava no
livro de Wilcock, que “me devolvió la alegría”, continua ele, “como sólo
pueden hacerlo las obras maestras de la literatura que al mismo tiempo
son obras maestras del humor negro, como los Aforismos de Lichtenberg
o el Tristram Shandy de Sterne” (2006, p. 151). Além de acrescentar outras
duas referências complementares ao arquivo de La literatura nazi – os
Aforismos de Lichtenberg e o Tristram Shandy de Sterne –, Bolaño reforça,
pela via indireta do comentário ao livro de Wilcock, a importância do
gesto associativo e da experiência de leitura como ação e invenção (pois é
precisamente a inventividade do livro de Wilcock que induz o leitor Bolaño
a tornar-se o escritor Bolaño). E o humor negro de Wilcock, Lichtenberg
e Sterne está também em La literatura nazi – no estilo, na linguagem e nas
peripécias dos personagens, sem dúvida, mas sobretudo em seu proce-
dimento formal que, ao mesmo tempo em que incita a ação e a invenção,
frustra a totalização possível de qualquer um dos gestos, já que recomeça
incessantemente a cada corte realizado em seus capítulos.

***

Toda forma envolve um ritmo, um compasso, uma escansão de elemen-


tos, como numa espécie de dança ou coreografia. No caso de La literatura
nazi, esse ritmo vai se definindo progressivamente, no andamento que leva
de um a outro verbete/capítulo, reiterando e reforçando o procedimento. É
preciso considerar não apenas a dinâmica entre os capítulos – as remissões
e referências internas, e a mecânica de cada corte e cada recomeço –, mas
também a manutenção do procedimento no interior de cada história. Cada
capítulo, ao apresentar a produção literária do indivíduo/personagem ali
em questão, coloca em cena uma espécie de atualização do procedimento
que configura o livro como um todo. Isso se dá sobretudo a partir do deli-
neamento – sempre conciso e sem grande justificativa – de um conjunto de
filiações, nomes, textos e contextos que são reivindicados como possíveis
inspiradores do trabalho ali comentado. Essa dinâmica visa a perpetua-
ção da forma, a contínua renovação e movimentação do gesto de filiação
literária – pois é digno de nota que, ainda que todos os personagens sejam
ficcionais, criações da imaginação de Bolaño, os nomes, textos e contextos
reivindicados são sempre factuais.

126
Já no primeiro capítulo, “Edelmira Thompson de Mendiluce”, é apresen-
tado, entre muitos outros livros, o romance La habitación de Poe, de 1944,
que “prefigurará el nouveau roman y muchas de las vanguardias posteriores”,
baseado em um ensaio de Poe, “A filosofia da mobília” (Bolaño, 2005, p.
18). No segundo capítulo, “Juan Mendiluce Thompson”, Bolaño menciona
o romance Pedrito Saldaña, de la Patagonia, “relato de aventuras australes a
medio camino entre Stevenson y Conrad” (Bolaño, 2005, p. 27); no quarto,
“Ignacio Zubieta”, temos o breve romance Cruz de Hierro, “apologia de la
amistad entre soldados”, definido por um crítico da época como um “híbri-
do entre Sven Hassel y José María Permán” (Bolaño, 2005, p. 46). O sexto
personagem, “Mateo Aguirre Bengoechea”, além de professar paixão por
alguns poetas franceses (Corbière, Catulle Mendés, Laforgue, Banville) e
alguns filósofos alemães (Fichte, Schlegel, Schelling, Schleirmacher), “odió
a Alfonso Reyes con un tesón digno de más noble empeño” (Bolaño, 2005,
p. 56); o personagem seguinte, “Silvio Salvático”, realizou uma “curiosa
premonición del psico-killer cinematográfico de los setenta y ochenta” com
seu romance Los ojos del asesino, de 1962 (Bolaño, 2005, p. 58).
O nono personagem (particularmente produtivo para nossa perspectiva),
“Ernesto Pérez Masón”, inicia a carreira com Sin Corazón, “una pesadilla con
extraños ecos kafkianos en un momento en que pocos en el Caribe conocían
la obra de Kafka”, e em 1965 publica o romance La sopa de los pobres, com
“un impecable estilo que hubiera aprobado Sholojov”, seguido de Las brujas,
“cuya estructura o falta de estructura guarda cierta semejanza con la obra
de Raymond Roussel”, e de El ingenio de los Masones, “obra paradigmática
y paradójica”, que “mereció los elogios de Virgilio Piñera que vio en ella
una versión cubana de Gargatua e Pantagruel”, de Rabelais (Bolaño, 2005,
p. 65-66). “Irma Carrasco”, capítulo 12, publica aos vinte anos sua primeira
coleção de versos, La voz por ti marchita, “en donde se aprecia una lectura
voluntariosa, en ocasiones fanática, de Sor Juana Inés de la Cruz” (Bolaño,
2005, p. 85); “Daniela de Montecristo”, capítulo 13, publicou apenas um livro,
Las Amazonas, e seus poemas perdidos foram comparados “con la obra de
Juana de Ibarbourou y Alfonsina Storni” (Bolaño, 2005, p. 96); “Segundo
José Heredia”, capítulo 19, que gostava de se comparar a Richard Burton
e T. E. Lawrence, publica em 1970 o romance Saturnal, “historia de dos
jóvenes amigos a lo largo de una semana de viaje por Francia”, com “com-
plicadísimos asesinatos en la línea de Conan Doyle” (Bolaño, 2005, p. 124).

127
“Amado Couto”, o brasileiro do capítulo 20, se posiciona contra os irmãos
Campos (“aburridos”) e contra Osman Lins (“francamente ilegible”), man-
tendo uma relação de amor e ódio com Rubem Fonseca, a quem responde
com dois romances, Nada que decir e La última palabra (Bolaño, 2005, p.
126-128); no capítulo 22, Bolaño escreve que “la lectura de Norman Spinrad
y de Philip K. Dick y tal vez la posterior reflexión sobre un cuento de Borges
llevaron a Harry Sibelius a escribir una de las obras más complicadas, densas
y posiblemente inútiles de su tiempo”, um imenso romance intitulado El
Verdadero Hijo de Job, espécie de “espejo negro de La Europa de Hitler, de
Arnold J. Toynbee”, com ecos de Faulkner, Hemingway, Walt Disney, Gore
Vidal, Gertrude Stein, John dos Passos, Truman Capote, Patricia Highsmith,
Kurt Vonnegut, Robert Frost, Wallace Stevens, entre outros (Bolaño, 2005,
p. 130-133). Os primeiros poemas de “Max Mirebalais”, no capítulo 23, são
“un calco de los trabajos de Aimé Césaire”, e, mais tarde, “decidió multiplicar
las voces de sus fontes”: “con paciencia artesanal y quitándose horas de
sueño plagió a Anthony Phelps y Davertige”, mais adiante os alvos foram
“Fernand Rolland, Pierre Vasseur-Decroix y Julien Dunilac”, procedimento
que levou Mirebalais à criação de heterônimos, sendo conhecido como “el
Pessoa bizarro del Caribe” (Bolaño, 2005, p. 137-144).
Os textos do primeiro livro de poemas de “Jim O’Bannon”, capítulo
24, intitulado La noche de Macon, vão todos “precedidos por largas dedi-
catorias a Allen Ginsberg, Gregory Corso, Kerouac, Snyder, Ferlinghetti”
(Bolaño, 2005, p. 147); “John Lee Brook”, capítulo 27, presidiário membro
da Irmandade Ariana: “su obra, composta por cinco libros, es sólida, con
reminiscencias whitmanianas”, e Calle sin nombre é “un texto en donde se
combinan las citas de MacLeish y Conrad Aiken con los menús de la cárcel
del condado de Orange” (Bolaño, 2005, p. 162-163); no capítulo seguinte,
“Italo Schiaffino”, Como Toros Bravos, conjunto de poemas de 1975, “versos de
acento gauchesco en donde es lícito ver la influencia de Hernández, Güiraldes
y Carriego” (Bolaño, 2005, p. 169); o próximo, “Argentino Schiaffino”, é autor
de uma obra de teatro, El concilio de los presidentes, uma obra longa que
“recuerda escenas de cierto teatro de vanguardia, desde Adamov, Genet y
Grotowski hasta Copi y Savary” (Bolaño, 2005, p. 174).
Vemos que cada um dos personagens remete a um contexto literário
específico, às vezes condensado em um (ou alguns) nome próprio, às vezes
condensado em alguma escola literária ou mesmo em algum livro específico.
São balizas que Bolaño seleciona para que a vida concisa que apresenta

128
possa proliferar para além do livro, de modo que a experiência de leitura
se transforme também em uma experiência detetivesca de busca por indí-
cios e referências. O primeiro caso, por exemplo, de Edelmira Thompson
de Mendiluce: a fantasia de seu livro é composta por dois indícios factuais
e rastreáveis, um ensaio de Poe e o movimento do nouveau roman (que
prefigura e antecipa, num movimento deliberado de embaralhamento das
referências temporais).
A exposição que fiz acima dos capítulos de La literatura nazi é delibe-
radamente condensada e reduzida aos elementos mais essenciais, com o
objetivo de evidenciar essa dinâmica de proliferação da fantasia/imaginação
em direção ao factual/histórico. A forma incita e alimenta esse movimento
de aglutinação de referências, reforçando tanto sua coesão interna (seu ritmo
de corte e recomeço) quanto sua dependência profunda de uma postura
de leitura, ou seja, sua dependência de um desejo potencial de busca das
referências ali feitas. Mais do que acúmulo de indicações, há o exercício
de um jogo de articulações excêntricas entre elas, posicionando-as em
temporalidades e geografias atípicas – como Kafka e Rabelais no Caribe
(“Ernesto Pérez Masón”), Copi e Genet num contexto fascista (“Argentino
Schiaffino”) ou Joseph Conrad na Patagônia (“Juan Mendiluce Thompson”).

***

Pouco tempo depois da morte de Bolaño, seu editor, Jorge Herralde,


prepara um breve livro intitulado Para Roberto Bolaño. O último capítulo é
um “Dicionário Bolaño”, um “autorretrato con forma de diccionario”, como
escreve Herralde, feito de fragmentos de entrevistas. O verbete “LIBROS”
foi estruturado da seguinte forma:
El Quijote, de Cervantes. Moby Dick, de Melville. Las Obras completas de
Borges. Rayuela, de Cortázar. La conjura de los necios, de Kennedy Toole.
Nadja, de Breton. Las cartas de Jacques Vaché. Todo Ubú, de Jarry. La vida
instrucciones de uso, de Perec. El castillo y El proceso, de Kafka. Los Aforismos
de Lichtenberg. El Tractatus de Wittgenstein. La invención de Morel, de Bioy
Casares. El Satiricon, de Petrônio. La História de Roma, de Tito Lívio. Los
Pensamientos de Pascal. (Herralde, 2005, p. 89-90)
Percebe-se daí, mais uma vez, que a escrita de Bolaño surge como
uma espécie de resposta prática à sua atividade de leitor – precisamente
a dinâmica que é atualizada na forma de La literatura nazi. Em primeiro

129
lugar, o Quixote, e com ele sua reescritura feita por um leitor maníaco,
Pierre Menard – que aparece logo em seguida com as Obras completas
de Borges; Cortázar e Breton são análogos, o primeiro servindo a Bolaño,
como vimos anteriormente, no projeto de uma forma literária que pudesse
absorver o leitor, o segundo, Breton, servindo para o amadurecimento de
um projeto de comunidade (surrealistas de um lado, real-visceralistas de
outro), dentro do qual há também espaço para as ações radicais do nome
seguinte, Vaché; Kafka, especialmente com O Castelo, serve a Bolaño para
esse sentimento de circularidade incontornável que ele imprime ao seu pro-
jeto formal de filiação, pois O Castelo é a história de um percurso que nunca
se resolve, que sempre recomeça (e o mesmo pode ser dito de A invenção
de Morel, com suas ilusões periódicas e reiteradas); Perec, Wittgenstein e
Lichtenberg saltam aos olhos de imediato por conta da preocupação com
os fragmentos e com a concatenação dos fragmentos, ainda que Perec esteja
mais próximo de Bolaño por conta da visível amplidão de sua imaginação
como romancista (que Bolaño atualiza com Os detetives selvagens e 2666).

***

A configuração formal de La literatura nazi faz parte do esforço de


condensar dentro do texto um projeto de comunidade e de filiação literá-
ria. Essa configuração formal marca uma coerência profunda na poética
do autor, pois reforça, sutilmente, uma série de elementos que ocupam a
linha de frente das ficções de Bolaño – as agruras do jovem escritor, os
ritos de passagem, a camaradagem e a decepção, prêmios, círculos de lei-
tura e produção, movimentos, agremiações, viagens iniciáticas, enigmas e
reputações, resgates de gênios obscuros, exílio, sacrifício e morte –, sempre
largamente comentada pela crítica. No caso de La literatura nazi, a forma
é um labirinto insidioso, pois se apresenta erroneamente como uma linha
reta (capítulos progressivos e encadeados, simples historietas curiosas e
exóticas), que vai, no entanto, ganhando bifurcações bruscas, que passam
quase desapercebidas (o nouveau roman, Rabelais, Whitman, Toynbee,
Bifurcaria bifurcata).
Com La literatura nazi, Bolaño apresenta uma junção – seguida de
uma implosão – de outros dois projetos literários latino-americanos de
proliferação da experiência de leitura/escritura: o já comentado Rayuela,
de Cortázar, e também Museo de la Novela de la Eterna, de Macedonio
Fernández. Do primeiro, Bolaño apreende a dinâmica das referências e sua

130
interferência direta sobre a constituição de uma comunidade de escritores/
leitores; do segundo, a estrutura labiríntica e a consciência de que é preciso
sempre manter o peso daquilo que é exposto nas entrelinhas, daquilo que
é apenas entrevisto; de ambos, a noção da importância do salto geográfico
e cultural em direção ao continente americano, e a repercussão desse salto
na elaboração das referências citadas e apreendidas (e assim o círculo se
fecha). “Vou enumerar os livros que aos vinte e cinco anos estava decidido
a escrever”, diz Macedonio em Museo, e continua:
Esses livros eram: A saúde de um advogado, O violão de um advogado, Teoria do
Ser, Doutrina da ciência, Teoria da Beldade ou Estética, O Compasso, O Ritmo
e a Rima, Espureidades da Arte, Teoria do Esforço em sua influência hedônica
pessoal, Teoria da Tragédia-Idílio, Poema de Tragédia, Individualismo: teoria
do Estado, Crítica da dor, A Música como mero caso de prazer respiratório.
(Fernández, 2010, p. 37)

***

A forma funciona em Bolaño como uma estratégia de apreensão do


efêmero: a rapidez de uma associação, de uma experiência de leitura, do
contato entre sujeitos e da emergência de uma vida recolhida em seus
elementos mais básicos. A configuração formal de La literatura nazi se
assemelha a uma sorte de mecanismo mnemônico, burilado na medida
certa para que obtenha maior rendimento no contato com as biografias e
com o exercício de seu relato. Bolaño trabalha a partir da imediaticidade da
apreensão da forma, como se antes mesmo de ter contato com o conteúdo
das histórias, o leitor já intuísse, a partir da disposição gráfica dos frag-
mentos, o caráter de urgência daquilo que está sendo exposto – como se a
urgência experimentada na produção (a lista concisa, procurando agregar
o máximo de elementos no menor espaço/tempo possíveis) pudesse ser
transmitida à experiência posterior da leitura.
O procedimento é exacerbado ao final de La literatura nazi, com o
acréscimo do “Epílogo para monstros”, feito em três partes: “Alguns per-
sonagens”, “Algumas editoras, revistas, lugares” e “Alguns livros”. O ritmo
se acelera, reforçando a percepção da enormidade de elementos que ainda
restam por elencar – a exaustividade aparente do projeto é questionada no
exato momento em que a forma é levada ao limite. Com essa aceleração
final, acentua-se também a percepção do efêmero e do esforço poético em

131
direção a ele. Se percebemos essa dinâmica do efêmero em La literatura
nazi a partir da construção dos fragmentos e da listagem de publicações e
biografias no “Epílogo”, verificamos que o mesmo se dá em Los detectives
salvajes a partir da ênfase no discurso oral: não apenas a configuração
formal em verbetes, mas também a ideia do registro imediato da voz no
testemunho. Tanto em Los detectives salvajes quanto em La literatura nazi,
Bolaño busca articular o efêmero da experiência de vidas diversas a partir
de um procedimento literário, a partir de uma específica coordenação dos
elementos gráficos e do corpo do texto. Cada projeto apreende e reflete sobre
o efêmero de uma maneira própria e complementar: em Os detetives, uma
compilação de entrevistas, de vozes; em La literatura nazi, uma compilação
de registros pretensamente enciclopédicos, organizados a partir de uma
voz narrativa comum, distanciada, cadenciada, alheia ao tempo e ao espaço.
Para Bolaño, boa parte da história da literatura se faz na esfera de
influência do efêmero – conversas de bar, oficinas clandestinas de poesia,
papeis rabiscados e esquecidos e, sobretudo, no vasto campo das publicações
menores, artesanais e precárias. Basta atentar para os inúmeros periódicos
obscuros citados em sua obra – a grande maioria inventados, como o são
os romances, livros de contos e poemas nos capítulos de La literatura nazi
–, como Caborca, de Cesárea Tinajero, ou as revistas de estratégia bélica
Waterloo e The General, em El tercer Reich, ou ainda a Revista Literária do
Hemisfério Sul e O Quarto Reich Argentino, ambas citadas em La literatura
nazi. A obscuridade das referências que formam tal história da literatura
não traduz um gesto de aposta no hermetismo ou no elitismo, muito pelo
contrário: funciona como o primeiro acesso a um jogo de referências e
filiações, uma dinâmica que expande a comunidade de leitores/escritores,
que passam a compartilhar o solo comum da busca e do enigma.

***

Alcançar uma forma literária que seja apreendida em sua imediaticidade


foi um projeto de longa data de Bolaño. Já em Amberes encontramos um
esboço daqueles que seriam os poemas visuais de Cesárea Tinajero: no capí-
tulo 22 do livro de 1980, intitulado “El mar”, Bolaño mostra três retângulos
pequenos e, ao lado, um maior, com uma linha horizontal que se torna cada
vez instável (Bolaño, 2002, p. 53). Um poema reduzido à forma, e ainda mais,
à metamorfose de uma forma (da linha reta em direção à linha cada vez
mais instável), sem com isso deixar de contar uma história (que, no entanto,

132
não é jamais fixada, estabilizada). Esse primeiro gesto vai reverberar em Os
detetives selvagens, quando a metamorfose da linha horizontal é creditada
a Cesárea Tinajero e seu poema “Sion” – a mesma linha em transformação,
mas agora sem a moldura dos retângulos, pois cada imagem é acompanha-
da de um trecho de texto que a glosa, até o acréscimo final (que também
já estava em Amberes) do que parece ser uma embarcação sobre a linha:
“O que temos agora? Um barco, falei. Exatamente, Amadeo, um barco. E
o título, Sion, na realidade oculta a palavra Navegación”(Bolaño, 2006, p.
412-413). A utopia de uma forma que possa perdurar – e gerar comentário,
filiação e comunidade – mesmo em sua condição efêmera, emergencial,
e que ganha força e potência de irradiação quando é repetida e reiterada,
como vemos em La literatura nazi.

Referências bibliográficas

BISAMA, Álvaro. “Todos somos monstruos”. In: ESPINOSA, Patricia (comp.).


Territorios em fuga: estudios críticos sobre la obra de Roberto Bolaño.
Santiago: FRASIS, 2003. p. 79-93.
BOLAÑO, Roberto. Amberes. Barcelona: Anagrama, 2002.
_________. Entre paréntesis. Barcelona: Anagrama, 2006.
_________. La literatura nazi en América. Barcelona: Seix Barral, 2005.
_________. Os detetives selvagens. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.
BRAITHWAITE, Andrés. Bolaño por sí mismo. Entrevistas escogidas.
Santiago: Ediciones Universidad Diego Portales, 2006.
FERNÁNDEZ, Macedonio. Museu do Romance da Eterna. Tradução de
Gênese Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
HERRALDE, Jorge. Para Roberto Bolaño. Buenos Aires: Adriana Hidalgo,
2005, p. 89-90.
MANZONI, Celina. “Biografías mínimas/ínfimas y el equívoco del mal”.
In:_________. Roberto Bolaño: la escritura como tauromaquia. Buenos
Aires: Corregidor, 2006., p. 134-145.
PELLICER, Rosa. “Escritores vanguardistas en la narrativa de Roberto
Bolaño”. In: FUENTES, Manuel; TOVAR, Paco (ed.). A través de la
vanguardia hispanoamericana: orígenes, desarrollo, transformaciones.
Tarragona: Publicacions URV, 2011. p. 655-664.

133
'LOS DETECTIVES SALVAJES',
SUA PROMESSA DE SENTIDO
Clarisse Lyra

– Ouço bem, mas não tenho a certeza de compreender. Por que é


que me faz escutar esta personagem, em vez de você mesmo se explicar?
– É porque é preciso escutar a voz de cada um. Não é a mesma. Cada
um explica-se diferentemente, com a sua voz própria. Ignora que as
impressões vocais são mais singulares, mais impossíveis de confundir do
que as impressões digitais, que no entanto são já tão particulares a cada
um?
(Colocando uma máscara que se assemelha a Roland Barthes, ele profere)
“A voz humana é, de facto, o lugar privilegiado
(eidético) da diferença…”
– Não basta que vos faça um discurso sobre a voz. É preciso ainda
saber com que voz o proferir. Que voz falará da voz? Olhe, escute esta.
(Jean Luc-Nancy, "Vox clamans in deserto")

Há uma questão em Los detectives salvajes que é muito importante. É a


questão da voz. Muitas vezes se disse que este é um romance polifônico e
que é precisamente a cornucópia de vozes presente em sua segunda parte
que faz dele um livro tão particular. Outra particularidade notável nessa
configuração polifônica é o fato de que os protagonistas não têm voz. Arturo
Belano e Ulises Lima não falam neste romance, a não ser através da voz dos
outros personagens. Sua presença não se estabelece senão no testemunho,
no reconto. Como narradores, eles estão ausentes.
Laura Hosiasson havia assinalado como o jogo com a língua é parte
fundamental do vagabundeo essencial da literatura de Bolaño, na qual os
personagens principais se encontram sempre em viagem ou, mais apro-

135
priadamente, em trânsito, conformando rotas que quase nunca apontam a
um destino determinado. Ela diz: “Además de surgir dentro de la narrativa
como tema frecuente, el idioma, los acentos, las variaciones sintácticas, los
juegos de traducción, las opciones de vocabulario pasan a ser otra posibili-
dad del paseo al que me referí” (Hosiasson, 2011, p. 32). Segundo a autora,
Bolaño joga com a ideia da existência de varias línguas dentro do espanhol,
problematizando as noções de pertencimento e identidade relativas a uma
nação e o modo como o idioma frequentemente se apresenta como coa-
gulador dessas relações. Desse modo, o problema da língua é em Bolaño
um problema de fundo e não um simples gesto contextualizador; ele põe
em relevo o caráter extraterritorial do escritor, mas aponta também – e
sobretudo – para uma atitude política dele com relação a seu ofício: língua
e ética se confundem na poética de Bolaño, escreve Hosiasson (2011, p. 39).
É possível pensar, porém, que antes do problema da língua está o
problema da voz. A decisão de dividir a narração entre dezenas de vozes
dissímiles, possuidoras de suas próprias inflexões, vozes que representam
pontos de vista absolutamente particulares, é o dado de base do romance,
é seu aspecto mais fundamental. E tal decisão questiona não apenas as
noções de pertencimento, de identidade, de nacionalidade; o problema da
voz, que subsiste no problema da língua, traz à tona o problema da verdade.
Da verdade do relato, digamos.
Porque a divisão da narração entre essas dezenas de vozes fala da
impossibilidade de uma representação unívoca, de uma conformação de
um retrato de corpo inteiro, total, acabado. Essa partilha do relato fala da
dificuldade de apreensão e expressão de uma história de 20 anos, mas fala
também da inconveniência de uma única voz tomar para si o direito à nar-
ração ou à organização do narrado, colocando em cena um retrato-relato
que só pode se construir a partir das contingências, das particularidades
de cada enunciador. Neste sentido, é como se Bolaño operasse neste livro
como um documentarista ou como um mau estudante universitário: dei-
xa que o sentido emerja da leitura sequencial das partes e das frequentes
contradições entre elas, negando-se a fornecer um discurso pretensamente
neutro, explicativo, que suplemente as falas das testemunhas.
E falo aqui de contradição não incidentalmente, já que a controvérsia
é uma das formas através das quais Bolaño questiona a fatalidade da emer-
gência de uma verdade em seu texto. O uso da controvérsia como método
fica bastante claro no caso do retrato que se forma dos personagens Arturo

136
e Ulises: Los detectives salvajes não funciona como um quebra-cabeça, a
não ser que se trate de um quebra-cabeça defeituoso: além de lhe faltarem
algumas peças (peças grandes, fundamentais), aquelas de que dispomos
não se encaixam perfeitamente, apresentam pequenas diferenças que di-
ficultam o encaixe, o qual só é possível com algum esforço. Às vezes é
necessário rasgar um pouco tal peça para que nela caiba a outra, e quase
sempre é preciso ignorar (se nos dispomos a montar o quebra-cabeça) que
o resultado final é um tanto abrumador: a figura final, além de incompleta,
apresenta falhas em alguns encaixes. E não se parece nada à imagem da
capa, se a tomamos como modelo.
Como exemplo ligeiro, podemos nos ater ao que diz respeito à sexu-
alidade de Belano, tema bastante comentado pelos narradores. Em diver-
sos depoimentos este assunto é discutido, oscilando muitas vezes entre
acusações frequentes de homossexualidade, impotência, indiferença em
relação ao sexo ou relatos que o descrevem ora como amante apaixonado,
ora amante violento, ora sado-masoquista. É na aparência inconciliável de
tais comentários que se forma um retrato da sexualidade do chileno, e é
significativo que seja precisamente este um dos tópicos de maior contro-
vérsia do romance; porque a sexualidade, o sexo, o desejo, é justamente
um dos motores, um dos canais de experiência no livro.

