Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
ARTIGO
Ivete Simionatto
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
1 Classes subalternas, Estado e sociedade unificada quando ambas puderem tornar-se Estado.
civil Para Gramsci (2002, p. 135), “os grupos subalternos
sofrem sempre a iniciativa dos grupos dominantes,
Na obra gramsciana, as primeiras noções sobre o mesmo quando se rebelam e insurgem: só a vitória
termo “subalterno”aparecem nos escritos pré- ‘permanente’ rompe, e não imediatamente, a subor-
carcerários, empregadas para designar a submissão dinação.” Verifica-se, em seu processo histórico, que
de uma pessoa a outras, mais especificamente no “na realidade, mesmo quando parecem vitoriosos, os
contexto da hierarquia militar. É, no entanto, nos grupos subalternos estão apenas em estado de defe-
Cadernos do Cárcere que Gramsci amplia larga- sa, sob alerta.”
mente o significado desse conceito, demarcando seus A vida estatal é concebida por Gramsci (2000a,
nexos dialéticos com o Estado, a sociedade civil, a p. 42) de modo dinâmico e processual, “como contí-
hegemonia, a ideologia, a cultura e a filosofia da nua formação e superação de equilíbrios instáveis [...]
práxis. Sugere, no estudo das classes subalternas, a entre os interesses do grupo fundamental e os inte-
observação de uma série de mediações, tais como resses dos grupos subordinados.” Isso significa que
suas relações com o “desenvolvimento das transfor- os interesses do grupo dominante e os dos grupos
mações econômicas”; sua “adesão ativa ou passiva dominados “implicam-se reciprocamente [...] horizon-
às formações políticas dominantes”; as lutas trava- tal e verticalmente”, de acordo com a organização
das a fim de “influir sobre os programas dessas for- econômica e política de cada Estado-nação. O Esta-
mações para impor reivindicações próprias”; a for- do consiste, ainda, em “todo o complexo de ativida-
mação de “novos partidos dos grupos dominantes, des práticas e teóricas com os quais a classe dirigen-
para manter o consenso e o controle dos grupos so- te não só justifica e mantém o seu domínio, mas con-
ciais subalternos”; a caracterização das reivindica- segue obter o consenso ativo dos governados”
ções dos grupos subalternos e “as formas que afir- (GRAMSCI, 2000a, p. 331). Para Gramsci, o Estado
mam a autonomia” (GRAMSCI, 2002, p.140). Tais in- “anula muitas autonomias das classes subalternas”,
dicações, não têm por proposição um programa de pois a “ditadura moderna” ou contemporânea, ao
estudos historiográfico, mas remetem à complexa mesmo tempo em que suprime algumas “formas de
tessitura do pensamento gramsciano, em que as re- autonomia de classe, empenha-se em incorporá-las
flexões sobre a subalternidade aparecem diale- na atividade estatal: isto é, a centralidade de toda a
ticamente interligadas com o Estado, a sociedade ci- vida nacional nas mãos das classes dominantes tor-
vil e a hegemonia. na-se frenética e absorvente” (GRAMSCI, 1977, p.
A categoria “subalterno” e o conceito de “subal- 303), e, nesse processo, torna indistintas as diferen-
ternidade” têm sido utilizados, contemporaneamente, ças de classe, fortalecendo a subalternidade. Essa
na análise de fenômenos sociopolíticos e culturais, maneira de agir do Estado reveste-se de um grande
normalmente para descrever as condições de vida poder desmobilizador, na medida em que bloqueia as
de grupos e camadas de classe em situações de ex- iniciativas da sociedade civil na articulação de inte-
ploração ou destituídos dos meios suficientes para resses e propostas voltados à luta pela superação entre
uma vida digna. No pensamento gramsciano, contu- “governantes e governados”, dirigentes e dirigidos.
