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gradiva

[FILOSOFIA ABERTA]

1. QUE QUER DIZER TUDO ISTO?


Thomas Nagel
2. A ARTE DE ARGUMENTAR
Anthony Weston
3. MENTE, HOMEM E MÁQUINA
Paul T. Sagal
4. DICIONÁRIO DE FILOSOFIA
Simon Blackburn
5. ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA
Nigel Warburton
6. LÓGICA: UM CURSO INTRODUTÓRIO
W. H. Newton-Smith
7. SERÁ QUE DEUS EXISTE?
Richard Swinburne
8. A ÚLTIMA PALAVRA
Thomas Nagel
9. ÉTICA PRÁTICA
Peter Singer
10. PENSE: UMA CONTAGIANTE INTRODUÇÃO À FILOSOFIA
Simon Blackburn
11. ENCICLOPÉDIA DE TERMOS LÓGICO-FILOSÓFICOS
Org. de João Branquinho e Desidério Murcho
12. O SIGNIFICADO DAS COISAS
A. C. Grayling
13. ELEMENTOS DE FILOSOFIA MORAL
James Rachels
14. UM SÓ MUNDO: A ÉTICA DA GLOBALIZAÇÃO
Peter Singer
15. LINGUAGENS DA ARTE
Nelson Goodman
16. INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA
Jonathan Wolff

A publicar:
UTILITARISMO
John Stuart Mill
JONATHAN WOLFF

INTRODUÇÃO
À FILOSOFIA POLÍTICA

TRADUÇÃO
MARIA DE FÁTIMA ST. AUBYN

REVISÃO CIENTÍFICA
DESIDÉRIO MURCHO
King’s College London

gradiva
Ficha técnica
À Elaine e ao Max
Índice

Prefácio..................................................................................................................9
Introdução...........................................................................................................11
1 O estado de natureza......................................................................................17
Introdução......................................................................................................17
Hobbes............................................................................................................20
Locke...............................................................................................................32
Rousseau ........................................................................................................40
Anarquismo ...................................................................................................48
Conclusão.......................................................................................................51
2 A justificação do estado .................................................................................53
Introdução......................................................................................................53
O contrato social............................................................................................59
Utilitarismo....................................................................................................73
O princípio da equidade ..............................................................................81
Conclusão.......................................................................................................87
3 Quem deve governar? ....................................................................................91
Introdução......................................................................................................91
Platão contra a democracia ..........................................................................96
Rousseau e a vontade geral .......................................................................112
Democracia representativa ........................................................................132
Conclusão.....................................................................................................143
4 O lugar da liberdade ....................................................................................147

7
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

A liberdade em Mill ...................................................................................147


Justificação do Princípio da Liberdade ....................................................160
Problemas do liberalismo ..........................................................................175
Conclusão ....................................................................................................183
5 A distribuição da riqueza ............................................................................185
O problema da justiça distributiva...........................................................185
Propriedade e mercados ............................................................................191
A teoria da justiça de Rawls ......................................................................210
Rawls e os seus críticos ..............................................................................232
Conclusão ....................................................................................................242
6 Individualismo, justiça, feminismo............................................................245
Individualismo e anti-individualismo .....................................................245
Direitos para as mulheres ..........................................................................252
Transcender o individualismo liberal? ....................................................262
Uma palavra final .......................................................................................275
Sugestões de leitura complementar ..............................................................277
Índice remissivo...............................................................................................291

8
Prefácio

Com o presente livro, pretendo dar ao leitor uma ideia


dos problemas centrais da filosofia política e das tentativas
mais interessantes, desenvolvidas ao longo da história, para
os resolver. Neste sentido, analisei o tema recorrendo a uma
série de questões interligadas e fazendo incursões aos tesou-
ros da filosofia política, em busca de respostas e abordagens.
Ao invés de tentar fornecer uma descrição sistemática dos
debates contemporâneos, ou uma história abrangente e
erudita, omiti, por vezes, séculos (algumas vezes, milénios),
para poder estudar as obras mais estimulantes do ponto de
vista do pensamento, sobre os tópicos mais importantes —
pelo menos, a meu ver.
Haverá quem discorde da minha selecção de problemas
fulcrais, da perspectiva relativamente às relações existentes
entre estes e da escolha de pensadores a considerar seria-
mente. Ora isto não é mau. A última coisa que pretendo é
dar a ilusão de um tema encerrado ou completo, ou mesmo
fácil de abranger. Muitos livros introdutórios dão a impres-
são de que a área de estudo foi criada por decreto e que a sua
compreensão é uma questão de domínio do manual ou do
prontuário. Tentei evitar este tipo de simplificação excessiva.

9
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

O livro está escrito de forma a cada capítulo desenvolver


um tema surgido no capítulo anterior, mas espero também
que qualquer dos capítulos possa ser lido como uma unida-
de auto-suficiente, como introdução a determinada questão.
Os leitores sentem muitas vezes que têm praticamente uma
obrigação moral de começar no início de um livro e ir lendo
página a página (a minha avó dizia que Hitler lia sempre a
última página em primeiro lugar). No caso do presente livro,
o leitor está convidado a seguir os seus interesses.
O material aqui contido foi apresentado, em grande parte,
sob a forma de aulas aos estudantes do University College
London e Birkbeck College, assim como aos alunos do Lon-
don Inter-Collegiate Lecture Programme. Em troca, recebi
muitas críticas úteis. Na verdade, consegui reunir uma quan-
tidade quase indecente de ajuda e conselhos para um livro
tão pequeno. Entre aqueles que discutiram comigo partes do
livro ou comentaram as primeiras versões total ou parcial-
mente (nalguns casos, muitas versões) contam-se Paul Ash-
win, Richard Bellamy, Alan Carter, Elaine Collins, Issi Cot-
ton, Virginia Cox, Tim Crane, Brad Hooker, Alya Khan,
Dudley Knowles, Annabelle Lever, Veronique Muñoz Dar-
dé, Mike Martin, Lucy O’Brien, Sarah Richmond, Mike
Rosen, Mike Saward, Mario Scannella, Raj Sehgal, John
Skorupski, Philip Smelt, Bob Stern e Nigel Warburton. Estou
muito grato a todos eles.

10
Introdução

Não dizemos que um homem que não revela interesse pela


política é um homem que não interfere na vida dos outros;
dizemos que não interfere na vida.
(Oração fúnebre de Péricles, in Tucídides,
História da Guerra do Peloponeso, 147)

Tem-se afirmado que há apenas duas questões na filosofia


política: «Quem fica com o quê?» e «Quem disse?». Não é
completamente verdade, mas aproxima-se desta o suficiente
para poder servir de ponto de partida. A primeira destas
questões prende-se com a distribuição dos bens materiais e
com os direitos e as liberdades. Qual é a justificação para a
posse de riqueza? Que direitos e liberdades devem ser atri-
buídos às pessoas? A segunda questão diz respeito à distri-
buição de outro bem: o poder político. Locke definiu o poder
político como «o direito de fazer leis com penas de morte e,
consequentemente, todas as penas menores». Provavelmen-
te, isto vai mais longe do que precisamos, mas percebe-se a
ideia. O poder político encerra o direito de dar ordens aos
outros e de os submeter a um castigo, caso desobedeçam.
Quem deverá deter este poder?
Mal começamos a reflectir sobre estas questões, surgem as
interrogações. Haverá alguma boa razão para uma pessoa

11
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

possuir mais riqueza do que outra? Existirão limites justifi-


cados à minha liberdade? E qual deverá ser a relação entre o
poder político e o êxito económico? Nalguns países, são
poucos os que conquistam o poder político que não são
abastados. Noutros, aqueles que conquistam o poder político
depressa enriquecem. Mas deveria haver sequer relação
entre a posse de riqueza e a fruição do poder político?
Na verdade, o poder político é, por si só, bastante intri-
gante. Se alguém detém poder político legítimo sobre mim,
terá o direito de me obrigar a fazer certas coisas. Mas como
poderá outra pessoa justificar a sua afirmação de que tem
tais direitos sobre mim? Já parece chocante que alguém me
diga o que fazer, mas o caso será ainda pior se essa pessoa se
julgar no direito de me punir, caso eu desobedeça.
Há, é claro, outra forma de ver isto. Talvez eu devesse
considerar igualmente a forma como os outros se poderão
comportar — como poderão tornar a minha vida desagradá-
vel — sem as peias da lei e da ameaça de punição. Reflectin-
do nisto, talvez haja, afinal, algo a dizer a favor da existência
do poder político. Assim, podemos identificar-nos tanto com
a exigência anarquista da autonomia do indivíduo, como
com a defesa do poder do estado apresentada pelo autorita-
rista.
Assim, uma das tarefas do filósofo político consiste em
determinar o equilíbrio correcto entre a autonomia e a auto-
ridade ou, por outras palavras, determinar a distribuição
adequada de poder político. Este exemplo ilustra igualmente
o traço distintivo da filosofia política. A filosofia política é
uma disciplina normativa, significando isto que tenta estabe-
lecer normas (regras ou padrões ideais). Podemos contrastar
o normativo com o descritivo. Os estudos descritivos tentam
descobrir como são as coisas. Os estudos normativos tentam
descobrir como as coisas devem ser: o que está certo, e o que
é justo ou moralmente correcto. A política pode ser estudada
tanto de uma perspectiva descritiva como de uma perspecti-
va normativa.

12
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Regra geral, os estudos políticos descritivos são realizados


por cientistas políticos, sociólogos e historiadores. Assim,
por exemplo, alguns cientistas políticos colocam questões
acerca da verdadeira distribuição dos bens numa determinada
sociedade. Nos Estados Unidos, quem possui riqueza? Na
Alemanha, quem detém o poder? O filósofo político, como
todos nós, tem boas razões para se interessar pelas respostas
a estas perguntas, mas a sua preocupação principal situa-se
noutro campo: que regra ou princípio deve reger a distribuição
dos bens? («Bens», neste contexto, inclui não apenas a rique-
za, mas também o poder, os direitos e a liberdade.) O filóso-
fo político não perguntará «Como se distribui a riqueza?»,
mas «Qual seria uma distribuição correcta ou justa da rique-
za?». Não perguntará «Que direitos e liberdades têm as
pessoas?», mas «Que direitos e liberdades devem as pessoas
ter?». Que padrões ideais, ou normas, devem reger a distri-
buição dos bens no seio da sociedade?
Contudo, a divisão entre estudos normativos e descritivos
não é tão líquida quanto poderia parecer. Consideremos
novamente a questão «Quem possui riqueza?». Por que
razão nos interessamos por esta questão descritiva? Acima
de tudo, porque a distribuição da riqueza é relevante para as
questões normativas relativas à justiça. (Compare-se a per-
gunta «Quem possui cordel?» — as desigualdades relativas à
posse de cordel não têm interesse político.)
Além disso, as questões que dizem respeito ao compor-
tamento humano parecem muitas vezes iludir a distinção
descritivo/normativo. Um sociólogo que procure explicar,
por exemplo, as razões que levam as pessoas a cumprir
geralmente a lei, recorrerá provavelmente, nalgum ponto da
sua exposição, ao facto de as pessoas pensarem que devem
obedecer. E, claro está, as questões factuais sobre o compor-
tamento humano são igualmente relevantes para as questões
normativas. Por exemplo, não fará sentido elaborar uma
teoria da sociedade justa sem possuir alguns conhecimentos
acerca do comportamento e da motivação das pessoas.
Algumas teorias da justiça, por exemplo, poderão lançar

13
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

mão de pressupostos irrealistas sobre a capacidade das


pessoas para o altruísmo (ou sobre a sua falta). Em suma, o
estudo de como as coisas são ajuda à explicação de como as
coisas podem ser, e estudar como as coisas podem ser é
indispensável para avaliar o modo como elas devem ser.
Mas como podemos nós responder à questão de como as
coisas devem ser? Sabemos, em termos gerais, como respon-
der a perguntas puramente descritivas: vamos ver. Não
quero com isto dizer que a ciência política ou a história são
fáceis, pois implicam muitas vezes um trabalho muito subtil
e pormenorizado. Mas, em princípio, pensamos que sabemos
como realizá-lo, mesmo que frequentemente não encontre-
mos a informação que procuramos. Mas o que podemos
fazer para determinar como as coisas devem ser? Onde
podemos ir ver?
Por incómodo que seja reconhecê-lo, não há uma resposta
fácil. Mas, apesar disto, muitos filósofos tentaram resolver
estes problemas políticos normativos e não tiveram dificul-
dade em encontrar coisas para dizer. Examinaremos alguns
dos mais importantes contributos ao longo deste livro e
veremos que, em termos gerais, os filósofos raciocinam
acerca da política da mesma forma que o fazem acerca de
outras questões filosóficas. Estabelecem distinções, verificam
se as proposições se autocontradizem ou se duas ou mais
proposições são logicamente consistentes. Tentam mostrar
que é possível deduzir teses surpreendentes de outras mais
óbvias. Em suma, apresentam argumentos.
E os filósofos discutem a política por uma boa razão. Na
filosofia política, ao contrário do que acontece noutras áreas
da filosofia, não há refúgios. Na filosofia, o agnosticismo («os
ingleses traduzem a sua ignorância para grego e chamam-lhe
agnosticismo», disse Engels) é muitas vezes uma posição
respeitável. Talvez eu não descubra uma posição satisfatória
relativamente à questão da existência ou inexistência de livre
arbítrio e, por isso, não professe qualquer perspectiva. Num
contexto mais vasto, isto quase nada interessa. Mas na filoso-
fia política o agnosticismo anula-se a si próprio. Pode não

14
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

interessar se uma sociedade não tem uma política oficial


sobre a solução para o problema do livre arbítrio, mas em
todas as sociedades há alguém que detém o poder político e
a riqueza encontra-se distribuída de uma forma ou de outra.
Claro que a influência de um indivíduo sobre as decisões da
sociedade será provavelmente ínfima. Mas, potencialmente,
todos temos algo a dizer, se não através do voto, então dan-
do a conhecer as nossas opiniões através do debate e da
discussão, quer na arena pública quer de forma «subterrâ-
nea». Aqueles que preferem não participar verão as decisões
políticas ser tomadas por si, quer gostem delas quer não.
Nada dizer ou fazer é, na prática, dar aval à situação actual,
por insatisfatória que seja.
No decurso do presente livro apresentarei e discutirei as
principais questões da filosofia política, analisando algumas
das respostas mais influentes, dos gregos antigos aos nossos
dias. Cada capítulo aborda uma questão ou controvérsia
específica. O ponto de partida natural é o poder político, o
direito de mandar. Por que razão deverão alguns ter o direi-
to de fazer leis e regulamentar o comportamento dos outros?
Bem, suponhamos que ninguém tinha esse direito. Como
seria a vida? Esta é a questão analisada no primeiro capítulo:
o que aconteceria num «estado de natureza» sem governo?
Seria a vida insuportável? Ou seria melhor do que é agora?
Suponhamos que aceitávamos que a vida regida por um
governo é melhor do que a vida no estado de natureza.
Poderemos daqui concluir que temos o dever moral de fazer
o que o estado determina? Ou haverá outro argumento que
conduza a esta conclusão? Este é o problema da obrigação
política, que analisaremos no Capítulo 2.
Se temos um estado, como se deverá ele organizar? Deve-
rá ser democrático? E que queremos dizer, quando afirma-
mos que o estado é democrático? Há alguma base racional
para preferir o governo do povo ao governo de um especia-
lista, um ditador benévolo? Estas são as questões abordadas
no Capítulo 3.

15
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Que poder deverá o estado possuir? Ou, visto do outro


lado, de que grau de liberdade deverá gozar o cidadão? O
Capítulo 4 considera a teoria de que, para evitar a «ditadura
da maioria», nos deve ser dada a liberdade de agirmos con-
forme desejamos, desde que não prejudiquemos os outros.
Se dermos tal liberdade aos cidadãos, esta deverá incluir a
liberdade de adquirir e vender riqueza a seu bel-prazer? Ou
haverá restrições justificadas à actividade económica, em
nome da justiça e da liberdade? Este é o tema do Capítulo 5:
justiça distributiva.
Os cinco capítulos principais deste livro fazem-nos per-
correr temas cuja importância perdura no tempo: o estado de
natureza, o estado, a democracia, a liberdade e a riqueza. O
capítulo final considera brevemente alguns dos pressupostos
subjacentes à minha escolha de temas e analisa esses pressu-
postos à luz do trabalho desenvolvido recentemente no
campo da teoria política feminista. Por esta altura, e com a
experiência adquirida em dois mil e quinhentos anos, pode-
remos ter uma resposta à pergunta colocada, e não satisfato-
riamente respondida, nesta Introdução — como se faz filoso-
fia política? Sobre este tema, assim como sobre todos os
outros aqui analisados, o meu objectivo não é impor uma
opinião; ao invés, espero apresentar alguns materiais que
ajudem cada leitor a formar a sua própria opinião. Claro que
será possível ler este livro e ficar com tantas dúvidas como
antes. Mas não devemos subestimar o progresso que repre-
senta avançar da ignorância desnorteada para a perplexida-
de informada.

16
1
O estado de natureza

Introdução

— Sempre pensei que um bando de miúdos britânicos — vocês


são todos britânicos, não são? — seria capaz de fazer melhor do
que... quero dizer...
— E fizemos, no início — disse Ralph. — Antes de as coi-
sas...
Interrompeu-se.
— Nessa altura, estávamos unidos...
O oficial assentiu com a cabeça, compreensivo.
— Eu sei. Belo espectáculo. Como n’ A Ilha de Coral.
(William Golding, O Deus das Moscas, 192)

A Ilha de Coral, de R. M. Ballantyne, conta a história de


três rapazes ingleses que dão à costa numa ilha deserta. Com
coragem, inteligência e cooperação, afugentam piratas e
selvagens nativos, desfrutando de uma vida idílica no Pacífi-
co. As personagens de William Golding também dão consigo
numa generosa ilha de coral, mas depressa se envolvem,
primeiro, em disputas e, depois, em lutas tribais desespera-

17
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

das. Do modo como contam as suas histórias, Ballantyne e


Golding pintam quadros opostos, em resposta à nossa pri-
meira questão: como seria a vida num «estado de natureza»,
num mundo sem governo?
Porquê fazer esta pergunta? Qual a sua relevância para a
filosofia política? Tomamos como adquirido o facto de
vivermos num mundo de instituições políticas: o governo
central, o governo local, a polícia, os tribunais. Estas institui-
ções distribuem e administram o poder político. Colocam
pessoas em cargos de responsabilidade e estas pessoas
podem reivindicar o direito a mandar-nos agir de determi-
nadas formas. E, se desobedecermos e formos apanhados,
seremos castigados. A vida de cada um de nós é parcialmen-
te estruturada e controlada pelas decisões alheias. Este nível
de interferência nas nossas vidas pode parecer intolerável.
Mas qual é a alternativa?
Um ponto de partida natural para pensar sobre o estado é
perguntar: como seriam as coisas sem ele? Para compreen-
dermos a razão por que temos alguma coisa, considerar a
sua inexistência é frequentemente uma boa táctica. É claro
que não poderíamos abolir o estado apenas para descobrir
como seria a vida sem ele e, por isso, na prática, o melhor
que podemos fazer é uma experiência mental. Imaginamos
um «estado de natureza», uma situação na qual o estado não
existe e ninguém detém o poder político. Em seguida, ten-
tamos determinar como seria viver nestas condições. Desta
forma, conseguimos obter uma visão de como as coisas
seriam sem o estado, e isto, esperamos, ajudar-nos-á a perce-
ber por que temos estado. Talvez consigamos compreender
como o estado se justifica, assim como a forma que deverá
assumir.
Alguma vez existiu um estado de natureza? Muitos filóso-
fos parecem relutantes em comprometer-se relativamente a
este assunto. Jean-Jacques Rousseau (1712-78), por exemplo,
pensava que levaria tanto tempo a passar de um estado de
natureza para a «sociedade civil» (uma sociedade governada
por um estado formal), que se tornava blasfemo supor que as

18
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

sociedades modernas teriam surgido dessa forma. Afirmava


que o tempo necessário à transição seria superior à idade do
mundo, tal como registada nas escrituras. Por outro lado,
Rousseau também pensava que havia exemplos contempo-
râneos de povos a viver num estado de natureza, enquanto
John Locke (1632-1704) pensava que isto se aplicava a muitos
grupos que viviam na América do séc. XVII.
Mas mesmo que nunca tenha existido um verdadeiro
estado de natureza, podemos, ainda assim, considerar como
seria a vida se, hipoteticamente, nos víssemos sem um esta-
do. Thomas Hobbes (1588-1679), profundamente preocupa-
do com a guerra civil inglesa, pensou ver o seu país afundar-
se num estado de natureza. Em Leviatã, traçou um quadro
negro dessa situação hipotética, esperando convencer os
leitores das vantagens do governo. Da mesma forma, para os
fins deste capítulo, não precisamos de dedicar muito tempo
a debater a questão de saber se, na verdade, os seres huma-
nos alguma vez terão vivido num estado de natureza. Só
precisamos de defender que isso é possível.
É possível? Por vezes, diz-se que não só os seres humanos
sempre viveram sob um estado, como essa é a única forma
de eles conseguirem viver. De acordo com esta perspectiva, o
estado existe naturalmente, no sentido de ser natural para os
seres humanos. Talvez não fôssemos seres humanos se vivês-
semos numa sociedade sem estado. Talvez fôssemos uma
forma inferior de vida animal. Se os seres humanos existem,
também existe o estado. A ser verdadeira esta perspectiva, a
especulação acerca do estado de natureza revela-se redun-
dante.
Reagindo a esta ideia, alguns filósofos afirmam que temos
inúmeras provas de que os seres humanos foram capazes de
viver sem estado. Estas afirmações foram vitais para a teoria
apresentada pelos autores anarquistas (regressaremos a este
assunto mais adiante, ainda neste capítulo). Mas mesmo que
os seres humanos nunca tenham vivido, durante tempo
algum, sem estado, é muito difícil perceber como se pode
afirmar que é absolutamente impossível fazê-lo. E assim,

19
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

para tentar compreender por que temos estado, partiremos


do princípio de que os seres humanos podiam dar consigo
num mundo onde este não existisse. Como seria esse mun-
do?

Hobbes

[No estado de natureza] não há lugar para a Indústria porque o


seu produto é incerto e, consequentemente, não há Cultivo da
Terra, Navegação, nem utilização dos bens que têm de ser impor-
tados por via marítima, não há Construção espaçosa, não há
Meios para deslocar e retirar coisas que requeiram muita força,
não há Conhecimento da face da Terra, nenhum registo do Tem-
po, não há Artes nem Letras, não há Sociedade e, pior que tudo o
resto, há um medo contínuo e o risco de morte violenta. E a vida
do homem é solitária, pobre, desagradável, brutal e breve.
(Thomas Hobbes, Leviatã, 186)

A maior obra de Hobbes, Leviatã (publicada em 1651),


trata um assunto que o obcecou durante mais de vinte anos:
os males da guerra civil e a anarquia que a acompanharia.
Nada podia ser pior do que a vida sem a protecção do esta-
do, afirma Hobbes, e, portanto, o governo forte é essencial
para assegurar que não caímos na guerra de todos contra
todos.
Mas por que razão pensava Hobbes que o estado de
natureza seria tão desesperado, um estado de guerra, um
estado de medo constante e risco de morte violenta? A
essência da perspectiva de Hobbes é que, na ausência de
governo, a natureza humana conduzir-nos-ia, inevitavel-
mente, ao conflito grave. Assim, para Hobbes, a filosofia
política começa com o estudo da natureza humana.
Hobbes defende a existência de duas chaves para a com-
preensão da natureza humana. Uma é o autoconhecimento.
A introspecção honesta diz-nos muito sobre como são os
seres humanos: a natureza dos seus pensamentos, esperan-
ças e medos. A outra é o conhecimento dos princípios gerais
da física. Hobbes pensava, como materialista que era, que,

20
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

tal como para compreender o cidadão (o indivíduo na socie-


dade política) é necessário compreender a natureza humana,
para compreender a natureza humana é preciso, primeiro,
compreender o «corpo», ou a matéria, do qual, insistia,
somos totalmente compostos.
Para os nossos fins, o aspecto mais importante da pers-
pectiva da matéria avançada por Hobbes é a adopção do
princípio enunciado por Galileu sobre a conservação do
movimento. Antes de Galileu, os filósofos e os cientistas
haviam-se intrigado, procurando perceber o que mantinha
os objectos em movimentos. Qual é o mecanismo, por exem-
plo, que faz uma bala de canhão permanecer no ar depois de
disparada? A resposta revolucionária de Galileu consistiu
em dizer que esta era a pergunta errada. Devíamos pressu-
por que os objectos continuariam a viajar num movimento e
direcção constantes até serem afectados por outra força. O
que precisa de ser explicado não é por que continuam as
coisas a mover-se, mas por que mudam de direcção e por
que param. Na altura em que Hobbes viveu, esta perspectiva
era ainda novidade e, sublinhou ele, desafiava o pensamento
de senso comum de que, tal como nós nos cansamos e procu-
ramos repousar depois do movimento, os objectos fariam
outro tanto, naturalmente. Mas a verdade, afirma ele, é que
«quando uma coisa está em movimento, ficará eternamente
em movimento, a menos que outra coisa a detenha» (Leviatã,
87). Isto, pensava Hobbes, aplicava-se igualmente a nós
próprios. Cansarmo-nos e desejarmos descansar não é mais
do que ter um movimento diferente a agir sobre nós.
Assim, o princípio da conservação do movimento foi
usado por Hobbes no desenvolvimento de uma visão mate-
rialista, mecanicista, dos seres humanos. Os traços gerais
desta descrição são apresentados na introdução de Leviatã:
«O que é o Coração, senão uma Mola; e os Nervos, senão
outros tantos Fios; e as Articulações, senão outras tantas
Rodas, que dão movimento a todo o Corpo […]?» (p. 81).
Assim, os seres humanos são animados através do movi-
mento. A sensação, por exemplo, é uma «pressão» sobre um

21
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

órgão. A imaginação é um «vestígio enfraquecido» da sensa-


ção. Um desejo é um «movimento interno em direcção a um
objecto». Tudo isto pretendia ter um significado completa-
mente literal.
A importância da teoria da conservação do movimento é
que, com ela, Hobbes pinta um quadro dos seres humanos
constantemente à procura de algo, nunca em repouso. «A
Tranquilidade perpétua do espírito não existe, enquanto
aqui vivemos, porque a própria Vida não é senão Movimen-
to, e nunca pode existir sem Desejo» (Leviatã, 129-30). Os
seres humanos, afirma Hobbes, procuram aquilo que ele
chama «felicidade»: o sucesso contínuo na obtenção dos
objectos de desejo. É a busca da garantia de felicidade que
nos conduzirá à guerra, no estado de natureza. Em última
instância, pensava Hobbes, o nosso medo da morte leva os
seres humanos a criarem um estado. Mas sem um estado, no
estado de natureza, a procura da felicidade, segundo Hob-
bes, conduziria a uma guerra de todos contra todos. Por que
razão Hobbes pensou isto?
Pode encontrar-se uma pista na definição de poder avan-
çada por Hobbes: o «meio actual para obter um Bem futuro
aparente» (Leviatã, 150). Assim, para se ter a certeza de que
se alcançará a felicidade, é necessário tornar-se poderoso. As
fontes de poder, afirma Hobbes, incluem riqueza, reputação
e amigos, e os seres humanos possuem «um desejo insaciável
de Poder atrás de poder, que cessa apenas com a Morte»
(Leviatã, 161). Isto verifica-se não apenas porque os seres
humanos nunca poderão alcançar um estado de completa
satisfação, mas também porque uma pessoa «não pode
assegurar o poder e os meios para viver bem, que tem no
momento, sem a aquisição de mais» (Leviatã, 161). Os outros
também procurarão aumentar o seu poder e, portanto, a
busca de obtenção de poder é, pela sua própria natureza,
competitiva.
As tentativas naturais e contínuas de aumentar o poder —
de ter riqueza e pessoas sob as suas ordens — conduzem à
competição. Mas competição não é guerra. Então, por que

22
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

razão a competição, num estado de natureza, há-de conduzir


à guerra? Aqui, o passo importante é o pressuposto de Hob-
bes de que os seres humanos, por natureza, são «iguais». O
pressuposto da igualdade natural é frequentemente utilizado
na filosofia política e moral como base para o argumento de
que devemos respeitar as outras pessoas, tratando-nos
mutuamente com respeito e delicadeza. Mas Hobbes dá ao
pressuposto uma utilização bastante diferente, conforme
poderemos suspeitar ao ver como apresenta a questão:
somos iguais no sentido em que todos os seres humanos
possuem aproximadamente o mesmo nível de força e capa-
cidade e, portanto, qualquer ser humano tem a capacidade
de matar outro. «O mais fraco tem força suficiente para
matar o mais forte, quer através de maquinação secreta, quer
associando-se a outros» (Leviatã, 183).
A isto, Hobbes acrescenta o pressuposto razoável de que
no estado de natureza há escassez de bens, de forma que
duas pessoas que desejem o mesmo tipo de coisa acabarão
frequentemente por desejar possuir a mesma coisa. Por fim,
Hobbes sublinha que ninguém, no estado de natureza, con-
segue tornar-se invulnerável à possibilidade de ataque. Seja
o que for que eu possua, os outros poderão desejá-lo e, por-
tanto, terei de estar constantemente alerta. Contudo, mesmo
que nada possua, não poderei livrar-me do medo. Os outros
podem ver-me como uma ameaça a eles e, por isso, poderei
facilmente ser vítima de um ataque preventivo. Destes pres-
supostos de igualdade, escassez e incerteza conclui-se, afir-
ma Hobbes, que o estado de natureza será um estado de
guerra:

Desta igualdade de capacidade surge a igualdade da esperança de


conseguir alcançar os nossos Fins. Por conseguinte, se dois homens
desejam a mesma coisa — que, todavia, não podem ambos possuir —
tornam-se inimigos e, na via para alcançar o seu Fim (que é sobretudo
a sua própria conservação e por vezes apenas o seu deleite), procuram
destruir-se, ou dominar-se, mutuamente. E, daqui, conclui-se que se
um Invasor nada tem a temer além do poder solitário de um homem
— se um planta, semeia, constrói ou possui um Lugar confortável —
poder-se-á provavelmente esperar que os outros venham preparados

23
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

com forças unidas para desalojá-lo e privá-lo, não apenas do fruto do


seu trabalho, mas também da sua vida ou liberdade. E, por sua vez, o
Invasor corre risco semelhante de ser atacado por outrem. (Leviatã, 184)

Pior ainda, afirma Hobbes, as pessoas procuram obter não


só os meios que lhes proporcionem a satisfação imediata,
mas também o poder que lhes permitirá satisfazer quaisquer
desejos futuros que possam vir a ter. Ora, como a reputação
de possuir poder é poder, algumas pessoas atacarão outras,
mesmo que não representem qualquer ameaça, meramente
com o intuito de granjear uma reputação de força como meio
de protecção futura. Como no recreio da escola, os que têm
fama de ganhar as rixas serão provavelmente menos ataca-
dos com o fim de se lhes retirar os bens, e poderão mesmo
receber bens de outros que se sentem incapazes de se defen-
der. (É claro que os que têm uma reputação de força também
não podem descontrair-se: estes são as vítimas mais prová-
veis daqueles que procuram melhorar a sua própria reputa-
ção.)
Em suma, Hobbes vê três razões principais para a agres-
são no estado de natureza: lucro, segurança (para prevenir
ataques de invasores) e glória ou reputação. Essencialmente,
Hobbes baseia-se na ideia de que os seres humanos, na sua
busca de felicidade, tentam constantemente aumentar o
poder (o seu meio actual de obter bens futuros). Quando
acrescentamos que os seres humanos são aproximadamente
iguais em força e capacidade, que os bens cobiçados são
escassos e que ninguém pode estar certo de que não será
atacado por outrem, parece razoável concluir que a acção
humana racional transformará o estado de natureza num
campo de batalha. Ninguém é suficientemente forte para
repelir todos os possíveis atacantes, nem tão fraco que atacar
os outros, se necessário com cúmplices, não se lhe ofereça
como possibilidade. O motivo para o ataque torna-se claro
quando reconhecemos também que, no estado de natureza,
atacar os outros é muitas vezes a forma mais segura de
conseguir (ou guardar) o que queremos.

24
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Dever-se-á objectar que este quadro da nossa situação


provável no estado de natureza se baseia num pressuposto
de que os seres humanos são implausivelmente cruéis ou
implausivelmente egoístas? Hobbes responderia que as
objecções falham o alvo. Os seres humanos, defende Hobbes,
não são cruéis: «não concebo como possível que um homem
retire prazer dos grandes sofrimentos de outros homens,
sem qualquer outro fim próprio» (Leviatã, 126). No que diz
respeito ao egoísmo, ele concordaria que os seres humanos,
regra geral, se não sempre, procuram satisfazer os seus
desejos egocêntricos. Mas de igual ou maior importância,
como origem da guerra, é o medo: o medo de que os que nos
rodeiam tentem tirar-nos o que temos. Isto pode levar-nos a
atacar, não pelo lucro, mas pela segurança ou talvez mesmo
pela reputação. Assim, chegamos à ideia de uma guerra na
qual todos pelejam em autodefesa.
Ainda assim, poder-se-ia argumentar, não é razoável
supor que todos seriam tão desconfiados que estariam cons-
tantemente a apertar-se os pescoços mutuamente. Mas Hob-
bes aceita a existência de momentos isentos de conflito real.
Este filósofo define o estado de guerra não como uma luta
constante, mas como uma prontidão constante para a luta,
de forma a ninguém poder descontrair-se e baixar a guarda.
Terá ele razão em considerar que seríamos assim tão descon-
fiados? Por que não partir do princípio de que as pessoas, no
estado de natureza, adoptariam o lema «vive e deixa viver»?
Mas considere-se, contrapõe Hobbes, a forma como vivemos
sob a autoridade do estado. Que opinião mostramos ter dos
nossos vizinhos quando trancamos as portas? E das pessoas
que connosco habitam, ao fecharmos armários e gavetas? Se
somos assim tão desconfiados vivendo sob a protecção da
lei, como não seríamos receosos, vivendo no estado de natu-
reza?
Neste ponto, poder-se-ia afirmar que, apesar de Hobbes
nos ter contado uma história curiosa, houve algo que ele não
considerou: a moralidade. Apesar de as criaturas desprovi-
das de sentido moral se poderem comportar conforme Hob-

25
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

bes descreve, nós somos diferentes. A grande maioria dos


seres humanos aceita que não se deve atacar as outras pes-
soas nem privá-las dos seus bens. Claro que, num estado de
natureza, uma minoria roubaria e mataria, tal como agora,
mas haveria suficientes pessoas com sentido moral para
impedir que a podridão alastrasse e para evitar que a mino-
ria imoral nos conduzisse à guerra generalizada.
Esta objecção coloca duas questões fundamentais, a saber:
primeira, acredita Hobbes que as ideias de moralidade pode-
rão fazer sentido num estado de natureza? E, segunda, se
fosse possível, aceitaria ele que o reconhecimento do dever
moral, na ausência do estado, constitui motivação bastante
para sufocar a tentação de invadir o espaço dos outros, com
o fim de conseguir os seus bens? Consideremos a posição de
Hobbes relativamente à primeira destas questões.
Hobbes parece negar que possa haver moralidade no
estado de natureza: «Nesta guerra de todos os homens con-
tra todos os homens […] nada pode ser Injusto. As noções de
Certo e Errado, Justiça e Injustiça, não têm aqui lugar»
(Leviatã, 188). O argumento a este respeito apresentado por
Hobbes é que a injustiça consiste na violação de uma lei mas,
para que a lei exista, é necessário que alguém a faça, um
poder comum, capaz de a fazer cumprir. No estado de natu-
reza não existe qualquer poder comum e, portanto, não há
lei, e, logo, não poderá haver violação da lei. Por conseguin-
te, não há injustiça. Cada pessoa tem «a Liberdade […] de
usar o seu próprio poder […] para a preservação da sua
própria Natureza — ou seja, da sua própria Vida — e, con-
sequentemente, de fazer qualquer coisa que, segundo o seu
Juízo e Razão, entenda como meio mais apto para esse fim»
(Leviatã, 189). Uma das consequências disto, afirma Hobbes,
é que «nesta situação, todo o homem tem Direito a toda a
coisa, mesmo ao corpo de outro» (Leviatã, 190). À liberdade
de agir consoante se julgue adequado à preservação de si
próprio chama Hobbes o «direito natural»; a sua consequên-
cia parece ser que, no estado de natureza, é permitido fazer

26
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

tudo, mesmo tirar a vida a outra pessoa, se se acreditar que


isso ajudará à nossa sobrevivência.
Por que razão Hobbes adopta uma posição tão extrema,
concedendo a todas as pessoas a liberdade de, no estado de
natureza, fazer o que considerem adequado? Talvez a sua
posição não seja assim tão extrema. Teríamos dificuldade em
discordar quanto ao facto de, no estado de natureza, as
pessoas terem direito a defender-se a si próprias. Contudo,
parece igualmente evidente que os indivíduos têm de decidir
por si próprios o que, razoavelmente, constitui uma ameaça
para si e, mais ainda, qual a acção mais adequada a
empreender, face a tal ameaça. Ninguém, segundo parece,
poderia ser razoavelmente criticado por qualquer acção
empreendida em autodefesa. Como o ataque preventivo
constitui uma forma de defesa, a invasão do território alheio
pode frequentemente ser encarada como a forma mais racio-
nal de autoprotecção.
Esta é, então, a descrição inicial simples da perspectiva de
Hobbes. No estado de natureza não há justiça nem injustiça,
não há certo nem errado. As noções morais não têm aplica-
ção. É a isto que Hobbes chama «Direito Natural de Liberda-
de». Mas, como veremos, a perspectiva de Hobbes tem
outras complicações.
Além do Direito Natural de Liberdade, Hobbes defende
igualmente a existência, no estado de natureza, daquilo a
que chama «Leis da Natureza». A primeira «lei fundamen-
tal» é a seguinte: «Todo o homem deve buscar a Paz, na
medida em que tem a esperança de a obter; quando não a
consegue obter, poderá procurar obter, e utilizar, todos os
recursos e vantagens da Guerra» (Leviatã, 190). Uma segunda
lei exorta a que desistamos do direito a todas as nossas coi-
sas, sob condição de os outros se mostrarem dispostos a
fazer outro tanto, e cada um «se satisfaça com a liberdade em
relação aos outros homens que ele permitiria aos outros
homens em relação a si próprio» (Leviatã, 190). A terceira,
que é particularmente importante para o argumento a favor
do estado apresentado no contrato social posterior de Hob-

27
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

bes, é honrar seja quais forem as alianças que se fizeram. Na


verdade, Hobbes apresenta um total de dezanove Leis da
Natureza, respeitantes à justiça, à propriedade, à gratidão, à
arrogância e a outras questões relacionadas com a conduta
moral. Todas estas leis, supõe Hobbes, podem ser deduzidas
da lei fundamental, embora ele reconheça que poucas pes-
soas seriam capazes de fazer essa dedução, pois a maioria
«estão demasiado ocupadas a procurar alimento, e as restan-
tes são demasiado indiferentes para compreender» (Leviatã,
214). Mas as Leis da Natureza podem ser «abreviadas numa
súmula fácil […]. Não faças aos outros o que não farias a ti
mesmo», uma formulação negativa da «regra de ouro» bíbli-
ca (faz aos outros o que gostarias que eles te fizessem a ti).
Assim, poderia facilmente dizer-se que as Leis da Nature-
za são um código moral. Mas, se Hobbes tenciona que estas
constituam um conjunto de regras morais que governam o
estado de natureza, então isso parece entrar em contradição
com a sua afirmação anterior de que não existe certo nem
errado em tal condição. Além disso, se as pessoas se sentem
motivadas a cumprir a lei moral, talvez isto torne o estado de
natureza bastante mais pacífico do que Hobbes admite.
Contudo, Hobbes não descreve as Leis de Natureza como
leis morais, mas, ao invés, como teoremas ou conclusões da
razão. Ou seja, Hobbes crê que a obediência a estas leis dá a
cada pessoa a melhor possibilidade de preservar a sua pró-
pria vida.
Todavia, isto parece conduzir a um problema diferente. A
Lei da Natureza fundamental diz-nos que é racional procu-
rar alcançar a paz. Mas Hobbes já tinha afirmado que o
estado de natureza seria um estado de guerra porque é
racional, no estado de natureza, invadir o espaço dos outros.
Como pode Hobbes defender que a racionalidade exige
simultaneamente a guerra e a paz?
A resposta, creio, reside na distinção entre racionalidade
individual e racionalidade colectiva. A racionalidade colectiva
é aquilo que é melhor para cada indivíduo, partindo do
pressuposto de que todos os outros agirão da mesma forma.

28
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

As Leis da Natureza traduzem aquilo que é colectivamente


racional. Podemos ilustrar esta distinção com um exemplo
retirado de Jean-Paul Sartre. Consideremos um grupo de
camponeses em que cada um cultiva a sua parcela de terre-
no, na vertente íngreme de um monte. Individualmente,
apercebem-se de que poderiam aumentar a parte utilizável
do seu terreno abatendo as árvores e semeando mais. Por
isso, todos cortam as árvores. Mas, na tempestade seguinte a
chuva arrasta o solo do monte, estragando a terra. Neste
caso, podemos afirmar que a acção individualmente racional
é cortar as suas árvores, por forma a aumentar a área de terra
disponível para a agricultura. (O abate das árvores de uma
só parcela de terreno não faz qualquer diferença significati-
va, no que diz respeito à erosão do solo.) Mas, colectivamen-
te isto é um desastre, pois se todos cortarem as suas árvores,
todas as parcelas ficarão inutilizáveis. Portanto, a acção
colectivamente racional é deixar a maioria das árvores de pé
— se não mesmo todas.
A característica interessante dos casos deste género
(conhecidos na bibliografia especializada como «dilema do
prisioneiro») é que, quando a racionalidade colectiva e a
racionalidade individual divergem, é muito difícil conseguir
a cooperação para alcançar o resultado colectivamente racio-
nal. Todos os indivíduos têm um incentivo para «desertar»
para o campo do comportamento individualmente racional.
Suponhamos que os camponeses compreendiam a estrutura
da sua situação e, portanto, concordavam em suspender o
derrube de árvores. Então, qualquer camponês poderia
pensar que aumentaria pessoalmente o seu rendimento
através do abate de árvores (lembremo-nos de que o derrube
apenas numa parcela não provoca erosão significativa do
solo). Mas o que se aplica a um, aplica-se a todos e, portanto,
poderiam começar todos a limpar as suas parcelas para
conseguir uma vantagem individual. Mesmo fazendo um
acordo, todos têm uma boa razão para o desrespeitar. Desta
forma, a posição colectivamente racional é instável e os

29
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

indivíduos tenderão a abandoná-la, mesmo conhecendo as


consequências de todas as pessoas agirem dessa forma.
Com isto em mente, uma forma de pensar acerca do
argumento de Hobbes é afirmar que, no estado de natureza,
o comportamento individualmente racional é atacar os outros
(pelas razões que já vimos) e isto conduzirá ao estado de
guerra. No entanto, as Leis da Natureza dizem-nos que o
estado de guerra não constitui a situação inevitável porque
se poderá adoptar outro nível de comportamento — a racio-
nalidade colectiva. Se pudéssemos, de alguma forma, ascen-
der ao nível da racionalidade colectiva e obedecer às Leis da
Natureza, poderíamos viver em paz, sem medo.
A questão agora é saber se Hobbes pensava que, no esta-
do de natureza, cada pessoa tem o dever de obedecer às Leis
da Natureza e, em caso afirmativo, se o reconhecimento de
tal dever deveria ser suficiente para levar as pessoas a cum-
prir as Leis. A resposta de Hobbes é subtil, a este respeito.
Afirma que as Leis sujeitam «in foro interno» (no foro íntimo),
mas nem sempre «in foro externo» (no foro público). O que
quer dizer é que todos deveríamos desejar que as Leis se
aplicassem e tomá-las em consideração nas nossas delibera-
ções, mas isto não significa que deveríamos sempre obede-
cer-lhes, independentemente das circunstâncias. Se as outras
pessoas à minha volta desobedecem às Leis, ou, como acon-
teceria frequentemente no estado de natureza, se tenho
suspeitas razoáveis de que as violarão, é simplesmente estú-
pido e prejudicial para mim próprio obedecer-lhes. Se
alguém obedece, nestas circunstâncias, tornar-se-á «ele pró-
prio presa dos outros e provocará a sua destruição certa»
(Leviatã, 215). (Na linguagem técnica da teoria dos jogos
contemporânea, quem age desta forma é um «lorpa»!)
Em suma, a posição de Hobbes é a de que temos o dever
de obedecer às Leis da Natureza quando sabemos (ou
podemos razoavelmente supor) que os outros à nossa volta
lhes obedecem igualmente e, portanto, a nossa obediência
não será explorada. Mas, se o indivíduo se encontrar numa
posição de insegurança, a tentativa de buscar a paz e agir

30
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

com virtude moral conduzirá à sua destruição certa e, por


isso, permite-se-lhe «utilizar todas as vantagens da guerra».
Assim, não parece que o verdadeiro argumento seja exacta-
mente que as noções morais não têm qualquer aplicação no
estado de natureza, mas que, no estado de natureza, o nível
de suspeição e receio mútuos é tão elevado que, geralmente,
poderemos ser desculpados por não obedecer à lei. Devemos
agir moralmente apenas quando podemos estar certos de
que quem nos rodeia faz o mesmo, mas isto é tão raro no
estado de natureza que, na verdade, as Leis da Natureza
raramente serão cumpridas.
Hobbes encontra uma saída para esta situação difícil na
criação da figura de um soberano que puna com severidade
quem desobedecer às Leis. Se o soberano for eficaz a cingir o
povo às Leis, então, e só então, ninguém poderá ter uma
suspeita razoável de que os outros o atacarão. Nesse caso,
deixará de haver desculpa para desencadear uma invasão. A
grande vantagem do estado, afirma Hobbes, é criar as condi-
ções nas quais as pessoas podem obedecer em segurança às
Leis da Natureza.
Temos de concluir esta secção recordando a descrição de
Hobbes do estado de natureza. É um estado no qual todos
suspeitam, com razão, de todos os outros, e esta suspeição,
não sendo mero egoísmo nem sadismo, leva a uma guerra na
qual as pessoas atacarão para obter lucros, segurança e repu-
tação. A guerra auto-alimenta-se e perpetua-se, pois a sus-
peita razoável de um comportamento violento por parte de
outrem conduz a uma espiral crescente de violência. Numa
tal situação, a vida é verdadeiramente desgraçada, não ape-
nas atormentada pelo medo, mas também desprovida dos
confortos materiais e das fontes de bem-estar. Como nin-
guém pode estar certo de conseguir guardar os seus haveres,
poucos semearão ou cultivarão, ou envolver-se-ão em qual-
quer empresa ou projecto de longo prazo. As pessoas passa-
rão todo o seu tempo a procurar subsistir e a lutar entre si.
Nestas circunstâncias, não há absolutamente qualquer hipó-
tese de as artes e as ciências conseguirem prosperar. As

31
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

nossas breves vidas seriam vividas sem nada que as fizesse


valer a pena.

Locke

O Estado de Natureza e o Estado de Guerra — que, apesar de


tudo, alguns Homens confundiram — estão tão distantes entre si
como um Estado de Paz, Boa Vontade, Auxílio Mútuo e Preser-
vação está de um Estado de Inimizade, Maldade, Violência e Des-
truição Mútua.
John Locke, Segundo Tratado sobre o Governo, s. 19, p. 280)

Nos meios académicos, discute-se se Locke tinha em


mente Hobbes quando escreveu esta passagem (publicada
em 1689). O seu alvo oficial era a perspectiva de Sir Robert
Filmer (1588-1653), defensor da doutrina do Direito Divino
dos Reis — que o rei governava com autoridade concedida
por Deus. Apesar disso, é difícil negar que, em inúmeros
pontos, Locke parece discutir ideias de Hobbes, cujo trabalho
devia conhecer bem. Como veremos, a comparação das duas
descrições do estado de natureza lança luz sobre ambas.
Embora, como vimos, Hobbes identificasse o estado de
natureza com o estado de guerra, Locke faz questão de sub-
linhar que isto se trata de um erro. Locke supunha que seria
geralmente possível viver uma vida aceitável mesmo na
ausência de governo. A nossa questão é saber como chegou
Locke a essa conclusão. Ou, por outras palavras, em que
sentido, segundo Locke, cai Hobbes em erro?
Comecemos pelo início. O estado de natureza, diz Locke,
é, em primeiro lugar, um estado de perfeita liberdade; em
segundo lugar, um estado de igualdade; e, em terceiro lugar,
é regido por uma Lei da Natureza. Verbalmente, claro está,
esta parece ser exactamente a opinião de Hobbes. Mas Locke
dá a cada um destes três elementos uma interpretação com-
pletamente diferente. O princípio da igualdade de Hobbes
consistia numa afirmação das capacidades mentais e físicas
de todas as pessoas. Para Locke, trata-se de uma afirmação

32
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

moral relativa a direitos: nenhuma pessoa tem o direito


natural de subordinar outra. Esta afirmação visava explici-
tamente aqueles que, incluindo Filmer, aceitavam a perspec-
tiva feudal de uma hierarquia natural, encabeçada por um
soberano que governava por nomeação divina. Filmer defen-
dia que Deus nomeara Adão como primeiro soberano e os
monarcas contemporâneos podiam fazer remontar os seus
títulos à nomeação inicial de Deus. Para Locke, é evidente
que ninguém tem naturalmente o direito de governar, no
sentido em que ninguém foi nomeado por Deus com essa
finalidade. Embora Hobbes não estivesse a referir-se a isto
no seu pressuposto de igualdade, aceitaria a perspectiva de
Locke, neste ponto. Hobbes pensava que, fosse quem fosse
que, na realidade, exercia o poder sobre a comunidade, este
seria, por essa razão, reconhecido como seu soberano.
Todavia, há grande discordância entre ambos no que toca
à natureza e conteúdo da Lei da Natureza. Para Hobbes, a
Lei da Natureza fundamental era procurar a paz, se os
outros o fizerem; mas, em caso contrário, fazer uso das van-
tagens da guerra. Esta e as outras dezoito Leis de Hobbes
eram consideradas «teoremas da razão». Também Locke
pensa que a Lei da Natureza é discernível através da razão,
mas a Lei de Locke possui um aspecto teológico que se
encontra ausente das Leis de Hobbes. A Lei, afirma Locke, é
que ninguém deve prejudicar outrem, a sua saúde, a sua
liberdade ou os seus haveres. A razão para tal, segundo
Locke, é que, embora não tenhamos superiores naturais na
Terra, temos um no Céu. Por outras palavras, somos todos
criaturas de Deus, sua propriedade, postos na Terra para o
servir, «criados para fazer perdurar o seu prazer, e não os
prazeres uns dos outros». Por conseguinte, «Cada um […]
está obrigado a autopreservar-se, e a não abandonar o seu posto
de livre vontade; assim, e pela mesma razão, quando a sua
própria Preservação não está em jogo, deve, na medida do
possível, preservar o resto da Humanidade» (Segundo Tratado,
s. 6, p. 271). A Lei da Natureza, para Locke, é simplesmente a
ideia de que a humanidade deve ser preservada na medida

33
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

do possível. Assim, afirma Locke, temos o dever claro de não


prejudicar os outros, no estado de natureza (excepto com
fins restritos de autodefesa), e temos mesmo o dever de os
ajudar, se tal for possível sem nos prejudicarmos a nós pró-
prios.
É então claro que Hobbes e Locke têm opiniões substan-
cialmente diferentes acerca da natureza e do teor das Leis da
Natureza. Há uma diferença ainda maior na utilização que
ambos dão à expressão «liberdade natural». Para Hobbes,
como vimos, dizer que temos liberdade natural equivale a
dizer que muitas vezes pode ser completamente racional, e
estar para lá de qualquer crítica moral, fazer seja o que for
que consideremos necessário para assegurar a nossa própria
sobrevivência, mesmo que isso signifique atacar um inocen-
te. O entendimento de Locke é muito diferente, afirmando
que, embora o estado de natureza «seja um estado de Liberdade,
não é um estado de Indisciplina […] O estado de Natureza tem
uma Lei da Natureza a regê-lo, a que todos têm de se subme-
ter» (Segundo Tratado, s. 6, pp. 270-1).
Assim, a liberdade natural, segundo o ponto de vista de
Locke, não é mais do que a liberdade de fazer o que a Lei
Natural permite. Ou seja, é-nos dada a liberdade de fazer
apenas o que é moralmente permitido. Deste modo, por
exemplo, embora a Lei Natural de Locke me impeça de
violar a propriedade alheia, isso não representa, de forma
alguma, uma limitação da minha liberdade. Locke discorda-
ria certamente da afirmação de Hobbes de que no estado de
natureza todos têm direito a tudo, mesmo aos corpos dos
outros (embora aceitasse que temos direitos consideráveis de
autodefesa).
Estas diferenças entre Hobbes e Locke serão suficientes
para justificar a conclusão de Locke de que o estado de natu-
reza não é necessariamente um estado de guerra? É clara-
mente importante para Locke a noção de que mesmo no
estado de natureza temos o dever moral de refrear o nosso
comportamento. Mas isto, por si só, não parece bastar para
demonstrar a inexistência do medo e da suspeita no estado

34
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

de natureza. E, como defende Hobbes, o medo e a suspeição


poderão ser suficientes para fazer o estado de natureza
degenerar em guerra. De forma a evitar isto, Locke estipula
não só que o estado de natureza se submeta à avaliação
moral, como também pensa que, de alguma forma, as pes-
soas se sentirão motivadas para agir em conformidade com a
Lei da Natureza.
Isto sugere uma estratégia cuja finalidade será resistir à
conclusão pessimista de Hobbes. Hobbes defendeu que os
seres humanos seriam impelidos pela busca da felicidade (a
satisfação contínua dos seus desejos), e isto, pelo menos
inicialmente, condu-los ao conflito. Se Hobbes tiver descrito
incorrectamente a motivação humana — se os seres huma-
nos, digamos, forem real e consideravelmente altruístas —
poderá facilmente alcançar-se a paz. Esta poderá ser uma via
para a conclusão de Locke. É esta a via seguida por Locke?
Locke não apresenta explicitamente uma teoria da motivação
humana nos Dois Tratados, mas parece claro que não pensava
que os seres humanos se sentiriam automaticamente moti-
vados para seguir a lei moral. Na verdade, chega quase a
parecer Hobbes: «A Lei da Natureza, como todas as outras
Leis que dizem respeito aos Homens neste Mundo, seria vã,
se não existisse alguém que, no estado de natureza, tivesse
Poder para Executar a Lei e, assim, preservar os inocentes e
desencorajar os transgressores» (Segundo Tratado, s. 7, p. 271).
Por outras palavras, a Lei da Natureza, como todas as leis,
precisa de quem a faça cumprir. Sem esse executor, seria vã.
Hobbes está perfeitamente preparado para aceitar que, no
estado de natureza, as suas Leis da Natureza são ineficazes.
Contudo, ao contrário de Hobbes, Locke não consegue acei-
tar que a Lei da Natureza possa ser vã: afinal, segundo a
perspectiva de Locke, trata-se da lei de Deus e este, presu-
mivelmente, nada faz em vão. Por conseguinte, é forçoso que
exista um modo de implementar a lei; alguém que tenha o
poder de a fazer cumprir. Mas somos todos iguais, no estado
de natureza, e, por isso, se alguém detém tal poder, todos
terão de o deter. Portanto, conclui Locke, tem de existir um

35
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

direito natural, que assiste a todas as pessoas, de punir aque-


les que transgridem a Lei da Natureza. Cada um de nós tem
o direito de punir aqueles que prejudicam a vida, a liberdade
ou a propriedade de outrem.
O direito de punir não é a mesma coisa que o direito à
autodefesa. Não é simplesmente o direito de tentar evitar ou
esquivar-se a um episódio particular de prejuízo ou dano; é o
direito de fazer pagar pela sua transgressão aquele que
transpõe os limites da Lei da Natureza. A «estranha doutri-
na», como Locke lhe chama, desempenha um papel muito
importante na derivação da sua perspectiva do estado de
natureza. Se a Lei da Natureza puder ser posta em prática,
teremos boas razões para esperar que a vida possa ser relati-
vamente pacífica. Os prevaricadores devem ser punidos
como forma de reparação e também como modo de os
refrear ou impedir de praticar actos similares no futuro:
«Toda a Transgressão deve ser punida no Grau, e com a Seve-
ridade suficientes para que o Transgressor perceba que não
valeu a pena, se arrependa e os outros se sintam aterroriza-
dos de modo a não quererem fazer o mesmo» (Segundo Tra-
tado, s. 12, p. 275). É importante que este direito natural de
punir não se restrinja ao indivíduo que sofre a transgressão.
Se assim fosse, era óbvio que os assassinos ficariam por
punir, mas, mais importante, a vítima pode não ter suficiente
força ou poder para subjugar e exigir reparação ao transgres-
sor. Assim, Locke defende que quem viola a lei constitui
uma ameaça para todos, pois tenderá a debilitar a nossa paz
e segurança, e, por isso, toda a pessoa no estado de natureza
possui aquilo que Locke chama «Poder Executivo da Lei da
Natureza». Locke tem em mente a noção de que os cidadãos
cumpridores da lei, indignados perante a transgressão, se
juntarão à vítima para entregar o vilão à justiça e de que,
juntos, terão poder para o fazer.
Locke reconhece que a afirmação de que todos temos um
direito natural de punir os transgressores pode parecer
surpreendente. Contudo, em reforço da sua ideia, afirma
que, sem ele, é difícil ver como o soberano de um qualquer

36
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

estado pode ter o direito de punir um estrangeiro que não


tenha reconhecido as leis. Se o estrangeiro não reconheceu as
leis do soberano, também não aceitou que a sua transgressão
implica uma punição. Por conseguinte, tal pessoa não poderá
ser punida justamente, a menos que exista uma qualquer
espécie de direito natural de punir. Com efeito, o soberano
encontra-se no estado de natureza com o estrangeiro e, por-
tanto, o comportamento do soberano não é sancionado pelas
leis do país, mas pelo Poder Executivo da Lei da Natureza.
(De facto, veremos no próximo capítulo que Locke tem uma
estratégia mais óbvia para explicar o direito do soberano: a
de que o estrangeiro reconhece tacitamente a lei.)
Se a Lei da Natureza pode ser implementada, então há
inúmeros outros direitos que podem ser assegurados, mes-
mo no estado de natureza. Para Locke, o mais importante
destes é o direito à propriedade privada. Antevê-se já qual
será a forma básica assumida pelo argumento. Deus pôs-nos
na Terra, e seria absurdo pensar que nos pôs aqui para mor-
rermos à fome. Mas é o que acontecerá se não nos for dado o
direito de consumir objectos como maçãs e bolotas; além
disso, ainda viveremos melhor se os indivíduos puderem
possuir, em segurança, parcelas de terreno das quais terão o
direito de excluir os outros. Só assim poderemos cultivar a
terra e assegurar o usufruto dos seus produtos. (Analisare-
mos este argumento com maior pormenor no Capítulo 5.)
Para o leitor moderno, a contínua invocação de Deus e
dos seus desígnios na argumentação de Locke pode parecer
um estorvo. Não será possível considerar questões de filoso-
fia política fora de um enquadramento teológico? Contudo,
Locke faz igualmente apelo à «razão natural» ao estabelecer
as premissas dos seus argumentos, apesar de lhe atribuir um
papel menor. Assim, por exemplo, considera absurdo, e
contrário à razão natural, supor que os seres humanos não
deverão fazer uso da terra sem a permissão de todos os
outros, pois, se assim fosse, morreríamos todos à fome. Este
argumento alternativo parece certamente plausível e, portan-
to, alguns seguidores de Locke mostraram-se dispostos a

37
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

abandonar os fundamentos teológicos da sua opinião, a


favor desta abordagem com base na «razão natural».
Mas regressemos ao argumento principal. Até ao momen-
to, a diferença central entre Hobbes e Locke parece ser esta:
Locke pensa que, mesmo no estado de natureza, há uma lei
moral eficaz e que se pode obrigar a cumprir, apoiada no
direito natural de punir, ao passo que Hobbes se mostraria
consideravelmente céptico em relação a esta afirmação.
Podemos imaginar a resposta de Hobbes a Locke. Segundo
Hobbes, a única forma de subjugar qualquer poder passa
obrigatoriamente pelo exercício de um poder maior. Assim,
poderíamos juntar-nos todos contra um vilão para exigir
reparação e impedir a realização de tais actos no futuro. Mas,
depois, o vilão — que poderia muito bem não ser uma pes-
soa razoável e ter amigos de índole semelhante — poderia
regressar, armado, com reforços, para se vingar. Pensamen-
tos como este podem agir como poderoso desincentivo sobre
aqueles que estão a pensar exercer o seu poder executivo da
lei da natureza. Se se deseja evitar dissabores no futuro, o
melhor é não se envolver, no presente. Por isso, Hobbes
provavelmente afirmaria que, mesmo que as pessoas tives-
sem um direito natural de punir os agressores, este raramen-
te seria exercido com alguma eficácia, a menos que existisse
uma autoridade única e estável: por exemplo, um líder reco-
nhecido no seio de uma tribo ou grupo que resolvesse dispu-
tas e implementasse decisões. Mas esse seria já um estado
incipiente. Assim, no estado de natureza, mesmo a existir
um direito de punir, este revelar-se-ia ineficaz como meio
para alcançar a paz.
Contudo, há ainda assim uma diferença aparentemente
vital entre Hobbes e Locke que não mencionei até ao
momento. Recordemos que, para Hobbes, um dos factores
decisivos que levava as pessoas ao conflito era uma escassez
natural de bens. Duas pessoas desejariam frequentemente a
mesma coisa e isto torná-las-ia inimigas. Por outro lado,
Locke parece partir de um pressuposto muito diferente: a
natureza é pródiga. Há uma abundância natural de terra,

38
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

imenso espaço para todos, em especial «nas primeiras Eras


do Mundo, quando os Homens corriam maior perigo de se
perderem, afastando-se dos seus Companheiros, na então
enorme Vastidão da Terra, do que de se sentirem limitados
por falta de espaço para cultivar» (Segundo Tratado, s. 36, p.
293). Assim, prossegue Locke, nestas condições não há gran-
de razão para se iniciarem conflitos e disputas. Presumivel-
mente, a maior parte das pessoas preferiria cultivar a sua
própria parcela do que invadir a do vizinho e, portanto, é de
esperar um clima relativamente pacífico e poucas fontes de
discórdia. A estar correcto este raciocínio, a paz no estado de
natureza seria assegurada não apenas pelo direito natural de
punir, mas também, e igualmente importante, pelo facto de
só raramente ser necessário aplicá-lo.
Isto será plausível? Hobbes certamente observaria que a
abundância de terra não exclui a escassez de bens finais e
consumíveis. Muitas vezes, dará menos trabalho roubar o
produto alheio do que fazer o esforço de lavrar, semear e
colher. Além disso, se os outros fizerem uma reflexão seme-
lhante, estarei a desperdiçar energia ao cultivar a minha
própria terra pois, como Hobbes afirmou, o que eu produzir
acabará nas mãos dos outros. Para Locke refutar isto terá de
provar ou que o direito natural de punir pode ser usado
eficazmente, ou que os seres humanos têm uma forte moti-
vação para obedecer à lei moral. De outro modo, uns quan-
tos indivíduos muitíssimo anti-sociais poderiam estragar as
coisas a todos os outros.
Na verdade, Locke quase admite que o estado de nature-
za poderá não ser tão pacífico quanto ele inicialmente supôs.
Afinal, Locke tem de ter o cuidado de não o pintar em tons
demasiado idílicos, pois, se assim fosse, teria muita dificul-
dade em explicar por que o abandonámos e criámos o esta-
do. A falta original prende-se com a administração da justi-
ça, afirma Locke. Não nos desentendemos por causa de bens,
mas sobretudo a propósito do que a justiça exige. Por outras
palavras, discordaremos quanto à interpretação da Lei da
Natureza; quanto ao facto de ter sido ou não praticada uma

39
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

ofensa; quanto ao castigo adequado e à reparação justa. E


poderemos não ter poder para aplicar o que no nosso enten-
der é o castigo adequado. Assim, a tentativa de administrar
justiça — mesmo entre os supostos cumpridores da lei — é,
em si, uma fonte poderosa de discórdia. Locke vê este facto
como o principal «inconveniente» do estado de natureza. A
única coisa que evita problemas maiores é o pensamento de
que, dada a abundância inicial de terra, as disputas seriam
poucas.
Mas Locke percebe que a abundância inicial de terra
acabará por se tornar escassez: não devido ao enorme cres-
cimento demográfico, mas por causa da avidez e da «inven-
ção» do dinheiro. Antes da existência do dinheiro, ninguém
teria motivo para ocupar mais terra do que a necessária à
sobrevivência da sua família. Se se produzisse mais do que
se conseguia consumir, as coisas acabariam por estragar-se
— a menos que se conseguissem trocar por algo mais dura-
douro. Existindo o dinheiro, estas trocas tornam-se fáceis e é
possível acumular grandes quantias de dinheiro sem o risco
de se estragar. Isto dá às pessoas um motivo para cultivar
mais terra e produzir bens para vender. Assim, a pressão
sobre a posse da terra aumenta e esta, apenas por esta razão,
torna-se escassa. Mas Locke não diz que tal escassez dá
origem ao estado de guerra hobbesiano, embora reconheça
que, uma vez existindo pouca oferta de terra e tornando-se
esta objecto de disputa, os inconvenientes do estado de
natureza multiplicar-se-ão indefinidamente. Torna-se impe-
rativo criar um governo civil. Assim, embora seja inicialmen-
te pacífico, o estado de natureza, mesmo para Locke, acabará
por tornar-se quase insuportável.