***

Há dois momentos no diário de García Madero que são emblemáticos


da premência da voz neste romance. No primeiro deles, Joaquín Font relata
ao autor do diário e à prostituta adolescente Lupe certa história de seus
tempos de estudante:
Cuando yo era joven conocí a un mudo, mejor dicho a un sordomudo […].
El sordomudo frecuentaba la cafetería de estudiantes a la que siempre íbamos
un grupo de amigos de Arquitectura. […] Y en la cafetería siempre encon-
trábamos al sordomudo que vendía […] cosas sin importancia para sacarse
algunos pesos extra. Era un tipo simpático y a veces venía a sentarse a nuestra
mesa. La mera verdad, creo que algunos lo consideraban, de manera bastante
estúpida, la mascota del grupo y creo que más de uno, por puro juego, aprendió
algunos signos del lenguaje de los sordomudos. O puede que fuera el mismo
sordomudo el que nos lo enseñara, ya no lo recuerdo. Una noche, sin embargo,
entré en un café chino como éste […] y de sopetón me encontré al sordomu-

137
do. […] Era tarde. El chino estaba vacío. […] Al principio pensé que era el
único cliente del café. Pero cuando me levanté y fui al baño […] encontré al
sordomudo en la parte de atrás del café […]. Él también estaba solo y leía un
periódico y no me vio. Lo que son las cosas. Al pasar no me vio y yo no lo
saludé. No me sentí capaz de soportar su alegría, supongo. Pero cuando salí
del baño de alguna manera todo había cambiado y decidí saludarlo. Él seguía
allí, leyendo, yo le dije hola, y le moví un poco la mesa para que notara mi
presencia. Entonces el sordomudo levantó la vista, parecía medio dormido,
me miró sin reconocerme y me dijo hola. (Bolaño, 2009, p. 94)
García Madero fica arrepiado ao ouvir a história. Joaquín conta que
também sentiu medo no momento, que quase se pôs a correr do café. Lupe
dá a chave para o ocorrido: o surdo-mudo seria, na realidade, um agente
da polícia, um tipo de espião infiltrado para se inteirar dos assuntos dos
estudantes. García Madero e Joaquín (este, mesmo depois de tantos anos
do acontecido), impressionados sobremaneira com o aspecto de terror
da história, não haviam ainda pensado nessa possibilidade, mas concor-
dam com Lupe; sua hipótese é absolutamente plausível. Um surdo-mudo
é, de fato, para o caso em questão, o disfarce perfeito, alguém que não
despertaria desconfianças ou desconforto entre os estudantes, o supremo
inofensivo ou o supremo impotente 1. Sua impotência – não poder ouvir /
não poder falar – o torna inofensivo. Na impostura revelada nesse episódio,
se insinuam, mesclados, aspectos importantes: a história política de uma
juventude universitária vigiada de perto e reprimida pelo Estado, a astúcia
de uma jovem prostituta que revela o não advertido por um jovem poeta
e um arquiteto de meia-idade, uma possível metáfora da voz como poder.
O outro momento emblemático se desenvolve mais adiante. Relata
García Madero em seu diário:
Nueva llamada al domicilio de los Font. Esta vez contestó una voz de mujer
inidentificable. Pregunté si era la señora Font.
– No, no soy – dijo la voz con un tono que me erizó los pelos.

1. Utilizo aqui o termo “surdo-mudo” por ser aquele que aparece no romance, considerando
que a história é contada por um personagem que tem suas peculiaridades. Não me refiro
à condição real dos sujeitos surdos e/ou mudos, nem ignoro as controvérsias relativas ao
termo citado.

138
Evidentemente no era la voz de María. Tampoco era la de la criada con quién
hacía poco había hablado. Sólo me quedaba Angélica o una extraña, tal vez
amiga de las hermanas.
– ¿Bueno, con quién hablo?
– ¿Con quién quieres hablar? – dijo la voz.
– Con María o con Angélica – dije yo sintiéndome al mismo tiempo estúpido
y atemorizado.
– Soy Angélica – dijo la voz –. ¿Con quién hablo?
[…]
No puede ser Angélica, pensé, es absolutamente imposible. Pero también pensé
que en esa casa estaban todos locos y que sí que podía ser posible. (Bolaño,
2009, p. 109, grifo nosso)
Sentindo-se mal, ele volta a ligar para a casa de Joaquín, ansioso por
falar com María:
Desde otro teléfono público volví a llamar a casa de las Font. Contestó la
misma voz de mujer.
– Hola, Angélica, soy Juan García Madero – dije.
– Hola – dijo la voz.
Sentí náuseas. En la calle unos niños jugaban al fútbol.
(Bolaño, 2009, p. 110)
Após a segunda conversa telefônica com essa voz, García Madero des-
maia. Arturo e Ulises, que tinham acabado de avistá-lo por ali, levam-no
para casa. Abatido e com um pouco de febre, García Madero conta a seus
amigos os acontecimentos daquela tarde e afirma ter se sentido mal por
causa dos telefonemas, coisa de que, a princípio, eles duvidam. Após se
inteirarem dos detalhes das ligações, no entanto, os real-visceralistas ma-
tam a charada: García Madero passou mal porque não foi com Angélica
que ele falou, e isso ele intuía, mesmo que inconscientemente. Alguém
não apenas afirmou ser Angélica ao telefone, como se deu ao trabalho de
imitar sua voz. Com quem, então, teria falado? Ulises e Arturo preparam
a resolução do enigma:
– En realidad, la solución es muy fácil y divertida.
[…]

139
– Alguien lo suficientemente loco como para imitar la voz de Angélica – dijo
Arturo y me miró. – La única persona en esa casa capaz de hacer una broma
perturbadora. (Bolaño, 2009, p. 111-112)
Joaquín Font, o pai das meninas. Esta é a resposta que lentamente se
forma na cabeça de Juan. O mesmo Quim que lhe contou a história do
surdo-mudo:
Más tarde recordé la historia del sordomudo que me contó Quim y pensé
en los maltratadores de niños que en su infancia han sido niños maltratados.
Aunque ahora que lo escribo no consigo ver con la misma claridad que enton-
ces la relación causa-efecto entre el sordomudo y el cambio de personalidad
de Quim. (Bolaño, 2009, p. 112)
Os episódios mencionados, o do surdo-mudo e o da farsa de Joaquín,
são emblemáticos da questão assinalada porque dramatizam a relação entre
voz e verdade. A relação entre os dois acontecimentos estriba na impostura,
na mentira que tem como meio ou como pretexto a voz. O livro de Bolaño,
ao realizar uma partilha da “voz cantante”, coloca em cena a questão da
pessoalidade da voz, das relações entre voz e sujeito e entre voz e experiência.
Essas situações contadas no diário de García Madero problematizam essas
relações, criam excepcionalidades que tensionam a naturalidade da questão
e, por outro lado, relevam o papel da voz como arma ou como methodus.

***

No texto que aparece na epígrafe deste ensaio, Vox clamans in Deserto,


Jean-Luc Nancy realiza uma dramatização do ensaio como forma que se
dobra numa dramatização do próprio tema do ensaio, a voz. Para falar
da voz – entendemos em seu texto – é preciso ouvir as diferentes vozes: a
reflexão se apresenta através de um diálogo intercalado pela irrupção das
falas dos autores discutidos, que soam no espaço da representação (“um
espaço nu, claro e sonoro”) através de máscaras, de uma tela, ou apenas
em suas inflexões. Paul Valéry, Roland Barthes, Rousseau, Jacques Derrida,
Hegel e Kristeva, entre outros, são convocados – ou invocados – pelos
dois personagens da cena a falar. Neste ensaio escrito como peça, o ato da
enunciação vocal, da elocução, adquire toda importância. A voz, instância
altamente definidora e diferenciadora do sujeito, é, ao mesmo tempo, uma
abertura, um lançamento no mundo anterior à linguagem e à fonação; o

140
que leva os personagens-vozes a indagarem, para além da individualidade
da voz, ou melhor, antes da individualidade da voz, se há sujeito na voz.
Uma voz começa aí onde começa o entrincheiramento de um ser singular.
Mais tarde, com a sua fala, ele refará laços com o mundo, dará sentido ao
seu próprio entrincheiramento. Mas primeiro, com a sua voz, clama um puro
desvio, e isso não faz sentido. (Nancy, 2013, p. 4)
[...]
Estou de acordo quanto a esta marca, ou a esta assinatura indelével da voz. Mas
trata-se de saber, antes da impressão da marca, no traçamento, na abertura
e na emissão da voz, o que é o mais propriamente vocal. Ora isso não releva
do sujeito. Porque o sujeito é um ser capaz de ter em si e de suportar a sua
própria contradição… (Nancy, 2013, p. 5)
O jogo encenado por Nancy é curioso: faz lembrar em alguns momentos
uma sessão espírita ou um clube de fantasmas; também evoca de algum
modo o teatro de Samuel Beckett; ele insiste em que há algo na mensagem
que se desprende através da voz, da entonação, da inflexão, da impostação,
e que este algo demarca o lugar da diferença – mas, pondo em relevo a
voz como lugar da diferença, a reflexão se realiza como escrita, atividade
muda. Daí a significância extrema de seu jogo de concepção como peça de
teatro, cujo destino é ser representada. E daí sua relação com o romance de
Bolaño, que realiza também, através da partilha da narração entre dezenas
de testemunhos orais – bem como através das situações acima descritas –,
uma dramatização da questão da voz.
É precisamente o fato de Bolaño propor tal dramatização que dá a
dimensão da significação da falta de voz dos protagonistas. Arturo e Ulises
não são sujeitos do discurso; como falar, então, de sua experiência, se ela
não se configura como linguagem, pelo menos não a partir da primeira
pessoa? Giorgio Agamben definiu: “O sujeito transcendental não é outro
senão o ‘locutor’, e o pensamento moderno erigiu-se sobre esta assunção
não declarada do sujeito da linguagem como fundamento da experiência
e do conhecimento” (2005, p. 57). A experiência dessas personagens se en-
contra sempre interposta pela voz de um outro. Isto é: sua experiência não
se constrói como subjetividade, mas como objeto de uma enunciação. Se há
sujeitos em Los detectives salvajes, esses sujeitos não são os protagonistas,
mas aqueles que têm voz, os narradores, de quem, no entanto, nós leitores
sabemos em geral ainda menos do que sobre os espectros Arturo e Ulises.

141
Não sendo sujeitos de linguagem em relação à enunciação do livro
– sendo sujeitos de linguagem apenas no que respeita ao reconto, dentro
da narração dos outros personagens –, não sendo os donos da primeira
pessoa, coloquemos dessa maneira, não seriam também os protagonistas
sujeitos de experiências. Aqui entra o interessante da questão: a mediação
faz com que essas experiências e essas subjetividades se constituam através
de olhares exteriores, através de uma outredade; ou melhor, através de uma
gama de outredades que estão em conflito entre si. Os sujeitos Arturo e
Ulises emergem dos conflitos entre essas vozes em primeira pessoa. Só
podemos vislumbrar as experiências – e saber da própria existência – dos
protagonistas a partir da voz de um outro. Um outro que, este sim, é um
sujeito do discurso, possui um “eu”.
Os estudos de Benveniste [...] mostram que é na linguagem e através da lin-
guagem que o homem se constitui como sujeito. A subjetividade nada mais
é que a capacidade do locutor de pôr-se como um ego, que não pode ser de
modo algum definida por meio de um sentimento mudo, que cada qual ex-
perimentaria da existência de si mesmo, nem mediante a alusão a qualquer
experiência psíquica inefável do ego, mas apenas através da transcendência
do eu linguístico relativamente a toda possível experiência [...]. “É ‘ego’ aquele
que diz ego”. (Agamben, 2005, p. 56, grifo do autor)
Mas esse “eu” dos narradores se configura em função, ou em relação
aos protagonistas. Se há experiência no livro, se ela ainda é possível, se
eventos significativos ainda podem se configurar como experiência, isto
se dá apenas através da voz de um outro. Nesse caso, pode-se dizer que
não há imediatez na experiência? A vivência só se configura como relato,
representação, conto, narratividade? É cedo para afirmar algo assim. Mas
podemos dizer por ora que, neste romance, só é possível falar de experiência
através do relato de terceiras pessoas, aquelas que detêm a primeira pessoa
no romance, nossos narradores – amigos, ex-namoradas e diversas pessoas
com quem nossos heróis tiveram algum tipo de contato. Então é através
do outro, e apenas através do outro, que a experiência pode se constituir
neste romance. Isto sem dúvida terá relação com o fato de que a amizade,
o sexo e os confrontos corporais são os momentos primordiais do livro. A
experiência é toda mediada, e mais que por um aprendizado solitário, uma
reflexão, ela se dá no contato com o outro.

***

142
No clássico ensaio “O narrador”, Walter Benjamim formula uma senten-
ça que define seu objeto: “O narrador é a figura na qual o justo se encontra
consigo mesmo” (1994, p. 221). Se pensássemos em formulações alternativas
a esta sentença que nos permitissem aproximarmo-nos ao livro de Bolaño,
poderíamos, por exemplo, dizer: o narrador é a figura do desencontro e, ao
mesmo tempo, a figura de como o encontro só pode se dar através do outro.
Ou ainda: o narrador de Bolaño é a figura na qual o detetive se encontra
com o relato daquilo que ele busca, nunca com o objeto mesmo.
Este livro poderia ser lido como a história do desencontro entre o leitor
e os protagonistas. Se a segunda parte do livro se organiza como coletânea
de entrevistas ou depoimentos, e se o entrevistador, que é um personagem
oculto, está em busca de Ulises e Arturo, como parece estar, neste caso, o
narrado pela segunda parte é a longa história de um desencontro. A história
de um entrevistador, um buscador, um detetive, que chega sempre atrasado,
sempre depois que Ulises ou Arturo já partiram de onde ele se encontra.
A história do desencontro do entrevistador com os protagonistas, ou do
detetive com o objeto de sua busca. E também, em certo sentido, a história
do desencontro entre os protagonistas e sua voz, sua possibilidade de fala.

***

Falando em busca, em detetive, é importante lembrar que Los detecti-


ves salvajes se constrói a partir da colocação de mistérios paulatinos. Sua
estrutura evoca um romance policial, no sentido de que a todo momento
ele parece se encaminhar para uma revelação. Laura Hosiasson bem anotou:
“La verdad es que Poe está por doquier en su obra, desde ciertos títulos
como Los detectives salvajes […], pasando por su definitiva obsesión por
la estructura del relato policial como uno de los engranajes de gran parte
de sus relatos” (2011, p. 34). Esses mistérios nem sempre partem de uma
pergunta bem formulada. Muitas vezes o leitor não é capaz de precisar a
sensação de mistério que experimenta, sendo ela fruto de pequenas insinu-
ações, pequenas intromissões que se sucedem, sustentando a forte tensão
do relato. Por isso o crítico Ezequiel de Rosso escreveu que o segredo, nesse
romance, “Es pensado como una instancia dinámica. Es decir, se trata de
pensar al secreto no como un lugar cerrado e inaccesible, sino como un
lugar productivo […]. Se trata de ver al secreto ‘entre’: siempre en circu-
lación” (2006, p. 137).

143
Essa impressão de que há no texto um segredo, um sentido oculto
que resiste em vir à tona, é mantida durante todo o romance. Predições de
ruína, profecias estranhas que são ditas desde o hospício, figuras que são
perseguidas por sombras no meio da rua são elementos responsáveis por
insinuar a intromissão de outra ordem que não a dos fatos corriqueiros.
Tudo o que se tem são insinuações que não deixam de provocar nos leitores
uma sensação semelhante àquela descrita por Jorge Luis Borges em “La
muralla y los libros”:
La música, los estados de la felicidad, la mitología, las caras trabajadas por el
tiempo, ciertos crepúsculos y ciertos lugares, quieren decirnos algo, o algo dije-
ron que no hubiéramos debido perder, o están por decir algo; esta inminencia
de una revelación, que no se produce, es, quizá, el hecho estético. (1999, p. 13)
Essa “iminência de uma revelação que não se produz” é, precisamente,
o efeito que conscientemente busca Bolaño, introduzindo o leitor em um
jogo que consiste em operar sempre com o ambíguo, com o não dito ou
dito a medias. Interessante, pela semelhança das imagens, o paralelo pos-
sível entre essa célebre colocação de Borges e o seguinte trecho de Lévinas,
escrito em La realidad y su sombra. Segundo o filósofo, a arte
Es el acontecer mismo del oscurecimiento, un atardecer, una invasión de
sombra. Para decirlo en términos teológicos que permitan delimitar […] las
ideas respecto a las concepciones comunes, el arte no pertenece a las concep-
ciones comunes, el arte no pertenece al orden de la revelación. (2001, p. 47)
No contexto desse trecho, o autor está tentando tirar a arte do território
do conhecimento: “Si el arte no fuera originalmente ni lenguaje ni conoci-
miento […], la crítica se encontraría rehabilitada. Señalaría la intervención
necesaria de la inteligencia para integrar en la vida humana y en el espíritu
la inhumanidad y la inversión del arte” (Lévinas, 2001, p. 45). Talvez, em
algum sentido, a aposta de Lévinas justifique o pressentimento de Borges.
A imagem do escritor argentino, completa, per-feita, se inscreve talvez
nesse terreno que descreve o filósofo lituano de uma arte que está fora do
humano e que, portanto, não revela. E não é que ela oculte um sentido que
esteja presente no texto; sua própria natureza é esse ensombrecimento que
não necessariamente cobre algo, mas que se realiza como um movimento
significativo em si. É então a crítica que vai desencravar, ou criar, através
da interpretação, sentidos para essa obscuridade.

144
Borges e Bolaño, de maneiras distintas, parecem reconhecer aquilo
que pontuou Lévinas: a arte – o símbolo, a literatura – tem sua opacidade;
não é ela apenas uma janela através da qual é possível observar as coisas
do mundo. Se existe algo que a leitura não revela, há de ser porque existe
algo de muito importante que está aquém da revelação. Se não, por qual
outro motivo encerraria Bolaño seu romance com o desenho de uma janela,
cuja moldura já começa a se desfazer, seguido do acertijo “¿Qué hay detrás
de la ventana?”, cuja resposta nunca chegaremos a conhecer, cuja resposta
talvez sequer seja possível?
Esse jogo de opacidade assumido pelas narrativas de Borges e de Bolaño
confronta e, ao mesmo tempo, instiga nossa natureza de críticos literários
“treinados para descobrir significados” (Stallybrass, 2008, p. 98). Reinaldo
Laddaga (2007, p. 35), por exemplo, notou que a “felicidade de ir adivinhan-
do” é, em Borges, a forma própria do prazer que tem por ocasião o texto
narrativo. Esta felicidade, no entanto, está reservada apenas ao leitor que
suponha no jogo dos signos a cifra de uma ordem “sigilosa e crescente”,
cuja percepção, ao passo que produz um impulso de interpretação, produz
também a suspensão da possibilidade de concluir alguma interpretação
determinada (Laddaga, 2007, p. 36).
Roberto Ferro (2010, p. 240), por sua parte, acentuou que o leitor de
Borges “não busca o sentido como se perseguisse uma mensagem profunda,
mas desenvolve uma viagem incessante através de textos que [...] entrete-
cem um número indeterminado de outras textualidades” , o que faz com
que a leitura de seus contos se configure como uma “greta sempre aberta
por onde desliza o sentido sem possibilidade alguma de fechamento pela
constatação de uma única verdade”.
Esta encenação da leitura como motor primordial da ficção – o que
em Borges é um influxo da literatura policial e em Bolaño é também, e
sobretudo, um influxo de Borges – é em grande parte responsável pelo
aspecto de suas poéticas que determina que “a resolução do enigma [seja]
sempre inferior à invenção do enigma” (Ferro, 2010, p. 244), pois Borges
e Bolaño estão mais preocupados em fazer girar uma série de referências
de modo ininterrupto.
Porém, se, acerca de Borges, Ferro emitiu um juízo cravado ao dizer
que “o tema de um processo de busca sem fim abre um caminho para a
relativização da verdade enquanto correspondência entre a palavra e o
mundo, configurando toda certeza acerca do referente como uma citação

145
de outras citações, com frequência apócrifas” (2010, p. 244), acerca de
Bolaño seria mais acertado dizer (ao menos neste momento e com relação
a Los detectives salvajes) como o poeta Fabiano Calixto: “a sombra que
escapa daquela / palavra é um deserto de sentido” (2013, p. 45) – mesmo
se a linguagem de Bolaño for completamente transparente.

***

Ao propor, desde o título, elementos para uma busca, para uma inves-
tigação, o romance de Bolaño realiza uma promessa de sentido. Na segunda
parte, os vaticínios e as predições constroem um itinerário de leitura em
que tudo parece se encaminhar para uma revelação, tudo anuncia a imi-
nência de uma verdade. O mistério talvez seja o método em Los detectives
salvajes, o caminho. Ele não é o objetivo do livro, nem seu centro. Nesse
sentido, assemelha-se ao Macguffin, técnica operada por Hitchcock em seus
filmes, que consistia em inserir elementos de suspense que impulsionam a
ação e os personagens, mas que carecem de importância real para a trama,
desviando a atenção do espectador do que de fato importa. No entanto,
assemelhando-se ao Macguffin, é também algo diferente. Porque, em Los
detectives, não é tão fácil determinar o que é acessório e o que importa na
trama. De verdade, se nos perguntamos o que de fato está acontecendo no
livro?, chegamos a uma resposta satisfatória? Ou parece que tudo importa
e nada importa ao mesmo tempo, porque é nas contingências e nas histo-
rietas particulares que o livro se faz (e o que é significativo para um nar-
rador é irrelevante para o outro)? Por seu turno, o mistério pode também
significar/representar coisas diversas: presente no discurso de personagens
como Joaquín Font ou Amadeo Salvatierra, os vaticínios revelam uma visão
apocalíptica causada pela nostalgia como descrença em um futuro possível;
em outros casos, como no de María Font, eles parecem uma recusa e ao
mesmo tempo uma forma de enfrentamento ao fim da adolescência, ao
início da vida en los tubos de supervivencia.
O(s) mistério(s) que coloca Los detectives salvajes é, portanto, sua
promessa de sentido mais incisiva2. O formato livro, o gênero romance,
a instituição autor, já são promessas de sentido prévias, idealizadas por
qualquer texto. Desse ângulo, todo texto é uma promessa de sentido. No

2. Usamos aqui de modo livre a expressão que aparece em “Teologias do romance” de


Jacques Rancière (1995, p. 61).