do, tratar das classes subalternas exige, em síntese, A incorporação da sociedade civil à esfera esta-
mais do que isso. Trata-se de recuperar os proces- tal ocorre através de diferentes mecanismos, especi-
sos de dominação presentes na sociedade, desven- almente na formação da opinião pública enquanto
dando “as operações político-culturais da hegemonia estratégia de fortalecimento da hegemonia política
que escondem, suprimem, cancelam ou marginalizam por parte do Estado em assuntos de seu interesse. O
a história dos subalternos” (BUTTIGIEG, 1999, p. 30). Estado, na visão gramsciana (2000a, p. 265), “quan-
Um dos espaços de expressão da dominação do quer iniciar uma ação pouco popular cria, preven-
constitui-se, sem dúvida, no próprio Estado. Lugar tivamente, a opinião pública adequada, ou seja, orga-
de “unidade histórica das classes dirigentes”, o Esta- niza e centraliza certos elementos da sociedade ci-
do “é, essencialmente, a história dos Estados e dos vil.” Nela “ocorre a luta pelo monopólio dos órgãos
grupos de Estados”, criados a partir do Estado bur- da opinião pública: jornais, partidos, parlamento, de
guês, de novas concepções de Direito, Política, Eco- modo que só uma força modele a opinião e, portanto,
nomia, Educação e, consequentemente, de Ética, es- a vontade pública nacional, desagregando os que dis-
tabelecendo uma unidade não apenas no plano jurídi- cordam numa nuvem de poeira individual e
co-formal, mas ideologicamente projetada para toda inorgânica” (GRAMSCI, 2000a, p. 265). O Estado,
a sociedade. Esta unidade configura-se, para Gramsci apresenta-se, assim, como “um instrumento de ace-
(2002, p. 139), como “o resultado das relações orgâ- leração e taylorização”, e “opera segundo um plano,
nicas entre Estado ou sociedade política e ‘socieda- pressiona, incita, solicita e pune” (GRAMSCI, 2000a,
de civil’.” A história das classes subalternas está p. 28). Ou, ainda, utilizando a linguagem gramsciana,
“entrelaçada à da sociedade civil”, e só poderá ser pode-se dizer que o Estado “educa o consenso”, atra-
vés dos “aparelhos privados de hegemonia”, especi- 2 Do senso comum ao bom senso – a filosofia
almente através dos meios televisivos e dos grandes da práxis como caminho de superação
monopólios privados da mídia, mecanismos
fortalecedores da fragmentação social das classes Se, por um lado, o senso comum representa um
subalternas, criando um novo “senso comum”, “do “conglomerado” de concepções fragmentárias e
qual são expelidos a política, a participação, a vida desagregadas, produto de concepções filosóficas pre-
em relação aos outros, o sentido de comunidade” téritas, de “condições de vida passada [...] conser-
(LIGUORI, 2003, p. 186). vadoras e irracionais”, apresenta-se, por outro, como
Ao assimilar em seu interior as diferentes cama- modo de pensar não “enrijecido” e “imóvel”, aberto
das de classe, o Estado burguês amplia seu campo a transformações e enriquecimentos contínuos. O sen-
de ação, equalizando as classes juridicamente, no so comum pode ser entendido, assim, como uma filo-
sentido de evitar que a ordem seja colocada em peri- sofia, mesmo incipiente e fragmentária, pois opina
go. No âmbito da sociedade civil, a classe dominan- sobre o mundo, formula juizos de valor, os quais, to-
te, através do uso do poder por meios não violentos, mados em conjunto, apresentam uma certa organi-
contribui para reforçar o conformismo, apostando na zação intelectual e moral da experiência individual e
desestruturação das lutas das classes subalternas, coletiva. Se, para Gramsci (1999, p. 325), “todos são
reduzindo-as a interesses meramente econômico- filósofos”, isto indica que, na ação prática dos ho-
corporativos. Nenhum grupo social possui condições mens, “está contida implicitamente uma concepção
de superar seus patamares de subalternidade até que de mundo, uma filosofia.”
