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A Psicologia Concreta de Vigotski Implicacoes para A Educacao PDF
A Psicologia Concreta de Vigotski Implicacoes para A Educacao PDF
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A PSICOLOGIA CONCRETA DE VIGOTSKI:
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Angel Pino
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to psicológico da sua época, é que o psiquismo é de natureza
cultural. Embora diferentes, trata-se de duas idéias interdepen-
dentes, urna vez que afirmar que o psiquismo é de natureza
cultural equivale a dizer que ele é ~istórico e vice-versa, corno
tentarei mostrar neste trabalho.
1. Em termos gerais, história significa uma abordagem lidade em si, o "dado" nos termos c;leHegel, ou seja, a realidade
dialética geral das coisas, no sentido de que cada coisa tem sua como existência independente do homem, aquilo de que fala a
própria história, como quando falamos de "história natural" ciência. No segundo caso, é a realidade parasi, ou seja, para o
para nos referirmos à ciência da natureza. É evidente que, nes- homem e, como tal, o objeto da ciência. É neste nível que a na-
te caso, o termo história não tem o mesmo sentido que quando tureza tem uma dimensão histórica, na medida em que adqui-
aplicado aos fatos humanos, pois história não é a mera suces- . re existência para o homem que, ao agir sobre ela e trans-
são de fatos no tempo e no espaço, mas um certo ordenamento formá-Ia, integra-a na sua própria história. O homem consti-
significativo desses fatos, o que, necessariamente, implica a tui-se em "consciência da natureza" e sua história é a história
presença de certo nível de consciência e de intencionalidade. das transformações da natureza. Tal parece ser o sentido das
Com efeito, Vigotski está falando de uma certa maneira de palavras de Marx quando diz: "a própria história é uma parte
abordar as coisas em geral, uma abordagem dialética. Esse tipo real da história da natureza, da transformação da natureza em
de abordagem foi emprestada de Hegel por Marx, invertendo homem" (1972,p. 96). Portanto, é o homem - ao mesmo tempo
o sentido idealista que aquele lhe dera e conferindo-lhe um natureza e história dessa natureza - quem confere a esta sua
sentido materialista, constituindo o chamado materialismo dimensão histórica.
dialético. Este funda-se em uma concepção da realidade como
~iA~l.-cL./ 2. Em sentido restrito, história é a história do homem. Se
"totalidade concreta", a qual nada tem de comum, como diz
Kosik (1976,p. 49), com a idéia de totalidade holística - em que
:, ::\.~!l0 sentido anterior a história é a visão dialética da natureza,
. .,LL~ aqui ela é entendida como o próprio materialismo histórico, se-
J todo é concebido como algo já pronto e formalizado que de- II
gundo Vigotski. O autor está indicando que a sua compreen-
termina as partes -, uma vez que a própria totalidade - o todo e i são da história do homem tem sua referência na matriz do
:ada uma das suas partes - concretiza-seem um processo de materialiSmo histórico, o .qual implica uma concepção científi-
~ênese e desenvolvimento. Isso significa que a gênese e o de-
;envolvimento da "totalidade concreta" é "um processo no
lual se cria realmente o conteúdo objetivo e o significado de
ca da históri.
~ esde que existe o hO..!l1em,
história da natureza
e história do ornem são inseparávei.o/pois esta confere àquela
um sentido histórico. Não é minha intenção entrar aqui na
I
odos os seus fatores e partes" (idem, p. 50). complexa questão teórica do materialismo histórico, mas ape-
A natureza pode ser entendida em dois níveis, ambos nas reunir algumas das idéias mais importantes colocadas por
:oncretos: o ontológico e o dialético. No primeiro caso, é a rea- Marx e Engels, para entender o pensamento de Vigotski.
.
lembra E. Bottigelli (1972), o problema do homem e da sua li- da visivelmente pela influência do idealismo de Hegel, para
berdade dominou a filosofia clássica alemã. Se o idealismo o afirmar que é por ele que o homem assimila as características
deslocou ao plano do pensamento, sob a forma abstrata da re- . da matéria e a transforma (ou seja, imprime-lhe uma forma
lação sujeito-objeto, ele situa-se realmente no plano do concre- nova, tal é a idéia de "transformar") e, por esse mesmo ato,
to como problema dialético da oposição homem-natureza. transforma-se ele mesmo, desenvolvendo capacidades latentes
Hegel (1941) resolve esse problema no plano da "consciência na sua própria natureza.2 Assimilar as característica da maté-
de si", ponto de chegada de um desenvolvimento dialético que , ria implica a sua subjetivação. Conferir-lhe uma forma nova
engloba todo o devir da História e que revela a verdade do ho- implica não só alterar sua materialidade mas, sobretudo, im-
mem, livre e capaz de pensar-se e de pensar o mundo. Trata-se primir nela uma idéia (projeto que preside e dirige o trabalho).
de uma solução idealista, criticada por Feuerbach e Marx. Dessa maneira, o produto do trabalho torna-se a objetivação
Quanto a Feuerbach, ele substitui a "consciência de si" pelo ho- da idéia e da própria atividade do homem, constituindo assim
mem concreto, reconciliando homem e natureza e fazendo do a sí se da relação dialética homem-natureza.