Rousseau

Todos os filósofos que investigaram os fundamentos da socieda-


de sentiram necessidade de retroceder até um estado de natureza,
mas nenhum chegou lá […]. Em suma, todos eles, insistindo
constantemente em necessidades, avidez, opressão, desejos e

40
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

orgulho, transferiram para o estado de natureza ideias que foram


adquiridas em sociedade. E, assim, em vez de falarem do selva-
gem, descreveram o homem social.
(Rousseau, Discurso sobre a Origem e os Fundamentos
da Desigualdade entre os Homens, 50)

Uma forma de evitar as conclusões pessimistas de Hobbes


acerca do estado de natureza é partir de premissas diferen-
tes. A vida sem o estado poderia parecer uma possibilidade
muito mais atraente se adoptássemos uma teoria diferente
acerca da natureza e motivação humanas. Hobbes afirma
que as pessoas buscam continuamente a felicidade — o
poder para satisfazerem quaisquer desejos que possam ter
no futuro. Isto, juntamente com o medo e a suspeição dos
congéneres humanos, numa situação de escassez, sustenta o
argumento de um estado de guerra. Mas suponhamos que
Hobbes está completamente enganado. Suponhamos que as
pessoas, natural e espontaneamente, desejam ajudar-se
mutuamente, sempre que o podem fazer. Talvez, ao invés de
competir numa luta pela existência, os seres humanos se
entreajudassem e agissem em prol do conforto uns dos
outros. Se assim fosse, o estado de natureza seria muito
diferente.
Embora Rousseau não formule estes princípios optimistas
acerca da bondade natural dos seres humanos, a sua pers-
pectiva dá um passo substancial nesta direcção. Como Hob-
bes e Locke, Rousseau parte do princípio de que os seres
humanos são sobretudo motivados pelo desejo de autopre-
servação. No entanto, pensa que a questão não se esgota
aqui. Hobbes e Locke ignoraram um aspecto central da
motivação humana — a piedade ou compaixão — e, assim,
sobrestimaram as probabilidades de conflito, no estado de
natureza. Rousseau pensa que temos «uma repugnância
inata em assistir ao sofrimento de uma criatura congénere»
(Discurso sobre as Origens e os Fundamentos da Desigualdade
entre os Homens, [doravante referido como Discurso sobre as
Origens da Desigualdade], p. 73). Isto, acrescenta ele, é «tão
natural que as próprias bestas dão por vezes prova disso».

41
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

A compaixão, defende Rousseau, actua como uma pode-


rosa limitação dos impulsos que poderiam conduzir ao
ataque e à guerra.

É esta compaixão que nos impele, sem reflectirmos, em auxílio de


quem sofre; é ela que, num estado de natureza, substitui as leis, a
moral e a virtude, com a vantagem de ninguém ser tentado a desobe-
decer à sua voz suave; é ela que evitará sempre que um vigoroso sel-
vagem roube a uma frágil criança ou a um débil ancião o sustento que
estes terão adquirido com esforço e dificuldade, se aquele vir uma pos-
sibilidade de se sustentar por outros meios. (Discurso sobre as Origens
da Desigualdade, p. 76)

Rousseau não duvida de que, se os cidadãos modernos,


moldados e corrompidos pela sociedade, fossem colocados
num estado de natureza, agiriam como Hobbes prevê. Mas
tanto Hobbes como Locke projectaram as qualidades do
homem da sociedade (ou mesmo o homem da sociedade
burguesa) no homem selvagem. Ou seja, apresentaram tra-
ços socializados como se fossem naturais.
A isto, Rousseau junta uma segunda afirmação. Quando
compreendemos o comportamento do «homem selvagem»
— simultaneamente motivado pela autopreservação e pela
piedade — percebemos que o estado de natureza está muito
longe do estado de guerra hobbesiano e é mesmo, em muitos
aspectos, preferível a uma condição mais civilizada. Isto não
significa que Rousseau advogue o regresso ao estado de
natureza, pois isso ser-nos-ia impossível, por estarmos cor-
rompidos e amolecidos pela sociedade. Ainda assim, para
Rousseau é de alguma forma motivo de mágoa termo-nos
civilizado. Isto porque Rousseau assumiu uma posição extre-
ma, e extremamente sombria, em relação ao progresso
humano. O seu tratado sobre a educação, Émile, inicia-se da
seguinte forma: «Deus faz todas as coisas boas; o homem
intromete-se e elas tornam-se más». E o seu ensaio anterior, o
Discurso sobre as Artes e as Ciências, defende que o desenvol-
vimento das artes e das ciências fez mais para corromper do
que para purificar a moralidade.

42
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

No entanto, é importante esclarecer que a afirmação de


Rousseau de que os seres humanos são naturalmente moti-
vados pela piedade ou pela compaixão é muito diferente da
perspectiva que atribuímos a Locke na secção anterior: a de
que os seres humanos, no estado de natureza, respeitarão
frequentemente os direitos de cada um. Como Hobbes, Rous-
seau afirma que as noções de lei, direito e moralidade não
têm lugar no estado de natureza e, portanto, é claro que não
pode querer dizer que as pessoas sentem um impulso natu-
ral para seguir uma lei moral. Mas, de modo diferente de
Hobbes e Locke, Rousseau afirma que, geralmente, tentamos
não prejudicar os outros, não por reconhecermos que fazer
mal é imoral, mas porque temos aversão a fazer mal, mesmo
sem ser a nós próprios. Somos naturalmente compassivos e
ficamos perturbados com o sofrimento alheio. Por isso,
fazemos os possíveis para o evitar.
É certamente muito plausível que os seres humanos, por
natureza, sejam compassivos. Mas bastará isto para evitar a
eclosão da guerra, na ausência de governo? O problema é
que Rousseau atribuiu ao homem natural dois impulsos —
autopreservação e compaixão — e parece mais do que possí-
vel que ambos entrem em conflito. Se alguém possuir o que
julgo necessário à minha preservação, e só lho puder tirar
fazendo-lhe mal, o que faria eu — ou, melhor, o selvagem?
Seria caso raro uma criatura — qualquer que seja — colocar
o bem-estar alheio acima da sua sobrevivência. Como conse-
quência, se os bens forem escassos, a influência da piedade
terá forçosamente de se esbater. Rousseau admite-o, mais ou
menos. A piedade impede que o selvagem roube os fracos ou
doentes, desde que pense poder vir a encontrar sustento
noutro local. E se houver pouca esperança de que isto se
verifique? Talvez, então, numa situação de escassez sofra-
mos a dobrar. Não só nos veríamos num estado de guerra,
como nos sentiríamos destroçados pelo mal que infligiría-
mos aos nossos congéneres humanos. O argumento principal
contudo, é que, numa situação de escassez, a compaixão
natural não parece bastar para afastar a ameaça de guerra.

43
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Rousseau tenta evitar este tipo de problema supondo que


o homem selvagem tem desejos frugais e, para a satisfação
desses desejos, é mais provável que obtenha os bens caçando
ou recolhendo do que tirando aos outros. Isto não se deve à
munificência da natureza, mas ao facto de o selvagem, afir-
ma Rousseau, ser um ser solitário, que raramente entra em
contacto com os outros. Na verdade, nem sequer existiriam
famílias. Rousseau especula, afirmando que os filhos aban-
donariam as mães mal conseguissem sobreviver por si e que,
entre os selvagens, não haveria uma união permanente entre
homem e mulher. A compaixão não é um sentimento sufi-
cientemente forte para criar laços familiares.
Parte da explicação adiantada por Rousseau para a vida
solitária do selvagem baseia-se no facto de, segundo o filóso-
fo, a natureza ter equipado o selvagem para sobreviver
sozinho. Espadaúdo e de pés ligeiros, não apenas à altura
dos animais selvagens como geralmente isento de doenças
(que Rousseau considera consequência de complacência e
hábitos malsãos), o selvagem deseja apenas comida, satisfa-
ção sexual e sono, e teme tão-somente a fome e a dor.
A solidão natural elimina qualquer desejo de «glória» ou
reputação, pois o selvagem não se interessa pelas opiniões
dos outros. Na verdade, como Rousseau afirma que, neste
estádio, o selvagem não desenvolveu ainda a linguagem, as
oportunidades de formar e exprimir opiniões parecem subs-
tancialmente limitadas. Da mesma forma, o selvagem não
tem qualquer desejo de poder. Hobbes, como vimos, definiu
poder como «meio presente para satisfazer desejos futuros».
Mas, argumenta Rousseau, o selvagem tem pouca visão
prospectiva e mal consegue antecipar desejos futuros, quan-
to mais procurar os meios para os satisfazer! Rousseau com-
para o selvagem com o caribenho contemporâneo, o qual,
afirma, «nos venderá imprevidentemente a cama de algodão
de manhã e virá ter connosco à noite, a choramingar e a
querer comprá-la de volta, não tendo previsto que precisaria
dela na noite seguinte» (Discurso sobre as Origens da Desigual-
dade, p. 62). Consequentemente, todos os impulsos de guerra

44
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

em Hobbes — desejo de lucro, segurança e reputação —


encontram-se difusos ou ausentes no estado de natureza de
Rousseau.
Ainda assim, apesar do seu carácter relativamente pacífi-
co, o estado de natureza de Rousseau dificilmente surgirá
como uma perspectiva agradável. O selvagem de Rousseau
até pode ser o rei das bestas, mas, apesar de tudo, e tal como
é apresentado, mal se distingue dos restantes animais selva-
gens. O selvagem, afirma Rousseau, é «um animal mais fraco
do que alguns e menos ágil do que outros; mas, em termos
globais, é o mais vantajosamente organizado de todos»
(Discurso sobre as Origens da Desigualdade, 52). Dado que isto é
tudo aquilo de que nos poderíamos gabar no estado de
natureza, por que se lamenta Rousseau de que tenhamos
progredido para uma época mais civilizada? Além disso, é
difícil compreender como seria possível sequer uma tal
transição. Onde está a dinâmica que desencadeará a mudan-
ça, no quadro traçado por Rousseau? Está longe de ser claro
como, mesmo hipoteticamente, poderíamos ter chegado ao
que somos, vindos do que fomos.
O próprio Rousseau admite que o que diz não será mais
do que «conjectura provável», pois a transição podia ter
ocorrido de várias formas. E torna-se necessário reconhecer
que nem sempre é fácil harmonizar tudo o que Rousseau diz
sobre este tema. Todavia, o ponto essencial é que os seres
humanos, de modo diferente das bestas, possuem dois atri-
butos especiais: o livre arbítrio e a capacidade de auto-
aperfeiçoamento. Conforme veremos, segundo supõe Rous-
seau, esta última característica é responsável por todo o
progresso e infortúnio humanos.
Tal como nos foi apresentado até ao momento, o estado
de natureza remonta aos primórdios da pré-história huma-
na: a condição do «homem-criança», que passa o seu tempo
«a vaguear sem destino pelas florestas, sem indústria, sem
linguagem, e sem casa, que desconhece de igual forma a
guerra e os laços, nunca sentindo necessidade das suas cria-
turas congéneres nem desejo de lhes fazer mal, e talvez

45
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

mesmo não as distinguindo umas das outras» (Discurso sobre


as Origens da Desigualdade, 79). Iniciamos o caminho para a
civilização através do primeiro exercício da capacidade de
auto-aperfeiçoamento: o desenvolvimento de instrumentos,
na luta pela sobrevivência, luta essa originada, especula
Rousseau, por um aumento demográfico. É interessante que
Rousseau considere a inovação, e não a competição hobbe-
siana, como reacção primordial à escassez. Neste aspecto,
Rousseau está talvez a basear-se na ideia de que, como o
selvagem tem uma aversão natural a assistir ao sofrimento
dos outros, a maioria preferirá conseguir o necessário traba-
lhando para isso, e não roubando-o. E é a inovação para
tornar mais fácil o trabalho — o fabrico de instrumentos —
que desperta pela primeira vez o orgulho e a inteligência
humanos.
Outra inovação é a ideia de cooperação: os interesses
comuns estabelecem objectivos colectivos, como, por exem-
plo, a formação de grupos de caça. Desta forma, as vanta-
gens de viver em grupos, e de fazer cabanas e abrigos
comuns, tornam-se evidentes, e o hábito de viver nestas
novas condições «deu origem aos melhores sentimentos de
que a humanidade teve experiência: o amor conjugal e o
afecto paternal» (Discurso sobre as Origens da Desigualdade,
88).
Neste estádio, surge outra novidade: o tempo livre. A
cooperação e o fabrico de instrumentos resolvem a escassez
de forma suficientemente satisfatória para que seja possível
criar bens que vão além da resposta às meras necessidades
de sobrevivência. Deste modo, o selvagem começa então a
criar bens de comodidade ou luxo, desconhecidos das gera-
ções anteriores. Todavia, «este foi o primeiro jugo que inad-
vertidamente colocou sobre si mesmo, e a primeira fonte dos
males que preparou para os seus descendentes» (Discurso
sobre as Origens da Desigualdade, 88). Porquê? Porque, então, o
homem desenvolve aquilo a que poderíamos chamar «neces-
sidades corrompidas». Rousseau apresenta uma história
conhecida e plausível. Tornámo-nos dependentes daquilo

46
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

que, inicialmente, era considerado luxo. Possui-lo dá-nos


pouco ou nenhum prazer, mas perdê-lo é dramático — ape-
sar de, em tempos, termos passado muito bem sem ele.
A partir daqui, são introduzidos vários elementos negati-
vos: à medida que as sociedades se desenvolvem, o mesmo
acontece às línguas, e surge a oportunidade de comparar
talentos. Isto dá origem ao orgulho, à vergonha e à inveja.
Pela primeira vez, infligir um dano é tratado como uma
afronta, um sinal de desdém e não simplesmente um malefí-
cio, e os prejudicados começam a querer vingar-se. À medi-
da que o estado de natureza começa a transformar-se, sur-
gem causas de dissensão e discórdia. Mas, ainda assim,
Rousseau afirma que este estádio deve ter sido a mais feliz e
estável das épocas, «a verdadeira juventude do mundo»
(Discurso sobre as Origens da Desigualdade, 91): o meio-termo
exacto entre a indolência e a estupidez naturais do selvagem
e o orgulho inflamado do ser civilizado.
Embora este seja um período estável, não poderia durar
eternamente, e a verdadeira podridão instala-se com o longo
e difícil desenvolvimento da agricultura e da metalurgia.
Daqui, é um pequeno passo até à reivindicação da proprie-
dade privada, e às regras da justiça. Mas a propriedade
privada conduz à dependência mútua, à inveja, à desigual-
dade e à escravidão dos pobres. Por fim:

A destruição da igualdade foi acompanhada das mais terríveis per-


turbações. Usurpações por parte dos ricos, roubos por parte dos
pobres, e as paixões desregradas de ambos, abafaram os gritos da
compaixão natural e a voz ainda ténue da justiça, e encheram os
homens de avareza, ambição e vício. Entre o título de mais forte e o de
primeiro ocupante, surgiram conflitos perpétuos que não cessaram
senão com batalhas e derramamento de sangue. O estado recém-
nascido da sociedade deu assim origem a um horrível estado de guer-
ra. (Discurso sobre as Origens da Desigualdade, 97)

E eis-nos chegados à guerra. Não como parte integrante


do estado inicial de inocência, mas como resultado da cria-
ção das primeiras sociedades rudimentares. Neste ponto, «o
rico, a isso impelido pela necessidade, acabou por conceber o

47
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

plano mais sagaz alguma vez gizado pela mente humana:


usar a seu favor as forças daqueles que o atacavam» (Discur-
so sobre as Origens da Desigualdade, 98). Tratava-se, claro está,
de um plano para instituir regras sociais de justiça por forma
a assegurar a paz: regras que se aplicam a todos por igual,
mas que são muitíssimo vantajosas para os ricos, pois são
eles, afinal de contas, quem possui riqueza a preservar. Desta
forma, nasceram as primeiras sociedades civis — sociedades
com leis e governos. (Veremos, no Capítulo 3, até que ponto
Rousseau considera que estas sociedades estão longe de
serem ideais.) E, mais uma vez, assistimos à emergência da
sociedade civil como reacção a uma situação de guerra, ou
guerra iminente, no estado de natureza.

Anarquismo

Basta de leis! Basta de juízes! Liberdade, igualdade e compaixão


humana prática são as únicas barreiras eficazes que podemos
erguer contra os instintos anti-sociais de alguns de nós.
(Peter Kropotkin, Law and Authority, 1886,
reimpresso em The Anarchist Reader, 117)

Mesmo Rousseau, que acreditava na inocência natural do


homem, pensou que a vida sem governo acabaria por ser
intolerável. No entanto, alguns pensadores anarquistas
tentaram resistir a essa conclusão. William Godwin (1756-
1836), marido de Mary Wollstonecraft (1759-97) (ver Capítu-
lo 3), distinguiu-se de Rousseau em dois aspectos. Primeiro,
os seres humanos, quando «aperfeiçoados», podiam tornar-
se não só não agressivos como muitíssimo cooperativos.
Segundo, este estado favorável aos seres humanos não esta-
va enterrado no passado distante, mas constituía um futuro
inevitável no qual o estado deixaria de ser necessário. Peter
Kropotkin, anarquista russo, perfilhava uma opinião algo
semelhante de que todas as espécies animais, incluindo os
seres humanos, beneficiavam com o «auxílio mútuo» natu-
ral. Esta teoria foi apresentada em alternativa à teoria da

48
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

evolução através da competição, de Darwin. As espécies


mais fortes, sugere Kropotkin, são as mais capazes de desen-
volver a cooperação.
Kropotkin conseguiu reunir provas impressionantes de
cooperação no reino animal e outros anarquistas afirmaram
— sem dúvida correctamente — que há exemplos infindá-
veis de cooperação não coagida entre seres humanos. Muitos
filósofos e estudiosos das ciências sociais admitiram que
mesmo agentes muitíssimo egoístas tenderão a desenvolver
padrões de comportamento cooperativo, quanto mais não
seja por razões puramente egoístas. No longo prazo, a coo-
peração é melhor para cada um de nós. Se o estado de guerra
é prejudicial a todos, então as criaturas racionais e providas
de interesse próprio acabarão por aprender a cooperar.
Mas, como observaria Hobbes de imediato, por muitas
provas que tenhamos da existência de cooperação, e por
racional que esta seja, há igualmente inúmeras provas da
existência de competição e exploração, e também isto parece
muitas vezes racional. E, como a maçã podre, uma pequena
medida de comportamento anti-social consegue transmitir os
seus efeitos maléficos a tudo o que toca. O medo e a suspei-
ção conseguirão corroer e desgastar grande parte da coope-
ração espontânea ou desenvolvida.
Ao anarquista, resta a resposta de que não há maçãs
podres. Ou, pelo menos, se as há, são produto dos governos:
como Rousseau sustenta, ficámos amolecidos e corrompidos.
Os anarquistas afirmam que nós propomos o governo como
remédio para o comportamento anti-social, mas, em geral, os
governos são precisamente a sua causa. Ainda assim, a ideia
de que o estado está na origem de todos os tipos de conflito
entre seres humanos parece inaceitavelmente esperançosa.
De facto, parece que a tese se autodestrói. Se somos todos
naturalmente bons, como surgiu um tal estado despótico,
que origina a corrupção? A resposta mais óbvia é que uns
poucos indivíduos ávidos e ardilosos, recorrendo a vários
meios ignóbeis, conseguiram tomar o poder. Mas, então, se
essas pessoas existiam antes de o estado aparecer — como é

49
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

forçoso que existissem, nos termos desta teoria — não


podemos ser todos naturalmente bons. Por conseguinte,
basearmo-nos até tal ponto na bondade natural dos seres
humanos parece extremamente utópico.
Daí que alguns anarquistas mais ponderados tenham
dado uma resposta diferente. A ausência de governo não
implica que não possa haver formas de controlo social exer-
cido sobre o comportamento individual. A pressão social, a
opinião pública, o receio de uma má reputação, e até os
mexericos, podem ter influência no comportamento indivi-
dual. Aqueles que se comportarem de forma anti-social serão
votados ao ostracismo.
Além disso, muitos anarquistas reconheceram a necessi-
dade da autoridade dos especialistas, na sociedade. Algumas
pessoas sabem melhor como cultivar alimentos, por exem-
plo, e será sensato acatar os seus conselhos. E no seio de
qualquer grupo numeroso são necessárias estruturas políti-
cas que coordenem o comportamento ao nível da grande e
média escala. Por exemplo, em alturas de conflito interna-
cional, mesmo uma sociedade anarquista precisa de generais
e disciplina militar. O acatamento das opiniões dos especia-
listas e a observância das regras sociais podem também ser
fulcrais em tempo de paz.
Afirma-se que tais regras e estruturas não equivalem a
estados, pois permitem que os indivíduos se auto-excluam:
por conseguinte, são voluntárias, num sentido em que
nenhum estado o é. Como veremos no capítulo seguinte, o
estado reivindica um monopólio de poder político legítimo.
Nenhum sistema social anarquista, «voluntarista», faria tal.
Todavia, a existência de pessoas anti-sociais que recusam
ingressar nas fileiras da sociedade voluntária coloca o anar-
quista perante um dilema. Se a sociedade anarquista se
recusar a restringir o comportamento de tais pessoas, correrá
o risco de ver eclodir um conflito grave. Mas se aplicar
regras sociais a essas pessoas, então, de facto, tornar-se-á
indistinguível de um estado. Em suma, à medida que o
quadro da sociedade traçado pelo anarquista se vai tornando

50
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

mais realista e menos utópico, também se torna cada vez


mais difícil distingui-lo de um estado liberal e democrático.
Bem vistas as coisas, talvez nos falte simplesmente uma
descrição de como seria uma situação pacífica, estável e
desejável, na ausência de algo muito semelhante a um estado
(com a excepção das descrições antropológicas de pequenas
sociedades agrárias).
Contudo, como veremos no próximo capítulo, o anar-
quismo não deve ser posto de lado assim tão rapidamente. Já
considerámos algumas das desvantagens do estado de natu-
reza. E as desvantagens do estado? Será racional centralizar
o poder nas mãos de uns quantos? Falta-nos ainda analisar
os argumentos que foram apresentados para justificar o
estado. Se, afinal, estas tentativas de justificação do estado
não forem convincentes, teremos de reconsiderar o anar-
quismo. E, na verdade, precisaremos de abordar novamente
o tema, precisamente por esta razão.

Conclusão

Iniciei este capítulo com a famosa representação de Hob-


bes do estado de natureza como um estado lastimoso de
guerra de todos contra todos. O argumento básico é que os
indivíduos, motivados pelo impulso de «felicidade», entra-
rão inevitavelmente em conflito quando os bens se tornam
escassos, e, na ausência de um soberano, esse conflito agudi-
zar-se-á até se transformar numa guerra total. Como reacção
a este cenário, apresentaram-se inúmeros contra-
argumentos. Locke sugeriu que o estado de natureza era
regido por uma lei moral que podia ser implementada por
qualquer indivíduo. Complementa esta sugestão com a
afirmação de que nos encontramos inicialmente num estado
de abundância, e não de escassez, e com um pressuposto
implícito de que, muitas vezes, as pessoas estarão directa-
mente motivadas para obedecer à lei moral.

51
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Embora Rousseau concorde com Locke quanto a Hobbes


estar errado ao sugerir que a nossa condição natural corres-
ponde a uma escassez extrema, nega que as ideias de mora-
lidade e motivação moral tenham qualquer lugar no estado
de natureza. Em vez delas, propõe a piedade natural, ou
compaixão, como obstáculo à eclosão da guerra, observando
incisivamente que não podemos dizer como se comportaria o
«homem natural» com base nas nossas observações do
«homem civilizado». Mas, por fortes que estas reacções
sejam a Hobbes, tanto Locke como Rousseau reconhecem
que as causas que contrariam a guerra, por eles identificadas,
apenas servem para adiar o rebentar de um conflito grave e
não o evitarão eternamente.
Os anarquistas são mais optimistas nas suas tentativas de
evitar esta conclusão. Considerámos três estratégias princi-
pais para defender a posição anarquista. A primeira consistia
em defender que a cooperação se desenvolveria no estado de
natureza, mesmo entre criaturas providas apenas de interes-
se próprio. A segunda era afirmar que os seres naturais são
naturalmente bons. A terceira, e mais plausível, é o recurso
ao argumento de que é possível criar estruturas e regras
sociais e políticas — não propriamente um estado — que
corrijam os defeitos do estado de natureza. Todavia, confor-
me sugeri, a diferença entre o anarquismo racional e a defesa
do estado torna-se infimamente pequena. Creio que, no final,
somos obrigados a concordar com Hobbes, Locke e Rous-
seau. Nada a que se possa genuinamente chamar estado de
natureza constituirá condição — pelo menos no longo prazo
— na qual os seres humanos poderão prosperar. Resta ver se
isto representa uma «refutação» do anarquismo.

52
2
A justificação do estado

Introdução

Tudo o que torna a existência valiosa para uma pessoa baseia-se


na aplicação de restrições às acções das outras pessoas.
(John Stuart Mill, Sobre a Liberdade, 130)

Se os argumentos apresentados no último capítulo estive-


rem correctos, mais tarde ou mais cedo, num grupo humano
de dimensão razoável, a vida no estado de natureza tornar-
se-á intolerável. Poderá dizer-se que esta é uma razão sufi-
ciente para aceitar que o estado se justifica sem necessidade
de outros argumentos. Afinal, temos alguma alternativa real
ao estado? Se concordarmos com a afirmação de John Stuart
Mill (1806-73), de que a vida sem qualquer restrição ao com-
portamento alheio teria pouco ou nenhum valor, e se acredi-
tarmos igualmente que a ideia de «restrições implementá-
veis» sem o estado mais não é do que um pensamento utópi-
co, então qualquer outro argumento relativo à sua justifica-
ção parecerá supérfluo.

53
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

A ausência de uma alternativa real ao estado funciona


como justificação negativa: não conseguimos pensar em
nada melhor. Ainda assim, isto não arruma a discussão
filosófica. O defensor do estado deverá esperar encontrar
algo mais positivo para dizer, por forma a mostrar como o
estado se pode justificar em termos de um raciocínio moral
reconhecido. Ou seja, precisamos de um argumento que
prove a existência de um dever moral de obediência ao esta-
do. Tal argumento permitir-nos-á igualmente compreender
quando o estado pode perder a sua legitimidade, como se
reconheceu em geral que aconteceu, por exemplo, na altura
da queda do antigo bloco soviético. À medida que este capí-
tulo prosseguir, tornar-se-á claro como podemos avançar
uma justificação positiva do estado. Mas, primeiro, devemos
recordar a razão por que está longe de ser óbvio o motivo
pelo qual temos o dever moral de obedecer ao estado.
Como vimos, Locke parte do princípio de que os seres
humanos são naturalmente livres, iguais e independentes.
Isto significa que não se encontram naturalmente sob a
autoridade de qualquer outra pessoa. Assim, as relações
legítimas de poder têm de ser, num certo sentido, artificiais,
uma criação ou construção humana. Deste modo, Locke
concluiu que a única forma de nos pormos sob a autoridade
de outra pessoa é dar a essa pessoa o nosso consentimento
(excepto no caso de castigo justificado). Isto aplica-se, para
Locke, quer a pessoa que reivindica a autoridade seja outro
indivíduo privado ou o soberano. Assim, o soberano que
reivindica autoridade sobre nós não tem qualquer direito a
exercê-la se nós não nos tivermos colocado voluntariamente
nessa posição, dando o nosso consentimento. Portanto, para
Locke, o problema da justificação do estado reside em mos-
trar como a autoridade pode ser conciliada com a autonomia
natural do indivíduo. A sua resposta consiste em recorrer à
ideia do consentimento individual e ao instrumento do
contrato social. Essencialmente, para Locke e para os propo-
nentes da teoria do contrato social, o estado justifica-se se, e

54
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

apenas se, todos os indivíduos sobre os quais aquele reclama


autoridade tiverem manifestado o seu consentimento.
Locke, então, faz parte de uma tradição de filósofos que
atribuem grande peso à ideia da autonomia individual ou
liberdade natural. Segundo estes filósofos, as nossas institui-
ções políticas têm de ser justificadas nos termos da vontade,
das escolhas ou das decisões daqueles sobre os quais exer-
cem autoridade. Trata-se de uma perspectiva bastante apela-
tiva, pois trata com grande respeito todos os indivíduos,
atribuindo-lhes a responsabilidade e a oportunidade de
controlarem os seus próprios destinos através das suas esco-
lhas. Mas há outras abordagens importantes para a defesa do
estado que minimizam a importância atribuída por Locke à
autonomia e colocam outros valores no seu lugar. Na teoria
utilitarista de Jeremy Bentham (1748-1832), por exemplo, o
valor essencial não é a autonomia, mas a felicidade. A teoria
utilitarista, na sua forma mais primária, afirma que devemos
ter como objectivo maximizar a felicidade total da sociedade.
Nesta descrição, o estado justifica-se se, e apenas se, gerar
mais felicidade do que qualquer outra alternativa. O facto de
consentirmos na sua existência é irrelevante. O que importa
é perceber se torna os elementos da sociedade, no seu total,
mais felizes do que estariam sem ele. Este capítulo analisará
a teoria do consentimento e a teoria utilitarista, juntamente
com outras abordagens da defesa moral do estado.

O estado

Antes de decidirmos qual a melhor forma de justificar o


estado, deveríamos definir aquilo de que estamos a falar.
Sabemos, da história e da política contemporâneas, que
existem muitos tipos de estado. É provável que a maioria das
pessoas que lêem estas palavras vivam em democracias
liberais modernas. Outras viverão em ditaduras, benignas ou
tirânicas, assentes no governo militar, em monarquias here-
ditárias ou outras. Alguns estados promovem o mercado
livre, enquanto outros experimentam formas colectivas de

55
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

produção e distribuição. Quando aplicamos a estes estados


reais os modelos teóricos de estado, especialmente dos escri-
tos comunistas e utópicos, poderá parecer que os diferentes
estados reais e possíveis têm tão pouco em comum que
tentar «definir» o estado é uma tarefa condenada ao fracasso.
Apesar disso, observa-se muitas vezes que há algumas
coisas que todos os estados têm em comum. Vimos que
Locke definiu o poder político como o direito de fazer leis, e
também o direito de punir aqueles que não as cumprem.
Não há dúvida de que os estados possuem — ou, pelo
menos, afirmam possuir — poder político. O sociólogo Max
Weber (1864-1920) apresentou uma ideia semelhante, se bem
que numa linguagem mais perturbadora: os estados pos-
suem o monopólio da violência legítima. No seio de qual-
quer estado, a violência ou coacção é vista principalmente
como assunto desse estado, quer directamente, através dos
seus agentes — a polícia e os tribunais — quer indirectamen-
te, através das permissões que concede aos cidadãos de
serem violentos, em determinadas ocasiões: em autodefesa,
por exemplo. Toda a violência ou coacção legítima é exercida
ou supervisionada pelo estado.
A contrapartida disto é o estado aceitar a responsabilida-
de de proteger da violência ilegítima todos aqueles que
residem no interior das suas fronteiras. É certamente por esta
razão apenas que estamos dispostos a conceder ao estado o
monopólio da violência. Abdicamos do direito de nos prote-
germos a nós próprios com base no entendimento de que
não precisaremos de exercer a autoprotecção: o estado fará o
que for necessário, em nosso lugar.
Assim, afirma-se com frequência que o estado possui
duas características fundamentais: detém um monopólio de
coerção ou violência legítima e propõe-se proteger todos
aqueles que se encontrem no seu território. Será esta uma
«definição» de «o estado»? Uma objecção muitas vezes colo-
cada a esta afirmação é ser perfeitamente óbvio que nenhum
estado real pode corresponder a este ideal. Nenhum estado
pode verdadeiramente monopolizar a violência, assim como

56
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

não poderá proteger todas as pessoas no seu território. Basta


que pensemos na taxa de homicídios de qualquer grande
cidade e nas precauções que os cidadãos normais sentem
necessidade de tomar por forma a assegurar a sua segurança
pessoal. O que dizemos sobre esses casos é que certos esta-
dos não conseguem monopolizar a violência e, infelizmente,
são mal sucedidos na protecção dos seus cidadãos; não
diríamos que essas sociedades não têm estados. Contudo,
parece que a isso ficaríamos obrigados, se considerássemos
que as duas «características fundamentais» do estado consti-
tuem uma definição.
Em resposta a isto, tem de se sublinhar novamente que a
definição proposta afirma somente que o estado detém um
monopólio da violência legítima. Por conseguinte, a existên-
cia de violência ilegítima é irrelevante. E o estado propõe-se
proteger todos, mesmo que muitas vezes não cumpra aquilo
a que se propõe. Mas estas respostas são problemáticas. Nos
Estados Unidos, muitas pessoas reivindicam o direito de se
armar com fins de autodefesa. Mas não só pensam que lhes
deve ser reconhecido esse direito, como também afirmam
que o governo não tem qualquer autoridade sobre elas,
relativamente a esta questão. Assim, na verdade, o que estas
pessoas defendem, com grande convicção, é que o estado ou
o governo não pode tentar monopolizar os meios de violên-
cia. E o argumento de que o estado oferece protecção a todos
dificilmente parecerá universalmente aceitável. Muitos esta-
dos ignoram simplesmente a condição das minorias, em
especial aquelas que pertencem a determinados grupos
étnicos. Pior ainda, em casos extremos, estas minorias che-
gam a ser alvo de violência ilegítima por parte do estado, sob
a forma de perseguição, purgas ou «limpeza étnica». Assim,
tais estados não possuem uma das características que se
supõe serem apanágio de todos os estados, mas seria absur-
do negar que se tratam de estados.
Deste modo, ambas as características definidoras do
estado são problemáticas. Até ao momento, mais não fize-
mos do que indicar um tipo ideal de estado, aquele que

57
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

possui efectivamente as duas características que indicámos.


Mas deixemos o problema da definição de lado e prossiga-
mos rumo à nossa questão central: como podemos justificar
um tal estado?

O objectivo da justificação

Neste ponto, será útil esclarecer alguma terminologia.


Considera-se muitas vezes que a tarefa de justificar o estado
consiste em mostrar que há obrigações políticas universais.
Dizer que alguém tem obrigações políticas é dizer, pelo
menos, que tem o dever, em circunstâncias normais, de
obedecer à lei do país, incluindo o pagamento dos impostos
sempre que estes são devidos. Podem existir ainda outros
deveres: lutar, se chamado a isso, em defesa do estado; por-
ventura, conduzir-se patrioticamente; ou até procurar e
denunciar os inimigos do estado. Mas concentremo-nos no
dever de obediência à lei.
A obrigação política é a obrigação de obedecer a cada lei
porque é a lei e não necessariamente porque pensamos que
tem qualquer justificação moral independente. A maioria de
nós obedece às leis que condenam o assassínio sem sequer
pensar duas vezes. Se nos perguntassem por que razão não
matamos pessoas, a maior parte de nós certamente respon-
deria que a ideia de fazer isso nunca nos passou pela cabeça
como uma opção séria. Instados a fornecer uma razão,
diríamos provavelmente que matar é errado, ou imoral.
Creio que seria motivo de grande preocupação dizerem-nos
que a principal razão para uma pessoa não matar outras era
o facto de ser ilegal. Portanto, poucas pessoas precisam da lei
para as impedir de assassinar. Assim, temos uma lei que
coincide com o que a moralidade também exige, indepen-
dentemente.
Mas também há leis cujo fundamento não parece ter
grande coisa a ver com a moral. Consideremos as leis de
trânsito, por exemplo. Podemos pensar que temos a obriga-
ção moral de parar num semáforo vermelho num cruzamen-

58
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

to deserto, mas apenas porque é isso que a lei nos diz para
fazer. Claro que, ocasionalmente, as pessoas podem pensar
que aquilo que a lei lhes exige que façam é moralmente
errado. Por exemplo, parte dos nossos impostos é usada para
construir mísseis nucleares e muitos contribuintes pensam
que essa política é moralmente repreensível. Mas, mesmo
neste caso, o «bom cidadão» pode muito bem sentir obriga-
ção de obedecer à legislação fiscal e assim, relutantemente,
continuar a contribuir para este e outros projectos, simples-
mente porque a lei o determina. Esse cidadão poderá supor
que o protesto deverá ser realizado através de outros meios.
A violação da lei só seria apropriada nos casos mais premen-
tes e graves.
Considera-se normalmente que «justificar o estado» signi-
fica mostrar que há obrigações universais de obediência à lei.
Neste contexto, uma obrigação «universal» não significa o
dever de obedecer a todas as leis, em todas as alturas. Só um
determinado e desagradável tipo de fanático poderia pensar
que estamos sempre moralmente obrigados a obedecer à lei,
diga ela o que disser: que, por exemplo, tenho de parar num
semáforo vermelho se estiver a conduzir um moribundo ao
hospital. Ao invés, a ideia é que as obrigações políticas são
universais no sentido de se aplicarem a todas as pessoas que
residem no interior das fronteiras do estado. Pode dar-se o
caso de o estado contemplar a hipótese de isentar certas
pessoas de cumprir certas leis (embora isto seja geralmente
sinal de corrupção), mas o que interessa é que o objectivo da
justificação é mostrar que, em princípio, todas as pessoas que
se encontrem no seu território estão moralmente obrigadas a
obedecer às suas leis e decretos. Vejamos agora se é possível
apresentar tal justificação.

O contrato social

Afirmo ainda que todos os Homens se encontram naturalmente


no [estado de natureza] e assim permanecem até se tornarem,
através do seu próprio Consentimento, Membros de uma Socie-

59
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

dade Política; e estou confiante de que o Seguimento deste Dis-


curso o tornará muito claro.
(Locke, Segundo Tratado, s. 15, p. 278)

Obrigação voluntarista

Iremos usar o termo «voluntarismo» para a perspectiva


mencionada anteriormente e defendida por Locke: o poder
político sobre mim pode apenas ser criado como consequên-
cia dos meus actos voluntários. Outra pessoa só pode ter
poder político sobre mim se eu lhe conceder esse poder.
Esta perspectiva é por vezes expressa nos termos do
chamado princípio da «auto-adopção»: o de que ninguém
tem quaisquer deveres a menos que tenha «adoptado» esses
deveres, ou seja, os tenha aceitado voluntariamente. Consi-
derada literalmente, esta perspectiva é pouco plausível e
deve ser posta de parte. O meu dever de não atacar o inocen-
te não parece de forma alguma ter como condição a minha
«adopção» prévia desse dever. Parece que se torna necessá-
rio aceitar que temos alguns deveres morais, quer concor-
demos com eles, quer não. Mas isto não basta para demons-
trar que qualquer pessoa tem o direito de fazer leis, e de me
obrigar a obedecer-lhes. E isso, claro está, é o que faz o esta-
do.
Neste caso, torna-se óbvio que o problema da obrigação
política, pelo menos para Locke, é demonstrar como se pode
explicar a existência do estado em termos voluntaristas. É
necessário demonstrar que, de uma forma ou de outra, cada
indivíduo — ou, pelo menos, cada adulto mentalmente
capaz — concedeu ao estado a autoridade que este detém
sobre si. Segundo esta perspectiva, para justificar a existência
do estado não bastaria simplesmente frisar como estamos
melhor sob a autoridade do estado do que estaríamos no
estado de natureza: teríamos igualmente de demonstrar que
cada pessoa consentiu voluntariamente na existência do
estado.
Por outras palavras, mesmo a ser verdade que a existência
do estado resulta em meu benefício, não se segue daí, para

60
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Locke, que o estado se justifique. E isto porque tenho um


direito natural à liberdade e, portanto, o poder político só
pode ser exercido sobre mim com o meu consentimento. De
acordo com isto, um estado que pretenda exercer poder
político sobre mim, mas que não tenha o meu consentimento
para tal, não tem o direito de governar e, portanto, é ilegíti-
mo. E isto é assim apesar de a vida na sociedade civil ser
muito superior à vida no estado de natureza.
Subjacente à ideia da teoria do contrato social está o pro-
jecto de demonstrar que os indivíduos consentem na existên-
cia do estado. Se, de uma forma ou outra, se conseguir
demonstrar que todos os indivíduos consentiram na existên-
cia do estado, ou estabeleceram um contrato com o estado,
ou firmaram um contrato entre eles para a criação de um
estado, então o problema parece ficar resolvido. Teríamos
demonstrado como o estado adquire a sua autoridade uni-
versal — autoridade sobre cada um de nós — mostrando que
todos consentiram nessa autoridade. Em abstracto, então, a
teoria do contrato social é uma solução óbvia e elegante para
o problema da obrigação política. Satisfaz os dois requisitos:
o requisito de universalismo — todas as pessoas têm de estar
sujeitas à lei — e o requisito de voluntarismo — as obriga-
ções políticas só podem existir através de um consentimento.
Tudo isto está muito bem, em teoria, mas onde podemos
encontrar o contrato social, na prática? Segundo algumas
perspectivas, o contrato social é considerado um «contrato
original», ou seja, corresponde a um acontecimento histórico
real. Foi o momento, e o mecanismo, que fez passar os nos-
sos antepassados do estado de natureza para a sociedade
civil. Esta opinião é comummente vista com incredulidade
— e talvez com razão. Mesmo que aceitássemos a existência
de um estado de natureza real e histórico (e no capítulo
anterior vimos razões para duvidar de tal), poderia ter exis-
tido um contrato desta índole? Que provas existem? Em que
museu se encontra? Um tal acontecimento fulcral devia ter
deixado algum vestígio nos registos históricos. Além disso,
como podia ter sido realizado um contrato desses? Para lá

61
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

dos óbvios problemas práticos de comunicação e coordena-


ção, os críticos inspirados por Rousseau fizeram notar que é
absurdo pensar que os selvagens no estado de natureza
poderiam possuir a sofisticação conceptual necessária à
criação e respeito de qualquer tipo de acordo legal.
Mas, e ainda muito mais importante, a ter existido tal
contrato, que provaria ele? Dificilmente poderíamos afirmar
que explicava as obrigações políticas dos cidadãos actuais.
Afinal, nenhum sistema legal razoável permite que uma
geração firme um contrato que obrigue as gerações vindou-
ras. No entanto, é precisamente isto que parece pressupor a
doutrina do contrato original.
Se a teoria do contrato social dependesse da doutrina do
contrato original, estaria condenada à partida. Felizmente,
há outras ideias que poderão desempenhar um papel mais
adequado. A pretender-se alcançar o propósito de constru-
ção de uma descrição voluntarista do estado, é importante
que todos os que actualmente se considera estarem sob a sua
alçada tenham podido dar-lhe o seu consentimento. Isto
parece requerer uma espécie de consentimento permanente,
dado por todos os indivíduos.
Poderá ser verdade que cada um de nós tenha, intencio-
nal e voluntariamente, dado o seu consentimento ao estado?
É difícil ver como poderia isso ser. Não me lembro de algu-
ma vez alguém me ter perguntado se concordava em ser
governado, pelo menos alguém com um estatuto oficial. É
verdade que se exige muitas vezes aos escuteiros e às crian-
ças em idade escolar que jurem fidelidade à bandeira ou a
Deus e ao país, mas não lhes é dada qualquer escolha real e,
de qualquer modo, são demasiado jovens para que o jura-
mento tenha validade legal. A existirem algumas, serão
poucas as sociedades nas quais literalmente todos sejam
chamados a expressar a sua concordância. Como é frequen-
temente observado, as únicas pessoas que, nas sociedades
modernas, dão explicitamente o seu consentimento são
aquelas que obtêm o direito de cidadania numa sociedade

62
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

através da naturalização. A vasta maioria dos cidadãos


normais não é chamada a fazê-lo.
Neste passo, poder-se-á observar que o consentimento é
dado de uma forma menos óbvia ou explícita. Uma forma de
ver as coisas é pensar que esse consentimento é comunicado
através do voto. Ao votarmos para o governo, damos-lhe o
nosso consentimento. E não é completamente implausível
que mesmo aqueles que votam contra o governo indiquem,
ainda assim, o seu consentimento ao sistema como um todo,
através da votação. Mas isto coloca-nos dois problemas.
Alguns dos que votam contra o governo podem afirmar que
estão a expressar o seu desacordo com o sistema como um
todo. Mais: o que dizer dos que se abstêm? A recusa em
votar dificilmente poderá ser vista como forma de expressar
concordância com o governo. A situação não melhora tor-
nando a abstenção ilegal e obrigando todas as pessoas a
votar. Como votar deixaria de ser voluntário, nunca poderia
ser entendido como um acto ou sinal de consentimento.
Contudo, há um desenvolvimento muito mais interessan-
te desta linha de pensamento: a afirmação de que as obriga-
ções políticas surgem apenas quando a sociedade está orga-
nizada como uma «democracia directa». Uma democracia
directa é aquela em que todos os cidadãos participam acti-
vamente no governo, sendo muito mais abrangente do que
qualquer das formas actuais de democracia. Uma conse-
quência importante desta perspectiva é que, como as demo-
cracias contemporâneas não correspondem ao ideal, os
cidadãos de tais estados estão isentos de obrigações políticas.
A teoria da democracia directa merece toda a atenção e
regressaremos a ela no próximo capítulo. Entretanto, não
devemos esquecer que quaisquer conclusões que se retirem
neste capítulo sobre obrigação política ficarão dependentes
daquela análise.

63
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Acordo tácito

Até ao momento, não conseguimos perceber como se


poderá desenvolver uma teoria plausível relativa ao acordo
explícito ou expresso. Considerámos já a ideia de que o voto
é um modo de consentir tacitamente, mas talvez a noção de
acordo tácito possa ser desenvolvida de forma mais promis-
sora. De facto, os principais proponentes da teoria do contra-
to social — Hobbes, Locke e Rousseau — baseiam-se, de
diferentes formas, em argumentos assentes no acordo tácito.
Neste caso, a ideia central é que, ao usufruirmos silenciosa-
mente da protecção do estado, estamos a conceder-lhe o
nosso consentimento tácito. E isto basta para que cada indi-
víduo fique obrigado perante o estado. Embora Locke pen-
sasse que apenas o consentimento expresso poderia tornar
uma pessoa membro pleno da sociedade política, afirmou —
afirmação que se tornou famosa — que, ainda assim, seria
possível criar obrigações políticas através de um acordo
tácito:

Todo o Homem que detenha qualquer Possessão, ou Usufruto, ou


qualquer parte dos Domínios de qualquer Governo, dá, desse modo, o
seu Consentimento tácito e encontra-se obrigado ao cumprimento das
leis desse Governo, durante tal Usufruto ou qualquer que dele depen-
da; quer essa Possessão seja de Terra sua ou dos seus herdeiros para
sempre, ou Alojamento apenas por uma Semana; ou quer ele se limite
a viajar livremente pelos Caminhos. (Segundo Tratado, s. 119, p. 348)

Talvez isto pareça plausível. Dou tacitamente o meu


consentimento ao estado ao aceitar a sua protecção e outros
benefícios. Ora, a simples fruição de benefícios poderá, só
por si, ser suficiente para me obrigar perante o estado e
consideraremos tal argumento mais adiante no capítulo. Mas
a proposta em análise é subtilmente diferente, pois acrescen-
ta um passo ao argumento: receber benefícios é uma forma
de dar tacitamente o consentimento ao estado e é o consenti-
mento que conduz à obrigação. Deveremos aceitar esta afir-
mação?

64
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Talvez por detrás do argumento se encontre a ideia de


que aqueles a quem não agrada o pacote de benefícios e
obrigações oferecido pelo estado podem levantar-se e sair.
Mas, se a doutrina depender disto, então muitos afirmarão
que já foi decisivamente refutada por David Hume (1711-76):

Poderemos afirmar com seriedade que um pobre camponês ou


artesão pode escolher deixar este país, quando não conhece qualquer
língua ou modos estrangeiros e vive o dia-a-dia com o magro salário
que ganha? Isso equivaleria a dizer que um homem, ao permanecer
num navio, consente livremente no domínio do mestre, mesmo que
haja sido embarcado enquanto dormia e tenha de saltar para o oceano,
e perecer, no momento em que abandone a embarcação. («Do Contrato
Original», 475)

O que mostra esta objecção? A ideia de Hume é que a


residência por si só não pode ser considerada consentimento.
E por que não? Porque, simplesmente, nada poderia contar
como desacordo, excepto deixar o país. Mas essa é certamen-
te uma condição demasiado onerosa para nos poder permitir
concluir que os que ficam consentem.
Esta é frequentemente considerada uma refutação con-
vincente. Mas, por outro lado, poderá haver casos que se
adeqúem a estas exigentes condições. Rousseau, por exem-
plo, supõe que a residência constitui consentimento, mas
apenas num estado «livre», «pois, de outra forma, a família,
os bens, a inexistência de um local de refúgio, a necessidade
ou a violência podem reter um homem num país contra a
sua vontade; e, assim, o facto de ele morar ali deixa de impli-
car em si acordo com o contrato» (O Contrato Social, tomo IV,
cap. 2, p. 277). É peculiar, embora característico, que Rous-
seau pense que a família ou os bens prendem um homem.
Mas percebemos o seu argumento, mesmo desejando corri-
gir a sua descrição. Num estado livre, sugere Rousseau, o
acto de discordar — deixar os territórios do estado — é
bastante fácil.
A ideia de que qualquer pessoa que discorde pode deixar
o estado é plausível se pensarmos num mundo de cidades-
estado fortificadas, que seria possível abandonar transpondo

65
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

simplesmente os portões (como Rousseau, quase por acaso,


deixou Genebra na sua juventude). Hume tem claramente
em mente algo muito mais parecido com o estado-nação,
como a Grã-Bretanha, de onde partir não é simples. Na
verdade, a sua metáfora do estado enquanto navio em alto
mar é sugestiva de uma ilha como a Grã-Bretanha. No mun-
do contemporâneo, um mundo de estados-nação, a doutrina
do acordo tácito parece muito menos apropriada do que no
tempo de Rousseau; não tanto por os estados se encontrarem
rodeados por mar, mas porque mesmo aqueles que querem
partir descobrem muitas vezes que não há para onde ir:
nenhum país os aceitaria e, de qualquer modo, que interesse
teria trocar um regime questionável por outro igual? No
final, somos levados a concordar com Hume. As condições
para o acordo tácito não estão preenchidas, no mundo
moderno. O estado não pode justificar-se nestes termos.

Acordo hipotético

Talvez seja um erro pensar que o proponente da teoria do


contrato social precisa de fazer apelo a uma forma qualquer
de consentimento real, seja ele histórico, expresso ou tácito.
Ao invés, poderia afirmar-se que o contrato social é pura-
mente hipotético: diz-nos simplesmente o que faríamos ou
teríamos feito no estado de natureza. Nesta óptica, o pensa-
mento de que se estivéssemos no estado de natureza tería-
mos realizado um contrato para construir o estado é suficien-
te, por si só, para mostrar que o estado está justificado.
Como devemos entender este tipo de argumento? Numa
primeira abordagem, vale a pena recordar uma sugestão
apresentada no capítulo anterior: talvez a melhor maneira de
esclarecer a nossa relação com uma coisa seja imaginar a sua
ausência. Esta é uma táctica usada frequentemente, por
exemplo, pelos pais, para convencer os filhos a comer os
alimentos que lhes desagradam: darias graças por eles, se
estivesses a morrer à fome. Desta forma, então, o argumento
do contrato hipotético diz-nos que se por qualquer razão nos

66
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

víssemos sem estado, consideraríamos racional tentar criá-lo


mal nos apercebêssemos da natureza do nosso problema.
Assim, podemos compreender o argumento do contrato
hipotético nos seguintes moldes: mesmo que não estivésse-
mos sob a autoridade de um estado, e nos víssemos por
qualquer razão no estado de natureza, se fôssemos racionais,
faríamos tudo ao nosso alcance para recriar o estado. Mais
propriamente, firmaríamos racional e livremente um contra-
to de criação do estado. O proponente da teoria do contrato
hipotético perguntará neste passo, plausivelmente: como
pode este argumento não justificar o estado?
A ser realmente verdade que todos os indivíduos racio-
nais no estado de natureza fariam livremente esta escolha,
parece efectivamente que temos aqui um bom argumento de
justificação do estado. Mas devemos ainda perguntar como
se relaciona isto com os pressupostos «voluntaristas» da
teoria do contrato social. Pois se partirmos do princípio que
só podemos adquirir obrigações políticas através dos nossos
próprios actos voluntários de consentimento, e se reconhe-
cermos que os actos hipotéticos de consentimento não são
actos, parece seguir-se daqui que o argumento do contrato
hipotético não satisfaz as exigências da teoria do contrato
social.
Esta observação deixa-nos a braços com uma perplexida-
de interpretativa. Se o argumento do contrato hipotético não
é o tipo de argumento que pode satisfazer o proponente da
teoria do contrato social, de que tipo de argumento se trata?
Uma possibilidade consiste em dizer que é uma forma de
mostrar que determinados tipos de estado merecem o nosso
acordo. Ou seja, que o estado possui inúmeras características
desejáveis — basicamente, que é a nossa melhor esperança
de paz e segurança — e o facto de que consentiríamos em
criá-lo a partir do estado de natureza apenas vem confirmar
a sua posse dessas características. Nesta interpretação, são as
características do estado, e não o nosso acordo, o que consti-
tui a principal base da sua justificação. O acordo deixa sim-
plesmente de fazer parte da questão. Em última instância,

67
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

então, e segundo esta linha de argumentação, o argumento


do contrato hipotético não é uma forma de defesa voluntaris-
ta do estado. Está muito mais próximo das teorias utilitaris-
tas que analisaremos dentro em pouco. O estado justifica-se
através do seu contributo para o bem-estar humano.
Por outro lado, há um modo segundo o qual poderíamos
tentar reconstruir a teoria do contrato hipotético em termos
voluntaristas. Consideremos o argumento de que o consen-
timento hipotético indica de alguma forma a presença de um
consentimento efectivo. Devemos começar pelo pensamento
de que, embora quase ninguém expresse formalmente o seu
acordo com o estado, há ainda assim um sentido no qual se
pode considerar que todos ou quase todos consentem. Tal-
vez se nos perguntassem, e nos fizessem pensar sobre o
assunto séria e afincadamente, exprimíssemos o nosso acor-
do. Assim, parece justo afirmar que qualquer pessoa a quem
isto se aplique tem uma predisposição para dar o seu consen-
timento ao estado. Mas isto parece equivaler a dizer que
essas pessoas dão o seu consentimento ao estado mesmo que
disso não se apercebam. Tal como podemos ter convicções a
que nunca demos forma na consciência (por exemplo, há
muitos anos que estou convencido de que as girafas não têm
nove patas, embora nunca tivesse formulado conscientemen-
te este pensamento antes de escrever estas palavras), pode-
mos igualmente estar de acordo com o estado sem nunca nos
termos apercebido de tal.
O instrumento do contrato hipotético pode agora ser
considerado uma forma de nos fazer ver o que realmente
pensamos. Reflectindo no modo como me comportaria no
estado de natureza — correndo de braços abertos para a
sociedade civil, se pudesse, — acabei por me aperceber de
que dou o meu consentimento ao estado. O que se defende
não é que eu consinto no estado pela primeira vez após
proceder à experiência mental; ao invés, a ideia é que eu me
apercebo — depois de passar por este processo — de que
sempre consenti no estado. À luz desta interpretação, o
interesse do argumento do contrato hipotético reside em

68
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

revelar uma predisposição para o consentimento, uma atitu-


de concordante nunca expressa.
O que se pode alcançar com tal argumento? Há uma
dificuldade no facto de o sentido no qual «consentimento» é
aqui utilizado ser demasiado fraco. A predisposição não
expressa, e mesmo não reconhecida, para o consentimento
raramente é considerada compulsiva noutros contextos
morais ou legais. Além disso, pode muito bem haver pessoas
que façam o raciocínio do contrato hipotético e depois, após
profunda reflexão, cheguem à conclusão de que estariam
muito melhor no estado de natureza e, portanto, o prefiram
ao estado. Podem não confiar no poder centralizado. Ou
podem ser mais optimistas em relação ao estado de natureza
do que fomos neste livro. Existem pessoas assim? Tudo leva
a crer que sim: os anarquistas e seus partidários, analisados
no último capítulo, constituiriam bons exemplos. Não se
pode dizer que essas pessoas tenham uma predisposição
para consentir o estado: elas discordam activa e explicita-
mente dele.
Poderíamos sentir-nos tentados a supor que tais pessoas
são irracionais. Mas o que têm elas de irracional? De qual-
quer forma, mesmo que fossem irracionais, essa não seria
uma maneira válida de demonstrar que elas tinham dado o
seu consentimento. Assim, até esta forma mais fraca da
teoria do consentimento não consegue dar-nos aquilo que
procuramos: um fundamento universal para a obrigação
política. E se insistirmos em que as obrigações políticas têm
de ser adoptadas voluntariamente, correremos esse risco.
Toda a construção pode ruir por causa de uma única voz
discordante. Como a teoria do contrato é voluntarista por
excelência, tudo indica que o universalismo — a tese de que
todos temos obrigações políticas — não pode simplesmente
ser defendido através da teoria do contrato ou do consenti-
mento nas formas aqui analisadas.