146
caso específico deste romance, no entanto, pensando no modo como se
constrói sua narratividade, é preciso considerar o enigma que o livro pro-
põe para pensar o tipo de relação transcendental que ele desenha. Sentido,
transcendência, sujeito e experiência são, como nos ensinou Derrida (1995),
metáforas que o pensamento moderno inventou para cobrir a ideia de
centro. Palavra-conceito-imagem que, tomada em seu aspecto mais literal,
constitui um dos grandes problemas que está em jogo em Los detectives
salvajes: uma enunciação estilhaçada, uma trajetória centrífuga, pontos de
vista desconexos, vozes dissímiles... e, aparentemente no centro de tudo
isto, dois protagonistas – ausentes. Um centro esvaziado. É mais ou menos
como se nos encontrássemos, nos testemunhos do livro, com a situação
que descreve Lévinas em relação à obra de arte:
La conciencia de la representación consiste en saber que el objeto no está ahí.
Los elementos percibidos no son el objeto, sino como sus “guiñapos” […].
Estos elementos no sirven de símbolos y, en ausencia del objeto, no fuerzan
su presencia, pero, por su presencia, insisten sobre su ausencia. Ocupan ente-
ramente su lugar para indicar su alejamiento, como si el objeto representado
muriera, se degradara, se desencarnara en su propio reflejo. (2001, p. 54)
É a partir da ausência, portanto, que se desenham as relações funda-
mentais neste livro. Tudo o que parece ser primordial nele se apresenta
como falta, não apenas os protagonistas – a obra dos poetas não está, o
registro das conversas com Cesárea não está, qualquer resposta definitiva
também não está. A duas páginas do final do livro, García Madero diz (em
relação à revelação dos cadernos de Cesárea): “No tiene ningún sentido
hacerlo” (Bolaño, 2009, p. 607), e o romance se encerra sob o efeito dessa
frase. Não obstante, para ponderar as inscrições do sentido neste roman-
ce, é preciso, além de considerar o movimento de retorno que ele propõe,
encarar a negação, a falta e a ausência como pontos de irradiação, pontos
de partida e de chegada, jamais como clausura.

Referências bibliográficas

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da história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.

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STALLYBRASS, Peter. O casaco de Marx: roupas, memória, dor. Belo
Horizonte: Autêntica, 2008.

148
UMA BREVE HISTÓRIA
DO LATINO-AMERICANISMO E O
'ÚLTIMO ESCRITOR LATINO-AMERICANO'1
Mariana Di Salvio

Motiva este ensaio um anacronismo presente na obra de Roberto Bolaño,


a de que o autor, por ocupar um lócus de enunciação latino-americano
em pleno século XXI, acaba desconstruindo uma ideia essencialista da
literatura latino-americana, cujos pilares se fundamentam naquilo que se
mostra como próprio na medida em que se cifra mediante o exótico, o outro,
o não europeu; uma tradição que se inaugura paradoxalmente evocando
modelos provenientes da cultura colonizadora, o que camufla uma série de
conflitos sociais nas representações canônicas do latino-americano, como
também problematiza as relações entre ficção, identidade e poder.
Nos primeiros textos fundacionais, por meio dos quais se inicia a ins-
crição do espaço latino-americano dentro da tradição ocidental, escritos
mais por uma vontade instrumental de fundar, informar ou colonizar do
que por uma vontade estética, já se pode entrever uma impostura da forma
mediante a introdução dos cânones e alfabetos europeus, os quais servirão
de modelo e ameaça para aquele espaço de fusão onde convive uma plura-
lidade de línguas e culturas com ritmos próprios e em diferentes graus de
complexidade. Espaço de alteridade que, continuamente ressignificado, será
um dos elementos da disputa representativa e da afirmação da literatura na
América Latina desde o final do século XIX, quando, em meio à crise do
sistema letrado anterior, onde a figura do escritor vai progressivamente se

1. O termo “último escritor latino-americano” foi apropriado do ensaio “La literatura


latinoamericana ya no existe”, de Jorge Volpi, que será tratado neste ensaio.

149
afastando das funções estatais de projetar modelos civilizatórios e moder-
nizadores para os Estados recém formados, o intelectual busca um lugar de
autoridade para o discurso literário em vias de especializar-se, operando
tanto uma crítica aos efeitos contraditórios de uma modernização desigual
e fragmentada, quanto um posicionamento político frente ao avanço im-
perialista das nações europeias e dos Estados Unidos.
Uma obra representativa desse momento pelo qual pouco a pouco os
intelectuais postulam uma “comunidade imaginada”2, demarcando uma
posição onde o sujeito se situa “frente a todo sujeto central que lo constituye
en el Otro; sometido o pasible de ser sometido, asimilable o pasible de ser
asimilable”(Achugar, 1994, p. 638), é Nuestra América (1891), de José Martí.
Nesse clássico da literatura latino-americana, o cubano tanto condena a
retórica modernizadora dos letrados indiferenciados, “cujo discurso, deli-
mitado pelas formas do livro importado, havia excluído a particularidade
americana, autóctone, dos projetos nacionais” (Ramos, 2008, p. 267), como
também, no conflituoso campo da identidade, cria um lócus de enunciação
geográfico e literário para um pensamento com espessura latino-america-
na, pelo qual “propõe a construção de uma biblioteca alternativa”(Ramos,
2008, p. 267) à europeia. Esse campo literário moderno, ao contrário das
literaturas das nações centrais que nesse momento já possuíam bases ins-
titucionais que garantiam sua autonomia, tenta demarcar sua autoridade
discursiva posicionando-se em relação ao outro imperialista, convertido
em elemento ameaçador da autonomia cultural e literária latino-americana.
Destaca-se assim, num dos desdobramentos dessa modernidade, o projeto
poético de Ruben Darío, que renova de modo particular a maneira como
se escreve literatura em língua espanhola. Essa ação poética de Darío, que
revoluciona ritmicamente o verso em espanhol, povoando o mundo literário
com novas fantasias como também revitalizando os modelos parnasianos e
simbolistas franceses, inverte pela primeira vez a via de troca entre América
Latina e Espanha.
Aos poucos, durante as primeiras décadas do século XX, com o vertigi-
noso crescimento das cidades, as transformações tecnológicas dos meios de

2. Achugar, no artigo “La hora americana o el discurso americanista de entreguerras”,


em diálogo com Benedict Anderson , afirma que “el discurso americanista es, pues una
acción a nivel real y simbólico, contribuye a producir una realidad a la vez que expresa
un imaginario social, un deseo y una identidad” (1994, p. 637), salientando os dispositivos
ficcionais necessários à criação do sujeito nacional.

150
comunicação, a Revolução Mexicana (1910) que colocou a causa indígena
em destaque, dentre outros acontecimentos, e influenciados pelas vanguar-
das europeias, desejosas de ruptura em meio a um clima de crise política e
social, com a presença da Primeira Guerra Mundial e das várias correntes
ideológicas, como o nazismo e o comunismo, os escritores se lançaram,
entre a segunda metade da década de 1910 até os primeiros anos de 1930,
em uma grande modernização da linguagem literária no nosso continente,
a qual, segundo Ana Pizarro, permite o deslocamento “de los modelos
referenciales desde los patrones ibéricos y luego franceses a la generación
de modelos propios, que, sin invalidar los anteriores, enriquecen el espec-
tro de una construcción identitaria más arraigada en la memoria cultural
propia”(1995, p. 21). A mestiçagem, a margem, os elementos autóctones
passam a ser percebidos como possibilidade de uma expressão diferencia-
dora e, sendo assim, a ideia de ruptura, quase um sinônimo da vanguarda
europeia, “apresenta-se como inadequada frente à história latino-americana”
(Gelado, 2006, p. 27). Como apontam vários historiadores da literatura, na
América Latina os movimentos vanguardistas, muito heterogêneos entre
si, se localizam na tensão entre a modernização, assentada no prestígio do
repertório formal europeu e estadunidense, identificado, de certo modo,
com a “alta cultura”, e uma ordem mais regionalista, que aponta para uma
forma de expressão da memória baseada na diversidade cultural, marcada
tanto por um passado colonial, como também pelo crescimento das cidades,
pelo fluxo migratório de europeus e pela cultura popular.
As vanguardas latino-americanas se caracterizavam então como movi-
mentos antiacademicistas, cujos objetivos, frente à crise da modernidade e
da intensa divisão do trabalho, giravam em torno da reintegração da obra
estética à práxis vital: um movimento cosmopolita que, ao mesmo tempo
em que estava em sintonia com as vanguardas europeias, chegando a in-
fluenciá-las, como no caso de Vicente Huidobro com o seu Creacionismo,
assimilava elementos que até então não eram considerados matéria verbal
de um projeto literário no nosso continente, quebrando os limites entre
gêneros e ampliando de maneira significativa os temas a serem tratados
pela literatura. No modernismo antropofágico brasileiro de Oswald de
Andrade, por exemplo, há simultaneamente o desejo de reconhecimento
de uma memória étnica, a do indígena, e o de digerir simbolicamente a
tradição cultural dos países centrais para poder ser capaz de ultrapassar
o modelo: “Tupi, or not tupi that is the question”, diz o manifesto de 1914.

151
Por outro lado, na Argentina, Roberto Arlt, filho de imigrantes, desenha
uma identidade nacional a partir da periferia de Buenos Aires, dessa zona
suburbana de conflito social e cultural (onde convive uma pluralidade de
línguas, desde o espanhol rio-platense até a dicção dos imigrantes), assimi-
lando tanto uma dicção mais oralizada e popular como também um saber
fragmentado mediado pelo jornalismo, cujo alcance na capital argentina
é bastante significativo nessa época.
Com as vanguardas são ampliados, portanto, as dicções e o campo de
abrangência da literatura latino-americana, tornando-se mais complexa a
divisão entre “baixa” e “alta” cultura. Cabe destacar, no entanto, que en-
quanto no âmbito hispano-americano a poesia ganha lugar de destaque, no
âmbito brasileiro se privilegia a prosa (Gelado, 2006, p. 13). Sendo assim,
nos interessa aqui apenas mencionar no âmbito hispano-americano as no-
velas de la tierra da década de 1930, romances realistas e naturalistas, com
traços decimônicos e sem grandes inovações formais, que compartilhavam
com as vanguardas e outros discursos literários o contexto da literatura na
época. Esses romances, a partir dos anos 1940, entram em uma profunda
crise, sendo ressignificados criticamente por uma múltipla e heterogênea
comunidade de escritores que participaram do fenômeno conhecido como
o boom latino-americano na década de 1960, de alcance mundial, geração
que logrou construir para o nosso discurso literário um lugar dentro do
cânone ocidental, perdendo finalmente o estatuto de subalterno ou em
permanente débito com o modelo europeu. Uma “identificación hacía fuera”
(1995, p. 399), como sublinha Saúl Sosnowski, ou seja, em diálogo quase
que exclusivo com o cânone ocidental hegemônico, o que faz o teórico
apontar um dos motivos “que permite comprender la presencia de una
fuerte corriente regionalista”(1995, p. 400) nesse momento.
Nessas obras, os escritores ofereciam “al espacio hegemónico su visión
del mundo y una dimensión imaginaria que ampliaban sensiblemente los
códigos culturales que atraviesan al lector occidental” (Sosnowski, 1995, p.
400). A partir de estéticas que competem entre si, como o uso de elemen-
tos mágicos e realistas, eles mostravam o irreal sob um olhar cotidiano e
comum, como fez Gabriel García Márquez em Cien años de soledad (1967),
ou então questionavam as dimensões temporais e espaciais da realidade,
como fez Júlio Cortázar no conto “El perseguidor” (1959), dentre outros
procedimentos que exauriam as representações da realidade e indagavam

152
tanto sobre os limites entre realidade e ficção, como também o próprio
estatuto representativo da linguagem.
Contudo, apesar do grande entusiasmo em torno do boom, que não
somente elevou consideravelmente o alcance das obras latino-americanas
por várias regiões do mundo, mas também, influenciados em grande me-
dida pelas utopias de esquerda do século passado, revolucionou um modo
de construção narrativa, devido ao intenso trabalho com a linguagem que
se propôs a “tomar la posesión de los tropos que habían sido frecuentados
en las metrópolis occidentales universalizándolos desde su americanismo”
(Sosnowski, 1995, p. 400), esse modelo parece estar um pouco desgastado
para grande parte dos escritores contemporâneos.
Em 1951, na conferência “El escritor argentino y la tradición”, Jorge
Luís Borges aponta prematuramente para a falência de se pensar a literatura
argentina somente a partir da cor local, como se o tema escolhido pelo
escritor fosse imprescindível para legitimá-lo como tal e ainda como se a
nacionalidade não fosse também um constructo social e ficcional : “porque o
ser argentino es una fatalidad, y en ese caso los seremos de cualquier modo,
o ser argentino es una mera afectación, una máscara” (Borges, 1961, p. 137).
Borges ainda postula que o escritor argentino possui uma certa vantagem
por estar dentro e fora da cultura ocidental e, justamente por isso, pode
manejar variados temas europeus sem superstições e com grande liber-
dade. Seu patrimônio é universal, diz Borges, e o escritor argentino deve
portanto “ensayar todos los temas” (1961, p. 137). Essa mesma discussão é
retomada com uma certa ampliação geográfica por Juan José Saer, em “La
selva espesa de lo real”, onde o autor condena esse chamado a ser, pautado
por estereótipos construídos em torno do exótico, do deslumbramento e
da cor local.
La tendencia de la crítica europea a considerar la literatura latinoamericana
por lo que tiene de específicamente latinoamericano me parece una confusión
y un peligro, porque parte de ideas preconcebidas sobre América Latina y
contribuye a confinar a los escritores en el gueto de la latinoamericanidad.
(2012, p. 260)
Mais recentemente, em 2011, em um ensaio com o sugestivo título “La
literatura latinoamericana ya no existe”3, o escritor mexicano Jorge Volpi,
sem desconsiderar a grande contribuição do realismo mágico à literatura

3. Disponível em: http://goo.gl/8ZuXLc. Acesso: junho, 2015.

153
latino-americana, opera uma crítica às demandas editoriais que impelem
os escritores a serem “latinoamericanos”, ou seja, “a practicar el realismo
mágico como única forma de conseguir lectores”. Afirma que o boom foi
um momento em que “los escritores se identificaban entre sí y al mismo
tiempo defendía una tradición”, que “supieron apropiarse los mejores ele-
mentos de la tradición occidental, sin por ello renunciar a su condición
excéntrica”. Postula também que “la literatura latinoamericana siempre fue
una construcción imaginaria, de modo que tampoco es necesario lamentarse
mucho de su desaparición”, e completa:
lo mejor de la literatura latinoamericana continúa allí: miles de escritores
empeñados en hallar sus propios caminos, ajenos por completo a las clasi-
ficaciones académicas, y millones de lectores que habrán de valorarlos no
por su proveniencia geográfica o su identidad latinoamericana, sino por su
capacidad de narrar, reflexionar o conmover.
É neste momento de fissuras em torno da ideia da literatura latino
-americana, que traz à tona tanto como uma relação geo-histórica foi se
convertendo, pouco a pouco, em uma relação essencialista com a terra e
com o mágico (Freire)4, a partir da qual se constrói um espaço de alteridade
em diálogo quase que exclusivamente com o olhar hegemônico, camuflando,
portanto, tensões de ordem étnica, cultural e social que permeiam a vida
no continente; como também a emergência de diversas vozes minoritárias
no espaço discursivo, ampliado pelas tecnologias da comunicação, proble-
matizando ainda mais nossas construções identitárias canonizadas, que
Roberto Bolaño arma sua comunidade literária.
O escritor, que teve uma vida de ações literárias nômades (nasce no
Chile, passa parte da adolescência e juventude em México D.F, e aos 24 anos
se muda à Espanha, onde morre em 2003, com apenas 50 anos de idade),
diz em uma entrevista ser latino-americano antes que chileno, espanhol ou
mexicano (Bolaño, 2011, p. 70). No conhecido Discurso em Caracas, quando
recebeu o prêmio Rómulo Gallegos (1999) pela obra Los detectives salvajes
(1998), Bolaño traça como a pátria do escritor sua língua e as pessoas de
quem ele gosta, e completa:
Y a veces la patria de un escritor no es la gente que quiere sino su memoria. Y
otras veces la única patria de un escritor es su lealtad y su valor. En realidad,

4. Disponível em: http://www.redalyc.org/pdf/902/90223045004.pdf. Acesso: setembro, 2015.

154
muchas pueden ser las patrias de un escritor, a veces la identidad de esta pa-
tria depende en grado sumo de aquello que en ese momento está escribiendo.
Muchas pueden ser las patrias, se me ocurre ahora, pero uno solo el pasaporte,
y ese pasaporte evidentemente es el de la calidad de la escritura. Entonces,
¿qué es una escritura de cualidad? Pues lo que siempre ha sido: saber meter la
cabeza en lo oscuro, saber saltar al vacío, saber que la literatura es básicamente
un oficio peligroso. (2006, p. 211)
Por isso, o exílio é para Bolaño a condição da literatura, é mediante
o exercício de exílio que o escritor perde o sentido de pertencimento, ad-
quirindo maior liberdade de criação. Esse tema – o do exílio – atravessa
portanto não apenas a vida pessoal do autor, mas também em toda sua obra
ele surge como assunto de reflexão metaliterária: “Literatura y exilio son,
creo, las dos caras de la misma moneda, nuestro destino puesto en manos
del azar” (Bolaño, 2004a, p. 43) .
Positivado então como lugar de criação, o exílio ora é identificado com
poetas da intempérie, errantes, ora se resume a “una cuestión de acento”
(Bolaño, 2004b, p. 53), para tornar-se também “el nombre secreto de viaje”,
ora coincide com o conceito de “tierra extraña” – “¿La tierra extraña es
una realidad objetiva, geográfica, o más bien una construcción mental en
movimiento permanente?” (Bolaño, 2004b, p. 49) – dentre outras muitas
possibilidades de significações imaginadas por Bolaño, sendo que, em todas
elas o exílio se aproxima da liberdade, do risco e do valor do escritor. Em
sua obra, portanto, o exílio pode ser considerado como o exercício ético
da liberdade inerente ao labor do escritor.
El exilio es el valor. El exilio real es el valor real de cada escritor.
Llegado a este punto he de decir que al menos en lo que respecta a la litera-
tura, no creo en el exilio. El exilio es una cuestión de gustos, caracteres, filias,
fobias. (...)
Probablemente todos, escritores y lectores, empezamos nuestro exilio, o al
menos un cierto tipo de exilio, al dejar atrás la infancia. Lo que llevaría a
concluir que el ente exilado, la categoría exiliado, sobre todo en lo que res-
pecta a la literatura, no existe. Existe el inmigrante, el nómade, el viajero, el
sonámbulo, pero no el exilado, puesto que todos los escritores, por el solo
hecho de asomarse a la literatura lo son, y todos los lectores, ante solo hecho
de abrir un libro, también lo son.
(...)

155
Gombrowicz supo ver en Argentina esa cualidad del exilio y para el exilio:
una tierra en donde la Forma se deshace constantemente, tierra no historiada,
es decir tierra abierta a la libertad y a la inmadurez. (Bolaño, 2004b, p. 50-52)
É por tudo isso que Bolaño opina, em diversos momentos de sua obra,
que a nostalgia de escritores exilados na Europa, “cargados más de dolor
que de razones” (Bolaño, 2004b, p. 49) lhe soa um tanto quanto ininteligível
na medida em que não
se puede tener nostalgia de la pobreza, de la intolerancia, de la prepotencia,
de la injusticia (...) a no ser que esta nostalgia anormal esté dictada por la
soledad. La soledad sí que es capaz de generar deseos que no se corresponden
con el sentido común o con la realidad. (Bolaño, 2004a, p. 43-44)
É por essa aporia delineada tanto por um passado de violência exces-
siva – que calou as vozes minoritárias do nosso continente, cifradas pela
literatura mediante a construção de uma alteridade que confrontasse a
literatura hegemônica (e que remonta, de certo modo, aos textos fundacio-
nais do século XVI por utilizar elementos ficcionais da ordem do exótico
e do maravilhoso, apagando as contradições sociais e culturais no próprio
continente) – como também por uma solidão provocada talvez por um
profundo incômodo com qualquer prática que tentasse estabelecer uma
“unanimidad sacerdotal, clerical” (Bolaño, 2011, p. 37) – solidão que lhe
causava, como vimos na passagem acima, uma certa relação nostálgica
com o continente, mesmo quando não havia razões que a sustentassem –,
é que Bolaño construiu as condições para o surgimento do seu lócus de
enunciação, cuja atmosfera gira em torno da América Latina. Movimento
portanto de desarticulação de uma literatura pautada por certos paradigmas
identitários que se baseiam em uma relação essencialista com um território
cujas fronteiras foram traçadas a partir do olhar hegemônico, perspectiva
que rendeu ao autor grande projeção não apenas em países de língua espa-
nhola, mas em todo o mundo.5 Sobre essa identidade flutuante de Bolaño,
que inclui a noção de exílio e de experiência radical com o desconhecido,
comenta Volpi:

5. Sobre o tópico da recepção crítica de Roberto Bolaño, um artigo intitulado “Bolaño


internacional: algunas reflexiones en torno al éxito internacional de Roberto Bolaño”, de
Ignacio Echeverría, traz um interessante mapeamento entre as diferentes recepções da
obra do escritor nos Estados Unidos, na Espanha e América Latina. Disponível em: cep.
cl/dms/archivo_5340_3421/rev130_IEchevarria.pdf. Acesso: setembro, 2015.