humanismo o equivalente de naturalismo. Trata-se de uma
concepção materialista, sem dúvida, mas que, ao excluir a his-
tória, deixa sem resposta a questão da verdadeira natureza do
~ Na concepção de Marx, o trabalho é um processo único e
comp exo, envolvendo três elementos simples: a atividade
pessoal do homem, o o1;>jeto sobre o qual ele age e o meio (ins-
homem. Criticando o idealismo de Hegel, Feuerbach é, por sua trumento) pelo qual age) Nesta formulação~ caráter de gene-
vez, objeto das críticas de Marx por não ter conseguido escapar ralidade dado a esses Jementos permite estender a qualquer
\ de um humanismo abstrato e meramente contemplativo. Para tipo de atividade humana, material ou mental, o conceito de
\~r~ue retém de Hegel a idéia do "devir hi~tórico do ho- trabalhcl Com efeito, tanto uma materialidade quanto um ente
_c...' mem"; na perspectiva dialética e de Feuerbach a concepção mental ~odem ser objeto da atividade, mantendo a fo'rmulação
-l..-:.-Pnateralista,~verdade" do homem só pode revelar-se objeti- toda sua validade conceptual. Fica claro, entretanto, que o que
vamente, no plano da prQ.çluçãoou trabalho, campo da ativida- confere à atividade de trabalho sua especificidade humana é a
de específica do homem) Corno para Hegel - que vê no mediação de instrumentos, criados pelo homem em função do
,,-.;,C trabalho o meiopelo qual ó homem, opondo-se (negação)à na- tipo de ação que pretende realizar no objeto. Diz Marx:
tureza se reconcilia com ela -, o trabalho também constitui
para Marx o meio,não da conciliaçãodo homem e da natureza, ,
pois aquele já faz parte desta, mas do salto evolutivo que per-
mite ao homem fazer da realidade natural uma realidade cul-
, i 2 "O trabalho é antes de tudo um ato que se passa entre o homem e a
tural ou humana. Isso ocorre quando o homem produz os natureza. Nele, o homem desempenha face à natureza a função de uma
instrumentos para agir sobre a natureza e criar suas próprias força natural. As forças de que seu corpo é dotado, braços e pernas,
cabeça e mão,' ele as põe em movimento a fim de assimilar matérias
condições de existência, assumindo assim o controle da pró- dando-Ihes uma forma útil para a sua vida. Ao mesmo tempo que por
~~,~volução q~~ é sua história. y 7rP-Q.1 , este movimento ele age sobre a natureza exterior e a transforma, transfor-
Em O CapItal(1977),Marx reiõffia a questão do trabalho, ma sua própria natureza e desenvolv~ ,as facu!ciades adormecidas nela .-
colocada já nos Ma/1uscritosde 1844,obra de juventude marca- . [u.]O resultado ao qual chega o trabalho preexiste idealmente na imagi- ,.
'\ nação do trabalhador" (Marx,197~Lv. I, p. 136, tradus~~ J1\inha). I
J
o meio de trabalho é uma coisa ou conjunto de coisas que o ho- ta essas contradições ao plano especulativo, Marx as recoloca
mem interpõe entre ele e o objeto do seu trabalho como condu- no plano do concreto, fazendo da alienação uma etapa transi-
tores da sua ação [...] O uso e a criação de meios de trabalho, tória na dialética da história das relações de produção. A su-
mesmo encontrando-se em germe, em espécies de animais, ca- . pressão da alienação só será possível, segundo Marx, pela
racterizam eminentemente o trabalho humano [...] No processo superação da sua fonte, a propriedade privada, expressão da
de trabalho a atividade do homem efetua portanto com a ajuda
. apropriação da mais-valia, verdadeiro motor das relações de
dos meios de trabalho uma modificação intencional do seu ob-
produção do capitalismo.
jeto. O processo conclui-se no produto, ou seja num valor de
uso, uma matéria natural assimilada às necessidades humanas Se é pelo trabalho que os homens criam suas próprias
por uma mudança de forma. O trabalho combinando-se com condições de existência, a maneira como eles organizam o
seu objeto, materializou-se e a matéria foi trabalhada. O que era modo de produção tem, necessariamente, a ver com a qualida-
um movimento do trabalhador aparece agora no produto como de dessas condições, como o mostra a história social dos ho-
uma propriedade em repouso. O operário teceu e o produto é o mens. É o que diz Marx:
tecido. (Idem, pp. 137-138)
Produzindo seus meios de existência, os homens produzem in-
Se o trabalho, assim concebido, constitui a condição de diretamente sua própria vida material [...] O que eles são coinci-
humanização do homem e da natureza, traduzindo a "verda- de portanto com a sua produção, tanto com o que eles
produzem quanto com a maneira como eles o produzem. Por-
de", ao mesmo tempo da natureza, pela ciência, e do homem,
tanto, o que os indivíduos são depende das condições materiais
pela consciência da sua liberdade, é porque o homem - que
da sua produção [..,] Esta produção não aparece senão com o
pensa e realiza a atividade - e o produto que dela resulta per- aumento da população. A qual pressupõe da sua parte relações
manecem indissociáveis em todo o processo. Na medida, po- dos indivíduos entre si. Por sua vez, a forma dessas relações é
rém, em que, por condições históricas concretas, eles são condicionada pela produção. (Mi:lrxe Engels, 1976, pp. 70-71)
dissociados, produz-se a alienação do trabalhador do processo
de trabalho. Como diz Bottigelli (1972, p. LV e ss.), o termo
"alienação", de origem jurídica e econômica, foi elevado por Isso quer dizer que,~ o mododeprodução,qualquer que
ele seja, condiciona as relações d,os homens com a natureza e
Regel ao estatuto de categoria filosófica, aparecendo no siste-
deles entre si, ele determina as condições de existência dos ho-
ma hegeliano (1941)como uma etapa do retorno do Espírito a
mens não apenas materiais, mas também culturais. Estas, por
si mesmo, onde ocorre a identidade do sujeito e do objeto. Na
dialética hegeliana, o conceito de alienação identifica-se com o sua vez,.vão condicionar o conjunto da vida social- a maneira
como as relações sociais se estruturam - e, finalmente, o modo
de objetivação. Marx, porém, diferencia uma da outra. Se a ob-
jetivação é o resultado natural do processo de trabalho, a mu-
dança nas relações de produção, como ocorre no sistema de deserdos ho~e,
produção centrado no capital, transforma-a em alienação. Em
contraposição a Hegel, que, apesar de relacionar a alienação
com as contradições existentes no mundo capitalista, transpor- . ..