69
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

O anarquismo revisitado

Talvez a resposta seja aceitar a impossibilidade de


demonstrar que todas as pessoas têm obrigações políticas. A
insistência numa base voluntarista do estado é muitíssimo
plausível e se o custo disto for reconhecer que alguns indiví-
duos escapam à autoridade do estado, talvez tenhamos de
engolir o sapo.
O argumento dá um apoio renovado à argumentação
anarquista brevemente aflorada no Capítulo 1. Se não conse-
guirmos descobrir uma forma de justificar o estado a partir
de premissas aceitáveis, parece que seremos obrigados a
aceitar uma espécie de anarquia, pelo menos do ponto de
vista moral. Esta estratégia crítica parece constituir a arma
mais forte do anarquista. Ninguém me perguntou se devía-
mos ter um estado e a polícia não solicita a minha permissão
para agir como age. Por conseguinte — defende o anarquista
— o estado e a polícia actuam ilegitimamente, pelo menos no
que diz respeito à sua relação comigo.
As implicações deste ponto de vista podem ter um vasto
alcance. Numa versão mais radical, poder-se-ia afirmar que,
uma vez aceite o argumento do anarquista, a única razão que
nos poderá levar a obedecer ao estado é a prudência, em
especial o temor do castigo. A pessoa forte deve resistir a
esta atitude cobarde e ignorar o estado e seus agentes. Ou,
numa versão algo mais moderada, podemos admitir que,
como vimos, o que a lei exige é muitas vezes exigido inde-
pendentemente pela moral. Assim, devem fazer-se certas
coisas que o estado decreta — não assassinar, violar ou ferir
— mas não porque o estado as decreta. Além disso, a polícia
age frequentemente da forma que qualquer cidadão poderia
agir: protege os inocentes, detém e leva a julgamento qual-
quer pessoa que faça mal a outra, etc. Portanto, podemos
sentir-nos gratos para com a polícia por esta fazer o trabalho
desagradável por nós. Contudo, segundo esta perspectiva,
dever-se-ia apoiar o estado e a polícia apenas naqueles casos
em que se concorda independentemente com as razões pelas

70
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

quais eles agem. O facto de uma lei ser uma lei, ou a polícia
ser a polícia, não constitui qualquer razão para a obediência.
Daí que o «anarquista filosófico» recomende que adoptemos
uma atitude consideravelmente crítica a respeito das activi-
dades da polícia e do estado. Por vezes, estes agem com
autoridade moral, mas quando não o fazem devemos deso-
bedecer-lhes, dificultar-lhes a acção ou ignorá-los.
Em certos aspectos, esta parece uma perspectiva muitís-
simo esclarecida. O cidadão responsável não deve seguir
cegamente a lei, mas antes fazer sempre uso do seu juízo
pessoal sobre a justificação ou não da lei. A não se justificar,
não há razão moral para obedecer.
Esta perspectiva tem de ser correcta — até certo ponto.
Afirmar que nunca se deve questionar ou desobedecer à lei
levaria, digamos, à defesa da perseguição dos Judeus na
Alemanha nazi ou à defesa das leis recentemente revogadas
que impediam os casamentos mistos e a miscigenação na
África do Sul. Tem de haver um limite moral para a obriga-
ção de obediência à lei. Mas não é assim tão fácil estabelecer
esse limite moral. No caso mais extremo, suponhamos que
éramos de opinião de que não se devia obedecer à lei a
menos que esta estivesse perfeitamente de acordo com o
nosso próprio juízo moral. Ora, há muitas pessoas (em espe-
cial, pessoas abastadas) que pensam que a tributação do
rendimento que tenha como mera finalidade a redistribuição
da riqueza não tem qualquer justificação moral. Na teoria
acerca da justificação do estado acabada de delinear, essas
pessoas teriam o direito de deixar de pagar uma parte dos
seus impostos. Ao mesmo tempo, várias pessoas, oriundas
de diversos contextos sociais e económicos, pensam que a
herança de bens é injusta. Quem herda riqueza e quem não
herda é completamente «arbitrário de um ponto de vista
moral», para usar a terminologia de John Rawls (ver Capítu-
lo 5). Muitas pessoas vêem como muito injusto que certos
indivíduos herdem grandes fortunas, ao passo que outros,
igualmente merecedores, nada herdam. Ora, se pensarmos
que não há justificação moral para a propriedade herdada,

71
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

pensaremos que o Duque de Westminster não tem mais


direito de nos mandar expulsar da «sua» propriedade her-
dada do que nós temos de o excluir a ele, uma vez que aque-
la não é verdadeiramente sua. Se a isto acrescentarmos que
só devemos obedecer à lei se esta estiver de acordo com a
nossa perspectiva moral, deixamos de ter razão (a não ser o
receio do castigo) para respeitar grande parte da proprieda-
de que outras pessoas dizem ser sua.
Podemos obviamente multiplicar os casos. O importante é
que, a aceitarmos a perspectiva anarquista acima analisada,
teremos regressado à situação caótica na qual as pessoas
podem seguir o seu juízo pessoal em todas as matérias,
mesmo nas de interesse público. Mas foi exactamente por
esta razão que Locke afirmou que devíamos afastar-nos do
estado de natureza. De uma tal perspectiva, a posição do
anarquista filosófico começa a parecer um exemplo muito
perigoso de autocomplacência moral. É certamente muito
melhor aceitarmos, em termos gerais, um qualquer conjunto
de leis publicamente estabelecidas e reconhecidas, na condu-
ção das nossas relações mútuas, do que deixar as pessoas
agir com base nos seus próprios códigos conflituosos. Por
outras palavras, possuir um conjunto partilhado de leis é,
racionalmente, muito mais importante do que o juízo pessoal
de qualquer indivíduo sobre aquelas que seriam as melhores
leis.
Em resposta, o anarquista pode muito bem afirmar que
não há razão para esperar uma tal proliferação de perspecti-
vas morais conflituosas. Afinal, uma perspectiva moral
particular poderá ser a correcta e, portanto, os indivíduos
poderão ser todos levados a partilhar o mesmo conjunto de
princípios morais básicos. É a segunda destas afirmações que
dá peso ao argumento, mas será ela plausível? Mesmo exis-
tindo um único conjunto de princípios morais verdadeiros,
como poderíamos garantir que todas as pessoas veriam essa
evidência? Para aqueles que duvidam da existência de tal
método, a posição anarquista continua a não ser atraente.

72
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Utilitarismo

Os súbditos devem obedecer aos Reis [...] desde que os prejuízos


prováveis da obediência sejam menores do que os prejuízos pro-
váveis da resistência.
(Jeremy Bentham, Fragmento sobre o Governo, 56)

O fracasso dos argumentos contratualistas, a par da falta


de plausibilidade do anarquismo, torna o exame da teoria
utilitarista ainda mais premente. A ideia fundamental do
utilitarismo é que a acção moralmente correcta é, em todas as
situações, aquela que tem como resultado a maior quantida-
de possível de utilidade. A utilidade é geralmente entendida
como felicidade, prazer ou satisfação de desejos ou preferên-
cias. Para os fins da nossa discussão, não interessa muito
determinar qual destas opções escolhemos, por isso, para
conveniência do texto, referir-nos-emos à maximização da
felicidade. Grosso modo, o utilitarismo exige que se opte
pela acção que gerará mais felicidade (ou menos infelicida-
de) no mundo, entre as acções possíveis no momento.
Note-se que, a considerarmos seriamente o utilitarismo,
precisaríamos de conseguir medir e quantificar a felicidade,
por forma a podermos determinar qual, de várias acções
possíveis, criaria mais felicidade. Pensa-se frequentemente
que esta é uma dificuldade grave. Afinal, se quisermos com-
parar situações, parece que precisaremos de uma escala a
que recorrer na medição: unidades de felicidade, porventura.
Como poderemos fazer isto? A teoria exige que comparemos
a felicidade de uma pessoa com a felicidade de outra, não só
para sabermos quem tem mais, como também quanto mais
tem. Ao que parece, teríamos de entender o sentido de decla-
rações como: «Hoje, o Fred está duas vezes mais feliz do que
o Charlie, embora ontem tenha estado três vezes mais feliz».
Muitos pensarão que isto é absurdo. Tentar quantificar a
felicidade desta forma parece muitas vezes meramente pue-
ril.
O problema de descobrir um modo de comparar felicida-
des é conhecido como o problema das «comparações inter-

73
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

pessoais de utilidade». Estranhamente, nenhum dos propo-


nentes oitocentistas do utilitarismo pareceu compreender a
força deste problema, apesar de nas últimas décadas do
século terem sido avançadas algumas soluções técnicas
engenhosas. Nenhuma destas soluções foi universalmente
aceite e conceder à questão uma consideração devida distan-
ciar-nos-ia demasiado do nosso âmbito. Todavia, não deve-
mos ignorar a afirmação de que nunca ficamos totalmente
atrapalhados quando somos chamados a estabelecer compa-
rações. Conhecemos pessoas que, digamos, parecem gostar
de determinados alimentos, ou formas de diversão, mais ou
menos do que nós próprios. Mais seriamente, todos os dias
vemos pessoas que têm vidas infelizes, ao passo que outras
têm vidas extraordinariamente agradáveis. Assim, acredita-
mos ser possível estabelecer determinadas comparações,
mesmo não sabendo exactamente como o fazemos. Para os
fins presentes, pressupomos simplesmente que é possível
estabelecer comparações interpessoais de utilidade, embora
não deixando de ter em mente que o utilitarista nos fica a
dever uma explicação de como se pode exactamente fazer tal
coisa.
Regressando à questão principal, a nossa pergunta deve
ser: como seria uma teoria utilitarista da obrigação política?
Segundo Jeremy Bentham, como vimos, devemos obedecer
aos nossos governantes desde que os benefícios da obediên-
cia se sobreponham aos custos. Assim, parece que a teoria é
que devo obedecer à lei se, e apenas se, a minha obediência
conduzir a uma maior felicidade da sociedade do que a
minha desobediência.
Mas, se esta for a doutrina de Bentham, uma breve refle-
xão revela que é uma carta branca para o infractor da lei.
Afinal de contas, a minha felicidade faz parte da felicidade
geral. Assim, se infringir a lei — suponhamos, roubando um
livro de uma grande livraria — aumentar a minha felicidade,
e eu puder ter a certeza de que ninguém descobrirá nem
sofrerá qualquer perda ou prejuízo de monta, parece que o
utilitarismo não só permite, como exige que eu perpetre o

74
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

roubo. A mensagem mais geral é que esta teoria utilitarista


sancionaria muitas vezes a infracção da lei.
Poderá isto ser o que pretende o utilitarista? Parece
improvável e, na verdade, há uma resposta rápida. Conside-
remos o que sucederia se todos infringíssemos a lei sempre
que pensássemos que fazê-lo resultaria num aumento da
felicidade geral. Nesse caso, o leitor poderia apropriar-se de
qualquer dos meus bens sempre que fazer isso aumentasse a
sua felicidade mais do que reduziria a minha. A posse tor-
nar-se-ia extremamente insegura, talvez tão incerta que, por
fim, ninguém trabalharia para produzir fosse o que fosse,
uma vez que qualquer pessoa podia apoderar-se do fruto do
trabalho alheio, quando o cálculo utilitarista jogasse a seu
favor. Esta insegurança redundaria numa grande infelicida-
de geral, de forma bastante semelhante à insegurança senti-
da no estado de natureza. Paradoxalmente, quando cada um
de nós tenta aumentar a felicidade geral em simultâneo com
os outros acaba por provocar a infelicidade geral. Este é
outro exemplo do dilema do prisioneiro analisado no Capí-
tulo 1: a acção que aumenta individualmente a felicidade
redu-la colectivamente.
Consequentemente, o utilitarista pode afirmar que preci-
samos de um corpo de leis que sejam respeitadas, mesmo
quando o incumprimento de uma delas numa ocasião parti-
cular, a ser permitido, conduzisse a um aumento da felicida-
de. Isto pode ser designado como utilitarismo indirecto. A
ideia é que se começarmos todos a raciocinar em termos
utilitaristas, as coisas começarão a correr muito mal. Deste
modo, torna-se necessário seguir um raciocínio não utilitaris-
ta — obedecer às leis — para maximizar a felicidade.
Para ajudar a ilustrar este ponto, consideremos uma
analogia com a procura individual de felicidade. Uma des-
coberta feita vezes sem conta pelos indolentes de todo o
mundo é que, se o nosso único objectivo for alcançar a felici-
dade, e fizermos tudo ao nosso alcance para sermos felizes, o
mais provável é conhecermos o fracasso. Mas, se visarmos
outras coisas — delinear e procurar atingir uma ambição,

75
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

arranjar um passatempo, fazer alguns bons amigos — pode


deparar-se-nos a felicidade como efeito secundário ou con-
sequência indirecta. Assim, diz-se, a procura directa da
felicidade, tanto individual como socialmente, pode provo-
car exactamente o problema que se tenta evitar. O melhor
que temos a fazer é estabelecer outros objectivos ou seguir
outras regras, na esperança ou expectativa de que a felicida-
de daí advenha, como consequência. O filósofo político
utilitarista deve recomendar um sistema legal pelo qual cada
pessoa tem de se reger, pelo menos em circunstâncias nor-
mais. Assim, não compete ao indivíduo considerar o efeito
da obediência à lei sobre o nível de felicidade existente no
seio da sociedade.
Esta é provavelmente a verdadeira perspectiva de Ben-
tham: «considerando o corpo total [de pessoas], só é seu
dever obedecer quando isso é do seu interesse» (Fragmentos
sobre o Governo, 56). Há várias ideias a retirar de um alarga-
mento desta passagem:

1. As leis devem ser aprovadas se, e apenas se, contribuí-


rem mais para a felicidade humana do que qualquer lei
alternativa (ou a inexistência de lei).
2. Deve-se obedecer às leis porque são leis (e serão obede-
cidas porque a desobediência implica castigo) e só devem ser
desobedecidas para evitar uma catástrofe.
3. As leis devem ser repudiadas e substituídas se não
cumprirem a sua função utilitarista devida.

A mensagem utilitarista para a obrigação política parece


agora clara. O estado, enquanto entidade que cria e faz cum-
prir um corpo de leis, justifica-se se, e só se, contribuir mais
para a felicidade humana do que qualquer acordo exequível
alternativo. Se pensarmos nos termos de um contraste básico
entre o estado e o estado de natureza, e aceitarmos os argu-
mentos do primeiro capítulo — especialmente os de Hobbes
— parece que a justificação utilitarista para o estado é muito
plausível. No que diz respeito a contribuir para a felicidade

76
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

geral, o estado parece ter um desempenho muito superior ao


estado de natureza. Assim, para o utilitarista, a justificação
do estado é completa.
Todavia, apesar deste sucesso, poucos filósofos políticos
parecem convencidos com a defesa utilitarista do estado.
Muitos admitem que o argumento funciona bastante bem
nos seus elementos constitutivos, mas apontam erros nos
seus pressupostos ou premissas. O argumento, em si, é
muito simples. Tem, na essência, apenas três premissas:

1. A sociedade moralmente melhor é aquela na qual a


felicidade é maximizada.
2. O estado promove a felicidade melhor do que o estado
de natureza.
3. O estado e o estado de natureza são as únicas alternati-
vas ao nosso dispor.

Logo:

4. Temos o dever moral de criar e apoiar o estado.

Vimos no primeiro capítulo que há vários tipos de anar-


quistas que põem em causa as premissas 2 e 3 mas, para os
fins deste argumento, pressuporemos que estas premissas
são verdadeiras. O argumento parece igualmente válido no
sentido formal em que, se as premissas são verdadeiras, a
conclusão será igualmente verdadeira. Assim, a única parte
vulnerável do argumento é a primeira premissa: o princípio
fundamental da utilidade.
E é aqui que reside o problema. Poucos filósofos se mos-
tram agora dispostos a aceitar o raciocínio utilitarista, pois
pensam que tem consequências moralmente inaceitáveis. Em
especial, afirma-se frequentemente que a moralidade utilita-
rista permite, ou exige mesmo, graves injustiças. Por exem-
plo, uma dificuldade sobejamente conhecida é a objecção do
«bode expiatório»: o utilitarismo permitirá enormes injusti-
ças na procura da felicidade geral.

77
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

A objecção do bode expiatório consiste no seguinte: supo-


nhamos que foi perpetrado um crime hediondo — por
exemplo, um ataque terrorista no qual morreram várias
pessoas e muitas mais ficaram feridas. Nestas circunstâncias,
a polícia sofre grande pressão para encontrar os criminosos.
A população, na sua generalidade, exige vingança e garan-
tias de que um tal ataque não voltará a ocorrer. A felicidade
geral sairá certamente beneficiada se a parte culpada for
levada a tribunal. Mas os opositores do utilitarismo fizeram
notar que a felicidade geral lucrará igualmente se aqueles
indivíduos que a população crê serem culpados forem presos
e condenados. Desde que sejam suspeitos plausíveis —
tenham o sotaque certo, o aspecto esperado, etc. — pelo
menos a exigência de vingança será satisfeita e todos dormi-
remos melhor nas nossas camas (mesmo que o façamos
apenas devido à nossa crença falsa). Claro que há inocentes
que sofrerão. Mas parece plausível que o aumento de felici-
dade (ou a redução de infelicidade) da população geral se
sobreporá ao sofrimento dos inocentes e, portanto, em ter-
mos utilitaristas, é compensador fazer de alguém um bode
expiatório. Tendo em conta esta perspectiva, afirma-se que o
utilitarismo tem como consequência poder ser moralmente
correcto punir um inocente. É fácil aduzir outros exemplos
do mesmo tipo — por exemplo, respeitantes à justificação
utilitarista da escravatura.
O que está em causa não é ser melhor punir o inocente:
claro que seria ainda melhor, no cômputo utilitarista, encon-
trar e castigar os culpados. Mas quando se tem tudo em
conta, parece bastante provável que alguns erros de justiça
sejam defensáveis em termos utilitaristas. A maior parte da
discussão filosófica baseia-se em exemplos fictícios, mas a
questão mereceu atenção pública na Grã-Bretanha, aquando
de um ataque bombista do IRA a um pub. Os «seis de Bir-
mingham» foram considerados culpados de homicídio, mas
afirmaram que as confissões lhes haviam sido extorquidas
pela polícia através de métodos violentos. Tentaram proces-
sar a polícia pelos ferimentos infligidos durante a detenção.

78
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Lorde Denning, no seu julgamento proferido no Supremo


Tribunal, em 1980, abordou a questão de saber se se deveria
permitir que o processo contra a polícia fosse levado a jul-
gamento. Eis as suas palavras:

Se os seis homens perderem, isso significará que se gastou muito


tempo e dinheiro de muitas pessoas, sem qualquer proveito. Se os seis
homens ganharem, isso significará que a polícia é culpada de perjúrio,
de exercer violência e proferir ameaças, que as confissões foram invo-
luntárias e indevidamente apresentadas como prova, e que as conde-
nações são erróneas. Isso implicaria que o Ministro da Administração
Interna recomendasse o seu perdão ou reenviasse o caso para o
Supremo Tribunal. A perspectiva é de tal forma aterradora que qual-
quer pessoa sensata do país concluiria: A prossecução deste processo
não pode ser correcta. (Citado em Chris Mullin, Error of Judgement, 216)

Denning reconheceu mais tarde que, «retrospectivamente,


os meus comentários podem ser justamente criticados». Mas
o interessante é que, como diriam os críticos do utilitarismo,
os seus comentários representam uma aplicação perfeita do
raciocínio utilitarista. Seria melhor deixar um homem ino-
cente na prisão do que admitir que a polícia, por vezes,
obtém confissões falsas recorrendo ao terror. E, escusado
seria dizer, o raciocínio utilitarista não fica a ganhar com
isto.
Mas, em sua defesa, poderia parecer que o utilitarista
pode evitar tais problemas adoptando a estratégia do «utili-
tarismo indirecto», anteriormente apresentada. Se sabemos
que vivemos no tipo de sociedade na qual as pessoas podem
ser vitimadas e transformadas em bodes expiatórios, e man-
tidas na prisão apesar de inocentes, isto provocará tamanha
insegurança que acabará por ter um efeito profundamente
depressivo na felicidade humana. Afinal de contas, como
posso saber que não serei o próximo bode expiatório utilita-
rista? Assim, o utilitarista tem de assegurar às pessoas o
direito a não serem condenadas se não forem culpadas.
Desta forma, afirma-se, pode-se evitar a objecção do bode
expiatório — e outras semelhantes — através desta aborda-
gem utilitarista mais subtil. E, na verdade, um utilitarista

79
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

que analise o caso dos «seis de Birmingham» pode muito


bem afirmar que — ao contrário do primeiro argumento de
Denning — a libertação dos detidos teve mais consequências
positivas do que negativas. O sistema judicial britânico pode
ter sido manchado pelo descrédito mas, como resultado do
caso e respectiva publicidade, adoptaram-se melhores pro-
cedimentos de registo de confissões que contribuirão para o
benefício e a segurança de todos, no longo prazo.
O sucesso do argumento utilitarista indirecto parece vital
para a defesa do utilitarismo. Se a teoria utilitarista puder
incluir a teoria dos direitos individuais — por exemplo,
direitos relativamente à vitimação, então muitas das objec-
ções mais comuns desaparecerão. Vimos um esboço de como
o utilitarismo poderia realizar esta tarefa, mas há modos de
levar a objecção mais além. Por exemplo, pode afirmar-se
que a insegurança geral será apenas uma consequência do
recurso a bodes expiatórios se as pessoas se aperceberem do
que se está a passar; se nunca se souber a verdade, não have-
rá motivo para preocupações. (Ou, melhor, haverá motivo
mas, como não se sabe de nada, não haverá, na realidade,
preocupações. Por conseguinte, não se acrescentarão unida-
des negativas suplementares ao saldo utilitarista.) Deste
modo, o recurso a bodes expiatórios justifica-se, em termos
utilitaristas, desde que seja muitíssimo eficiente e secreto.
Este é certamente um pensamento inquietante.
Há uma objecção mais profunda: apesar de o cálculo
correr como o utilitarista espera, chega-se ao resultado cor-
recto pela razão errada. Talvez, de facto, uma política de
vitimação secreta não maximize a felicidade. Mas os oposito-
res do utilitarismo defendem que isto é irrelevante: ninguém
deve ser vitimado, seja qual for o benefício que daí advenha
para a felicidade geral. Os «seis de Birmingham» deviam ser
libertados, independentemente das consequências. Além do
mais, se os utilitaristas têm como preocupação apenas a
maximização da felicidade, por que consagram tanta energia
à tentativa de apresentar uma teoria utilitarista dos direitos?

80
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Isto parece revelar uma falta de confiança na sua própria


teoria.
Para os fins da presente análise, partiremos do pressupos-
to — que pode ser derrotado mais à frente — de que a teoria
utilitarista não pode, no final, salvar-se desta crítica. De
momento, não pretendo acrescentar seja o que for acerca da
questão, uma vez que regressarei a ela no Capítulo 4, onde
considerarei a obra Sobre a Liberdade, de John Stuart Mill, que
é frequentemente tida como fornecendo uma teoria utilitaris-
ta dos direitos. O argumento presente consiste simplesmente
em afirmar que, embora a justificação utilitarista indirecta do
estado pareça forte, o utilitarismo em si é muitíssimo suspei-
to, mesmo nesta forma indirecta. Assim, há razões para
sentir insatisfação relativamente a esta abordagem da defesa
do estado.

O princípio da equidade

Se pregássemos, na maioria das regiões do mundo, que as rela-


ções políticas se baseiam totalmente no consentimento voluntário
ou numa promessa mútua, o magistrado prender-nos-ia, acusan-
do-nos de incitamento à sedição por enfraquecermos os laços da
obediência, se os nossos amigos não nos tivessem já calado, con-
siderando-nos delirantes por proferirmos tais absurdos.
(Hume, «Do Contrato Original», 470)

Quer os indivíduos consintam quer não na existência do


estado, pode parecer injusto da parte deles usufruir dos
benefícios sem partilhar igualmente os ónus necessários à
sua produção. Por isso, afirmou-se que quem usufrui de uma
vantagem atribuída pelo estado tem um dever de equidade
de obedecer às suas leis, de pagar os seus impostos, etc.
O princípio que subjaz a esta perspectiva foi explicita-
mente formulado pelo jurista e filósofo H. L. A. Hart (1907-
92), que o redigiu nestes termos:

Quando um qualquer número de pessoas se lança numa empresa


conjunta segundo determinadas regras, e, assim, restringe a sua liber-

81
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

dade, aqueles que se submeteram a estas restrições sempre que neces-


sário têm direito a idêntica submissão por parte daqueles que benefi-
ciaram com a sua submissão. («Are There Any Natural Rights?», 85)

Hart considera que este princípio constitui, por assim


dizer, o «núcleo racional» da doutrina do consentimento
tácito. O usufruto de benefícios cria, efectivamente, uma
obrigação perante o estado, mas não por ser uma forma de
consentimento tácito. Ao invés, a força do argumento está
em ser iníquo colher benefícios do estado, a menos que se
esteja preparado para suportar a parte correspondente dos
ónus. Os benefícios, claro está, são a segurança e a estabili-
dade de viver numa sociedade que faz funcionar um sistema
de leis vigentes. Os ónus correspondentes são as obrigações
políticas. Um exemplo de uma aplicação mais familiar do
mesmo princípio é as rodadas num bar. Se três amigos paga-
rem uma rodada aos quatro presentes, terão razão para se
sentir lesados se o quarto resolver ir para casa precisamente
no momento em que se termina a terceira bebida.
Se aceitarmos o princípio de Hart, e reconhecermos que
todas as pessoas retiram benefícios do estado, parece seguir-
se que, a bem da equidade geral, todos devem obedecer às
leis do seu país. Isto baseia-se na ideia plausível de que, se
beneficiamos com as leis, parecerá injusto e oportunista
violá-las quando tal nos convém.
É realmente possível demonstrar que todos beneficiam
efectivamente com a existência do estado? Talvez os argu-
mentos de Hobbes, no Capítulo 1, bastem para convencer a
maioria das pessoas. Mas Hume fez um caminho diferente
para chegar a esta conclusão. Embora o próprio Hume não
fosse de modo algum um «partidário da equidade», pode-
mos usar alguns dos seus argumentos para apoiar a afirma-
ção de que todos, na verdade, beneficiamos com o estado.
O primeiro passo de Hume é dizer que todos lucramos se
vivermos numa sociedade governada por normas de justiça,
tais como regras relativas à propriedade privada e à segu-
rança pessoal. Teremos, como é óbvio, de fazer sacrifícios a
curto prazo, mas a justiça acaba por compensar, no longo

82
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

prazo. Como a justiça só prosperará se todos obedecermos à


lei, a obediência à lei acaba por ser, na verdade, do interesse
individual de todos.
Mas será realmente verdade que a obediência à lei vai ao
encontro dos interesses de cada um de nós? A ser assim,
então, como o próprio Hume observa, parece extraordinário
que tenhamos de ser obrigados a essa obediência, sob pena
de aplicação de sanções. Se é do nosso interesse fazer o que
lei dita, por que não agimos dessa forma sem necessidade de
que a lei nos obrigue a fazê-lo?
A resposta de Hume é que, na verdade, os seres humanos
não são grande coisa no que toca a agir racionalmente.
Suponhamos que tínhamos escolha entre agir de determina-
da forma para obtermos um pequeno ganho no presente e
agir de outra forma para conseguirmos um benefício maior,
mas num futuro distante. Apesar de, em última análise, ser
do nosso interesse optar pela segunda hipótese, Hume pensa
que, entregues a nós mesmos, optaríamos geralmente pela
primeira:

Embora completamente convencidos de que o segundo objecto é


superior ao primeiro, não somos capazes de regular as nossas acções
por esse juízo: cedemos às solicitações das nossas paixões, que sempre
intercedem por aquilo que está próximo e contíguo.
É por esta razão que os homens tantas vezes agem de forma con-
trária aos seus interesses e, em particular, que preferem qualquer van-
tagem trivial, mas presente, à manutenção da ordem na sociedade, que
tanto depende da observância da justiça. (Tratado da Natureza Humana,
535)

Assim, segundo Hume, mesmo sendo do nosso interesse


obedecer à lei, este interesse é muito remoto e longínquo e,
por isso, o mais certo é preferirmos o benefício menor, de
curto prazo, que advirá da desobediência. Pois, supõe Hume,
se cada um satisfizer o seu interesse de curto prazo, e agir
injustamente, a sociedade desintegrar-se-á, para grande
infortúnio de todos. Desta forma, a razão manda que esco-
lhamos o benefício de longo prazo e obedeçamos à lei. Toda-
via, Hume pensa que, embora isto seja o que a razão dita, a

83
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

razão, por si só, não basta para nos impelir à acção. A razão,
pensa Hume, é «a escrava das paixões». E as nossas paixões
irracionais, a nossa preferência pela fruição imediata, rapi-
damente levará a melhor sobre a deliberação racional.
Assim, afirma Hume, como «é impossível mudar ou
corrigir seja o que for de material na nossa natureza, o
melhor que podemos fazer é alterar as circunstâncias e a
situação, e transformar a observância das leis de justiça no
nosso interesse mais próximo» (Tratado da Natureza Humana,
537). Por outras palavras, precisamos de descobrir um modo
de fazer a observância das leis de justiça contribuir para o
nosso interesse imediato. Esta é a única forma de conseguir-
mos obedecer-lhes e, assim, de contribuir igualmente para os
nossos interesses de longo prazo.
Por consequência, Hume defende que devíamos criar um
sistema de magistratura civil investida do poder de fazer leis
e obrigar à sua observância, sob pena de aplicação de san-
ções. O cumprimento das leis constitui um benefício no
longo prazo, ao passo que a punição das pessoas que deso-
bedecem o faz igualmente ser do nosso interesse no curto
prazo. É necessário que nos forcem a cumprir a lei — na
verdade, devíamos acolher bem este facto — porque a razão
é impotente enquanto fonte de motivação humana. Precisa-
mos de que nos obriguem a agir de acordo com o nosso
próprio interesse racional.
O objectivo de Hume, ao apresentar este argumento, era
explicar as vantagens do governo e mostrar por que estamos
geralmente dispostos a aceitar o estado, mesmo não assen-
tando ele no nosso consentimento. Afirmar que temos um
tipo qualquer de obrigação moral para obedecer é dar um
passo mais, passo que Hume, estritamente falando, não
chega a dar. Mas os partidários da equidade, como Hart,
tentam ir mais longe do que Hume. Todos beneficiamos com
a existência do estado e seria injusto para com os nossos
concidadãos usufruir desse benefício sem também aceitar os
encargos necessários à sua criação. Esses encargos são as

84
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

obrigações políticas. Assim, temos um dever de equidade de


aceitar o dever de obedecer ao estado.
Mas teremos realmente tal dever? Se recebemos benefícios
que não pedimos, teremos de pagar por eles? Regressando
ao exemplo anterior, precisarei de pagar a minha rodada, se
não pedi as bebidas que os outros me ofereceram? Supo-
nhamos que eu tinha deixado claro, desde o início, que não
era minha intenção oferecer quaisquer bebidas. Poderei
assim considerar que as bebidas oferecidas pelos outros são
ofertas gratuitas? O filósofo contemporâneo Robert Nozick,
em Anarquia, Estado e Utopia, defende que os benefícios não
solicitados não criam quaisquer obrigações de reciprocidade.
Este autor apresenta um exemplo: os seus vizinhos descobri-
ram um sistema de altifalantes e decidiram instituir um
esquema de entretenimento público. A cada pessoa é atri-
buído um dia no qual pode transmitir — passar discos,
contar anedotas, etc. — e todos beneficiam dessa transmis-
são. O leitor usufruiu de 137 dias de entretenimento ofereci-
do pelos seus vizinhos mas, no 138.o dia, quando chega a sua
vez, terá o dever de desperdiçar um dia para divertir os
outros? (Anarquia, Estado e Utopia, 93.) Nozick considera
óbvia a inexistência de qualquer dever moral de fazer isto,
mas, nos termos do princípio de justiça enunciado por Hart,
tudo leva a crer que ele existe. Afinal de contas, colheu os
benefícios do sistema de altifalantes e, agora, é a sua vez de
tomar em ombros o ónus e fazer a sua parte relativamente
aos restantes. Assim, segundo o princípio de equidade, deve
dar agora o seu contributo.
Por que afirma Nozick que não tem esse dever? Bem, o
leitor não pediu que lhe fosse concedido tal benefício e este
foi-lhe facultado independentemente da sua vontade. Talvez
até preferisse não usufruir de quaisquer benefícios e não ter
quaisquer ónus. Mas, quer os quisesse quer não, se disser-
mos que tem o dever de se submeter, neste caso, isso dará
aos outros permissão para o obrigar a aceitar até bens inde-
sejados e, depois, exigir retribuição, situação que dificilmente
se poderia considerar justa.

85
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Talvez seja possível tratar este contra-exemplo enuncian-


do a teoria com mais pormenor. Talvez se possa falar apenas
na existência do dever de equidade de contribuir se se aceitar
(ao invés de meramente receber) os benefícios sob a condição
de se aprovar os custos. No caso do sistema de altifalantes, o
ónus de contar anedotas durante um dia só lhe será atribuí-
do se aceitar o esquema no seu todo. Aquele que aceita os
benefícios mas tenta evitar os encargos de contribuição está a
ser explorador ou oportunista e, portanto, não é injusto fazê-
lo pagar. Parece razoável afirmar que, se o princípio for
alterado por forma a levar isto em linha de conta, gerará
obrigações passíveis de se fazerem valer. É injusto colher
benefícios e recusar o encargo.
Contudo, uma vez alterado o princípio desta forma, surge
uma nova dificuldade. Agora, o problema é que, se os únicos
benefícios que dão origem a obrigações são aqueles que se
aceitam, então isto exige que distingamos entre benefícios
aceites e benefícios meramente recebidos. O que se pode
considerar um benefício estatal aceite? Afinal de contas,
como podemos nós recusá-los? Recebemo-los todos, ou pelo
menos a sua maior parte, quer os queiramos quer não. Por
outras palavras, temos exactamente os mesmos problemas
que se nos depararam na análise da teoria do consentimento
tácito. Como podemos impedir que a aceitação dos benefí-
cios se torne puramente automática? E se resolvermos esta
dificuldade — fornecendo uma explicação subtil do que é a
aceitação dos benefícios — teremos de encarar a possibilida-
de de algumas pessoas (os anarquistas e talvez ainda outras)
poderem recusar-se a aceitar esses benefícios. Mesmo que
elas concordem com os argumentos de Hume relativamente
às vantagens do estado, vêem outras dificuldades e, assim,
preferem não colher benefícios e não ter obrigações políticas.
Ver-se-iam, deste modo, sem qualquer dever de equidade de
obediência ao estado. Consequentemente, nestas condições,
o princípio de equidade, tal como os argumentos baseados
no consentimento, não consegue estabelecer uma obrigação
universal de obediência. Só o consegue fazer se não nos

86
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

arredarmos da formulação inicial de Hart, em termos de


«recepção» de benefícios. Mas, como comprova o exemplo
de Nozick, até isto tem consequências problemáticas. Assim,
nesta breve análise, parece que o princípio de equidade,
embora represente um progresso relativamente à teoria do
consentimento, não soluciona o problema da obrigação
política.

Conclusão

Considerámos várias defesas da obrigação política, mas


todas parecem fraquejar, num ou noutro ponto. As defesas
voluntaristas, na tradição do contrato, não conseguem expli-
car as obrigações daqueles que se recusam a dar o seu con-
sentimento. Os argumentos utilitaristas podem ter implica-
ções inaceitáveis, pois parecem permitir — pelo menos em
princípio — o sacrifício de inocentes. O argumento da equi-
dade só vingaria se todos aceitassem os benefícios do estado,
e isso é improvável. Significará isto que não temos obriga-
ções políticas?
Em primeiro lugar, temos de deixar claro que, embora
estes argumentos, tomados isoladamente, não consigam
demonstrar a existência de uma obrigação universal de
obedecer, alguns têm, apesar de tudo, algum êxito. Há pes-
soas que exprimem explicitamente o seu acordo com o esta-
do: por exemplo, quem detém cargos especiais, de responsa-
bilidade, como os deputados, e os cidadãos naturalizados.
Muitas outras têm um dever de equidade, pois a maior parte
das pessoas aceita de bom grado os benefícios do estado e
pode afirmar-se que pensam que ter, em troca, uma obriga-
ção, é um preço justo. E se se considerar que o raciocínio
utilitarista é aceitável, o estado poderá ficar completamente
justificado. Mas mesmo que se rejeite o utilitarismo, se
algum dos restantes argumentos partir de uma base moral
aceitável, uma vasta proporção dos elementos da maior

87
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

parte das sociedades modernas possuirá obrigações políticas.


Só relativamente poucas pessoas escapam.
Quais são as consequências disto? A nenhum estado
agradará a ideia de haver alguns residentes no seu território
isentos de obrigações políticas. Em primeiro lugar, a tarefa
de tentar distinguir os que têm dos que não têm obrigações
políticas colocará grandes dificuldades aos funcionários
públicos, especialmente quando alguns explorarão estas
dificuldades, procurando fazer-se passar por elementos de
grupos que escapam à obrigação política. Assim, mesmo que
o estado se disponha a aceitar que, em teoria, algumas pes-
soas não têm obrigações políticas, na prática ver-se-ia obri-
gado a ignorar isto e a agir como se existissem obrigações
políticas universais. Poderia, sem dúvida, abrir algumas
excepções, mas provavelmente apenas em casos especiais e
bem definidos. Talvez se possa permitir que os monges e os
ciganos fiquem isentos de determinados impostos, ou se
possa isentar outros grupos do cumprimento obrigatório do
serviço militar. Mas nenhum grupo será capaz de evitar
todas as obrigações políticas.
Contudo, suponhamos que um estado aplicou realmente
a teoria à prática e aceitou que não tem autoridade para
interferir na vida de certas pessoas. Criaria isto dificuldades
às restantes? Não necessariamente. O facto de algumas
pessoas não terem obrigações políticas não lhes dá o direito
de prejudicar seja quem for. Estas pessoas teriam ainda todo
um conjunto de obrigações morais. Além disso, pelo menos
segundo a perspectiva de Locke, todos os indivíduos têm o
direito de fazer cumprir a lei moral, mesmo na ausência de
governo. Portanto, se existe governo, aqueles que se conside-
ram parte do estado podem invocar o poder do estado para
se protegerem face a ameaças por parte dos independentes.
Embora a lei do país possa não ter qualquer autoridade
especial sobre os independentes que não se consideram parte
do estado, a maioria das perspectivas morais reconhecem-
nos o direito à autoprotecção levada a cabo através dos
meios mais adequados: neste caso, através do estado. Por

88
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

conseguinte, a existência de alguns independentes não signi-


fica que não possamos usar o estado para nos proteger deles.
Podemos sobreviver bastante bem na presença de alguns
independentes. Considere-se o exemplo dos embaixadores e
outros detentores de imunidade diplomática. Num certo
sentido, o estado em que vivem não tem autoridade sobre
eles. Mas isto não significa que os agentes do estado têm de
permitir que tais diplomatas ajam segundo os seus capri-
chos. Um diplomata que branda um machado num centro
comercial pode ser legitimamente desarmado pela polícia,
tal como nós podemos legitimamente controlar-nos mutua-
mente. O que não podemos fazer, em qualquer dos casos, é
aplicar uma pena legal, ou usar de força superior à necessá-
ria para a nossa autodefesa, pelo menos sem estarmos inves-
tidos de autoridade suplementar.
Mas é claro que nenhum estado aceitaria que os seus
residentes não tivessem quaisquer obrigações políticas. A
imunidade diplomática é um caso muito especial, regula-
mentado por convenções internacionais. A lei será aplicada a
todos, mesmo que, em alguns casos, o estado aja ilegitima-
mente. Mas, ao agir dessa forma ilegítima, o estado agirá
com a aprovação da vasta maioria dos seus cidadãos.

89
3
Quem deve governar?

Introdução

O povo de Inglaterra considera-se livre, mas está redondamente


enganado: só é livre durante as eleições parlamentares. Mal os
deputados são eleitos, a escravatura passa a vigorar e o povo
fica reduzido a nada. A utilização que faz dos escassos momen-
tos de liberdade de que goza mostra bem que merece perdê-los.
(Rousseau, O Contrato Social, livro III, cap. 15, p. 266)

Podemos sentir ou não que há justificação para o estado;


mas o facto é que ele existe. E, da perspectiva da nossa situa-
ção histórica actual, é muito difícil ver como isto poderá
alguma vez ser alterado. Todas as pessoas, por conseguinte
— mesmo o anarquista filosófico — têm interesse em saber
que tipo de estado e governo deveríamos ter. Como deveria
ser tal governo? Quem deveria governar? Um pressuposto
comum é que apenas a democracia é completamente justifi-
cável. Tudo o mais — tirania, aristocracia, monarquia abso-

91
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

lutista — está condenado ao fracasso. Mas o que é uma


democracia? Será assim tão atraente?
A democracia, costuma dizer-se, é o governo «do povo,
pelo povo e para o povo». Governo para o povo quer dizer
que o governo existe em proveito dos seus cidadãos, não
para benefício dos governantes. Os governos democráticos
governam «no interesse dos governados», para utilizar as
palavras de Bentham. Mas o mesmo se poderia dizer de
outras formas de governo. Voltaire manifestou-se a favor da
«ditadura benevolente», na qual um déspota iluminado, sem
necessidade de consultar o povo, governaria ainda assim no
interesse deste. Em contraste, a democracia é, mais obvia-
mente, um sistema em que o povo governa: é um autogover-
no colectivo. Esta é, então, uma descrição do que significa
dizer que a democracia é o governo «para o povo» e «pelo
povo». O primeiro elemento da tríade original — governo
«do povo» — parece inicialmente uma ideia bastante vácua:
o que seria um governo que não fosse do povo? Anarquia?
Mas o que se pretende dizer com isto é que um estado demo-
crático tem poder apenas sobre as pessoas que compõem o
eleitorado. Considera-se que governar uma classe subser-
viente ou um território subordinado é incompatível com os
verdadeiros ideais da democracia.
Todos os estudiosos contemporâneos concordam pelo
menos implicitamente com a ideia de que a democracia
deveria idealmente satisfazer a descrição tripartida. Mas,
além disto, há enormes discussões sobre aquilo que a demo-
cracia representa. Na política contemporânea há um pressu-
posto geral de que a democracia é uma «coisa boa». O estatu-
to democrático é muitas vezes considerado uma espécie de
teste de tornassol da legitimidade dos regimes. Se se pensa
que um governo ou estado não é democrático, este torna-se
alvo de fortes críticas internacionais. A própria palavra
«democrático» não é consensual e foi adoptada por regimes
que pareciam bastante antidemocráticos. Quando, após o
final da segunda guerra mundial, a Alemanha se dividiu, os
Soviéticos que tinham forçado a divisão reclamaram imedia-

92
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

tamente a designação «República Democrática da Alema-


nha» para a Alemanha de Leste. Os Aliados tiveram de se
contentar com o nome «República Federal da Alemanha»
para a Alemanha Ocidental, muito embora, pelo menos aos
olhos dos comentadores ocidentais, fosse claro que esta
última se aproximava muito mais dos seus ideais democráti-
cos.
Mas a democracia merecerá realmente a reputação de que
goza nos nossos tempos? Afinal de contas, durante a maior
parte da história humana, a democracia foi detestada quase
universalmente. Prosperou enormemente nos tempos mais
recentes e conheceu um período de vida breve na Antiga
Grécia — conquanto sob uma forma muito limitada — mas,
durante os cerca de dois mil anos que mediaram estes dois
momentos históricos, não se vislumbrou praticamente qual-
quer estado democrático. Se a democracia é realmente tão
atraente quanto frequentemente se diz, por que razão tantos
pensadores, ao longo da história, a rejeitaram?
Além disso, nem todos os estudiosos contemporâneos
consideram a democracia assim tão atraente. Não é que
duvidem do seu valor, mas recusam-lhe coerência. O termo
«democracia», diz-se por vezes, não é o nome de um sistema
político, mas uma expressão elogiosa. Segundo esta perspec-
tiva, não há uma teoria coerente unificada da democracia.
Não há um determinado sistema político que todos os que se
afirmam a favor da democracia possam aprovar.
Este tipo de crítica pode ser um exagero, mas não há
dúvida de que tem uma base válida. A teoria democrática
contém graves tensões e será útil explorar alguns dos mais
importantes problemas na formulação da teoria democrática
antes de analisar os argumentos a favor e contra a própria
democracia.
A primeira tensão existente na teoria democrática e para a
qual desejo chamar a atenção encontra-se na ideia de demo-
cracia enquanto sistema de «governo da maioria» e a ideia,
própria da democracia, da «consideração pelos indivíduos».
Quando alguém, em protesto, diz «Pensava que este país era

93
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

uma democracia», o que realmente quer dizer é que sente


que sofreu um tratamento que considera injusto, de alguma
forma. Talvez a sua casa tenha sido expropriada, por exem-
plo, para construir uma estrada. Talvez se projecte um aero-
porto para perto da sua casa ou o seu filho não tenha sido
aceite na escola pública mais próxima. Seja por que razão for,
a queixa baseia-se no facto de os interesses ou direitos de um
indivíduo terem sido tratados com consideração insuficiente.
E isso, afirma-se, não é democrático.
Mas será assim? Suponhamos que 51 por cento das pes-
soas quer a estrada, ou o aeroporto, ou excluir a criança.
Nesse caso, a democracia — como princípio de governo da
maioria — parece implicar que nada há de antidemocrático
neste tratamento dos seus interesses. A maioria manda e
decidiu... contra essa pessoa.
Vemos aqui uma tensão bem no âmago da teoria demo-
crática. Tocqueville apontou correctamente o problema, na
expressão «ditadura da maioria». Desenvolvendo esta ideia,
John Stuart Mill notou que, antes da criação em larga escala
dos regimes democráticos, pensava-se geralmente que, se as
pessoas governassem nos seus próprios interesses, a opres-
são política não poderia existir. Se as pessoas se governas-
sem a si mesmas, por que razão aprovariam leis repressivas?
Mas, como indica Mill, a falácia consiste aqui em pensar nas
pessoas como uma massa homogénea com um interesse
único, sendo cada pessoa afectada da mesma forma por cada
política. Como nós não somos assim — temos objectivos,
interesses e planos diferentes, vivemos em locais diferentes e
temos esperanças de vida diferentes — torna-se bastante
fácil perceber como uma maioria poderia aprovar uma lei
cujas consequências seriam bastante nefastas para a minoria.
Isto é ou não antidemocrático? Sim, se pensarmos que um
estado democrático tem de proteger todos os seus cidadãos;
não, se pensarmos que democracia significa simplesmente
governo da maioria.
Mill pensava que era necessário tomar medidas para que
a ditadura da maioria não se instalasse. Analisaremos a sua

94
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

posição em pormenor, no capítulo seguinte. De momento,


interessa-nos perceber que o estudioso da democracia tem de
decidir se a democracia é basicamente um princípio bastante
rude de governo da maioria ou se devemos adoptar a pers-
pectiva «Madisoniana» (de James Madison, 1751-1804, mui-
tas vezes referido como o pai da Constituição Americana) de
que a democracia implica a protecção das minorias.
Um segundo debate diz respeito aos modelos «represen-
tativo» e «directo» da democracia. Numa democracia directa,
o eleitorado pronuncia-se a favor ou contra leis ou políticas,
e não candidatos. Idealmente, todas as questões importantes
são colocadas à apreciação do eleitorado, através de referen-
do. Por outro lado, a democracia representativa é o sistema
mais conhecido, no qual os cidadãos votam para determinar
quem os representará ao nível governamental. São estes
representantes que depois redigem as leis. O primeiro siste-
ma é, aparentemente, mais fiel ao espírito genuíno da demo-
cracia mas é praticamente desconhecido no mundo moder-
no. As democracias modernas aderiram ao modelo represen-
tativo, no qual se fazem eleições para determinar quem
formará governo, e não para decidir as questões particulares
do momento. Mas se este sistema representativo for conside-
rado antidemocrático, então não existiram quase nenhumas
democracias em grande escala. Muitos críticos da «democra-
cia liberal» contemporânea chegaram a esta conclusão. A
democracia seria excelente, dizem, se a tivéssemos.
Estes dois debates — governo da maioria contra os direi-
tos individuais e modelo representativo contra modelo direc-
to — são fundamentais para a formulação da teoria demo-
crática. Mas estão longe de esgotar as áreas de controvérsia.
Por exemplo, entre os gregos pensava-se por vezes que votar
em candidatos era antidemocrático: não dá aos impopulares
igualdade de oportunidades! Por conseguinte, os governan-
tes devia ser eleitos através de sorteio. Outros estudiosos
sugeriram que devíamos encontrar formas de pesar e levar
em linha de conta a força das preferências dos diferentes
indivíduos. Nesta óptica, uma minoria que tivesse preferên-

95
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

cias intensas devia assumir preponderância sobre uma maio-


ria apática. E também não devemos ignorar as questões
centradas na decisão de quem tem direito de voto. Nas anti-
gas democracias gregas, apenas uma ínfima proporção da
população tinha direito a votar: excluíam-se as mulheres, os
escravos e os estrangeiros, mesmo aqueles cujas famílias
viviam no território do estado havia gerações. No mundo
contemporâneo, na Grã-Bretanha, as mulheres não foram
tratadas numa base completamente igualitária até 1928, e
muitos países excluem ainda os «trabalhadores convidados»
do direito de voto.
A outro nível, conhecemos bem as disputas algo menos
importantes, se bem que mais intricadas, sobre o processo
eleitoral. Muitos países europeus discutem há muito se
deveriam ter um sistema de representação proporcional —
como até há pouco tempo se praticava na Itália — ou um
sistema de maioria relativa, como o da Grã-Bretanha. Estes
debates revestem-se, como é óbvio de enorme importância e
a escolha de sistema tem consequências de longo alcance.
Por exemplo, diz-se muitas vezes que Hitler conseguiu che-
gar ao poder apenas porque a Alemanha tinha um sistema
de representação proporcional. Mas, de um ponto de vista
mais filosófico, as tarefas prementes que se nos deparam são
esclarecer o que se deve entender por democracia e as razões
por que podemos considerar que a democracia tem valor.
Como primeira abordagem a estas tarefas, consideraremos
um dos mais poderosos argumentos jamais apresentados
contra a democracia, formulado por Platão, em A República.
Analisando este ataque céptico ao valor da democracia,
começaremos a ver se esta é merecedora dos louvores que
frequentemente lhe são tecidos.

Platão contra a democracia

Imagina, pois, que acontece uma coisa deste género, ou em vários


navios ou num só: o capitão, superior em tamanho e em força a
todos os que se encontram na embarcação, mas um tanto surdo e

96
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

com a vista a condizer, e conhecimentos náuticos da mesma


extensão; os marinheiros em luta uns contra os outros, por causa
do leme, entendendo cada um deles que deve ser o piloto, sem
ter jamais aprendido a arte de navegar nem poder indicar o nome
do mestre nem a data do seu aprendizado, e ainda por cima asse-
verando que não é arte que se aprenda, e estando prontos a redu-
zir a bocados quem declarar sequer que se pode aprender; estão
sempre a assediar o capitão, a pedir-lhe o leme e a fazer tudo
para que este lhes seja entregue; algumas vezes, se não são eles
que o convencem, mas sim outros, matam-nos, a esses, ou atiram-
nos pela borda fora; reduzem à impotência o honesto capitão com
drogas, a embriaguez ou qualquer outro meio; tomam conta do
navio, apoderam-se da sua carga, bebem e regalam-se a comer,
navegando como é natural que o faça gente dessa espécie; ainda
por cima, elogiam e chamam marinheiros, pilotos e peritos na
arte de navegar a quem tiver a habilidade de os ajudar a obter o
comando, persuadindo ou forçando o capitão; a quem assim não
fizer, apodam-no de inútil, e nem sequer percebem que o verda-
deiro piloto precisa de se preocupar com o ano, as estações, o céu,
os astros, os ventos e tudo o que diz respeito à sua arte, se quer
de facto ser comandante do navio, a fim de o governar, quer
alguns o queiram quer não — pois julgam que não é possível
aprender essa arte e estudo, e ao mesmo tempo a de comandar
uma nau. Quando se originam tais acontecimentos nos navios,
não te parece que o verdadeiro piloto será apodado de palrador,
lunático e inútil pelos navegantes de embarcações assim apare-
lhadas?
Platão, A República, pp. 275-6

A oposição de Platão à democracia explora outra tensão


que aparentemente existe na teoria democrática. Tal como
«monarquia» significa «governo pelo monarca», «democra-
cia» quer dizer «governo pelo demos». Mas o que é o demos?
Em grego clássico tanto pode ser entendido como «o povo»
ou «a populaça». No segundo sentido, então, a democracia é
o governo pela populaça: o governo da ralé, do vulgo, dos
sujos, dos inaptos.
Mas este insulto à democracia é um mero preliminar para
os principais argumentos antidemocráticos de Platão. A sua
arma básica é a chamada «analogia das profissões». O argu-
mento é muito simples. Se estivéssemos doentes, e precisás-
semos de nos aconselhar com alguém em matéria de saúde,

97
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

procuraríamos um especialista — o médico. Por outras pala-


vras, quereríamos consultar alguém que tenha tido formação
específica para desempenhar a tarefa. A última coisa que
desejaríamos seria reunir uma multidão e pedir aos presen-
tes que elegessem, através de voto, o remédio certo.
A saúde do estado tem tanta ou mais importância que a
saúde de um dado indivíduo. Tomar decisões políticas —
decisões no interesse do estado — requer reflexão e compe-
tência na matéria. Segundo Platão, é função que se deveria
deixar aos especialistas. Permitir que o povo decida é como
navegar em alto mar consultando os passageiros, ignorando
ou desprezando aqueles que são verdadeiramente compe-
tentes na arte da navegação. Tal como um navio assim
comandado se transviará e irá a pique, também — diz Platão
— o navio do estado naufragará.
Mas onde estão os governantes especializados? Neste
ponto, a resposta de Platão é simples e, para muitos dos seus
prováveis leitores, lisonjeira. A sociedade justa é impossível,
a menos que os reis se tornem filósofos ou os filósofos se
tornem reis. A formação filosófica, afirma Platão, é uma
qualificação necessária para governar. Com tornar-se filóso-
fo, Platão não quer dizer que basta passar uns anos a ler e a
pensar acerca da filosofia. Ele divisa um plano para toda
uma vida de ensino aplicável aos «guardiães», que inclui,
nos primeiros anos, não apenas competências de literacia,
mas também educação musical, matemática, militar e física.
A filosofia não é estudada senão aos trinta anos. A cinco
anos de filosofia seguem-se, então, quinze de serviço militar
e àqueles que ultrapassam este período com distinção é só
então permitido dedicarem-se permanentemente à filosofia;
serenidade apenas interrompida para se tomar o lugar nos
«assuntos fatigantes da política».
Estaríamos a desviar-nos demasiado do nosso tema se
considerássemos estes e outros aspectos de A República, de
Platão, com grande pormenor. Especialmente, não podemos
alongar-nos na natureza e conteúdo do conhecimento que
Platão pretende que os seus guardiães possuam. Mas recor-

98
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

demos a analogia das profissões. O governo, como a medici-


na, a navegação ou mesmo a agricultura, é uma competên-
cia. É necessária formação especial e nem todos são natural-
mente capazes de adquirir sequer essa competência. A medi-
cina deve ser deixada aos especialistas, e a formação clínica
administrada apenas aos mais aptos — e o mesmo acontece
com o governo e a formação para governar. Qualquer outro
sistema conduzirá a piores resultados e a consulta da popu-
laça redundará em desastre.
À primeira vista, o argumento de Platão contra a demo-
cracia parece devastador. Se governar é uma arte, e uma arte
apenas dominada por poucos, então a democracia parece
obviamente absurda e irracional. O defensor da democracia
tem de encontrar uma resposta para a analogia das profis-
sões. Mas terá esta algum ponto fraco?

Problemas com os guardiães

O primeiro reparo a fazer-se é que o próprio sistema de


Platão é uma forma de ditadura e, tal como há argumentos
gerais que podem usar-se na oposição a qualquer sistema de
democracia, também há argumentos gerais que se podem
usar contra a ditadura. Mesmo que admitamos que ao edu-
car os guardiães Platão está a criar uma classe de governan-
tes especializados, não se segue daí que devamos outorgar-
lhes o poder de governar as nossas vidas.
Não se quer dizer com isto que nunca devamos submeter-
nos a especialistas, mas que atribuir poderes não controlados
a especialistas é atrair a catástrofe. Podemos escolher seguir
o conselho de um médico, ou consultar um arquitecto, mas
quem se sentiria satisfeito se as ordens do médico tivessem
força de lei, ou se os arquitectos atribuíssem casas às pes-
soas? Por mais competentes que estas pessoas sejam no
desempenho das suas tarefas, por que deveríamos deixar
que tomassem decisões por nós? Também poderiam ser
competentes noutra coisa: a enriquecer.

99
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Esta objecção é antiga. O que impede o guardião — o rei-


filósofo — de virar a situação a seu favor? Não é grande
conforto dizerem-nos que o governante é um especialista. Se
considerarmos provável que os nossos governantes sejam
corruptos, poderemos preferi-los incompetentes. Dessa
forma, pelo menos, talvez a corrupção seja menos prejudi-
cial. No sistema de Platão, interroga a objecção, quem guar-
da os guardiães?
Platão não deixou passar esta dificuldade. A sua resposta
consiste em afirmar que os guardiães devem ser colocados
numa posição na qual as oportunidades de corrupção sejam
minimizadas. Assim, por exemplo, os reis-filósofos não
poderiam possuir propriedade privada. Por conseguinte,
pareceria não haver motivo para o tipo de corrupção a que
assistimos tão frequentemente no mundo moderno: uma
família ou clique dominantes que enriquecem às custas do
seu povo. Isto, claramente, não seria possível, no sistema de
Platão — desde que se conseguisse pôr em prática a proibi-
ção de detenção de propriedade privada.
Mas, admitindo que se conseguia pôr em prática, parece-
mos ter recuado para a dificuldade oposta. Se a vida do
guardião não conhece grandes riquezas, por que razão acei-
taria ele governar? Tal como Platão descreve os guardiães,
são filósofos que prefeririam passar o tempo a ler, a conver-
sar e a pensar sobre filosofia. Por que iriam conceder o seu
tempo a outras tarefas? Platão responde, de certa forma, pela
negativa. Os guardiães concordam em governar, não pelas
compensações intrínsecas ou externas do cargo, mas porque,
de outra forma, seriam governados por outros. Ao invés de
permitirem que outras pessoas — pior ainda, que todas as
outras pessoas — governem, aceitam relutantemente este
dever necessário.
Ainda assim, se os guardiães decidirem violar as leis
respeitantes à propriedade privada, ou mesmo alterar as leis
através de procedimentos adequados, quem terá autoridade
e poder para os impedir de fazer isso? Assim, não podemos
sentir-nos perfeitamente tranquilos com as leis de Platão

100
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

destinadas a evitar a corrupção. Se a resposta a isto for que


uma formação filosófica adequada torna a pessoa resistente à
tentação, poderemos redarguir que o escrutínio público
completo e adequado, perante um eleitorado com poder, é
um remédio de muito maior confiança.
Outro motivo de preocupação é a forma como os guar-
diães são nomeados. Platão crê que é possível escolher guar-
diães potenciais em tenra idade e depois submetê-los a rigo-
res vários que permitirão a selecção dos melhores. Isto pare-
ce perfeitamente possível: pensemos na forma como os
generais sobem os vários escalões num exército. Mas, no
caso dos guardiães, podemos ainda perguntar-nos se o seu
direito a governar seria alguma vez aceite pela população
como um todo. Afinal de contas, a maior parte das pessoas
não colheu o benefício de uma educação filosófica.
Se juntarmos todas estas objecções, o que obtemos? Na
verdade, não muito mais do que o pensamento de que nos
sentimos desconfortáveis com a ideia do sistema de Platão.
A sociedade platónica não oferece garantias de que os guar-
diães serão sempre capazes de resistir à tentação. E pode
muito bem ser que o povo não aceite a sua governação. Mas
estes problemas com as propostas de Platão dificilmente
constituirão uma defesa vibrante da democracia. Talvez a
resposta se encontre noutro sistema não democrático. Uma
vez mais, se governar é uma arte, que só poucos conseguem
dominar, será certamente absurdo entregar a tomada de
decisões políticas à ralé.