156
El último escritor latinoamericano fue Roberto Bolaño, muy a su pesar. Epítome
de esta doble tradición, exilado por fuerza y luego por voluntad, chileno
con un imaginario preponderantemente mexicano, su obra señala una de
las cumbres más altas de la literatura latinoamericana, y al mismo tiempo,
como una bomba de relojería, también señala el camino hacia su extinción6.
Com a anacrônica postura de ser, nas palavras de Volpi, o “último
escritor” que se situa no lócus de espessura latino-americana, em uma
época na qual esse discurso parece estar exaurido pela repetição de mo-
delos canonizados pela crítica e reiterados pelo mercado editorial, por um
certo desapontamento em relação às utopias de esquerda, e também pela
emergência de vozes minoritárias que começam a minar a noção de nação
ou continente pensados a partir de uma origem única e comum, Bolaño
plasma em suas páginas tempos e espaços diversos entrelaçados pelas con-
dições de vida de artistas e pessoas ligadas ao mundo da arte, provenientes
dos mais diversos lugares ideológicos, suas relações com o meio editorial e
o modo como esses escritores percebem a criação literária. Esse discurso
metaliterário que pensa a literatura menos por uma discussão baseada em
critérios formais e estéticos, e mais em sua relação com a vida, em um resgate
declarado dos discursos das vanguardas, surge inquirindo os limites éticos
do objeto artístico imerso na experiência, não oferecendo uma solução
fácil e definitiva ao leitor. Os livros e escritores perdidos, identificados em
seus romances com a verdadeira literatura, um dos centros flutuantes de
Bolaño, fragmentam sua obra em uma pluralidade de vozes e gêneros pelos
quais vai se armando uma comunidade literária menos pautada por uma
origem comum, e mais por uma abertura para o reverso da história, para
os “extramuros de la civilización” (Bolaño, 1998, p. 240). Uma espécie de
máquina ficcional que realiza a “leitura em contraponto” proposta por Said,
uma leitura crítica da tradição ocidental para “extrair, (...) enfatizar e dar
voz ao que está calado, ou marginalmente presente”, e pela qual se podem
entrever opacidades culturais que questionam a autonomia do texto, “ao
abri-lo tanto para o que está contido nele quanto para o que foi excluído”
(Said, 1995, p. 104), mesmo que se corra o risco de tocar o mal extremo.
É por se situar nesse lugar da literatura como “ofício peligroso”, onde
o escritor bordeja o abismo (Bolaño, 2006, p. 211), que Bolaño faz surgir
uma comunidade latino-americana que definitivamente desestabiliza a

6. Disponível em: http://goo.gl/8ZuXLc. Acesso: junho 2015.

157
ideia de identidade relacionada com uma essência, um território ou uma
origem em comum, uma espécie de “comunidad inoperante” defendida por
Jean Luc-Nancy, quando o filósofo, frente ao extermínio nazista no século
passado na Europa, argumenta sobre o risco de se pensar a comunidade
em volta de um mito fundador, o qual sugere uma comunhão perdida e,
consequentemente, uma comunidade idêntica a si mesma, essencializante e
totalizadora, defendendo a ideia, portanto, de uma comunidade em aberto,
pensada mais pela exposição de seres cuja finitude constitui sua singulari-
dade essencial (2000, p. 92), do que pela comunhão de uma essência que
pudesse levar à fusão de si mesma.
No romance Los detectives salvajes (1998), onde a literatura surge in-
timamente relacionada à vida, mas cifrada pela ausência por se tratar de
“una história de poetas perdidos y de revistas perdidas y de obras sobre
cuya existencia nadie conocía una palabra” (Bolaño, 1998, p. 240), a plu-
ralidade de vozes dissonantes entre si faz com que o objeto artístico, em
sua iminência de aparição, surja na narrativa a partir das diversas posições
ideológicas que participam da vida literária e de suas relações com o mundo,
tecendo várias considerações sobre a literatura e seus limites éticos. Em
uma clara homenagem ao movimento de vanguarda poética Infrarrealista,
fundado por Bolaño junto com o amigo Mario Santiago Paspaquiaro na
década de 1970, em México D. F., ambos transformados em protagonistas,
Arturo Belano e Ulises Lima, os quais nunca surgem como narradores no
emaranhado de vozes, o romance encena os sonhos de uma geração de
artistas que assim como Bolaño nasceram na década de 1950, perceberam
na arte uma possibilidade de transformar a realidade mediante a criação
de “un movimiento a escala latinoamericana” (Bolaño, 1998, p. 36) e, por
isso, entregaram a própria experiência para dar voz “a los derrotados” e a
“los que ya nada tenían” (Bolaño, 2006, p. 213) lutando por uma causa que
acreditavam ser “la más generosa de las causas del mundo y que en cierta
forma lo era, pero que en realidad no lo era” (Bolaño, 2006, p. 212), mas
que viram seus sonhos despedaçados no pesadelo das ditaduras militares
que se alastraram pelo continente, frequentemente referenciadas em seus
romances.
A narrativa então, que gira em torno da busca de Arturo e Ulises e do
movimento artístico fundado por eles, o Realvisceralismo, coloca em cena
uma comunidade literária heterogênea, composta tanto por poetas margi-
nais, da intempérie, “huérfanos por vocación” (Bolaño, 1998, p. 177), que se

158
posicionam fora das projeções ideológicas requeridas pelo establishment e
são identificados com a verdadeira literatura, como também por escritores
consagrados pela crítica, cujo “ejercício más usual de la escritura es una
forma de escalar posiciones en la pirámide social, una forma de asentarse
cuidándose mucho de no transgredir nada” (Bolaño, 1998, p. 485), dentre
outros narradores, criando um espaço textual a partir de contraditórias
perspectivas. Com outras palavras, de modo oblíquo, pois não se limitam
a contar seus encontros e desencontros com os protagonistas, o que traz
à narrativa relatos inacabados, fios soltos, sugerindo a presença de uma
dimensão latente, regida por leis inapreensíveis, que excedem qualquer
possibilidade de arquivamento pela palavra, essas vozes vão assimilando
o vagar nômade que Ulises e Belano empreendem por diversas partes
do mundo, por zonas degeneradas pelas guerras, ao longo de vinte anos,
personagens-protagonistas que nunca tomam uma forma definitiva, o
que insinua uma incessante construção identitária sempre atravessada
por diversas perspectivas, o inacabamento e a incompletude como formas
artísticas, como também a emergência de uma comunidade selvagem, que
transcende as amarras paralisantes dos nacionalismos. Um corpo escritural
marcado pela falta, pela polifonia, pelo conflito, e também pela positi-
vidade da incessante construção de novas formas culturais. A literatura
assim, desprovida de uma essência, surge como agenciadora da dinâmica
compartilhada entre as diversas vozes que a constitui, o que faz com que
o objeto artístico assimile a crítica ao caráter totalitário da comunidade
apontada por Nancy e possibilite a constituição da vida em comum sem
qualquer barreira do tipo identificável, seja ela de raça, religião, geografia etc.
Sobre essa comunidade, o romance Amuleto (1999), que surge de um
dos fragmentos de Los detectives salvajes, traça uma imagem que aqui
muito nos interessa, a de jovens fantasmas indo em direção ao abismo,
cujos destinos “no estaban imbricados en una idea común. Los unía solo
su generosidad y valentía” (Bolaño, 1999, p. 152), o que faz surgir, por traçar
uma comunidade afastada de qualquer ideia comum, a desarticulação dos
sistemas ideológicos, tanto os da direita, como também os da esquerda, que
“de haber vencido nos habrían enviado de inmediato a um campo de trabajos
forzados” (Bolaño, 2006, p. 212). Com essa postura crítica em relação aos
abusos de poder, o escritor surge como uma figura independente, que não
está atrelado a nenhuma corrente ideológica. Nesse sentido, a ironia, o

159
humor, a conjuntura, a polifonia e a desestabilização dos gêneros tornam-
se armas contra os pensamentos totalizantes.
Com Bolaño, então, ao mesmo tempo em que há a construção de
uma América Latina imaginada a partir da Espanha, sobre a qual paira um
universo de referentes históricos catastróficos, se desconstroem também os
mecanismos identitários, um dos pilares modernos de busca de autonomia
do discurso literário. Sua obra coloca em cena a literatura como um campo
minado, onde abundam as metáforas bélicas para refletir sobre a prática
literária em sua relação com a vida: um território em abismo, marcado por
diversas perspectivas ideológicas e gêneros literários, onde se encontram,
em iminência de aparição e desaparição, livros perdidos, zonas degeneradas
pela violência, escritores marginais, “hijos de Calibán, perdidos en el gran
caos americano” (Bolaño, 1998, p. 324), um espaço literário pelo qual o
conceito de latino-americano é consideravelmente ampliado, por incluir a
Espanha, por estabelecer relações com África e Europa, e várias regiões do
mundo, fazendo surgir uma inflexão epistemológica na ideia de América
Latina veiculada a partir da modernidade, e apropriada, de modo diverso,
pelos movimentos de vanguarda e pelos artistas que participaram do boom
da literatura latino-americana.

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161
A SOPA NEGRA DA VIDA
(BIOGRAFIA, RECEPÇÃO, REINSCRIÇÃO)
CORAGEM E VERDADE
Uma defesa do mito Bolaño1

Matt Bucher

A partir da última década, ou um pouco além disso, quando nós falantes


de inglês começamos a ter acesso à obra de Bolaño por tradução, surgiu
uma questão central: o que faz dele tão especial? Assim que seu nome é
mencionado, especialmente em alguma conversa com um falante/leitor
de espanhol, nós somos forçados a lidar com o “por quê”. Por que Bolaño
foi lançado à estratosfera do mundo literário quando muitos outros, com
talentos e visões de mundo aparentemente semelhantes, não alcançaram
o mesmo patamar?
A resposta, que emergiu rapidamente, foi a de que leitores americanos
(e o marketing editorial) erraram ao criar um “mito” ao redor de Bolaño. De
alguma maneira, os americanos fizeram uma leitura equivocada e estima-
ram seu trabalho de maneira indevida. Nós havíamos focado em inocentes
imagens do autor e estereotipado todos os latino-americanos instantanea-
mente, porque não somos sofisticados, somos simplórios que não pensam
criticamente sobre nada realmente importante. Bolaño não foi um ídolo,
disseram-nos – ele foi um poeta falível, não verdadeiramente representativo
daquilo que nós americanos somos levados a acreditar.
Devemos nos perguntar: será que lemos e interpretamos Bolaño in-
corretamente? Será que o cultuamos quando deveríamos ter investigado
sua obra? Eu acredito sinceramente que a resposta é não.
Quando Os detetives selvagens2 explodiu no mapa literário americano
em 2007, os anunciantes de livros foram desafiados a lançá-lo para os lei-

1. Traduzido por Cristiano Rodrigues Batista e revisado por Gustavo Silveira Ribeiro.
2. [N.T.] As obras de Bolaño utilizadas como referência por Matt Bucher são edições
americanas. Quando há uma edição brasileira da mesma obra, optamos por incluir o
título em Português.

165
tores americanos. Embora ele tenha sido reconhecido como figura crucial
no panorama, para muitos leitores de “literatura latino-americana”, ainda
que equiparado com o período do boom de Cortázar, Márquez, Fuentes e
Vargas Llosa, o trabalho de Bolaño certamente não se encaixa em nenhum
desses moldes. Seu estilo inovador de então foi comparado a ambiciosos
escritores americanos. Os protagonistas de Os detetives selvagens foram
descritos no mercado literário como “dois Quixotes contemporâneos”.
Talvez Cervantes ou Borges sejam os melhores modelos a serem superados.
Nos anos 1980 e 90, houve uma mudança ampla e simultânea nos leitores
dos EUA, que se distanciaram do boom e se aproximaram dos escritores com
experiências diversas provenientes de vários cânones e antologias. Foram
representantes dessa tendência escritoras como Julia Alvarez, Isabel Allende
e Sandra Cisneros, que foram incluídas nos livros escolares do Ensino
Médio americano e nas edições universitárias das antologias Norton com
bastante frequência. Porém, a questão sobre quem reconhecemos como
“latino-americano”, ou mesmo “hispânico” ou “americano” é complicada.
Por exemplo, Alvarez e Cisneros nasceram nos Estados Unidos e escrevem
em inglês, mas escrevem majoritariamente sobre a experiência da imigração
hispânica. Allende obteve a cidadania americana em 2003, mas escreve
somente em espanhol e continua sendo mais lida e publicada nos Estados
Unidos do que qualquer outro escritor chileno, incluindo Bolaño.
Os primeiros livros de Bolaño publicados nos EUA saíram pela New
Directions, uma editora pequena, e quase não receberam atenção. Noturno
do Chile recebeu poucas críticas em 2003, embora, a despeito de suas signi-
ficantes qualidades literárias, não tenha sido o romance que fez de Bolaño
um nome reconhecido nos Estados Unidos, mesmo entre os leitores de
ficção mais ferrenhos. The New Yorker publicou duas histórias (“Gomez
Palacio” e “Últimos entardeceres na terra”) em 2005, e este é considerado
o marco de um sucesso literário considerável, mas foi pouco como amostra
da maestria de Bolaño no campo da ficção; tampouco pareceu despertar
o público ávido por uma maior amostra do seu trabalho. O Bolaño cult
exigiu mais esforço para surgir.
Então, em 2007, Os detetives selvagens explodiu no cenário da literatura
americana com a força total de uma grande campanha de marketing. FSG,
uma das editoras mais respeitadas dos Estados Unidos, fez um grande
esforço para divulgar a obra de Bolaño para cada periódico ou crítico
que lhe interessava. The New York Times nomeou o livro, traduzido por

166
Natasha Wimmer, como um dos 10 melhores livros do ano. Literatos que
queriam ter acesso ao próximo destaque literário se alegravam em receber
algo relativamente denso e erudito para destrinchar. Os detetives selvagens
recebeu todas as menções culturais significativas que indicam aos leitores
mais esclarecidos que vale a pena comprar, ler e se debruçar sobre aquele
trabalho. Sem dúvida, quando os leitores se envolvem verdadeiramente
com os livros e aquelas menções significativas parecem prevalecer sobre
a própria qualidade do trabalho literário, todo o disfarce fica relegado aos
escombros das ações de marketing, tão valorizadas. A reputação de Bolaño
prosperou, porque uma quantidade suficiente de leitores encontrou “qua-
lidades literárias” em sua ficção.
Pensadores, críticos e acadêmicos sérios precisam de certa distância
de si mesmos para trabalhar. Qualquer forma rápida de canonização de um
escritor, como a recebida por Bolaño, implica um leve encanto, mais uma
idolatria do que uma avaliação comedida e adequada. A conclusão é que
acadêmicos e leitores “verdadeiros” ou “puros” deveriam rejeitar conside-
rações do mercado e das ações de venda. Se alguma coisa é popular, logo
é de baixa qualidade ou mal avaliada.
Em um artigo fundamental publicado na Comparative Literature, a
pesquisadora Sarah Pollack argumenta que a cultura literária estaduniden-
se criara um mito ao redor de Bolaño e que esse mito revelou negativas
consequências acerca das implicações políticas de escolher quais autores
deveriam ser traduzidos e recebidos pelo público americano. O artigo de
Pollack lida principalmente com Os detetives selvagens. O argumento por
trás da tradução de Bolaño, segundo ela, serve para “fomentar uma (pré)
concepção de alteridade que satisfaz as fantasias e a imaginação coletiva
dos consumidores de cultura dos Estados Unidos”. Em resposta a isso, eu
perguntaria: “por que não?” Nossas fantasias não deveriam ser satisfeitas?
Obviamente, Pollack quer dizer que essa fantasia faz parte de uma aventu-
ra e de um idealismo adolescente, que na verdade são o contrário de um
discurso acadêmico sério.
Desde a ascensão de Bolaño, o entusiasmo do mercado americano foi
uma oportunidade para um mini-boom de literatura hispânica que chegava
traduzida aos Estados Unidos e à Europa, incluindo autores como Horacio
Castellanos Moya, Cesar Aira, Enrique Vila-Matas, Valeria Luiselli, Eduardo
Lalo, Andres Neuman, Alejandro Zambra e muitos outros menos conhecidos.

167
Moya se beneficiou diretamente da ascensão de Bolaño, sendo acolhido
pela mesma editora (New Directions) que traduziu Bolaño para o inglês.
Moya escreveu um ensaio em continuação à descrição do mito Bolaño feita
por Sarah Pollack. Em “Bolaño, Inc.”, Moya, como a própria Pollack fizera,
atribuiu a criação do mito ao poder das editoras americanas e a um esforço
político consciente para redefinir “a imagem da literatura e da cultura da
América Latina”. Pessoalmente, acredito que esse argumento valoriza ex-
cessivamente a influência das editoras sobre a opinião pública (ou sobre os
aspectos políticos) em geral. Em segundo lugar, eu argumentaria que essa
posição subestima o apelo intrínseco do autor chileno, além de desprezar
a qualidade central que define a excepcionalidade de Bolaño: sua coragem.
A coragem do chileno de enfrentar a Verdade em face da morte iminente,
sua coragem de criar um vasto universo ficcional independentemente do
gênero, sua coragem de arriscar tudo por uma história que precisa ser
contada – nenhuma dessas características são valiosas para estudiosos, mas
são reverenciadas por leitores aficionados.
Moya escreve sob a perspectiva de um primo protegido de Bolaño.
Quando um famoso morre, seus amigos costumam se unir para promo-
ver seu legado. Moya não quer ver a reputação maculada ou o amigo mal
interpretado, mas ele tem a tendência de passar por cima dos detalhes.
Ele afirma que, no meio das negociações pelos direitos da tradução de Os
detetives selvagens, “apareceu, como um raio caído do céu, a mão poderosa
da fortuna, que decidiu que aquele excelente romance seria o ‘próximo
grande acontecimento literário’”. De fato, o que realmente aconteceu foi
que o espólio de Bolaño informou à sua agente (Carmen Balcells) que as
obras-primas do chileno (ou seja, Os detetives selvagens e 2666) deveriam
ser publicadas por grandes editoras dos Estados Unidos. A New Directions
quis publicar todos os livros de Bolaño, mas foi superada por uma proposta
um pouco maior de Farrar, Straus & Giroux. Não é estranho? A FSG não
é uma grande proprietária de riquezas – trata-se de editores americanos
de prestígio que, no entanto, estão longe de possuir a quota de mercado
ou o poder de compra das quatro maiores empresas do mercado editorial
americano: Penguin Random House, Simon & Schuster, Hachette Book
Group e Harper Collins.
Barbara Epler, editora da New Directions, disse ao The New Yorker
“que na posição de uma pequena editora sem muitos recursos financeiros,
não costumamos ser os primeiros da fila” de publicação de novos autores

168
badalados. Moya e Pollack parecem contestar esse simples fato e a ideia de
que Bolaño nunca foi desejado o suficiente para ser considerado um autor
badalado. Contudo, é a trajetória típica de muitos escritores de prestígio
que são traduzidos para o inglês pela primeira vez: uma pequena editora, a
princípio (muitas vezes a própria New Directions), publica seus trabalhos,
que se consagram e “ascendem” a uma editora maior, conquistando, assim,
um retorno financeiro maior. Os livros de W. G. Sebald tiveram mais ou
menos o mesmo destino nos Estados Unidos. Seus primeiros livros foram
publicados pela New Directions, enquanto os livros posteriores, incluindo
Austerlitz, foram publicados pela Random House. Essa trajetória parece
discutível somente quando comparada a autores como Bolaño, que aparen-
temente é protegido. Além disso, de acordo com a entrevista de Epler para
o jornalista Leon Neyfakh, a Anagrama, editora espanhola de Bolaño, e a
editora Balcells usaram da mesma abordagem para outras línguas e mer-
cados, vendendo os direitos de livros “de menor expressão” como Noturno
do Chile e The romantic dogs para editoras pequenas de nicho, enquanto
reservava Os detetives selvagens e 2666 para editoras maiores.
Tanto Pollack quanto Mota afirmam que uma outra razão pela qual
Bolaño se tornou urgente aos leitores e editores americanos foi ele ter mor-
rido relativamente jovem, além de ter tido uma biografia interessante. Deve
haver certa verdade nisso, pelo menos pela peculiaridade sem precedentes
do autor. Gabriel García Márquez não havia morrido quando Cem anos de
solidão foi publicado nos Estados Unidos. De fato, nenhum grande autor
latino-americano ganhou proeminência nos Estados Unidos postumamente,
exceto Bolaño. Moya e Pollack querem deixar de lado a imagem de Bolaño
como um beat, um adolescente de cabelos compridos e um homem rebelde,
e querem nos lembrar que, na verdade, Bolaño escreveu ficção sobretudo
como um homem de família – uma figura enfadonha como um pai da
área nobre da cidade não pode se tornar uma lenda! Bom, é possível, se
ele escrever como Roberto Bolaño.
Se os editores americanos pudessem escolher quais autores são dignos
de menção, eles não apontariam ninguém. Todo autor publicado seria “o
próximo destaque”. Por que não? Portanto, certamente a culpa deve ser dos
críticos. Se coubesse a eles escolher quem terá os privilégios da realeza, não
restaria nenhum gênio a ser descoberto. Nenhum fator pode conspirar para
criar esse tipo de mito ou reputação. É, antes, algo construído por momen-
tos significativos (que incluem prêmios que Bolaño passou a receber bem

169
antes de sua morte), resenhas, vendas e o mais nobre objetivo de todos:
uma conexão verdadeira com os leitores.
O mito que Moya e Pollack acabaram perpetuando é que só há uma
ideia de “autor latino-americano” possível para americanos (ou falantes
do inglês). Se a história ou o trabalho do autor simplesmente não se en-
caixam naquele molde, a realidade é remodelada ao formato desejado. No
entanto, tal lógica cria um contramito quando o próprio mito é mais fácil
de ser compreendido do que a realidade que está em jogo, especialmente se
pressupõe que um conjunto de leitores não é capaz de ter em mente mais
de uma ideia por vez.
Outra medida que torna Bolaño tão atrativo e astucioso é o seu vasto
interesse por uma variedade de temas e assuntos. Seu trabalho opera em um
modelo hiper-realístico de tudo-de-uma-só-vez. Em seus muitos romances
e histórias, ele explora a história e literatura de uma dúzia de países, as po-
líticas da Europa, do México e das Américas do Sul e Central. Seus livros
examinam a religião e, mais especificamente, o Catolicismo, a natureza da
morte, o drama, a academia, os jogos, a Segunda Guerra Mundial, a vida
dos poetas, as bebidas, o sexo, a polícia, os oceanos, os desaparecimentos,
os assassinatos, os esportes e o cinema, para ficar em apenas alguns exem-
plos. Suas técnicas e estilos literários são igualmente variados e diversos.
Além disso, ele consegue retornar a vários temas e personagens principais
ao longo da sua obra, que abrange quatro décadas.
É uma marca registrada de Bolaño nas suas duas longas obras-primas
o desenrolar de enredos dinâmicos, com um grande número de persona-
gens. Raramente vira-se uma página do livro sem que se transcorra um dia,
raramente o surgimento de um personagem em um lugar dura mais do que
um piscar de olhos, raramente uma única página se concentra em somente
um personagem. Tanto Os detetives selvagens quanto 2666 contêm centenas
de personagens, referências a locais reais e ficcionais e pessoas reais e fic-
cionais – e dizer que são dados enciclopédicos é limitá-los, uma vez que a
trama de uma enciclopédia é muito simplória. Além disso, Bolaño escreveu
uma enciclopédia pura, à moda de Temple of iconoclasts de Wilcock, em
Nazi Literature in the Americas. Se toda a obra de Bolaño é vista como um
trabalho único, ou um Gesamtausgabe, a natureza enciclopédica de suas
ideias e interesses é óbvia, mas ao levar em conta sua sincronicidade e seu
engajamento com o mundo, elas são prova de que os fatos reais superam a
habilidade do escritor de registrá-los.