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PSICOLOGIA & EDUCAÇÃO: REVENDO CONTRIBUIÇÕES VIGOTSKI 41
Cria-se assim, a partir do trabalho, uma espécie de "cir- pelas "eternas leis da natureza" e assumir o curso da própria
cuito" como mostra a Fig. 1:
evolução que constitui a História. Transpor os limites da natu-
TRABALHO => MODO DE PRODUÇÃO reza sem deixar de ser natureza é o grande paradoxo da histó-
t ~ ria humana, icuja c0l!lpreensão abre as portas à "verdade do
MODO DE SER <= RELAÇÓES SOCIAIS homem". Se Vigotski\mostra-se particularmente~ríticO km re-
, dos homens lação ài'psicolÓgiada-sua época '(1997,vol. 3 e 4), e preci~amen-
Figura 1: diagrama do ciclo "modo de produção" <> "modo de ser" dos te pela 'inabilidade desta em entender que o que o homem tem
homens de específico é o que o diferencia dos outros seres da natureza
e não o qU,Gtem em comum com eles, corno aparece na visão
onde o mododeserdos homens, cuja essência,segundo Marx, ~aturalista.~ixando de investigar a dimensão histórica do ho-
são as relaçÕes sociais, depende do modode produção,que, por '. ~em par~ insistir no que ele tem de próprio com a natureza, a
sua vez, depende daquele. Não é um processo cego e determi- psicologia fecha-se à "verdade do homem", abrindo o caminho
nista, uma vez que são os próprios homens, e não a natureza, às ideologias )que, se falam do homem, fazem-no ocultando
que estabelecem as regras qtie determinam o modo de pro- sua verdadeifa essência. Esse é o grande equívoco das teorias
dução. Mudanças em um ponto do "circuito" produzem psicológicas e a f te principal de impasses.
mudanças no conjunto. A questão, então, é política. Evidente- Ao fazer d~ elação entre natureza e cultura seu principal
mente, está se falando dos homens corno um ente coletivo, o "gê- ~
objeto de anális~ igotski acaba recolocando no plano psicoló-
nero", como expressão do rumo que os próprios homens gico um debate que, no plano da Filosofia Política, envolveu
deram à sua história. Mas na medida em que cada ser humano diversos filósofos, particularmente nos séculos XVII-XVIII.3
existe e se constitui em e por esse coletivo, a história pessoal Vigotski pensava que, levando-se em conta o que se sabia na
e a história coletiva estão profundamente imbricadas, de for-
Isua época sobre a(evolução da espécie humaI;\a (filogêneseYe o
ma que aquela está condicionada pelo curso que toma esta. ~des volvimento do indivíduo (ontogênese») podia afirmar-se
'qtre estes dois processos são o resultado dJ duas linhas dife-
./ NATUREZA CULTURAL DO PSIQUISMO
~
rente, porém interligadas, de eV9luÇão:a natural e a cultural~
cada uma regida por leis próprias.~e, na filo Anese,a evolução
natural precede a cultural\que ela possibilita na ontogênese as
More and moreeternallaws of nature are turning into laws of
history.Esta frase de Marx e Engels, colocada como epígrafe em
~
duas linhas estão entrela~adas,.a ponto de nã poderem ser se-
um dos trabalhos mais importantes de Vigotski (1997), revela paradas, a não ser por abstraçã~} O/desenvolvimento histórico
J \
bem qual é a questão central das reflexÕesdo autor, não só nes-
se trabalho, mas nos outros em geral. Como acabamos de ver 3 Refiro-me ao debate sobre a passagem do estado de natureza para o de
anteriormente, a entrada da natureza na História é obra do ho- sociedade, para fundar a racionaiidade da sociedade, do Estado e do
direito, envolvendo, entre os autores mais salientes, J. Althusius (1557-
mem, que, para tanto, precisou transpor os limites impostos 1638), T. Hobbes (1588-1679),B. Spinoza (1632-1677),S. Pufendorf (1632-
1694), J. Locke (1632-1704),J.-J.Rousscau (1712-1778)e I. Kant (1724-1804).
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do homem constitui, portanto, como diz Vigotski, "uma u~- ser duplamente mediado, pela técnica e pelo simbólico. O que
quer dizer que, assim como a invenção de instrumentos e de
dade dialética de du-as ordens essencialmente diferentes)'
(idem, p. 22). Eu arriscaria afirmar que as dificuldades que per- sistemas simbólicos possibilitou aos homens transformar a na-
sistem nas análises dos filósofos sociais, com a introdução da turezaem culturae transformar-se eles mesmos de seres natu-
idéia de "contrato social" para explicar a passagem do estado rais em seres culturais(ou humanos, é o mesmo), da mesma
de natureza ao de cultura, desaparecem na análise dialética maneira, a transformação da criança em um ser humano (ou
em que Vigotski se situa, pois natureza e cultura constituem seja, cultural) pressupõe o acesso dela aos meios que possibili-
estados ou ordens diferentes, mas uma implica a outra. tam essa transformação. Instrumento e símbolo são os mediado-
Seria cansativo e redundante apresentar as inúmeras re- , res entre o homem e o mundo, natural e social, que conferem à
ferências em que Vigotski trata da questão da relação natureza atividade seu caráter produtivo. Com efeito, pela ação técnica
e cultura e critica o reducionismo naturalista das teorias sobre o homem altera a matéria e confere-lhe uma forma nova; pela
o desenvolvimento psicológico. Além disso, é fácil perceber ação simbólica essa forma nova se constitui em símbolo do ho-'
que o repetitivo uso que ele faz das expressões "funções ele- mem trabalhador, ou seja, naquilo que representa suas capaci-
mentares" (naturais ou biológicas) e "funções superiores" (cul- dades, físicas e mentais, e suas idéias. É pela ação técnica que
turais ou mentais) revela, ao mesmo tempo, um desejo de rigor Michelangelo confere ao bloco de mármore umaforma escultu-
científico na análise demonstrativa daquela relação e uma cer- ral, a qual torna-se o símbolo da personalidade de Moisés tal
ta dificuldade para lidar com uma questão tão alheia à tradição como o artista imaginou.