Conhecimentos e interesses

Outro tipo de argumento poderá ajudar-nos a avançar.


Platão afirma que os governantes precisam de conhecimen-
tos especializados. Mas estes conhecimentos são passíveis de
ser adquiridos? Se a ideia de governantes especializados for,
na verdade, ilusória, a oposição de Platão à democracia
parecerá dissolver-se no ar.

101
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Alguns críticos disseram que devemos ter muito cuidado


com a afirmação de que poderia haver governantes especia-
lizados que possuiriam um nível especial de conhecimentos.
Afinal de contas, observa-se frequentemente, ninguém pode
estar absolutamente certo de coisa alguma. Praticamente
todas as afirmações de conhecimento — seja ele político,
científico ou filosófico — são falíveis. E, assim, se entregar-
mos as decisões sobre qualquer assunto nas mãos dos cha-
mados especialistas, estamos a iludir-nos relativamente às
suas capacidades.
Embora seja muitas vezes fonte de enorme satisfação
depreciar as pretensões de sabedoria de alguém que ocupa
uma posição de autoridade qualquer, esta resposta não nos
leva muito longe. Na verdade, o facto — se realmente se
trata de um facto — de ninguém poder ter a certeza em
relação ao que quer que seja não contradiz a ideia mais
mundana de que algumas pessoas são melhores juízes do
que outras. Por exemplo, como muitos outros, eu próprio
sinto grande cepticismo relativamente às afirmações de
conhecimento manifestadas pelos médicos. Mas se eu pen-
sasse ter a perna partida, seria a um médico que recorreria,
apesar de estar firmemente convencido de que os médicos
cometem muitas vezes erros, incluindo alguns bastante
graves. Mas é razoável supor que quem não tem formação
em medicina (por exemplo, os falsos médicos, por vezes
denunciados na imprensa sensacionalista) fariam ainda pior.
Assim, apesar de não existir um conhecimento infalível, não
se pode disso depreender que todas as pessoas têm a mesma
competência — ou ausência dela — em todos os ramos do
saber. Tentar derrotar desta forma a analogia das profissões
equivale a afirmar que, na verdade, não há profissões. Ora,
isto é demasiado implausível.
Mas não poderia dar-se o caso de não existir um conhe-
cimento especializado aplicável à governação, apesar de
haver conhecimento especializado noutros assuntos? Tam-
bém isto é pouco credível. Os governantes actuais precisam
de possuir um conhecimento bastante subtil de economia,

102
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

psicologia e motivação humana. Precisam de ter (embora


nem sempre tenham) grande inteligência, uma enorme
capacidade de trabalho, excelente memória, uma capacidade
extraordinária de lidar com o pormenor e habilidade nas
relações com outras pessoas. É absurdo pensar que ninguém
é potencialmente melhor governante que outrem. Pode
defender-se razoavelmente que a governação é, pelo menos
em boa parte, uma profissão.
Ainda assim, há algo nesta objecção que pode empurrar-
nos numa direcção mais profícua. Talvez se possa dizer
qualquer coisa mais sobre a ideia de que há algo de especial
na tomada de decisões políticas que a torna diferente de uma
votação de mão erguida para determinar a amputação ou
não de um membro enfermo. Para desenvolver esta linha de
pensamento, devemos analisar mais detidamente a natureza
da votação num sistema democrático. Platão sugere que se
vota para expressar uma opinião acerca daquilo que será
melhor para o estado como um todo. Esta constitui, obvia-
mente, uma função da votação. Mas Platão parece presumir
que a votação não passa disto e o seu argumento limita-se à
afirmação de que é melhor deixar as decisões deste tipo aos
especialistas. Contudo, se conseguirmos demonstrar que
votar é mais do que expressar meramente uma opinião sobre
o bem colectivo, talvez se torne possível avançar uma defesa
mais robusta da democracia.
Recordemos um dos pressupostos apresentados no início
deste capítulo: os governos democráticos governam para o
povo, ou seja, no interesse dos governados. Embora Platão se
oponha à democracia, partilha a ideia de que os governantes
devem trabalhar no interesse do povo. O que ele nega é que
a forma de alcançar isto seja através de um sistema de
governação pelo povo. Uma tentativa de defender a demo-
cracia consiste em tentar argumentar que a posição de Platão
não é sustentável. A governação para o povo tem de ser uma
governação pelo povo.
Mas porquê? Platão advoga essencialmente um sistema
de ditadura benevolente. Contudo, mesmo que o ditador

103
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

queira servir os interesses do povo, como poderá conhecê-


los? Numa democracia, as pessoas revelam os seus interes-
ses, segundo parece, através da votação: votam pelo que
querem. Daí que votar seja mais do que um processo de
tomada de decisão. É uma forma de revelar ou expressar a
própria informação que a decisão precisa de ter em conta: o
que as pessoas querem. Sem o recurso a um processo eleito-
ral qualquer, como se pode conhecer isso?
Platão poderia responder que os guardiães são não ape-
nas benevolentes, mas também especialistas. Possuem sabe-
doria e conhecimentos. Os reis de Platão não são os tiranos
ocos e ignorantes que, de tempos a tempos, se vêem no
mundo moderno. São filósofos. Mas, para responder a Pla-
tão, será que o conhecimento filosófico lhes dá realmente
meios para conhecerem os interesses do povo? A lógica e a
metafísica não nos dizem o que querem as pessoas. O mes-
mo se aplica à ética e mesmo à filosofia política. O conheci-
mento filosófico e a informação factual parecem duas coisas
completamente distintas.
Mas será verdade que a tomada de decisões políticas deva
ter em conta o que as pessoas querem? Talvez deva conside-
rar os interesses das pessoas — aquilo que é melhor para elas.
E poder-se-á dizer que os interesses das pessoas são, na
verdade, o tipo de conhecimento contemplado numa educa-
ção filosófica? Talvez todos tenham os mesmos interesses.
Nesse caso, os subtis poderes analíticos dos filósofos colo-
cam-nos na melhor das posições para conhecer os interesses
das pessoas. No entanto, fosse o que fosse que Platão pensa-
va acerca disto, e independentemente daquilo que for ver-
dadeiro no sentido metafísico mais profundo, em termos
práticos tem certamente de ser falso que tenhamos todos os
mesmos interesses. Imaginemos que se considera a constru-
ção de uma nova estrada. Algumas pessoas terão interesse
na construção da estrada. Outras terão o interesse oposto:
por exemplo, o proprietário de uma loja localizada na actual
estrada. Algumas pessoas terão interesse em que a estrada
siga determinado traçado, outras preferirão um traçado

104
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

diferente. A construção de uma estrada afectará as pessoas


de muitas maneiras diferentes. Portanto, haverá interesses
múltiplos, e antagónicos, a considerar. A leitura de obras
filosóficas não fornecerá a solução deste problema.
Por outro lado, um exemplo deste género poderá fazer-
nos levantar dúvidas em relação à democracia. Como se
deveria decidir, entre as várias preferências e interesses
rivais em jogo? Pode muito bem acontecer que, existindo
mais de duas opções (a estrada pode ser construída obede-
cendo a vários traçados diferentes), nenhuma opção recolha
um apoio maioritário. Mas mesmo que uma delas o obtenha,
é óbvio que devamos aceitar a preferência da maioria? Tal-
vez isto seja muito injusto para a minoria (recordemos o
elemento madisoniano da protecção democrática das mino-
rias). Certamente que precisamos é de uma governação por
parte de alguém que conheça todos os interesses relevantes e
que, com a sabedoria de Salomão, tome a decisão mais justa
e mais sensata. Isto ainda se torna mais necessário se acei-
tarmos a ideia de Hume, mencionada no Capítulo 2, de que
as pessoas avaliam muitas vezes incorrectamente os seus
interesses quando há discrepância entre os interesses de
longo prazo e aqueles de curto prazo. Assim, quando muito,
temos um argumento a favor das sondagens de opinião
pormenorizadas junto das pessoas, mas não necessariamente
um argumento a favor da democracia.
Na verdade, a posição é bastante pior para a democracia
do que parece até ao momento. Platão afirma que precisa-
mos de governantes especializados. O defensor da democra-
cia responde que os especialistas precisam de conhecer os
interesses do povo e só o voto os revela. A resposta a isto é
que não só é falso que apenas o voto revele os interesses do
povo como também a sondagem de opinião poderá ser mais
eficaz nesse propósito. Outro problema, mais inquietante, é
que nunca podemos ter a certeza de que um voto democráti-
co nos diga seja o que for sobre as preferências ou interesses
das pessoas.

105
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Para compreender isto, consideremos um exemplo assaz


prosaico. Suponhamos que um grupo de pessoas discorda
quanto ao facto de poder ser permitido fumar num local
público que estas partilham e controlam — talvez uma resi-
dência de estudantes. Suponhamos igualmente que todas
concordam em acatar a decisão da maioria. Significará isto
que vence a permissão para fumar se, e apenas se, uma
maioria preferir que se possa fumar num local público? À
primeira vista, parece óbvio que sim mas, com alguma refle-
xão, percebe-se que não é obrigatório que assim seja. É ver-
dade que algumas pessoas votarão como se estivessem a
responder à pergunta «Prefere que se fume ou não?». Estas
pessoas votarão efectivamente de acordo com as suas prefe-
rências. Mas outras votarão como se a pergunta a que res-
pondem fosse «Pensa que se deve permitir que se fume?».
Assim, alguns fumadores votarão por forma a negar o seu
próprio prazer, afirmando que é errado os fumadores sub-
meterem os outros aos efeitos adversos do seu comporta-
mento. Também alguns não fumadores votarão contra as
suas próprias preferências, argumentando que fumar é uma
decisão do foro pessoal. Por outras palavras, estas pessoas
votam de uma forma desinteressada e, portanto, não reve-
lam os seus interesses através do seu voto.
Tendo isto em vista, não é seguro presumir que a demo-
cracia é uma forma de tornar conhecidos os interesses ou
preferências individuais. Algumas pessoas votarão de acor-
do com o que mais querem. Outras deixam de lado os seus
próprios interesses ou preferências e votam segundo crité-
rios morais. Nunca se pode ter a certeza daquilo que motiva
os elementos de um eleitorado — na verdade, eles próprios
podem não estar certos disso.
Qual é a consequência deste facto? Se as pessoas nem
sempre votam de acordo com as suas preferências, não
podemos apresentar o processo eleitoral como algo que
revela automaticamente as preferências da maioria. Então, o
que revela o voto? Se as pessoas votam seguindo diversas
motivações — algumas segundo as suas preferências, outras

106
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

de acordo com a preocupação que sentem pelo bem comum


— o resultado não nos diz senão que uma maioria de pes-
soas votou a favor de uma opção, em detrimento de outra.
Não podemos afiançar que uma maioria de pessoas crê que a
opção vencedora está de acordo com os seus interesses e
também não podemos dizer que uma maioria de pessoas
acredita que a decisão é para o bem comum. Em suma, o
voto determinado por diversas motivações é uma confusão.
E, o que é pior, nas condições actuais parece constituir a
norma.

O voto e o bem comum

O problema do voto determinado por diversas motiva-


ções parece obrigar-nos a decidir o tipo de motivação que os
eleitores deveriam ter. Se conseguimos ter a certeza de que
os eleitores terão, na prática, esse tipo de motivação é outra
questão, porventura mais difícil. Mas consideremos em
primeiro lugar a questão teórica.
Se não quisermos aceitar a votação com diversas motiva-
ções, parece que nos restará escolher entre dois modelos: um
no qual os eleitores votam de acordo com as suas preferên-
cias e outro no qual os eleitores votam de acordo com as suas
ideias ou opiniões sobre o bem comum. Vimos que o pro-
blema com o primeiro destes modelos era a sondagem de
opinião poder constituir um modo muito mais sensível de
obter a informação necessária. Mas talvez a segunda ideia —
de que todas as pessoas deviam votar de acordo com as suas
ideias do bem comum — possa ser utilizada em defesa da
democracia.
Contudo, se partirmos do princípio que as pessoas vota-
rão de acordo com as suas ideias do bem comum, precisare-
mos de um novo argumento a favor da democracia. O último
argumento era que, sem voto, os governantes não saberiam
dizer o que as pessoas pretendem. Mas se as pessoas vota-
rem de acordo com as suas ideias do bem comum, o voto
também não nos vai dizer isto. Dir-nos-á apenas aquilo que a

107
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

maioria pensa ser o bem comum, e não a preferência real da


maioria.
Mas isto sugere uma defesa diferente da democracia. Se
permitirmos que as pessoas votem de acordo com a sua ideia
do bem comum, e seguirmos a decisão da maioria, teremos
certamente grandes possibilidades de estarmos certos. O
argumento a favor da democracia é que agora esta parece
uma excelente forma de descobrir o bem comum.
Infelizmente, este argumento parece entregar a resposta
de bandeja a Platão. Por que razão é de esperar que o voto
da populaça seja melhor do que deixar o assunto nas mãos
de especialistas com formação específica? Já agora, podíamos
pedir à população em geral que governasse navios, tomasse
decisões clínicas, guardasse rebanhos, e por aí fora. Que
razão pode haver para pensar que as pessoas farão melhor
do que os especialistas?
Por surpreendente que seja, há mesmo uma razão. O
filósofo e especialista político francês Marie Jean Antoine
Nicolas Caritat, Marquês de Condorcet (1743-94), desenvol-
veu uma interessantíssima argumentação matemática que
parece demonstrar as vantagens de permitir que as pessoas
se expressem através do voto sobre aquilo que consideram
ser o bem comum. Condorcet observou que se presumirmos
que as pessoas, em média, têm uma probabilidade superior a
cinquenta por cento de dar a resposta correcta, permitir a
decisão por maioria tornar-se-á uma forma excelente de
chegar ao resultado certo. Se votarem muitas pessoas, a
probabilidade de conseguir o resultado certo tenderá para a
certeza. Num eleitorado composto por dez mil pessoas, cada
uma delas com probabilidade superior de estar certa do que
de estar errada, é praticamente certo que a decisão tomada
pela maioria constituirá o resultado correcto.
A argumentação de Condorcet poderá parecer uma res-
posta mais do que suficiente a Platão. Mas é essencial obser-
var que só funciona mediante a reunião de duas condições.
Primeira, o indivíduo médio terá de ter uma probabilidade
superior a cinquenta por cento de estar certo (e o próprio

108
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Condorcet mostrou-se muito pessimista em relação a isto,


quando a votação é feita em grande escala). Segunda, cada
indivíduo tem de estar motivado para votar segundo a sua
ideia do bem comum, e não de acordo com os seus interesses
particulares. Se o segundo pressuposto não se verificar,
regressamos à confusão daquilo a que chamei voto com
diversas motivações. Se o primeiro pressuposto não se verifi-
car, o caso piora ainda mais. Se as pessoas tiverem, em
média, mais probabilidade de estar erradas do que certas,
será quase certo que o voto da maioria conduzirá ao resulta-
do errado.
Por conseguinte, só temos uma resposta a Platão se as
duas condições se verificarem. Verificar-se-ão? Um filósofo
que tinha uma firme compreensão intuitiva desta questão foi
Rousseau (apesar de ter publicado as suas principais obras
sobre a democracia vinte anos antes de Condorcet ter apre-
sentado a sua argumentação matemática). Efectivamente, é
razoável considerar O Contrato Social de Rousseau uma
tentativa — entre outras coisas — de revelar as condições em
que a democracia seria superior ao sistema de guardiães.
Mas, antes de considerarmos a posição de Rousseau em
pormenor, há outra resposta a Platão — complementar —
que devemos analisar.

Os valores da democracia

Até agora ocupámo-nos da questão de saber se, para


atingir um determinado objectivo, a democracia é ou não
melhor do que o sistema de guardiães de Platão. Em particu-
lar, reduzimos agora isto à questão de saber se a democracia
é ou não capaz de alcançar o bem comum. Mas há algo de
estranho nesta investigação. Muitas pessoas afirmariam que
devemos favorecer a democracia mesmo que se venha a
verificar que os sistemas democráticos são piores do que
outros no alcance do bem comum. Por outras palavras, até
ao momento vimos apenas se existe uma justificação instru-
mental para a democracia: será um modo de alcançar algo

109
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

que valorizamos? Mas talvez devêssemos considerar outra


questão. Existirá algo intrinsecamente bom na democracia?
Ou seja, poderá a democracia ser boa (até certo ponto, pelo
menos) ainda que nem sempre consiga alcançar as conse-
quências desejadas?
O desenvolvimento desta reflexão pode levar-nos a pen-
sar novamente na analogia das profissões. A analogia das
profissões baseia-se na ideia de que a governação é uma arte,
uma arte que visa alcançar determinado objectivo externo.
De acordo com Platão, a democracia só poderá justificar-se
se atingir consequências desejáveis. Mas, como sabemos, nós
valorizamos as artes não apenas pelos seus resultados, mas,
pelo menos às vezes, por si próprias também. Poderá parecer
bastante singelo recorrer a uma tal analogia neste contexto,
mas pensemos no exercício de uma arte como passatempo.
Mesmo que o passatempo de um indivíduo seja muito práti-
co, como a carpintaria, o passatempo raramente é avaliado
com base na sua eficácia para alcançar determinado objecti-
vo. Pode ser uma mesa muito bonita mas, quando se atribui
um custo ao tempo gasto na sua realização, com certeza que
se percebe que há mesas melhores e mais baratas nos gran-
des armazéns. Os passatempos permitem que as pessoas
enriqueçam e testem as suas capacidades físicas e mentais e
desenvolvem o seu sentido de auto-estima. E este tipo de
valor é independente do valor dos bens que poderão ser
produzidos.
Isto conduz à ideia de que a democracia não deve ser
avaliada simplesmente em termos do sucesso que tem na
obtenção do bem comum, apesar de isso ser também impor-
tante. Assim, devemos analisar de novo a analogia das pro-
fissões. Platão compara a governação à navegação: coman-
dar o navio do estado. Se deixarmos a navegação entregue à
populaça, podemos imaginar o tipo de caos que daí advirá:
«navegando como é natural que o faça gente dessa espécie»,
diz Platão. Nunca chegaremos aonde queremos.
Mas será necessário que a navegação possua sempre um
propósito claro de chegada eficiente a um destino predeter-

110
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

minado? Consideremos, por exemplo, uma viagem pedagó-


gica. Nesse caso, todos deverão ter a possibilidade de tomar
o leme do navio. Na verdade, por que razão uma viagem no
navio do estado não poderá ser feita «navegando como é
natural que o faça gente dessa espécie»? Que há de errado
nisso, pelo menos se todos se divertirem e chegarem sãos e
salvos a bom porto?
O ponto sério e importante a reter aqui é que pode haver
valores envolvidos na tomada de decisões políticas diferen-
tes do valor de atingir determinados objectivos. Os defenso-
res da democracia dirão que esta tem valor não apenas — ou
não necessariamente — porque nela se tomam decisões
melhores do que noutros tipos de estado, mas porque há
algo valioso nos próprios processos democráticos. Conside-
ra-se geralmente que a democracia dá expressão a dois valo-
res que nos são caros: liberdade e igualdade. A liberdade, tal
como é entendida neste caso, prende-se com a possibilidade
de as pessoas terem uma palavra a dizer na tomada de deci-
sões políticas, em especial, relativamente a decisões que as
afectam. A igualdade reside nesta liberdade ser concedida a
todos. Para Rousseau, o problema da ordem política é
«encontrar uma forma de associação que defenda e proteja,
com toda a força comum, a pessoa e os bens de cada associa-
do, e na qual cada um, embora em união com todos, possa
ainda assim obedecer apenas a si próprio e permanecer tão
livre quanto antes» (O Contrato Social, livro I, cap. 6, p. 191).
É notável que Rousseau pense poder resolver este problema.
Como pode um sistema político permitir que «cada associa-
do […] [obedeça] apenas a si próprio»? É chegada a altura de
considerarmos Rousseau e vermos como este filósofo se
propõe defender a democracia, tanto em termos instrumen-
tais (como forma de alcançar o bem comum), como por si
mesma (como expressão de liberdade e igualdade).

111
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Rousseau e a vontade geral

Se as crianças forem educadas em conjunto, no seio da igualdade;


se forem imbuídas das leis do estado e dos preceitos da vontade
geral; se forem ensinadas a respeitá-los acima de todas as coisas;
se forem rodeadas de exemplos e objectos que lhes recordem
constantemente a mãe terna que as alimenta, o amor que ela lhes
tem, os benefícios inestimáveis que recebem dela e a compensa-
ção que lhe devem, não podemos duvidar de que aprenderão a
estimar-se mutuamente como irmãos, a nada desejar contrário à
vontade da sociedade, a substituir o linguajar fútil e vão dos
sofistas por acções de homens e cidadãos e a tornar-se, a seu
tempo, defensores e pais do país do qual durante tanto tempo
foram filhos.
(Rousseau, Discurso sobre a Economia Política, 149)

Platão, como vimos, defende que a governação requer


uma formação ou educação especial. Rousseau não duvida
disto, mas nega que seja uma formação dada apenas a uns
quantos. Será muito melhor que todos adquiram as compe-
tências adequadas e assumam depois um papel activo —
democrático — como parte do «Soberano» (termo utilizado
por Rousseau para designar o conjunto dos cidadãos que
agem colectivamente, com autoridade sobre si próprios). Por
conseguinte, um estado democrático deve ter em alto apreço
a educação dos cidadãos.
Os cidadãos de Rousseau, portanto, são educados para
«nada desejar contrário à vontade da sociedade». Isto é
essencial para a saúde e preservação da saúde do estado. A
cidadania, para Rousseau, implica também um serviço
público activo: «Quando o serviço público deixa de consti-
tuir a principal preocupação dos cidadãos, e estes preferem
servir com o seu dinheiro do que servir com as suas pessoas,
o estado não estará longe da ruína» (O Contrato Social, livro
III, cap. 15, p. 265). Juntamente com o serviço público, Rous-
seau exige que os seus cidadãos desempenhem um papel
activo na tomada de decisões políticas. Através de uma
forma de democracia directa, todos os cidadãos participam
na criação da legislação. Contudo, esta afirmação precisa de

112
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

ser abordada com algum cuidado porque há passagens nas


quais Rousseau parece argumentar contra a democracia.

Se tomarmos o termo no seu sentido estrito, nunca existiu uma


democracia real, e nunca existirá. É contra a ordem natural que muitos
governem e poucos sejam governados. É inimaginável que o povo
permaneça continuamente reunido para dedicar o seu tempo às ques-
tões públicas e é claro que não é possível criar comissões com esse
objectivo sem que se altere a forma de administração. (O Contrato
Social, livro III, cap. 4, p. 239)

Assim, conclui Rousseau, «se houvesse um povo de deu-


ses, o seu governo seria democrático. Um governo assim tão
perfeito não é para os homens» (O Contrato Social, livro III,
cap. 4, p. 240).
Como entender a posição de Rousseau? Devemos come-
çar pelo difícil conceito da vontade geral. Primeiro, Rousseau
distingue a vontade de todos — o produto das vontades
particulares dos indivíduos — da vontade geral. Recorde-se
a distinção anterior entre votar no interesse próprio e votar
conforme se julga correcto. Exercer o direito de voto do
primeiro modo — no interesse próprio — é dar voz à sua
vontade particular. Votar segundo o que, na sua perspectiva,
conduz ao resultado moralmente correcto, ou ao bem
comum, equivale, para Rousseau, a votar de acordo com a
nossa ideia do que é a vontade geral.
Então, o que é a vontade geral? Eis um exemplo eloquen-
te: suponhamos que uma empresa tem mil empregados e
uma quantia fixa de um milhão de euros para consagrar aos
aumentos salariais. O interesse particular de cada indivíduo
está em conseguir a maior fatia possível deste dinheiro, de
modo que, no limite, se poderia dizer que a vontade particu-
lar de cada indivíduo é tentar ganhar mais um milhão de
euros. A soma destas vontades particulares tem como resul-
tado a vontade de todos: mil milhões de euros, quantia que,
evidentemente, não se encontra disponível. Mas suponha-
mos que os trabalhadores são representados por um sindica-
to que age de igual forma no interesse de todos os seus

113
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

associados. O sindicato nada mais pode fazer do que reque-


rer o milhão de euros e distribui-lo equitativamente pelos
associados, dando mil euros a cada um. Este resultado repre-
senta a vontade geral: a política que trata de igual forma os
interesses de todos os associados. Não se satisfaz os interes-
ses particulares de pessoa alguma, embora se satisfaça o
interesse comum. Vemos assim uma ilustração da diferença
entre as vontades particulares de todos os cidadãos e a von-
tade geral. A vontade geral requer uma política que trate
equitativamente os interesses de todos. Assim, podemos
pensar na vontade geral como o interesse geral.
Rousseau afirma também que a vontade geral tem de ser
«geral no seu objectivo assim como na sua essência» (O
Contrato Social, livro II, cap. 4, p. 205). Ou seja, deve aplicar-
se de igual modo a todos os cidadãos. Com isto, Rousseau
pretende dizer que a vontade geral só deve fazer leis que,
pelo menos em princípio, afectem todos os cidadãos, ao
invés de portarias executivas visando indivíduos ou grupos
particulares. Devemos ser governados por leis e não por
governantes. O objectivo disto, para Rousseau, é assegurar
que a vontade geral exprimirá um interesse comum. Nestas
circunstâncias, pensa Rousseau, ninguém tem qualquer
razão para votar favoravelmente uma lei opressora ou des-
necessária, uma vez que todos são afectados de igual forma
por todas as leis. O povo, enquanto Soberano, faz leis que
dão expressão à vontade geral.
Como se poderão, então, aplicar as leis? Afinal, estas irão
muitas vezes requerer uma acção que destacará grupos ou
mesmo indivíduos. A punição legal é o exemplo mais óbvio.
A resposta de Rousseau é que a aplicação das leis não faz
parte das incumbências do Soberano, mas do órgão executi-
vo ou governo. O órgão executivo trata da administração
quotidiana e Rousseau considera que seria absurdo organi-
zar esta tarefa democraticamente, no sentido de envolver
participação activa universal. Uma «aristocracia eleita» —
um tipo diferente de democracia, poder-se-ia pensar —
parece a opção preferida por Rousseau, onde «os mais sábios

114
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

deveriam governar a população, sendo assegurado que


governariam para benefício [da população] e não para seu
próprio benefício» (O Contrato Social, livro III, cap. 5, p. 242).
Note-se como o sistema de Rousseau difere do de Platão.
Apesar de Rousseau o descrever como um sistema no qual
os mais sábios governam a população, é importante ter em
mente o papel restrito que o governo ou administração
desempenha. O governo não faz leis; apenas as aplica ou
administra. Isto não é tão de somenos importância como
parece: o governo, por exemplo, tem o direito de declarar
guerra. Este é um acto particular — nomeia um objectivo
particular — e, portanto, o povo enquanto Soberano não
pode legislar nessa matéria. Este pode apenas estabelecer as
condições gerais nas quais a guerra poderá ser declarada.
Cabe depois ao governo decidir se as condições estão reuni-
das e levar a cabo a acção adequada. Assim, o contraste
fundamental entre os reis-filósofos de Platão e a aristocracia
electiva de Rousseau é que os governantes de Rousseau não
têm o poder de fazer leis.
Então, como são feitas as leis? Rousseau afirma que o
«Soberano não pode agir salvo quando o povo está reunido»
(O Contrato Social, livro III, cap. 12, p. 261). É aqui que o seu
sistema difere das democracias contemporâneas: as leis não
são feitas no Parlamento, mas em assembleias populares. É
nestas assembleias que se descobre a vontade geral:

Quando uma lei é proposta em assembleia popular, o que se per-


gunta aos indivíduos não é exactamente se aprovam ou rejeitam a
proposta, mas se esta está em conformidade com a vontade geral, que
é a vontade deles. Ao votar, cada homem exprime a sua opinião sobre
este assunto, e a vontade geral encontra-se na contagem dos votos. Por
conseguinte, quando prevalece a opinião contrária à minha, isto prova
nada mais nada menos que eu estava enganado e que aquilo que eu
pensava ser a vontade geral não o era. (O Contrato Social, livro IV, cap.
2, p. 278)

Claro que se podem colocar várias objecções à proposta


de Rousseau. Podemos mostrar-nos particularmente cépticos
acerca da possibilidade de «reunir o povo». Mas, antes de

115
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

considerarmos estas dificuldades, regressemos à razão que


nos levou inicialmente a analisar a sua posição. Condorcet
tinha demonstrado que há condições nas quais o voto é um
instrumento extremamente útil para descobrir a verdade
acerca de determinada questão. Se admitirmos que, em
média, as pessoas têm uma probabilidade superior a cin-
quenta por cento de estar certas, então uma decisão tomada
de acordo com a maioria tem uma probabilidade elevada de
alcançar a resposta certa, pelo menos num eleitorado razoa-
velmente numeroso. Mas, para sublinhar de novo as condi-
ções necessárias à aplicação desta descrição, temos primeiro
de garantir que as pessoas votam segundo a sua ideia da
solução certa — e não simplesmente segundo o resultado
que mais as favorece — e que as pessoas têm efectivamente,
em média, uma probabilidade superior a cinquenta por
cento de estar certas. Apresentámos Rousseau como alguém
que compreendera intuitivamente a importância destas
condições e delineara um sistema que lhes obedecia. Vamos
agora ver se este sistema faz realmente isso.
Em primeiro lugar, o que justifica o pressuposto de que,
se as pessoas votarem com base na sua perspectiva do que é
o interesse geral, estarão provavelmente certas? Parte da
resposta tem de ser a nossa observação original de que a
educação era tão importante para Rousseau como para Pla-
tão. Os indivíduos precisam de ser formados em cidadania.
Mas é igualmente vital que Rousseau queira estabelecer uma
sociedade política por forma a que a compreensão da vonta-
de geral não seja difícil, pelo menos se a visão do indivíduo
não estiver toldada por interesses particulares. O interesse
geral é o mesmo para todos os indivíduos e todos são igual-
mente afectados pelas leis aprovadas.
Mas — podemos nós dizer — como pode ser isto? Alguns
são ricos, outros são pobres. Alguns são patrões, outros são
empregados. Como pode toda a gente ser afectada igual-
mente pelas leis? As diferenças de classe implicavam certa-
mente interesses distintos e mesmo opostos. O facto de as
leis não discriminarem pessoa alguma não basta para

116
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

demonstrar que todos serão tratados da mesma forma face à


lei. Isto dá azo a duas linhas de cepticismo. Porquê pensar
que existe sequer uma vontade geral — uma política que
afecte igualmente todas as pessoas? Em segundo lugar,
mesmo que existisse tal vontade, não é provável que esta
fosse fácil de determinar.
Rousseau antecipou estas duas dificuldades e apresentou
uma solução radical para ambas. Para que o seu sistema seja
praticável — afirma — é necessário que não haja grandes
desigualdades. «Nenhum cidadão será alguma vez tão rico
que compre outro, nem tão pobre que seja obrigado a ven-
der-se» (O Contrato Social, livro II, cap. 11, p. 225). Se as
diferenças de classe impossibilitam a formação de uma
vontade colectiva, torna-se forçoso eliminá-las. Todos têm de
estar em pé de igualdade. No mínimo, ninguém deve ser rico
a ponto de conseguir comprar os votos de outras pessoas,
nem tão pobre que se sinta tentado a vendê-los. Rousseau
não se alonga em pormenores sobre o modo como tal igual-
dade se alcançaria e manteria, mas torna-se claro que uma
sociedade sem classes tem grandes vantagens do ponto de
vista da democracia. Tornar-se-ia muito mais provável que
todos fossem afectados da mesma forma pela mesma lei, e,
mais ainda, as complexidades de descobrir a melhor lei ver-
se-iam substancialmente reduzidas. Rousseau, claro está,
aceita que mesmo algumas pessoas que ajam de boa-fé
cometerão erros, mas «os prós e os contras [...] anulam-se
mutuamente e a vontade geral subsistirá enquanto soma das
diferenças» (O Contrato Social, livro II, cap. 3, p. 203).
Embora as pessoas se reúnam regularmente, não serão
chamadas muitas vezes a tomar decisões. Um bom estado
precisa de aprovar poucas leis. Por conseguinte, as pessoas
podem usar todos os seus poderes para se informarem
daquilo que é necessário nos casos em que são chamadas a
votar.
O maior obstáculo à emergência da vontade geral que
Rousseau vê não é a incapacidade de os indivíduos a enten-
derem como tal, mas a sua incapacidade de se sentirem

117
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

suficientemente motivados para agirem em conformidade


com ela. A dificuldade sente-se com maior acutilância
«quando se formam intrigas e associações parciais em detri-
mento da grande associação» (O Contrato Social, livro II, cap.
3, p. 203).
Para vermos este aspecto, regressemos ao exemplo que
usámos para ilustrar a distinção entre a vontade geral e a
vontade de todos. Imaginámos uma quantia de um milhão
de euros a ser dividida por mil empregados. Se estes empre-
gados forem representados por um único sindicato, e pre-
sumindo que não há razões para preferir um empregado em
detrimento de outro, o sindicato requererá simplesmente que
o dinheiro seja dividido equitativamente e cada um receberá
mil euros. Mas suponhamos agora que, em vez de um único,
há dez sindicatos, cada um representando cem trabalhado-
res. Cada um destes sindicatos requererá, sem dúvida, mais
do que a sua «justa parte». Pertencer a tal sindicato, segundo
Rousseau, provocaria a distorção de perspectiva. Um indiví-
duo poderia ser influenciado por argumentos espúrios,
«demonstrando» por que razão os associados do sindicato
em causa deviam receber mais. Usando os termos de Rous-
seau, cada um destes sindicatos teria uma vontade geral
relativa aos seus associados, mas uma vontade particular
relativamente ao todo. Quando se formam «grupos de inte-
resse» e as pessoas votam a favor dos interesses do seu gru-
po particular, deixa de haver razão para acreditar que a
vontade geral emergirá do processo eleitoral.
A principal resposta de Rousseau a isto consiste em reco-
mendar que não haja partidos políticos ou facções, ou, a
existirem alguns, então que sejam numerosos. Desta forma,
os interesses dos grupos particulares terão pouca influência
nas decisões do todo.
Ainda assim, isto não basta para explicar por que vota-
riam os cidadãos a favor da vontade geral, em vez de o
fazerem a favor do seu próprio interesse. A principal solução
avançada por Rousseau para este problema passa por fazer
os indivíduos identificarem-se fortemente com o grupo como

118
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

um todo. Para assegurar isto, o filósofo recorre a vários


instrumentos. O mais óbvio destes já foi referido: a educação
para a virtude cívica. É necessário que as pessoas sejam
educadas da forma correcta para poderem aprender a «esti-
mar-se mutuamente como irmãos». Isto cimenta a relação
social e alarga os horizontes de cada pessoa, permitindo-lhe
interessar-se pelo estado como um todo e, portanto, procurar
naturalmente a promoção da vontade colectiva.
Poderíamos pensar que esta é uma ideia algo sinistra: tem
uma certa sugestão de doutrinação, apesar da obsessão de
Rousseau com a protecção da liberdade do indivíduo, e
alguns críticos afirmaram ter detectado implicações fascistas
ou totalitárias no pensamento de Rousseau. Pretende-se que,
através da educação, as pessoas sejam moldadas de forma a
esquecerem-se de si próprias a bem do estado. Há duas
coisas a dizer em resposta a esta crítica. Em primeiro lugar,
Rousseau admite que deviam existir laços de direito consue-
tudinário e tradição a unir as pessoas antes de ser adequado
receber leis. Assim, a educação torna-se uma forma de for-
malizar e consolidar laços já existentes numa comunidade, e
não a imposição de uma ordem artificial a um grupo diversi-
ficado de pessoas. Em segundo lugar, Rousseau não se preo-
cuparia demasiado ao ouvir que algumas das medidas que
advoga não encontram eco nos liberais modernos. Isto ainda
se torna mais claro nos outros dois instrumentos que advoga
para assegurar a unidade social: «censura» e «religião civil».
Rousseau supõe que o estado necessita de um «censor
oficial» cujo papel seria encorajar as pessoas a agir em con-
formidade com a moral popular. Rousseau não analisa a
censura no seu sentido moderno de supressão de texto ou
imagens, embora isto estivesse certamente incluído no papel
do censor. A principal preocupação de Rousseau centra-se
em fazer adoptar e desencorajar tipos de comportamento.
Essencialmente, a tarefa do censor é ridicularizar, e assim
desencorajar, certas formas de conduta anti-social. Como
exemplo, Rousseau aponta o seguinte: «Certos bêbedos de
Samos profanaram o tribunal dos éforos; no dia seguinte, um

119
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

édito público dava permissão aos habitantes de Samos para


serem imundos. Um verdadeiro castigo não teria sido uma
impunidade tão severa» (O Contrato Social, livro IV, cap. 8, p.
298). Através destes meios, o censor está encarregado do
dever de manter, e clarificar sempre que necessário, a moral
pública.
Como dispositivo final para assegurar a unidade social,
Rousseau propõe que cada estado seja regulamentado por
aquilo a que chama «religião civil». Em poucas palavras, há
três partes na descrição que Rousseau faz da religião. Em
primeiro lugar, exige que todo o cidadão professe uma ou
outra religião, pois isto «fá-lo-á amar o seu dever». Em
segundo lugar, devem tolerar-se várias religiões, mas apenas
aquelas que contenham um princípio de tolerância. De outra
forma, alguns cidadãos acabarão por tornar-se inimigos, o
que é contrário à ideia de paz social. Finalmente, e mais
distintamente, além da moral privada, cada pessoa tem de
professar a religião civil. Esta deverá conter artigos que «não
são exactamente […] dogmas religiosos, mas […] sentimen-
tos sociais sem os quais um homem não pode ser bom cida-
dão nem um súbdito leal» (O Contrato Social, livro IV, cap. 8,
p. 307).
Em suma, então, se o sistema de Rousseau vigorasse, teria
grande probabilidade de satisfazer as duas condições que
estabelecemos para a verificação do argumento de Condor-
cet. As condições eram que o povo tinha de votar com base
na moral, e não no interesse próprio, e ter, em média, uma
probabilidade superior a cinquenta por cento de chegar à
resposta moralmente correcta. No estado ideal de Rousseau,
é plausível que estas condições se observem. Claro que não
se pode daí depreender que a aceitação das propostas de
Rousseau constitui a única forma de satisfazer as condições;
talvez possamos divisar um sistema alternativo. Mas cen-
tremo-nos em Rousseau. Mesmo admitindo que o seu siste-
ma satisfaz as condições de Condorcet, será um sistema que
deveríamos adoptar?

120
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Liberdade e igualdade

Recordemos a análise anterior: apontámos, essencialmen-


te, dois tipos de resposta a Platão. Uma consistia em afirmar
que a democracia, em princípio, é uma forma de alcançar o
«resultado certo» que, pelo menos, é tão boa, se não melhor,
do que a governação conduzida por especialistas. Esta forma
instrumental de justificação, como a designámos, correspon-
de ao argumento de Rousseau que acabámos de considerar.
O segundo tipo de resposta consistia em analisar o valor
intrínseco da democracia. Podemos ver isto, essencialmente,
como a questão de quão bem a democracia exprime ou pro-
move os valores da liberdade e da igualdade. A análise desta
questão terá a vantagem adicional de nos ajudar a decidir se
desejaríamos ver o sistema de Rousseau aplicado na prática.
Em primeiro lugar, então, até que ponto a forma de
governo de Rousseau dá expressão à ideia de igualdade? A
igualdade entrou no argumento através da ideia, entre
outras, de que, sem uma igualdade aproximada de riqueza,
formar-se-iam facções. Isto não só turvaria o juízo dos eleito-
res como criaria talvez um obstáculo à existência de uma
vontade colectiva: uma política que considerasse igualmente
os interessantes de todos os eleitores. Os ricos procurariam
obter um conjunto de leis que os beneficiasse especificamen-
te e teriam o dinheiro e a influência para determinar as coi-
sas a seu favor. Assim, como notámos, Rousseau admite que
a democracia genuína pressupõe uma sociedade sem classes.
Todavia, a própria ideia de vontade geral é ainda mais
fortemente igualitária. A política correcta é aquela que bene-
ficia de igual modo todos os cidadãos. Aparentemente,
então, seria difícil conceber um sistema que atribuísse maior
peso à igualdade, particularmente quando combinado com o
princípio democrático de que todos os cidadãos têm uma
palavra a dizer na tentativa de determinar a natureza da
vontade geral em cada caso.
Infelizmente, a aparência de igualdade no sistema de
Rousseau é algo enganadora. Rousseau usa sempre o género

121
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

masculino quando se refere aos cidadãos. Não é por acaso.


Rousseau pensava que as mulheres eram seres subordinados
e parece ter simplesmente presumido que o privilégio da
cidadania devia aplicar-se somente aos homens. Assim, a
doutrina da igualdade dos cidadãos sai substancialmente
prejudicada pelo pressuposto de Rousseau de que haveria
naturalmente desigualdades entre cidadãos e cidadãs.
Esta inconsistência no sistema de Rousseau foi abordada
por Mary Wollstonecraft, porventura a primeira maior
defensora dos direitos das mulheres, na sua obra Vindication
of the Rights of Women, publicada em 1792. Nesse trabalho,
Mary Wollstonecraft afirmava que não havia qualquer razão
para a exclusão das mulheres da cidadania. Mas mesmo ela
teve um ponto fraco. Wollstonecraft presumia que a cidadã
emancipada tinha empregadas domésticas, e a ideia de que
tais empregadas deveriam igualmente ter direito de voto
parece ter sido algo que ignorou, simplesmente. Pressupu-
nha-se geralmente, até há relativamente pouco tempo, que as
únicas pessoas com direito de voto eram aquelas que pos-
suíam alguma riqueza no país. Não se podia garantir que as
que não detinham riqueza usassem os seus votos «responsa-
velmente».
Contudo, a motivação que impelia Wollstonecraft, Rous-
seau e, na verdade, os antigos gregos, era o pensamento mais
mundano de que as pessoas activas no exercício da sua
cidadania não têm tempo para lavar a roupa ou cozinhar.
Desempenhar o seu dever enquanto cidadão activo tem
custos em termos de tempo, se a pessoa quiser manter-se
informada e estar presente no fórum público ou assembleia.
Todos os envolvidos na vida pública necessitam de pessoal
doméstico de apoio. Os gregos tinham como dado adquirido
que a democracia era compatível com a escravatura. Rous-
seau pensava que era compatível com a desigualdade entre
os sexos, e Wollstonecraft que era compatível com privar os
pobres dos seus direitos civis. Foram duas as coisas que
desencadearam as mudanças que tornaram possível o sufrá-
gio universal. A primeira (bastante deprimente) foi a opinião

122
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

de que o direito de voto não traz consigo uma responsabili-


dade onerosa de uma pessoa se manter bem informada
acerca das questões políticas e económicas; a segunda foi
que, pelo menos no mundo desenvolvido, os electrodomésti-
cos facilitaram consideravelmente as tarefas do trabalho
doméstico. Poderá ser exagero dizer que a máquina de lavar
roupa tornou possível a democracia, mas certamente ajudou.
Todavia, apesar da exclusão das mulheres dos direitos
civis que se encontra em Rousseau, a lógica real do pensa-
mento político deste implica que não haja uma boa razão
para esta exclusão. Podemos, então, construir um modelo de
igualdade genuína com base nas propostas de Rousseau.
Isto no que respeita à igualdade. E em relação à liberda-
de? Não é difícil detectar limitações significativas de liber-
dade na forma de governo escolhida por Rousseau. A restri-
ção central é apenas o reverso da medalha da criação do elo
social. A liberdade de pensamento é substancialmente res-
tringida, em especial na área da religião. Em primeiro lugar,
o ateísmo não é possível. Em segundo, as religiões intoleran-
tes não são toleradas. Em terceiro, todos têm de professar a
religião civil. E ai do hipócrita: «Se alguém, depois de ter
reconhecido publicamente estes dogmas [da religião civil], se
conduzir como se não acreditasse neles, que seja punido com
a morte; praticou o pior dos crimes: o de mentir perante a
lei» (O Contrato Social, livro IV, cap. 8, p. 307). Quando acres-
centamos a isto a existência do cargo de censor, cuja função é
zelar pela moral pública ou tradicional, os indivíduos pare-
cem perder toda a liberdade de não ser convencionais. Sem
dúvida que isto incluiria igualmente restrições aplicáveis às
pessoas a conduzir «experiências de vida», para utilizar uma
expressão que encontraremos mais adiante, na análise das
considerações de Mill sobre a liberdade, no capítulo seguin-
te.
Com este enquadramento não liberal restritivo em mente,
podemos perguntar como podia Rousseau afirmar ter resol-
vido o problema de encontrar uma forma de associação na
qual, «embora em união com todos, [o associado] possa

123
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

ainda assim obedecer apenas a si próprio e permanecer tão


livre quanto antes» (O Contrato Social, livro I, cap. 6, p. 191).
A resposta é que Rousseau defende a noção de liberdade
a que chama «positiva». Analisaremos esta ideia mais deti-
damente no próximo capítulo, mas o conceito subjacente é
que a liberdade não é simplesmente uma questão de poder
atender aos seus desejos, sem limitações impostas pelos
outros (uma noção «negativa») mas, em vez disso, algo que
requer determinados tipos de acção. Tipicamente, os propo-
nentes da teoria da liberdade positiva definem a liberdade
em termos de «viver a vida que a pessoa racional escolheria
viver». No caso de Rousseau, essa vida — a vida racional —
só é possível numa sociedade civil. «O mero impulso do
apetite é escravidão, ao passo que o cumprimento de uma lei
que impusemos a nós próprios é liberdade» (O Contrato
Social, livro I, cap. 8, p. 196). Claro que impomos as leis a nós
próprios através da votação na qualidade de membro do
Soberano. É apenas agindo em conformidade com as leis
criadas pelo Soberano — agindo segundo a vontade colecti-
va — que podemos ser considerados verdadeiramente livres,
de acordo com Rousseau.
Alguns críticos comentaram que, nesta perspectiva, é
possível ser-se «obrigado a ser livre»: na verdade, esta é uma
expressão que o próprio Rousseau utiliza. Consideremos o
caso de alguém que acredita que a vontade geral requer uma
política (política A), ao passo que maioria adopta outra
(política B). A política B, suponhamos, representa a vontade
geral. Nesse caso, a pessoa em causa será obrigada a agir
conforme a política B e portanto, como a liberdade é identifi-
cada com a acção segundo a vontade geral, essa pessoa é
obrigada a ser livre. Rousseau diria que tudo o resto — fazer
o que se prefere, por exemplo — é escravidão face aos nossos
impulsos e não verdadeira liberdade. Os opositores de Rous-
seau observaram que, nesta base, mesmo os regimes muito
opressivos podem ser defendidos com base na ideia de que
apoiam a liberdade. Assim, mesmo que consigamos salvar o
sistema de Rousseau da desigualdade, não é claro que pos-

124
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

samos dizer — como Rousseau quer — que tal sistema pro-


move o valor da liberdade.

Crítica radical a Rousseau

Esta crítica foi retomada e desenvolvida por determina-


dos autores contemporâneos que, ao mesmo tempo que são
fortemente influenciados pela obra de Rousseau, sentem que
o seu ideal de estado precisa de ser melhorado e corrigido
em vários aspectos. Há três críticas a fazer, todas intimamen-
te relacionadas entre si.
A primeira centra-se na ideia da vontade geral. Mesmo a
ser verdade que numa sociedade intimamente unificada e
muito igual seja possível formar-se e identificar-se facilmente
uma vontade geral, não é verdade que as sociedades moder-
nas correspondam a este ideal, nem seria desejável que
correspondessem. A classe económica não constitui o único
obstáculo à formação de uma vontade geral: também profes-
samos diferentes religiões, temos diferentes ideias morais e
filosóficas, somos oriundos de diferentes meios culturais,
étnicos e raciais. Ora isto não significa que nunca possa
haver uma política que sirva igualmente os interesses de
todos: apesar das nossas diferenças, temos necessidades
básicas semelhantes. Mas além disto, o facto de valorizarmos
coisas diferentes — o progresso económico ou a protecção do
meio ambiente, por exemplo — pode dar azo a conflitos.
Assim, em relação a inúmeras questões, é pouco provável
que possa existir uma política qualquer que sirva igualmente
os interesses de todos. Ou, a haver, que fosse facilmente
discernível. Talvez, então, tenhamos simplesmente de aban-
donar o pressuposto central de Rousseau de que os cidadãos
podem dar às suas vontades a forma de uma vontade geral.
Em segundo lugar, o tratamento de Rousseau daqueles
que perfilham uma opinião minoritária dificilmente é admi-
rável. Quem discorda é «obrigado a ser livre». Aqueles que
primeiro professarem os princípios da religião civil e depois
lhes desobedecerem são condenados à morte. Contra o pano

125
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

de fundo da unidade coesa do estado, a dissensão é um


crime e o crime é traição. Isto poderia ser marginalmente
defensável se a maioria estivesse sempre certa relativamente
à vontade geral e, por conseguinte, se os dissidentes estives-
sem enganados ou fossem anti-sociais. Mas se não existir
vontade geral, este argumento torna-se aterrador em mais de
um sentido.
Por fim, os críticos de Rousseau não aceitam que a liber-
dade seja identificada com a obediência, mesmo tratando-se
da «obediência a uma lei que fizemos para nós próprios».
Ou, por outras palavras, no sistema de Rousseau, «fazer uma
lei para si próprio» é meramente uma questão de ter algo a
dizer no processo de tomada de decisões. Mas suponhamos,
novamente, que estamos em minoria e as nossas opiniões
não se tornam lei. Nesse caso, embora se possa justificar a
coacção de tais pessoas à obediência à lei, parece afrontoso
dizer que tal coacção as torna «livres» e que elas estão a ser
levadas a obedecer à lei que criaram para si mesmas. Embora
a minoria tenha tomado parte no processo de tomada de
decisão, a lei foi criada apesar dela, e não por causa dela.
A força destas críticas pode agora ser avaliada. Para Rous-
seau conseguir afirmar que a democracia se justifica instru-
mentalmente — que é uma forma muitíssimo fidedigna de
atingir resultados moralmente correctos — tem de apertar
com muita força os laços da unidade social. Aperta-os com
tanta força que, na verdade, o sistema se torna inaceitavel-
mente repressivo. Assim, as mesmas medidas que, no mode-
lo de Rousseau, permitem que a democracia seja defensável
em termos instrumentais, também a tornam intrinsecamente
indesejável. Numa forma alterada pode alcançar a igualda-
de, mas não a liberdade por nós reconhecida enquanto tal,
nem o pluralismo ou a diversidade. O preço que temos de
pagar pela vontade geral é demasiado elevado.
Deste modo, o sistema de Rousseau precisa de ser corri-
gido. E, efectivamente, à luz destas críticas podemos apontar
outra estranheza na forma de governo ideal de Rousseau —
estranheza que, até ao momento, passou despercebida nesta

126
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

análise. Trata-se do ponto até ao qual Rousseau permite a


genuína participação política. Apesar de os cidadãos de
Rousseau serem regularmente chamados a votar, este filóso-
fo parece desencorajá-los, algo paradoxalmente, de assumir
um papel demasiado activo na política. Primeiro, como
vimos, não advoga a criação de uma assembleia democrática,
e, segundo, o pressuposto de que apenas uma percepção
turva se atravessa no caminho da unanimidade, levam Rous-
seau a concluir que «longos debates, dissensões e tumultos
prenunciam a ascendência de interesses particulares e o
declínio do estado» (O Contrato Social, livro IV, cap. 2, p.
276).
Todavia, uma vez abandonado o pressuposto de que
podemos regular e facilmente apreender a vontade geral —
na verdade, se abandonarmos o pressuposto de que existe
sequer uma vontade geral — a política assume novos mol-
des. Parece agora haver uma necessidade urgente de ouvir
todas as vozes, todos os argumentos e todas as posições.
Podemos continuar a defender que os eleitores visam «o
melhor» para a comunidade. Mas talvez «o melhor» seja, em
qualquer dos casos, uma questão muitíssimo discutível.
Além disso, será provavelmente muito controverso definir
quais as políticas que teriam maior probabilidade de o alcan-
çar.
Assim, os críticos de Rousseau afirmaram que o debate
político amplo não é sinal de decadência, mas, ao invés, é
vital para o funcionamento da política democrática. Além
disso, as minorias derrotadas na votação não têm qualquer
dever de mudar de opinião acerca daquilo que é correcto.
Em geral, esperamos que obedeçam à lei, mas podem conti-
nuar a exprimir-se e, se se sentirem suficientemente fortes, a
agitar com vista à mudança. Talvez a desobediência civil se
possa também justificar numa base democrática. Se acredi-
tarmos sinceramente que a maioria tomou a decisão errada,
podemos não só ter o direito como também o dever de cha-
mar a atenção de todos para isso, por todos os meios neces-
sários. O tratamento da desobediência conscienciosa como

127
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

traição, por forma a preservar a unidade social, é certamente


um erro. O cidadão discordante tem o seu lugar. Não deve
ser silenciado/a para manter a paz. Talvez a maioria esteja
errada. Mas mesmo que a maioria esteja certa, deve-se ainda
assim prestar a devida atenção àqueles que discordam.

Democracia participativa

Estas objecções conduziram-nos a um novo modelo de


democracia, muito influenciado por Rousseau, mas com um
respeito muito maior pelo indivíduo, pelo debate e pelas
opiniões minoritárias. Esta é a teoria da «democracia partici-
pativa». Essencialmente, amplia de três formas o modelo de
Rousseau.
Em primeiro lugar, afirma que temos de permitir um
maior envolvimento individual na discussão e tomada de
decisões políticas do que Rousseau permitia, assim como
conceder mais oportunidades e respeito às vozes discordan-
tes.
Em segundo lugar, admite que a distinção de Rousseau
entre o Soberano e o executivo precisa de ser repensada.
Pode dar-se o caso de nem todos conseguirmos participar em
cada decisão política, por razões de ordem prática. Mas,
uma vez abandonado o pressuposto de que existe uma von-
tade geral, deixa de haver razão para restringir a tomada
individual de decisões à legislação. Talvez todos os cidadãos
devam ser envolvidos nas decisões relativas aos mais impor-
tantes «actos particulares» da administração, especialmente
quando nos recordamos de que a declaração de guerra é
considerada por Rousseau uma acção do executivo, e não do
Soberano.
Muitas das dificuldades práticas reconhecidas por Rous-
seau como obstáculos à concretização de uma política mais
participativa podiam ser facilmente ultrapassadas recorren-
do à tecnologia moderna. Não há necessidade de reunir
todas as pessoas num local, seja ele sob um carvalho ou na
praça pública. A televisão interactiva por cabo, o correio

128
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

electrónico e outros aspectos da tecnologia da informação


podem ser chamados a servir de alternativas à reunião no
burgo. Qualquer cidadão pode enviar discursos políticos em
circulares electrónicas. É possível votar com um toque numa
tecla. Pode cumprir-se o nosso dever democrático a partir do
conforto da nossa poltrona preferida!
Finalmente, os defensores da ideia da democracia partici-
pativa afirmaram que a tomada de decisões políticas deve,
com efeito, abranger todas as situações. As pessoas devem
ser consultadas não apenas relativamente a matérias legisla-
tivas, mas a todas as decisões que as afectam. Assim, propõe-
se que sigamos os princípios democráticos da tomada de
decisões não apenas no fórum público, mas também no local
de trabalho, na família e noutras instituições da sociedade
civil. De que vale o voto em questões de política industrial
quando as matérias de interesse mais imediato — a natureza
do ambiente de trabalho da pessoa, saber se amanhã conti-
nuará a ter emprego — dependem das decisões absolutas de
outra pessoa: o patrão. Como Marx observou, e como as
mulheres aprenderam à sua custa, vale a pena lutar por
direitos políticos iguais, mas estes terão pouco valor se no
dia-a-dia se continuar a ser tratado de forma discriminatória.
A remoção de impedimentos ou restrições legais não conduz
necessariamente a uma melhoria da posição individual.
Os partidários da política participativa afirmam que
apenas o envolvimento activo e democrático em todas as
questões relevantes pode resultar na verdadeira liberdade e
na igualdade para todos. Só quando nos encontramos envol-
vidos na tomada das decisões que estruturam as nossas
vidas em todas as esferas somos realmente livres, afirmam.
Situando isto no contexto da discussão da obrigação política
do último capítulo, só numa democracia participativa se
observam os pressupostos voluntaristas da teoria do contra-
to social. Numa tal sociedade, poderemos ser genuinamente
considerados elementos que contribuem voluntariamente. E
assim, nesta óptica, é apenas nestas condições que podemos
sequer contrair uma obrigação de obedecer ao estado.