170
Entretanto, não se pode dizer que todo o trabalho de Bolaño abrange
a mesma “teoria”, já que boa parte dele depende de paradoxos e da questão
da literatura. Em certa altura de Os detetives selvagens, quando Belano e
Ulises Lima estão dirigindo pelo deserto, procurando por Cesárea Tinajero,
Juan García Madero senta-se no banco de trás e questiona aos outros sobre
formas e técnicas literárias – quanto mais obscura a terminologia, melhor.
O leitor facilmente percebe o prazer de Madero (e implicitamente, do pró-
prio Bolaño) em encontrar mecanismos para definir uma lista contendo
dúzias de termos: epicédios, trenodias, alcaicos e arquiloquianos. As vozes
polifônicas no meio da segunda parte de Os detetives selvagens revelam um
interesse profundo na arte de contar estórias, bem como na diversidade da
experiência humana. Além disso, para muitos leitores, essa parte se torna
um teste ao próprio desejo de ler quinhentas páginas de narrativa contínua
em primeira pessoa. Em todos os seus trabalhos, Bolaño se esforça para
oferecer as histórias pretéritas de cada um de seus personagens, mesmo
que seja o menor deles. Ele se deleita com o poder do escritor de conjurar
novos personagens, novas vidas, novas pessoas para explorar.
Quando 2666 recebeu, em 2008, o National Book Critics Award na
categoria ficção, Natasha Wimmer (tradutora tanto de 2666 quanto de Os
detetives selvagens) recebeu o prêmio e citou a última entrevista de Bolaño:
Perguntaram a ele o que ele pensava quando ouvia a palavra “póstumo”.
“Póstumo”. Soa como o nome de um gladiador romano, um gladiador inse-
guro – pelo menos era o que pensava o pobre Póstumo. Isso lhe dá coragem.
Até mesmo quando solicitado a considerar um adjetivo, Bolaño não
se aguentava. Ele precisava criar um personagem.
Se Os detetives selvagens abriu o apetite dos americanos por longos
romances de Bolaño, 2666 deixou grande parte do público leitor saciado. O
romance póstumo apareceu em todas as maiores listas de melhores obras,
ganhou o National Book Circle Critic Award e, no geral, foi considerado um
evento editorial de proporções históricas. Entre os fatores que levaram ao
seu sucesso, destacam-se: 1) a sua rápida publicação depois de Os detetives
selvagens – as duas publicações saíram em menos de um ano nos Estados
Unidos; 2) o design e a embalagem do livro (foram publicadas duas edi-
ções simultaneamente: um volume único de capa dura e um conjunto em
brochura num box contendo o romance dividido em três volumes); 3) a
publicidade literária gerada por uma festa de lançamento em Nova York;

171
4) a extensão do romance, o qual para muitos significou que aquela era
certamente a obra de arte de Bolaño; e 5) os relatos verídicos de crimes,
misteriosa espécie do novo jornalismo, que giravam em torno das mortes
de mulheres da Ciudad Juárez. O fato de Bolaño estar morto e não poder
comentar sobre seu trabalho serviu apenas para aumentar a curiosidade
em relação ao mistério.
Pelo fato de ser uma tradução, e ainda por cima extensa, foi uma sur-
presa se tornar um dos mais vendidos nos Estados Unidos. Eu perguntei
ao editor do livro, Lorin Stein, sobre os números das vendas de 2666:
MB: Tenho certeza de que você esperava que 2666 fosse um sucesso, mas esse
sucesso superou as suas expectativas?
LS: Sim. Ele ultrapassou as vendas de Os detetives selvagens, o que eu não
esperava. Eu acho que é um livro mais difícil. Emocionalmente difícil. Mais
estranho. Eu tive receio que ele se mantivesse em relação a Os detetives selva-
gens aproximadamente como Gravity’s Rainbow se manteve diante de V., ou
Finnegans Wake diante de Ulisses. Um livro para bolañistas radicais.
A existência de “bolañistas radicais” nos Estados Unidos em 2008
é um testamento tanto da qualidade do trabalho de Bolaño quanto da
ridicularizada sagacidade do marketing aplicada a Os detetives selvagens
e 2666. É claro que o encanto de Bolaño não é completamente verdadeiro
quando se diz que ele escreve sobre escritores, livros e a vida literária. Parte
dessa sobreposição temática se autossustenta, mas Bolaño ficcionaliza tanto
suas próprias experiências com o Movimento Infrarrealista em Os detetives
selvagens quanto a ligação do mundo acadêmico em relação aos escritores
em “A parte sobre os críticos” de 2666.
Algumas dessas razões devem explicar por que Bolaño passou a ocupar
o papel de “escritor latino-americano mais importante do seu tempo”, ainda
assim o leitor curioso deve perguntar por que – mais de uma década depois
da morte de Bolaño e anos depois de seus últimos trabalhos serem traduzi-
dos – outros grandes escritores latino-americanos alcançaram apenas uma
pequena fração do reconhecimento que ele alcançou – Octavio Paz e Pablo
Neruda, por exemplo. Então, como podemos definir “qualidade literária”,
se os padrões não são aplicados igualmente? O sucesso dos romances de
Bolaño no mundo anglófono parece provar a máxima de haver uma de-
manda por mais publicação de ficção traduzida, que ainda há obras-primas
desconhecidas por nós e que alguns escritores monumentais, agora faleci-

172
dos, passarão despercebidos por nós ao menos que haja uma demanda dos
leitores para que as editoras foquem na tradução de mais obras.
Bolaño escrevia que não considerava o Chile ou a Espanha ou o México
como sua terra natal, mas simplesmente a língua espanhola. Em seu dis-
curso, ao receber o Prémio Internacional Rómulo Gallegos na categoria
romance, em 1999, ele tentou responder essa questão sobre “qualidade
literária” dizendo
é verdade que o país de um escritor não é sua língua, ou pelo menos não so-
mente a sua língua... Pode vir a ser muitos países, isso me ocorre agora, mas
pode haver somente um passaporte, e obviamente esse passaporte é a qualidade
da escrita. O que não significa somente escrever bem, porque qualquer um
pode fazer isso, mas escrever maravilhosamente bem, no entanto também
não é isso, porque qualquer um também pode fazer isso. Então o que é uma
escrita de qualidade? Bem, o que tem sido sempre: saber como lançar sua
cabeça na escuridão, saber como saltar para o vazio e entender que literatura
basicamente é um chamado perigoso.
Não resta dúvida de que Bolaño é o padrão para o novo boom. Diversos
livros de crítica já usam seu trabalho como uma linha que demarca a nova
era da literatura latino-americana. Assim, da mesma forma que Bolaño
rapidamente entrou para o cânone, ele foi retirado de lá. Quanto mais rá-
pido nós perguntarmos “O que faz dele tão especial?”, nós responderemos
“Ele? O que vem depois dele?”. Creio que levará muitos anos para responder
essa questão – e, apenas assim, cientes sobre o passado, seremos capazes de
dizer “é óbvio! Bolaño nada mais fez que nos guiar ao que nós temos agora”.
Para os anos que virão, precisaremos aceitar que novos leitores ainda serão
atraídos pelo anômalo caso de Roberto Bolaño – não o mito.

Referências bibliográficas

ANDREWS, Chris. Roberto Bolaño’s Fiction: An Expanding Universe.


Columbia University Press: New York, 2014.
ARCHIVO BOLAÑO. “Archive Bolaño, 1977-2003”. http://www.cccb.org/
en/exhibitions/file/bolano-archive-1977-2003/41449.
BOLAÑO, Roberto. The Savage Detectives. FSG: New York, 2007.

173
_________. 2666. FSG: New York, 2009.
EPLER, Barbara. Interview with Willing Davidson. The New Yorker, Page
Turner blog. 13 January 2012. New York. http://www.newyorker.com/
books/page-turner/this-week-in-fiction-the-true-bolao.
HALLBERG, Garth Risk. “The Bolaño Myth and the Backlash Cycle”. The
Millions blog. 16 November 2009. http://www.themillions.com/2009/11/
the-bolano-myth-and-the-backlash-cycle.html.
MOYA, Horacio Castellanos. “Bolaño, Inc”. 1 November 2009. https://www.
guernicamag.com/features/bolano_inc/.
NEYFAKH, Leon. “Andrew Wylie Puts Roberto Bolaño on the Market".
21 October 2008. New York Observer. http://observer.com/2008/10/
andrew-wylie-puts-roberto-bolao-on-the-market/.
POLLACK, Sarah. “Latin America Translated (Again): Roberto Bolaño’s
The Savage Detectives in the United States”. Comparative Literature.
Volume 61, Number 3: p. 346-365, 2009.
STEIN, Lorin. “Interview with Matt Bucher”. 28 January 2010. BolanoBolano
blog. http://www.bolanobolano.com/2010/01/28/lorin-stein/

174
OS 'DETETIVES SELVAGENS' –
DIÁRIO DE RELEITURA
Felipe Charbel

11/1/2015

Fui cordialmente convidado a escrever sobre Roberto Bolaño. Tive que


aceitar. Prometo este ensaio há quase dois anos e só o que fiz até agora foi
adiar a escrita. Tentei escapar de todo jeito. Aleguei que não sou especialista
em literatura latino-americana, aleguei a necessidade de reler os contos e os
romances (o que terminei fazendo com muita alegria), aleguei a proximi-
dade de uma viagem que me deixaria nove meses longe do Brasil, aleguei
que estaria sem os meus livros nessa viagem. Mas nada disso atenuou o
entusiasmo do organizador. Ele quer um ensaio sobre Bolaño. E não precisa
ser um artigo acadêmico. Qualquer coisa está valendo, meu velho, notas
soltas, citações empilhadas, comentários avulsos, um texto sobre a impos-
sibilidade do texto (isso não, eu disse, isso eu não faço). Por fim ele apelou
para a chantagem barata: o livro só sai com um texto seu. O primeiro livro
sobre Bolaño publicado no Brasil. Vai ficar de fora?

12/01

Minha ideia inicial era escrever sobre crítica. Sobre como, num universo
ficcional em que a literatura é o que há de mais importante, a crítica adquire,
quase automaticamente, uma posição de centralidade. Partiria de alguns
comentários de Bolaño sobre o assunto, espalhados aqui e ali em ensaios,
textos de ocasião, colunas de jornal e entrevistas: os críticos literários “tra-
balham na intempérie, na obscuridade”, o que eles fazem é também litera-
tura (“a literatura é prosa, romance e conto, dramaturgia, poesia, ensaios

175
literários e crítica literária”), o crítico é um leitor, mas um leitor criativo,
um leitor criador (“o que é interessante nos críticos literários, e é aí que
peço criatividade ao crítico literário, criatividade a todos os níveis, é que
ele se assuma como leitor, como um leitor endêmico capaz de discutir uma
leitura, de propor diversas leituras, como algo completamente diferente do
que a crítica tende a ser, que é como que uma exegese ou uma diatribe”).
Tomaria esses comentários como motes para analisar as figurações da
crítica literária na ficção de Bolaño. Ou, se me conviesse alguma ousadia,
para traçar um ideal da crítica em sua literatura. Queria escrever sobre o
duelo entre Arturo Belano e Iñaki Echavarne em Os detetives selvagens,
sobre os ecos dessa alegoria, ao mesmo tempo burlesca e perturbadora,
na minha formação como leitor. Queria escrever sobre a imersão maníaca,
a única possível, de Pelletier, Espinoza, Morini e Liz Norton na obra de
Archimboldi, e sobre as suas tentativas de fazer a vida emergir da exegese
textual. Acima de tudo, queria escrever sobre Amalfitano e os seus dois
destinos – especialmente o do professor de literatura de Sinsabores, que certa
vez deu um curso sobre Rodolfo Wilcock e “tinha Nicanor Parra em maior
consideração que Octavio Paz”, que traduziu A rosa ilimitada do obscuro
escritor francês J. M. G. Arcimboldi e participou ativamente da revolução
Sandinista, que traduziu Osman Lins e descobriu sua “homossexualidade ao
mesmo tempo que os russos descobriram sua vocação capitalista”. Escrever
sobre Amalfitano como o leitor-criador por excelência, alguém que faz
do self a própria obra e com isso encarna uma utopia da crítica. Acima de
tudo, queria extrair de tudo isso um páthos sobre a tarefa do crítico, já que
em Bolaño a crítica literária está longe de ser matéria de desprezo. Sem se
igualar à Obra, ela faz a sua corte ou a sua invectiva junto ao leitor, como
na imagem de Iñaki Echavarne: “por algum tempo, a Crítica acompanha
a Obra, depois a Crítica se desvanece e são os leitores que a acompanham.
A viagem pode ser comprida ou curta. Depois os leitores morrem um a
um, e a Obra segue sozinha, muito embora outra Crítica e outros Leitores
pouco a pouco se ajustem à sua singradura”. A crítica com C maiúsculo: o
que ela sinaliza na literatura de Bolaño?
Mas ando sem gana para a ciência da literatura – sustentar argumentos,
fundamentar ilações, encontrar exemplos autoexplicativos, cotejar com o
original. E sinto que escrevi no parágrafo anterior, se não o que queria,
ao menos o que corresponde ao estado atual do meu pensamento sobre a
questão, se é que ela existe de fato, se é que alguém se interessaria por ela,

176
a utopia da crítica em Bolaño, ou a partir de Bolaño, ou as duas coisas ao
mesmo tempo. Ir além do que expus seria passar para um terreno perigoso:
o impulso de provar que estou certo. Não que eu não goste de estar certo.
Mas produzir provas é um dispêndio de energia produtiva – ou resultado
da falta dela, não sei bem –, uma energia que posso empregar, por exemplo,
relendo mais uma vez os livros de Bolaño. Que ao fim é o que me importa
em relação a ele: sempre voltar ao que escreveu.

13/01

O bom nesta história de não escrever um ensaio – que é um processo bem


mais desgastante que o de simplesmente escrever o ensaio – é que reli o
que podia de Bolaño, e li muita coisa que não conhecia. Por exemplo, as
entrevistas. Hoje, tenho um conhecimento bem mais vertical da sua obra.
Mas o que desejo é que esse conhecimento se preserve como me aparece
agora: em imagens desconexas, em impressões efêmeras, em frases não
formuladas. Elas podem até escapar de mim, mas não quero que escapem
no processador de textos – nome estranho, me faz pensar em salsichas e
apresuntados, em frases remoídas até virarem uma maçaroca vulgar e sucu-
lenta. Não quero que essas frases, imagens e impressões sejam trabalhadas
no Word, mas que apareçam espontaneamente num café com um amigo,
numa mesa de bar, numa aula pouco concorrida. Ou então nesse diário
manuscrito. Prefiro que esse conhecimento exista como latência.

***

INBOX PARA O ORGANIZADOR – Comecei o ensaio sobre Os


detetives. Que na verdade será um diário de releitura. A primeira entrada
explica o procedimento. As seguintes acompanham as minhas impressões
dia a dia. E isso será tudo. Nenhum argumento. Nenhuma referência a
Benjamin ou a Agamben. A vaca hermenêutica com seus úberes enrijecidos
de leite não ordenhado.

177
14/01

De todos os livros de Bolaño, só não reli Os detetives selvagens nesses vinte


meses que separam a solicitação do ensaio e a passagem à escrita. Deixei
para o fim por uma razão sentimental: foi o primeiro de que gostei (Noturno
do Chile havia me aborrecido profundamente). Deixei Os detetives para o
final porque fui muito feliz em 2007, lendo esse livro.
Na verdade não fui feliz em 2007. Só fui feliz como leitor. Descobri
Bolaño, descobri Don DeLillo, descobri Cícero e Quintiliano, li Plutarco,
li As Ilusões Perdidas, li as Cartas a Lucílio, li tudo o que podia de Coetzee
e de Philip Roth, li Alice Munro e Safo de Lesbos, li O Continente de Érico
Veríssimo e o chatíssimo Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister. De
resto, minha existência era pálida e inexpressiva como as paredes de um
sanatório. Passava os dias entocado em meu apartamento, no décimo sexto
andar de uma torre erguida numa das últimas fronteiras desabitadas da
cidade do Rio de Janeiro, um bairro apropriadamente nomeado Recreio
dos Bandeirantes – nome que me faz pensar em longas jornadas a pé de
uma gente rude e desprezível, e no descanso que precede uma hecatombe.
Ali tudo é Oeste. Ninguém ia me visitar, e eu não visitava ninguém. Não
havia bares ou cafés, só supermercados e postos de gasolina. O apartamento,
em si, não era mau, e nele eu tinha acesso a todos os confortos que um
doutorando de classe média, recém-casado com uma enérgica professora
de cursinho e morando num apartamento emprestado pelo pai, conseguia
se proporcionar, ao menos naquela época. Por exemplo, uma poltrona re-
clinável, até hoje comigo. Quase tudo o que li nos últimos sete anos, com
exceção do período que passei em Nova York, li nessa poltrona. Agora ela
está desbotada e meio bamba, manchada por longos verões intransigentes
– embora em outro apartamento e em outro bairro, a poltrona segue junto
da janela, e não pode evitar o contato com a luz do sol e com a poeira que
para ela são extremamente nocivos, embora benéficos para o leitor, que
se favorece tanto da incidência direta de iluminação natural como, num
nível mais sutil, da dança da poeira na claridade semiofuscante, cenário
universalmente reconhecido como confortável à leitura.
É nessa mesma poltrona que vou reler Os detetives, e será nela que, em
um caderno sem pauta e de capa dura que apoiarei sobre uma almofada mar-
rom, anotarei minhas impressões desse romance colossal, tentando recriar
a primeira e única leitura que fiz, sete anos atrás. Quero recriar também,

178
através da leitura e da escrita, a pessoa que fui e que, assim acredito, deixei
de ser nos últimos tempos, mas que ainda existe dentro de mim como um
pedaço de carne mal digerida, me intoxicando com seus miasmas pantanosos
e vapores cadavéricos. Esse reencontro comigo mesmo pode ser assustador.
De uma forma que não sou capaz de reconhecer imediatamente, algo que
deixei naquele apartamento me paralisa num ponto remoto e, se não me
impede de ir adiante – porque sempre vou adiante –, faz com que tarefas
corriqueiras como escrever um ensaio acadêmico venham se revelando, a
cada dia, excessivamente custosas.

15/01

A primeira coisa que percebo ao pegar na estante e folhear Os detetives


selvagens é que o meu exemplar parece intocado. Sua aparência é virginal.
Em 2007 eu não rabiscava os livros de literatura e fazia de tudo para não
amassar a capa ou marcar a lombada. Já nos livros usados na tese eu deixava
marcas visíveis para quem viesse depois de mim – ninguém, na verdade,
pois eram obras de interesse limitado, bibliografia secundária sobre au-
tores obscuros de épocas remotas, nada que as pessoas costumem pedir
emprestado. Povoava as margens desses livros com anotações a lápis em
letra de forma quase ilegível de tão miúda, e sublinhava o texto frenetica-
mente com uma régua de metal que havia pertencido ao meu pai. Mas as
obras literárias eu não marcava. Era importante que elas permanecessem
intactas, sem lesões ou rabiscos. Talvez eu acreditasse que a literatura era
algo da ordem do sagrado, e que riscar poesias, contos ou romances seria
uma espécie de profanação. Ou então não era nada disso. Vai ver que sim-
plesmente eu não queria atrapalhar o prazer da leitura, e apenas evitava as
interrupções supérfluas. Precisava mergulhar nas narrativas – em 2007 isso
era uma urgência, o imperativo da imersão ficcional. Eu não poderia estar
fora do livro, submetendo-o a torturas degradantes, se eu estava dentro dele.
Por isso, a recriação da primeira leitura de Os detetives selvagens será feita
sem o apoio de vestígios materiais que possam me auxiliar no processo.
Precisarei me guiar pela memória e pelo faro – o que, para um historiador
de formação, não deixa de ser um martírio.

179
16/01

À releitura, enfim, após resolver uma série de pendências práticas que me


ocuparam na última semana, como a resenha do livro mais recente de um
renomado crítico italiano radicado nos Estados Unidos, prometida para o
dia 15 de dezembro. É cada vez mais laborioso escrever esse tipo de texto.
Elevei a arte da procrastinação a seu máximo refinamento, e fiz da reescrita
dos meus próprios textos uma antessala da insanidade.

***

MEXICANOS PERDIDOS NO MÉXICO (1975) – Lembro que o título


da primeira parte me impactou em 2007. Porque sempre me considerei um
brasileiro perdido no Brasil. Embora até aquele momento eu não soubesse
disso.

***

O DIÁRIO DE GARCÍA MADERO – Conforme avanço na releitura


duas percepções vão se formando, e uma é inseparável da outra: (1) não
retive absolutamente nada da trama, é como se eu lesse o livro pela primeira
vez; (2) o diário do García Madero é formidável. E isso é basicamente o que
preservei na memória: a excepcionalidade do estilo do jovem poeta real-
visceralista e os nomes de alguns personagens. Também me lembrava de
como eles se embrenham no deserto de Sonora num Impala roubado, ou
emprestado, atrás dos rastros de Cesárea Tinajero (mas isso só na última
parte), e que o Impala era conduzido por García Madero.
García Madero tem 17 anos, está começando a faculdade de Direito e não
tem vocação para trabalhar com as leis. Assim como ele, também comecei
uma graduação em Direito – notou o organizador enquanto tomávamos
cerveja no Baixo Gago, querendo forçar uma semelhança que não percebo
entre mim e o poeta real-visceralista, talvez para me encorajar a escrever o
diabo do ensaio que nunca cogitei realmente escrever. É bem verdade que
aos 17 anos eu mantinha um diário, escrevia poemas e que soube desde o
primeiro dia que não seria advogado. Mas as semelhanças param aí. García
Madero, além de ser um jovem desejado pelas meninas e cobiçado pelos
cabeças de um desimportante movimento vanguardista, escreve em seu
diário frases potentes como “a corrente alternada da tragédia se sentia no
ar”, “agora estou lendo os poetas mexicanos mortos, meus futuros colegas”,

180
“não posso passar a vida batendo punheta”, “dois pares de olhos brilhantes,
como de lobos no meio de um vendaval”. Já no meu diário só havia lugar
para bobagens pueris, “almocei estrogonofe e de tarde fui ao cinema ver
Forrest Gump”, “minha mãe me acordou às 15 horas, reclamando que dur-
mo muito”, “meu pai reclamou que minha avó reclamou que minha mãe
reclamou que estou muito gordo e não tenho objetivos na vida, uma avó
reclama que eu não tenho trabalho, a outra que não tenho namorada, e
todos se queixam da minha falta de rumo”. A única vantagem que tenho
sobre García Madero – e mesmo isso é muito relativo – é que aos 17 anos
eu efetivamente existi.

***

Cinquenta e seis páginas em três horas e oito minutos. Contando duas


breves interrupções.

***

INBOX COM O ORGANIZADOR


EU: Gosto deste primeiro parágrafo: “Consta que uma das maiores
preocupações de Bolaño em seus últimos dias era garantir o sustento da
família. Preocupou-se à toa. Com o sucesso da recepção de sua obra quando
estava vivo, e que só se multiplicou, e com a notável astúcia gerencial dos
administradores de seu espólio literário, recursos não hão de faltar para
seus dependentes. É por força do trabalho desses gestores que podemos ter
acesso a este ‘As agruras do verdadeiro tira’, e isso merece menção por estar
associado a uma característica marcante do livro: seu caráter de esboço,
material de trabalho, papéis em processo de uso e elaboração pelo autor”.
ELE: Ótimo. Pois abrir com isso dá uma nota meta já na entrada.
Caráter de esboço do corpus e ensaio sobre o corpus.
EU: Você se lembra que você escreveu isso aí, não lembra? Ou se
esqueceu?
ELE: Claro que não lembro.
EU: Porra!!
ELE: Piada pronta sou eu. Mas agora que você falou, claro, veio logo,
é a resenha de Agruras.
EU: Isso vai entrar no ensaio.
ELE: Que maravilha. Passo à posteridade como desmemoriado e crip-
toamnésico ao mesmo tempo.

181
17/01

Ontem à noite, relendo o que escrevi, fiquei com a impressão de que segui
um caminho enviesado ao comparar meu diário com o de García Madero.
Imaginei que estava fugindo do meu propósito de reconstruir a primeira
leitura de Os detetives. Mas está tudo ali, me dei conta hoje cedo, todos os
elementos que necessito para entender o impacto desse livro estão contidos
no quadrilátero não tenho trabalho, não tenho mulher, sou gordo e estou
sem rumo na vida. Em 2007 eu pesava 139 quilos, vivia com uma modes-
tíssima bolsa de estudos, trabalhava numa tese (mas o que desejava era
escrever literatura, embora eu não tivesse talento ou algo a dizer) e tinha
entrado por inércia, em janeiro daquele ano, num casamento infeliz. 2007
foi um ano de evasão. Evasão pela comida, evasão pela coca-cola (o toque
áspero e borbulhante da felicidade no meu palato), evasão pela internet e,
sobretudo, evasão pela leitura. Se bem que as duas últimas, a evasão pela
internet e a evasão pela leitura, acabavam se confundindo na solidão ociosa
das minhas tardes vadias. Lia romances, de preferência infinitos (vem dessa
época meu gosto pelos calhamaços), e nos intervalos escrevia longos e-mails
para uma ruiva que eu não via há quase dez anos, com quem eu dividia um
blog secreto (mal-estar, e após o impacto de Ruído Branco nas nossas vidas,
dondelillo). E também, aspas, pilhas de aspas, “trabalhava no meu romance”,
na verdade um amontoado de cenas desconexas em que os personagens
passavam a maior parte do tempo realizando gestos mecânicos como fu-
mar ou respirar ou se locomover de um ponto a outro da cidade. Também
mantinha um perfil secreto no Orkut, com uma foto do Walmor Chagas e
o nome de Rummenigge Dantas, que usava para acessar uma comunida-
de quase secreta de leitores de ficção. Ali ouvi falar pela primeira vez em
Roberto Bolaño. Ali ouvi falar pela primeira vez em quase todo mundo. Os
detetives selvagens foi um dos primeiros romances que li por influência dos
seus membros – anônimos que usavam avatares com fotos de palhaços ou
de bebês embriagados, e ostentavam nomes improváveis como Refrator de
Curvelo, Aviário do Mário e Kelvin Falcão Klein. No meio dessa gente que
tinha lido a porra toda, de Carlos Dufoo Filho a Petrus Borel, de Leonid
Tsípkin (o incontornável Verão em Baden-Baden) a David Albahari, eu agia
como García Madero nos primeiros dias de real-visceralismo, anotando
afoitamente o que era capaz de enxergar nas lombadas dos livros que Ulises
Lima, Arturo Belano e Ernesto San Epifanio carregavam pelo D.F. Havia

182
uma sensação que me inundava, a de fazer parte de algo relevante, mesmo
que na periferia do ciberespaço – éramos poucos e ninguém se interessava
pela gente –, e isso, por mais patético que pareça, foi o mais perto que estive
de fazer parte de algum coletivo. Não que fôssemos uma vanguarda, nada
disso. Nosso único ato de transgressão era gostar de literatura numa época
em que isso ainda era visto como uma deselegância com o pensamento.
Mas ali, no planeta Orkut, a long time ago in a galaxy far far away, alguns
leitores de avidez desmesurada se contaminavam mutuamente e travavam
seus duelos. E como nos universos febris de Roberto Bolaño, a literatura
era para aquela gente uma questão de vida ou morte.