psicológica. Se o conceito de instrumento técnicoé suficientemente cla-
Antes de começar a ~nálise da ,história do desenvolvi- ro, embora envolva aspectos complexos, o de símbolo é bem
mento das funções mentais superiore~, no texto que leva esse mais complexo e requer ,alguma explicação. Vigotski dedicou,
título (idem, voI. 4), Vigotski lembra, ~m uma espécie de alerta em 1930, um longo trabalho à análise do instrumento e do sím-
ao leitor, que se a infância é um momento privilegiado para a bolo (Vigotski e Luria, 1994, pp. 99-173),cujo objetivo principal
análise dessas funções, pois é quando elas começam a consti- era "caracterizar os aspectos tipicamente humanos do compor-
tuir-se em um momento de intenso desenvolvimento bioló- tamento", explicando a sua formação ao longo da história hu-
gico, é apenas o começo de uma história de transformações que mana e da história pessoal de cada indivíduo. A questão
", duram a vida inteira. Reduzir a análise psicológica dessas fun- central era saber como a atividade, aspecto essencial do ser
ções à infância eqüivaleria a ficar na sua "pré-história". vivo, adquire no homem seu poder criador (produtivo).
j(" "As raízes genéticas das duas formas culturais básicas do Sua análise mostra que isso ocorre quando ela é mediada por
comportamento são constituídas na idade infantil: o uso de meios, técnicos e simbólicos, criados pelo próprio homem. Em
instrumentos e a fala humana" (idem, p. 6). Em outros termos, , relação aos meios técnicos, Vigotski pouco acrescenta ao já
isso significa duas coisas: a primeira, que o comportamento afirmado por Marx e Engels na teoria do trabalho social e aos
humano não é da ordem do biológico, pois suas bases são "for- estudos comparativos dos seus contemporâneos (W. Kõhler,
mas culturais", por isso suas raízes se constituem na infância e C. e K. Bühler) sobre I) uso de instrumentos pelo macaco e pela
não antes; a segunda, que o que define esse comportamento é 'i. criança. Sua análise centra-se nos efeitos que o aparecimento de
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um meio simbólico como a fala produz sobre a ação prática lação entre fala e penSamento (1997,voI. 1), chegando a um mo-
(que usa instrumentos) da criança. Após discutir diferentes
der de signQtom, uma estrutura semelhante à que encontramos
pontos de vista dos es~udiosos, Vigotski conclui:
no\igno de PeirCe)(1990):uma estrutura triádica do tipo:
o momento genético mais importante de todo o desenvolvi-
mento intelectual, do qual emergem as formas puramente hu- ~XTY Z
manas de inteligência prática e abstrata, ocorre quando estas
duas linhas de desenvolvimento, até então completamente in- Figura 2: diagrama da estrutura do signo
dependentes, se unificam. (1994,p. 108)4
~. onde ~x,''irepresenta o elementp material do Sig O ou aquilo
A fala, diz ele, além de reorganizar o comportamento, que faz~inal (som, gesto, o~jeto~lt!';representa o objeto sinali-
dando-lhe um formato humano, possibilita que a criança zado (coIsa, evento ou idéia) el"~){epresenta
~
alraz o ou princí-
oriente e controle suas ações sobre o meio. pio que permite rel .iQ~/X ~Y) Dos três c~ponentes do
Mesmo se o autor não avança mais nesta última questão, signo, este último (o "z'}~~amado por Peirce de interpretante)e
deixa entender que o simples uso de instrumentos técnicos não ~
(p~r Vigotski de signi icad;JJé o que apresenta maior dificulda-
seria suficiente para transformar a atividade do homem em ati- ~ de compreensão. No caso de Peirce, é o que permite ao su-
vidade produtiva ou trabalho. Sem linguagem não há como jeito interpretaro signo e, como tal, não é totalmente-evidente.
pensar a realidade, mesmo se ela pode ser naturalmente co- No caso de Vigotski, é o significadoconvencional que o signo
nhecida, nem como organizar e planejar as ações e, portanto, veicula e que os sujeitos podem interpretar de maneiras dife-
não há trabalho. Embora Vigotski enfatize nos seus textos a rentes (é o que entende por "sentido") em função da própria
função da fala, em razão do papel preponderante que ela ad- história pessoal.
quiriu na história humana, não reduz a ela o mundo simbóli- Nãf é o momento de entrar em maiores detalhes sobre a
co. Junto com a fala ele refere-se aos signos em termos gerais e questão\5emiótica; basta dizer quJ o que caracteriza o signo é
a alguns tipos deles em particular, como os gestos, ao discutir o ser um meioinve~tado pelos home't\s para representar-sea re .
caso dos deficientes auditivos. Se o autor introduz a idéia de -!idade, material ou imaterial, de maneira a poder compartilha;)
signo a partir da análise do modelo da "dupla sinalização" da entre::>iu qt:lesaôem a respeito dela. Mas, se o simbólicoé da or-
reflexologia pavloviana, fonte de ambigüidades conceituais dem da representação, pressüpÕe que existem realidades con-
nos seus escritos, ele avança na sua elaboração ao analisar a re- cretas que ele representa, o que descarta qualquer desvio
. idealista~ mundo simbólico é o mundo construído pelo ho-
* mem, uma espéciede réplica do mundo natural, ao mesmo
4 "Our ressearch leads us not only of the conviction of the falJacy of this tempo resultado e condição da atividade humana. É a esse
apprÕ'!\ch, but also to the p<>sitiveconclusionthat thegreatgeneticmoment mundo que chamamos de culturit totalidade das produções
of alI intel/ectlla/developlllent,
from whichgrew the pllre/yforms of practica/
1111d
gnoslicinlellect,is realizcdin lhe IIniJicatiollof tilestlUOpreviolls/ycomp/e- humanas portadoras de significaçãy
te/y independe1lt /ines of deve/oplllent" (ênfase do autor).