129
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

A ideia de uma política participativa é aparentemente


atraente. Submetemo-nos às decisões tomadas a nível nacio-
nal e local — temos de obedecer às regras — e, por isso,
deveríamos certamente ter um papel a desempenhar
enquanto autores dessas decisões. Só quando fazemos ver-
dadeiramente as leis às quais estamos sujeitos podemos
conciliar genuinamente liberdade e autoridade. Mas não é
difícil encontrar falhas no sistema, tal como foi delineado.
Qualquer modelo completamente participativo ver-se-ia a
braços com graves dificuldades, e foi talvez por isso que
Rousseau impôs tais limites ao seu sistema.
A primeira dificuldade é que a política completamente
participativa dificilmente será concebível, e mesmo que o
seja, é provável que se revele extremamente ineficiente. John
Stuart Mill observou que, ao passo que, em termos de delibe-
ração, os grupos são preferíveis aos indivíduos isolados, os
indivíduos são muito melhores do que os grupos no que toca
à acção. Assim, se um grupo desejar ver implementadas as
suas decisões, terá sempre de delegar isso num indivíduo.
Em resposta, dir-se-á que ninguém propôs realmente que,
de alguma forma, «todas as pessoas» pusessem em prática as
suas próprias instruções. Claro que é necessário nomear
administradores. Mas todas as pessoas, ou, pelo menos,
todas as pessoas afectadas pelas decisões, se irão envolver na
tomada de decisões. Por outro lado, embora a deliberação se
faça melhor em grupo do que individualmente, não se
depreende daí que quanto maior for o grupo melhor será a
deliberação. Na verdade, é provável que um grupo pequeno
e bem escolhido delibere melhor do que um maior. Os gru-
pos grandes criam ruído, digressões e confusão. Os melhores
argumentos poderão nunca ser ouvidos. Portanto, em demo-
cracia há certamente lugar para decisores especializados e
uma política completamente participativa poderá ter dificul-
dade em atribuir a essas pessoas um papel adequado.
O segundo problema é algo mais subtil, mas, ainda assim,
suficientemente óbvio. Na fantasia política informatizada,
chegamos a casa e encontramos uma lista de questões para

130
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

esse dia. Mas por que iríamos votar a respeito de um conjun-


to de questões em detrimento de outro? Por outras palavras,
quem determina a ordem de trabalhos? Esta não é uma
questão trivial. Muitas vezes, a pessoa com mais poder não é
quem decide entre «sim» ou «não», mas antes a pessoa que
coloca inicialmente a pergunta. A política participativa tor-
na-se muito menos atraente se a ordem de trabalhos for
determinada por funcionários nomeados para tal.
Em resposta, dir-se-á que «o povo» pode determinar a
ordem de trabalhos. E votará nas questões postas a votação.
Mas como se definirá a ordem de trabalhos para o primeiro
encontro? Por eleição? E por aí fora. A ideia de que podía-
mos ter uma política participativa em todos os níveis começa
a parecer ingénua e até incoerente.
Evidentemente, há formas de contornar isto. Talvez
pudéssemos nomear, por sorteio, um «presidente por um
dia», cuja função fosse determinar a ordem de trabalhos
desse dia. Contudo, reflectindo no assunto, parece-nos que a
ausência de continuidade num tal sistema redundaria em
desastre. A opinião de Rousseau de que a sociedade funcio-
naria melhor se houvesse menos decisões a ser tomadas pelo
povo como um todo começa a parecer muito mais atraente.
Mas mesmo Rousseau não adiantou muito sobre o problema
da definição da ordem de trabalhos. O melhor que conseguiu
fazer foi propor que aqueles que redigem os esboços das leis
a levar a votação fossem excluídos do eleitorado. Isto parece
uma forma de defender um funcionalismo civil poderoso,
independente e apolítico: uma ideia muito distante do objec-
tivo da participação.
Por fim, o problema mais óbvio foi já identificado por
Rousseau. Oscar Wilde disse que «o problema do Socialismo
é ocupar demasiadas noites». Muitos críticos da democracia
participativa citaram estas palavras como ainda mais apro-
priadas neste contexto. O que está em causa é que, embora
queiramos envolver-nos activamente nas decisões que nos
dizem respeito, também queremos fazer muitas outras coi-
sas. Não é claro que devamos desistir de outras coisas que

131
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

valorizamos igualmente — ouvir música, conversar com os


nossos amigos e familiares, e mesmo ver televisão — para
podermos ter uma palavra a dizer em relação a todas as
decisões que nos afectam. E quando ampliamos a participa-
ção política ao local de trabalho, a participação passa a ocu-
par-nos não só as noites como também a maior parte dos
nossos dias. Ao pretender que todos desempenhem um
papel activo e igual na política, arriscamo-nos, se não a
morrer à fome, pelo menos a ter dias de trabalho muito
menos produtivos.
Resumindo, embora a ideia de democracia participativa
seja muito atraente, é difícil ver como podemos fazê-la fun-
cionar de uma forma que valha a pena o esforço. Mesmo que
uma sociedade participativa seja melhor do ponto de vista
da preservação da liberdade e da igualdade, parece não ser
tão boa do ponto de vista da prosperidade e da realização de
planos de vida. Não se consegue encontrar algo melhor?

Democracia representativa

A participação deve ser tão ampla quanto o permita o grau geral


de progresso da comunidade; e, em última análise, nada pode ser
mais desejável do que a admissão de todos a uma parte do poder
político do estado. Mas, uma vez que nem todos, numa comuni-
dade que exceda uma pequena cidade, podem participar pes-
soalmente em mais do que algumas partes menores dos assuntos
públicos, segue-se que o tipo ideal de governo perfeito é forço-
samente representativo.
(Mill, O Governo Representativo, 217-18)

Qualquer sistema governativo — mesmo a democracia


participativa mais radical — precisa de administradores que
executem as políticas. A passagem à prática das decisões não
pode ser desempenhada pelas pessoas na sua totalidade.
Uma questão suplementar é saber que poderes atribuir a
esses administradores. No modelo canónico de democracia
participativa pressupõe-se que se deve atribuir pouquíssimo
poder aos administradores, reservando-se o máximo de

132
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

poder possível para o povo. No sistema de Platão, no outro


extremo, o povo não desempenha qualquer papel e os admi-
nistradores — os guardiães — detêm todo o poder. Rousseau
decidiu a questão de uma terceira forma: o povo faz as leis e
os administradores executam-nas. Mas há outro modelo
disponível, que nos é mais familiar. As pessoas elegem
representantes que tanto fazem as leis como as põem em
prática. Esta é a ideia de democracia representativa defendi-
da por Mill.
Para Mill, a democracia representativa é o único modo de
conseguir que a democracia sobreviva no mundo moderno.
Para compreendermos a razão que leva Mill a afirmar isto,
temos de investigar, em primeiro lugar, que função atribuía
Mill aos governos. Qual é o objectivo dos governos? Para
Mill, é duplo: contribuir para o «progresso» dos cidadãos e
gerir os seus assuntos públicos. Assim, os governos serão
julgados pelos efeitos que exercem sobre os indivíduos, se
contribuem para o seu progresso moral e intelectual, e pela
eficiência evidenciada no tratamento das questões de inte-
resse público. Neste último aspecto, Mill reconhece que há
muitas ramificações governativas — jurisprudência, legisla-
ção civil e penal, política financeira e comercial — cada uma
com medidas específicas de sucesso e fracasso. Embora, para
Mill, a medida fundamental de cada uma delas seja a mesma
— até que ponto contribui para o aumento da felicidade
geral — esta afirmação não é essencial para o argumento
principal, tal como este foi desenvolvido até ao momento.
Não surpreende que se diga que se exige aos governos
que façam a gestão eficaz dos assuntos da sociedade. Mas a
concepção de Mill acerca da outra função adequada do
governo é mais controversa. Terão os governos o dever, ou
mesmo o direito, de zelarem pelo bem-estar moral dos cida-
dãos? Um importante tema do liberalismo moderno consiste
precisamente em defender que o bem-estar moral dos cida-
dãos não diz respeito ao governo. E, assim, é estranho ver
Mill — um dos fundadores da teoria liberal moderna —
fazer tal afirmação. Mas deixemos isto de lado, de momento,

133
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

pois regressaremos à questão mais adiante, com maior pro-


fundidade, no próximo capítulo e no capítulo final.
Mill pensa que é fácil demonstrar as vantagens do seu
sistema relativamente ao que designa como bom despotis-
mo, ou monarquia absoluta, sendo que isto inclui também o
sistema de guardiães de Platão. A função de gestão do
governo, admite Mill, poderia ser levada a cabo por um
déspota, embora, conforme afirma, não tão bem como numa
democracia. Mas o seu argumento principal contra o despo-
tismo é o tipo de seres humanos que este sistema político
provavelmente criaria.
Mill afirma que o despotismo conduz à passividade e à
inacção, pois cria um povo que não sente necessidade de se
informar ou cultivar relativamente aos assuntos do estado.
Isto afecta não só os próprios indivíduos, mas também a
provável prosperidade do estado. «Deixemos que uma pes-
soa nada tenha a ver com o seu país, e este deixará de lhe
interessar» (O Governo Representativo, 204). Ou então, se os
súbditos se informam e cultivam, e se interessam activamen-
te pelos assuntos do estado, não permanecerão muito tempo
satisfeitos com a sua sujeição.
A serem necessárias mais provas das vantagens da demo-
cracia, Mill propõe o seguinte:

Comparem-se os estados livres do mundo, enquanto a sua liberda-


de durou, com os súbditos contemporâneos do despotismo monárqui-
co ou oligárquico: as cidades gregas com as satrapias persas; as repú-
blicas italianas e as cidades da Flandres e da Alemanha com as monar-
quias feudais da Europa; a Suíça, a Holanda e a Inglaterra com a Áus-
tria e a França anterior à revolução. A sua superior prosperidade foi
demasiado óbvia para alguma vez ter sido refutada: a sua superiori-
dade no bom governo e nas relações sociais prova-se pela prosperida-
de e é manifesta, além disso, em todas as páginas da História. (O
Governo Representativo, 210)

O pressuposto essencial de Mill é que os seres humanos


prosperam apenas em condições de independência. Precisam
de se bastar em termos de protecção e de ser independentes,
para evitarem a opressão e fazerem as suas vidas valer a

134
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

pena. Assim, Mill está convicto de que todos os cidadãos têm


de desempenhar o seu papel no exercício da soberania.
Mas em que deve consistir o exercício da soberania?
Segundo Mill, não se trata de democracia directa. Se pressio-
nado, poderia admitir que a democracia directa seria a
melhor forma de contribuir para o progresso dos cidadãos,
tanto moral como intelectual, mas, em termos da sua eficiên-
cia como forma de governo, é um desastre. Um argumento
consiste em constatar que as sociedades modernas são sim-
plesmente demasiado grandes para que a democracia directa
seja possível. Mas, e mais importante, por palavras não
muito diferentes das de Platão, Mill afirma que as coisas
correriam muito mal se deixássemos o povo exercer grande
influência sobre os administradores especializados nomea-
dos.

Na melhor das hipóteses, é a inexperiência a julgar a experiência, a


ignorância a julgar o conhecimento; ignorância que, nunca suspeitando
da existência daquilo que não conhece, é igualmente descuidada e
arrogante, menosprezando todas as pretensões — se não ofendendo-se
com elas — a um juízo mais valioso do que o seu próprio. (O Governo
Representativo, 232)

Contudo, os críticos da democracia representativa afir-


mam que esta não é tanto um passo desejável a partir da
democracia directa na direcção do realismo, como um afas-
tamento insano em relação a toda a forma de democracia.
Esta é claramente a opinião de Rousseau (recordemos os
seus comentários acerca do «povo de Inglaterra»). Será a
democracia representativa mais do que um logro, sob o qual
espreita a ditadura electiva? A ser assim, dificilmente se
poderia recomendar como sistema de poder igual ou como
sistema que pressupõe e aumenta o desenvolvimento moral
e intelectual dos cidadãos.
Mill admite que a democracia representativa poderá não
conseguir alcançar os seus objectivos. Mas faz questão em
apresentar um sistema que terá melhores resultados. Em
especial, sublinha a importância de educar os cidadãos para

135
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

a cidadania. O meio mais significativo de fazer isto é através


da participação nas questões públicas. Embora, claro está,
isto não possa implicar a participação de todos no governo
nacional, há outras possibilidades. Assim, por exemplo, Mill
aponta para a importância dos jurados e da participação no
governo local, pois isto obriga os cidadãos a adquirirem uma
gama de competências que não estarão provavelmente ao
alcance daqueles «que nada fizeram nas suas vidas a não ser
manejar uma pena e vender mercadoria a um balcão» (O
Governo Representativo, 217).
Contudo, esta participação, por si, não basta para garantir
as vantagens da democracia representativa. Mill identifica
várias ameaças à democracia. Uma delas é a possibilidade de
que o sistema encoraje pessoas sem valor ou inaptas a apre-
sentarem-se a eleições. Mill concorda com Platão quanto às
pessoas mais bem equipadas para governar serem aquelas
que menos o quererão fazer. Ou, inversamente, as caracterís-
ticas que mais provavelmente conduzem ao sucesso na
política — bajulação, duplicidade, manipulação — são aque-
las que menos desejaríamos ver nos nossos governantes.
Assim, a democracia representativa tem de enfrentar o
mesmo problema que vemos no sistema de guardiães de
Platão: como fazer para nos protegermos de líderes indesejá-
veis que cheguem ao poder. Este problema foi analisado
pormenorizadamente em The Federalist Papers, escrito por
James Madison, Alexander Hamilton (1757-1804) e John Fay
(1745-1829) e publicado sob o pseudónimo «Publius», duran-
te uma série de dez meses, em 1787 e 1788, em vários jornais
nova-iorquinos. Os artigos estavam escritos por forma a
convencer os eleitores do Estado de Nova Iorque a ratifica-
rem a nova Constituição dos Estados Unidos. Os federalistas
apoiavam o que designavam como «república», termo com o
qual se referiam, grosso modo, ao sistema que temos vindo a
chamar democracia representativa. Por outro lado, alguns
anti-federalistas, ao invés, preferiam estilos participativos de
democracia e colocaram aos federalistas o problema de
demonstrar como era possível evitar que a democracia

136
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

representativa caísse numa tirania electiva. A principal


proposta dos federalistas, a este respeito, foi retomar a ideia
da «separação de poderes», apresentada por John Locke e
Charles-Louis de Secondat, Barão de Montesquieu (1689-
1755), e que defendia que as funções legislativa, executiva e
judicial do governo fossem postas em mãos diferentes. Teo-
ricamente, isto significava que as actividades de qualquer
ramo de governo seriam verificadas pelos outros dois e isto
daria às pessoas uma garantia da inexistência de corrupção
entre os governantes.
Mill aceita que o poder deveria ser distribuído pelas
agências do Estado, como forma de pôr em prática um sis-
tema de controlo, de forma que os demasiado ambiciosos
teriam poucas possibilidades de explorar o poder por eles
detido. Mas também sugere outras medidas que visam evitar
o abuso do processo democrático. Propõe o estabelecimento
de limites relativamente ao dinheiro que se pode despender
na campanha eleitoral. Como podemos confiar em alguém
que se mostre disposto a gastar uma enorme quantia de
dinheiro para ser eleito? Certamente que procuraria obter
uma compensação para o dinheiro despendido. Em segundo
lugar, Mill afirma, algo surpreendentemente, que os elemen-
tos do governo não deveriam ser remunerados. De outra
forma, um assento parlamentar «tornar-se-ia objecto da
cobiça de aventureiros de uma classe baixa» (O Governo
Representativo, 311). Aqueles que não tivessem independên-
cia económica, mas fossem obviamente adequados e capa-
zes, manter-se-iam graças a donativos particulares dos seus
constituintes.
Todavia, o maior obstáculo ao governo representativo é o
possível comportamento dos eleitores. Para Mill, é funda-
mental que os eleitores votem de acordo com o que pensam
ser o interesse geral; ou seja, deviam votar nos candidatos
que considerassem mais promissores para o bem-estar dos
cidadãos e a gestão eficiente dos assuntos do país no interes-
se de todos. Neste passo, este filósofo utiliza uma analogia
com os jurados:

137
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

O voto [do cidadão] não é coisa na qual ele tenha qualquer opção:
não tem mais a ver com os seus desejos pessoais do que o veredicto de
um jurado. É estritamente uma questão de dever: ele é chamado a pro-
nunciar-se de acordo com a sua melhor e mais conscienciosa opinião
acerca do bem público. (O Governo Representativo, 299)

Compreende-se assim a extraordinária importância dos


júris como forma de participação. Educam os eleitores insti-
lando-lhes uma formação muitíssimo depurada e concentra-
da para a democracia.
A preocupação de Mill é que o eleitor contribua com um
«voto vil e malicioso […] baseado no seu interesse pessoal,
ou na sua classe, ou em qualquer sentimento mesquinho
presente no seu próprio espírito» (O Governo Representativo,
302). E também pode dar-se o caso de os eleitores serem
demasiado ignorantes para apreender correctamente o bem
público.
Um remédio que Mill vê para o primeiro destes proble-
mas é haver uma votação não secreta, e não um escrutínio
secreto. Como as pessoas têm o dever de votar pelo bem
comum, é razoável que devam ser responsabilizadas pelo
seu voto. Por conseguinte, seria necessário um registo públi-
co. Assim, a desaprovação pública agiria como uma força
que impediria as pessoas de exercer o seu voto apenas por
razões de interesse próprio. O perigo que há nisto, reconhece
Mill, é a coerção. As votações secretas foram introduzidas
porque os indivíduos locais poderosos pressionavam as
pessoas — em especial, se trabalhassem para si — no sentido
de votarem com determinada orientação, recorrendo à
ameaça de perda de emprego ou de outros favores, se não
cumprissem as instruções dadas. A votação secreta esvazia
esta ameaça: ninguém pode saber quem votou por que can-
didato. Mill, ingenuamente, acredita que este perigo é menor
do que a possibilidade de uma votação «vil» ou de acordo
com interesses próprios, que distorceria o escrutínio. A
posição de Mill é, sem dúvida, profundamente questionável.

138
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

O outro remédio de Mill — para evitar os efeitos distor-


cedores dos interesses pessoais e de classe — terá igualmen-
te, assim o espera, o efeito de neutralizar a influência da
estupidez e da ignorância. Mill afirma que certas pessoas
devem, pelo menos temporariamente, ser excluídas do gru-
po de eleitores. Estas incluem as incapazes de «ler, escrever,
e, acrescentaria eu, realizar as operações comuns de aritméti-
ca». E prossegue:

Considero que é exigido pelos primeiros princípios que receber


ajudas paroquiais constitua uma desqualificação peremptória para o
direito de voto. Aquele que não consegue, pelo seu trabalho, prover ao
seu sustento, não pode reivindicar o privilégio de se servir do dinheiro
dos outros. Ao tornar-se dependente dos restantes elementos da
comunidade para a sua própria subsistência, abdica da reivindicação
de direitos iguais aos deles, noutras áreas. (O Governo Representativo,
282)

O reverso da medalha é que, embora todos os que preen-


cham as condições de Mill tenham direito a voz, «que todos
devam ter uma voz igual constitui uma proposição comple-
tamente diferente» (O Governo Representativo, 283). Mill
defende que seja atribuído mais do que um voto a determi-
nadas pessoas, especialmente bem qualificadas para exercer
o seu juízo. Propõe que os indivíduos particularmente inteli-
gentes ou cultos sejam favorecidos com dois ou mais votos
(mas não adianta pormenores).
A maior preocupação de Mill é que os pobres não culti-
vados — a maioria numérica — cometam um erro terrível,
devido a uma combinação de ignorância e interesse classista.
Poderão eleger um governo que tentará melhorar a posição
dos trabalhadores através do aumento dos impostos aplica-
dos aos ricos, da protecção das indústrias nacionais face à
concorrência, da diminuição da insegurança no emprego, e
por aí fora. Contra este estado de coisas, Mill argumenta que
isto será pior para todos — trabalhadores incluídos — pois
conduzirá ao abrandamento da indústria e da actividade
económica e desencorajará a poupança e o investimento.
Assim, afirma Mill, os trabalhadores estão enganados quanto

139
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

àquilo que consideram os seus interesses e portanto, sendo a


maioria, poderão fazer pender o país em direcção ao desas-
tre.
Regressaremos à questão da distribuição justa da riqueza
no Capítulo 5. Os pormenores do caso não interessam real-
mente para a discussão em curso. O que importa reter é que
Mill pretende assegurar que a democracia representativa
contenha determinadas salvaguardas que evitarão que seja
guiada pela estupidez e pelo interesse de classe. A aborda-
gem fundamental que Mill faz da democracia consiste em
defendê-la em termos instrumentais e em identificar os
passos a dar se existir o perigo de ela poder conduzir a con-
sequências indesejáveis.
O voto plural e a privação parcial do direito de voto
alcançariam os objectivos visados por Mill? Talvez, mas há
como que uma tensão no seu pensamento a este respeito. Por
forma a proteger a indústria, poder-se-ia influenciar o escru-
tínio, quer a favor dos ricos quer (pensa Mill) dos cultos. Ele
prefere a última opção, pois é fundamental que aqueles que
têm apenas um voto consigam aceitar o raciocínio que favo-
rece outros com mais do que um. Assim, o ignorante aceitará
que o culto «compreende o assunto melhor do que ele, que a
opinião do outro deve ser mais considerada do que o seu
assentimento relativamente às suas expectativas e ao curso
dos acontecimentos, que em todas as outras áreas da vida
está acostumado a aceitar» (O Governo Representativo, 284).
Mas compare-se este argumento com outro:

Poderei observar que, se o eleitor aceitar esta avaliação das suas


capacidades, e desejar realmente que uma pessoa da sua confiança
escolha por si, não há necessidade de qualquer disposição constitucio-
nal para esse efeito: terá apenas de perguntar à pessoa de confiança,
em privado, qual o candidato em que deve votar. (O Governo Represen-
tativo, 294)

Esta observação, feita apenas dez páginas após a primei-


ra, surge no contexto da discussão de uma proposta de que
deveríamos ter duas fases na eleição. Votaríamos um grupo

140
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

de eleitores, que depois elegeriam os deputados. Mill não


consagra muito tempo a esta sugestão. Pensa que a única
justificação possível para o sugerido seria devermos talvez
deixar decisões tão importantes como a eleição dos nossos
governantes nas mãos daqueles que reconhecemos como
sábios. A resposta de Mill é: se pensamos que essas pessoas
são sábias, só temos de lhes perguntar em quem votar e
seguir as suas instruções. Exactamente a mesma resposta que
os críticos de Mill deram à sua proposta de voto plural. Se os
ignorantes veneram os cultos, não precisamos de conceder a
estes votos suplementares, pois os ignorantes podem sim-
plesmente pedir-lhes uma opinião. E se não respeitarem
essas opiniões também não aceitariam o voto plural. Assim,
o voto plural ou é desnecessário ou é injustificado.

Protecção da minoria

Embora no caso acabado de analisar, segundo Mill, a


maioria ignorante acabe por se prejudicar ao procurar alcan-
çar aquilo que pensa ser o seu próprio interesse, este tipo de
exemplo coloca talvez o principal problema que inquietava
Mill em relação à democracia: o lugar da minoria derrotada.
Mill, como vimos, preocupava-se particularmente em impe-
dir a «ditadura da maioria». A maior parte de nós, claro está,
aceita estar do lado de quem perde, de tempos a tempos.
Mas, por vezes, há uma maioria entrincheirada que ganha
eleições atrás de eleições, deixando o grupo minoritário
permanentemente derrotado e ignorado. Assim, em O
Governo Representativo, Mill faz um esforço considerável no
sentido de assegurar a representação das minorias no parla-
mento. E aceita um sistema muito complicado, elaborado (e
possivelmente incoerente) de representação proporcional,
envolvendo a possibilidade de transferir o nosso voto para
um candidato doutro círculo eleitoral, se o candidato esco-
lhido em primeiro lugar não for eleito. Através deste siste-
ma, ou de outro semelhante, deveríamos conseguir assegu-
rar a representação de muitas minorias no parlamento.

141
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Ainda assim, a representação é uma coisa e a protecção


outra completamente diferente. Uma minoria representada
pode ser derrotada no parlamento. Deste modo, as medidas
propostas até ao momento não terão os efeitos que podería-
mos desejar. A repressão com base na classe, na raça ou na
religião permanecem possíveis num sistema de governo pela
maioria, mesmo quando a minoria se encontra representada.
A única forma de garantir que isto não acontece, num siste-
ma democrático, é conceder aos moralmente muito ilumina-
dos muitos votos. Mas isto faz-nos quase regressar a Platão.
De facto, a solução de Mill para este problema — como
veremos no próximo capítulo — é restringir a esfera legítima
da actividade governamental. Certas coisas não são sim-
plesmente assunto do governo ou da maioria. Desta forma, o
governo não pode interferir em certas áreas das vidas das
pessoas e as pessoas têm determinados direitos e liberdades
nos quais o governo não pode interferir.
Contudo, para julgar definitivamente o modelo de demo-
cracia de Mill, vemos que este encerra uma tensão do mesmo
tipo que afectava o modelo de Rousseau. O problema da
perspectiva de Rousseau era que a democracia só era fiável,
como forma de produzir decisões que estivessem de acordo
com a vontade geral, se limitasse consideravelmente a liber-
dade dos cidadãos. Por outras palavras, a querer-se justificar
instrumentalmente a democracia, não se pode pretender que
ela alcance as virtudes da liberdade e da igualdade a que
aspira. Para Mill, não é a liberdade que é sacrificada, mas a
igualdade. Alguns cidadãos teriam de ser excluídos do elei-
torado, por razões económicas ou educacionais, ao passo que
a outros é atribuído mais do que um voto. O sistema de Mill
aproxima-se mais do de Platão do que ele está disposto a
admitir. Talvez Mill devesse ter tido mais confiança nas
capacidades e na virtude dos pobres incultos. Ou talvez
qualquer sistema democrático esteja condenado a ser posto
em perigo.

142
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Conclusão

Um resultado da análise feita até ao momento é ser muito


pouco provável que sejamos capazes de encontrar uma
defesa instrumental da democracia que também inclua os
valores da igualdade e da liberdade num sistema exequível.
Independentemente do grau de limitação da liberdade e da
igualdade, não há razão para pensar que as democracias
tomam necessariamente decisões mais acertadas do que
outros tipos de sistemas. Na verdade, é possível pensar em
sistemas que combinariam uma análise de mercado abran-
gente com administradores sagazes e que quase de certeza
fariam melhor. Apesar disso, poucas pessoas estão prepara-
das para abandonar a democracia e adoptar outro sistema.
Porquê?
A resposta, claramente, tem de ser que a democracia não
é valorizada por nós apenas como processo de tomada de
decisões, mas, pelo menos, devido a outra razão. E que razão
poderá ser essa? Como estudo de caso, consideremos as
eleições sul-africanas de 1994. Estas eleições — o próprio
facto de terem ocorrido, ainda mais do que o resultado —
foram comemoradas em todo o mundo. Os sul-africanos
negros puderam votar pela primeira vez; mas por que razão
foi isto considerado tão significativo? Com certeza que a
razão para a comemoração não foi simplesmente os sul-
africanos negros terem maior probabilidade de serem trata-
dos justamente do que no passado, embora isto contribuísse
indubitavelmente para o júbilo. Contudo, segundo parece, a
ideia principal era que o mero facto de eles terem direito de
voto constituía uma forma de tornar manifesto que os sul-
africanos negros eram finalmente tratados como merecedo-
res de respeito. O facto de as pessoas fazerem parte do elei-
torado possui um certo valor simbólico ou expressivo. Neste
caso, simboliza que, pelo menos de certa forma, os sul-
africanos negros e brancos são politicamente iguais. Ter
direito de voto, então, parece revestir-se de importância

143
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

independentemente do que as pessoas fazem ao voto, quan-


do o obtêm.
Para pensar nisto noutro contexto, consideremos o argu-
mento comummente utilizado nos inícios do século XX para
recusar o direito de voto às mulheres. Dizia-se frequente-
mente que as mulheres não precisavam de votar porque os
interesses das mulheres casadas seriam iguais aos dos seus
maridos, e os das solteiras iguais aos seus pais. Há tantas
coisas erradas neste argumento que é difícil saber por onde
começar. Para colocar apenas algumas objecções: primeiro,
mesmo que a afirmação relativa aos interesses comuns fosse
verdadeira, por que não permitir que o interesse seja regis-
tado pela pessoa que o possui? Segundo, e admitindo ainda
que aquela afirmação é verdadeira, por que motivo é isto
uma razão para dar o direito de voto ao homem e recusá-lo à
mulher, e não o inverso? Terceiro, a afirmação pode muito
bem não ser verdadeira. Porquê presumir que as mulheres
têm os mesmos interesses que os maridos ou os pais? Mas a
quarta objecção é decisiva: quer os interesses das mulheres
sejam ou não os mesmos do que os dos homens, é insultuoso
e humilhante atribuir o voto ao homem e recusá-lo à mulher.
O sufrágio universal é uma forma de exprimir a ideia de que
acreditamos que às mulheres, tanto quanto aos homens, é
devido respeito enquanto cidadãs.
Uma coisa é dizer que todos os eleitores têm de ser respei-
tados enquanto cidadãos. Mas será necessário afirmar tam-
bém que a todos é devido igual respeito ou que deve ser
respeitado como igual? Acabámos de ver uma proposta que
defendia que, embora todos devamos, em princípio, ter voz,
algumas vezes isto deve ser recusado a certas pessoas,
enquanto outras devem ter mais do que um voto: o esquema
de voto plural de John Stuart Mill. É interessante observar
que nenhum grande pensador parece ter estado de acordo
com Mill a este respeito. Alguns sentiram mesmo necessida-
de de aduzir argumentos em apoio à sua oposição. Porquê?
Simplesmente porque a proposta de Mill viola a ideia de que
a democracia é uma forma de exprimir respeito igual por

144
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

todos. Esta é, talvez, a razão por que retiramos o direito de


voto aos criminosos: através do seu comportamento, perdem
o direito ao respeito igual.
Haverá algo que possamos acrescentar em defesa do tipo
de sistema democrático que temos? Talvez o melhor a dizer
seja isto: no mundo contemporâneo, temos de aceitar que
não conseguimos sobreviver sem estruturas de autoridade
coerciva. Mas, se temos tais estruturas, precisamos de pes-
soas que ocupem os seus lugares no seu seio — por outras
palavras, governantes. Nos séculos passados, os seres
humanos podem ter estado dispostos a aceitar que determi-
nadas pessoas tinham um direito natural a governar. Talvez
se pensasse que tinham sido escolhidas por Deus. Mas esta
não é uma linha de pensamento que estejamos agora prepa-
rados para aceitar. Só aceitaremos que os indivíduos têm
direito de governar se tiverem sido nomeados pelas pessoas
e puderem ser destituídos pelas pessoas. Ou seja, só a demo-
cracia nos permite dar uma resposta aceitável à questão:
«por que devem estas pessoas governar?» ou «o que torna
legítimo o seu governo?». Através de meios democráticos
podemos, claro está, exercer igualmente um controlo, até
certo ponto, sobre a conduta dos governantes. Talvez isto
seja o melhor que podemos esperar, tanto em termos de
estrutura política como enquanto defesa derradeira da
democracia moderna.

145
4
O lugar da liberdade

A liberdade em Mill

O único fim em função do qual se pode legitimamente exercer


poder sobre qualquer elemento de uma comunidade civilizada,
contra a sua vontade, é a prevenção de possíveis danos sobre ter-
ceiros. O seu próprio bem, físico ou moral, não constitui razão su-
ficiente.
(Mill, Sobre a Liberdade, 135)

Um princípio simples

Uma vez instaurada a democracia, que trabalho resta ao


filósofo político? Numa perspectiva optimista, mal temos um
processo democrático de tomada de decisões, o trabalho
fundamental do filósofo político está terminado. Todas as
decisões podem agora ser deixadas ao funcionamento justo
da máquina eleitoral. Infelizmente, como observámos no
último capítulo, mesmo sendo a democracia o melhor siste-
ma que podemos conceber, não é solução para tudo. E Mill

147
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

afirma que tem os seus perigos próprios: a ameaça da dita-


dura da maioria. É ingénuo pensar-se que a existência da
democracia elimina a possibilidade de injustiça. O facto de
«o povo» fazer as leis não anula a possibilidade de a maioria
aprovar leis que oprimam a minoria, ou sejam injustas de
outras formas para com ela. Assim, a minoria precisa de ser
protegida.
A saída que Mill encontrou para este problema pode
parecer surpreendente. Depois de defender as virtudes da
democracia representativa, o que propõe é a limitação subs-
tancial dos seus poderes. O seu trabalho Sobre a Liberdade (na
verdade, publicado antes de O Governo Representativo) abor-
da a questão da «natureza e limites do poder que pode ser
legitimamente exercido pela sociedade sobre o indivíduo»
(Sobre a Liberdade, 126). Mill defende que se devem reservar
poderes consideráveis para o indivíduo. Há limites para a
intervenção estatal e, também, limites ao uso adequado da
opinião pública como forma de moldar crenças e comporta-
mentos.
Que poder deve deter o estado? Vimos que, a este respei-
to, é possível perfilhar toda uma gama de opiniões. Num dos
extremos, o anarquista afirma que o estado não tem qualquer
poder justificado. Isto parece equivaler à opinião de que não
existe um limite aceitável para a liberdade do indivíduo, ou,
pelo menos, não existe um limite que o estado possa impor.
No outro extremo, os defensores do governo absolutista,
como Hobbes, afirmam que o estado não tem qualquer obri-
gação de ter em conta as liberdades dos súbditos. Pode
implementar todas as regras e restrições que desejar.
Entre estes dois pólos, há um espectro de possibilidades.
Não considerando nem a anarquia nem o absolutismo acei-
táveis, Mill propôs-se definir a sua posição neste espectro.
Por que razão Mill, verdadeiro arauto da liberdade, rejeita a
anarquia, que muitos consideram a realização maior da
liberdade individual? Como vimos no Capítulo 2, Mill subs-
creve a opinião de que se for concedida completa liberdade
às pessoas algumas certamente abusarão, aproveitando a

148
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

ausência de governo para explorar outras. Daí que escreva:


«Tudo o que dá valor à existência de uma pessoa baseia-se
na implementação de restrições às acções das outras pes-
soas» (John Stuart Mill, Sobre a Liberdade, 130). A anarquia
significa viver sem lei e, segundo Mill, as nossas vidas difi-
cilmente valeriam a pena, nessas circunstâncias. Tomando
como adquirido que a tirania já não se pode considerar uma
opção credível, Mill procura, portanto, determinar a combi-
nação certa de liberdade e autoridade.
Que justificação pode haver para o estado interferir para
proibir as pessoas de agirem como desejariam ou para as
obrigar a agir contra os seus desejos? Mill observa que as
diferentes sociedades «resolveram» este problema de dife-
rentes modos. Algumas, por exemplo, impediram a prática
de determinadas religiões ou suprimiram mesmo a religião
por completo. Outras impuseram a censura na imprensa e
noutros meios de comunicação social. Muitas declararam
ilegais certas práticas sexuais. Os actos homossexuais entre
homens foram ilegais até aos anos 60 na Grã-Bretanha e,
embora a prostituição não seja ilegal neste país, continua a
ser contrário à lei atrair clientes. Tudo isto são limitações à
liberdade das pessoas, levadas a cabo através do exercício do
poder estatal. Mas terá o estado o direito de interferir na
vida e nas liberdades das pessoas, desta forma?
Mill procura um princípio, ou conjunto de princípios, que
nos permita decidir sobre cada caso com base nos seus ver-
dadeiros méritos, em vez de deixar a questão ao costume
arbitrário e à moral popular — o maior inimigo de Mill. A
sua resposta é simultaneamente radical e agradavelmente
simples. O Princípio da Liberdade de Mill (citado no início
deste capítulo) anuncia que só se pode limitar justificada-
mente a liberdade de acção de uma pessoa se esta ameaçar
prejudicar outrem. Para muitos leitores modernos, este
princípio (também conhecido como «Princípio do Dano»)
pode parecer flagrantemente óbvio. Mas não foi óbvio
durante grande parte da história. Durante séculos, houve
pessoas perseguidas por venerarem o deus errado ou por

149
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

não venerarem deus algum. Mas que dano provocava isso


aos outros, ou a alguma coisa, senão talvez às suas almas
imortais? A opinião de Mill nem para nós, agora, devia ser
óbvia. Suponhamos que vemos um amigo arruinar-se na
dependência das drogas. Só deveremos interferir e tentar
detê-lo se for provável que provoque danos a terceiros? Este
exemplo deixa em aberto questões sérias respeitantes tanto à
interpretação como à plausibilidade do princípio de Mill.
Provavelmente, nenhuma sociedade — do passado ou do
presente — aplicou exactamente o princípio como Mill pre-
tendeu que fosse entendido. Efectivamente, conforme vere-
mos, o próprio Mill evitou algumas das suas consequências
menos convencionais.
Todavia, antes de avançarmos, vale a pena regressar a um
ponto da declaração do Princípio da Liberdade de Mill. Diz
este filósofo que tal princípio é para se aplicar a «qualquer
elemento de uma comunidade civilizada». Então quererá
dizer que aceita que se imponham restrições à liberdade dos
incivilizados? Na verdade, assim é. Mill afirma explicitamen-
te que o princípio se destina a ser aplicado apenas a pessoas
«na maturidade das suas faculdades» (Sobre a Liberdade, 135).
As crianças e os «bárbaros» estão excluídos, pois a «Liberda-
de, enquanto princípio, não tem aplicação a qualquer estado
de coisas anterior ao tempo em que a humanidade de tornou
capaz de ser aperfeiçoada através de discussão livre e igual»
(Sobre a Liberdade, 136).
O argumento de Mill, neste passo, é que a liberdade só
tem valor em determinadas condições. Se essas condições
não se verificarem, a liberdade pode provocar muitos danos.
As crianças não devem ser livres de escolher se querem ou
não aprender a ler, e Mill partilhava a opinião vitoriana de
que certos povos eram «atrasados» e, por isso, deviam ser
tratados como crianças. O que importa aqui não é ver se Mill
tinha ou não razão em relação aos bárbaros, mas a condição
que estabeleceu para a aplicação do Princípio da Liberdade.
A liberdade tem valor como meio de aperfeiçoamento —
como meio para o progresso moral. Em determinadas cir-

150
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

cunstâncias, a liberdade — com igual probabilidade — surti-


rá o efeito oposto e, por conseguinte, o progresso terá de ser
alcançado por outros meios. Mas Mill não tem dúvidas de
que quando a sociedade atinge a maturidade — quando
progredimos até um nível civilizado — a interferência estatal
sobre a acção individual deve reger-se pelo Princípio da
Liberdade.

Uma ilustração: liberdade de pensamento

Uma das crenças mais caras a Mill era a convicção de que


devia haver completa liberdade de pensamento e debate. Na
verdade, dedica quase um terço da sua obra Sobre a Liberdade
a estas liberdades fundamentais, muito embora aceitando
que, por vezes, devem impor-se limites ao que é permitido
dizer em público.
A primeira coisa a observar, para Mill, é que a impopula-
ridade de uma opinião não constitui razão para a silenciar:
«Se toda a humanidade à excepção de uma pessoa fosse da
mesma opinião, e só aquela pessoa tivesse opinião contrária,
a humanidade não teria mais razão para silenciar essa única
pessoa do que ela, se tivesse poder para tal, teria razão para
silenciar a humanidade» (Sobre a Liberdade, 142). Na verdade,
afirma Mill, temos boas razões para acolher com agrado a
defesa mesmo de opiniões impopulares. Suprimi-las seria
«roubar a espécie humana, a posteridade, assim como a
geração actual». Como assim? Bem, Mill defende que, seja a
opinião controversa verdadeira, falsa ou uma combinação de
ambas, nunca ganharemos em nos recusarmos a ouvi-la. Se
suprimirmos uma opinião verdadeira (ou parcialmente
verdadeira) perderemos a oportunidade de trocar o erro,
completo ou parcial, pela verdade. Mas se suprimirmos uma
opinião falsa, perderemos noutro sentido: não poderemos
pôr em causa, reconsiderar e talvez reafirmar as nossas
opiniões verdadeiras. Assim, nada há a ganhar com a
supressão, seja qual for a veracidade da opinião em apreço.

151
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Será mesmo prejudicial suprimir uma opinião falsa?


Primeiro, temos de perguntar como podemos ter tanta certe-
za de que é falsa. Mesmo que o pretenso censor se afirme
certo da correcção da opinião vigente, existe um fosso, como
sublinha Mill, entre termos a certeza de uma opinião e a opinião
ser certa. Não reconhecer isto equivale a pressupor a infalibi-
lidade, mas a história está repleta de provas do erro deste
pressuposto. Muitas crenças que em tempos eram tidas
como certezas foram consideradas não apenas falsas por
gerações posteriores, mas até absurdas. Pensemos, por exem-
plo, nas pessoas que antigamente perfilhavam a crença
generalizada de que a Terra era plana.
Mais dramaticamente, Mill recorda-nos os casos de Sócra-
tes e Jesus, o primeiro executado por impiedade e imorali-
dade, o segundo por blasfémia. Ambos foram julgados por
juízes honestos, que agiam de boa-fé. Mas ambos morreram,
em sociedades nas quais o pressuposto de infalibilidade
criou leis que proibiam a defesa de opiniões contrárias às
tradições estabelecidas. Claro que agora, nas sociedades
ocidentais, é muito improvável que se executem pessoas
devido às suas opiniões. O que importa reter, contudo, é que
os sistemas morais tanto da filosofia socrática como do cris-
tianismo foram suprimidos porque entravam em conflito
com opiniões estabelecidas que se «sabia com certeza» esta-
rem correctas. Isto ilustra o pensamento de que a espécie
humana é capaz de erros monumentais. Mill pensa que
nunca temos o direito de reivindicar a infalibilidade.
Outro exemplo poderá ilustrar e ampliar o argumento de
Mill. A antiga biblioteca de Alexandria, um dos tesouros do
mundo antigo, teve fama de, no seu apogeu, conter mais de
700 mil volumes. Mas, no ano 640 d.C., Alexandria foi toma-
da pelos Árabes, sob a chefia de ’Amr, e isto foi o que suce-
deu à biblioteca, segundo o relato do escritor muito posterior
Abulfarraje (aparentemente, fonte muito pouco credível):

João, o Gramático, famoso filósofo peripatético, encontrando-se em


Alexandria na altura da sua conquista e estando nas boas graças de
’Amr, suplicou-lhe que lhe fosse concedida a biblioteca real. ’Amr res-

152
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

pondeu que não estava em seu poder outorgar tal mercê, mas prome-
teu escrever ao califa, solicitando a sua autorização. Conta-se que
Omar, ouvindo o pedido feito pelo general, disse que, se aqueles livros
continham a mesma doutrina que o Corão, não podiam ter utilidade,
uma vez que o Corão encerrava todas as verdades necessárias; mas se
contivessem algo contrário ao livro, teriam forçosamente de ser des-
truídos. Por conseguinte, e independentemente do seu conteúdo,
ordenou que fossem queimados. Em conformidade com esta ordem, os
livros foram distribuídos pelos banhos públicos onde, durante seis
meses, alimentaram os fogos. (Citado na Encyclopedia Britannica, 11ª.
edição, 1910-11, i-ii. 570)

É uma pena que os Árabes não tenham tido acesso à obra


Sobre a Liberdade, pois teriam feito bem em reflectir e prestar
atenção ao argumento de Mill de que «Há uma diferença
enorme entre supor que uma opinião é verdadeira porque,
em cada oportunidade de contestação ela não foi refutada, e
pressupor a sua verdade para não permitir a sua refutação»
(Sobre a Liberdade, 145).
Mas, antes de nos sentirmos demasiado presumidos,
consideremos os comentários de Rousseau sobre a história
da biblioteca:

O raciocínio [de Omar] tem sido citado pelos nossos homens de


letras como o cúmulo do absurdo, mas se Gregório Magno tivesse esta-
do no lugar de Omar e o Evangelho no lugar do [Corão], a biblioteca
teria sido igualmente incendiada e essa teria sido talvez a melhor
acção da sua vida. (Discurso sobre as Artes e as Ciências, n. 26)

O Discurso sobre as Artes e as Ciências foi escrito por Rous-


seau em 1750, em resposta a um concurso lançado pela
Academia de Dijon sobre a questão «A restauração das
Ciências e das Artes teve um efeito purificador na moral?».
Por que razão incendiar livros teria sido o melhor acto da
vida de Gregório Magno? Rousseau conta que a verdade
sobre estas matérias desceu sobre si no caminho entre Paris e
Vincennes, quando ia visitar Diderot, preso por sedição.
Apercebeu-se então que os desenvolvimentos ocorridos nas
artes e nas ciências, em vez de contribuírem para o aperfei-
çoamento humano, tinham provocado mais infelicidade do

153
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

que felicidade e, além disso, haviam corrompido a moral


pública. Incapaz de terminar a viagem, sentou-se e escreveu
um esboço da sua tese altamente controversa, com a qual
conquistou o prémio. É difícil imaginar uma perspectiva
mais distante da de Mill. Rousseau sugere que profiramos
uma oração: «Deus Todo-Poderoso! Tu, que tens na Tua mão
os espíritos dos homens, livra-nos das artes e das ciências
fatais […], devolve-nos à ignorância, à inocência e à pobreza,
pois só estas podem fazer-nos felizes e são preciosas a Teu
ver» (Discurso sobre as Artes e as Ciências, 27). Sob a retórica de
Rousseau encontra-se uma objecção muito séria ao projecto
de Mill. Poderá ser correcto pensar que é sempre melhor
saber a verdade do que permanecer na ignorância? O argu-
mento de Mill parece pressupor implicitamente que o conhe-
cimento conduz sempre à felicidade — mas por que razão
devemos acreditar nisso? Tal como um indivíduo pode por
vezes ter uma vida mais feliz numa ignorância abençoada
daquilo que os seus conhecidos pensam dele, também have-
rá supostamente alturas em que a sociedade lucrará com a
ignorância ou a crença falsa. Talvez a verdade seja demasia-
do dura de suportar ou possa dissolver os laços da socieda-
de. Afirma-se frequentemente isto em relação à crença em
Deus e na vida depois da morte. Ou seja, e segundo reza o
argumento, a razão por que as pessoas devem acreditar não
é existir um Deus e uma vida depois da morte — estes
podem existir ou não — mas porque, se estas crenças não
fossem amplamente professadas, a sociedade cairia no
egoísmo e na imoralidade. Por conseguinte, não devemos
permitir a propagação do ateísmo, pois se este prevalecer a
sociedade desintegrar-se-á. Quer aceitemos quer não este
argumento, não é necessária muita imaginação para chegar à
conclusão de que os seres humanos estariam muito melhor
se nunca tivessem descoberto certas verdades científicas: por
exemplo, as que conduziram ao desenvolvimento de armas
nucleares.
Deveremos então por vezes opor-nos à liberdade de
pensamento? O argumento de que devemos não assenta na

154
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

verdade da opinião recebida, mas na sua utilidade, na sua


importância para a sociedade. Nesta óptica, podemos ter
boas razões para suprimir uma opinião, mesmo que seja
verdadeira. Este argumento contra a liberdade de pensamen-
to parece muito forte, mas o mesmo se aplica à resposta de
Mill. Tudo depende da teoria de que uma determinada
perspectiva é necessária para a paz social e que o seu contrá-
rio será destruidor dessa paz. Mas o que nos faz ter tanta
certeza de que, digamos, não acreditar em Deus levará a
sociedade à dissolução? Ou que conhecer a estrutura do
átomo terá mais consequências negativas do que positivas?
Somos tão falíveis nesse assunto como noutro qualquer.
Como afirma Mill:

A utilidade de uma opinião é ela própria matéria de opinião: tão


contestável, tão aberta a discussão e tão carenciada de discussão como
a própria opinião. Tanto há necessidade de um juiz infalível de opi-
niões para decidir que uma opinião é perniciosa como para decidir que
é falsa. (Sobre a Liberdade, 148)

Na verdade, recorda-nos Mill, o próprio cristianismo foi


suprimido pelos romanos com base nos danos que aquele
provocaria à preservação da sociedade.
Ainda assim, a posição não é tão clara como Mill a faz
parecer. Se não podemos saber com certeza se acreditar na
verdade levará mais provavelmente à felicidade ou ao pre-
juízo, então, à luz deste argumento, também não teremos
mais razão para permitir a liberdade de pensamento do que
para a proibir. Assim, Mill tem de estar a basear-se no pres-
suposto de que, pelo menos em termos gerais, acreditar na
verdade é uma maneira de alcançar a felicidade.
Se isso é assim, que mal pode fazer suprimir uma opinião
falsa? Na verdade, há razões muito fortes para não o fazer,
afirma Mill, mesmo que pudéssemos saber que a opinião era
falsa. Se não admitimos que a nossa opinião possa ser posta
em causa, então «por verdadeira que seja, se não for comple-
ta, frequente e desassombradamente discutida, será tida
como um dogma morto e não como uma verdade viva»

155
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

(Sobre a Liberdade, 161). Como diz Mill, «adormecemos no


posto mal deixa de haver inimigo no campo» (Sobre a Liber-
dade, 170). O receio, aqui, é que o verdadeiro significado da
opinião possa perder-se ou ver-se enfraquecido se não for
constantemente testado e defendido, ficando, portanto,
«privado do seu efeito vital sobre o carácter e a conduta,
tornando-se o dogma mera profissão formal, sem eficácia
para promover o bem» (Sobre a Liberdade, 181). Mas talvez o
grande perigo seja o de, quando confrontados com uma
apresentação brilhante da opinião oposta, falsa, os defenso-
res da verdade recebida serem incapazes de se defender.
Não só pareceriam imbecis como a opinião falsa poderia
granjear uma popularidade imerecida, por vezes com conse-
quências desastrosas.
Isto, segundo alguns relatos, foi o que sucedeu à teoria da
evolução nos Estados Unidos. Os defensores do darwinismo,
embora percebessem que a teoria tinha algumas falhas evi-
dentes, não levaram a sério a ideia de que qualquer pessoa
inteligente e com formação científica poderia não aceitar a
verdade geral da teoria da evolução. Consequentemente,
quando alguns fundamentalistas religiosos bem organizados
e hábeis começaram a embrulhar e misturar deliberadamen-
te objecções sofisticadas e plausíveis ao darwinismo com a
sua própria defesa da «ciência da criação» — a crença literal
no Antigo Testamento — o darwinismo não esteve à altura
para responder ao desafio. E, assim, os criacionistas construí-
ram um caminho que nada tem a ver com os méritos científi-
cos (nulos) da sua teoria. Muitos americanos — a maioria em
certos estados do Sul — acreditam ainda que a teoria da
evolução não deve ser ensinada nas escolas.
Até ao momento, considerámos dois tipos de casos: aque-
les em que a nova perspectiva é verdadeira e aqueles em que
a nova perspectiva é falsa. Em ambos, permitir a expressão
da opinião será bom, e não prejudicial. Há um terceiro tipo
de casos, em que isto é ainda mais óbvio: quando há verdade
parcial em ambos os lados da questão. Este é o caso mais
comum. A única forma de a verdade acabar por vir à super-

156
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

fície é deixar que se gere uma discussão completa e livre de


todos os lados da questão. Portanto, conclui Mill, em todos
os casos, a humanidade beneficiará com a expressão de
opiniões opostas à ortodoxia corrente e nunca há razão para
a existência de censura.

Dano alheio

Embora a censura nunca seja defensável, Mill aceita haver


ocasiões em que é correcto limitar a liberdade de expressão.
Como exemplo, sugere o seguinte:

A opinião de que os comerciantes de milho fazem os pobres passar


fome, ou de que a propriedade privada é roubo, não deve ser molesta-
da quando simplesmente posta a circular na imprensa, mas pode jus-
tamente incorrer em pena quando defendida oralmente perante uma
multidão exaltada reunida à frente da casa do comerciante de milho ou
quando posta a circular entre a mesma multidão sob a forma de cartaz.
(Sobre a Liberdade, 184)

O facto de a liberdade de expressão, neste caso, ser quase


certamente danosa para outras pessoas, basta, pensa Mill,
para a enquadrar no âmbito das actividades cuja regulamen-
tação por parte dos governos é apropriada.
Ora, vimos que, segundo Mill, podemos interferir na
liberdade de um adulto apenas para impedir o dano, ou
ameaça de dano, de terceiros. Em casos graves, podemos,
justificadamente, usar a força da lei, ao passo que noutros
casos a pressão social constitui a limitação mais apropriada.
Mas o que quer Mill dizer com «dano»? Suponhamos que
um grupo de pessoas deseja iniciar uma nova religião e
praticá-la em privado. A opinião de Mill é que, desde que
não tentem obrigar pessoa alguma a tornar-se fiel, o resto da
sociedade não tem razão para interferir. Por que não? Porque
este comportamento não é danoso para ninguém. Mas o
defensor de outra religião, estabelecida, objectará imediata-
mente: claro que me estão a provocar dano. Primeiro, o seu
comportamento pagão provoca-me repulsa e angústia.

157
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Segundo, estão a estragar-me os planos de converter todo o


mundo à minha religião. Não é verdade que não provoquem
dano a pessoa alguma.
Esta objecção pode ser formulada de outra forma. Pode-
mos dividir as acções em duas classes: acções que dizem
meramente respeito à própria pessoa e acções que dizem
respeito a terceiros. As acções que dizem respeito a terceiros
afectam ou envolvem pelo menos outra pessoa. As acções
que dizem meramente respeito à própria pessoa envolvem
apenas o agente ou, se envolvem terceiros, isto acontece com
o seu consentimento. Então, o Princípio da Liberdade de Mill
reduz-se à afirmação de que, embora possamos regulamen-
tar e supervisionar as acções que dizem respeito aos outros,
não temos nada de interferir com acções que dizem mera-
mente respeito à própria pessoa. Até aqui, tudo certo. Mas o
crítico de Mill pede agora um exemplo de uma acção que
diga meramente respeito à própria pessoa que a pratica e
pertença a este reino protegido. E, por muitos exemplos que
ofereçamos, o crítico conseguirá encontrar uma terceira parte
afectada pela acção. Por exemplo, decidir calçar sapatos
pretos ou castanhos parece um exemplo perfeito de acção
que diz meramente respeito à pessoa que a pratica. Mas a
verdade é que os fabricantes de graxa castanha prefeririam
claramente que eu usasse sapatos castanhos. Além disso, os
meus amigos com sensibilidades muito apuradas podem
sentir angústia ou embaraço, se eu usar os sapatos errados
para a ocasião. Portanto, mesmo um exemplo aparentemente
trivial parece dizer respeito a terceiros. Se tentarmos afinca-
damente, talvez consigamos encontrar alguns exemplos de
acções que dizem meramente respeito a quem as pratica. Por
exemplo, se eu viver sozinho, talvez seja difícil ver como a
minha decisão de dormir de costas ou de barriga para baixo
poderá afectar outra pessoa (embora os fabricantes de almo-
fadas possam ter uma opinião; assim como o serviço de
saúde, se for mais provável evitar as dores nas costas numa
ou noutra posição). Mas se precisamos de recorrer a estes
exemplos, Mill está perdido. Se interpretarmos o Princípio

158
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

de Liberdade de modo a atribuir liberdade individual ape-


nas no caso de acções que digam respeito à própria pessoa
que as pratica, entendidas desta forma, o princípio fica sem
um âmbito sério de aplicação.
Assim, torna-se claro que Mill não tinha intenção de ser
interpretado desta forma. Estava determinado a que a esfera
da liberdade não fosse deixada ao «agrado e desagrado» da
sociedade. Assim, é óbvio que tinha de distinguir entre as
acções que a sociedade, ou os seus elementos, consideram
desagradáveis, aborrecidas ou ofensivas, e as acções que
acarretam dano. Para Mill, a mera ofensa, ou desagrado, não
corresponde a dano. Então, a que se referia Mill quando
falava de dano?
Mill usa frequentemente a terminologia dos «interesses»
quando formula o Princípio da Liberdade. Por exemplo,
afirma que a sua perspectiva autoriza «a sujeição da espon-
taneidade individual ao controlo externo apenas em relação
àquelas acções que envolvem o interesse de outras pessoas»
(Sobre a Liberdade, 136). O dano, então, é por vezes entendido
como «prejuízo de interesses». Lido desta forma, o Princípio
da Liberdade é essencialmente compreendido como se
segue: «Age como quiseres, desde que não prejudiques os
interesses de outra pessoa».
Isto é de alguma utilidade mas, infelizmente, ninguém
parece ter sido capaz de fornecer uma definição adequada de
«interesses» neste sentido. O termo é mais comummente
usado em relação a interesses financeiros. Quando alguém
possui um interesse financeiro num empreendimento, isso
quer dizer que é passível de ganhar ou perder dinheiro,
dependendo do sucesso do projecto. Contudo, Mill não
estava exclusivamente preocupado com o bem-estar finan-
ceiro das pessoas e, portanto, temos de acrescentar que os
indivíduos têm, pelo menos, interesse na sua segurança
pessoal. Por conseguinte, o assassínio, a agressão, a violação,
o roubo e a fraude constituiriam acções que prejudicam os
interesses da pessoa atacada ou defraudada. O Princípio da
Liberdade, então, permitiria, justificadamente, a restrição da

159
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

liberdade de acção dos indivíduos, por forma a impedi-los


de perpetrar tais actos.
Mas aqui temos de usar de cautela. Mill não diz que a
sociedade pode interferir justificadamente com a liberdade
de acção de uma pessoa sempre que esta ameace prejudicar
os nossos interesses. Já vimos um exemplo que ilustra isto. A
minha decisão de usar sapatos pretos pode, numa ínfima
parte, prejudicar os interesses dos fabricantes de graxa cas-
tanha, mas Mill não lhes dá o direito de intervir. Na verdade,
o próprio Mill avança inúmeros exemplos mais sérios disto:
«seja quem for que tenha sucesso numa profissão muito
concorrida ou num exame competitivo; quem for preferido a
outrem numa competição por um objecto que ambos dese-
jem, colhe benefício da perda de outros, dos seus esforços
desperdiçados e do seu desapontamento» (Sobre a Liberdade,
227). Mill considera que nenhuma destas formas de concor-
rência seria reprovada pelo Princípio da Liberdade, apesar
de todas serem capazes de acarretar grandes danos para os
interesses dos perdedores. Claramente, não chegámos ainda
ao fundo do Princípio da Liberdade. Na opinião de Mill,
prejudicar os interesses de outrem não chega (não constitui
condição suficiente) para justificar a limitação. Com efeito,
veremos mais adiante que há razões para pôr em causa que
Mill pense sequer que constitua condição necessária. Para
progredirmos na análise temos de ampliar a nossa perspec-
tiva.