18/01

A EDÍCULA DAS IRMÃS FONT – Maria não dá bola para García Madero.
Angélica não dá bola para Pancho Rodríguez. Elas têm menos de 20 anos
(Angélica tem 16) e sonham com dançarinos de vanguarda, poetas promis-
sores, pintores surrealistas, universitários de esquerda. Estão se lixando para
o realismo visceral, no que fazem muito bem. Já os garotos não cabem em
si. Fazem parte de um movimento literário obscuro, se sentem os últimos
vanguardistas do século XX, roubam livros, passam as tardes jogando con-
versa fora nos cafés e bares da rua Bucareli. Até escrevem alguns poemas,
e têm a atenção diária de duas jovens atraentes, ricas (se bem que uma ri-
queza decadente) e talentosas (Angélica, pelo menos, é talentosa). Angélica
não tem pressa para ceder às investidas de Pancho. Age como se esperasse
coisa melhor. Maria não dá trela para García Madero. Se tem interesse,
dissimula bem. É inclusive um pouco estúpida com ele. Até que Angélica
e García Madero começam a trocar olhares, e insistem, se aproximam – e
esse interesse repentino é o suficiente para Maria levar para a cama a mais
nova aquisição do movimento real-visceralista, e submeter a irmã aos
ruídos do seu colchão de molas. Deve ter sido bom, ter 17 anos na década
de setenta e gastar o tempo naquela edícula. Lembro uma noite de verão
carioca em que bebia com um grupo de amigos, todos leitores de Bolaño,
e lá pelas tantas – estávamos na Adega Pérola e comíamos alho cru com
sardinhas fritas e polvo refogado – decidimos passar o réveillon na Cidade
do México. Talvez o que desejássemos no fundo fosse passar o réveillon na
casa da família Font, na expectativa de que, afetando indiferença, as irmãs

183
nos oferecessem um espaço no chão da edícula para esticarmos nossos
sacos de dormir, e no meio da madrugada, por pura falta do que fazer ou
curiosidade antropológica, uma das duas nos convidasse sorrateiramente
para dividir com ela a sua cama de solteira.

***

Avanço na leitura, e não deixo de me espantar com os tesouros que, ao


longo dos anos, minha memória desovou pelo caminho. Para onde vão esses
dejetos do imaginário? Os olhos injetados de Quim Font, a água-furtada
dos irmãos Rodríguez (de onde se tinha uma vista privilegiada do D.F.).
Como fui capaz de condenar o Encrucijada Veracuzana ao ostracismo – eu
teria virado muitas noites nesse botequim, tomando tequila e incomodando
amigos e estranhos com discursos improvisados sobre a inviabilidade do
ser. Fico com a impressão de que só o que conservei desse romance foi a
sua atmosfera. É bem possível que eu tenha retido o imprescindível.

***

Lupe e Maria são de Leão. É evidente que Maria é leonina. García


Madero é capricorniano (eu não diria). Ulisses Lima também. Arturo Belano
deve ser Touro, porque Bolaño era taurino. Ernesto San Epifanio – e aqui
começa a ciência – deve ser Aquário. Pancho Rodriguez, digo que é can-
ceriano. Angélica Font é uma escorpiana clássica. Pele Divina deve ser
Peixes. Ou Sagitário.

19/01

“Pessoas que aparecem e desaparecem como um rio escuro”. Em 2007 eu fazia


uma tese. Estudava não apenas filósofos e historiadores do Renascimento
italiano, mas também uns textos teóricos cabeçudos – pois é de bom tom
que uma tese na área de Humanas tenha fundamentos teóricos consisten-
tes, e os fundamentos consistentes se encontram nos autores cabeçudos.
Não sei como fui parar em Enzo Melandri, O Círculo e a Linha, um estudo
lógico-filosófico sobre a analogia, novecentas páginas em italiano. Não li
mais que cento e cinquenta. Mas foi o suficiente para gerar uma fixação em
um dos tópicos discutidos no livro, uma forma peculiar de comparação que
cria um ruído no pensamento analógico: a anomalia. Nunca tinha ouvido

184
falar nisso. A anomalia é uma espécie de analogia em que a relação entre
os termos comparados não é percebida facilmente. Ou não é percebida
em absoluto. A comparação não ilumina nada, não produz nenhuma evi-
dência, e por isso mesmo causa um incômodo, um estranhamento, uma
perturbação. A anomalia é o que, na comparação, resiste à hermenêutica.
O texto de Bolaño é rico em anomalias, e é provável que isso tenha
chamado a minha atenção em 2007. “Parecia não ter dormido a noite in-
teira, parecia recém-saído de uma sala de torturas ou de uma jogatina de
carrascos”. Sala de torturas tudo bem, mas jogatina de carrascos? Essa
imagem é a diferença pura, é o desvio para o nada, o trapezista bêbado à
beira da falésia. Em Bolaño – tenho essa impressão – a anomalia é muito
mais que uma figura de linguagem. Ela é um traço da sua poética. Em
2666 a anomalia atrai o leitor para o centro oculto da narrativa apenas
para expeli-lo raivosamente, como se fosse uma cama elástica invisível. Em
Os detetives, ao menos até agora – mais cedo terminei o diário de García
Madero – esse centro oculto não é tão evidente. Pelo menos por enquanto.
Mas as comparações de termos incomparáveis estão ali, e elas me deliciam,
me fazem baixar a guarda e pensar no que o autor está querendo fazer
comigo, aonde ele quer me levar, e então sublinho essas frases lindamente
anômalas e as copio no meu caderninho de notas e volto a elas como uma
criança a seus filmes favoritos, e nem por isso as entendo melhor, mas fico
com a certeza, com a irresistível certeza, de que algo de muito verdadeiro
se expressa ali, não através delas, dessas frases anômalas, mas nelas, sem
que eu possa entender o quê exatamente, ou precisamente porque eu não
posso entender o quê, exatamente.

***

“Uma voz sem inflexões, como se estivesse falando com a lua” – a voz
de Joaquín Font, segundo García Madero.

***

A melhor entrada em duas linhas de um diário ficcional – “Hoje não


aconteceu nada. Se aconteceu alguma coisa, é melhor calar, pois não a
entendi”. A de um diário verdadeiro, inequivocamente – “A Alemanha
declarou guerra à Rússia. Natação à tarde”.

185
20/01

Adquiri recentemente o hábito de tomar um pouco de sol depois do al-


moço, próximo da minha casa, na pracinha do bairro Peixoto, como se eu
fosse um velho de oitenta anos. Hoje os bancos estavam ocupados, e tive
que sentar numa das muretas que envolvem um pequeno espaço onde o
chão fica coberto de areia, onde cachorros e crianças costumam brincar.
Dobrei as mangas da camisa, para aumentar a área de exposição ao sol e
recarregar mais rapidamente minha provisão de vitamina D, estiquei as
pernas, e imediatamente senti um fedor lancinante. Me levantei e escolhi
um outro lugar da mureta para tomar o meu banho de sol. O cheiro de
podridão continuava incomodando, pelo visto tinha se alastrado por toda a
pracinha. Então pensei que mal há em respirar um tiquinho desse bálsamo
putrefato, são só vinte minutos e não está assim de todo insuportável, que
mal há em aceitar, por uns instantes que sejam, a realidade desagradável
dos dejetos corporais? Depois de algum tempo já não pensava nisso – era
como se o cheiro tivesse se dissipado enquanto eu observava distraidamente
os movimentos de alguns moradores de rua, que faziam uma algazarra
no meio da praça enquanto se banhavam no laguinho e no chafariz. Só
quando o celular apitou, indicando a passagem dos vinte minutos, percebi
que o cheiro tinha estacionado, parecia mesmo ter se condensado, e agora
era francamente repugnante. Imediatamente olhei para baixo e me dei
conta de que o meu sapato estava enterrado não apenas na areia, como eu
tinha imaginado até então. Passei todo aquele tempo com o pé atochado
na merda, voluptuosamente atochado na merda, provavelmente canina,
refleti, considerando fatores como o tamanho, o odor, a coloração e a con-
sistência, não sem antes me alarmar por um instante com a possibilidade
de aqueles excrementos pertencerem a uma das pessoas que se refestelavam
no chafariz. Pensei ainda que depois de ter me levantado da mureta pela
primeira vez, caminhei em direção à merda em vez de me afastar dela. É
como se eu tivesse sido atraído pela merda, por seu campo gravitacional,
num impulso irresistível (destino é caráter). Me veio à cabeça – mas nessa
hora eu já limpava os pés na parte cimentada do parquinho – que, meta-
foricamente, essa imagem era condizente com a poética de Bolaño. E que
ela, de certa forma, figurava a visão de mundo tracejada em sua literatura.
Tudo que começa como comédia acaba sempre como outra coisa – até
mesmo como comédia.

186
***

Conforme o diário se aproxima do final, o réveillon na casa da família


Font, García Madero passa a carregar nas tintas. Ele fica doente, tem delí-
rios febris e é tomado por sentimentos elevados e prefigurações do futuro.
“Hoje só vi Barrios e Jacinto Requena no Café Quito, e nossa conversa foi
meio melancólica, como se estivéssemos na véspera de algo irreparável”;
“em determinado momento da noite, Maria me disse: o desastre é iminente”.

***

“Uns olhos árabes, de tendas e oásis” – os olhos de Rafael Barrios


segundo a loira Barbara Patterson.

21/01

Ontem foi feriado no Rio. Não que faça alguma diferença – estou de férias.
Mas feriados são dias silenciosos e modorrentos, propícios à leitura em
largas passadas. Avancei umas boas 100 páginas, da primeira aparição de
Amadeo Salvatierra, com sua garrafinha de mescal Los Suicidas, ao depoi-
mento de Michel Bulteau sobre o passeio noturno em Paris, no fim dos anos
setenta, com um estranho poeta mexicano de nome Ulises Lima, em que
este desfiava, “num inglês por momentos incompreensível”, uma “história
de poetas perdidos”, uma “história extramuros da civilização”.

***

Não sei se foi em 2007, talvez um pouco depois. Decidi colecionar


miniaturas de carros antigos. A coleção não foi muito longe: uma Kombi
amarela e branca, um Camaro azul 69, um Opala branco SS, um Ford
Mustang 1970 e um Impala 1964 branco. Lembro no que pensei quando
vi o Impala numa loja de brinquedos: o carro de García Madero, o carro
emprestado por Joaquín Font aos real-visceralistas, o carro em que se per-
deram para sempre no deserto de Sonora. Só lamentei que o Impala fosse
branco, pois o original, e eu estava certo disso, era verde. Mas o Impala é
mesmo branco, descubro na releitura. Eu já sabia, inconscientemente? Me
sugestionei a achar que o Impala era verde porque a capa do livro é verde?
Ou isso simplesmente não vem ao caso? Talvez eu corte esta entrada da

187
versão final. Ou talvez nem chegue a transcrevê-la para o computador. Já
é tempo de me desapegar do diário de García Madero.

***

“Olhava para mim com seus olhos de lago ao entardecer” – os olhos


de Pedro Garfias, segundo Auxilio Lacouture.

***

Há sempre uma defasagem entre a leitura e a escrita – a impressão


que anoto nunca é a impressão do dia, mas a impressão do dia seguinte,
embaralhada pelo sono, pelo esquecimento, pelas pausas para o café, pelo
torpor que se segue às refeições, pela abstração das caminhadas, pelo en-
volvimento em outras leituras. Uma impressão que é quase sedimento, a
impressão querendo se transformar em outra coisa.

22/01

Se, no diário de García Madero, Arturo Belano e Ulises Lima são figuras
distantes, insondáveis, o guru iluminado e o déspota caprichoso, os depoi-
mentos conferem a eles alguma vulnerabilidade. Mais ao mexicano que ao
chileno, me parece, pelo menos até o ponto da narrativa a que cheguei na
madrugada de ontem para hoje, os dias de Ulises Lima em Israel. Talvez
porque Ulises Lima seja uma figuração do outro, enquanto Belano é uma
figuração de si mesmo, uma projeção ficcional do eu do escritor. Enquanto
lia, fazia pequenas pausas para jogar no Google os nomes de Mario Santiago
e Roberto Bolaño. Queria ver algumas fotos deles, no período do infrar-
realismo e das primeiras andanças pela Europa. As imagens que registrei
na minha mente, talvez pela frequência com que apareciam nas pesquisas,
foram as de Mario Santiago com ar de perplexidade vestindo uma camisa
do The Doors (e é com essa roupa que visualizo Ulises Lima caminhando
a esmo em Paris, absorto em seus pensamentos e sentindo muito frio), e de
Roberto Bolaño muito jovenzinho, com cabelos nos ombros e um bigode
farto, mais parecido com o Kevin Spacey do que com ele mesmo, o olhar
perdido no insondável, como se tivesse acabado de encarcerar, na jaula que
tem atrás de si, um animal extinto. É esse o semblante de Arturo Belano,
assim imagino, no escritório mal-ajambrado de um editor menor do D.F.,

188
assinando o contrato de uma coletânea desafortunada de poetas real-vis-
ceralistas, pouco antes de se mandar para sempre do México.

***

“Aquela voz de passarinho e de lâmina de gilete” – a voz de Ernesto


San Epifanio depois do aneurisma.

***

Não sei se porque era madrugada, e as minhas melhores leituras são


nesse horário, indiferente à excitação das providências cotidianas e à co-
michão da sociabilidade virtual, impossibilitado de acessar outras pessoas
a não ser em sonhos, mas me envolvi intensamente com os relatos das
perambulações de Ulises Lima pelo mundo. Acordei agora há pouco, uma
da tarde – as obras de modernização do meu prédio deram uma trégua e
pude restabelecer meus hábitos noturnos –, acordei uma da tarde pensan-
do em Ulises Lima e na sua solidão, e agora, sentado na minha poltrona
desbotada, o ambiente artificialmente aclimatado enquanto lá fora o verão
assegura as condições ideais para a devastação do pensamento, sinto vontade
de escrever sobre ele. Mas não sou capaz de nomear o que me hipnotizou
ontem à noite, mal consigo assinalar o que me enterneceu na leitura, se o
fato de ele ser tão romanticamente distraído e desajeitado, se o hábito das
longas caminhadas (escritores que caminham, por que essa imagem é tão
atraente?), se a excentricidade de ler durante o banho molhando os livros
e fazendo derreter como a gordura de um herege os versos avulsos que
compõem como marginália a outras poéticas, se a indiferença em relação
a assuntos comezinhos como o preço do arroz. Nunca seria um prosa-
dor como Belano, o bom Ulises. Talvez ele intuísse que seu tempo neste
mundo era escasso, talvez percebesse que era preciso estar por inteiro em
outro lugar, o lugar que verdadeiramente importa, o lugar de onde jorra
a poesia. Mas penso agora que a identificação que tomou conta de mim
na madrugada de ontem para hoje tem a ver com o período, de memória
recente, que passei em um país estrangeiro, afastado, como Ulises Lima,
da minha zona de conforto existencial pela opaca película da inapetência
linguística, o que pode fazer de cada dia uma jornada exaustiva, principal-
mente numa cidade que, como diz Simone Darrieux sobre Paris em um
dos depoimentos da segunda parte, mas que se aplica perfeitamente a Nova
York, “desgasta, dilui todas as vocações que não sejam de ferro, impele ao

189
esquecimento”. Mas acho que a minha identificação passa também por
um sentimento difuso e mais difícil de apreender, o reconhecimento de
que esse homem, Ulises Lima, efetivamente existiu e passou por aquelas
ruas, se não as descritas no livro, outras ruas de Paris, e que boa parte do
que se narra ali, das anedotas às impressões mais íntimas dos depoentes,
é produto de uma forma peculiar de compreensão, a maneira como um
ser humano faz ver, por meio da invenção, outro ser humano de quem foi
muito próximo, com quem compartilhou devaneios, decepções e, sobre-
tudo, uma visão de mundo, uma filosofia particular, restrita aos dois, e que
Os detetives selvagens é, em parte, o relato de um encontro que não vai se
repetir, ou melhor, que só vai se repetir na leitura, e que por isso mesmo
vai sempre se repetir, porque esse encontro tem algo que é próprio das
amizades raras e infinitas, uma qualidade que passa pela constância, porque
as pessoas estão sempre mudando, e é muito difícil, quase impossível, que
uma amizade permaneça intocada em meio a tantas transformações, e não
é raro que simplesmente nos tornemos incapazes de continuar nos vendo
em pessoas que costumávamos chamar de amigos. Não é o que acontece
aqui, ao que parece, não é o que sucedeu entre Roberto Bolaño e Mario
Santiago, embora eles quase não se falassem e não tenham se encontrado
nem uma vez sequer nas últimas décadas de suas vidas abreviadas. Pelo
menos na noite de ontem li Os detetives como um livro sobre amizade. E
sobre a brevidade da vida.

23/01

Ulises Lima lavando o porão de um barco pesqueiro. Ulises Lima dormin-


do numa gruta. Ulises Lima comprando uma passagem para Israel com
o dinheiro que ganhou no barco pesqueiro. O choro de Ulises Lima no
sofá de Norman Bolzman (ou ele batia uma punheta?). Norman Bolzman
lendo A rosa ilimitada de J. M. G. Arcimboldi, certamente na tradução de
Amalfitano. Ulises Lima mendigando em Tel-Aviv. Ulises Lima preso em
Beersheba com um austríaco limítrofe chamado Heimito Künst. Bolaño
e a fixação na palavra Künst (coño, künst). Ulises Lima e Heimito Künst
praticando assaltos em Viena. Ulises Lima deportado da Áustria. Ulises
Lima se perdendo na Nicarágua sandinista. E voltando para casa anos

190
depois, seguindo a trilha de um rio inexistente, um rio que une o México
à América Central.

***

INBOX COM O ORGANIZADOR – Estou obcecado por Ulises Lima.


Até li os poemas do Mario Santiago – e tudo me escapou na poesia dele.

***

“Um cara com olhos como que liquefeitos e apagados ao mesmo tem-
po” – os olhos de Ulisses Lima, de acordo com Hipólito Garcés, na Avenue
Marcel Proust.

***

Mario Santiago morreu no dia 10 de janeiro de 1998, atropelado. Bolaño


estava perto de terminar Os detetives, ou tinha finalizado a correção das
provas na noite anterior – imprima-se a lenda. Santiago sabia que um dos
personagens era baseado nele. Baseado não, era ele. Mario Santiago chegou
a ler alguns capítulos? Duvido. O que ele pensaria de Ulises Lima? E o que
isso quer dizer, afinal – escrever sobre um amigo e esse amigo morrer ao
final da escrita, atropelado aos 44 anos de idade? Pensando no que existe
de sinistro nessa coincidência. Pensando no que existe de sinistro em todas
as coincidências. Pensando na ideia de má sina.

***

“Dava de comer aos pombos, mas os pombos ignoravam suas mi-


galhas” – um velho no parque Esterhazy, pouco antes de ser atacado por
Ulises Lima e Heimito Künst.

25/01

FRAGMENTO DE UM ROMANCE ABANDONADO – Não têm muito


que falar no restaurante. A esposa pergunta se o Gordo quer dividir um
vinho, mas ele recusa. Acha forçado quando bebem. Ele bem que gostaria
de se embriagar, de perder a consciência, mas não tem motivos para perder
a consciência ao lado dela. Pedem duas latas de guaraná zero.

191
A esposa tem nojo de pizza de estrogonofe de frango. O Gordo também.
Conversam um pouco sobre restos do almoço que vão parar no rodízio
da noite. Ele decide que só na semana que vem voltará à Serra para visitar
o pai hospitalizado. Precisa estudar os pontos do concurso para professor
adjunto, que começa na segunda-feira. Deveria ter adiantado as leituras
nos últimos dias, mas passou as manhãs dormindo e as tardes na internet.
De noite é impossível estudar. Ela exige atenção, quer conversar, quer que
o Gordo veja com ela seus seriados americanos favoritos. Ele reclama, diz
que tem mais o que fazer, mas acaba assistindo. De um ou dois, até gosta
de verdade. Quando ela pega no sono já é tarde para ligar o computador.
Então ele fica na cama, vendo tevê ou lendo. Às vezes ela acorda no meio
da madrugada e quer saber o que ele está lendo. “Um romance”, ele diz.
Ela olha com desconfiança, franze a testa, bufa, diz que isso não está certo.
“Quem te indicou esses livros?” Em segundos é tragada novamente pelo sono.

***

Os detetives selvagens, Ruído Branco, Dia de Finados, O Teatro de Sabbath.


Quem te indicou esses livros?

***

Dois dias sem tocar em Bolaño. Dois dias me martirizando por minha
indolência, me culpando pelas férias avançarem sem que eu tenha lido a
metade do que planejei, por não ter começado a transcrever as entradas
do diário no computador, por não ter iniciado, paralelamente Os detetives
e a releitura de Walter Benjamin, por achar um tanto inóspito ler Walter
Benjamin em janeiro, por não ter encostado nos quatro ensaios acadêmicos
que deixei sem terminar no ano passado.

29/01

Uma semana sem ler, sem escrever, sem desejo, duvidando do projeto. A
pausa para o trabalho, o trabalho duro no mundo lá fora, lá no real lacaniano,
segunda a sexta das oito às seis – banca de concurso público, as decisões
que realmente importam, que vão fazer diferença na vida de alguém. Um
diário como este só faz sentido se tiver uma continuidade, se der conta da
sequência da leitura.

192
***

A DISCIPLINA DO CALHAMAÇO – “Escolhia A metamorfose em


vez de O processo, escolhia Bartleby em vez de Moby Dick, escolhia Um
coração simples em vez de Bouvard e Pécuchet, e Um conto de Natal em vez
de Um conto de duas cidades ou de As aventuras do Sr. Pickwick. Que triste
paradoxo, pensou Amalfitano” – o Amalfitano de 2666. “Nem mais os far-
macêuticos ilustrados se atrevem a grandes obras, imperfeitas, torrenciais,
as que abrem caminhos no desconhecido. Escolhem os exercícios perfeitos
dos grandes mestres. Ou o que dá na mesma: querem ver os grandes mes-
tres em sessões de treino de esgrima, mas não querem saber dos combates
da verdade, nos quais os grandes mestres lutam contra aquilo, esse aquilo
que atemoriza a todos nós, esse aquilo que acovarda e põe na defensiva, e
há sangue e ferimentos mortais e fetidez”. O calhamaço e os combates da
verdade: também para o leitor é assim. O desânimo que bate no meio do
livro ou um pouco antes, os personagens que nos seguem como almas pe-
nadas. Os rituais que o calhamaço exige: a frequentação diária, em grandes
goles, as dores no corpo e a dificuldade para conseguir uma boa posição
de leitura, o halterofilismo da memória voltando o tempo todo a trilhas
cobertas de ervas daninhas.