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'46 . PSICOLOGIA & EDUCAÇÃO: REVENDO CONTRIBUIÇÕES VIGOTSKI 47
,
Quando Vigotski fala de desenvolvimento cultural, refe- por Marx e a tese da gênese das funções superiores proposta por
re-se especificamenteao desenvolvimento pessoal(ontogêne- Vigotski? Como essas teses gerais podem explicar o desenvol-
se), mas tendo como referência o desenvolvimento geral da vimento humano dos indivíduos singulares?
espécie humana. Por isso, a questão principal dele é saber Se é relativamente fácil compreender essas teses no seu
como o desenvolvimento cultural da espécie acontece em cada sentido geral, não é tão fácil compreendê-Ias quando aplicadas
indivíduo. Ele não explidtouo conceito de cultura, limitando- 'à história particular dos indivíduos singulares. Em primeiro
se a uma definição sintética: "Cultura é, ao mesmo tempo, o lugar, o conceito de trabalho, tal como aparece na tese geral,
produto da vida social e da atividade do homem" (1997, v. 4, tem uma conotação específica, dada pelo contexto da análise do
p. 106). Dois pontos marcam essa definição: ser produto da processo de produção econômica em que Marx o utiliza, e que
"atividade do homem" e, como tal, na definição de cultura está lhe permite fazer a crítica do modo de produção capitalista.
;1
.,
embutida a teoria do trabalho social, e ser produto da "vida so- Fora desse contexto, entretanto, ele conserva toda sua força se
cial" e, como tal, a cultura constitui a dimensão humana da so- fi ~~.
. entendido como definidor da especificidade da atividade hu- ti
~.:
ciabilidade, o que diferencia esta da sociabilidade puramente mana, qualquer que ela seja. Tal é o sentido em que o utiliza !I ~~.~.
animal. Assim sendo, o desenvolvimento cultural é um proces- :j ;.
Vigotski. Isso não qUE~rdizer que sejam concepções diferentes, II
so cuja origem é necessariamente social, de forma alguma indi-
l
mas que o conceito de trabalho se situaria dentro do conceito
vidual, como o entende a psicologia tradicional. Isso permite a mais amplo de atividade humana que, para ser humana, deve
I
Vigotski enunciar o que ele denomina "lei genética geral do reunir as características atribuídas ao trabalho. Em segundo lu- I
i
desenvolvimento cultural" (idem), segundo a qual todas as
funções superioresou cult urais - em contraposição às funções
gar, a tese de Marx explica o desenvolvimento histórico do ho-
mem em geral, e do seu mundo, não o do homem singular no
I
elementares ou biológicas - antes de se constituírem no plano
.
~J~,:
interior dele, não obstante o fato de tratar-se de duas dimen- :1 ~~!.
pessoal já existem no plano social ou interpessoal. Isto levanta I ~::,
sões de um mesmo e único processo histórico. O que significa I
.1
vários problemas, que Vigotskiprocura explicar ao longo da ~.:~'J':
sua obra. O principal deles, penso, é explicar a natureza cultu-
que o caráter produtivo da atividade humana opera nos dois i
"li
~:::
pólos de que é a mediadora: no MUNDO,transformando-o em {!:.
ral das.funções e o modo como elas se constituem em cada indi- I
(Pela atividadeJ o homem)indivíduo cO\lcreto, transfor- e a fumaça",5 entre a fixidez de um ea fluidez da outra. Algo
ma-s~ desenvolvendo habilidaàes orgânicas,~em função da que nos faz pensar na criação ininterrupta do velho no novo,
adaptação ao tipo de atividade que realiza, / usculatura, do- do significado d~do na flutuação do sentido. Na função, fun-
relação de "posições" diferentes. Os textos de Vigotski nada sociais transferidas à esfera interior e tornadas funções da per-
indicam que nos permita determinar o sentido que atribui sonalidade e formas da sua estrutura" (1989,p. 59). Afirmação
ao ter.mo. Mas, ao retomar a questão da natureza social das repetida em texto de 1931, em que ele acrescenta: '~Não quere-
funções psicológicas (1997, v. 4) esboça da no "Concrete hu- mos dizer que este seja especificamente o sentido da tese de
man. ps.ychology" (1989), ele introduz um dado novo, que Marx, mas vemos nesta tese a expressão mais acabada de tudo
pode constituir o elemento-chave para determinar o sentido ao que nossa história do desenvolvimento cultural nos con-
que ele pode ter para o autor. Diz ele: duz" (1997, v. 4, p. 106). A assimilação das funções superiores
ou culturais às relações sociais aparece com bastante freqüên-
Mesmo quando nos voltamos para os processos mentais, cia nos últimos escritos de Vigotski, tornando-se uma idéia
sua na tureza permanece quase social. Na sua esfera pri- fundamental.
vada, os seres humanos retêm as fu11çõesda il1ternçiiosocial. Nas duas citações acima, Vigotski está se referindo, espe-
(p. 106; itálico meu) cificamente, à crítica que Marx faz da concepção de homem
que Feuerbach apresenta em A essênciado cristianismo;crítica
Dado o contexto em que Vigotski utiliza a expressão sintetizada nesta famosa tese, em que Marx afirma: "Feuerbach -
"funções da interação social", não parece ser um fato mera- resolve a essência religiosa na essência humana. Mas a essência
mente ocasional, embora não saibamos a razão que o levou a humana não é uma abstração inerente ao indivíduo singular.