Justificação do Princípio da Liberdade

[Toda a pessoa] deve ser obrigada a observar uma certa linha de


conduta em relação às restantes. Esta conduta consiste […] em
não prejudicar os interesses umas das outras, ou melhor, certos
interesses que, seja por disposição legal expressa seja por enten-
dimento tácito, devem ser considerados direitos.
(Sobre a Liberdade, 205)

160
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Liberdade, direitos e utilidade

Na passagem acima, Mill faz apelo a uma nova ideia:


interesses que devem ser considerados direitos, ou «interes-
ses baseados em direitos». Talvez isto ajude a entender o
Princípio da Liberdade. Por exemplo, embora haja leis que
consagram o meu direito de defender a minha propriedade
das suas tentativas de a tomar pela força, eu não tenho um
direito semelhante a ser protegido da concorrência económi-
ca. Na verdade, há muitos interesses que normalmente não
dão origem a direitos. Quando a minha tia rica me deserda,
os meus interesses podem sair lesados, mas ela não infringiu
os meus direitos.
Esta pode parecer uma abordagem promissora, mas há
duas questões sérias a considerar. Em primeiro lugar, como
sabemos que direitos temos? Suponhamos que reivindico o
direito de proteger a minha empresa da concorrência. O que
pode Mill dizer para me mostrar que não tenho esse direito?
Em segundo lugar, é muito estranho ver Mill a usar o concei-
to de direitos num ponto tão crucial do argumento. Isto
porque, mais atrás, no ensaio, ele escreve (ou deverei dizer
«gaba-se»?): «É adequado afirmar que renuncio a qualquer
vantagem que pudesse advir ao meu argumento da utiliza-
ção da ideia de direito abstracto, como coisa independente
da utilidade» (Sobre a Liberdade, 136). Mas como é isto consis-
tente com o apelo à ideia de «interesse baseado nos direi-
tos»? Esta declaração de intenções parece contradizer o apelo
explícito aos direitos na passagem citada acima.
Talvez se pense que a coisa mais caridosa a fazer seja
simplesmente ignorar a afirmação de Mill de que não fará
apelo à noção de um «direito abstracto». Mas isto não é
satisfatório. Mill tem muito boas razões para o afirmar, como
perceberemos se nos detivermos, durante um momento, na
ideia de direito.
Nos círculos liberais, a ideia de que as pessoas têm certos
direitos básicos é frequentemente tomada como axioma
fundamental. Nestes, incluem-se normalmente o direito à

161
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

vida, à liberdade de expressão, à liberdade de associação e à


liberdade de movimentos, juntamente com os direitos de
votar e apresentar-se como candidato. Alguns especialistas,
embora não todos, acrescentam o direito a um nível de vida
decente (abrigo, comida e cuidados de saúde). O mais fre-
quente é estes direitos serem agora agrupados sob a desig-
nação «direitos humanos» ou «direitos humanos universais».
No passado, chamavam-se «direitos do homem» ou «direitos
naturais». Qualquer coisa — em especial qualquer acção
realizada por um governo — que viole um direito humano
ou natural é moralmente errada e exige reparação. A ideia de
que todos temos direitos é uma noção familiar e reconfortan-
te, assim como a ideia de que os direitos têm de ser respeita-
dos. Os países que ignoram os direitos dos seus cidadãos são
muitas vezes objecto de intensas críticas internacionais.
Ainda assim, a ideia de um direito natural é profunda-
mente problemática. Com efeito, uma das características que
tornam uma teoria dos direitos humanos inicialmente tão
atraente acaba por revelar-se uma das suas principais fra-
quezas. Ou seja, a teoria afirma que os direitos naturais são
básicos, fundamentais ou axiomáticos: constituem a base
absoluta para decisões posteriores. Isto é sedutor porque faz
a teoria parecer muito rigorosa e assente em princípios. Mas
a desvantagem é que ficamos sem nada de mais fundamen-
tal para dizer em defesa destes direitos. Suponhamos que
um crítico duvida de que existam direitos naturais. Como
podemos responder-lhe? Além de dizer que o crítico deve
ser desonesto ou estar confundido, nada mais parece haver a
que nos agarrarmos. A utilização da terminologia dos direi-
tos naturais pode constituir uma boa táctica em discussões
entre os que concordam na existência de tais coisas, mas, de
outro modo, parece deixar-nos suspensos e expostos.
Outra dificuldade, relacionada com esta, é que, se os
direitos naturais têm um estatuto fundamental, e, portanto,
não são inferidos com base em qualquer outro argumento,
como sabemos que direitos temos? Esta dificuldade foi
explorada por Bentham, que observou que, se é «auto-

162
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

evidente» que as pessoas têm direitos naturais, por que


razão diferentes especialistas têm ideias diferentes acerca de
quais devem ser esses direitos? Há grandes inconsistências
entre as descrições oferecidas pelos diferentes filósofos polí-
ticos. Isto coloca não só a questão de saber como decidir
entre as diferentes teorias, mas também conduz ao pensa-
mento inquietante de que a afirmação de que temos certos
direitos naturais muitas vezes pouco mais parece do que
uma opinião pessoal.
O ataque mais famoso que Bentham desferiu contra a
ideia de direitos naturais tem início com a observação de que
um direito parece um conceito legal. Pensamos em direitos e
deveres como coisas consagradas em leis. As leis concedem-
nos os direitos de votar, receber prestações sociais, usufruir
da protecção da polícia, etc. Na opinião de Bentham, um
direito é apenas isto: «Tenho para mim que o direito é filho
da lei […] Um direito natural é um filho que não teve pai»
(Falácias Anárquicas, 73). A estar correcto, isto torna a ideia de
um direito natural — um direito independente da lei do país
— «um disparate pomposo» (Falácias Anárquicas, 53). Não
pode simplesmente existir tal coisa.
Claro que nem todas as pessoas aceitarão o argumento de
Bentham. Há filósofos, como Locke, que começam logo por
recusar o principal pressuposto de Bentham, segundo o qual
os direitos só podem ser criados através de decretos. Mas
Mill inclinou-se para a opinião de Bentham e mostrou-se
muito céptico relativamente à ideia de direitos naturais. É
isto que ele quer dizer, quando afirma que não tenciona fazer
uso da ideia de direito abstracto. Mas, então, como pode
utilizar a noção de interesses baseados em direitos? Quererá
com isso dizer «aqueles interesses já respeitados pela lei como
direitos»? Basta pensar um momento para afastar esta ideia.
Afinal, Mill via-se como alguém que apresentava uma dou-
trina com consequências radicais, reformistas, crítica em
relação ao estado de coisas. Aceitar o sistema presente de
direitos equivaleria a colocar-se novamente nas mãos da

163
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

tradição e do preconceito, e isto era precisamente o que Mill


queria evitar.
Se Mill não pode aceitar os direitos naturais nem basear-
se nos direitos convencionais, que lhe resta? A resposta está
na forma como ele completa a passagem em que declara a
sua oposição aos direitos abstractos, parcialmente citada
acima. Após dizer que não fará uso da ideia de direito abs-
tracto como «coisa independente da utilidade», acrescenta:
«Considero a utilidade o apelo derradeiro de todas as ques-
tões éticas, mas é necessário que se trate de utilidade no
sentido mais lato, baseada nos interesses permanentes do
homem enquanto ser que progride» (Sobre a Liberdade, 136).
Mill pretende defender uma perspectiva dos direitos que
não os torna naturais ou fundamentais, nem um simples eco
de sejam quais forem as leis do país, mas algo que deriva da
teoria do utilitarismo. Fizemos uma primeira abordagem da
teoria utilitarista no Capítulo 2 e analisámos também o
argumento «utilitarista indirecto» usado para justificar os
direitos. Vale a pena passar novamente em revista, de forma
breve, as ideias principais, antes de mostrar como esta teoria
pode lançar luz sobre a doutrina da liberdade de Mill.
Mill explica e defende o sistema utilitarista na sua obra
Utilitarismo. Tal como o define, o utilitarismo é a teoria que
«afirma que as acções são correctas na proporção em que
tendem a promover a felicidade, e erradas na proporção em
que tendem a produzir o inverso da felicidade. Por felicida-
de, entende-se prazer e ausência de dor; por infelicidade, dor
e privação de prazer» (Utilitarismo, 257). Em termos gerais,
poderíamos resumir a teoria afirmando que o utilitarismo
exige que maximizemos o total de felicidade ou prazer no
mundo. (Isto não é satisfatório enquanto resumo da teoria de
Mill, uma vez que este filósofo afirma que alguns prazeres —
do intelecto, por exemplo — têm qualitativamente mais
valor do que outros prazeres mais físicos. Mas podemos
ignorar esta complicação.)
Como podemos conectar a ideia de um direito com a
utilidade? Esta conexão é explicitada em Utilitarismo: «Ter

164
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

um direito, então, é, segundo creio, ter algo cuja posse a


sociedade tem de defender. Se o objector me perguntar: por
que razão tem de defender? A única razão que lhe consigo
apontar é a utilidade geral» (Utilitarismo, 309).
Em suma, a ideia básica é delinear um sistema de direitos
que maximizará a felicidade geral. Ou seja, concedemos às
pessoas certos direitos para que se possa obter mais felicida-
de no seio da estrutura desses direitos do que aquela que
seria possível em qualquer outro sistema alternativo. Talvez
a melhor forma de pensarmos nisto seja colocarmo-nos na
pele de um legislador utilitarista. Suponhamos que éramos
responsáveis pela criação do sistema legal e queríamos con-
cebê-lo de forma a que as leis maximizassem a felicidade.
Ingenuamente, poder-se-ia pensar que, nessas circunstân-
cias, devia fazer-se apenas uma lei: «Agir por forma a maxi-
mizar a felicidade». Mas isto não é assim tão líquido.
Temos de recordar uma distinção feita no Capítulo 2 entre
o utilitarismo directo e o indirecto. Um utilitarista directo
acredita que um indivíduo deve realizar uma acção sempre
que essa acção gere mais felicidade do que a alternativa
disponível. Nesta óptica, como vimos, diz-se por vezes que é
aceitável punir alguém que está inocente se com isso se
aplacar uma multidão inflamada e se pacificar uma situação
potencialmente calamitosa. O utilitarista directo tem de
pesar o sofrimento infligido à vítima inocente, a probabili-
dade de o logro se tornar público, as consequências prová-
veis de permitir que a multidão tente encontrar o culpado e
todos os outros factores que possam afectar o saldo de dor e
prazer que será gerado pela situação. Se as contas disserem
que se maximizará a felicidade punindo o inocente, é isso
que deve ser feito.
O utilitarista indirecto segue uma estratégia mais subtil.
Nesta perspectiva, aceita-se que o objectivo da lei e da moral
é a maximização da felicidade, mas considera-se que este
objectivo não deve ser alcançado permitindo que os próprios
indivíduos procurem maximizar a felicidade. Consideremos
o último exemplo. Suponhamos que é verdade que a utilida-

165
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

de por vezes lucra com o recurso a bodes expiatórios. Supo-


nhamos, também, que todas as pessoas sabem isto. Nesse
caso, todas as pessoas se apercebem da possibilidade de
serem escolhidas como bodes expiatórios. O conhecimento
disto criará muito provavelmente uma atmosfera de ansie-
dade e pessimismo. A possibilidade de utilização de bodes
expiatórios seria prejudicial para a felicidade geral. Por
conseguinte, o utilitarista indirecto poderia considerar que a
felicidade geral sairia mais beneficiada se ninguém fosse
punido a menos que se provasse a sua culpa. Embora haja
poucas ocasiões, muito especiais, em que poderíamos ter a
ganhar com a utilização de bodes expiatórios, no longo
prazo faremos muito melhor, em termos utilitaristas, em
conceder imunidade — um direito — a todas as pessoas
relativamente a serem bodes expiatórios. Este é, então, um
esboço de como se infere uma teoria utilitarista dos direitos.
Podendo ser verdade que, no curto prazo, lucraríamos em
violar um direito, quando consideramos as consequências no
longo prazo o utilitarismo aponta para o respeito dos direi-
tos.
Na verdade, o utilitarismo indirecto pode ser levado mais
longe, embora o próprio Mill não o tenha feito. Henry Sidg-
wick (1838-1900), o mais profundo e sofisticado dos primei-
ros utilitaristas, sugeriu que, embora o utilitarismo constitua
a teoria moral correcta, pode por vezes ser melhor manter
isto em segredo. Talvez a maior parte das pessoas precise
apenas de se reger por algumas máximas directas e simples:
não mintas, não mates, não enganes, e por aí adiante. A
justificação de Sidgwick para isto é que, se as pessoas
comuns soubessem a verdade sobre o utilitarismo, o mais
provável é que tentassem fazer elas próprias os cálculos em
termos utilitaristas directos. Não só isto seria uma coisa
negativa pelas razões já apontadas, como a maioria das
pessoas faria também mal os cálculos, devido a falta de
cuidado ou capacidade, ou devido à ampliação dos seus
próprios interesses. (Compare-se Hume sobre os nossos
poderes de raciocínio no Capítulo 2.) É muito melhor, pen-

166
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

sou Sidgwick, manter o utilitarismo como uma doutrina


esotérica, apenas revelada à elite iluminada. (A esta perspec-
tiva deu-se o nome de «utilitarismo colonial» pelos seus
opositores. Trata os cidadãos da mesma forma paternalista
que as potências europeias tratavam os súbditos coloniais
nos tempos do império.)
Conforme afirmei, Mill não foi tão longe e, verdade seja
dita, o seu utilitarismo indirecto está implícito na sua teoria e
não é afirmado explicitamente. Mas, uma vez analisada a
ideia de utilitarismo indirecto, percebemos como é possível
delinear uma teoria utilitarista dos direitos. Isto, então, servi-
rá o legislador utilitarista. A originalidade do utilitarismo
indirecto consiste em observar que, em vez de estabelecer
uma única lei — maximizar a felicidade — o legislador utili-
tarista pode fazer muito melhor, em termos da felicidade
geral, ao propor um corpo mais vasto de leis que garantam e
respeitem os direitos adquiridos dos indivíduos. Na verda-
de, Bentham e Mill podem até ter pensado que os seus leito-
res seriam sobretudo os legisladores, e não o grande público.
Afinal de contas, o livro mais importante de Bentham sobre
este assunto tem o título Introdução aos Princípios da Moral e da
Legislação.
E agora podemos começar a ver como as peças se encai-
xam. Segundo Mill, alcançar-se-á a maior felicidade atri-
buindo às pessoas uma esfera privada de interesses na qual
não seja permitida qualquer intervenção, ao mesmo tempo
que se permite a existência de uma esfera pública na qual a
intervenção é possível, mas apenas com base numa justifica-
ção utilitarista.
Como responde isto à questão de saber onde traçar a
linha entre as esferas pública e privada? O próprio Mill não é
explícito, mas há uma resposta rápida. Em primeiro lugar,
reconhecemos que a esfera privada se identifica com a esfera
dos «interesses baseados em direitos». De seguida, coloca-
mos a difícil questão de saber o que estabelece a distinção
entre interesses baseados em direitos (o meu interesse na
segurança pessoal) e outros interesses (o meu interesse em

167
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

não ser excluído do testamento da minha tia). A resposta a


esta questão é dada pela teoria do utilitarismo. A felicidade
geral lucrará se aprovarmos uma lei que proteja o interesse
das pessoas em caminhar pela rua sem serem atacadas, mas
sairá prejudicada se estabelecermos restrições quanto às tias
poderem ou não excluir os sobrinhos dos seus testamentos.
Outros exemplos ajudarão a esclarecer este aspecto. Como
vimos detidamente, Mill pretende proteger a liberdade de
pensamento. Porquê? Porque esta tem maior probabilidade
de atingir a verdade e — sugere Mill — o conhecimento da
verdade aumenta a felicidade. Portanto, presume-se que
temos um interesse baseado em direitos na liberdade de
pensamento. Mas Mill não quer proteger a empresa de um
indivíduo da concorrência leal. Por que não? Porque, segun-
do Mill, as vantagens utilitaristas do comércio livre signifi-
cam que nenhum outro sistema consegue contribuir a esse
ponto para a felicidade. (O sistema feudal, por exemplo, no
qual os indivíduos adquiriam licenças para se constituírem
como fornecedor exclusivo de um bem específico, gerou
enormes ineficiências.) Por conseguinte, as pessoas têm
direito à concorrência comercial e não têm direito a proteger
da concorrência os seus interesses financeiros. A posição é
algo complexa porque Mill, claro está, aceita que tenhamos
de ter certos direitos relativos à nossa riqueza, que a prote-
jam do roubo e da fraude. Mas o utilitarismo indirecto, na
teoria de Mill, não se aplica à protecção relativa à concorrên-
cia económica.
Esta defesa utilitarista do Princípio da Liberdade parece
muito plausível. A teoria utilitarista dos direitos fornece
exactamente o que faltava: uma doutrina de direitos que não
assenta no fundamento falso da teoria dos direitos naturais,
nem nas areias movediças da convenção. Parece permitir-nos
compreender a proposta de Mill. Contudo, a ideia de ser
possível formular uma defesa utilitarista do Princípio da
Liberdade de Mill foi alvo de fortes críticas. E não é difícil
encontrar exemplos nos quais a utilidade e a liberdade pare-
cem entrar em conflito. Como afirmou um crítico: «Um

168
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

toxicodependente que tenha conseguido libertar-se da


dependência pode, com base no utilitarismo, impedir que
um jovem experimentador incauto dê os primeiros passos
num caminho que pode revelar-se sem regresso» (R. P.
Wolff, The Poverty of Liberalism, 29). Por outras palavras, o
utilitarismo pareceria encorajar exactamente o tipo de inter-
venção paternalista que o Princípio da Liberdade exclui
expressamente: recordemos que o Princípio da Liberdade
não permite que pessoa alguma interfira na vida de outra,
mesmo que seja para o seu próprio bem. Portanto, defende
este ponto de vista, os direitos liberais não se podem justifi-
car em termos utilitaristas.
Esta objecção revela que, mesmo sendo possível construir
uma teoria utilitarista dos direitos, não se segue ainda daí
que a teoria utilitarista seria uma teoria liberal. Por que
devemos pensar que, no longo prazo, haveria mais felicidade
na sociedade de Mill do que na sociedade, governada pela
moral tradicional, que ele procurou substituir? Ou noutra
sociedade qualquer onde fosse concedido aos anciãos ilumi-
nados e experientes o direito de dirigir as vidas dos seus
elementos mais jovens?
Para avaliar a resposta de Mill a este problema precisa-
mos de olhar novamente para a redacção da passagem em
Sobre a Liberdade na qual Mill declara a sua fidelidade à utili-
dade: «Considero a utilidade o apelo derradeiro de todas as
questões éticas, mas é necessário que se trate de utilidade no
sentido mais lato, baseada nos interesses permanentes do
homem enquanto ser que progride» (Sobre a Liberdade, 136).
«Utilidade no sentido mais lato» significa, presumivelmente,
que devemos incluir todos os tipos de prazeres e todas as
formas de felicidade — intelectuais e emocionais, assim
como físicos — no cálculo. Mas por que acrescenta ele
«baseada nos interesses permanentes do homem enquanto
ser que progride»? Há outros aspectos da teoria de Mill que
temos de compreender antes que tudo se encaixe definitiva-
mente.

169
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Individualidade e progresso

A chave para a solução deste problema encontra-se no


capítulo 3 da obra Sobre a Liberdade, intitulado «Sobre a Indi-
vidualidade, como um dos Elementos do Bem-estar». É aqui
que Mill tenta demonstrar que a felicidade geral beneficiará
mais se for atribuída às pessoas uma grande esfera privada
de direitos de não-ingerência. Neste capítulo, Mill afirma
que a liberdade é essencial para a originalidade e a indivi-
dualidade de carácter. E, defende Mill, «o livre desenvolvi-
mento da individualidade é um dos mais importantes aspec-
tos essenciais do bem-estar» (Sobre a Liberdade, 185). Neste
passo, Mill pretende esclarecer várias questões e talvez seja
útil vê-las à luz do contexto de uma crítica feita por um dos
primeiros e mais impressionantes críticos de Mill, James
Fitzjames Stephen (1829-94), no seu livro Liberty, Equality,
Fraternity, cuja primeira edição data de 1873.
Stephen afirma ser absurdo pensar que a liberdade é
sempre boa em si. Ao invés, contrapõe, a liberdade é como o
fogo. Seria irracional perguntar se o fogo é bom em si: tudo
depende do objectivo a que se destina. E Stephen escolheu
bem a analogia. O fogo controlado possibilitou muitos dos
nossos feitos tecnológicos mais importantes — o motor de
explosão, por exemplo — mas o fogo descontrolado é de
temer e, muitas vezes, provoca grandes danos. Segundo
Stephen, o mesmo se aplica à liberdade.
Mill está disposto a aceitar que a liberdade nem sempre
conduz ao «progresso». Mas sublinha: «a única fonte inesgo-
tável e permanente de progresso é a liberdade» (Sobre a
Liberdade, 200). A promoção da liberdade contribui muito
mais para a felicidade humana do que qualquer outra possí-
vel política concorrente. Mill tem várias razões para afirmar
isto.
Em primeiro lugar, e mesmo sendo verdade que as pes-
soas cometem erros, os indivíduos têm ainda assim uma
maior probabilidade de estar certos quanto àquilo que os torna-
ria felizes do que qualquer outra pessoa. Afinal, prestam

170
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

mais atenção ao assunto e pensam mais nele do que, prova-


velmente, qualquer outra pessoa. Apesar disso, Mill reco-
nhece que as pessoas podiam exercer a liberdade muito mais
do que o fazem no presente, pois observa que as pessoas
abusam comummente desse poder e antes de agir pergun-
tam: «O que é adequado à minha posição? O que é geral-
mente feito pelas pessoas que têm o meu estatuto e se encon-
tram nas mesmas circunstâncias pecuniárias? Ou (pior ain-
da) o que é geralmente feito pelas pessoas de estatuto e
circunstâncias superiores aos meus?» (Sobre a Liberdade, 190).
A independência de julgamento, afirma Mill, terá certamente
melhores consequências. Mas com isto Mill não quer dizer
que nunca ninguém devia tentar influenciar o comportamen-
to de outras pessoas. Pelo contrário, o filósofo faz questão
em sublinhar que cada um de nós tem o dever de tentar
convencer os outros acerca dos seus erros, se sentirmos que
eles estão em vias de praticar acções impensadas ou prejudi-
ciais. Podemos raciocinar e argumentar com as pessoas. Mas
isto é tudo o que podemos fazer. A força está fora de ques-
tão:

Os outros podem apresentar considerações com vista a ajudar o


juízo [de outrem], podem exortá-lo no sentido de fortalecer a sua von-
tade, podem até importuná-lo; mas ele próprio é o juiz final. Todos os
erros que ele venha a cometer por não dar ouvidos aos conselhos e
avisos perdem todo o peso face ao mal que seria permitir que os outros
o limitassem naquilo que ele considera ser o seu bem. (Sobre a Liberda-
de, 207)

Na opinião de Mill, tais medidas aproximam-se da pres-


são social concertada, embora ele não nos indique claramen-
te como, na prática, é possível fazer a distinção entre ambas.
Mas, em termos gerais, a posição de Mill consiste em afirmar
que deixar as pessoas entregues a si próprias tenderá a fazê-
las mais felizes do que insistir em que sigam as recomenda-
ções da sociedade.
Uma segunda razão a favor da liberdade é que não só esta
conduz a melhores decisões no longo prazo, como também o

171
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

próprio exercício da liberdade de escolha é vital para o com-


pleto desenvolvimento da natureza humana. Quem é escra-
vo da tradição — sugere Mill —nunca se tornará um indiví-
duo completo e bem sucedido; não necessariamente porque
será infeliz, mas porque não desenvolverá uma das suas
capacidades mais distintamente humanas: a capacidade de
escolher.
A terceira e mais importante razão de Mill para defender
a liberdade e a individualidade é a seguinte:

Como é útil que, por a humanidade ser imperfeita, existam diferen-


tes opiniões, assim também o é que haja diferentes experiências de
vida; que se dê total liberdade às variedades de carácter, desde que
não prejudiquem terceiros; e que o valor dos diferentes modos de vida
seja comprovado na prática […]. [Este é] o principal ingrediente do
progresso individual e social. (Sobre a Liberdade, 185)

Assim, afirma Mill: «Proporcionalmente ao desenvolvi-


mento da sua individualidade, cada pessoa ganha mais valor
para si e, consequentemente, é capaz de ter mais valor para
os outros» (Sobre a Liberdade, 192). A ideia de Mill é que o
progresso humano beneficia em conceder aos indivíduos
autorização para realizar «experiências de vida». Quem
aproveita esta oportunidade pode conduzir experiências
«bem sucedidas» e, assim, adoptar estilos de vida que outros
poderão escolher seguir. Por outras palavras, os modelos
sociais criados podem mostrar aos outros como viver (ou
não viver) as suas próprias vidas e, destes modelos compor-
tamentais, os menos criativos podem escolher para si mes-
mos várias possibilidades novas.
É neste passo que vemos talvez Mill no seu auge de opti-
mismo e percebemos a razão do seu apelo à «utilidade no
sentido mais lato, baseada nos interesses permanentes do
homem enquanto ser que progride». Mill pensa que a huma-
nidade progride, no sentido em que os seres humanos con-
seguem aprender com a experiência, para benefício de todos
no longo prazo. Através das experiências realizadas por
alguns indivíduos, podemos aprender coisas de grande

172
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

valor, para benefício permanente da humanidade. Quem é


demasiado tímido para conduzir experiências por si próprio
pode, ainda assim, aprender com os mais empreendedores. É
através da observação, e da experiência, das várias possibili-
dades que se nos deparam que a humanidade será capaz de
perceber que tipos de vidas conduzirão à verdadeira prospe-
ridade humana. A liberdade é vital enquanto condição de
experimentação. Esta é, segundo parece, a principal razão
por que Mill está convencido de que, no longo prazo, a
liberdade garantirá a maior felicidade possível à humanida-
de.
Será Mill demasiado optimista? Foi essa a opinião de
James Fitzjames Stephen. A sua crítica imediata foi afirmar
que Mill estava enganado ao pensar que dar liberdade às
pessoas resultaria provavelmente numa experimentação
enérgica. É igualmente provável que a liberdade em relação
à interferência dos outros redunde em indolência e desinte-
resse pela vida. Mas é possível apresentar um argumento
mais profundo e mais ameaçador para o projecto de Mill.
Na interpretação apresentada de Mill, o grande peso da
sua posição assenta no pressuposto de que os seres humanos
progridem, sendo capazes de aprender com a experiência. A
experiência do século XX desmente esta opinião? A ser
assim, o fulcro da posição de Mill cai por terra. A humani-
dade não deixa de repetir os erros já cometidos. Se as pes-
soas não aprenderem com a experiência dos outros, perde-
remos a razão avançada por Mill para encorajar as experiên-
cias de vida. Qual é a vantagem de as outras pessoas nos
revelarem novos estilos de vida, se não estivermos prepara-
dos para aprender? Sem essa defesa das experiências de
vida, passa a haver menos justificação para a individualida-
de e a liberdade, à luz dos argumentos que Mill apresenta.
Com efeito, houve quem dissesse que, em termos gerais, os
seres humanos se encontram no estado que Mill reservou
para «as crianças e os bárbaros»: incapazes de progredir
através de discussão livre e igual. E, como o próprio Mill
defende, tais pessoas não são receptores adequados de liber-

173
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

dade, pelo menos segundo o cálculo utilitarista. Talvez este


pessimismo acerca da possibilidade de progresso humano
seja um grande exagero. Mas se a verdade se encontra algu-
res no meio, se os seres humanos são menos capazes de
aperfeiçoamento do que Mill imagina, a defesa utilitarista da
liberdade sai correspondentemente enfraquecida. O progres-
so é a pedra angular da doutrina de Mill.

A liberdade como bem intrínseco

Poderá dar-se o caso de Mill estar errado ao tentar defen-


der o Princípio da Liberdade em termos utilitaristas? Com
efeito, Mill apresentou a liberdade como instrumentalmente
valiosa: é valiosa como forma de alcançar a maior felicidade
possível para a sociedade. Mas talvez devesse ter dito que a
liberdade é intrinsecamente boa, boa em si. Se adoptarmos
esta posição, como fazem muitos liberais contemporâneos,
evitaremos o problema de a maximização da felicidade
requerer talvez uma sociedade não liberal. A liberdade é
valiosa, sejam quais forem as consequências.
Alguns observarão que não existem bens intrínsecos: tudo
é avaliado em função de outra coisa, e não de si mesmo. Mas
repare-se que até Mill teve de aceitar a existência de pelo
menos um bem intrínseco: a felicidade. Os utilitaristas afir-
mam que a felicidade é o único bem intrínseco. Tudo tem de
ser justificado em termos da sua contribuição para o total de
felicidade. Mas, então, por que não podemos dizer que há
dois (ou mais) bens intrínsecos: a felicidade e a liberdade? Na
verdade, alguns pensadores sentiram-se tentados a dizer que
esta é a verdadeira teoria de Mill, apesar de ele o negar!
Mill recusaria esta interpretação das suas afirmações: é
bastante claro ao afirmar que a liberdade é um bem sobretu-
do enquanto meio de aperfeiçoamento e quando não alcança
o efeito desejado — no caso das crianças e dos bárbaros —
não se justifica. A liberdade é intrinsecamente boa apenas
quando contribui para a nossa felicidade, mas, então, faz
«parte da felicidade» e não constitui um valor independente.

174
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Além disso, a liberdade sem limites levaria à anarquia. O


utilitarismo fornece uma descrição das liberdades que
devemos ter e que não devemos ter. Por exemplo, Mill afir-
ma que devemos ser livres de concorrer comercialmente,
mas não devemos ser livres de usar a riqueza de outrem sem
o seu consentimento. Assim, a sua posição permite-nos
estabelecer limites à liberdade, ao mesmo tempo que lhe
consagra grande respeito.
Este não é um argumento conclusivo a favor da aborda-
gem de Mill. Não é verdade que apenas o utilitarismo consi-
ga estabelecer restrições à liberdade: talvez a liberdade possa
ser restringida a bem da liberdade, ou da justiça. E há outras
formas de defender a liberdade sem fazer recurso ao utilita-
rismo (veremos a abordagem não utilitarista de John Rawls,
no capítulo seguinte). Assim, o argumento de Mill é apenas
uma forma de tentar defender o liberalismo. Contudo, o
Princípio da Liberdade fornece-nos uma perspectiva razoá-
vel, conquanto problemática, de uma filosofia política liberal.
Devemos aceitá-la? Nem todos pensam que sim.

Problemas do liberalismo

A eutanásia ou matar outrem a seu próprio pedido, o suicídio, a


tentativa de suicídio e os pactos de suicídio, os duelos, o aborto, o
incesto entre irmãos, são actos que podem ser praticados em pri-
vado, sem prejuízo de terceiros, e não envolvem necessariamente
a corrupção ou exploração de outrem.
(Lorde Devlin, «Morals and the Criminal Law», 7)

Envenenamento, embriaguez e atentado ao pudor

Como seria a nossa vida, se tentássemos regulamentar a


sociedade em conformidade com o Princípio da Liberdade?
Como referi mais atrás, ainda neste capítulo, o próprio Mill
não chega a defender algumas das implicações mais chocan-
tes da sua teoria. No seu capítulo final, Mill identifica algu-
mas das «limitações óbvias» do Princípio da Liberdade. Uma

175
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

delas diz respeito às restrições à liberdade justificáveis como


forma de prevenir o crime. Assim, por exemplo, Mill afirma
que, se a única razão por que as pessoas comprassem veneno
fosse perpetrar assassínios, então a sociedade teria toda a
legitimidade para banir a sua produção e comercialização.
No entanto, a maior parte dos venenos tem outras funções e,
portanto, Mill recomenda que a lei exija aos boticários que
façam um registo com todos os pormenores relativos às
vendas destas substâncias, incluindo o nome do comprador
e a finalidade por ele declarada. Depois, se alguém for
encontrado envenenado, a polícia terá já uma lista dos prin-
cipais suspeitos. Estritamente falando, um comprador de
intenções inofensivas pode queixar-se de que este procedi-
mento é uma interferência e constitui uma violação da liber-
dade pessoal. Mas a perspectiva de Mill é que a violação é
trivial à luz dos benefícios colhidos pelo sistema e, portanto,
esta é uma excepção óbvia ao carácter geral do Princípio da
Liberdade.
Outra excepção é que, embora a embriaguez não constitua
comummente um crime, qualquer pessoa que tenha sido
condenada por exercer violência sobre outrem sob o efeito
da bebida deve, segundo Mill, ser proibida de beber. Neste
caso, para Mill, o perigo de danos sobrepõe-se ao direito
individual de consumir álcool.
Apesar de certos liberais poderem preocupar-se com o
facto de estes casos — particularmente o último — serem
excessivamente restritivos da liberdade humana, Mill susten-
ta que as restrições se justificam como forma de afastar a
possibilidade de danos graves, mesmo que essa possibilida-
de seja apenas remota. Há outro exemplo, contudo, que
coloca questões de princípio muito mais sérias:

há muitas acções que, sendo directamente afrontosas apenas para os


próprios agentes, não devem ser interditadas legalmente; contudo,
quando são realizadas publicamente constituem uma violação das
boas maneiras — passando assim a ser abrangidas pela categoria das
afrontas feitas a terceiros — e podem ser correctamente proibidas.
Incluem-se neste tipo os atentados ao pudor, sobre os quais não é

176
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

necessário alongarmo-nos, para mais estando estes apenas indirecta-


mente relacionados com o nosso tema, sendo a objecção à publicidade
igualmente forte no caso de muitas acções que não são em si condená-
veis, nem devem sê-lo. (Sobre a Liberdade, 230-1)

A prosa de Mill, sobre este assunto delicado, não tem a


clareza habitual, mas a intenção da passagem é clara. Algu-
mas acções — uma relação sexual entre marido e mulher,
por exemplo — não seriam condenadas por nenhum código
moral se realizadas em privado, mas seriam consideradas
aceitáveis por muito poucas pessoas (nas quais não se inclui-
ria certamente Mill) se realizadas publicamente.
Mas como pode Mill tornar esta opinião compatível com o
Princípio da Liberdade? Que prejuízo acarreta a «indecência
pública»? Afinal, o próprio Mill insiste em que a mera afron-
ta não constitui prejuízo. Neste passo, Mill, sem ser explícito,
parece permitir que a moral tradicional se sobreponha à sua
adesão ao Princípio da Liberdade. Talvez poucos criticassem
a sua escolha de política. Mas é difícil ver como consegue o
filósofo tornar isto compatível com outras opiniões suas; na
verdade, Mill parece não fazer qualquer tentativa séria nesse
sentido.
Quando começamos a considerar exemplos deste género,
percebemos que seguir o «único e simples princípio» de Mill
conduziria a um tipo de sociedade que jamais se viu e, por-
ventura, jamais se desejaria ver. Algumas das aparentes
inconsistências existentes na posição liberal foram muito
bem referidas pelo Juiz Devlin, Presidente do Supremo
Tribunal, no seu ensaio «Morals and the Criminal Law»,
publicado parcialmente como resposta ao Wolfenden Report
de 1957, que recomendava a descriminalização de actos
homossexuais entre adultos responsáveis. O Wolfenden
Report defendia também que a prostituição não devia ser
ilegal. Estas recomendações pareciam ir completamente ao
encontro do Princípio da Liberdade. Contudo, como observa
Devlin, uma boa parte das leis vigentes nas sociedades con-
temporâneas é de difícil defesa nos termos do Princípio da

177
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Liberdade. Alguns exemplos são: a proibição dos duelos, do


incesto entre irmãos e da eutanásia.
Para defender o seu ponto de vista, Devlin centra-se na
questão da prostituição. Por que razão o liberal está disposto
a permitir a sua existência? A resposta comum poderia ser
que isso, simplesmente, não é do foro legal: a prostituição
diz respeito apenas à prostituta e ao cliente. Mas, então,
pergunta Devlin:

Se a prostituição não é […] do foro legal, que tem a lei a ver com o
proxeneta ou a dona do bordel […]? O Relatório recomenda que as leis
que tornam estas actividades criminosas sejam mantidas […] e arrola-
as […] sob o título da exploração. […] Mas, em geral, um proxeneta
não explora mais uma prostituta do que um agente explora uma actriz.
(«Morals and the Criminal Law», 12)

Devlin defende que só podemos entender estas questões


se supusermos que a sociedade possui determinados princí-
pios morais, que implementa através da lei penal. Pensa-se
que se alguém violar estes princípios, estará a prejudicar a
sociedade como um todo.
Embora Mill recusasse certamente a afirmação de Devlin
de que a lei deve sempre favorecer a moral tradicional, não
há dúvida de que se sentiria muito incomodado se fosse
confrontado com os exemplos apresentados por Devlin. Não
quer isto dizer que liberais como Mill nunca encontrariam
razões para colocar objecções à eutanásia ou à manutenção
de bordéis. A verdadeira questão é: se o Princípio da Liber-
dade é para ser entendido tão seriamente como Mill sugere,
por que razão o liberal terá de se preocupar se este entrar em
conflito com a moral tradicional? A pretensa adesão de Mill
ao «único e simples princípio» não reflecte a verdadeira
complexidade das suas convicções.

Objecções marxistas ao liberalismo

Da tradição marxista chegam-nos críticas de um tipo


muito diferente. Os próprios escritos de Marx mais famosos

178
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

sobre este tema surgem num dos seus primeiros ensaios,


intitulado «Para a Questão Judaica», publicado em 1844,
quando Marx tinha 26 anos. Em 1816, foram aprovadas na
Prússia leis que concediam aos judeus direitos muito inferio-
res aos dos cristãos. O próprio pai de Marx, Heinrich, por
exemplo, converteu-se ao cristianismo um ano depois de as
leis anti-semitas lhe terem tornado impossível ser ao mesmo
tempo advogado e judeu. O parlamento renano aprovara a
emancipação judaica em 1843, mas o rei vetou a legislação
proposta. Assim, a Questão Judaica era assunto de intenso
debate entre os liberais e os intelectuais da Prússia.
«Para a Questão Judaica» foi escrito em resposta ao amigo
e colega de Marx, Bruno Bauer, que escrevera contra a eman-
cipação judaica de uma perspectiva ateísta. A posição de
Bauer consistia em afirmar que a religião constituía um
obstáculo tanto para os cristãos como para os judeus. Se o
povo da Alemanha queria conquistar a emancipação, tanto o
estado como os seus cidadãos teriam de se emancipar em
relação à religião. A religião teria de ser abolida.
Marx afirma discordar de Bauer, embora o que ele faça
realmente seja colocar as observações de Bauer num contexto
mais profundo e teórico. Segundo Marx, Bauer esquece uma
distinção crucial: entre emancipação política e emancipação
humana. Isto vai de par com o não reconhecimento da dis-
tinção entre aquilo que Marx chama «o estado» e «a socieda-
de civil».
A exigência de emancipação política é a exigência de
direitos iguais. No contexto da emancipação religiosa, o
estado emancipado é aquele cujas leis não contêm quaisquer
barreiras ou privilégios religiosos. Para Marx, os Estados
Unidos constituíam um exemplo de emancipação política
quase completa. As leis da maior parte dos estados norte-
americanos, mesmo em 1844, presumiam que as pessoas
eram iguais, independentemente da sua religião. Contudo, a
discriminação existia a outro nível. Mesmo que as leis do
estado não olhem à religião, os indivíduos podem permane-
cer imersos no fanatismo e no ódio religiosos. Em conse-

179
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

quência, os partidários de algumas religiões sofrem discri-


minação no emprego, na educação e noutras áreas. No mun-
do privado da actividade quotidiana, da vida económica — a
sociedade civil — a discriminação existe mesmo num estado
politicamente emancipado. Assim, declara Marx: «um estado
pode libertar-se de uma limitação sem que o próprio homem
se liberte verdadeiramente dela» («Para a Questão Judaica»,
44). Emancipação política não é emancipação humana.
Isto estabelece o ponto de partida para a crítica de Marx
ao liberalismo. O liberalismo visa um regime de direitos à
igualdade, à liberdade, à segurança e à propriedade: eman-
cipação política. Contudo, não só a posse de tais direitos não
chega para atingir a emancipação humana como os direitos
liberais constituem, na verdade, um obstáculo à sua realiza-
ção. Os direitos liberais são direitos egoístas de separação:
direitos que, segundo Marx, incentivam cada indivíduo a ver
os outros como limitações à sua liberdade. A ideia de Marx é
que a sociedade genuinamente emancipada é aquela na qual
os indivíduos se vêm a si mesmos, e agem, como elementos
completamente cooperantes de uma comunidade de pares. O
liberalismo parodia isto ao estabelecer, ao nível do estado,
uma pretensa comunidade de cidadãos «iguais» que mascara
a actividade quotidiana egoísta de concorrência entre desi-
guais na sociedade civil, onde o homem «trata os outros
homens como meios, se degrada assumindo a condição de
meio, e se torna joguete nas mãos de poderes alheios» («Para
a Questão Judaica», 46). Os direitos outorgados ao cidadão
reforçam o egoísmo e o antagonismo da sociedade civil.
Para Marx, a emancipação política — o liberalismo —
constitui um enorme progresso relativamente ao estado
hierárquico e discriminativo que o antecedera. Mas está
ainda longe da sua sociedade ideal, comunista, na qual a
emancipação abrange todas as camadas até à sociedade civil.
Claro que Marx acredita que esta mudança só pode ser reali-
zada através de uma acção revolucionária. O liberalismo, em
contraste, aos olhos de Marx, parece uma doutrina superfi-
cial e insípida.

180
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Comunitarismo e liberalismo

Terá Marx razão? Poucos filósofos acreditam hoje em dia


que Marx nos tenha dado muita informação sobre o que
queria realmente dizer quando se referia à emancipação
humana ou à forma como esta se podia alcançar. Contudo, o
argumento subjacente da sua crítica foi retomado de uma
forma muito diferente por certos críticos contemporâneos do
liberalismo que não se chamam a si próprios comunistas,
mas comunitaristas. Os comunitaristas partilham a oposição
de Marx àquilo que vêem como o atomismo ou individua-
lismo do liberalismo. Mas, ao contrário de Marx, pensam que
a solução não se encontra numa qualquer comunidade ima-
ginada do futuro, mas na cultura e nas tradições da socieda-
de existente.
O liberalismo, dizem os comunitaristas, encara as pessoas
como indivíduos isolados que, na sua própria esferazinha
protegida, visam o seu próprio bem à sua maneira. Os indi-
víduos liberais pensam que não têm qualquer ligação aos
costumes, à cultura, às tradições e convenções das suas
próprias sociedades. Em resposta, os comunitaristas defen-
dem que somos seres completamente sociais e que a nossa
identidade e autoconhecimento estão relacionados com as
comunidades onde nos encontramos. Se não nos encontrás-
semos nos nossos contextos particulares, locais e sociais, com
os nossos compromissos e alianças, seríamos, literalmente,
pessoas diferentes. O próprio Mill, em Utilitarismo, concorda,
de alguma forma, com esta perspectiva, ao afirmar:

O estado social é simultaneamente tão natural, tão necessário e tão


comum ao homem que, excepto em circunstâncias invulgares ou atra-
vés de um esforço de abstracção voluntária, ele nunca se imagina
senão como membro de um corpo; e esta associação vai ficando cada
vez mais arraigada, à medida que a humanidade se vai afastando do
estado de independência selvagem. Por conseguinte, toda a condição
essencial a um estado de sociedade vai-se tornando cada vez mais uma
parte inseparável da concepção que as pessoas têm do estado de coisas
em que nasceram e que é o destino do ser humano. (Utilitarismo, 284-5)

181
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Contudo, os comunitaristas acusam Mill de não ter com-


preendido o significado das suas próprias palavras. Só na
perspectiva contrária, do individualista isolado, a liberdade
parece tão valiosa. Para Mill, a liberdade permite-nos deitar
fora o peso esmagador dos laços da tradição e da conformi-
dade. Mas, contrapõe o comunitarista, isto não só pressupõe
uma visão falsa da natureza humana (que nos é possível
deitar fora esses «laços»), como também tem consequências
perigosíssimas. Ao negar a importância da nossa comunida-
de, enveredamos por um caminho que nos conduzirá à
alienação individual e, em última análise, à desagregação da
sociedade. Para ultrapassar isto, temos de reconhecer a
importância da moral tradicional — o laço que mantém a
sociedade unida. Temos também de reconhecer que nin-
guém pode esperar que lhe seja concedido o direito de fazer
algo que debilite seriamente essa moral. Claro que não preci-
samos de ver a moral tradicional como algo estático e inalte-
rável — pode-se certamente discutir a sua natureza. Mas os
limites da reforma moral são estabelecidos pelos costumes e
tradições da sociedade em questão.
Uma resposta provável aos comunitaristas consiste em
afirmar que o que eles propõem é uma forma de sociedade
fortemente repressiva, que deixa pouco espaço à liberdade
individual. Mas os comunitaristas argumentam que os libe-
rais estão enganados acerca da natureza da verdadeira liber-
dade. Os liberais pressupõem uma definição «negativa» de
liberdade: um indivíduo é livre na medida em que consegue
fazer as suas próprias escolhas sobre a vida. Mas, contra-
põem os comunitaristas, esta é uma perspectiva tosca e,
efectivamente, falsa. Não se torna as pessoas livres deixan-
do-as entregues a si mesmas. Pelo contrário: é necessário
colocar as pessoas em posição de conseguirem fazer as esco-
lhas certas sobre o seu modo de vida — as escolhas que a
pessoa racional faria.
Nesta visão alternativa de «liberdade positiva», a sociali-
zação integral constitui um preliminar ao desenvolvimento
da liberdade, e isto envolverá inevitavelmente a educação

182
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

acerca dos «verdadeiros interesses» do indivíduo. Mas nin-


guém tem interesse em algo que enfraqueça a sociedade e,
com ela, a sua identidade. Portanto, depreende-se que a
liberdade (positiva) do indivíduo não é de forma alguma
restringida se este for impedido de realizar acções que com-
prometam partes importantes da moral tradicional. Isto
aproxima-se da opinião de Rousseau, analisada no Capítulo
3, de que a obediência à vontade colectiva promove, ao invés
de restringir, a liberdade do indivíduo.
Mill e o comunitarista encarariam as suas doutrinas
mútuas da liberdade com suspeita. Se a definição negativa
de Mill leva ao isolamento e à alienação, a definição positiva
do comunitarista conduz à repressão em nome da liberdade.
Mas a disputa entre Mill e o comunitarista parece resumir-se
a isto: qual seria a sociedade mais feliz — a que seguisse
uma forma (alterada) do Princípio da Liberdade ou a que
seguisse uma forma (alterada) dos costumes e das tradições
da sociedade? Na verdade, é possível ver que as opiniões
podem até encontrar-se a meio caminho: talvez um com-
promisso entre as duas seja o melhor. (Analisaremos com
mais pormenor um debate semelhante no capítulo final.)

Conclusão

Creio que será justo dizer que Mill tinha razão ao valori-
zar a liberdade (negativa) e ao considerar provável que uma
sociedade liberal será mais feliz do que muitas sociedades
não liberais. Mas, como vimos, a sua própria defesa da liber-
dade assenta consideravelmente na ideia de que os seres
humanos são capazes de fazer progressos morais. Para Mill,
isso era um aspecto central. Mas, a estar errado, uma socie-
dade comunitarista podia muito bem ser preferível a uma
sociedade liberal, em termos utilitaristas: talvez as experiên-
cias de vida façam mais mal do que bem, se ninguém apren-
der com elas. Os defensores da liberdade, então, têm ou de
mostrar que as pessoas são capazes de fazer progressos

183
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

morais ou encontrar um fundamento alternativo para a sua


perspectiva.
Não resisto a terminar este capítulo com um episódio. Em
meados dos anos 80, conheci um advogado espanhol que
tinha estudado Direito e Filosofia durante os anos fortemen-
te autocráticos de Franco. Perguntei-lhe se era possível na
altura estudar filosofia política e ele respondeu que, na ver-
dade, tinha tido essa cadeira. Durante a maior parte do ano
estudaram os gregos antigos mas, nas últimas semanas,
contemplaram também os modernos. Depois de estudarem
Hobbes, Locke e Rousseau, dedicaram algum tempo a Hegel
e, a seguir, tiveram uma aula de duas horas sobre Marx. Mas
foi-lhes dado apenas alguns minutos de John Stuart Mill. Foi
Mill, e não Marx, que o regime de Franco escolheu censurar.
Isto faz todo o sentido. As doutrinas de Karl Marx não
tinham grande probabilidade de influenciar significativa-
mente os abastados estudantes provinciais de Direito. Mas
os escritos de John Stuart Mill sobre a liberdade de expressão
e a liberdade individual eram outra história.

184
5
A distribuição da riqueza

O problema da justiça distributiva

Vamos supor que uma criatura, possuidora de razão mas não


familiarizada com a natureza humana, delibera de si para si que
regras de justiça ou riqueza melhor serviriam o interesse públi-
co e estabeleceriam a concórdia e a segurança no seio da huma-
nidade; o seu pensamento mais óbvio seria atribuir as maiores
possessões à maior virtude, e conceder a todos o poder de fazer
o bem, proporcionalmente à sua inclinação [...]. Mas se a huma-
nidade pusesse em prática tal lei [...], a dissolução total da
sociedade seria forçosamente a consequência imediata.
(Hume, Investigação sobre os Princípios da Moral, 192-3)

Liberdade e riqueza

Como se deve distribuir a riqueza? Como Hume indica,


este é um assunto repleto de dificuldades. As respostas
óbvias à questão podem ser desastrosamente ingénuas.
A liberdade do cidadão, na perspectiva de Mill, exige a
protecção de cada pessoa. Para Mill, uma forma possível de

185
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

dano é o dano infligido à propriedade: roubo, fraude ou


prejuízo. Mas, segundo este filósofo, não temos direito a ser
protegidos dos efeitos de um mercado a funcionar normal-
mente, nem direito a ser protegidos da concorrência econó-
mica. Mill aprova o capitalismo laissez-faire — pelo menos
enquanto os indivíduos se encontrarem no seu estado pre-
sente de imperfeição moral. (Num trabalho posterior, Capítu-
los sobre o Socialismo, sugere que o socialismo seria uma
forma mais apropriada de organização económica para os
seres moralmente aperfeiçoados do futuro.) Mill supõe
igualmente que o indivíduo tem o dever de pagar a sua
quota-parte das despesas decorrentes do funcionamento do
estado e deve igualmente ser tributado para apoiar quem é
incapaz de se sustentar a si próprio (ou que não está dispos-
to a isso).
Até que ponto um comprometimento com estas políticas
constitui uma consequência da aceitação do valor da liber-
dade? E que outros valores são relevantes para a avaliação
da justiça de um sistema de riqueza? Com efeito, ao defender
as suas opiniões acerca da justiça distributiva, Mill faz um
apelo bastante directo ao utilitarismo. Outros filósofos, como
Locke, pensaram que, ao definir um sistema justo de riqueza,
devemos apelar aos direitos naturais de propriedade. E
outros ainda atribuíram um papel mais importante à ideia de
igualdade.
Consideremos, brevemente, se a aceitação do valor da
liberdade tem consequências para a questão da justiça distri-
butiva. Como deve uma sociedade liberal distribuir a rique-
za? Relativamente a este problema, as opiniões divergem
substancialmente. Uma tradição, na esteira de Locke, supõe
que a valorização da liberdade exige o reconhecimento de
fortíssimos direitos naturais de propriedade. No desenvol-
vimento libertário desta perspectiva — cuja apresentação
mais eloquente se encontra em Anarquia, Estado e Utopia,
publicado em 1974 por Robert Nozick, filósofo de Harvard
— estes direitos são tão poderosos que o estado não tem
nada que interferir com eles. No «estado mínimo» de

186
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Nozick, o estado tem o dever de fazer observar os direitos da


propriedade individual, mas não pode tributar o indivíduo
além do nível exigido à defesa de cada cidadão em relação
aos outros e relativamente a agressores externos. Em espe-
cial, segundo esta perspectiva, o estado viola os direitos
individuais de propriedade se tentar transferir bens de
alguns indivíduos (ricos) para outros (pobres). A distribuição
tem de ser deixada ao mercado livre, às ofertas e aos donati-
vos da caridade voluntária.
O libertário, então, tenta defender a via do valor da liber-
dade do indivíduo até uma forma muito pura de capitalis-
mo. Com efeito, isto coloca a propriedade individual na sua
«esfera protegida» de direitos, onde ninguém — estado ou
indivíduo — pode interferir sem o seu consentimento.
Uma perspectiva oposta observa que o anarquismo con-
duzirá inevitavelmente a grandes desigualdades de riqueza
que, por seu lado, terão um efeito prejudicial sobre as liber-
dades — ou, pelo menos, as oportunidades — dos pobres.
Esta corrente — o liberalismo social — afirma que a proprie-
dade tem de ser redistribuída, tirando aos ricos para dar aos
menos afortunados, de forma a assegurar liberdade igual
para todos. A propriedade permanece fora da esfera prote-
gida do indivíduo e o estado tem o dever de supervisionar e
intervir sempre que necessário (em conformidade com as leis
do país) para proteger a liberdade e a justiça. A variante
mais importante do liberalismo social está contida na obra
Uma Teoria da Justiça, publicada em 1971 (três anos antes do
livro de Nozick) da autoria do colega de Nozick, também de
Harvard, John Rawls. Na verdade, grande parte da filosofia
política contemporânea foi inspirada na obra de Rawls, quer
em sua defesa, quer — como é o caso de Nozick — em opo-
sição a ela.
Desta forma, Nozick e Rawls fornecem respostas diferen-
tes à questão da justiça distributiva. Uma perspectiva com-
pleta exige resposta a um sem-número de perguntas. Há
direitos naturais de propriedade? Qual é o lugar do mercado
livre? Devemos tolerar grandes desigualdades de riqueza?

187
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Qual deverá ser o papel do estado? Não faltam respostas a


estas questões. Mas que resposta é a correcta?

O cortejo dos rendimentos

É difícil atacar de imediato estas questões sem alguns


instrumentos de reflexão. O problema da justiça distributiva
é o problema de saber como os bens devem ser distribuídos.
E, parece, uma forma excelente de iniciar a reflexão sobre
«como as coisas devem ser» é analisar como elas são. Portan-
to, talvez devêssemos começar com alguns factos.
Os dados estatísticos relativos ao rendimento, embora
indubitavelmente úteis, muitas vezes não são imediatamente
claros. Uma coisa é dizerem-nos que uns quanto por cento
da população detêm tal riqueza, outra coisa é compreender a
importância de tais valores secamente apresentados. Por esta
razão, um economista holandês, Jan Pen, no seu livro de
1971 intitulado Income Distribution, decidiu apresentar de
uma forma muito diferente os factos sobre a distribuição do
rendimento no Reino Unido.
Pen convida-nos a imaginar um Grandioso Cortejo
daqueles que, na economia britânica, auferem uma remune-
ração de qualquer tipo, incluindo as prestações sociais. O
Grandioso Cortejo faz-se numa fila única, com as pessoas
ordenadas segundo o seu rendimento: os de menor rendi-
mento à frente e os de maior rendimento atrás. É-nos pedido
que suponhamos que a totalidade do cortejo passa por nós
numa hora. A característica peculiar do cortejo reside na
altura de cada um ser determinada pelo respectivo rendi-
mento tributável. Ou seja, quanto mais se ganha, mais alto se
é. Os que auferem o salário médio têm estatura mediana, os
que ganham o dobro terão o dobro da altura destes, e por aí
fora. Suponhamos que, enquanto espectadores, temos estatu-
ra mediana e assistimos à passagem do cortejo. O que vería-
mos?
Em primeiro lugar, durante uns segundos, vemos umas
pessoas extraordinárias, de altura negativa. Trata-se de

188
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

indivíduos que possuem empresas geradoras de prejuízos.


Mas estes são rapidamente substituídos por pessoas do
tamanho de um fósforo ou um cigarro: donas de casa que
trabalharam durante uma semana, ou coisa parecida, e que
não têm um rendimento anual, crianças em idade escolar
que fazem umas horas como ardinas ou desempenham
outras pequenas tarefas, etc.
Estas pessoas levam cinco minutos a passar e, passados
dez minutos, começam a surgir indivíduos com uns noventa
centímetros — a altura de uma criança de quase três anos.
Entre estes estão muitos desempregados, reformados,
mulheres divorciadas, alguns jovens e proprietários de lojas
em dificuldades. A seguir vêm vulgares trabalhadores dos
sectores mais mal pagos. Varredores, empregados no ramo
dos transportes, alguns mineiros, empregados de escritório
indiferenciados, operários não especializados. Há muitos
trabalhadores negros e asiáticos neste grupo. Após quinze
minutos, os participantes no cortejo atingem finalmente
cerca de um metro e vinte centímetros de altura. E nos quin-
ze minutos que se seguem não há grande variação de altura,
à medida que vão passando os operários industriais especia-
lizados, com formação substancial, e os empregados de
escritório.
Neste passo, Pen comenta: «Sabíamos que o cortejo demo-
raria uma hora e talvez tivéssemos esperado conseguir olhar
de frente os participantes passada meia hora, mas não é isso
que acontece. Olhamos ainda para baixo, para o cimo das
suas cabeças» (Income Distribution, 51). Decorrem quarenta e
cinco minutos até vermos pessoas de estatura mediana.
Entre estas, contam-se professores, funcionários públicos,
comerciantes, capatazes e alguns agricultores.
Nos últimos seis minutos, o cortejo torna-se extraordiná-
rio, com a chegada dos últimos dez por cento. Com uma
altura a rondar um metro e noventa e cinco centímetros,
vemos reitores, jovens licenciados em vários empregos, mais
agricultores e chefes de departamento, a maioria dos quais
não fazia ideia de encontrar-se entre os dez por cento mais

189
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

bem pagos. Depois, nos últimos minutos, «agigantam-se


subitamente umas figuras». Um advogado, não especialmen-
te bem sucedido, com cinco metros e quarenta centímetros.
Os primeiros médicos, com cerca de sete, oito e nove metros.
Os primeiros contabilistas. No último minuto, aparecem
professores universitários com nove metros, membros de
conselhos de administração com dez metros, uma secretária
vitalícia com treze metros, juízes do Supremo Tribunal,
contabilistas, cirurgiões oftalmologistas — vinte ou mais
metros.
Durante os últimos segundos vemos pessoas com a altura
de torres de apartamentos: homens de negócios, membros
dos conselhos de administração de grandes empresas, estre-
las de cinema, membros da família real. O príncipe Philip
tem sessenta metros de altura, o cantor Tom Jones tem quase
quilómetro e meio. A fechar o cortejo surge John Paul Getty:
entre quinze e trinta quilómetros de altura.
Estes números são bastante antigos, claro. Uma versão
actualizada veria os últimos minutos dominados por advo-
gados, contabilistas, banqueiros, corretores e directores de
empresas, com os funcionários do sector público (em espe-
cial os professores universitários!) muito mais atrás. Mas,
embora datados, os dados estatísticos apresentados desta
forma são bastante surpreendentes. É difícil ler completa-
mente a descrição sem pensar que tem de estar alguma coisa
mal numa sociedade tão desigual. Mas esta reacção justifica-
se? São igualmente possíveis outros tipos de reacção. Um
consiste em dizer que o cortejo não fornece suficiente infor-
mação para permitir um juízo adequadamente reflectido.
Outra reacção, complementar, é dizer que o cortejo induz
gravemente em erro. Desenvolvendo este último aspecto,
pode afirmar-se que esta apresentação pretensamente «cien-
tífica» de dados objectivos é «tendenciosamente valorativa»,
no sentido em que a selecção de dados só seria feita por
alguém que nos quisesse convencer de que a sociedade
actual é injusta.

190
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

É verdade que um defensor do actual sistema dificilmente


escolheria apresentá-lo desta forma. Mas como induz o
cortejo em erro? O que exagera, distorce ou omite? O próprio
Pen questiona a natureza da «unidade de referência». Ou
seja, o cortejo inclui todos aqueles que, na economia, aufe-
rem qualquer rendimento. Assim, alguns efeitos espectacula-
res do cortejo obtêm-se incluindo crianças que desempe-
nham tarefas durante o seu tempo livre, mulheres que traba-
lharam apenas algumas semanas ou algumas horas por
semana, e outros que não tentam viver apenas dos seus
salários. Geralmente, estas pessoas pertencem a famílias cujo
rendimento conjunto pode ser mais substancial. Portanto, é
óbvio que se considerarmos famílias, ou agregados familia-
res, como unidade básica de comparação, muitos dos rendi-
mentos mais baixos serão eliminados.
Uma objecção mais filosófica consiste em afirmar que os
dados apresentados desta forma ignoram simplesmente
muitos factos pertinentes. Por exemplo, não nos dizem se
algumas pessoas obtiveram o dinheiro através de comércio
honesto ou de roubo ou fraude; do trabalho árduo ou da
exploração de terceiros. Como poderemos avaliar a justiça de
uma sociedade sem saber estas coisas?