30/01

Ontem li que o zeitgeist, assim mesmo com minúscula, vem do exterior


mas trabalha no interior. “Ele afeta todo mundo, mas nem todo mundo é
afetado da mesma maneira". A frase é de Karl Ove Knausgard, e está no
início do volume 3 de Minha Luta, leitura que faço paralelamente a Os de-
tetives – gesto pouco inteligente, aliás, a alternância entre dois calhamaços
e não, por exemplo, entre um calhamaço e uma novela, ou um calhamaço e
uma coletânea de contos, ou um calhamaço e ensaios de Walter Benjamin.
Esbarrei nessa frase e, partindo dela, elaborei um pensamento que, de forma
turva, estava no meu horizonte desde o início do diário. No fim de 2007 criei
um blog de ficção, maracanazzo, e usei meu nome próprio como assinatura.
Não queria condená-lo à clandestinidade, como aconteceu com mal-estar e
dondelillo. Minha intenção era divulgar o que escrevia, sobretudo entre os
amigos, mas para isso eu teria que informar à esposa que eu passava as tardes
inventando estórias, enquanto ela se matava de trabalhar (me vem à mente

193
o depoimento, já para o fim de Os detetives, do escritor que foi casado com
uma carteira e, anos depois da separação, ainda escuta, de manhã cedinho,
as suas passadas quietas, quase mudas, rumo a um novo dia de trabalho).
No fundo, eu desejava uma forma de reparação, menos em relação a ela
que em relação a mim mesmo, uma tentativa de não me sentir culpado
pelas condutas duvidosas nas minhas tardes desocupadas. A ideia do blog
surgiu durante a leitura de Os detetives. A Tijuca seria o meu D.F., e em vez
do passado eu projetaria o futuro de um sistema literário, de 2008 a 2050,
em resenhas de livros inexistentes e depoimentos de escritores, professores,
facilitadores culturais e críticos escroques. Seria uma Tijuca imaginária,
distópica, povoada por correntes literárias inverossímeis e universidades
hiperbolicamente prestigiosas. A ruiva da internet virou Estela Mizrahi. Eu
me dei o nome de Michel Basbaum. Os dois estariam no centro da trama.
A caixa de comentários estava sempre vazia. Talvez por isso, e de forma
intempestiva, mostrei à esposa numa noite qualquer as dez ou doze postagens
existentes. Ela tinha acabado de chegar do trabalho. Sem se sentar mirou
a tela do computador e disse, com algum desdém, que achava melhor não
saber o que havia ali. Mas me encorajava a seguir adiante. Não havia nenhum
problema. É importante ir atrás dos próprios desejos, ela me disse, dando
sinais, em seu semblante carregado, de perceber que essa nova ocupação,
possivelmente entendida como um hobby ou uma distração passageira, nos
afastaria mais e mais, inaugurando um segmento inacessível em minha vida,
mais um, que poderia me conduzir a um isolamento drástico da realidade e
dela própria, já que poucas atividades são tão antissociais quanto a escrita,
nem a leitura é assim antissocial, pois a leitura, ao menos nos primórdios,
era feita em voz alta, e mesmo silenciosa pode ser partilhada com outras
pessoas, na cama, em sofás, em mesas de biblioteca ou no metrô, mas a
escrita só é possível em regiões desérticas. Em seguida ela me disse que
precisava tomar uma ducha, pois o seu dia havia sido longo. O meu não,
pensei, o meu dia foi bem curto, e eu queria mais desse dia que havia se
encerrado abruptamente quando ela pisou em casa. Antes que eu pudesse
concluir esse pensamento, o arremessei no lodaçal do inconsciente, e me
enervei por alguns instantes com um sentimento difuso, uma mistura de
compaixão e de impotência – motivado, acredito eu, pelo reconhecimento
de que me faltavam forças para lutar por essa relação, e que eu nunca seria
capaz de levar tranquilidade à pessoa com quem eu dividia a vida, mas tinha
deixado, e isso há bastante tempo, de compartilhar interesses. Demonstrando

194
alguma compreensão da guerra civil que tinha lugar na minha cabeça, nossa
cachorrinha se esticou perto do meu pé e suspirou com apatia. Enquanto
eu acariciava a sua barriga, o corpo curvado lateralmente para conseguir
encostar nela, apaguei uma a uma as postagens do blog.
Na mesma época, um pouco antes ou um pouco depois, um sujeito
arredio e melancólico, um desses tipos que tendem à mudez, divulgou na
comunidade do Orkut um blog de livros imaginários. As postagens traziam
trechos de obras e fragmentos de resenhas, e não raro as capas dos livros.
Para usar a imagem acionada por García Madero para descrever Cesárea
Tinajero, o blog nascia com a aparência de um navio de guerra fantasma,
ressurgido após séculos no fundo do mar. Sua caixa de comentários tam-
bém era desabitada – tudo o que havia era espaço sobrando. Mas enquanto
minha embarcação se enterrava no banco de areia da farsa, a dele navegava
sinuosamente pela representação séria da realidade, sem bússola ou as-
trolábio, se orientando apenas pelo eco de uma voz esganiçada e dolente,
quase silenciosa, que o seduzia na direção da ilha invisível onde todos nós
queríamos atracar, poor Robin Crusoe, dizia a voz que só o marinheiro
taciturno era capaz de ouvir, poor Robin Crusoe. O que não sabíamos é
que os barcos tinham o mesmo timoneiro, o zeitgeist, assim mesmo com
minúscula, e que ele se portava como o capitão de um famoso navio bale-
eiro, guiado exclusivamente por sua fúria e desrazão.

31/01

RESENHA FARSESCA – Kempelson, Stephen. A Literatura Tijucana no


alvorecer da presentividade. Rio de Janeiro: Errática Editora, 2050.
Conjunto de resenhas e artigos de juventude do crítico e filósofo
Stephen Kempelson, publicados na revista Maracanazzo entre 2008 e 2023, A
Literatura Tijucana no alvorecer da presentividade fornece um panorama
apurado das mais importantes correntes literárias tijucanas das décadas de
dez e vinte deste século precocemente envelhecido.
O posfácio é esclarecedor e rompe o silêncio de uma década do profes-
sor septuagenário. Para as novas gerações, os fundamentos de uma poética
fenomenográfica parecerão inusuais, mas esta foi a orientação dominante,
por quase duas décadas, na literatura tijucana, ao menos entre as vanguar-
das da região do Maracanã. Por prosa tijucana entenda-se não somente os

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gêneros literários produzidos na geografia entre a Praça da Bandeira e a
Muda (contos, romances, poemas, cardápios de bar, coletâneas de torpedos)
mas toda forma de expressão poética capaz de manifestar o que Kempelson
designou, em sua juvenília, de “constância do espírito tijucano na multipli-
cidade dos seus cronótopos”.
Autor de ensaios como “Cornucópia agambeniana” e “Ser-aí-pra-
isso”, referências nos cursos de pós-graduação em Alteridade Literária e
Bioetnopolíticas Narrativas, Kempelson iniciou sua trajetória em direta
conexão com os fenomenógrafos, neologismo cunhado em seu primeiro
ensaio, “Prolegômenos à narrativa tijucana contemporânea”, que abre a
coletânea. No ensaio, Kempelson faz a genealogia das poéticas de autores
diversos – e ontem como hoje completamente obscuros –, como Estela
Mizrahi, Michel Basbaum, Aparício Cançado e José Ozu.
Atualmente aposentado, recluso em sua cobertura no Largo da Segunda-
Feira – com vista privilegiada para a clareira do ser –, Kempelson foi res-
ponsável pela formação de incontáveis gerações de críticos tijucanos. A
edição, em capa dura e com índice onomástico, faz jus ao momento mais
inspirado desse notável professor, catedrático em Outras Literaturas da
Universidade Autônoma do Méier. Um dos ensaios trata do romance de
Michel Basbaum, O escorrega da rua Dulce (2008). A trama se passa num
átimo de segundo, o breve intervalo entre o desequilíbrio de uma criança
no alto do escorrega, a queda e o encontro fatal com o chão. O tempo é
a matéria desse romance antiexperimental, que explora, na terminologia
de Kempelson, o poder-ter-sido-do-que-não-foi, a existência como po-
tência singularmente negativa. Segundo o autor, há um diálogo explícito
de Basbaum com Santo Agostinho, Heidegger e Paul Ricoeur, no sentido
de conceber e explorar o tempo como distensão infinita do ser-lançado.
Se a reduzida produção ficcional de Basbaum – limitada ao romance e a
uma coletânea de aforismos – foi recuperada com alguma repercussão pelas
vanguardas hiper-realistas dos anos quarenta, a escritora Estela Mizrahi teve
a vida marcada por uma tocante obscuridade autoinfligida. Identificada na
juventude com o monadismo literário de Hutcheon Alexsander, publicou
aos 28 anos o notável Variações Delilleanas (2008), hoje esgotadíssimo. A
premissa do monadismo é falar unicamente de si, transformando as pró-
prias experiências em unidades literárias encapsuladas, pressupostos que
Mizrahi levou ao extremo em seu segundo romance, recusado por dezessete
editoras: O passeio de uma ruiva na rua General Rocca às cinco da tarde

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(2011). Kempelson destaca a singularidade e o rigor da obra de Mizrahi,
mas não deixa de lamentar que, ainda muito jovem, a escritora tenha sido
acometida pelo complexo de Bartleby. O fato é que – se nos fiarmos no
sempre duvidoso rigor empírico das pesquisas de Kempelson, que como
historiador da literatura não passa de um teórico razoável –, aos 30 anos
Mizrahi se trancou em seu apartamento na rua Carlos de Vasconcelos, de
onde só saiu oito anos depois para ir à feira.
Digna de nota, ainda, é a resenha de Atochei o pé na merda, romance
de estreia de Aparício Cançado. Narrado em primeira pessoa, o romance
analisa as implicações ontológicas do pisar em fezes. “Pisar na merda é a
mais singular das experiências. Já tinha me atochado outras vezes, mas
aquela tarde na Almirante Cochrane seria inolvidável em todos os sentidos.
Isto porque percebi de imediato, como numa epifania, que jamais voltaria
a tirar o pé da merda” (Kempelson). Para muitos, a abertura conceitual
iniciada por Atochei foi a principal razão do declínio do movimento. Mas
Kempelson refuta essa ideia: “não, o fenomenografismo não foi vítima de sua
abertura para as ideias. Sua praga, seu câncer, foi a autorreferencialidade”.
Trata-se de obra poderosa, singular, esta Literatura Tijucana no Alvorecer
da Presentividade. Os ensaios passam em revista um momento crucial
da prosa recente deste bairro que, se economicamente jamais se recupe-
rou do único evento comprovadamente repetido na história mundial, o
Maracanazzo de 2014, culturalmente permanece como o centro propulsor
das vanguardas estéticas fluminenses. Precisamente por essa razão, sua
leitura atenta pode ajudar a definir novos rumos, tão necessários, para a
literatura, ou o que o resta dela.
Por Adionson Saraiva

***

DEPOIMENTO DE ESTELA MIZRAHI A ADIONSON SARAIVA


Me sentia cansada, por isso parei de escrever. É isso que você quer
saber, não é? É o que todos perguntam. Aqui no seu e-mail você diz que
quer investigar as razões que me levaram a abandonar a escritura, escri-
tura?, whatever. Pois abandonei a escritura, Adionson, parei de escrever
porque me sentia cansada. Ano que vem faço bodas de ouro de síndrome
de Bartleby, mas por que me importaria? Vocês fazem esse trabalho por
mim, certo? Sou uma ex-escritora, então o diagnóstico síndrome de Bartleby
não é preciso. Mas ninguém pode ser ex-escritor, não é? É o que dizem.

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Por isso tantas perguntas, tantas aporrinhações. Ex-jogador, ex-presidente,
ex-marido, mas ex-escritor?
Não decidi parar de escrever. É que me cansei das lamúrias do Basbaum,
das digressões do Ozu, e tinha o Arnaldo, meu marido, que não gostava
nada deles. Qual dos dois é o nosso Sy Abelman, ele perguntava, e então
ria e eu ria também, depois ficava sério e dizia que eu me esquecia da casa
quando pensava em literatura. O Arnaldo é bem intransigente com isso,
a louça, a janta. Não posso fazer o mesmo prato antes de dezoito dias,
porque o estômago dele é sensível a repetições alimentícias. Não posso
lavar os copos e talheres com detergente comum, ou ele fica com bolhas
na língua. São detalhes que minam uma visão estética da vida, Adionson.
Está gravando? Isso não deve ser publicado. Espere a minha morte. Ando
doente. Tenho umas câimbras abdominais muito dolorosas, espasmos na
panturrilha, torcicolo.
Recebi esses dias um e-mail do Ozu. Ele escreveu um ensaio em in-
glês, vai ser publicado na New Yorker. Mandei pra ele um texto que saiu
na Maracanazzo. Ainda recebo a revista, mas raramente leio. E não é só
por falta de tempo. Por que leria? Qual o ponto, Adionson? Mando tudo
para o Ozu. Ele adora, sabe? É um erudito, olha só. “Mana, essa diatribe
oitocentista (vai em anexo) de Fuentino Fajardo contra o otomano Sjklçspi
Plarfsgsj é supimpa. Tem um estilo ‘foda-se’ que remete aos anticontos da
época em que morávamos na Desembargador Izidro. Ou àquela autora das
Ilhas Faroe que você indicou. Lembra? Estou mandando meu ensaio pelo
correio. Quero sua opinião. Saudades, Ozu”. Respondi hoje cedo. Quer ver o
que escrevi? Deixa eu abrir, um segundo. Aqui. “Ozu, o estilo ‘foda-se’ pode
se confundir com a literatura whatever. Pense nisso. E nunca te indiquei
uma autora das Ilhas Faroe. Eu inventei. Por sorte ela existia. Não me leve
a mal, mas não lerei seu manuscrito. Tenho filha e marido, sei que é difícil
conceber. Me dê de presente um livro de culinária hindu, bem ilustrado,
imagens suculentas. Ou uma coletânea de máximas chinesas. Aguardo retor-
no, Estela”. Coleciono máximas, Adionson. É um passatempo interessante.
Ontem disse ao Arnaldo: “luz do tempo, força à calçada”. Tirei de um haicai.
Tem outra: “dia nublado, nuvem, uma estátua de framboesa”. Mandei fazer
um pôster com esses dizeres. Eles abriram mão do sentido há dois mil anos.
Não vou ler o ensaio do Ozu, você me entende? Para ele existe uma época
da Desembargador Izidro, um período de formação, uma época memo-
rável, uma água-furtada. Para mim, a memória da Desembargador Izidro

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recende a refogado de alho com azeite, água de colônia Adis-Abeba, suco
de tangerina com açafrão. Isso não é nada literário. Outro dia o Basbaum
me ligou. Eu não estava aqui. Nunca saio de casa, mas nesse dia precisei ir
ao Wall-Mart comprar cebolinha e abacaxi. Só hoje de manhã o Arnaldo se
lembrou e me deu o recado. “Aquele seu amigo telefonou semana passada.
Não gosto dele, mas acho que tenho a obrigação de te comunicar. Estela,
meu doce, uma farofinha… você faz uma farofinha pro almoço?”
Talvez tenha sido intencional. Talvez não. Quem se importa? Você
não quer escrever um conto sobre isso? Você escreve, não escreve? Tem
pinta de escritor.

01/02

“Não escrevíamos para publicar, mas para conhecer a nós mesmos ou para
ver até que ponto éramos capazes de chegar” – Edith Oster, sobre os seus
dias com Arturo Belano.

02/02

O enevoamento que sucede a leitura de um livro como esse. Um instante


embaçado que vai se espichando. Se o deixarmos quieto, esse instante se
distende em horas ou dias. O segundo posterior à agulhada da anestesia.
O primeiro gole d’água depois da corrida. A lassidão após copular com
quem se gosta. Uns poucos instantes em que o corpo e o pensamento se
sentem confortáveis na imobilidade. Lupe e García Madero em Villaviciosa
esticando o tempo como um chiclete antes do mergulho definitivo no nada.

199
Referências bibliográficas

BOLAÑO, Roberto. Entre paréntesis. Barcelona: Anagrama, 2004.


_________. Os detetives selvagens. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.
_________. 2666. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das
Letras, 2010.
_________. Últimas entrevistas. Trad. José António Freitas e Silva. Lisboa:
Quetztal, 2011.
_________. Los sinsabores del verdadero policía. Barcelona: Anagrama, 2011.

200
PÓS-ESCRITO OU DE COMO NÃO
CONSEGUI ESCREVER UM
ENSAIO SOBRE BOLAÑO
Rafael Gutiérrez

Quando meu amigo Antônio Marcos Pereira me convidou para participar


de um livro de ensaios sobre Bolaño, recebi a notícia com entusiasmo. Desde
minha tese de doutorado, concluída em 2010, não escrevia nada realmente
novo sobre ele. Como acontece depois de realizar uma pesquisa tão longa
sobre um autor, fiquei cansado e um tanto aborrecido. Assim que inten-
cionalmente procurei me afastar de Bolaño e deixar que a distância, como
no caso de alguns amantes, permitisse um melhor reencontro posterior.
Agora, três anos depois, achei que poderia ser este momento (e foi, mas
não exatamente como eu esperava).
Meu primeiro impulso em direção ao ensaio foi recuperar uma ideia
relacionada com o romance de artista. Na entrada de meu diário do dia 17
de maio de 2013 escrevi: “Ideia para um ensaio: fazer uma genealogia do
romance de artista. Analisar suas mudanças técnicas. Comparar com os
contemporâneos Bolaño, Vila-Matas, Roth”. A ideia, evidentemente, era
excessiva, mas pensei que podia restringir o trabalho à análise de um livro de
Bolaño, aliás, de uma parte de um livro de Bolaño: “A parte de Archimboldi”.
Intrigava-me, fazia tempo, a figura desse escritor oculto, que fugia da
fama e do reconhecimento. Intrigava-me precisamente por habitar uma
época na qual o escritor aparece como uma superestrela, uma época cheia
de luzes, holofotes e exposição da intimidade tão acentuada como a nossa.
E também quiçá me intrigava essa figura e a ênfase na obra de Bolaño por
uma certa ética do fracasso e o anonimato em contraposição ao que vem
acontecendo com sua figura e sua obra depois da sua morte. Juan Villoro

201
colocava bem a questão quando escrevia em um artigo para o suplemento
cultural do jornal argentino Clarín:
[…] el mundo suele encandilarse con lo que se le resiste y la posteridad lo
transformó en leyenda. La fama es un equívoco: el asocial Kafka está en todas
las boutiques de Praga, el rostro del Che Guevara vende millones de camisetas
y Bolaño es el superestrella que vivió para no serlo.
Enfim, comecei a ler de novo “A parte de Archimboldi” e a fazer ano-
tações sobre o que lia, procurando especificamente as características desse
escritor imaginário, sua formação, suas leituras, sua visão da literatura e
do fazer literário. Em meu caderno escrevi coisas como estas: “Reiter não
parecia um menino, mas uma alga. Anda com passos inseguros, mas não
pela altura senão porque se move como se estivesse no fundo do mar”.
“Reiter como escafandrista não pertencia a este mundo, ao qual só ia como
explorador ou de visita”. “Reiter fala diferente: questão da linguagem”. “Aos
13 anos deixa de estudar (1933), ano em que Hitler sobe ao poder”. “Reiter
não serve para nenhum trabalho”. “Diferença entre um bom livro literário
e outro: a beleza da história e a beleza das palavras para contá-la: Goethe,
Schiller, Hölderlin, Kleist, Novalis”. “Primeira leitura literária de Hans:
Parsifal de Wolfram von Eschenbanch. Por que seria o livro mais indicado
para ele segundo Halder?”. “O mestre de música disse que Hans funcionava
como uma bomba-relógio: uma mente tosca e poderosa, irracional, ilógica,
capaz de explodir”. “Hans pensou que debaixo do seu uniforme de soldado
da Wehrmach trazia posta uma roupa de louco ou um pijama de louco”.
“Escritor e soldado, como Arquíloco, como Alonso de Ercilla. Tradição
hispano-americana”. “Reiter parece corajoso, mas na verdade busca uma
bala que levasse paz a seu coração”. “Método de biografias de escritores
encadeadas Hans-Ansky-Ivanov”. “Contraste entre Archimboldi (escritor
fora do sistema) e Ivanov (escritor do sistema)”. “Estratégia de descrever
o argumento dos romances e contos, mas nunca citá-los diretamente”. “A
escrita como uma sessão de hipnotismo, o sujeito que escreve é um sujeito
vazio”. “A experiência seria superior à leitura e à escritura. A leitura seria
superior à escritura”. “As obras menores existem para ocultar as obras pri-
mas”. “Archimboldi divide a literatura em três compartimentos: 1. Os livros
portentosos: Döblin, Kafka; 2. A horda, seus inimigos; 3. Seus próprios livros
e projetos”. “Bolaño não corrige suprimindo, mas escrevendo e modulando
o que acaba de escrever. Acumula”. “O crítico Junge não consegue definir

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Archimboldi, mas não lhe parece um escritor alemão, nem europeu”. “O
talento de Archimboldi não estava só no bom fazer literário e na fabulação,
era outra coisa, mas Bubis não sabia, só o pressentia”. “Moravia: escritor
burguês e sensato contra Archimboldi: lúmpen, bárbaro germânico”.
Tinha muitas ideias, pontos de partida para um possível ensaio in-
teligente e talvez inovador. Mas, depois de terminar a leitura e fazer as
anotações, eu não conseguia escrever nada. Todo começo era rapidamente
abandonado. Todo caminho me parecia impossível ou banal ou previamente
esgotado. Sentia que estava passando por um momento de bloqueio criati-
vo, algo que relacionei também com uma doença que me afligia por esses
dias e que possivelmente era aumentada por minha hipocondria crônica.
Embora depois pensei: o bloqueio é por causa de minha doença, ou a doença
é por causa do bloqueio? Nem o gastroenterologista nem eu conseguimos
desvendar esse mistério (apesar dos altos custos da consulta).
O que sim apareceu com alguma clareza durante essas tentativas frus-
tradas foi a tendência de minha escritura para se deslizar constantemente
ao campo da ficção. Assim o primeiro impulso reflexivo sobre as possíveis
transformações históricas do romance de artista derivou na interrogação
sobre as possibilidades de escrita de um ensaio ou um texto crítico sobre
um escritor imaginário. Poderia ser feito um texto crítico ou um ensaio
sobre um escritor que não existe? Perguntava-me. Nesse caso, contrário ao
que acontece em muitas ocasiões, temos abundante informação biográfica
e ausência de obra. Temos alguns argumentos, algumas referências críticas
(ver “A parte dos críticos”), mas nenhum texto. Seria, realmente, um trabalho
de detetive como queria Piglia, procurar as pistas deixadas aqui e ali sobre
uma obra que não leremos nunca. Uma peça adicional para a enciclopédia
das obras que nunca existiram.
Mas é precisamente a vida do autor o que interessa aqui, pensei. São
os traços de uma personalidade os que determinam sua importância como
escritor. Algo, aliás, que aparece frequentemente na obra de Bolaño, tanto em
suas ficções como em seus textos críticos ou crítico-ficcionais. Archimboldi
parece encarnar muitas dessas características tão positivamente vistas por
Bolaño: a valentia, a solidão, a decisão de se manter no anonimato, longe do
mundillo literário, longe dos centros de poder, a vida errante e a intempérie,
o compromisso radical (quase sacrificial) com a literatura.
Pensei então em escrever sobre Archimboldi como se fosse um autor
real, faria um estudo crítico ou crítico-biográfico sobre Archimboldi. A

203
ideia me parecia interessante, mas rapidamente percebi que era isso preci-
samente o que Bolaño havia feito. No final, terminaria fazendo uma seleção
de fatos, ideias, possíveis linhas de interpretação da obra de Archimboldi
que já estavam sugeridas no romance. Frustrado decidi abandonar esse
caminho e pensar em outra alternativa.
Enquanto isso o tempo passava e se aproximava a data em que deveria
entregar o ensaio. Na entrada de meu diário de 8 de outubro escrevi: “Estou
perdendo o apetite e com o ânimo decaído. Talvez por isso não consigo es-
crever nada que valha a pena para o livro sobre Bolaño. Continuo pensando,
escrevo algumas ideias, mas nenhuma parece alcançar a força necessária
para decolar realmente. Será que não tenho nada mais interessante a dizer
sobre Bolaño?”.
Entre as alternativas que considerava, uma começou a ganhar força,
embora parecia que de novo se deslizava para o terreno da ficção. E se
Bolaño não tivesse morrido naquele 15 de julho de 2003 com 50 anos e no
auge de sua produção literária? Pensei em fazer um jogo crítico-profético
seguindo um caminho que o próprio Bolaño costumava seguir em seus
textos. Por outro lado, como lembrava Rodrigo Fresán, Bolaño gostava de
brincar com a ideia de que ele teria morrido como consequência de seu
primeiro choque hepático em 1993 e que tudo o que aconteceria depois na
verdade seria parte de um sonho ou uma realidade paralela como em um
romance de Phillip K. Dick.
Minha ideia era imaginar o futuro literário de Bolaño, se ele não tivesse
morrido em 2003. Se houvesse aparecido um doador e a operação tivesse
sido bem sucedida. Muito provavelmente, pensei, Bolaño não se tornaria
aquela figura pop que domina hoje a cena. Escreveria mais e bons livros,
mas também imaginei que teria alguns fracassos e que, depois do boom
desses anos a maré diminuiria e passaria inclusive longos períodos de tem-
po sem que seu nome fosse citado na imprensa cultural. Terminaria 2666
e o final seria distinto do que conhecemos. Nunca publicaria O Terceiro
Reich. Não seria citado por Oprah Winfrey. Não seria vendido como um
escritor maldito, e seus livros não teriam tantos leitores nos Estados Unidos.
Continuaria publicando com Anagrama. Nunca ganharia o Premio Nacional
de Literatura de Chile e continuaria falando mal de Skármeta e Isabel Allende.
Participaria fugazmente como ator em alguns filmes de culto latino-ameri-
canos. Haveria um grupo de jovens escritores que o idolatraria até o final
de seus dias. Haveria um grupo de não tão jovens escritores que acharia