utilizá-Ia (é possível até que não exista nenhuma específica). N a sua realidade é o conjunto das relações sociais".6 Marx criti-
Entretanto, tal expressão tem, em minha opinião, um grande ca a visão abstrata que Feuerbach tem do homem, considerado
valor heurístico, pois ajuda a entender melhor o pensamento como "homem genérico". Contra essa visão, ele sustenta que o
do autor. Com efeito, se entendermos a "interação social" homem é uma realidade concreta cuja essência é constituída
como a maneira concreta pela qual duas pessoas se relacionam, pelas relações sociais. Em outras palavras, o que define o ho-
poderíamos pensar que as funções da interação social podem mem como ser humano (sua essência) não é algo previamente -
ser tanto os princípiosque regem sua relação (p. ex. os princípios dado, como é a natureza biológica que herda dos seus antepas-
que regem as relações concretas entre o "mestre" e o "servo"), sados, mas algo que se constitui na história social dos homens.
quanto afunção que a posição de cada uma delas na relação de- Como comenta Milhau (1982),na sua introdução à versão frán-
sempenha nas ações da outra (p. ex. a função que a posição do cesa do Ideologiaalemã,as "teses sobre Feuerbach" colocam na
"mestre" desempenha nas ações do "servo" e vice-versa). As- origem da história humana seres vivos que, para subsistirem,
sim, asfunções da internçãosocialnos refeririam, ao mesmo tem- produzem suas condições de existência e, dessa forma, sua
po, ao "princípio da relação" - o que faz com que o sujeito (SI) própria natureza. Se pelo trabalho os homens criam suas con-
entre em relação com o sujeito (52)- e às conseqÜências da po- dições de existência, a divisão social do trabalho gera relações
sição de cada um nas açõesdo outro. .
sociais que constituem sua própria natureza ou, em outros ter- mar o caráter de classe, a natureza de classe e as diferenças de
mos, que os constituem como seres humanos. Nessa perspecti- classe que são responsáveis pela formação dos tipos humanos.
va, o que, em última instância, impulsiona o desenvolvimento da As várias contradições internas que foram encontradas em dife-
história humana, a geral e a particular de cada homem, são as re- rentes sistemas sociais encontram sua expressão, ao mesmo
lações sociais geradas pelo processo de produção. tempo, no tipo de personalidade e na estrutura da psicologia
humana neste periodo histórico. (1994, p. 176)
Ao assumir a tese marxista de que a essência do homem
são as relações sociais, Vigotski muda os rumos do pensamen-
to psicológico, indicando qual é a verdadeira natureza e a ori- As relações sociais constituem uma estrutura social com-
gem das funções psicológicas. A idéia de Marx, de que "não é a plexa, feita de posições sociais e de expectativas de ação a elas
consciência que determina a vida, mas a vida que determina a associadas. Essas relações concretizam-se em práticas sociais.
consciência" (1976, p. 78), Vigotski a aplica a todas as outras Isso quer dizer que, nos termos em que fala Vigotski, as "fun-
funções psicológicas (pensamento, linguagem, percepção, me- ções psicológicas" traduzem a maneira como os indivíduos se
mória, etc.), entendendo por vida as novas condições de exis- situam uns em relação aos outros no interior dessas práticas
tência criadas pelo próprio homem. Isso quer dizer duas sociais que, por sua V(!Z,concretizam a estrutura de relações da
coisas: primeiro, que as condições naturais de existência não sociedade. O que nos permite concluir que as funções psicoló-
podem dar origem às funções superioresou culturais, embora gicas se constituem no sujeito na medida em que este participa
sejam a condição necessária para que elas aconteçam; segundo, das práticas sociais do seu grupo cultural.
que estas não preexistem à história do desenvolvimento do ho- Sem pretender dar uma definição do que sejam as práti-
mem, mas surgem nessa história ao mesmo tempo que a cons-- cas sociais, pode-se dizer que elas traduzem, de maneira con-
tituem. . ereta, as relações sociais em que as pessoas estão envolvidas.
Seria ingenuidade pensar que Vigotski, ao identificar as Elas são formas, socialmente instituídas, de pensar, de falar e
funções superiores às relações sociais, estaria entendendo estas de agir das pessoas em função das posições que ocupam na
como expressão de uma sociabilidade natural e, portanto, trama de relações sociais de uma determinada formação social.