Propriedade e mercados

O primeiro homem que, tendo circunscrito uma parcela de terre-


no, pensou para consigo: «Isto é meu», e encontrou pessoas sufi-
cientemente simples para acreditarem nele, foi o verdadeiro fun-
dador da sociedade civil. De quantos crimes, guerras e assassí-
nios, de quantos horrores e desgraças não teria salvo a humani-
dade aquele que houvesse retirado os marcos, ou enchido o rego,
e gritado aos outros: «Não deis ouvidos a este impostor; estareis
perdidos, se vos esquecerdes um só momento de que os frutos da
terra nos pertencem a todos e a própria terra não pertence a nin-
guém».
(Rousseau, Discurso sobre a Origem e Fundamentos
da Desigualdade entre os Homens, 84)

191
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

A propriedade em Locke

Uma forma de afirmar que a sociedade é justa, apesar das


suas desigualdades, seria demonstrar que os indivíduos
dessa sociedade que possuem propriedade têm direitos
morais sobre ela. Pode tal teoria dos direitos de propriedade
ser construída?
Segundo Nozick, uma teoria dos direitos de propriedade
exige três princípios diferentes: «justiça na aquisição inicial»,
«justiça na transferência» e «justiça na rectificação». John
Locke, cujas ideias analisámos nos Capítulos 1 e 2, abordou
sobretudo a primeira questão nos seus escritos sobre pro-
priedade: como pode um indivíduo adquirir o direito à
propriedade apropriada a partir do seu estado natural?
Esta é uma questão intrigante. Todo o objecto agora pos-
suído por alguém, outrora, ou não era de pessoa alguma ou
foi feito de algo que não era de pessoa alguma. A maior
parte do papel é feito de madeira. As árvores, de onde é
extraída a madeira, podem ter sido deliberadamente planta-
das com esse fim, mas os seus rebentos vieram de sementes
que, por sua vez, caíram de árvores que, em tempos, não
eram de pessoa alguma. Assim, em determinada altura, um
objecto — seja ele árvore ou semente — que não pertencia a
pessoa alguma passou a ser propriedade privada de alguém.
Como foi isso? Como pôde alguém arrogar-se o direito de
excluir os outros da utilização desse objecto? Esta questão é
ainda mais premente no caso da terra. Todos podem utilizar
a terra que não tem proprietário. Mas, mal esta se torna
propriedade privada, ninguém a pode utilizar sem autoriza-
ção do dono. Como pode alguém conseguir o direito de
excluir os outros desta forma? Para responder a estas ques-
tões é preciso considerar a justiça da aquisição inicial.
O Segundo Tratado de Locke inclui um capítulo sobre
propriedade e, neste, vários argumentos que visam demons-
trar a possibilidade da aquisição inicial justificada. Locke
toma como dado adquirido que o proprietário legítimo da
propriedade detém vários direitos sobre essa propriedade:

192
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

não só a pode utilizar, como também a pode transferir para


outrem, através de venda ou doação. E isto inclui deixá-la
em herança aos herdeiros. Assim, Locke procura justificar os
direitos de propriedade, em termos gerais, tal como os com-
preendemos na sociedade contemporânea.
Não há ainda um consenso académico em relação à forma
como devemos interpretar os argumentos de Locke. Nem o
próprio Locke pode ter pensado que estes estavam formula-
dos claramente. Mas não há dúvida de que, para Locke, o
trabalho é essencial para a apropriação de propriedade.
Numa leitura do texto, é possível discernir pelo menos qua-
tro linhas de argumentação na defesa da apropriação inicial
da propriedade apresentada por Locke. Saber quantos argu-
mentos pensava Locke estar a formular é outra questão.
A primeira ideia é o argumento da sobrevivência. Locke
pressupõe que, inicialmente, o mundo era detido em comum
por todos os seres humanos. Nesse caso, como pôde alguém
passar a ter uma propriedade privada individual? Primeiro,
Locke baseia-se nas «leis fundamentais da natureza» anali-
sadas no Capítulo 1 do presente livro: a humanidade terá de
ser preservada tanto quanto possível. Se ninguém pudesse
ter coisa alguma, morreríamos todos. Portanto, deve-nos ser
permitido retirar o necessário à nossa sobrevivência. Locke
reforça esta perspectiva com uma defesa teológica. Não
permitir a sobrevivência aos seres humanos, postos na Terra
por Deus, constituiria uma afronta à racionalidade divina.
Ainda assim, a nossa apropriação da natureza deve obedecer
a duas condições — as «cláusulas lockianas» — para ser
justificada: não devemos retirar mais do que podemos usar
(a cláusula de não desperdício); e devemos deixar o «sufi-
ciente e igualmente bom» para os outros. Estas duas cláusu-
las aplicam-se não apenas ao argumento da sobrevivência
relativo à propriedade, mas a todos os argumentos de Locke.
Embora eminentemente razoável, o argumento da sobre-
vivência tem algumas limitações óbvias. Em primeiro lugar,
justifica a apropriação apenas de objectos que precisamos de
consumir para sobreviver — frutos frescos e secos, por

193
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

exemplo — e não da própria terra. Em segundo lugar, não


especifica como os objectos devem ser exactamente conside-
rados propriedade privada. Ambas as lacunas ficam devi-
damente preenchidas com o argumento seguinte de Locke,
contido no célebre capítulo sobre a propriedade do Segundo
Tratado:

Embora a Terra e todas as Criaturas inferiores sejam comuns a


todos os Homens, cada Homem tem uma Propriedade na sua própria
Pessoa. Sobre isto, ninguém tem qualquer direito, senão ele próprio. O
Trabalho do seu Corpo e o Trabalho das suas Mãos, podemos dizê-lo,
são devidamente seus. Assim, seja o que for que ele retire do estado
que a Natureza forneceu e no qual deixou, misturou-lhe o seu Trabalho
e juntou a isso algo que é seu e, por conseguinte, tornou-o sua Proprie-
dade. Tendo sido por ele retirado do estado comum em que a Natureza
o colocou, viu através do trabalho ser-lhe anexado algo, e isso exclui o
direito comum dos outros Homens. Pois este trabalho, sendo Proprie-
dade inquestionável do Trabalhador, nenhum Homem senão ele pode
ter direito àquilo que se lhe juntou, pelo menos se houver sido deixado
o suficiente, e igualmente bom, para os outros. (Segundo Tratado, s. 27,
pp. 287-8)

Neste passo, Locke baseia-se em duas premissas: possuí-


mos o nosso trabalho e ao trabalharmos um objecto «mistu-
ramos» nele o nosso trabalho. Portanto, desde que esse
objecto não seja já justamente reclamado por outrem, apro-
priamo-nos do objecto em que trabalhámos (sob condição de
deixar o suficiente e igualmente bom para os outros). Não
surpreende que este argumento seja comummente conhecido
como argumento da «mistura do trabalho» de Locke. A sua
grande vantagem sobre o anterior é parecer que justifica a
apropriação da terra, assim como dos frutos secos e das
bagas.
O pensamento básico que subjaz a este argumento é
sedutor. Os primeiros a trabalhar uma parcela de terreno
devem ser autorizados a mantê-la em sua posse. Recorda-
nos os pioneiros do Oeste selvagem, marcando a fronteira e
trabalhando a terra para provar o seu título. Uma reacção
contrária comum é afirmar que isto parece muito duro para
quem é incapaz de trabalhar. Mas Robert Nozick encontrou

194
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

uma falha fundamental. O argumento de que misturar o


trabalho com a terra dá direito à terra parece basear-se numa
premissa omissa: se possuirmos uma coisa e a misturarmos
com outra que actualmente não seja de pessoa alguma (ou
seja de todos, em comum), passamos a possuir essa segunda
coisa. Mas esta premissa é indubitavelmente falsa, e Nozick
fornece um contra-exemplo: «Se eu possuir uma lata de
sumo de tomate e derramar o seu conteúdo no mar de forma
que as moléculas (tornadas radioactivas, para eu poder
verificar isto) se misturem uniformemente em todo o oceano,
passarei a possuir o mar ou terei desperdiçado levianamente
o meu sumo de tomate?» (Anarquia, Estado e Utopia, 175).
Como podemos salvar o argumento da mistura do traba-
lho? Talvez devamos pressupor que a ideia central de Locke
não é a mistura, mas o trabalho. O que quererá dizer que
misturar trabalho não é análogo a misturar sumo de tomate
porque há algo especial em relação ao trabalho. Mas o quê?
Neste passo, depara-se-nos o terceiro argumento de Locke: o
argumento do «valor acrescentado». Consideremos a quan-
tidade de comida que pode ser colhida numa parcela de
terreno inculto. De seguida, consideremos a quantidade que
pode ser fornecida por uma parcela cultivada, com a mesma
área. Locke calcula que a parcela cultivada será talvez cem
vezes mais produtiva. Disto, Locke conclui que «o trabalho
[…] atribui a diferença de valor a todas as coisas» (Segundo
Tratado, s. 40, p. 296). Por outras palavras, ao trabalhar a
terra, o indivíduo aumenta drasticamente o seu valor. É por
esta razão que o trabalho dá ao trabalhador o direito de se
apropriar da terra cultivada.
Mas também este argumento revela uma dificuldade
óbvia. Poderíamos ser persuadidos de que o trabalho confere
ao trabalhador o direito de guardar para si o valor acrescen-
tado. Mas a terra não faz parte do valor acrescentado: estava
lá antes e, em circunstâncias normais, estaria lá mesmo que
nunca tivesse sido trabalhada. Portanto, na melhor das hipó-
teses, este argumento serve para defender que os frutos da
produção sejam dados ao trabalhador. Parece não dar qual-

195
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

quer direito de posse sobre a terra trabalhada. Haverá algo


que pudesse ter isso como consequência?
Um quarto argumento poderá ajudar. Locke diz que Deus
deu a terra para uso dos

«Industriosos e Racionais […], não ao Capricho e à Cupidez dos Bri-


gões e dos Quezilentos. Aquele a quem foi deixado algo tão bom para
a sua Prosperidade como o que já foi tomado não deve queixar-se nem
intrometer-se no já melhorado graças ao Trabalho de outro: se o fizer, é
óbvio que deseja colher o benefício dos Sacrifícios do outro, a que não
tem direito, e não o Solo que Deus lhe deu em comum com os outros,
para ser trabalhado. (Segundo Tratado, s. 34, p. 291)

Nesta passagem, Locke pretende que pensemos em


alguém que se apropriou da terra e a melhorou (o Industrio-
so) e outra pessoa (o Brigão) que reivindica a terra trabalha-
da pelo Industrioso. Se houver muita terra ainda disponível,
a única razão para o Brigão querer a terra do Industrioso é a
preguiça: não estar disposto a contribuir com o trabalho que
o Industrioso teve. Mas esta razão não é boa e, portanto, ele
não tem uma razão boa para se queixar da apropriação feita
pelo Industrioso. Creio que por detrás desta argumentação
se encontra um apelo implícito à noção de merecimento. Se o
Industrioso trabalhou arduamente, merece os frutos do seu
trabalho. Pelo menos, ninguém mais os pode reivindicar
legitimamente.
Infelizmente, este argumento partilha os defeitos dos
anteriores. Os frutos do trabalho podem ser merecidos, mas
a terra estaria lá de qualquer forma. Talvez o argumento
justifique uma posse temporária da terra — é do indivíduo
enquanto ele fizer bom uso dela, mas não mais do que esse
tempo. Todavia, os direitos de propriedade raramente são
vistos desta forma condicional; Locke não pensava assim,
certamente. Este argumento não dá direito a vender a terra
nem a deixá-la aos filhos. Além disso, quem é incapaz de
trabalhar sentir-se-ia justificadamente ressentido, se o traba-
lho fosse considerado condição necessária para a aquisição
de propriedade. Por muito forte que nos pareça a ideia de

196
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

que trabalhar a terra deveria dar direito sobre ela, é muito


difícil explicar por que deve isto ser assim — pelo menos, à
luz das teorias de Locke.
Outro problema, relacionado com este, diz respeito à
cláusula «suficiente e igualmente bom». Talvez Locke esteja
certo ao pensar que não há uma boa razão para objectar à
apropriação por parte de outrem se existir muita terra dis-
ponível, igualmente boa. Mas, o que dizer quando a terra se
torna escassa? A lógica da posição de Locke parece sugerir
que, chegados a este ponto, os direitos de propriedade se
dissolvem. Mas é claro que não diz tal coisa. Provavelmente,
a sua perspectiva era que, enquanto as pessoas estiverem
melhor a trabalhar na terra alheia do que estariam no estado
de natureza, não têm razão de queixa justificada acerca dos
direitos de propriedade dos outros. E, como «prova» dos
benefícios colhidos pelo trabalho e pelos direitos de proprie-
dade, Locke afirma que o rei de um vasto e fértil território da
América (onde pouca terra fora transformada pelo trabalho)
«alimenta-se, abriga-se e veste-se pior do que um Trabalha-
dor à jorna em Inglaterra» (Segundo Tratado, s. 41, p. 297).
Contudo, a menos que interpretemos literalmente a cláu-
sula «suficiente e igualmente bom» — que sobra realmente
terra suficiente e igualmente boa para os outros —, a defesa
que Locke faz dos direitos de propriedade é muito menos
convincente. Pois, se a terra é escassa, será tomada por aque-
les que a reivindicam através do trabalho. Os indivíduos
pertencentes a uma geração posterior, incapazes de encon-
trar terra de que se apropriem, queixar-se-ão de terem sido
tratados injustamente, em comparação com quem herdou
terras: não por serem brigões ou quezilentos, mas porque
sentem que lhes foi negado algo dado a outros. Por que tem
outra pessoa terra e eu nenhuma, se a única diferença entre
nós é os antepassados dela terem sido industriosos e os meus
não? Que se pode dizer em resposta?
É claramente necessário um tipo qualquer de resposta, ou
novo argumento, para defender os direitos de propriedade.
Afinal, praticamente toda a superfície não líquida da Terra é

197
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

agora reivindicada como propriedade privada de indiví-


duos, empresas ou países. E, assim, parece que ou essas
posses são ilegítimas, ou tem de haver formas legítimas de
adquirir propriedade. Na verdade, contudo, não foram feitos
praticamente progressos relativamente ao desenvolvimento
do argumento de Locke.
É fácil perceber porquê. Já observámos que, antes de uma
propriedade ser tomada por um indivíduo ou grupo, todos
têm liberdade de a usar. Uma vez transformada em proprie-
dade do indivíduo, esta liberdade dos não proprietários é
anulada. Os outros passam a poder usá-la apenas com per-
missão do dono. Que poderei fazer a uma parcela de terra,
ou outro objecto, que possa ter consequências tão drásticas?
Por que razão uma coisa que eu faço a um objecto anula a
anterior liberdade de utilização de outrem? É muito difícil
encontrar uma resposta; por isso, é muito difícil descobrir
um princípio satisfatório de justiça na aquisição. Talvez seja
mesmo impossível.
Significará isto que a propriedade é um roubo (na célebre
formulação de Proudhon)? Esta seria uma conclusão dema-
siado simplista. Uma resposta mais modesta é supor que
pode haver algo errado na ideia essencial que delineámos no
início. Isto é, talvez seja errado centrarmo-nos na questão da
justiça na aquisição como elemento separável numa teoria de
justiça distributiva. Possivelmente, poderíamos defender um
sistema de justiça distributiva que incluísse a posse de pro-
priedade privada como um elemento do sistema. Dessa
forma, poderíamos ser capazes de justificar a propriedade
privada enquanto parte intrínseca de uma teoria de justiça
sem termos de nos preocupar demasiado com a forma como
a propriedade foi originalmente tomada à natureza. E isto é
precisamente o que muitos defensores do mercado livre
tentam fazer.

198
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

O mercado livre

Uma alternativa a Locke seria ensaiar uma justificação


utilitarista dos direitos de propriedade. Podemos ver como
um argumento deste género se desenvolveria: permitir que
as pessoas assumam a posse de propriedade, a comerciali-
zem e a leguem aos seus descendentes incentivá-las-á a fazer
a utilização mais produtiva dos seus recursos. Concomitan-
temente, isto dará um maior contributo à felicidade humana
do que qualquer solução alternativa. Este tipo de argumento
está já implícito na perspectiva de Mill, apresentada acima.
Este argumento utilitarista diz menos respeito ao proces-
so através do qual as pessoas chegam à obtenção da proprie-
dade do que aos benefícios da sua comercialização e herança.
No argumento, considera-se que as pessoas devem deter
propriedade, mas é menos importante a forma como chegam
à sua posse. Por outras palavras, para o utilitarista, a questão
da justiça na transferência tem prioridade sobre a questão da
justiça na aquisição inicial. E muitos utilitaristas sublinham a
importância do mercado livre capitalista enquanto mecanis-
mo de transferência.
O «modelo puro» de um mercado livre capitalista inclui
várias características essenciais. Em primeiro lugar, a posse
de terra, matérias-primas e outros bens (incluindo o traba-
lho) cabe a indivíduos ou empresas, num sistema de direitos
fixos de propriedade. Em segundo lugar, os bens são produ-
zidos tendo como finalidade o lucro, e não a satisfação das
necessidades de consumo do produtor ou de outras pessoas
necessitadas. Em terceiro lugar, todos os bens são distribuí-
dos por meio de trocas voluntárias, num mercado regulado
pelas leis da oferta e da procura. Por último, existe livre
concorrência: qualquer pessoa pode produzir e pôr à venda
qualquer bem.
Este é o modelo puro. Nenhuma economia real reúne
perfeitamente todas estas características; geralmente, são
todas modificadas, de uma ou outra forma. Por exemplo, em
muitos países, o estado possui e gere certas empresas. Em

199
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

segundo lugar, a maioria dos países detém um importante


sector «voluntário», que oferece bens e serviços numa base
parcialmente beneficente. Em terceiro lugar, alguns bens não
podem ser comercializados abertamente no mercado (plutó-
nio, heroína, etc.). E, em quarto lugar, existem alguns mono-
pólios implementados pelo estado (os Correios, por exem-
plo) que impedem a entrada de novas empresas numa acti-
vidade particular. Todavia, também é claro que actualmente
a maioria dos países se aproxima mais ou menos deste
modelo. Estarão a fazer bem?
Qual é a alternativa ao modelo capitalista do mercado
livre? Como acabámos de ver, este pode ser modificado
através da limitação do tipo de trocas que as pessoas podem
fazer. Mas a alternativa mais radical é a economia planifica-
da. Esta contrasta com o mercado livre em todas as caracte-
rísticas essenciais. Na economia planificada, o estado, em
nome das pessoas em geral, controla toda a propriedade. A
produção não tem como objectivo o lucro, mas a satisfação
das necessidades do cidadãos. A distribuição faz-se através
de uma afectação centralizada de recursos, e não do comér-
cio. E o estado tem controlo absoluto sobre quem pode pro-
duzir que quantidade de que bem. Deste modo, a iniciativa é
concretizada de acordo com um plano central que afecta
recursos a várias indústrias.
O mercado livre parece menos autocrático do que a eco-
nomia planificada mas, pelo menos superficialmente, menos
racional. O mercado livre deixa todas as decisões aos indiví-
duos. Como, então, se coordenam eles? Como podemos ter a
certeza de que haverá quantidade suficiente de cada bem
fornecido? Como poderemos evitar uma produção excessiva
em determinados sectores? Aparentemente, o planeamento a
partir do centro garantirá a produção de cada bem em quan-
tidade suficiente para responder às exigências de todos. O
colaborador de Marx, Friedrich Engels (1820-95), escreveu:

Uma vez que sabemos de quanto, em média, uma pessoa precisa, é


fácil calcular quanto é necessário para um dado número de indivíduos;
e uma vez que a produção não está já nas mãos de produtores priva-

200
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

dos mas nas da comunidade e respectivos órgãos administrativos, é


facílimo regular a produção segundo as necessidades. (Discursos de El-
berfeld, 10)

Mas, segundo muitos comentadores, foram argumentos


deste tipo que conduziram a um dos erros do século XX que
mais caro se pagaram. Apesar do encanto racional do pla-
neamento, todas as tentativas no sentido da implementação
de uma economia planificada fracassaram — e teriam fracas-
sado muito mais depressa, não tivessem sido elas comple-
mentadas por mercados negros ilegais e de grandes dimen-
sões. O mercado conseguiu atingir um nível muito mais
elevado de eficiência e bem-estar dos seus cidadãos — em
comparação com a economia planificada —, apesar da sua
natureza «anárquica» e descoordenada. Mas a que se deve
isto?
A melhor resposta foi dada pelo economista e sociólogo
austríaco, F. A. von Hayek (1899-1992). Para compreender o
seu raciocínio, temos de analisar brevemente o modo como
se pode esperar que funcione o mercado livre. Suponhamos
que um determinado bem — digamos, alho — tem um certo
preço: 25 cêntimos a cabeça. Então, um conceituado cientista
publica um relatório indicando que o consumo de uma
cabeça de alho por dia evita o cancro e as doenças cardíacas.
Em consequência, a procura de alho sobe em flecha. Os
vendedores de alho vêem o produto esgotar-se rapidamente
e os preços disparam. Fazem-se enormes lucros na produção
e comercialização do alho.
A perspectiva de tais lucros incentivará a entrada de
novos produtores no mercado. A oferta começa a aumentar
e, à medida que isso acontece, o preço baixa novamente, até
se estabelecer um novo equilíbrio. A procura acabará por se
igualar à oferta, a um preço com o qual os produtores de
alho terão os mesmos níveis de lucro que aqueles praticados
na restante economia.
Este exemplo bastante banal da vida económica revela os
poderes notáveis dos mercados. Em primeiro lugar, o siste-
ma de preços é uma forma de captar e transmitir informação.

201
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

O facto de o preço de um bem subir indica uma oferta escas-


sa desse bem; se o preço desce, há excesso de oferta. Em
segundo lugar, o móbil do lucro dá às pessoas motivo para
reagir a essa informação. Se o preço aumenta num sector
devido à procura crescente, isto significa geralmente que se
fará um lucro maior do que a média, e, portanto, depressa
surgem novos produtores. Se os preços baixam devido a
uma procura decrescente, os lucros geralmente diminuem e,
portanto, algumas empresas abandonarão o sector. Em
ambos os casos, acaba por atingir-se um equilíbrio no qual a
taxa de lucro dessa actividade é aproximadamente equiva-
lente à taxa média de lucro na economia como um todo.
Estas são as duas características centrais do mercado:
transmite informação e dá às pessoas incentivo para reagir a
essa informação alterando os padrões de produção. Também
não devemos esquecer a importância da concorrência, que
obriga a baixar os preços e a aumentar a qualidade. Em
conjunto, estes factores levam a que, em termos gerais, no
mercado, as pessoas (com dinheiro) obtenham de outras
pessoas o que desejam. E a posição do consumidor está
quase sempre a melhorar. Mas não porque os outros sejam
altruístas. Como Adam Smith (1723-90) observou:

Não é da benevolência do magarefe ou do padeiro que esperamos


o jantar, mas da preocupação daqueles com os seus interesses. Dirigi-
mo-nos, não à sua humanidade, mas ao seu amor-próprio, e nunca
lhes falamos das nossas necessidades, mas das suas vantagens. (A
Riqueza das Nações, 119)

Muitos pensadores aceitam que o mercado consegue


distribuir bens aos indivíduos de uma forma que nenhuma
economia planificada poderia igualar. Se desejarmos deter-
minado bem e tivermos dinheiro, podemos comprá-lo. Posso
exprimir as minhas preferências através do meu comporta-
mento no consumo e os outros tentam fazer o maior lucro
possível respondendo-lhes. Na economia planificada há dois
problemas. Como poderá o planificador saber aquilo que eu
quero? Poderá ser do conhecimento geral que as pessoas

202
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

gostam de gelados e precisam de meias, mas como pode o


planificador saber que eu prefiro gelado de baunilha a gela-
do de chocolate e meias lisas, em vez de estampadas? E por
que deveria o planificador dar-se ao trabalho de se assegurar
de que eu tenho o que quero? As economias planificadas
reais sofreram o flagelo da escassez crónica de alguns bens,
como collants de Inverno; produção excessiva de outros,
como vodca de reduzido teor alcoólico; e uma falta depri-
mente de qualidade e diversidade dos bens disponíveis. Para
poder gerir uma economia tão eficientemente como o mer-
cado livre, o planificador precisa de um nível de omnisciên-
cia, omnipotência e benevolência raramente atribuído ao
comum dos mortais.
Este é essencialmente um argumento utilitarista a favor
do mercado livre: contribuirá para a felicidade humana a um
nível que não poderia ser alcançado pela economia planifi-
cada. Também foram apresentados argumentos baseados na
liberdade. A economia planificada implica restrições ao
comportamento individual. No seu importante estudo intitu-
lado The Economics of Feasible Socialism, vindo a lume em 1983
e agora traduzido em vinte ou mais línguas, Alec Nove cita
uma passagem de um romance de Vasili Grossman:

Desde criança que desejava abrir uma loja, para que qualquer pes-
soa pudesse entrar e comprar. Nela haveria também um snack-bar, para
que os clientes pudessem comer carne assada ou tomar uma bebida, se
desejassem. Venderia barato. E teriam verdadeira comida do campo.
Batatas assadas! Torresmos com alho! Sauerkraut! Dar-lhes-ia tutano
como entrada, um copinho de vodca, um osso com tutano e pão escu-
ro, claro, e sal. Cadeiras de couro, para que os piolhos não se propa-
gassem. O cliente poderia sentar-se, descansar e ser servido. Se disses-
se isto em voz alta, seria mandado direitinho para a Sibéria. E, contu-
do, digam-me, que mal faria isto às pessoas? (The Economics of Feasible
Socialism, 110)

Robert Nozick diz essencialmente o mesmo, de forma


mais sucinta: «A sociedade socialista teria de proibir a práti-
ca de actos capitalistas entre adultos responsáveis» (Anar-
quia, Estado e Utopia, 163).

203
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Será melhor adiar a análise do argumento da liberdade a


favor do mercado livre: destaca-se melhor contra o fundo de
uma crítica à perspectiva de Rawls, que analisaremos em
breve. Em primeiro lugar, devemos fazer o ponto da situa-
ção. Até ao momento, a discussão principal mostrou algu-
mas vantagens utilitaristas substanciais do mercado livre em
relação à economia completamente planificada. Mas é claro
que desta comparação não se pode inferir que o mercado
livre seja o melhor sistema imaginável. É fácil descobrir
melhorias possíveis, numa análise utilitarista. Isto pode ser
claramente visto em casos de «falhas de mercado» para bens
com «externalidades».
As externalidades são de dois tipos: positivas e negativas.
Uma externalidade negativa é algo que se obtém gratuita-
mente, mas que se preferia não ter: ar poluído ou ruído, por
exemplo. Uma externalidade positiva é também algo que
obtemos gratuitamente mas, neste caso, nos agrada ter: por
exemplo, uma vista agradável para o jardim relvado do
vizinho. Uma categoria importante de bens com externali-
dade positivas é a dos «bens públicos». Trata-se de bens que,
se fornecidos, beneficiam todos, tenha ou não o receptor
contribuído para a sua produção. Por exemplo, a iluminação
pública. Os benefícios da iluminação pública não podem ser
restritos àqueles que a ajudaram a pagar; assim, trata-se de
um bem público neste sentido.
O mercado livre tenderá a fornecer demasiados bens com
externalidades negativas e poucos bens com externalidades
positivas. É fácil ver porquê. Criar uma externalidade nega-
tiva é muitas vezes uma forma de passar os custos a outro,
literalmente. Se é mais barato usar um processo de produção
ruidoso, as outras pessoas estão inadvertidamente a «subsi-
diar» a utilização do processo barato, suportando o custo de
serem perturbadas pelo ruído. Os bens públicos, por outro
lado, estão sujeitos ao problema do oportunista. Para quê
contribuir para o fornecimento da iluminação pública, se
colherei o benefício de qualquer forma? Mas se todas as
pessoas pensarem desta forma — e o mercado encoraja este

204
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

tipo de raciocínio — não haverá iluminação pública. Pressu-


põe-se normalmente que a solução para estes problemas
passa por fazer o estado fornecer estes bens públicos, tribu-
tando os cidadãos para que os paguem. De modo semelhan-
te, o estado pode tornar ilegal a poluição, devolvendo os
custos ao poluidor. Mais recentemente, consideraram-se
outras abordagens e algumas foram mesmo implementadas:
dar às pessoas que sofrem externalidades negativas o direito
de serem compensadas pelos prejuízos sofridos e aos indiví-
duos que produzem externalidades positivas o direito de
cobrar àquelas pessoas que beneficiam delas.
Assim, vemos que há argumentos utilitaristas a favor da
modificação do mercado, seja isso conseguido através da
intervenção estatal ou da criação de novos direitos jurídicos.
Mas a modificação bastará? Existirão problemas mais pro-
fundos com o mercado? As objecções mais poderosas che-
gam-nos da tradição marxista e socialista: o mercado causa
desperdício; aliena o trabalhador; é explorador; e conduz a
desigualdades injustas. Consideremos estas objecções à vez.

Argumentos contra o mercado

Na obra Discursos de Elberfeld, citada acima, Engels quei-


xa-se de o mercado livre ser extremamente esbanjador. Este é
essencialmente um argumento utilitarista contra o mercado
livre e Engels formula duas acusações principais. A primeira
é que o mercado livre leva inevitavelmente a crise atrás de
crise, nas quais os indivíduos perdem os empregos, as
empresas abrem falência e há bens desperdiçados ou vendi-
dos com prejuízo. Engels foi um dos primeiros pensadores a
notar que o mercado capitalista é pontuado por um «ciclo
económico» de expansão e recessão. Por muito que tentas-
sem, os economistas e os políticos nunca conseguiram encon-
trar um método através do qual o capitalismo pudesse evitar
este ciclo destrutivo. O segundo argumento de Engels afirma
que a sociedade capitalista abriga um enorme número de
pessoas que não desempenham qualquer papel produtivo.

205
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Uma economia comunista planificada conseguiria incorporar


estas pessoas na produção, melhorando a eficiência e redu-
zindo o horário de trabalho. Estas pessoas incluem não só os
desempregados mas também elementos da polícia e das
forças armadas, o clero, as empregadas domésticas, e — os
mais desprezíveis — «intermediários supérfluos, especula-
dores e fraudulentos, que se introduziram à força entre o
produtor e o consumidor» (Discursos de Elberfeld, 11). É inte-
ressante que os defensores do mercado vejam os intermediá-
rios como heróis da iniciativa, essenciais ao eficiente funcio-
namento de uma economia ao movimentarem bens dos
locais onde há excesso de oferta para áreas onde há excesso
de procura. Para Marx e Engels, não passam de sanguessu-
gas.
Suponhamos que Engels tem razão. Quão convincente é a
sua argumentação contra o mercado? Bem, o que seria
melhor? Já não podemos partilhar a sua confiança na racio-
nalidade auto-evidente da economia planificada. Um merca-
do modificado, conforme delineado acima, apesar das suas
falhas, poderia ser mais eficiente do que tudo o já foi propos-
to.
Mas o mercado é esbanjador noutro sentido: desperdiça a
potencialidade do trabalhador. Esta é a segunda crítica feita
ao mercado: conduzir à alienação. Relativamente a este
aspecto, o pensamento fulcral é que no mercado livre capita-
lista a natureza do trabalho é degradante e desadequada
para os seres humanos. O móbil do lucro implica que os
capitalistas adoptem os mais eficientes métodos disponíveis
de produção. Isto significa geralmente a adopção de uma
forma muitíssimo desenvolvida de divisão do trabalho, na
qual cada trabalhador desempenha uma tarefa muito espe-
cializada, monótona e repetitiva. Na sua essência, então, a
natureza do trabalho no capitalismo é alienante, no sentido
de o trabalhador se subordinar à máquina «e [de] um
homem [passar a ser] uma actividade abstracta e um estô-
mago» (Karl Marx, Escritos de Juventude, 285). A potenciali-
dade do trabalhador enquanto ser humano inteligente e

206
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

criativo é frustrada. Diz-se que no capitalismo, para muitos


trabalhadores, a actividade diária mais exigente é conduzir o
automóvel de e para o emprego.
Contudo, para os críticos do mercado a questão central é
saber se a alienação é uma consequência especificamente da
forma capitalista de produção, ou se, ao invés, se trata de
uma consequência da tecnologia moderna em termos mais
gerais. Poderemos realmente conceber uma forma de produ-
ção que gere o suficiente para satisfazer as nossas necessida-
des mas não dependa de uma sistema alienante de produ-
ção? A existir uma tal forma de produção, ainda não foi
descoberta.
Uma terceira crítica consiste em afirmar que os capitalis-
tas exploram os trabalhadores, no regime de mercado livre.
Para Marx, a exploração consiste essencialmente na extrac-
ção da mais-valia do trabalho. O trabalhador é remunerado
por um dia de trabalho. Nesse trabalho, o trabalhador gera
lucros para o capitalista que não são de forma alguma pro-
porcionais ao trabalho que o capitalista realiza. Na verdade,
os accionistas arrecadam uma fatia dos lucros sem realizar
qualquer trabalho. No fundo, então, defende-se que aqueles
que auferem dividendos no mercado sem contribuir com um
nível proporcional de trabalho são exploradores. Os que
recebem menos do que criam são explorados.
A defesa mais natural do mercado livre é afirmar que os
capitalistas, na verdade, recebem um rendimento justo pela
utilização da sua propriedade ou pelo risco do investimento.
Afinal de contas, o trabalho por si só nada produz. Alguém
tem de fornecer as matérias-primas, a maquinaria, as instala-
ções, etc. O debate em torno da exploração, então, reduz-se à
questão de saber se os capitalistas têm direito a receber uma
retribuição pela utilização da sua propriedade. Mas terão
eles direito moral à posse dessa propriedade? Portanto,
parece que não conseguimos abordar a questão de o merca-
do livre conduzir ou não à exploração sem primeiro esclare-
cer a questão mais básica da justificação do direito à pro-
priedade privada.

207
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Por último, a crítica mais comum apontada ao mercado


pelos marxistas, socialistas e muitos liberais é este conduzir
necessariamente à existência de grandes desigualdades e
essas desigualdades serem injustas. Sem restrições, o merca-
do livre pode levar à pobreza extrema. Considere-se a des-
crição de Engels da área de St. Giles, no centro de Londres,
em 1844:

Tudo isto é nada, em comparação com as habitações existentes nas


vielas e becos estreitos, entre as ruas, a que se acede através de passa-
gens cobertas entre as casas e nas quais a imundície e a degradação
ultrapassam qualquer descrição. Não existem praticamente vidraças
intactas, as paredes caem aos pedaços, as ombreiras e as molduras das
janelas estão soltas e partidas, há portas feitas de velhas tábuas prega-
das, ou mesmo inexistentes, neste bairro de ladrões, onde as portas
não são necessárias pois nada há que roubar. Vêem-se monturos de
lixo e cinzas para onde quer que se olhe, e os líquidos nauseabundos
despejados à frente das portas aí jazem em poças pestilentas. Aqui
vivem os mais pobres entre os pobres, os trabalhadores mais mal
pagos juntamente com os ladrões e as vítimas da prostituição, todos
indiscriminadamente amontoados […] e aqueles que ainda não se per-
deram no sorvedouro de ruína moral que os rodeia, afundam-se dia-
riamente mais e mais, perdem diária e gradualmente o poder de resis-
tir à influência desmoralizadora da indigência e do ambiente imundo e
malévolo que os rodeia. (A Situação da Classe Trabalhadora em Inglaterra,
60-1)

Todos os países avançados reconheceram que a sociedade


tem o dever de proteger as pessoas de um tal destino e, por
isso, tomaram-se providências no sentido de assegurar um
certo bem-estar social — algumas mais eficazes do que
outras. Subsídios de desemprego e incapacidade permanen-
te, suplementos ao rendimento e outros auxílios permitem
agora que a grande maioria das pessoas das sociedades
ocidentais obtenha um nível de rendimento que lhes garanta
um nível mínimo de vida.
Será aceitável o nível de desigualdade gerado pelo mer-
cado, mesmo modificado pelo estado-providência? Uma tal
sociedade é ilustrada pelo cortejo dos rendimentos, já apre-
sentado. Será justa? É possível defender que as considera-

208
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

ções aqui apresentadas demonstram que as sociedades assim


caracterizadas podem ter uma justificação utilitarista. Esta
afirmação pode parecer surpreendente. Supõe-se frequente-
mente que o utilitarismo recomendaria uma distribuição
aproximadamente igual dos recursos, e não as desigualdades
evidenciadas no cortejo dos rendimentos. O pressuposto
central do argumento utilitarista a favor da igualdade é que
as pessoas têm «rendimentos marginais decrescentes» relati-
vamente aos bens. A utilidade ou prazer obtido ao comer
uma primeira bolacha de chocolate é muito maior do que o
obtido com a segunda. Portanto, a existirem duas pessoas e
duas bolachas de chocolate, o utilitarismo recomendaria
provavelmente que cada pessoa comesse uma bolacha. Simi-
larmente, uma dada quantia de dinheiro fornece muito mais
utilidade ao pobre do que ao rico. Para maximizar a utilida-
de temos de partilhar as coisas, e, portanto, a redistribuição
dos ricos para os pobres maximiza a utilidade.
A fraqueza do argumento acabado de apresentar reside
no facto de parecer pressupor que a forma como os bens são
distribuídos não afecta a quantidade de bens disponíveis para
distribuição. Contudo, supõe-se geralmente que uma distri-
buição igualitária eliminará a iniciativa e o espírito
empreendedor: para quê trabalhar arduamente, ou tentar
desenvolver novos produtos, se isso terá um impacto negli-
genciável no rendimento pessoal? Por outro lado, permitir a
existência de pelo menos algumas desigualdades criará
incentivos para que as pessoas inovem e trabalhem de forma
mais produtiva. Assim, parece que uma sociedade desigual
poderá produzir mais do que uma sociedade igual e, portan-
to, é possível que tenha um melhor desempenho em termos
utilitaristas, mesmo que reconheçamos que a maior parte dos
bens gera ganhos marginais decrescentes. Assim, os defenso-
res utilitaristas do mercado livre afirmam que o mercado
contribui muito mais para a felicidade humana do que a
economia planificada ou a igualdade. Mas o mercado pode
ser aperfeiçoado permitindo aos estados que forneçam bens
públicos e apresentem legislação que reduza a produção de

209
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

malefícios públicos (bens com externalidades negativas). O


estado deve também implementar uma forma qualquer de
cláusula de bem-estar social para eliminar os piores aspectos
da pobreza. Um tal sistema poderia ser o melhor que se
consegue, em termos utilitaristas. Bastará isto para mostrar
que tal economia é justa? Muitas pessoas não estão conven-
cidas. A teoria da justiça de Rawls constitui a tentativa recen-
te mais poderosa para fazer melhor.

A teoria da justiça de Rawls

Certos princípios de justiça justificam-se porque seriam aceites


numa situação inicial de igualdade.
(Rawls, Uma Teoria da Justiça, 21)

Um contrato hipotético

O que é a sociedade justa? Como poderemos saber? Para


começar, pensemos num exemplo bastante simples no qual
parece colocar-se uma questão de justiça. Suponhamos que
duas pessoas — o leitor e eu — estão a jogar póquer. Eu dou
cartas e o leitor recebe-as e olha para elas. Antes de ver o
meu jogo, reparo numa carta — o ás de espadas — caída no
chão. Ao ver isto, proponho que anulemos a jogada e dispo-
nho-me a dar novamente as cartas. Mas o leitor insiste em
jogar. Discordamos, portanto. Que devemos fazer?
Em última instância, é claro, um de nós poderia vergar-se
perante uma pressão superior, ou mesmo perante a força
física. Mas antes de chegarmos a vias de facto, devemos
perceber que há várias estratégias ao nosso dispor para
tentarmos, se assim o quisermos, resolver a questão deter-
minando qual deveria ser o resultado justo. Uma delas, por
exemplo, poderia ser termos feito previamente um acordo
que cobrisse aquele caso. Antes de nos sentarmos, podería-
mos ter redigido um extenso documento no qual se definiria
o que fazer nesta eventualidade e em muitas outras seme-
lhantes a ela. Presumivelmente, a consulta de um tal acordo

210
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

resolveria decisivamente a disputa. De forma mais realista,


poderíamos ter feito um acordo verbal no sentido de jogar-
mos segundo um conjunto bem conhecido de regras do jogo.
Uma vez mais, a análise das regras decidiria a questão.
Mas talvez — o mais provável — não exista um verdadei-
ro acordo a que possamos recorrer. Que outra coisa pode-
ríamos fazer? Um segundo pensamento é solicitar o conselho
de um «espectador imparcial». Poderá haver um assistente
cuja autoridade ambos respeitemos ou, se estivermos a jogar
num clube, um árbitro. Ou, se formos crianças — digamos,
irmão e irmã —, talvez possamos pedir à nossa mãe que
decida. Tal como com o método anterior, através deste deve-
remos chegar a uma conclusão definitiva.
Mas, e se nas imediações não estiver pessoa alguma com
estas características? Uma terceira estratégia consistiria em
evocar alguém mentalmente — um espectador hipotético. «O
que diria o teu pai, se aqui estivesse?» Evidentemente, isto
não garante uma resolução: poderíamos discordar novamen-
te quanto ao que ele diria. Mas não é invulgar alguém com-
preender que está errado ao reflectir em como uma pessoa
imparcial avaliaria a situação. Assim, nalguns casos, esta
táctica pode ter como resultado uma resposta útil.
Por fim, podíamos fazer apelo a um acordo hipotético.
Mentalmente, podíamos analisar o acordo que teríamos feito
se um de nós tivesse colocado a questão antes de o jogo
começar. Talvez eu consiga convencer o leitor de que, se
tivéssemos discutido o assunto, teríamos concordado em
anular a jogada nestas circunstâncias. O leitor só discorda
porque está influenciado pelo jogo que tem na mão. Talvez
seja o melhor jogo que lhe calhou nessa noite. Isso não o
deixa ver a justiça da situação. Imaginar aquilo com que teria
concordado antes de ter o jogo na mão é uma forma de
tentar filtrar a parcialidade originada pelos seus próprios
interesses. E é esta a ideia que Rawls adopta na tentativa de
defesa dos seus princípios de justiça.
É claro que, se quisermos usar o argumento do acordo
hipotético para resolver os problemas da justiça, temos de

211
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

supor que o contrato hipotético ocorrerá em circunstâncias


de algum modo especiais. Senão, vejamos novamente o jogo
de cartas: não podemos usar o método se supusermos que as
partes hipoteticamente contratantes (o leitor e eu) estão
situadas exactamente como na vida real. Na vida real, temos
uma disputa — eu quero que se dê novamente cartas; o leitor
não — e a esperança é encontrarmos um método para resol-
ver esta disputa. Se quisermos alcançar um acordo hipotéti-
co, teremos de nos abstrair da vida real. No jogo de cartas,
isto é bastante fácil. Imaginamos que acordo teríamos feito
antes de as cartas serem dadas. Assim, pressupomos alguma
ignorância. Nenhum de nós sabe o jogo que lhe tocará. Se
conseguirmos imaginar isto, ficaremos numa posição em que
não poderemos ser influenciados pelos nossos interesses
particulares; ou seja, pelo facto de termos ou não um bom
jogo em mãos. Se não fizermos esta abstracção, a probabili-
dade de conseguirmos definir um acordo hipotético torna-se
diminuta.
Rawls, então, usa o argumento do contrato hipotético
para justificar os seus princípios de justiça. Consequente-
mente, podemos dividir o projecto de Rawls em três elemen-
tos. O primeiro é a definição das circunstâncias nas quais se
realizará o acordo hipotético; o segundo é o argumento de
que os seus princípios de justiça seriam escolhidos nessas
circunstâncias; e o terceiro é a afirmação de que isto mostra
que aqueles são princípios de justiça correctos, pelo menos
para regimes democráticos modernos. Consideremos o
primeiro destes elementos, as circunstâncias do contrato, que
Rawls designa como «posição original». Que ignorância ou
que conhecimento precisamos de atribuir aos contratantes
para se tornar possível um acordo sobre justiça social?
Se quiséssemos tentar imaginar um contrato hipotético
celebrado entre todas as pessoas de uma sociedade moderna,
não conseguiríamos. Não há termos com os quais literalmen-
te todas as pessoas concordassem (ou, a haver alguns, estes
dificilmente constituiriam uma concepção integral da justi-
ça). Podemos antecipar que algumas pessoas ricas, por

212
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

exemplo, se oporão fortemente à tributação, ao passo que


algumas pessoas pobres quererão que os ricos sejam mais
tributados do que actualmente, por forma a aumentar o
financiamento das prestações sociais. Deste modo, surgirá
uma disputa — o objectivo de uma teoria da justiça é tentar
resolver disputas desta índole.
Rawls pressupõe que as perspectivas que as pessoas têm
da justiça são muitas vezes parciais, em parte devido aos
seus próprios interesses específicos. Uma vez que elas já
sabem as cartas sociais que lhes couberam em sorte — inteli-
gência, força, etc. — não conseguem frequentemente assumir
uma posição devidamente imparcial, conforme se exige a
bem da justiça. O principal pensamento de Rawls é que,
embora a justiça requeira imparcialidade, a imparcialidade
pode ser modelada através do pressuposto de ignorância.
Isto abre caminho a um argumento do contrato hipotético.
Para tornar isto claro, consideremos o seguinte exemplo (por
acaso, não é apresentado por Rawls).
Suponhamos que, num futuro não muito distante, deixa
de haver oferta de árbitros de futebol. (Imaginemos que,
desiludidos com os insultos que lhes são dirigidos pelos
jogadores, passam a dedicar-se todos ao tiro com arco.) Para
muitos jogos, torna-se impossível descobrir um árbitro neu-
tro. Suponhamos que foi isto o que se passou no jogo entre o
United e o City e suponhamos também que o único árbitro
qualificado a assistir ao desafio é o presidente do United.
Compreensivelmente, o City não aceita a proposta de que
seja ele a arbitrar o jogo. Contudo, a Liga de Futebol sabe
que este problema surge de tempos a tempos e, por isso,
inventou um fármaco. Quando tomamos esta substância, a
nossa conduta é perfeitamente normal, com excepção de um
aspecto: temos uma perda muitíssimo selectiva de memória.
Deixamos de ser capazes de dizer qual o clube de futebol de
que somos presidentes (e também não conseguimos ouvir
qualquer pessoa que tente recordar-nos). Tendo tomado o
fármaco em questão, como iria o presidente do United arbi-
trar o jogo?

213
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

A resposta é: poderia ser imparcial. Sabe que é presidente


de um dos clubes, mas não qual. Assim, se escolher favorecer
aleatoriamente uma equipa, pode vir a descobrir que preju-
dicou o seu próprio clube. Se presumirmos que ele não quer
correr o risco de malograr injustamente as perspectivas do
seu clube, só lhe restará agir tão justamente quanto lhe seja
possível e deixar o jogo desenrolar-se de acordo com as
regras. A ignorância gera imparcialidade.
Com isto em mente, podemos analisar a concepção de
Rawls da posição original. As pessoas na posição original —
os contratantes hipotéticos — têm à sua frente um «véu de
ignorância» que não lhes permite aperceberem-se das suas
circunstâncias particulares. Devido a esta ignorância, não
sabem como ser parciais a seu favor e, assim, vêem-se obri-
gadas a agir imparcialmente.
Segundo Rawls, as pessoas que se encontram na posição
original não sabem qual é o seu lugar na sociedade nem a
importância da classe a que pertencem. Ignoram o seu esta-
tuto social, o seu sexo, a sua raça. E — muito importante —
ignoram igualmente a sua posse de «atributos naturais» —
as suas capacidades e forças. Em relação a todos estes aspec-
tos, não sabem as cartas que lhes foram dadas.
Isto basta para que cheguem a um acordo? Bastaria, se a
única coisa que divide as pessoas em questões de justiça
fosse o interesse pessoal. Mas Rawls reconhece que isto é
uma simplificação excessiva, tosca e injuriosa. As pessoas
discordam também porque valorizam coisas diferentes. Têm
diferentes «concepções do bem», ou seja, diferentes ideias
daquilo que faz a vida valer a pena. As pessoas têm diferen-
tes perspectivas morais, religiosas e filosóficas e diferentes
objectivos e ambições. Têm também diferentes visões sobre
como deveria ser a boa sociedade. Rawls exclui igualmente
toda esta informação. As pessoas que se encontram na posi-
ção original não conhecem a sua própria ideia do bem, nem
— segundo Rawls — sabem quais são as suas «propensões
psicológicas especiais».

214
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Para ilustrar o poder deste método, as suposições feitas


até ao momento parecem suficientes para explicar por que
razão as pessoas que se encontram na posição original con-
cordariam com o que Rawls designa como Princípio de
Liberdade — que cada pessoa terá um conjunto igual e vasto
de liberdades básicas. Escolher um princípio diferente para
regulamentar a liberdade discriminaria, com efeito, um certo
grupo, ou então aceitar-se-ia uma menor liberdade para
todos. Mas quem estaria disposto a fazer isto, se não soubes-
se a que grupo ou grupos pertencia? Quem escolheria dis-
criminar uma raça específica, se não conhecesse a sua pró-
pria raça? E por que escolheria alguém limitar a liberdade de
todos? O Princípio de Liberdade parece constituir uma esco-
lha obviamente racional.
Por outro lado, pode objectar-se que os indivíduos pode-
riam escolher uma liberdade menor ou desigual se isso
melhorasse a situação de todas as pessoas. Rawls rejeita isto
— analisaremos em breve as suas razões para tal. Mas uma
objecção mais subtil consiste em afirmar que as pessoas, tal
como as descrevemos até agora, seriam simplesmente inca-
pazes de fazer quaisquer escolhas ou decisões. Não sabem
como são, nem de que género de coisas gostam. Como,
então, poderão tomar seja que decisão for sobre a forma
como a sociedade deveria ser? Sem uma ideia do bem, como
podem sequer saber que valorizam a liberdade?
A resposta de Rawls é pressupor um determinado tipo de
motivação. O filósofo estipula que se assuma que as partes
que se encontram na posição original possuem uma «teoria
fraca do bem». O primeiro, e mais importante, elemento
dessa teoria fraca do bem é que os agentes que estão na
posição original sabem que querem o que Rawls chama
«bens primários». São estes as liberdades, as oportunidades,
a riqueza, o rendimento e as bastante misteriosas «bases
sociais da auto-estima». Rawls supõe que o que estes têm em
comum é serem aquilo que as pessoas racionalmente deve-
riam querer, independentemente de tudo o resto que pudes-
sem desejar. Ou seja, quer a nossa ideia do bem seja uma

215
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

vida de prazer autêntico, de virtude monástica, de caça, tiro


e pesca, de despertar de consciências, ou seja do que for, os
bens primários de Rawls seriam sempre desejáveis. Querer-
se-ia sempre liberdade, oportunidade e dinheiro — supõe
Rawls — como meios polivalentes para alcançar os nossos
objectivos na vida. Assim, os agentes na posição original
sabem que querem os bens primários.
Rawls acrescenta que eles preferem ter mais a ter menos
destes bens primários e que os agentes são racionais, no
sentido de que utilizarão os meios mais eficientes para atin-
gir os seus fins. Não são invejosos e, portanto, não se senti-
rão irritados com o sucesso alcançado por outrem. Por últi-
mo, são «mutuamente desinteressados»: não sentem interes-
se pela situação — seja ela boa ou má — em que se encontra
outra pessoa.
É importante esclarecer que Rawls não está aqui a dizer
que as pessoas são assim, no mundo. As pessoas são muitas
vezes invejosas, ou irracionais, e é certo que nos preocupa-
mos muitas vezes com a forma como correm as vidas alheias.
Ao invés, o filósofo está a criar um modelo hipotético — de
ficção — de uma pessoa que fará parte da posição original.
No jogo de cartas, por forma a produzir um acordo justo,
hipotético, supusemos que os jogadores não tinham ainda
recebido as cartas da jogada seguinte, embora isso já se
tivesse verificado. De modo semelhante, no caso da posição
original, supomos um nível de ignorância e conhecimento
muito mais radical, por forma a garantir a imparcialidade
entre as partes contratantes. Acabamos por nos posicionar
numa perspectiva em que as pessoas na posição original são
muito diferentes das pessoas reais. Mas isto não constitui
uma crítica à teoria: nunca se pretendeu que as condições da
posição original, por detrás do véu da ignorância, descreves-
sem a natureza de uma pessoa, mas antes que actuassem
como dispositivo metodológico — dispositivo esse que nos
ajuda a perceber os princípios correctos da justiça.
Há apenas que acrescentar mais umas peças para o qua-
dro da posição original ficar completo. Rawls pressupõe que

216
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

as pessoas ignoram certos factos sobre a sua sociedade. Não


conhecem a sua situação económica e política, o seu nível de
civilização ou cultura, nem a geração a que pertencem.
Todavia, sabem que as pessoas — pessoas reais, pessoas na
sociedade — têm um sentido de justiça e são capazes de
formular uma concepção do bem.
Também sabem que a sua sociedade se encontra naquilo
que Hume chamou «as circunstâncias da justiça». Hume
notou que em certas condições a ideia de justiça parece não
se aplicar. Se nos encontrarmos num estado de extrema
penúria, tão extrema que nem consigamos sequer assegurar
a sobrevivência colectiva, a ideia de devermos criticar as
acções de uma pessoa por serem injustas parecerá absurda.
Se para nos mantermos vivos temos de tirar aos outros o que
podemos, as considerações relativas à justiça parecem total-
mente irrelevantes. No outro extremo, se nos encontrarmos
numa situação de tal abundância que nos seja permitido ter
tudo o que queremos, não surgirão conflitos de justiça. Se
tenho o que quero, para quê discutir com o leitor, se posso
ter outra coisa igual sem qualquer dificuldade? Deste modo,
as circunstâncias da justiça situam-se «entre a carência e a
abundância» e Rawls pressupõe que as suas partes sabem
que estão a decidir princípios destinados a regulamentar
uma sociedade que se encontra nestas condições.

Escolher princípios de justiça

Tendo definido a posição original, que princípios de


justiça dela resultariam? Rawls afirma que qualquer pessoa
se pode imaginar na posição original, em qualquer altura. Se
o fizermos, veremos por nós mesmos se escolheríamos ou
não os seus princípios de justiça. Os princípios que Rawls
escolheria, segundo as suas palavras, são os seguintes:

1. Cada pessoa terá direito igual ao mais vasto sistema total de


liberdade básicas iguais compatível com um sistema similar de liber-
dade para todos.

217
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

2. As desigualdades sociais e económicas serão dispostas por forma


a serem simultaneamente:
a) para o maior benefício dos menos favorecidos […] e
b) ligadas a postos e posições acessíveis a todos, em condições de
igualdade e oportunidade justas. (Uma Teoria da Justiça, 302)

O princípio 1 é o Princípio da Liberdade, o 2 a) é o Princí-


pio da Diferença e o 2 b) é o Princípio da Oportunidade
Justa. De acordo com Rawls, o Princípio da Liberdade tem
uma «prioridade lexical» sobre os outros dois, assim como o
Princípio da Oportunidade Justa a tem sobre o Princípio da
Diferença. O que isto significa, para Rawls, é que, uma vez
tendo atingido um certo nível de bem-estar, as considerações
sobre a Liberdade devem ter prioridade absoluta sobre as
questões de bem-estar económico ou igualdade de oportuni-
dades. Assim, por exemplo, não se pode defender a escrava-
tura dizendo que os escravos têm melhores condições do
aquelas que teriam em liberdade. O facto é que a escravatura
forçada é incompatível com o reconhecimento da liberdade
igual e, por isso, tem de desaparecer, mesmo que represente
vantagens económicas para os escravos. Pode afirmar-se
algo semelhante relativamente à prioridade do Princípio da
Oportunidade Justa sobre o Princípio da Diferença.
O principal objecto do nosso interesse é, no presente
capítulo, o Princípio da Diferença. De notar que, em senso
lato, se trata de um princípio igualitarista na medida em que,
para Rawls, há um pressuposto geral a favor de uma distri-
buição equitativa de bens entre todos os cidadãos. Contudo,
Rawls dá conta de um argumento já analisado, que frequen-
temente parece gerar uma forte crítica ao igualitarismo: que
não deixa espaço à iniciativa. Ou seja, algumas pessoas
trabalhariam muito mais arduamente se soubessem que
teriam uma compensação suplementar ao fazê-lo. Mas o
trabalho árduo das pessoas muitíssimo produtivas beneficia
todos: quer directamente, através da criação de postos de
trabalho e do aumento das oportunidades de consumo, quer
indirectamente, através do aumento das receitas fiscais. Ora,
se uma desigualdade beneficia todas as pessoas, que objec-

218
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

ção se lhe poderá colocar? Afinal, quem sai prejudicado?


Nestes termos, o igualitarismo é por vezes acusado de ser
simultaneamente ineficiente e irracional.
Rawls aceita a afirmação condicional de que se é necessá-
ria uma desigualdade para melhorar as condições de todas
as pessoas, e, em especial, para tornar as condições dos mais
desfavorecidos melhores do que seriam de outra forma,
aquela deve ser permitida. Esta ideia dá origem ao Princípio
da Diferença. Contudo, saber se são necessárias iniciativas
conforme as delineadas acima, não é assunto da competência
dos filósofos, mas dos psicólogos e economistas.
Na última secção, sugeri que uma filosofia política utilita-
rista advogaria provavelmente um mercado livre juntamente
com um estado-providência. Tal sistema permitiria desi-
gualdades muito maiores do que as passíveis de justificação
pelo Princípio da Diferença. Mas como pode Rawls mostrar
que o Princípio da Diferença deve ser preferido, por razões
de justiça? A sua resposta consiste na utilização de um ins-
trumento que é o contrato hipotético. Na posição original, as
pessoas escolheriam os seus princípios de justiça em detri-
mento do utilitarismo. Mas por que fariam elas isso? Por que
não prefeririam os princípios utilitaristas?
Pode ser útil considerar uma adaptação da posição origi-
nal. Suponha que tinha acabado de acordar numa cama de
hospital. Primeiro, apercebia-se de que tinha sofrido uma
perda considerável de memória. Olhando para baixo, via que
estava enfaixado dos pés à cabeça. Não se recordava do seu
nome nem do seu sexo e raça — também não conseguia
descobri-los através das ligaduras (a etiqueta no pulso enfai-
xado revelava apenas um número). Os factos acerca da
família, ocupação, classe, capacidade, competência, etc.,
estão completamente perdidos. Recorda-se de algumas
teorias gerais aprendidas, em tempos, nas aulas de economia
e sociologia, mas de nada se lembra das aulas de história. Na
verdade, nem sequer sabe em que século está. Nessa altura,
um homem de bata branca entra na enfermaria. «Bom-dia»,
diz ele. «Sou o Professor John Rawls. Amanhã a sua memó-

219
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

ria regressará, as ligaduras ser-lhe-ão retiradas e poderá


partir. Portanto, não temos muito tempo. O que precisamos
que nos diga é como gostaria que a sociedade fosse concebi-
da, tendo sempre em mente que, a partir de amanhã, viverá
na sociedade que tiver escolhido. Queremos que conceba a
sociedade puramente segundo os seus interesses. Embora
não saiba quais são os seus verdadeiros interesses, posso
dizer-lhe que precisa de tantos bens primários quanto possí-
vel: liberdades, oportunidades, riqueza, rendimento; e não
deve considerar as posses dos outros. Regressarei ao fim da
tarde, para saber o que decidiu.» Nestas circunstâncias, o
que seria racional escolher?
De notar, de passagem, que deslizámos para a designação
«escolha» de princípio, no lugar da ideia de «acordo» com
que tínhamos iniciado. Na prática, não faz qualquer diferen-
ça. Na posição original, pressupõe-se que as pessoas são
iguais. Por conseguinte, raciocinarão todas da mesma forma
e, portanto, podemos concentrar-nos na escolha de apenas
uma pessoa. Isto não interfere com o argumento e torna-o de
manuseamento mais fácil.
Então, escolheria o Princípio da Liberdade? Já vimos a
razão principal para isso. Como não sabe a que grupo ou
grupos pertence, seria irracional discriminar uma parte da
sociedade. Tanto quanto sabe, até poderia estar a ditar a sua
discriminação. Esta é uma razão para escolher liberdade
igual. Mas porquê a mais abrangente liberdade igual? Parece
inferir-se isto, do pressuposto de Rawls de que as pessoas
não só querem Bens Primários como querem tantos quanto
possível. Por detrás do véu da ignorância, ou na sua cama de
hospital, o Princípio da Liberdade parece uma escolha óbvia
e automática. (Sem dúvida que se poderia dizer uma coisa
semelhante em relação ao Princípio da Oportunidade Justa.)
Lembremo-nos, no entanto, que Rawls afirma que as
pessoas não só adoptarão o Princípio da Liberdade como
também lhe atribuirão uma «prioridade lexical» relativamen-
te aos outros princípios. Segundo a sua perspectiva, não
podemos sacrificar a liberdade em prol de outra coisa qual-

220
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

quer. Mas pode defender-se que atribuir uma tal prioridade


absoluta à liberdade dificilmente será racional. Há alturas
em que a liberdade tem de ser sacrificada a bem da seguran-
ça: pense-se nos blackouts em tempo de guerra, ou no reco-
lher obrigatório. Ou nas épocas de grandes dificuldades
económicas e escassez de bens, em que poderíamos aceitar a
imposição de restrições às liberdades civis e políticas, se esta
fosse a única maneira de obtermos alimento. Como pode-
mos, então, aceitar a prioridade da liberdade?
Rawls ignora deliberadamente situações de emergência
como as guerras, querendo compreender os casos mais
«centrais» da justiça antes de considerar os problemas menos
comuns. E Rawls também disse que podemos pressupor que
estamos a escolher princípios de justiça aplicáveis a uma
sociedade que vive «as circunstâncias da justiça». Ou seja,
sabemos já quais os recursos que, na nossa sociedade, não
são extremamente escassos e, por isso, não precisamos de
nos preocupar com tais casos problemáticos. A perspectiva
plausível de Rawls — embora possa ser questionada — é
que, dada uma prosperidade moderada, a liberdade deve
sempre ser preferida a progressos materiais suplementares.
Consideremos então a derivação do Princípio da Diferen-
ça. Este é, claro está, o princípio que afirma que a distribui-
ção da riqueza e do rendimento, na sociedade, deve ser
igual, a menos que a desigualdade traga benefícios para
todos. Em especial, deverá beneficiar os mais desfavorecidos.
Porquê escolher um tal princípio?
Na verdade, estamos agora a considerar um exemplo do
problema da escolha racional em condições de incerteza.
Para decidir que princípios de justiça seria racional seleccio-
nar, precisamos primeiro de saber que princípios de escolha
racional seria apropriado usar neste caso. Ver a questão por
este prisma significa que podemos ajudar a resolver o pro-
blema tirando partido dos recursos da «teoria da escolha
racional».
Para vermos o tipo de questão que enfrentamos, comece-
mos com um caso muito simples, como exemplo. Suponha

221
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

que se instalava num restaurante para almoçar e era confron-


tado com a necessidade de escolher uma entrada. Trata-se de
uma ementa de preço fixo, por isso não é preciso preocupar-
se com o preço dos pratos. Ignore igualmente quaisquer
restrições alimentares que possa ter, relacionadas com dietas
específicas ou orientações religiosas. A escolha é razoavel-
mente simples. Só há dois pratos na ementa: mexilhões e
melão. O melão é uma opção segura. Está num bom restau-
rante, onde só se servem melões maduros, de boa qualidade.
Pode ter a certeza de que apreciará a entrada. Os mexilhões,
por outro lado, são um tiro no escuro. Geralmente, aprecia o
seu sabor — muito mais do que o do melão — mas um mexi-
lhão estragado pode arruinar-lhe a semana inteira. Da sua
experiência, supõe, digamos, que um prato de mexilhões em
cada dez terá um efeito indesejado. Tendo em conta estes
dados, o que escolheria?
Talvez seja mais fácil perceber se se apresentar esta
informação sob a forma de tabela. Os números pretendem
representar as quantidades relativas de utilidade — «agra-
do» e «desagrado» — que se obtêm a partir das opções:

Melão 5 (esteja ele bom ou mau)


Mexilhões 20 (se estiverem bons — 90% de probabilidade)
-100 (se estiverem estragados — 10% de probabi-
lidade)

Uma teoria da escolha racional defende a «maximização


da utilidade esperada», ou «maximização do valor médio».
Quer isto dizer que se calcula um número «médio» para o
valor de cada opção e depois escolhe-se a opção com a média
mais elevada. Claro que calcular a utilidade média do melão
é fácil: aconteça o que acontecer, obtém-se 5. O cálculo da
utilidade esperada dos mexilhões é uma tarefa ligeiramente
mais árdua. O que se faz é tomar a utilidade de cada resulta-
do possível e multiplicá-la pela sua probabilidade. De segui-
da, somam-se todos os valores obtidos e chega-se à média.
Assim, começamos por multiplicar 20 (a utilidade dos mexi-

222
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

lhões bons) por 0,9 (a probabilidade de eles estarem bons) e


obtemos 18. Depois multiplicamos -100 (a utilidade dos
mexilhões estragados) pela sua probabilidade e obtemos -10.
Somando estes resultados (18 e -10), chegamos ao valor 8,
que é a utilidade esperada dos mexilhões.
Outra forma de ver isto é imaginar que se faz este «jogo»
uma série de vezes. Suponha que come neste restaurante 100
vezes e pede sempre mexilhões. Se a probabilidade se com-
portar segundo o padrão, terá 90 experiências agradáveis e
10 desagradáveis. Cada experiência agradável vale 20, e o
total da soma dos valores de todas perfaz 1800. Cada má
experiência vale -100 e, portanto, o total das 10 é de -1000.
Consequentemente, 100 pratos de mexilhões terão como
«lucro» 800 e, portanto, o lucro médio — a utilidade espera-
da — é 8. É importante percebermos que designar isto como
«utilidade esperada» não significa que seja isto que espera-
ríamos realmente obter. Na verdade, nunca se obtém 8:
obtém-se 20 ou -100; a utilidade esperada é um valor médio.
Se quisermos maximizar a utilidade, escolheremos os
mexilhões. Será isto o mais racional a fazer? Sem dúvida que
algumas pessoas discordariam veementemente. Os mexi-
lhões, embora num certo sentido constituam uma boa apos-
ta, são, ainda assim, muito arriscados. É insensato correr tal
risco, dirão algumas pessoas, quando existe uma alternativa
perfeitamente aceitável. O melão é uma opção boa e segura
e, pelo menos para algumas pessoas, isto transforma-o na
escolha mais racional. Nada pode correr mal. Os que racioci-
nam desta forma podem frequentemente ser representados
como adoptando o princípio «maximin» da escolha racional.
Isto aconselha-nos a certificarmo-nos de que o pior resultado
possível é tão bom quanto possível: maximizar o mínimo.
Utilizado na vida real, trata-se de uma princípio para pessi-
mistas. Ordena-nos que não atravessemos a rua a correr
(podemos ser mortos) e, ao invés, que esperemos pela luz
verde do semáforo. Os maximinizadores fazem isto, mesmo
que a probabilidade de morrerem seja ínfima e grande o

223
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

inconveniente de não atravessarem a rua. Os maximinizado-


res, portanto, escolheriam o melão.
Até ao momento, temos dois princípios candidatos à
escolha racional: a maximização da utilidade esperada e o
maximin. Na verdade, não há limite para os princípios pos-
síveis de escolha racional. Para ilustrar um terceiro princípio
— maximax, — consideremos uma ampliação do exemplo
original. Suponhamos que o empregado de mesa, antes de
anotar o pedido, acrescenta: «E a entrada do dia são ovas.»
Depois de interrogado, revela que se trata de um prato novo,
confeccionado pelo cozinheiro que no início da refeição
prepara cinquenta pratos: um deles com caviar e os restantes
quarenta e nove com ovas de peixe-lapa. Assim, existe uma
probabilidade de dois por cento (1 em 50) de comer caviar e
de 98 por cento de comer ovas de peixe-lapa. Também lhe é
dito que, se tiver a sorte de lhe calhar o caviar, este será
servido com grande pompa e, portanto, terá a certeza de que
está a comer realmente caviar, consiga ou não distinguir a
diferença de sabor.
Rapidamente, calcula que, se conseguir o caviar, será de
tal forma sensacional que valerá para si 50. Por outro lado, se
lhe forem dadas as ovas de peixe-lapa (pasteurizadas, claro
está), não lhe farão mal, mas não retirará qualquer prazer da
sua degustação. Provavelmente, deixará quase tudo no
prato. Portanto, atribui-lhes o valor zero. Bom, se seguir o
princípio maximin, escolherá ainda assim o melão. Este
continua a revelar o «melhor pior» resultado: 5 é melhor do
que 0. De modo semelhante, a maximização das expectativas
continua a prescrever os mexilhões. (As ovas de peixe tem
uma expectativa de 1, como se pode facilmente calcular.)
Mas alguns afirmarão que, neste caso, é racional escolher as
ovas. Afinal de contas, se se tiver sorte, o saldo será extre-
mamente positivo. Alguém que raciocine desta forma pode
estar a basear-se implicitamente no princípio «maximax»,
que advoga a escolha da opção que tenha o «melhor melhor»
resultado (por improvável que este seja): maximizar o
máximo, um princípio para optimistas amantes do risco.