não seja capaz de “sair da fase econômico-corporativa Em Gramsci, o senso comum não permeia somen-
para elevar-se à fase da hegemonia político-intelec- te a visão de mundo das camadas de classe popula-
tual na sociedade civil e tornar-se dominante na soci- res, mas, como um “ambiente cultural”, como “cultu-
edade política” (GRAMSCI, 1977, p. 460). Além dis- ra política”, encontra-se presente nos demais grupos
so, a história episódica e fragmentada das classes e camadas de classe. Entendido como linguagem ou
subalternas, decorrente de uma concepção de mun- como ideologia, “pode ser identificado em diferentes
do permeada de senso comum e de folclore, impede- níveis socioculturais, perdendo o significado de sim-
as de chegar a elaborações críticas sobre as formas ples “mentalidade popular”. Estamos sempre imersos
de cooptação e as situações de exploração a que são em alguma forma de senso comum, que contribuimos
submetidas cotidianamente. A própria Igreja Católi- constantemente para modificar” (FROSINI, 2003, p.
ca, enquanto um dos aparelhos privados de hege- 173). O senso comum das classes dominantes, con-
monia, contribui fortemente para tanto, especialmen- tudo, atua como força ideológica, desmobilizadora das
te na realidade italiana, com exemplar incidência no iniciativas críticas advindas das camadas subal-
fortalecimento da subalternidade de amplas cama- ternizadas.
das de classe. Para Gramsci (1999, p. 115), as religi-
ões fornecem os principais elementos do senso co- Todo estrato social tem seu ‘senso comum’ e seu
mum, constituindo-se em uma potência ideológica ‘bom senso’, que são, no fundo, a concepção da
sobre vastos estratos sociais, ao manifestar-se “das vida e do homem mais difundida. Toda corrente
formas mais toscas às mais intelectualizadas.” En- filosófica deixa uma sedimentação de ‘senso co-
tretanto, se este era um fenômeno visível na Itália do mum’; é este o documento de sua efetividade his-
início do século 20, é hoje observável em escala glo- tórica. O senso comum não é algo rígido e imóvel,
bal, extrapolando o catolicismo, através dos mais va- mas se transforma continuamente, enriquecendo-
riados cultos e religiões e, dada sua imperatividade, se com noções científicas e opiniões filosóficas
produz normas de conduta e modos de agir em dife- que penetram no costume. O ‘senso comum’ é o
rentes camadas de classe. folclore da filosofia e ocupa sempre um lugar in-
A superação da condição de subalternidade re- termediário entre o folclore propriamente dito (isto
quer, para Gramsci, a construção de novos modos é, tal como é entendido comumente) e a filosofia,
de pensar, a elaboração de uma concepção de mun- a ciência, a economia dos cientistas. O senso co-
do crítica e coerente, necessária para suplantar o mum cria o futuro folclore, isto é, uma fase relati-
senso comum e tornar as classes subalternas capa- vamente enrijecida dos conhecimentos populares
zes de produzir uma contra-hegemonia. Nesse pro- de uma certa época e lugar (GRAMSCI, 2000b, p.
cesso, em suma, aprofundar e aperfeiçoar o conhe- 209, grifos do autor).
cimento da realidade impõe-se como condição es-
sencial na luta por sua própria transformação, efe- Senso comum e filosofia são aspectos constitutivos
tivando-se a “crítica real da racionalidade e de um mesmo fenômeno, e representam a ligação
historicidade dos modos de pensar” (GRAMSCI, 1999, ideológica com o mundo. Enquanto expressão ideo-
p. 111), o que poderá ocorrer através da filosofia da lógica, o senso comum remete a um sistema de cren-
práxis, ou seja, do marxismo. ças e valores que, tomados separadamente, não pas-
sam de uma visão fragmentada do real, sem qual- homem ativo de massa atua praticamente, mas não
quer coerência. No entanto, são forças constitutivas tem uma clara consciência teórica desta ação.” Mo-
das relações de poder, e sua crítica representa um biliza, contudo, “um conhecimento do mundo na me-
momento fundamental para agregar a “vontade co- dida em que o transforma”, mesmo que “sua consci-
letiva”, superar a velha ordem e construir uma nova. ência teórica esteja historicamente em contradição
Para Gramsci, embora a história das classes su- com o seu agir”, consequência do que “herdou do
balternas normalmente se manifeste de forma passado e acolheu sem crítica” (GRAMSCI, 1999, p.