. Dois aspectos parecem caracterizar as práticas sociais em rela-
ideologicamente neutra. Ao contrário, ele..~stáreferindo-se às
ção a outras ações: terem uma certa configuração (o que as tor-
(relações sociais historicamente produzida~~ como pode ver-se
'em um texto publicado em 1930, em que ele afirma: na identificáveis), perpetuarem-se em um certo tempo e em
um certo espaço e veicularem uma significaçãocompartilhada
pelos integrantes de um grupo cultural espeáfico. Por exem-
Da mesma maneira que a vida da sociedade não representa um
todo único e uniforme e a sociedade é subdividida em diferen-
plo, as práticas religiosas, familiares, políticas, jurídicas, edu-
cacionais, etc., próprias das pessoas que integram o mundo,
tes classes, assim, durante um dado período histórico, a compo-
sição das personalidades humanas não pode ser vista como
respectivamente, das confissões religiosas, da famma, dos par-
tidos políticos, da magistratura ou da educação. Mundos esses
representando algo homogêneo e uniforme, e a psicologia deve
levar em conta o fato fundamental que a tese geral que foi for-
aos quais, via de regra, são associadas determinadas "práticas
mulada recentemente, só pode ter uma conclusão direta, confir- discursivas".que os d€!finemcomo "formações discursivas" es-
pecíficas (Foucault, ]986) e determinadas formas sociais de
I
" ) II
i
. 54 PSICOLOGIA & EDUCAÇÃO: REVENDO CONTRIBUIÇÕES VIGOTSKI 55
agir. As práticas sociais Iransformam o agir, o pensar e o falar um lado, o desenvolvimento cultural passa, necessariamente,
em formas ritualizadas significativas. Dessa forma, o cotidiano através do "outro" e que, por isso mesmo, seu fator dinâmico
constitui um grande complexo de ritualizações. não está na natu~~a biológica do,indivídu9, masE.:!E-~lgoex-
I?e tudo o que acaba de ser dito, conclui-se que asfunções 'ternoa erà:'~;-~~_?ut~,l~~o, ,g~e_<:>.~ec:l!.~d<!!.~~~~~.9
ingjyjg};!O
psicológicassuperiores(ou culturais) são uma transposição no 'e o "'Outro"é a si:<nijIcação
que este atribui às ações naturais
plano pessoal das funções inerentes às relaçõessociaisnas quais .daquele. -'-----
cada ser humano está envolvido. Relações sociais determina- E isso que Vigotski quer dizer com o exemplo do "ato de
das pelo modo de produção de uma dada formação social em ,apontar",
---=--- considerado or ele o protótipo
'-'-". ~~!!lofl~ '..como
.- ---- ocor-
um dado momento histórico. A questão agora é explicar como re o prõCeSso e mternalizaçiiodas funções superiores (1997,v. 4,
. é possível essa transposição, qual o processo pelo qual as fun- pp. 104-105). O que inicialIDente é um ato natural (movimento
ções superiores ou culturais se constituem. da mão em direção a um objeto), torna-se um ato significativo
para o "outro" ao ser interpretado por este como "sinal" de
CONSTITUIÇÃO DAS FUNÇÕES algo que a criançaquer. A significação do movimento da criança
traduz-se no ato do "outro" de atender à sua demanda (obter o
Segundo Vigotski, o desenvolvimento cultural passa por objeto apontado). Desta forma, a criança descobre a significação
três estágios: "desenvolvimento em si, para os outros, e para si +< do seu ato, em razão do qual este torna-se para ela o signo com
mesmo" (1989,p. 56).7Trata-se de uma referência à análise dia- o qual se comunicará depois com o outro cada vez que desejar
lética de Hegel (d. 1997, voL4, p. 104), em que, como já vimos o objeto. Como diz Vigotski, "a função do próprio movimento
antes, o "em si" é o "dado", aquilo cuja existência não depende muda: de um movimento dirigido a um objeto, torna-se um
da ação do homem, e o "para si" é o "em si" como objeto da movimento dirigido a outra pessoa". O movimento só se torna
consciência do homem, uma réplica do "dado" no plano sim- gesto "para si" porque antes foi gesto "para o outro". A signifi-
bólico. Mas Vigotski introduz aí um elemento novo, o "para os cação atribuída ao movimento, fato natural, torna-o gesto ou
outros", equivalente do "para si", mas como consciência do - signo, fato simbólicoou cultural. Portanto, o que é internalizado
outro, exterior à do eu e mediadora entre este e o "dado" ou não é o gesto, como materialidade de movimento, mas a sua
:'em si". ~.Ina.m05-llÓs mesmos através dos outros.j significação.É a significação qu~ tem o poder de converter o
Em sua fórmula puramente lógica, a essência do processo fato natural em fato cultural e, dessa maneira, permite a passa-
de desenvolvimento cultural consiste precisamente nisso" gem do plano social para o pessoal.
(Vigotski, 1989,p. 56).8Com essas formulações, um tanto enig- A própria natureza da significação faz dela algo que, ao
máticas para o leitor, Vigotski parece querer indicar que, de mesmo tempo que pode ser compartilhado por todos - é de
todos e não é de ninguém em particular -, conserva a singu-
7 "We know the generallaw: first a means of acting on others, then on oneself. In laridade de "cada um dos que a compartilham; ao mesmo
this sense, all cultural develpment has tree stages: development in itself, for olhers, tempo que não está sujeita às condições da espacialidade e
and for oneself' (Vigotski, 1989, p. 56).
da temporalidade, concretiza-se em seres reais e no tempo
& "Webecome ollrselvesIhrollgh olJwrs. [/I its pureJy JogiC/1[
foml, the essence af tlle real desses seres.
processof cultural developmentconsistspreciselyill tllis" (Vigotski,1989,p. 56):
"
J (
"56 PSICOLOGIA & EDUCAÇÃO: REVENDO CONTRIBUIÇÕES VIGOTSKI 57
A capacidade de Significar - no duplo sentido de fazer si- tomar parte ativa nessa construção como membro do Gusa
nal ao outro e de interpretar o sinal do outro - constitui a es- (Conselho Científico do Estado - Centro Metodológico do Co-
sência do ser humano. O o si ificar é o poder de cri~ missariado de Educação do Povo). A solução dos problemas do
as coisas, uma vez que estas só têm existência para o hom~m ensino e do desenvolvimento desempenhou, segundo Elkonin,
quallilõ. éste aS-Í1oin-ei~~~1ISejã~-a
fr}D~~~I \}~'9-sIgruJicação. um papel importante na formação da sua concepção da psico-
As coisase o próprio homem são, no sentido de existir, na me- logia e foi a forma mais direta de atuar na"reforma do sistema
.,. dida que significam algo para o homem. Talvez seja essa a real educativo, da escola primária e da escola secundária, que
função das funções superiores: significar. Isso autoriza dizer ocorreu na URSS a partir do decreto do Comitê Central do
que o homem é um sersemiótico,não só porque ele pode confe- Partido Bolchevique de 1931. Em resumo, para Vigotski, desen-
rir significação às coisas, mas também porque ele é o que ele volvimentohumano e educaçãoconstituem dois aspectos de uma
significa para os outros. Significar para os outros pode ser o mesma coisa. Se o primeiro diz o que é o ser humano e como
equivalente ao reconhecimentode que fala Hegel, condição da ele se constitui, a segunda é a concretização dessa constituição.
consciência de si. O que nos permite dizer que, nessa perspectiva, a educação
não é um mero "valo)' agregado" à pessoa em formação. Ela é
constitutiva da pessoa. É o processo pelo qual, através da me-
IMPLICAÇÕESEDUCACIONAIS DAS IDÉIAS DE VIGOTS~I diação social, o indivíduo internaliza a cultura e se constitui
em ser humano.