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sempre sobrevalorizada a sua obra. Alguns anos antes de morrer, aos oi-
tenta e quatro anos, seu nome seria considerado para o Prêmio Nobel, mas
nunca seria o eleito.
Dava-me um certo prazer imaginar aquelas possibilidades, mas seria
possível escrever um ensaio a partir desse ponto de vista? Talvez não, o que
escrevia se parecia mais com uma das biografias fictícias de La Literatura
nazi en América. Não é isso o que se espera de um ensaio. Não é isso o que
Lukács e Adorno esperavam de mim.
Parecia que retornava ao ponto zero. Meu amigo Antônio Marcos
Pereira me pede um ensaio sobre Bolaño. “Seja arriscado”, ele disse. “Este
é o momento”. Em vez de continuar animado com a ideia a questão ia se
tornando cada vez mais um pesadelo. Meu estômago não melhorava, minha
bolsa de pós-doutorado tinha acabado, minha mulher não tinha tempo para
transar e eu não conseguia escrever um ensaio sobre Bolaño.
No limite da minha desesperação criativa pensei em desistir definiti-
vamente da ideia de escrever algo novo e usar um dos capítulos de minha
tese que ainda não foram publicados em português. Um deles sobre as
intervenções críticas de Bolaño (seus prólogos, discursos, entrevistas) e o
outro sobre as características do tipo de crítica ficcional que aparece em
algumas de suas obras. Pensava nisso e escutava uma vozinha na minha
cabeça, como aquela que falava a Auxilio Lacouture em Amuleto: “A saída
fácil”. “A saída careta”. “Você é um medroso”. A vozinha tinha razão. Eu
não queria fazer isso.
Revisei de novo meu caderno de anotações procurando alguma ins-
piração e achei esta ideia: “Armar o cânone militar-literário pensado por
Bolaño”. Outra das brincadeiras que Bolaño costumava fazer era imaginar
os escritores como membros de alguma divisão militar. Nessa brincadeira
se misturavam sua afeição pelos jogos de guerra e sua visão da literatura
como um combate e dos escritores como valorosos guerreiros enfrentados
com forças superiores e, a maioria das vezes, malignas. Junto a quem Bolaño
gostaria de combater no campo de batalha? Junto a Borges, sem dúvida, junto
a Cortázar, Nicanor Parra e Enrique Lihn. Na segunda linha de ataque talvez
estariam escritores que ele considerava valorosos como Sergio Pitol, Pedro
Lemebel, Fernando Vallejo. Estariam escritores arriscados como Oswaldo
Lamborghini ou Juan Emar. Estariam escritoras como Silvina Ocampo e
Carmen Boullosa. Membros da divisão de contraespionagem como Copi
ou Wilcock. Na retaguarda autores como Aira (embora não estou seguro se

205
no final Bolaño o incluiria na sua lista ou o enviaria para a Cruz Vermelha),
Alan Pauls, Andrés Neuman, Rodrigo Fresán, Juan Villoro, Ricardo Piglia,
Jorge Volpi, Rodrigo Rey Rosa, Roberto Brodsky. E, claro, um comando
suicida composto em sua totalidade por poetas como Rodrigo Lira, Mario
Santiago ou Diego Maquieira. A grande maioria de escritores e escritoras
hispano-americanos iria engrossar inevitavelmente as filas dos membros
da Cruz Vermelha, homens e mulheres bem intencionados, com algo de
talento, com algumas obras valiosas, mas que nunca chegariam a tornar-se
guerreiros literários na concepção bolaniana.
Por outro lado e pensando nesse cânone militar-literário, sempre me
pareceu exagerada aquela ideia segundo a qual Bolaño teria reorganizado o
cânone da literatura hispano-americana. Olhando com cuidado, com poucas
exceções, os autores que Bolaño resgata em suas intervenções são os mesmos
que a crítica literária e outros escritores vêm estudando e comentando faz
décadas. Mais que reorganizar o cânone, suas intervenções contribuíram
talvez para aumentar a visibilidade de certos autores pouco mencionados
pela grande imprensa cultural em detrimento de figuras estabelecidas como
os autores do boom ou os best-sellers latino-americanos.
Mas a ideia do cânone-militar também não ia muito longe. Poderia ser
talvez matéria para uma instalação artística ou um poema visual como os
de Nicanor Parra (imaginei o cenário, as roupas, as estratégias de combate),
mas não parecia ter o fôlego necessário para escrever um ensaio sobre essa
ideia. Chegava a um novo beco sem saída.
De improviso, seguramente motivado pelo impulso biográfico e pro-
fético já mencionado e pela leitura de um recente livro sobre Bolaño (El
hijo de Míster Playa. Una semblanza de Roberto Bolaño, escrito por Mónica
Maristain) escrevi um título em meu caderno: Las últimas horas de Bolaño.
Vieram a minha mente o conto de Raymond Carver sobre Chéjov, um
texto de Tabucchi sobre Pessoa e o livro de De Quincey sobre Kant que
tinha lido há pouco tempo. Não quis lutar mais contra a escrita ficcional
que me dominava e comecei a escrever um relato sobre as últimas horas de
Bolaño. “Foda-se o ensaio”, pensei. “Vou escrever um conto e espero que
meu amigo me perdoe”. Comecei a escrever o relato e a angústia pouco
a pouco começou a diminuir, assim como minha saúde mostrava alguns
signos de melhoria.
O relato está baseado na entrevista que Mónica Maristain fez com
Carmen Pérez de Vega, última companheira sentimental de Bolaño. No

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entanto, não pretende ser uma crônica ou um relato verídico dos aconteci-
mentos. Trata-se de um produto de minha imaginação e minha incapacidade
para escrever um ensaio sobre Bolaño:

AS ÚLTIMAS HORAS DE BOLAÑO


“Chejov trató siempre de minimizar la gravedad de su estado.
Al parecer estuvo persuadido hasta el final de que lograría superar
su enfermedad del mismo modo que se supera un catarro persisten-
te. Incluso en sus últimos días parecía poseer la firme convicción de
que seguía existiendo una posibilidad de mejoría.”
(Raymond Carver, Tres rosas amarillas)

“Não posso mais com tantos crimes”, pensou Bolaño, voltando a colocar o
manuscrito sobre a escrivaninha. Levava mais de três meses sem escrever
uma só palavra do romance e esse dia não seria distinto. Levantou da ca-
deira e foi à cozinha. Pôs-se a esquentar água e escolheu um chá de uma
pequena caixa de madeira. Enquanto tomava o chá olhando pela janela
pensou em sua obra, no peso e na responsabilidade de uma obra. Logo
riu de si mesmo e agitou a mão esquerda no ar como querendo afastar um
mal pensamento. Como se esse pensamento fosse uma matéria sólida que
pudesse simplesmente expulsar pela janela, lançar pelo ar para que batesse
e se desintegrasse contra o pavimento seco.
Melhor revisar os contos pela última vez, pensou. Queria entregar o
livro na manhã seguinte em Barcelona. Antes de fechar a janela sentiu uma
onda de calor que lhe bateu no rosto e o fez tossir de novo. Já faz alguns dias
que está com um resfriado persistente. Passados uns segundos se recuperou
e foi sentar-se em frente ao computador. Abriu o arquivo do livro em que
esteve trabalhando durante os últimos meses. “Meu seguro econômico para
o pós-operatório”, havia dito a Carmen, sua mulher, referindo-se ao livro.
No primeiro relato corrigiu uma passagem sem pensar demasiado em
seu significado. A passagem finalmente ficaria assim: “Durante un buen
rato lo estuve mirando. Yo entonces tenía dieciocho o diecinueve años y
creía que era inmortal. Si hubiera sabido que no lo era, habría dado media

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vuelta y me hubiera alejado de allí”. Quando o escreveu, Bolaño não pensou
em nenhum sinal premonitório como costumava fazer às vezes. Só pensava
em deixar o livro pronto e entregá-lo a seu editor. Assim que continuou
revisando os relatos, sentindo a musicalidade das frases e o ritmo da nar-
rativa sem pensar demais em seus possíveis significados ocultos. No início
do segundo relato mudou o adjetivo carinhoso por cuidadoso para se referir
a um pai de família que protagonizava a história, e mais adiante voltou a
mudar a ordem de dois parágrafos que, apesar de tudo, continuavam sem
satisfazê-lo plenamente. Quando revisava o quinto relato do livro, sentiu que
algo fazia falta e escreveu quase uma nova página inteira. Bolaño pensou
nesse gesto e que pertencia ao grupo menos frequente de escritores que
corrige por adição e não por subtração de matéria. Enquanto trabalhava,
uma frase de Monterroso flutuava em sua mente: “Escrever é corrigir”,
havia dito Monterroso. “Escrever é corrigir”, repetia mentalmente Bolaño.
A noite começava a se instalar sobre Blanes quando terminou de revisar
o livro. Guardou o arquivo em um disquete e saiu. O calor tinha diminuído
um pouco mas parecia ainda colado a seu corpo enquanto caminhava. Pegou
seu filho na casa de Carolina, sua ex-mulher. Intercambiaram algumas
frases e voltaram. Bolaño preparou uns macarrones para a ceia. Comeram
conversando e fazendo brincadeiras. Os dois estavam de muito bom humor.
A tosse, no entanto, voltava a intervalos regulares, mas ele não queria dar
demasiada atenção ao assunto. Depois de jantar assistiram televisão até que
seu filho dormiu. Bolaño então ficou por um longo tempo contemplando-o
enquanto dormia e em seu pensamento pediu aos deuses de sua biblioteca
que sempre tomassem conta dele.
Essa noite quase não conseguiu dormir. A tosse e o calor o incomo-
davam. Levantou-se, deu uma volta pela casa. Percorreu com o olhar os
títulos dos livros nas estantes, mas não se decidiu a pegar nenhum. Ficou
alguns minutos observando a cidade em silêncio através da janela. Aquele
pensamento voltava, como uma sombra escura que lhe nublava a visão.
Bolaño lutava, mas o pensamento parecia mais forte ou, em todo caso, ele
se sentia mais débil para enfrentá-lo. Finalmente, quase ao amanhecer,
recostou-se na cama e adormeceu.
A tosse o acordou. Incorporou-se e notou algumas gotas de sangue
sobre o lençol. Um acesso de tosse o dominou de novo e viu como sua mão
direita ficava coberta de sangue. Levantou-se e foi até o banheiro. Lavou as
mãos e o rosto. Começou a sentir-se um pouco melhor. Apoiado contra a

208
pia viu seu reflexo pálido no espelho e instintivamente moveu a cabeça de
um lado para o outro. Saiu do banheiro, colocou a roupa que tinha deixado
sobre uma cadeira no quarto e acordou seu filho. “Te deixo com tua mãe
porque tenho que ir a Barcelona”. Depois de deixá-lo na casa de Carolina,
voltou e ligou para Carmen. “Preciso que venha me encontrar. Não me
sinto bem e hoje de manhã tossi sangue”.
Quando Carmen chegou, Bolaño se sentia melhor, embora seu sem-
blante não fosse tão alentador. “Nós vamos ao hospital” disse ela ao vê-lo.
“Já estou bem. Levamos o livro à editora e depois vamos ao hospital”, disse
Bolaño. Nesse momento, Carmen pensou que não ia ser fácil convencê-lo.
“O imprimimos em Barcelona, mas nós vamos agora”, ela disse. Saíram para
Barcelona e à medida em que o dia transcorria Bolaño parecia recuperar o
bom ânimo. Inclusive pararam para comprar algumas coisas antes de chegar
à casa de Carmen. Ao entrar, colocaram as compras nas estantes da cozinha
e depois sentaram no computador para imprimir o livro.
Na primeira página havia duas dedicatórias: “Para meus filhos Lautaro
e Alexandra. E para meu amigo Ignacio Echevarría”. A maioria dos relatos
também tinha dedicatórias: à Carmen; ao seu médico, o doutor Víctor
Vargas; ao seu amigo Rodrigo Fresán; aos tradutores Robert Amutio e Chris
Andrews e uma mais ao escritor argentino Alan Pauls. Não era a primeira
vez que Bolaño dedicava seus relatos, mas neste caso foi difícil não ver esse
gesto como um gesto final de despedida.
Quando terminaram de imprimir o livro, Carmen tirou o disquete do
computador e tentou entregá-lo para Bolaño, mas ele não o recebeu. “Não,
o guardas tu”, disse. Subiram ao carro e Carmen o deixou na entrada da
editora. Bolaño subiu para entregar o livro e ficou conversando com seu
editor e alguns dos empregados que, como de costume, fizeram uma pausa
em seu trabalho para intercambiar comentários, notícias e opiniões sobre
literatura. Falaram sobre tudo de seu último romance. Bolaño parecia con-
tente e recuperado do mal-estar dessa manhã. Tanto é assim que quando
Carmen chegou, ele já não queria ir ao hospital. Disse que se sentia bem
e que não era necessário. Carmen não esteve de acordo e discutiram. Ela
esteve a ponto de fazê-lo descer do carro e deixá-lo jogado na rua, mas no
final desistiu da ideia.
Contra o que Carmen pensava, Bolaño decidiu que deviam voltar para
Blanes. No caminho pararam numa área de serviço da autopista onde co-
meram um sanduíche. Enquanto comiam falaram do último filme de Alex

209
Cox que tinham visto. Um filme que Bolaño tinha visto muitas vezes e que
Carmen não tinha gostado. Como sempre, cada argumento de Carmen
contra o filme era refutado de maneira enfática por Bolaño até que em
algum momento da conversa, depois de um pequeno silêncio e quando
um enorme caminhão de carga passava pela estrada, Bolaño lhe disse: “No
final, talvez tenhas razão”.
Chegaram em frente à casa de Bolaño e se despediram. Carmen devia
voltar a Barcelona para pegar sua filha, mas não estava totalmente segura de
ir embora e deixar Bolaño sozinho. Enquanto decidia o que fazer, Bolaño
apareceu na janela e gritou: “Quando você chegar, liga para mim, porque
estou sem crédito”. Aquilo foi suficiente para que Carmen decidisse ficar.
Ligou para uma amiga para que cuidasse de sua filha e subiu. Eram onze
horas da noite e os dois estavam muito cansados, e assim foram diretamente
para a cama.
Essa noite Bolaño sonha com seus filhos. Sonha que estão numa praia
e que encontram uma tartaruga enorme atrás de uma rocha. A tartaruga se
assusta ao vê-los e tenta voltar ao mar, mas o faz tão lentamente que parece
não se mover de seu lugar. Os três ficam olhando a tartaruga e começam
a gritar palavras de ânimo: “Vamos tartaruga!”, “vai que pode!”, “ao mar
tartaruga!”. Finalmente a tartaruga alcança a água e se perde sob a super-
fície. “Como Hans”, pensa Bolaño no sonho. De improviso a paisagem se
transforma e agora ele está sozinho no meio do deserto. Tenta dar alguns
passos e sente que caminha sobre uma superfície irregular. Ao baixar o
olhar dá-se conta de que todo o terreno está semeado de cadáveres e nesse
momento acorda sobressaltado.
O relógio sobre a mesa de cabeceira marcava duas e meia da madrugada.
Bolaño sacode levemente o corpo de Carmen e lhe diz que não se sente bem
e que precisa comer algo. Carmen se levanta e lhe diz que o melhor é ir ao
hospital, mas Bolaño se nega e decide levantar-se para preparar um arroz.
Sai do quarto, vai até a cozinha e começa a prepará-lo. O vento golpeava
com força os galhos das árvores afora e se colava pelas frestas das janelas
fazendo um ruído agudo. Quando o arroz estava pronto, sentaram-se à
mesa. Com o primeiro bocado de imediato lhe sobreveio um vômito de
sangue. Só então Bolaño aceitou que deveriam ir ao hospital. No entanto,
teve tempo de tomar banho e escutar música, como se com esses gestos
banais pudesse talvez afastar a pior das possibilidades. A música que escu-
tava falava de gigantes, falava de um duelo selvagem, falava de entrar em

210
um mundo descomunal, falava da fragilidade. Enquanto atravessavam em
silêncio a autopista vazia rumo a Barcelona, um verso continuava a se repetir
na mente de Bolaño: “Me da miedo la enormidad donde nadie oye mi voz”.
Quando chegaram ao hospital eram quatro e meia da manhã. Bolaño
parecia tranquilo. Pegou a mão da Carmen e perguntou como estava. Carmen
não conseguiu responder. Enquanto esperavam pelos médicos, Bolaño se
sentou numa cadeira do hospital e Carmen junto a ele sobre uma maca.
“Você se lembra da piada da Nuria?”, disse Bolaño. Carmen sorriu. “Um
cara se aproxima de uma garota em um bar. ‘Olá, como você se chama?’,
lhe pergunta. ‘Me chamo Nuria’. ‘Nuria, você quer trepar comigo?’, disse o
cara. Nuria responde: ‘Pensei que nunca perguntaria’”.

***

Depois de passar dez dias em coma como consequência de uma insu-


ficiência hepática, Roberto Bolaño morreu no dia 15 de julho de 2003, no
Hospital Valle de Hebrón de Barcelona.

211
SOBRE OS AUTORES

Ana Cecilia Olmos é professora livre-docente de Literatura Hispano-


Americana na Universidade de São Paulo e pesquisadora do CNPq.
Especialista em literatura e cultura hispano-americana do século XX, con-
centra sua pesquisa nos discursos críticos, na narrativa contemporânea e
no ensaio de escritores. Publicou artigos em revistas especializadas e de
difusão cultural e os livros Por que ler Borges (Ed. Globo, 2008); Ensayos de
narradores (Alción, 2007, em colaboração com Marcelo Casarín) e Em pri-
meira pessoa. Novas abordagens de uma teoria da autobiografia (Annablume,
2009, em colaboração com Helmut Galle).

Marcos Natali possui Mestrado e Doutorado em Literatura Comparada


pela Universidade de Chicago e é professor de Teoria Literária na USP.
Publicou o livro A política da nostalgia: Um estudo das formas do passado
(Nankin, 2006) e artigos sobre Roberto Bolaño, Tununa Mercado, José María
Arguedas, Mario Bellatin, a concepção de literatura em Jacques Derrida e
a polêmica sobre o racismo na obra de Monteiro Lobato.

Gustavo Silveira Ribeiro é doutor em Literatura Comparada pela Universidade


Federal de Minas Gerais, com período de estudos na Universidade Nova de
Lisboa, sob a orientação de Abel Barros Baptista. Professor da Faculdade
de Letras da UFMG, é autor de Por uma literatura pensante – ensaios de
filosofia e literatura (Fino Traço, 2012, com Eduardo Veras); Abertura entre
as nuvens: uma interpretação de Infância, de Graciliano Ramos (Annablume,
2011) e O drama ético na obra de Graciliano Ramos – leituras a partir de
Jacques Derrida (Ed. UFMG, 2016). Tem artigos publicados sobre, entre
outros, António Lobo Antunes, Carlito Azevedo, W. G. Sebald, Herberto
Helder, Walter Benjamin e Carlos Drummond de Andrade.

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Graciela Ravetti é professora titular da Universidade Federal de Minas
Gerais e Diretora da Faculdade de Letras na mesma instituição. Bolsista em
Produtividade do CNPq (1-D). Escreveu Nem pedra na pedra, nem ar no ar
(Ed. UFMG, 2011) e co-organizou livros como Políticas do contemporâneo
(Ed. UFMG, 2012); Olhares críticos (Ed. UFMG, 2009), entre outros.

Maria Betânia Amoroso é pesquisadora e professora no Instituto de


Estudos da Linguagem, fazendo parte do Departamento de Teoria Literária
(Unicamp). Entre seus livros publicados estão A paixão pelo real - Pasolini
e a crítica literária (Edusp, 1997), Pier Paolo Pasolini (Cosacnaify, 2003) e
Murilo Mendes, o poeta brasileiro de Roma (MAMM/UFJF e Ed. Unesp, 2013).

Tiago Guilherme Pinheiro é doutor pelo Departamento de Teoria Literária


e Literatura Comparada da USP, onde defendeu “Literatura sob rasura: au-
tonomia, neutralização e democracia em J. M. Coetzee e Roberto Bolaño”,
trabalho que recebeu Menção Honrosa no Prêmio Capes de Tese 2015.
Atualmente realiza pesquisa de pós-doutorado sobre poesia brasileira con-
temporânea no IEL-Unicamp com bolsa da FAPESP.

Kelvin Falcão Klein é crítico literário e professor adjunto de literatura


comparada na Escola de Letras da UniRio (Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro). Publicou Conversas apócrifas com Enrique Vila-Matas
(Modelo de Nuvem, 2011), além de ensaios e artigos sobre literatura con-
temporânea em periódicos diversos, dentre os mais recentes: “Atenção
flutuante e deriva em W.G. Sebald” (Revista Maracanan, UERJ), “Repetição,
originalidade e tradução” (Revista Ilha do Desterro, UFSC) e “O Atlas e
as Passagens: a rarefação do eu diante do arquivo” (Revista Confluenze,
Università di Bologna).

Clarisse Lyra é pesquisadora e tradutora. Mestra em Letras pela Universidade


de São Paulo na área de Literatura Hispano-Americana, tendo escrito o
trabalho “Voz, sentido e experiência em Los Detectives salvajes, de Roberto
Bolaño”. Desenvolve na USP tese de Doutorado a partir da obra de Alejandra
Pizarnik.

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Mariana Di Salvio é pesquisadora e revisora. Mestra em Estudos Literários
pela UFMG, escreveu a dissertação “Bolaño em contraponto: trânsitos per-
formáticos em Los detectives salvajes”. Atualmente é doutoranda na mesma
instituição, e segue estudando a obra de Bolaño.

Matt Bucher é graduado pela University of Denver. Atua como editor


do Sideshow Media Group Press. Tem artigos publicados nos perió-
dicos Dublin Review of Books, Chicago Review of Books, Full Stop, The
Scofield, entre outros. Dirige um site dedicado à obra de Roberto Bolaño:
www.bolanobolano.com. Vive em Austin, Texas.

Felipe Charbel é professor de Teoria da História na Universidade Federal


do Rio de Janeiro e pesquisador do CNPq. É autor de Timoneiros: retórica,
prudência e história em Maquiavel e Guicciardi (Ed. Unicamp, 2010) e um
dos organizadores de As formas do romance. Estudos sobre a historicidade
da literatura (Ponteio, 2016).

Rafael Gutiérrez é escritor, crítico literário e tradutor. Doutor em Estudos


de Literatura da PUC-Rio com a tese “Da literatura como um ofício perigoso.
Crítica e ficção na obra de Roberto Bolaño”. Autor do romance Como se
tornar um escritor cult de forma rápida e simples (7Letras, 2013) e do livro
de poemas A orelha de Holyfield (7Letras, 2016). Participou como autor e
organizador do livro NósOtros. Diálogos literários entre o Brasil e a América
Hispânica (7Letras, 2010).

Antonio Marcos Pereira é doutor em Estudos Linguísticos pela UFMG e


Professor Associado de Literatura Brasileira da UFBA. Pesquisa temas asso-
ciados à poética dos gêneros biográficos e autobiográficos, e suas transações
e conexões com a crítica da literatura e da cultura. Publica regularmente
resenhas em O Globo, e tem ensaios em publicações especializadas sobre
Saer, Levrero, Coetzee, Sebald, Lydia Davis, Barthes, entre outros.

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1a edição [2016]
Esta obra foi composta em Minion Pro e Din sobre papel
Pólen Bold 70 g/m2 para a Relicário Edições.

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