“desagregada e episódica”, atravessada pelo senso 103). Ou seja, “afirma-se uma teoria que não tem
comum, este é ponto de partida para torná-la coe- uma correspondência na prática.” Quando “os estí-
rente e unificada. Seguindo a reflexão marxiana so- mulos para a ação são muito contrastantes”, estes
bre a “solidez das crenças populares”, Gramsci (1999, levam à “imobilidade”, à “irriquietude, isto é, descon-
p. 118-19) defende a necessidade de novas crenças, tentamento, insatisfação” (GRAMSCI, 2001, p. 125).
isto é, de “um novo senso comum e, portanto, de uma Gramsci (1999, p. 93-4, grifos do autor) indaga:
nova cultura e de uma nova filosofia, que se enraizem
na consciência popular com a mesma solidez e [...] é preferível ‘pensar’ sem disto ter consciência
imperatividade das crenças tradicionais”. Expressas crítica, de uma maneira desagregada e ocasional –
através do senso comum, tais crenças podem ser trans- isto é, ‘participar’ de uma concepção do mundo
formadas em “bom senso”, na medida em que as clas- ‘imposta’ mecanicamente pelo ambiente exterior, ou
ses subalternas afirmem-se enquanto coletividades e seja, por um dos muitos grupos sociais envolvidos
sejam capazes de reelaborar sua visão de mundo a desde sua entrada no mundo consciente –, ou é
partir de uma cultura forjada na “disciplina interior”, e preferível elaborar a própria concepção de mundo
não imposta de forma externa e mecânica. de uma maneira consciente e crítica, ser o guia de si
Compreender o senso comum em sua relação com mesmo e não aceitar do exterior, passiva e servil-
a ideologia implica, ainda em duas possibilidades ana- mente, a marca da própria personalidade?
líticas: 1) a existência de diversas expressões do senso
comum manifesta-se de maneira espontânea, direta, Alterar essa realidade e buscar a completa uni-
controlada ou induzida, em permanente transforma- dade significa, para Gramsci (1999, p. 103-04), tra-
ção e redefinição; 2) se o senso comum apresenta- var uma ampla batalha, que exige, em primeiro lu-
se como elemento unificador de um grupo social, gar, “a compreensão crítica de si mesmo”, a ser
consequentemente são diversas as formas como obtida “através de uma luta de ‘hegemonias’ políti-
ocorre essa unificação, podendo oscilar entre dois cas, de direções contrastantes, primeiro no campo
polos opostos: a completa desagregação ou a com- da ética, depois no da política, atingindo, finalmente,
pleta unidade. O primeiro polo aproxima-se histori- uma elaboração superior da própria concepção do
camente das classes subalternas, caracterizadas por real”, mantendo-se a “unidade entre teoria e práti-
um senso comum e uma linguagem formados de modo ca” não como um dado mecânico, mas como um
desordenado, de forma espontânea, privados de uma “devir histórico”. Trata-se de desconstruir o discur-
periódica atividade de revisão capaz de valorizar os so racional burguês, que se agarra à imediaticidade
elementos atuais daqueles arcaicos, provenientes de e à pragmaticidade dos fenômenos sociais, e recri-
épocas passadas (FROSINI, 2003). Aqui, o senso co- ar as práticas sociais no sentido de inová-las, torná-
mum vincula-se ao conceito de conformismo, repre- las “concreto pensado” e vinculá-las à uma nova
sentando a recepção passiva das ideias e modos de concepção de mundo.
pensar do grupo dominante. A transformação do senso comum em “bom sen-
Isto não significa que as classes subalternas se- so” ocorre por meio da filosofia da práxis, que per-
jam passivas e que suas práticas devam ser nega- mite a “superação do modo de pensar precedente”,
das. Gramsci reflete sobre o contraste entre o pen- tornando “crítica uma atividade já existente” no seio
sar e o operar, próprio das classes subalternas, ou de “indivíduos singulares”. A filosofia da práxis não
seja, a existência simultânea de duas concepções de objetiva “manter os ‘simples’ na sua filosofia primiti-
mundo, expressão de contradições histórico-sociais va do senso comum, mas pretende, ao contrário, con-
mais profundas, provenientes das mais variadas he- duzi-los a uma concepção de vida superior”, buscan-
ranças do passado. A reflexão gramsciana sugere do “forjar um bloco intelectual-moral que torne politi-
que uma classe social, mesmo detentora de uma con- camente possível um progresso intelectual de massa
cepção de mundo embrionária e desarticulada, toma e não apenas de pequenos grupos intelectuais”
emprestada de outro grupo social, por razões de sub- (GRAMSCI, 1999, p. 100-03).