)
Como lembra Elkonin (1998,pp. 297-317),Vigotski foi an- Muito se poderia dizer a respeito das múltiplas implica-
tes de tudo um especialis ta na área da psicologia geral e da me- ções que as idéias de Vigotski têm para a educação, sob a con-
. todologia. Seu interesse principal era construir um sistema dição, entretanto, de não buscar nelas receitas ou propostas
científico de psicologia, na perspectiva do materialismo histó- i .pedagógicas"F)reviamente elaboradas, uma vez que a principal
rico e dialético. Por isso, ()centro da sua pesquisa, teórica e me- i
implicação da perspectiva histórico-cultural do autor é a idéia
todológica, é a históriado desenvolvimento e sua conexão com i
a história social dos homens. Entretanto, duas fortes razões o I . de praxis como articulação dialética entre razão (teoria) e expe-
riência (prática). Uma não existe sem a outra porque elas são
levaram a estudar as questões relativas à psicologia infantil: I
mutuamente constitutivas. Nesse contexto e dentro das limita-
uma, o fato de ser a infância o período em que essas funções II
pecífico do homem, onde ele construiu sua existência. Assim crianças falam, pois é pela circulação da palavra (o diálogo de
sendo, a educação formal é algo necessário, não apenas desejá- múltiplas vozes, de que fala Bakthin) que a significação se
vel, para o desenvolvimentocultural da criança, o que a transfor- constitui.
ma em um direito fundamental. .Se as funções superiores constituem um todo interliga-
. Se, como diz Vigotsk.i,as funções superiores(pensar, falar, do, como diz Vigotski, o saberestá ligado aofazer (agir sobre o
agir, ter consciência das coisas, etc.), antes de se tornarem fun- . , mundo) e à consciêncitl,tanto do saber e do que se sabe, quanto
ções da pessoa foram relações entre pessoas, a constituição do do fazer e do que se faz. Nada mais estranho a essa concepção
saber humano em saber da criança, objetivo da educação for- do homem, por conseguinte, do que um saberque se esgota em
mal,é um evento de natureza eminentemente soCial:primeiro si mesmo, um "saber por saber". O saber é PALAVRA e AÇÃO.
porque o saber científico é uma produção social, resultado da . Finalmente, a educação, geral e formal, como compo-
história das relações de produção dos homens; segundo por- nente do desenvolvimento cultural, é um processo de transfor-
que a sua constitu,ição na criança passa, necessariamente, pela mação de um ser concreto que ocorre dentro das condições
mediação dos outros, aqueles que já possuem a significaçãodas concretasdeexistênciapróprias do seu meio social-cultural.Nes-
coisas (definidor a do saber).Segue-se daí que o professor é ape- se sentido, a história do indivíduo faz parte da história desse
nas uma referência e um guia para a criança na aventura do sa- .. meio. A menos que ocorram mudanças 110meio ou mudança de
ber, colocando-se em questão todo sistema educativo baseado meio, total ou parcial, a história do indivíduo está fortemente
no conceito estreito e unidirecional de uma "relação pedagógi- condicionada pela história do seu meio. Urna primeira conse-
ca" centrada, exclusivamente, na dupla "professor = aluno". qüência disso é que as crianças são todas diferentes, cada uma
. Se saber é descobrir a significaçãoque as coisas têm para delas sendourna história, não simplesmente tendourna história
os homens, o que não impede que existam diferenças semânti- . !i . ou um passado. Histór~a essa que só por esquecimento ou por
cas e conceituais entre eles, a constituição do saber na criança i razões ideológicas o educador pode deixar de levar em conta.
não ocorre pelo simples registro de informações a respeito do Urna das grandes idéias da perspectiva histórico-cultural em
mundo, mas pela descobertadasignificaçãodessas informações. l. que se situa Vigotski é que as várias funções são funções de
E isso é obra dela, produção dela, na qual pode ser ajudada, urna mesma e única pessoa, constituindo urna "unidade múlti-
mas nunca substituída. .
I
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aparentemente sem saída quando se trata de crianças prove- Vigotski, L. S. (1989). Concrete human psychology. Soviet
I.
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nientes de meios populares marcados pela pobreza e pela mi- Psychology,XXVII(2), pp. 53-77.
séria. Se ignorar a história do meio pode levar a ver a criança - (1994). "The socialist alteration of man". In: Van Der
como uma "abstração genérica", ou a implantar nela a ilusão
Veer, R. e Valsiner, J. The Vygotsky reader. Oxford e ",.
de um "futuro impossível"; levar em conta a história do meio
pode conduzir a implaIltar nela a consciência do próprio fra-
Cambridge, Blackwell.
- (1996-1998).The collectedworks. 5 v. New York, Plenun
~,
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J.-
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da sua realidade e da possibilidade real de superação das limi- fl1nctions". In: The collected works. New York, PJenum ,:.;;:
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Press.
tações que ela lhe impõe. Como? Este é o desafio. L
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Vigotski, L. S e Ll1ria, A. (1994). "Tool and symbol in child ,-o