missão e subordinação intelectual, uma concepção A teoria possibilita, assim, “acelerar o processo his-
que lhe é estranha, seguindo-a não tanto porque nela tórico em ato, tornando a prática mais homogênea,
acredita, mas por sua conduta não ser independente coerente, eficiente em todos os seus elementos, isto é,
e autônoma (SIMIONATTO, 2004). Por esta razão, “o elevando-a à máxima potência.” A relação teoria-prá-
interna do que as massas pensam, embrioná- A irrefutável relação entre cultura, política e eco-
ria e caoticamente, sobre o mundo e a vida nomia, ou, nas palavras de Coutinho (2003, p. 75), a
(GRAMSCI, 1999, p. 114-5). “articulação entre subjetividade e objetividade, entre
liberdade e causalidade, entre particularidade e uni-
As preocupações de Gramsci com a cultura rela- versalidade”, encontra-se no cerne das preocupações
cionam-se, assim, à compreensão de que a luta pela do autor italiano, para quem a economia não se reduz
emancipação das classes subalternas não se restrin- à produção de objetos e mercadorias, mas remete, antes
ge à esfera econômica, uma vez que, dadas as con- de tudo, ao modo como os homens estabelecem suas
dições de subalternidade a que estas historicamente relações sociais, transformando a si e a própria socie-
foram submetidas, torna-se necessário o encaminha- dade. Assim, se a estrutura econômica abarca “o con-
mento de uma “reforma intelectual e moral”, inde- junto das relações sociais”, ela forma, ao lado da su-
pendente do domínio ideológico da classe burguesa. perestrutura, uma totalidade, ou seja, o “bloco históri-
Gramsci (1999, p. 295) insiste na “valorização do fato co”. Novamente resgatando Marx, Gramsci observa
cultural, da atividade cultural, de uma frente cultural que, não sendo a formação da consciência crítica “li-
como necessária, ao lado das frentes meramente mitada ao conflito entre as forças materiais de produ-
econômicas e políticas”, pois, ção e as relações de produção”, uma vez que “os ho-
mens adquirem consciência de sua posição social e de
Criar uma nova cultura não significa apenas fazer seus objetivos no terreno das superestruturas, isso sig-
individualmente descobertas ‘originais’; significa nifica que entre estrutura e superestrutura existe um
também, e sobretudo, difundir criticamente verda- nexo necessário e vital” (GRAMSCI, 1999, p. 389), re-
des já descobertas, ‘socializá-las’ por assim dizer; metendo-nos ao conceito de “‘bloco histórico’, no qual,
e, portanto, transformá-las em base de ações vitais, precisamente, as forças materiais são o conteúdo e as
um elemento de coordenação e de ordem intelectu- ideologias são a forma” (GRAMSCI, 1999, p. 238).
al e moral. O fato de que uma multidão de homens Pode-se afirmar, assim, que todas as práticas sociais
seja conduzida a pensar coerentemente e de manei- são mediatizadas “em diversos graus, por todo o teci-
ra unitária a realidade presente é um fato ‘filosófi- do social, pelo conjunto das superestruturas”
co’ bem mais importante e ‘original’ do que a des- (GRAMSCI, 2000b, p. 20).
coberta, por parte de um ‘gênio’ filosófico, de uma “Os fatos da superestrutura”, no entanto, não “de-
nova verdade que permanece como patrimônio de vem ser abandonados a si mesmos, a seu desenvol-
pequenos grupos intelectuais (GRAMSCI, 1999, p. vimento espontâneo, a uma germinação casual e es-
96, grifos do autor). porádica”, alerta Gramsci (2000a, p.28). Por isso é
importante compreender que sua proposta não se
A batalha cultural apresenta-se, por conseguinte, restringe a um “ato mental” ou ao “reino das ideias
como elemento central na construção da hegemonia, autogeradas”, mas abrange, também, o campo das
na conquista do consenso e da direção político-ideoló- estruturas materiais. Ao afirmar o plano das ideias, o
gica por parte das classes subalternas. Possibilita a pensamento gramsciano não pode ser reduzido a “uma
construção de uma nova visão de mundo e de uma exaltação idealista das restrições materiais historica-
proposta transformadora de sociedade a partir de ‘bai- mente dadas” (COUTINHO, 2003, p.76). Gramsci ja-
xo’, fazendo com que toda uma classe participe de um mais deixou de identificar os antagonismos estrutu-
projeto radical que “envolva toda a vida do povo e rais do modo de produção capitalista, bem como seus
ponha cada qual, brutalmente, diante das próprias res- parâmetros de dominação e exploração no contexto
ponsabilidades inderrogáveis” (GRAMSCI, 2002, p.268). da ordem socioeconômica. Não há, em sua obra, uma
Enquanto totalidade, a hegemonia significa a uni- rejeição da economia ou da esfera estrutural, mas
ficação entre estrutura e superestrutura, atividade um diagnóstico das novas determinações do capita-
de produção e de cultura, particular econômico e lismo, dos problemas em jogo e das formas de luta
universal político. Busca-se elevar ao máximo de para enfrentá-los. Vale ressaltar, assim, que sua con-
universalidade possível o ponto de vista dos grupos cepção de hegemonia não se restringe à esfera
subalternos e superar os interesses particulares, ar- superestrutural, compreendendo, também, a esfera
ticulando-os num projeto cuja expressão é a “von- econômica, visto que, “se a hegemonia é ético-políti-
tade coletiva nacional-popular”. Retomando Marx, ca, não pode deixar de ser também econômica, não
para reafirmar que “os homens agem tomando cons- pode deixar de ter seu fundamento na função decisi-
ciência dos conflitos da estrutura no terreno das ide- va que o grupo dirigente exerce no núcleo decisivo
ologias”, Gramsci (1999, p. 320) entende que a da atividade econômica” (GRAMSCI, 2000a, p. 48).
hegemonia é a síntese da esfera econômica e da A luta pela hegemonia nas sociedades de capita-
consciência crítica, devendo “ser considerada como lismo avançado, contudo, não se trava, para Gramsci,
uma afirmação de valor gnosiológico e não pura- apenas nas instâncias econômica e política (relações
mente psicológico e moral.” materiais de produção e poder estatal), mas também
na esfera da cultura. A elevação cultural das massas cussão de suas situações comuns, poderão chegar a
assume importância decisiva neste processo, para que um nível de cultura sempre mais crítico em relação
possam libertar-se da pressão ideológica das classes às situações impostas pelo atual modo capitalista de
dirigentes e elevar-se à condição destas últimas. A produção. Tal possibilidade, entretanto, só poderá ser
conquista da hegemonia e a construção de uma von- construída a partir das “contradições materiais da vida
tade coletiva, nas sociedades ocidentais, implicam, prática” das condições objetivas, das necessidades
como já observado, a realização de uma ampla “re- históricas (LIGUORI, 2007) e das formas de resistên-
forma intelectual e moral”2. Se a hegemonia é resul- cia forjadas no cotidiano das classes subalternizadas
tante “das atividades e iniciativas de uma ampla rede como possibilidade de enfrentamento à hegemonia
de organizações culturais, movimentos políticos e ins- capitalista contemporânea.
tituições educacionais que difundem sua concepção A relação entre cultura e política, remete, ainda, à
de mundo e seus valores capilarmente pela socieda- importância da linguagem, tanto dos intelectuais quan-
de” (BUTTIGIEG, 2003, p. 46), isso não compreende to da população, por seu poder de interpretar suas
apenas a transmissão e a disseminação de ideias e lutas e dar visibilidade a suas concepções de mundo,
valores dos grupos dominantes para as classes ora distantes do discurso dominante ora atravessa-
subalternizadas; ao contrário reforça igualmente a das por ele. Toda a linguagem, para Gramsci (1999,
capacidade dos grupos subordinados em elaborar suas p. 94-95), “contém os elementos de uma concepção
demandas e aspirações, suas possibilidades de luta, do mundo e de uma cultura.” Representa a capaci-
ou seja, a construção de uma contra-hegemonia, dade de “elaborar a própria concepção de mundo
manifestada quando ocorre consciente e criticamente [...] escolher a própria es-
fera de atividade, participar ativamente na constru-
[...] a passagem nítida da estrutura para a esfera ção da história e do mundo, ser guia de si mesmo e
das superestruturas complexas; é a fase em que as não mais aceitar do exterior, passiva e servilmente, a
ideologias geradas anteriormente se transformam marca da própria personalidade.” A relação entre lin-
em ‘partido’, entram em confrontação e lutam, até guagem e política está também relacionada à luta pela
que uma delas ou pelo menos uma combinação hegemonia, na medida em que pode significar o do-
delas tenda a prevalecer, a se impor, a se irradiar por mínio dos mais cultos sobre os menos cultos, de uma
toda a área social, determinando, além da unicidade nação sobre outra, dos grupos dominantes sobre as
dos fins econômicos e políticos, também a unidade classes dominadas através de diferentes mecanismos
intelectual e moral, pondo todas as questões em como a mídia, as formas de comunicação virtual
torno das quais ferve a luta não no plano introduzidas na era da internet e ainda a manipulação
corporativo, mas num plano ‘universal’, criando ideológica utilizada em programas de governo, con-
assim a hegemonia de um grupo social fundamen- forme se verificou ao longo das últimas décadas sob
tal sobre uma série de grupos subordinados o ideário da privatização e da desresponsabilização
(GRAMSCI, 2000a, p. 41, grifo do autor). do Estado, especialmente no âmbito dos direitos so-
ciais. Em nome da eficiência e eficácia do mercado,
Cultura e política relacionam-se, para Gramsci, à provocou-se a desmaterialização e fragmentação
perspectiva de transformação social, às formas de progressiva dos direitos sociais e econômicos, subs-
aceitação ou contestação das relações de poder exis- tituídos por programas focalizados de combate à po-
tentes na sociedade. Ao criticar a cultura dominante, o breza e por medidas de cunho assistencialista
pensador aponta as formas pelas quais os sujeitos cole- (ADELANTADO, 2008).
letivos podem lhe fazer fren- Merece destaque, neste
te, intervindo politicamente eixo de reflexão, a expansão
através de práticas concretas, Cultura e política relacionam- das formas de dominação no
seja nos partidos, nos sindica- contexto do capitalismo atu-
tos, nos movimentos sociais e se, para Gramsci, à al, provocando modalidades
em seus modos de engaja- perspectiva de transformação diversas de subalternização e
mento nas lutas cotidianas. de desmobilização das cama-
Fortalecer esse movimen- social, às formas de aceitação das de classe populares. Te-
to, consequentemente, signi- mos assistido ao “apassi-
fica superar o senso comum, ou contestação das relações de vamento das lutas sociais,
o modo de pensar desorgani- encapsuladas em reivindica-
zado e folclórico. Significa poder existentes na sociedade. ções de cunho imediato (cor-
alcançar um pensar crítico e porativas) e circunscritas a
histórico que se constrói atra- níveis de consciência elemen-
vés da luta, a partir dos problemas práticos vividos tares” (FONTES, 2008, p. 33). A fraca oposição po-
pelas classes subalternas, as quais, mediante a dis- pular vincula-se também ao crescimento da mani-
Notas
Ivete Simionatto
Pós-Doutorado no European University Institute
(EUI), Itália
Doutorado em Serviço Social pela Pontifícia Univer-
sidade Católica de São Paulo (PUC/SP)
Professora no Curso de Serviço Social e no Progra-
ma de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS),
na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)