224
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Como as ovas de peixe são a opção que poderá ter o melhor


resultado (mesmo que a concretização desse resultado seja
altamente improvável), é esta que deverá ser escolhida.
O princípio maximax é, na verdade, uma brincadeira: não
se trata de uma ideia séria. Quem escolhesse ovas de peixe
neste exemplo não o faria certamente se, ao perder a aposta,
em vez de lhe darem ovas de peixe-lapa o levassem do res-
taurante e o alvejassem. Provavelmente, aqueles que se
consideram maximaximizadores regem-se pelo princípio
mais complexo de «maximax limitado pela prevenção do
desastre». Mas deixemos isto de lado. O interessante, até ao
momento, é que neste exemplo do restaurante identificámos
três princípios diferentes de escolha e cada um deles resulta
numa decisão diferente. Tendo identificado e ilustrado estes
princípios, podemos voltar a nossa atenção para o caso
social: a escolha racional a partir da posição original ou o
desgraçado na cama de hospital.
Poderá não ser fácil ver isto imediatamente, mas seleccio-
nar um princípio de escolha racional para utilizar na posição
original acaba por revelar-se de importância vital. Cada um
dos três princípios que identificámos tem como resultado
um modelo diferente da sociedade justa. Os que escolhem
maximizar as expectativas procuram o resultado com a
pontuação média mais elevada. Assim, no leito de hospital
devem escolher uma versão da teoria de justiça utilitarista
média: devemos tornar a posição média da sociedade tão
boa quanto possível. Em contraste, os maximaximizadores
têm o olhar posto apenas nos melhores resultados. Assim, é
provável que escolham uma forma de sociedade profunda-
mente desigual com uma classe governante privilegiada,
abastada e poderosa. Por fim, os maximinimizadores olham
apenas para os mais desfavorecidos, querendo oferecer-lhes
as melhores condições possíveis. Por outras palavras, esco-
lheriam o Princípio da Diferença de Rawls.
Podemos agora ver que a substância do argumento de
Rawls consiste em afirmar que o princípio racional de esco-
lha na posição original é o maximin. Não quer isto dizer que

225
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Rawls acredite que o princípio maximin seja o princípio


correcto de escolha em todos os casos de decisão em condi-
ções de incerteza. O melão não é a escolha racional incontro-
versa constante da ementa. Por vezes, parece mais racional
correr algum risco. Contudo, Rawls afirma que as circuns-
tâncias muito especiais da posição original transformam o
princípio maximin na única escolha racional neste caso.
Precisamos agora de analisar os seus argumentos em defesa
disto.

Razões para maximinimizar

Qual é, então, o princípio de escolha racional a usar na


posição original, ou na cama de hospital? Antes de tentar
responder a isto, é necessário tecer mais algumas considera-
ções acerca da natureza da escolha. Primeiro, poderíamos
perguntar: por que não escolher um princípio como «todas
as pessoas deviam viver num palácio»? Desta forma, eu teria
a certeza de viver bem. Mas, como é óbvio, Rawls responde-
ria que eu não posso saber se a sociedade seria capaz de
suportar tal situação; é quase certo que não. A minha socie-
dade encontra-se nas «circunstâncias de justiça» — entre a
escassez e a abundância — e temos de escolher um princípio
que seja adequado a todos os níveis de produtividade que se
situem entre os dois extremos. Assim, pode dizer-se, há
restrições físicas que se aplicam à nossa escolha.
E quase não seria preciso acrescentar que se lhe aplicam
igualmente restrições lógicas. O que quer que eu escolha terá
de ser logicamente possível. Assim, não se pode escolher o
princípio «todas as pessoas deviam ter escravos» nem «todas
as pessoas deviam ser mais ricas do que as restantes».
Mais importante ainda, Rawls afirma que há igualmente
restrições formais que reflectem a ideia de um modelo de
contrato hipotético de justificação. A ideia é que é necessário
preencher determinadas condições formais para se poder
afirmar correctamente que as pessoas aceitaram um contrato,
e Rawls importa estas condições como restrições suplemen-

226
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

tares aplicados à escolha. Um é que as cláusulas têm de ser


conhecidas ou, pelo menos, conhecíveis, por todas as partes
interessadas. Não existe contrato se as suas cláusulas forem
deliberadamente ocultadas a uma ou mais partes contratan-
tes. Esta é a restrição da publicidade e é suficiente para elimi-
nar o género de utilitarismo do estilo «dois níveis» ou «colo-
nial» que vimos advogado por Sidgwick no último capítulo.
Uma segunda restrição formal é a peremptoriedade. Se um
contrato for celebrado de boa-fé, as partes não tentarão
revogá-lo só porque as coisas correram mal. Muitos contra-
tos possuem cláusulas que abrangem contingências impro-
váveis. Por exemplo, uma das partes pode aceitar compensar
a outra no caso de incumprimento. Se se aceitar tal contrato,
tem de se estar preparado para acatar estas «obrigações
decorrentes do comprometimento». Assim, no exemplo
vertente, se eu souber antecipadamente que não vou com-
pensar a outra parte se não cumprir o estipulado, não subs-
crevi o contrato de boa-fé. A implicação desta ideia no con-
trato de Rawls é que não devo de forma alguma fazer uma
escolha se considerar recuar no caso de as coisas correrem
mal. Suponhamos que, na minha cama de hospital, escolho
uma sociedade muito desigual e depois descubro que na
sociedade verdadeira saio prejudicado com essa escolha,
dando comigo na base da pirâmide. Se então me sentir insa-
tisfeito e quiser alterar o sistema, não terei feito a escolha de
boa-fé, uma vez que não estou disposto a acatar as obriga-
ções decorrentes do comprometimento. Esta ideia é clara-
mente importante se pensarmos que a sociedade justa deve
também ser estável no longo prazo. Veremos em breve a
utilização que Rawls faz desta ideia.
Estamos, então, a procurar um princípio de escolha racio-
nal que resulte numa decisão física e logicamente possível e
não viole as restrições de publicidade e peremptoriedade.
Isto não basta ainda para determinar a escolha de um único
princípio, pois parece que continua a ser possível escolher
tanto com base na maximização das expectativas (utilitaris-

227
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

mo médio) como no princípio maximin (o Princípio da Dife-


rença). Que fazer, então?
Talvez seja melhor enveredar pela direcção oposta. Em
que circunstâncias a maximização das expectativas seria um
princípio racional de escolha? Na teoria económica, a maxi-
mização das expectativas é praticamente considerada a
definição de racionalidade. Porquê? A resposta é que numa
extensa série de decisões — que são discretas no sentido de
que o que sucede numa não depende do que sucedeu ou
sucederá noutra — é quase certo que nos sairíamos melhor
sendo maximizadores de expectativas do que seguindo outra
qualquer política. Suponhamos, por exemplo, que no final de
cada dia de trabalho nos é dado um salário de 50 euros, mas
nos é dito que podemos apostar esses 50 euros com uma
probabilidade de 50 por cento de conseguir 150 euros.
Assim, o valor esperado da aposta é de 75 euros. Se nos for
oferecida esta aposta todos os dias, e tivermos a certeza de
que a pessoa que a oferece é honesta, seria simplesmente
estúpido seguir uma política regular de jogar pelo seguro. Se
o fizéssemos, asseguraríamos um salário semanal de 250
euros, ao passo que apostar nos daria, em média, um salário
semanal de 375 euros. Assim, numa série de longo prazo, a
maximização das expectativas constitui certamente a estraté-
gia racional a seguir — e a teoria económica pressupõe que
os indivíduos são efectivamente confrontados com muitas
escolhas e decisões deste género (embora menos regulares e
previsíveis do que no caso descrito).
Ora, é importante para Rawls que a escolha feita a partir
da posição original não seja a primeira numa série extensa de
escolhas. É uma oferta única e irrepetível! Se as coisas corre-
rem mal, não nos será dada segunda oportunidade. Assim, a
maximização das expectativas não é tão obviamente a políti-
ca racional a adoptar, pois envolve risco (lembremo-nos do
prato de mexilhões). Poderá isto querer dizer que a escolha é
uma questão de temperamento, ao invés de racionalidade?
Pelo contrário: Rawls afirma que a utilização do princípio
maximin e, por conseguinte, a selecção do Princípio da Dife-

228
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

rença, é a decisão mais racional devido às circunstâncias


especiais em que decorre a escolha. O filósofo apresenta
vários argumentos, nem todos eles convincentes, sendo o
melhor aquele que afirma que os princípios alternativos de
escolha implicam que se corra um risco tão grande que optar
por eles seria extremamente insensato. Se decidirmos apos-
tar, e perdermos, ficaremos perdidos. Não há segunda opor-
tunidade. A posição original não terá segunda via. Se esco-
lhermos maximizar as expectativas, e assim seleccionar o
utilitarismo, haverá sempre a possibilidade de termos o azar
de dar connosco muito mal colocados.
Reconhecidamente, pressupomos já que o Princípio da
Liberdade seria escolhido — as pessoas não deverão apostar
a sua liberdade — e, portanto, não nos veríamos escravos de
outra pessoa qualquer. Mas poderíamos ser muito pobres,
estar desempregados, ser sem-abrigo. Talvez a existência de
pessoas assim desfavorecidas constitua um efeito secundário
inevitável de um tipo particularmente eficiente de economia
de mercado. Para quê correr este risco, se podemos garantir
algo melhor utilizando o princípio maximin? E, acrescenta
Rawls, talvez injustamente, se a aposta se gorasse, como
justificaríamos ter corrido tamanho risco perante os nossos
descendentes cujas perspectivas de vida teriam igualmente
sido cerceadas pela nossa escolha?
Em jeito de adenda, Rawls afirma que, se decidíssemos
embarcar nessa aposta e acabássemos na miséria, não consi-
deraríamos tal sociedade justa e poderíamos querer mudá-la.
Mas, num certo sentido, isto seria um «recuo» relativamente
ao acordo inicial. Por outras palavras, se a aposta corresse
mal, não conseguiríamos acatar as «obrigações decorrentes
do comprometimento». Assim, não teríamos celebrado o
acordo de boa-fé e, portanto, tínhamos violado a «restrição
de peremptoriedade».
Este argumento suplementar parece depender de se con-
siderar muito literalmente a ideia de contrato — talvez mais
seriamente do que deveríamos. Mas o argumento mais
importante é simplesmente que se deve preferir o princípio

229
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

maximin porque os princípios alternativos de escolha racio-


nal implicam que se corra um risco demasiado grande para
ser racional nas circunstâncias em apreço, dado que se trata
de uma escolha que só pode ser feita uma vez, sem hipótese
de reconsideração. E esta parece certamente uma boa razão
para recusar o princípio da maximização das expectativas.
Mas será uma razão suficientemente forte a favor da
utilização do princípio maximin? Talvez Rawls não tenha
jogado claro ao tornar a comparação entre maximinimização
e maximização das expectativas a sua comparação principal.
Uma derrota da maximização da utilidade não constitui
automaticamente uma vitória do princípio maximin. Podem
existir outros princípios intermédios que partilhem algumas
das vantagens de ambos. Consideremos a situação de esco-
lha em que nos é dito que se abrirmos a Caixa B receberemos
5 unidades e se abrirmos a Caixa A teremos cinquenta por
cento de probabilidade de conseguir 4 unidades e cinquenta
por cento de probabilidade de ganharmos 10 unidades.
Nesta situação, se usássemos o princípio maximin, teríamos
de escolher a B, pois esta opção é aquela que tem o maior
resultado mínimo: 5. Contudo, temos de pensar num caso
muito especial no qual a opção B seria a racional, quer esti-
véssemos a falar de euros, milhões de euros ou apenas cên-
timos. (Talvez precisemos exactamente de 5000 euros para
uma operação cirúrgica vital.) Assim, pensando melhor,
poderemos encontrar um novo princípio de escolha que nos
permita optar por A em vez de B, evitando os enormes riscos
associados à maximização de expectativas (ou, efectivamen-
te, ao princípio maximax)?
Uma resposta é seleccionar o princípio da «maximização
restringida». Ou seja, poder-se-ia utilizar um princípio que
prescreveria, grosso modo: «maximiza as expectativas mas
exclui qualquer opção que encerre uma possibilidade muito
má». Este é um princípio que nos permite apostar, mas não
nos permite arriscar tudo. Tal princípio parece resolver
satisfatoriamente a necessidade de evitar grandes riscos, sem
contudo se ter de abraçar o «aborrecido» princípio maximin.

230
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Quem quer que utilize um tal princípio de «maximização


com rede de segurança», como lhe poderíamos chamar, pode
até estar preparado para escolher uma sociedade de grande
desigualdade, se isso melhorar a posição média na sociedade
e ninguém sair demasiado prejudicado. Por outras palavras,
haveria um rendimento mínimo, fornecido, se necessário,
pelo estado, que asseguraria que ninguém se via numa situa-
ção desesperadamente difícil. Podemos até pensar que as
sociedades ocidentais contemporâneas se encaixam, em
termos gerais, neste modelo: o mercado livre modificado
pelo estado-providência.
Rawls pensa que o argumento em defesa da maximização
restringida não colhe. O problema, segundo o filósofo, está
no facto de, do ponto de vista da posição original, não ser
possível estabelecer o mínimo social de uma forma não
arbitrária. Como não conhecemos as verdadeiras circunstân-
cias da nossa sociedade, não podemos decidir que, digamos,
«todas as pessoas devem ter, pelo menos, 100 euros por
semana». Dependendo do modo como a sociedade for, essa
quantia pode não ser suficiente para alguém se manter ali-
mentado, vestido e abrigado. Mas também pode ser econo-
micamente viável. É necessário, assim, um princípio mais
geral, um princípio que seja aplicável independentemente de
como a sociedade se revelar. E que tal: «ninguém deve rece-
ber menos do que metade do rendimento médio»? Mas
porquê metade? Por que não um quarto? Por que não três
quartos? Como podemos ter a certeza de que qualquer des-
tas quantias seria suficiente para assegurar um nível de vida
aceitável? Rawls sugere que as partes contratantes, ao tenta-
rem estabelecer um mínimo social, acordem finalmente o
seguinte: «dar aos mais desfavorecidos as melhores condi-
ções que seja possível». Mas esse é simplesmente o Princípio
da Diferença e portanto, segundo parece, esta forma de
maximização restringida acaba por redundar no princípio
maximin.
Alguns analistas suspeitam de que Rawls não foi suficien-
temente imaginativo ao tentar determinar o mínimo social

231
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

de uma forma não arbitrária. Por que não estabelecê-lo, por


exemplo, por forma a responder às «obrigações decorrentes
do comprometimento»? Rawls está longe de ter toda a razão.
Ainda assim, há alguma plausibilidade na ideia de que o
Princípio da Diferença seria escolhido por detrás do véu da
ignorância, a partir da posição original. E já reconhecemos
que o Princípio da Liberdade e o Princípio da Oportunidade
Justa seriam igualmente seleccionados, embora seja menos
claro que lhes deva ser concedida a prioridade que Rawls
lhes atribui. Até ao momento, então, o projecto de Rawls
parece constituir um êxito (parcial).
Mas a discussão ainda não terminou. Mesmo que Rawls
tenha razão quanto aos princípios que seriam escolhidos,
que prova isso? Por que se supõe que isso constituiria uma
justificação dos princípios? Afinal, nós não estamos agora na
posição original e, assim, por que nos preocuparíamos com o
que as pessoas em tal posição decidiriam? Por outras pala-
vras, o que justifica o método de Rawls? Este é o nosso tema
seguinte.

Rawls e os seus críticos

Um contrato hipotético não é simplesmente uma forma pálida de


um contrato real: não é contrato algum.
(Dworkin, «The Original Position», 18)

O método do contrato hipotético

Porquê, então, levar a sério a argumentação de Rawls? Eis


uma má razão: Rawls apresentou um argumento de contrato
hipotético; o que quer que seja revelado como resultado de
um contrato hipotético é justo; por conseguinte, o resultado
do método de Rawls é justo.
A fraqueza desta tentativa de justificação é a afirmação de
que o que quer que seja revelado como resultado de um
contrato hipotético é justo. Isto é simplesmente falso. Imagi-
ne que em troca de um exemplar deste livro o leitor dar-me-

232
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

ia todas as suas possessões terrenas. Esta suposição é um


contrato hipotético, como o é qualquer contrato fictício que
consigamos imaginar. Mas o resultado deste contrato difi-
cilmente seria considerado justo e, de qualquer modo, entra
obviamente em contradição com os resultados de muitos
outros contratos hipotéticos (por exemplo, um contrato que
estabeleça que o leitor não aceita o exemplar do livro a
menos que eu lhe dê todas as minhas possessões terrenas). É
obviamente necessário dizer alguma coisa que ateste a razão
por que devemos levar mais a sério o contrato hipotético de
Rawls do que estes contratos hipotéticos jocosos.
Rawls afirma que este contrato hipotético goza de um
estatuto privilegiado porque se pode demonstrar que cada
elemento da situação de contratação — a posição original —
é justo. A posição original, afirma o proponente, é um «ins-
trumento de representação». Cada elemento representa algo
que aceitamos, ou podemos ser levados a aceitar, por razões
morais. Por exemplo, tornar as partes que se encontram na
posição original ignorantes relativamente ao seu sexo reflec-
te a nossa convicção de que a discriminação sexual é errada.
Como vimos atrás, Rawls garante a imparcialidade impondo
a ignorância.
Dito isto, podemos agora distinguir claramente duas
restrições muito diferentes que subjazem à concepção da
posição original. Uma é que todos os elementos, todos os
pressupostos acerca do conhecimento e da ignorância, têm
de reflectir adequadamente crenças morais relativamente
incontroversas e partilhadas por todos, ou quase todos. A
outra é que o acordo a partir da posição original tem de ser
alcançável. Na posição original, as pessoas devem ser carac-
terizadas de tal forma que possam chegar a qualquer tipo de
acordo; de outro modo, o método teria redundado em fra-
casso. Seria um poderoso argumento contra Rawls, demons-
trar que, por forma a conseguir um acordo entre as partes
contratantes, ele tinha incluído elementos na posição original
que não eram justos.

233
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Uma crítica importante deste tipo questiona a justificação


de Rawls para exigir que as pessoas escolham em termos de
bens primários: liberdade, oportunidades, riqueza, rendi-
mento e bases sociais de auto-estima. Devemos recordar que
os bens primários foram introduzidos como consequência da
decisão de Rawls de tornar as pessoas ignorantes relativa-
mente à sua concepção do bem. Consequentemente, Rawls
teve de postular uma «teoria fraca do bem», de modo que as
pessoas, a partir da posição original, pudessem fazer uma ou
outra escolha, pois de outra forma, sem uma concepção do
bem, não saberiam o que preferiam. Rawls pressupõe que as
pessoas querem bens primários e que, destes, preferem ter
mais do que menos. A justificação filosófica deste passo é
dizer que isto é o que as pessoas racionais querem, seja o que
for que queiram além disto. Isto é, independentemente do
que quisermos da vida, estas coisas serão sempre úteis. São
«meios polivalentes». Por conseguinte, são neutros no que
diz respeito às concepções do bem. Mas a objecção é que
estes bens não são neutros. Estes bens são particularmente
adequados à vida nas economias capitalistas modernas,
assentes no lucro, nos salários e nas trocas. Todavia, poderia
certamente haver formas de vida não comerciais, mais
comunais, e, portanto, com concepções do bem nas quais a
riqueza e o rendimento — e mesmo a liberdade e a oportu-
nidade — desempenhariam papéis menos importantes.
Assim, prossegue a objecção, a posição original de Rawls é
parcial, favorecendo uma organização económica e indivi-
dualista da sociedade e ignorando a importância que os bens
não económicos e comunais poderiam ter nas vidas das
pessoas.
Uma crítica diferente centra-se no facto de Rawls desejar
tornar as partes contratantes ignorantes relativamente às
suas qualidades naturais e sociais. Uma vez mais, isto pode
ser necessário para que se chegue a um acordo entre as
partes, mas como é que reflecte uma crença moral que se
espera que todos partilhemos? A resposta de Rawls consiste
em afirmar que a posse de qualidades naturais e sociais é

234
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

«arbitrária de um ponto de vista moral». Ninguém merece a


força, a inteligência ou a beleza que possui, ou ter nascido no
seio de uma família rica e culta, e, portanto, ninguém merece
beneficiar com estes acasos do nascimento. Esta convicção,
então, é traduzida na ignorância que as pessoas que se
encontram na posição original têm sobre estes factores.
Tornamos as qualidades naturais «qualidades comuns» —
coisas das quais todos os elementos da sociedade colhem
benefício.
Mas estará isto certo? Muitas pessoas opor-se-iam à ideia
de que nunca merecemos o benefício retirado da utilização
dos nossos talentos. Em particular, se alguém trabalhou
arduamente para desenvolver um talento ou capacidade que
passa a usar com sucesso, aceitamos frequentemente que
essa pessoa merece uma recompensa pelo esforço. Mas
Rawls afirma que mesmo a capacidade de fazer esse esforço,
ou de lutar conscientemente para alcançar um objectivo, é de
tal modo influenciada pelos factores sociais e naturais
alheios ao controlo individual, que não se pode sequer dizer
que os talentos desenvolvidos merecem uma recompensa.
Talvez Rawls tenha razão neste aspecto, mas não conse-
guirá convencer todas as pessoas com o argumento que
apresentou. Neste caso, alguns críticos não aceitam a descri-
ção da posição original como correcta e recusam igualmente
a afirmação de que Rawls justificou os seus dois princípios
de justiça. Na verdade, aquela justificação depende da esco-
lha dos dois princípios a partir da posição original e de a
posição original ter sido concebida de modo a que o que
quer que seja decidido a partir dela seja justo. Vimos razões
para duvidar de ambas as afirmações. Mas consideremos
agora uma forma diferente de pôr em causa as ideias de
Rawls.

Nozick e padrões

Alguns críticos sugeriram que a principal dificuldade na


teoria de Rawls não é tanto o método que utiliza como os

235
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

resultados a que chega com este. Em particular, alguns críti-


cos consideraram que os dois princípios de justiça de Rawls
são inconsistentes. Mais especificamente, afirmam que não é
possível abraçar consistente e simultaneamente o Princípio
da Liberdade e o Princípio da Diferença. Este tipo de argu-
mento é apresentado de duas formas, diametralmente opos-
tas. Um dos argumentos defende que, se queremos equipa-
rar a liberdade, temos também de tornar igual a propriedade
— pois parece óbvio que os ricos conseguem fazer mais do
que os pobres e, portanto, têm maior liberdade. Assim, o
Princípio da Diferença permite a existência de desigualdades
de liberdade, entrando em contradição com o Princípio da
Liberdade. Contudo, a queixa oposta é expressa mais vezes
e, a estar correcta, deita por terra o projecto de Rawls: dar
liberdade às pessoas implica não podermos impor restrições às
posses individuais de propriedade. Limitar a quantidade de
propriedade que as pessoas podem adquirir e aquilo que
podem fazer com ela é uma forma de restringir a liberdade
individual. Um respeito conveniente da liberdade elimina o
Princípio da Diferença ou, na verdade, qualquer outro prin-
cípio relativo à distribuição. Robert Nozick apresentou a
versão mais importante deste argumento. Esta constitui a
parte central da sua defesa libertária do mercado livre, aflo-
rada na primeira parte do presente capítulo.
O argumento de Nozick contra Rawls tem início com
umas considerações de índole taxinómica. Em primeiro
lugar, distingue entre o que chama teorias de justiça «históri-
cas» e de «estado final». Uma teoria de justiça de estado final
supõe como possível dizer se uma situação é justa ou não
olhando apenas para a sua estrutura. Assim, por exemplo, se
estivermos certos de que a distribuição ilustrada no cortejo
dos rendimentos descrito mais atrás, neste capítulo, é injusta
(ou se sentirmos que é injusta), apenas com base na descrição
fornecida, então poderemos defender uma teoria de estado
final. Mas se pensarmos que é necessário conseguir mais
informação sobre a forma como as pessoas obtiveram os seus

236
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

recursos, ou acerca da base na qual os recursos foram afecta-


dos, então acreditamos numa teoria histórica.
Nozick distingue dois tipos de teoria histórica: padroni-
zada e não padronizada. As teorias padronizadas, como o
próprio nome indica, afirmam que a distribuição deve ser
feita segundo um padrão: «A cada um, segundo...» A cada
um, segundo a sua necessidade; a cada um, segundo a sua
capacidade; a cada um, segundo o seu mérito; a cada um,
segundo o seu estatuto — estes seriam exemplos de teorias
que fazem apelo a um padrão. As teorias não padronizadas
não fazem isto. Na sua essência, são teorias «processuais».
Numa teoria não padronizada, a essência da distribuição
justa é uma questão de as pessoas terem adquirido os bens
que possuem através de processos legítimos. A própria
teoria de Nozick é não padronizada. Quase todas as outras
teorias, segundo este autor afirma, são ou padronizadas ou
de estado final. E todas podem ser derrotadas com um único
exemplo, que mostra as consequências de atribuir o devido
respeito à liberdade.
Nozick inicia a argumentação pedindo-nos que imagine-
mos uma sociedade regulamentada pelo nosso padrão prefe-
rido, seja ele qual for. Suponhamos que pensamos que a
justiça requer que a distribuição seja feita segundo a necessi-
dade. Quanto mais alguém precisa, mais deverá ter. Supo-
nhamos, então, que a propriedade é distribuída pela socie-
dade de modo que as pessoas recebam dinheiro de acordo
com as suas necessidades. Chamemos a isto distribuição de
propriedade D1. Nozick pede-nos em seguida que imagine-
mos que um determinado jogador de basquetebol assinou
um contrato com o seu clube que o faz receber 25 cêntimos
por cada espectador que assiste a um jogo realizado no
estádio da equipa. Além da quantia normal paga à entrada,
cada espectador deve deixar mais 25 cêntimos dentro de
uma caixa especial, ao transpor o portão do estádio. No final
da época, houve um milhão de pessoas que depositaram os
seus 25 cêntimos na caixa. Assim, o jogador arrecadou mais
250 000 euros e deu-se uma nova distribuição de riqueza.

237
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Chamemos a esta nova distribuição D2. Deste exemplo


muito simples, Nozick sente-se autorizado a retirar várias
conclusões importantes.
A primeira é que qualquer padrão — seja ele qual for — é
passível de ser quebrado pelas acções livres dos indivíduos.
Neste caso, o padrão era «a cada um, segundo as suas neces-
sidades», e este foi perturbado, essencialmente, pelas deci-
sões dos indivíduos relativas ao consumo. Um milhão de
pessoas decidiram ir ver um jogador em acção, ao invés de,
digamos, gastarem o dinheiro em chocolate. Parece que, seja
qual for o padrão, algumas acções livres (trocas, ofertas,
apostas, seja o que for) conseguem quebrá-lo.
Mas, e se as pessoas decidirem não se desviar do padrão?
Isto pode ser difícil de conseguir, na prática, mas poderá não
ser demasiado difícil permanecer dentro de certos limites de
variação. Por outro lado, será razoável esperar que todas as
pessoas, ou quase todas, se sintam motivadas para agir desta
forma? Se a sociedade se dividir relativamente ao que consi-
dera ser o padrão correcto, parece que todo o padrão ficará
vulnerável.
A segunda afirmação de Nozick é ainda mais importante.
Se a D1 é justa, e as pessoas se deslocaram voluntariamente
da D1 para a D2, então, afirma ele, certamente que a D2
também será justa. Mas, se reconhecermos isto, teremos
admitido que pode haver distribuições justas que não obede-
cem ao padrão original. Portanto, todas as concepções
padronizadas de justiça ficarão refutadas. Por conseguinte, é
vital que os defensores dos padrões resistam a este passo.
Uma estratégia possível consiste em negar que a deslocação
da D1 para a D2 seja voluntária. Embora fosse tolo afirmar
que os apoiantes do jogador não lhe tinham dado volunta-
riamente o dinheiro, não se pode concluir que eles tenham
compreendido que, ao fazê-lo, estavam a originar a D2. Este
é um aspecto subtil. Embora a D2 tenha sido consequência
de uma acção voluntária, não se pode daí concluir que as
pessoas criaram voluntariamente a D2. Como poderiam

238
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

fazê-lo, se nem sabiam que a D2 seria o resultado dos seus


actos?
Outra forma de resistir ao argumento é dizer que, mesmo
tendo a D2 surgido de uma forma puramente voluntária, não
se pode inferir disso que seja justa. Talvez a riqueza do
jogador o coloque em posição de fazer mal a outras pessoas,
exercendo poder através do mercado, açambarcando bens,
especulando, etc. Afinal, nem todas as pessoas escolheram
pagar para ver o jogador exibir-se e essas pessoas — incluin-
do as que ainda não nasceram — podem ter razões de queixa
legítimas em relação à nova riqueza do desportista.
Todavia, mesmo que esta posição possa ser defendida, o
terceiro argumento de Nozick é o mais poderoso. Os
padrões, afirma o filósofo, só podem ser implementados com
grandes custos para a liberdade. Suponhamos que decidía-
mos manter um padrão. Uma vez que algumas pessoas
desejariam embarcar em trocas do género daquela acabada
de descrever, parece provável que o padrão rapidamente se
quebraria. Que devíamos fazer, então? Nozick afirma que só
temos duas alternativas: ou mantemos o padrão proibindo
determinadas transacções (recordemos o futuro proprietário
do café de Vasili Grossman) ou intervimos constantemente
no mercado para redistribuir a propriedade. De uma forma
ou de outra, precisamos de interferir na vida das pessoas:
impedindo-as de fazer o que desejam, ou investigando as
suas posses de riqueza e rendimento e retirando-lhes algu-
mas, de tempos a tempos. Mas, seja qual for a opção, estare-
mos a colocar sérios entraves à liberdade individual. O devi-
do respeito pela liberdade, então, impede a implementação
forçada de um padrão.
Nozick afirma que estas conclusões se aplicam mesmo
nos casos em que se pretende abolir completamente a pro-
priedade privada. No «comunismo sem dinheiro», seria
ainda assim preciso distribuir os bens pelas pessoas e algu-
mas quereriam realizar trocas entre si. Os comerciantes
hábeis poderiam obter lucro. Além disso, poderiam surgir
pequenas indústrias. Talvez algumas pessoas conseguissem

239
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

fazer máquinas a partir do seu mobiliário ou louça legiti-


mamente adquiridos e produzir bens excedentários para
trocar. Desta forma, mesmo sem dinheiro, apareceriam
desigualdades de posse.
Quais são as implicações do argumento do jogador de
basquetebol para Rawls? No que diz respeito a Nozick, o
Princípio da Diferença representa uma concepção padroni-
zada de justiça. A propriedade deve ser distribuída de forma
a que os mais desfavorecidos fiquem o melhor possível. Mas,
uma vez dado rendimento e riqueza às pessoas segundo o
Princípio da Diferença, algumas gastá-lo-ão, outras obterão
mais, e, assim, mais cedo ou mais tarde o Princípio da Dife-
rença deixará de se aplicar. A propriedade terá de ser redis-
tribuída. E, segundo afirma Nozick, isto interferirá conside-
ravelmente com a liberdade que as pessoas deviam gozar de
viver as suas vidas livres de interferências. Mas recordemos
que, para Rawls, o Princípio da Liberdade tem primazia
sobre o Princípio da Diferença. Portanto, a ser mesmo ver-
dade que sustentar o Princípio da Diferença restringe a
liberdade, os próprios argumentos de Rawls obrigam-no a
abandonar o Princípio da Diferença. Uma consideração
devida pela liberdade, segundo Nozick afirma, é incompatí-
vel com a implementação forçada de qualquer distribuição
padronizada da propriedade.
Rawls, contudo, tem várias respostas possíveis a este
argumento. A primeira consiste em observar que o Princípio
da Liberdade não distribui a liberdade enquanto tal. Ao
invés, trata de fornecer aos indivíduos um pacote extenso do
que ele designa como «liberdades básicas», como sejam a
liberdade de expressão ou o direito de se candidatar a um
cargo público. Não postula que as pessoas devam estar
absolutamente livres de interferência. Portanto, não há qual-
quer inconsistência formal entre os dois princípios de justiça
de Rawls.
Ainda assim, é necessário algo mais convincente do que
isto para anular a força do ataque de Nozick. Mesmo não
existindo qualquer inconsistência formal na teoria de Rawls,

240
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

não deveria ele sentir-se incomodado com a observação de


Nozick de que o Princípio da Diferença, como todas as con-
cepções padronizadas de justiça, só pode ser mantido atra-
vés de uma interferência constante na vida dos indivíduos?
Em resposta, Rawls diria que Nozick pintou um quadro
estranho de como um padrão seria mantido. Em abstracto, é
verdade que para regulamentar a sociedade pelo Princípio
da Diferença é preciso proibir certas transacções e proceder à
redistribuição de propriedade. Mas isto podia ser feito de
uma forma perfeitamente civilizada e não invasiva, através
do tipo de sistema fiscal e social com que estamos tão fami-
liarizados. Os que auferem rendimentos avultados seriam
pesadamente tributados. Os que têm rendimentos baixos
receberiam suplementos ao rendimento. Os impostos são
uma forma de simultaneamente proibir certas transacções e
redistribuir o rendimento — não se pode pagar uma renda
avultada a alguém sem que essa pessoa não tenha de dar
uma parte dela ao estado, para que este a redistribua por
outras pessoas. E por desagradável que seja pagar impostos,
dificilmente se poderá considerar isto uma grave interferên-
cia na vida das pessoas.
Mas Nozick antecipou esta resposta. A tributação, diz ele,
equivale a trabalhos forçados. E como todos reprovamos os
trabalhos forçados, também devíamos reprovar todos a
tributação. Na verdade, nem todas as pessoas reprovam os
trabalhos forçados. Rousseau afirma que considera os traba-
lhos forçados menos graves para a liberdade do que a tribu-
tação. Mas por que profere Nozick uma afirmação que, bem
vistas as coisas, é absurda? Eis a resposta: suponha o leitor
que trabalha quarenta horas por semana e 25 por cento do
seu salário é desviado para os impostos, para redistribuição
pelos pobres. Não há como contornar isto. Se quiser fazer o
trabalho que faz, com o salário que recebe, tem de pagar este
imposto. Deste modo, durante dez horas por semana (25 por
cento do seu tempo) é obrigado a trabalhar para as outras
pessoas. Durante dez horas por semana pouco mais é do que
um escravo. A tributação, então, é escravidão — um roubo

241
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

do seu tempo. Nas palavras de Nozick, como pode alguém


que dê valor à liberdade aceitar tal situação?
Uma vez mais, Rawls tem de responder que isto é um
exagero tremendo. Parece haver um átomo de verdade na
ideia de que a tributação obriga uma pessoa a trabalhar para
outrem, quer ela queira, quer não. Mas chamar-lhe trabalhos
forçados ou escravidão não parece francamente adequado. E
— acrescentam os defensores de Rawls — não devemos
ignorar algo de importância talvez ainda maior. A tributação
com a finalidade da redistribuição também aumenta a liber-
dade, pois aumentando o rendimento dos pobres dá-se-lhes
acesso a um leque de escolhas que de outra forma eles não
teriam. Portanto, subsistem dúvidas sobre o tipo de sistema
que melhor serve a liberdade. Nozick não demonstrou que
os dois princípios de justiça de Rawls são incompatíveis.

Conclusão

De tudo isto, que podemos concluir acerca da justiça


distributiva? A nossa questão inicial era saber se valorizar a
liberdade seria suficiente para determinar a forma como a
propriedade deve ser distribuída. Penso que podemos con-
cluir que não. Todas as teorias consideradas (com excepção
do utilitarismo) foram defendidas com base na liberdade,
entre outros valores, mas nenhum dos argumentos é
extraordinariamente convincente.
Quer isto dizer que a questão da justiça distributiva não
pode ser resolvida através da argumentação, ou, pelo menos,
a este nível de abstracção? Analisaremos algumas razões
para proferir esta afirmação no próximo capítulo, mas seria
precipitado retirar essa conclusão com base no que vimos até
ao momento. Não ter tido êxito até agora não significa que o
êxito seja impossível. Se aceitarmos o enquadramento geral
de Rawls, como muitos filósofos tendem a fazer, teremos
uma forma de reflectir sobre a justiça. Isto não significa que
as conclusões de Rawls tenham de estar certas, pois é possí-

242
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

vel que ele tenha utilizado mal o seu próprio método. Por
exemplo, pode ser que as pessoas racionais na posição origi-
nal escolhessem os princípios utilitaristas de justiça distribu-
tiva ou, mais plausivelmente, o utilitarismo sujeito a um
«mínimo social» — uma versão modificada dos estados-
providência existentes. Mas quer os princípios de justiça de
Rawls estejam ou não correctos, este filósofo prestou um
enorme serviço à filosofia política ao fornecer um meio atra-
vés do qual é possível prosseguir o debate. E Rawls é agora
uma figura de tal modo dominante na filosofia política que
aqueles que recusam a sua metodologia têm de explicar por
que o fazem.

243
6
Individualismo, justiça, feminismo

Toda a história do progresso social tem consistido numa série de


transições devido às quais sucessivos costumes ou instituições de
suposta necessidade primária da existência social passaram à
categoria de injustiças e tiranias universalmente estigmatizadas.
Assim sucedeu com a distinção entre escravos e homens livres,
nobres e servos, patrícios e plebeus; e assim sucederá, e em parte
sucede já, às aristocracias da cor, da raça e do sexo.
(John Stuart Mill, Utilitarismo, 320)

Individualismo e anti-individualismo

Os primeiros capítulos deste livro abordaram uma série


de problemas, relacionados entre si, da filosofia política.
Começámos com a observação de que a existência do poder
político — o direito de uma pessoa mandar noutra — não
deve ser tomada como adquirida. Assim, no primeiro capítu-
lo, vimos como seria a vida se não existisse poder político,
num estado de natureza. No Capítulo 2, prosseguindo a
reflexão, perguntava-se o que justifica um estado, ao passo
que o Capítulo 3 se debruçou sobre a organização do estado
e, em particular, sobre a questão de este dever ter ou não

245
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

uma estrutura democrática. No quarto capítulo reflectiu-se


sobre até que ponto as pessoas devem ter uma esfera de
liberdade individual, imune às interferências por parte do
estado, e, por fim, no Capítulo 5, analisámos a questão da
justiça na distribuição da riqueza.
Em cada um destes capítulos, apresentaram-se e discuti-
ram-se várias respostas. Contudo, alguns leitores observarão
que há um pressuposto particular — e controverso — que
subjaz tanto à selecção dos problemas como às posições aqui
assumidas sobre eles. Esse pressuposto é diversamente
chamado «individualismo», «atomismo» ou «individualismo
liberal», muitas vezes encerrado no consideravelmente obs-
curo lema de que «o indivíduo é anterior à sociedade». Um
bom exemplo de uma posição individualista liberal é o pres-
suposto de Locke de que os seres humanos são naturalmente
livres, iguais e independentes. E é certamente verdade que
cada um dos capítulos anteriores abordou, de uma forma ou
outra, o problema da garantia da liberdade e da igualdade.
Nesta medida, o individualismo liberal parece ter sido pres-
suposto, no presente livro. Mas, poder-se-ia perguntar, que
há de errado nisso?
A objecção mais óbvia que se coloca à perspectiva indivi-
dualista liberal de que o indivíduo está em primeiro lugar
relativamente à sociedade faz apelo ao seu próprio lema —
diametralmente oposto: «a sociedade é anterior ao indiví-
duo». Vimos uma importante versão desta perspectiva no
Capítulo 4: o comunitarismo. Os seres humanos são natu-
ralmente sociais, nascidos no seio dos costumes e tradições
da sua própria sociedade específica. Muito do que é relevan-
te acerca de um indivíduo é consequência da sua educação e
do seu contexto social. Assim, os seres humanos não são, de
forma alguma, naturalmente livres e independentes. E talvez
nem sequer sejam iguais.
Deveremos tentar analisar a questão de o indivíduo ser
anterior ou não à sociedade? E conseguiremos esclarecer
aquilo de que estamos a falar? É óbvio que qualquer indiví-
duo que agora está vivo nasceu no seio de uma sociedade

246
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

qualquer. Assim, nesse sentido, a sociedade é claramente


anterior ao indivíduo. Mas isto não parece colocar uma
questão filosoficamente interessante. O importante será
saber se alguma vez existiu um estado de natureza no qual
os seres humanos não vivessem inseridos numa sociedade.
Esta é uma questão interessante em si, mas as implicações de
qualquer resposta a ela, para a filosofia política, não são
claras. Um debate mais filosófico diz respeito à natureza da
relação moral existente entre o indivíduo e a sociedade.
Contudo, mesmo isto permanece vago e confuso.
Assim, vemos que o individualismo é um conceito consi-
deravelmente escorregadio e, para conseguirmos progredir,
teremos de encontrar uma versão mais articulada da pers-
pectiva do que aquela que analisámos até ao momento. O
que farei, então, será começar por definir uma perspectiva a
que chamarei «individualismo liberal extremo» (sem me
preocupar em saber se esta é uma teoria que alguém já apre-
sentou realmente na sua forma extrema). Ao fazermos isto,
pelo menos veremos o que há para analisar. Um individua-
lista liberal extremo defende quatro perspectivas: uma acerca
da natureza da filosofia política; outra sobre os valores polí-
ticos; outra sobre a natureza da sociedade política ideal; e,
finalmente, outra sobre os fundamentos dos direitos e dos
deveres.
Em primeiro lugar, o individualista extremo pressupõe
que a tarefa da filosofia política é definir princípios de justi-
ça. Estes princípios serão abstractos e gerais, atribuindo
direitos, deveres e responsabilidades aos indivíduos. Isto
não significa que o individualista tem de acreditar em direi-
tos naturais — alguns utilitaristas são individualistas neste
sentido. Ao invés, o individualista pensa que a tarefa da
filosofia política é a formulação de algo semelhante à legisla-
ção ideal: regras que atribuem direitos e deveres.
Em segundo lugar, o individualista liberal acredita que a
liberdade e a igualdade dos indivíduos se revestem de uma
importância absoluta. Deste modo, presume não só que a
tarefa da filosofia política é atribuir direitos, como também

247
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

que o objectivo último desses direitos é proteger a liberdade


e a igualdade dos indivíduos. Esta é uma crença que os
utilitaristas, por exemplo, não partilharão. Mesmo concor-
dando estes com o facto de os filósofos políticos deverem
tentar definir sistemas de direitos, esses direitos, do ponto de
vista utilitarista, destinar-se-iam em última análise à promo-
ção da felicidade, e não da liberdade e da igualdade. É esta
segunda tese que torna um individualista um individualista
liberal; os utilitaristas agora mesmo mencionados são, estri-
tamente falando, individualistas não liberais.
Em terceiro lugar, os individualistas extremos (liberais e
não liberais) acreditam naquilo que poderíamos chamar
prioridade ou primazia da justiça. As sociedades têm de ser
justas, mesmo que isto tenha outro tipo de custos. Pode ser
difícil compreender a importância desta afirmação, mas a
sua relevância tornar-se-á mais clara à medida que este
capítulo for avançando. Adoptando a terminologia de Rawls,
designaremos esta perspectiva como aquela em que a justiça
constitui a «virtude primordial» das instituições sociais e
políticas.
Por último, o quadro traçado pelo individualista supõe
que quaisquer direitos, deveres e responsabilidades que
tenhamos podem ser entendidos como algo originado pelos
actos — talvez mesmo actos voluntários — dos indivíduos.
Isto vê-se muito claramente na análise da obrigação política,
no Capítulo 2. A abordagem que utiliza a figura do contrato
pressupõe que devemos pensar que os nossos deveres de
obediência ao estado são redutíveis a contratos ou promessas
feitos por cada um de nós. Assim, podemos entender a nossa
relação moral com o estado imaginando porquê e como a
teríamos criado, se ela não existisse já.
O individualismo liberal extremo é, então, uma perspecti-
va complexa. É certamente possível subscrever uma parte
dela sem a subscrever na totalidade. Por exemplo, pode
acreditar-se que a filosofia política exige a formulação de
princípios abstractos de justiça para proteger a liberdade e a
igualdade e pensar também que a justiça é relativamente

248
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

pouco importante: talvez o primeiro dever de qualquer


sociedade seja criar um ambiente no qual possam florescer a
arte e a arquitectura, mesmo que isto conduza à injustiça. (A
construção das pirâmides, por exemplo, poderia ter sido
impossível sem o trabalho dos escravos.)
Além disso, é possível rejeitar-se o individualismo liberal
por muitas razões diferentes. Considerem-se duas objecções
à primeira afirmação, bastante diversas entre si. Os críticos
comunitaristas do individualismo sugerem frequentemente
que a tarefa da filosofia política não é fornecer princípios
abstractos de justiça, mas criar uma perspectiva da sociedade
boa. Assim, em vez de princípios abstractos de justiça, a
filosofia política devia fornecer descrições pormenorizadas e
concretas daquilo que faz prosperar a sociedade humana.
Alguns conservadores, por outro lado, supõem que, estrita-
mente falando, é um erro pensar que a filosofia política tem
qualquer tarefa sequer. Edmund Burke (1729-97), na sua obra
Reflexões sobre a Revolução em França (1790) — um ataque à
Revolução Francesa e às ideias políticas que a ela conduzi-
ram — argumentou contra a utilização da razão e da teoria
na política. Burke sublinhou a importância dos hábitos e das
tradições, as quais, embora possam não resistir às críticas no
tribunal da razão, não se pode esperar que sejam aprovadas
num teste que aquele autor considerava completamente
inadequado. O tema foi retomado no século XX por Michael
Oakeshott (1901-90) que, em várias obras, incluindo Rationa-
lism in Politics (1962), afirma que as tradições e instituições
que herdámos encerram mais sabedoria do que nós próprios
— a sabedoria acumulada de gerações — e que é simulta-
neamente errado e prejudicial reformar e reconstruir, a
menos que isso seja feito do modo mais lento e cuidadoso
possível. Segundo esta perspectiva, o individualismo liberal
é apenas mais uma forma de racionalismo pernicioso, com
uma visão errada acerca daquilo que a razão pode alcançar
em política.
Tal como há várias razões para recusar partes da perspec-
tiva individualista liberal, também a própria recusa pode

249
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

assumir várias formas, de força variável. A quarta parte é


essencialmente uma opinião de que todos os direitos e deve-
res podem ser explicados em termos da sua origem em actos
individuais. Uma forma extrema de oposição a isto é fre-
quentemente designada como holismo e pode ser vista nas
obras do filósofo britânico hegeliano F. H. Bradley (1846-
1924). Num artigo intitulado «My Station and its Duties»,
Bradley afirma que a identidade da pessoa é de tal modo
permeada pela sua herança social, cultural e racial que pouco
ou nenhum sentido faz pensar sequer numa pessoa como
um indivíduo: «O mero indivíduo é uma ilusão teórica e a
tentativa de o compreender, na prática, constitui uma priva-
ção e uma mutilação da natureza humana, que redunda na
total esterilidade ou na criação de monstruosidades» (Ethical
Studies, 111). Em vez do individualismo liberal, Bradley
propõe a teoria da «minha classe social e respectivos deve-
res»: uma pessoa nasce numa determinada classe social e
tem os deveres aplicáveis a essa classe. Esta ideia anda de
par com uma visão específica do estado. «O estado não foi
montado, mas vive; não é uma pilha de coisas nem uma
máquina; não é uma mera extravagância quando o poeta fala
da alma da nação» (Ethical Studies, 120).
O estado, segundo esta perspectiva, é um organismo —
um todo vivo — e o indivíduo é um órgão: «sempre a traba-
lhar para o todo» (Ethical Studies, 113). A metáfora do «corpo
político» é levada muito a sério. A classe e os deveres de
cada um são tão fixos como os dos seus próprios órgãos.
Dar, digamos, ao coração a liberdade de agir como lhe
aprouvesse — se tal fosse concebível — seria desastroso. De
modo semelhante, os nossos deveres são definidos pela
relação que temos com a sociedade ou o estado como um
todo. São-nos dados, e não criados pelos nossos próprios
actos.
Seria um erro, pensar que, se não somos individualistas,
teremos de ser holistas. O individualismo liberal extremo
defende que todos os direitos e deveres podem ser explica-
dos em termos da sua origem em acções individuais, ao

250
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

passo que o holismo defende que nenhum deles pode ser


assim explicado. Mas há uma possibilidade intermédia — na
verdade, todo um leque de possibilidades. Talvez alguns
direitos e deveres sociais possam ser explicados em termos
da sua origem em acções individuais, mas outros não. Efec-
tivamente, tanto os individualistas como os holistas, na
prática, aceitam uma posição intermédia. Os holistas como
Bradley reconhecem que podemos criar obrigações através
de acções voluntárias, como seja a celebração de promessas
ou contratos. Os individualistas como Locke reconhecem que
temos alguns deveres morais, como o dever de não fazer mal
a outrem, quer tenhamos ou não criado nós próprios esses
deveres. O debate real prende-se com a quantidade de obriga-
ções políticas e morais que podem ser explicadas em termos
da sua origem na acção individual.
Parece então que, ao debatermos a questão da verdade do
individualismo liberal, somos confrontados com uma gama
estonteante de problemas. Pouco se ganha ao tentar perceber
se o indivíduo é anterior ou não à sociedade: para isso, é
necessário analisar atenta e pormenorizadamente uma quan-
tidade tremenda de afirmações e objecções. Qual a melhor
forma de abordar esta questão muitíssimo complexa? Afir-
mei atrás que se pressupôs algo semelhante ao individualis-
mo liberal na selecção de tópicos e nas posições assumidas
acerca deles neste livro. Não aceito a afirmação de que se
tomou aqui como adquirido o individualismo liberal extre-
mo, mas é certo que os pressupostos que subjazem a esta
análise estão mais próximos do individualismo do que do
anti-individualismo. Do que atrás ficou dito, torna-se claro
que há muitas alternativas ao individualismo liberal. O que
pode não ser tão claro é por que é que alguém poderia que-
rer adoptar qualquer uma delas. O que é que se considera,
precisamente, que está errado no individualismo liberal?
Todas as objecções mais importantes se resumem a uma
única: o individualismo liberal revela uma imagem falsa da natu-
reza humana e das relações sociais e, com ela, uma visão enganado-
ra e prejudicial daquilo que é possível os seres humanos alcançarem

251
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

politicamente. Os pormenores desta objecção variam de opo-


nente para oponente — os conservadores dirão que o indivi-
dualismo liberal oferece muito mais do que é exequível; os
radicais, muito menos do que é desejável. Mas dificilmente
poderia haver uma objecção mais contundente a uma filoso-
fia política do que afirmar que ela revela uma visão engana-
dora e prejudicial. Portanto, é fundamental ver se a objecção
está bem fundamentada. E isto só pode ser feito em porme-
nor.
Na filosofia política contemporânea, o debate sobre os
limites do individualismo liberal decorre em muitas frentes:
conservadores, comunitaristas, socialistas e ambientalistas,
todos escolhem elementos daquilo que designei como indi-
vidualismo liberal extremo como objectos de ataque. Mas, de
todos, o mais vivo e reflectido debate decorre actualmente
no seio da filosofia política feminista. Consideraremos em
seguida este debate, tanto pelo seu interesse intrínseco e
importância do tema, como por se tratar de um estudo de
caso acerca dos «limites do individualismo liberal». Começa-
rei por analisar os argumentos feministas que operam num
enquadramento individualista liberal e depois reflectirei
sobre se esse enquadramento é adequado ou, como sugerem
as críticas feministas do liberalismo, precisa de ser drastica-
mente alterado, tanto na teoria como na prática. Isto levar-
nos-á de novo à questão da adequação (ou não) do indivi-
dualismo liberal.

Direitos para as mulheres

Talvez a primeira exigência feminista tenha sido a da


atribuição de direitos iguais às mulheres — um exemplo
acabado de programa individualista liberal! E a exigência
não surpreende, quando vemos a forma tão desigual como
as mulheres foram tratadas. Como afirmou a filósofa e femi-
nista francesa Simone de Beauvoir (1908-86), em 1949,

252
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

não houve área em que a mulher tivesse tido realmente qualquer opor-
tunidade. É por esta razão que muitas mulheres exigem actualmente
um novo estatuto; e […] a sua exigência não é a de serem exaltadas na
sua feminilidade […]; desejam que lhes sejam finalmente concedidos
os direitos abstractos e as possibilidades concretas sem os quais a liber-
dade não passa de uma farsa. (O Segundo Sexo, 149)

A subordinação histórica das mulheres é verdadeiramen-


te notável. Vimos que o voto foi negado às mulheres britâni-
cas até ao início do século XX. Até às várias Leis da Proprie-
dade das Mulheres Casadas dos finais do século XIX, com o
casamento, a propriedade de uma mulher tornava-se do
marido. Antes da Lei do Salário Igual de 1970, era prática
corrente na Grã-Bretanha a oferta de emprego com duas
tabelas salariais: uma, mais elevada, para os homens, e outra
para as mulheres. Isto tornou-se ilegal, mas é espantoso ver
como a mudança é recente.
As mulheres deram certamente largos passos em direcção
à igualdade de direitos. A discriminação aberta e explícita no
emprego é agora muito mais rara do que há uma década e há
razões para crer que a situação continuará a melhorar. Então,
se as mulheres têm, ou terão em breve, direitos iguais, que
mais poderá querer uma feminista?
Não é muito difícil perceber que uma política de direitos
iguais, embora muitíssimo desejável em si, não basta para
satisfazer as exigências de igualdade. Mesmo que as mulhe-
res sofram agora raramente uma discriminação aberta e
explícita no emprego, isto não implica a inexistência de
formas mais subtis de discriminação. É ilegal ter tabelas
salariais diferentes para homens e mulheres, mas as mulhe-
res ainda tendem a concentrar-se junto ao fundo da escala.
Segundo um relatório recente, na Grã-Bretanha, em 1970,
antes da Lei do Salário Igual, as mulheres ganhavam, em
média, 63 por cento da remuneração masculina por hora. Em
1993, a taxa aumentara significativamente, mas ainda se
situava nos 79 por cento. Além disso, embora seja ilegal
discriminar nas práticas laborais, o estado não tem os recur-
sos necessários à supervisão de todos os quadros profissio-

253
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

nais. Por outras palavras, como observámos num capítulo


anterior, as leis podem estar isentas de falhas sem que a
sociedade esteja isenta dessas falhas. Tornar a discriminação
ilegal não é forma de assegurar que ela nunca acontecerá,
nem sequer que não acontecerá de um modo sistemático.
Todavia, mesmo que conseguíssemos eliminar a discrimi-
nação deliberada, poderia continuar a ser problemático
aplicar uma política de direitos iguais. Como Marx afirmou,
um direito à igualdade num certo aspecto pode conduzir à
desigualdade noutro. Rendimentos iguais não asseguram
níveis de vida iguais — se uma pessoa tem um dependente
idoso e outra não, se é deficiente e a outra não, etc. Assim, se
as necessidades de homens e mulheres forem significativa-
mente distintas, uma política de direitos iguais não será
forma de alcançar a igualdade. Existe, efectivamente, uma
diferença relevante? Neste ponto, as feministas sentem-se
muitas vezes perante um dilema. Admitir que as necessida-
des das mulheres são diferentes das dos homens e, além
disso, afirmar que tais necessidades dão origem a reivindica-
ções específicas, é por vezes visto pelos homens como uma
súplica especial ou um reconhecimento de fraqueza: uma
admissão tácita de inferioridade. Assim, algumas feministas
sentiram-se tentadas a negar que as mulheres precisem de
direitos distintivos próprios.
Contudo, não há razão para que uma aceitação de que
existem diferenças entre homens e mulheres deva implicar
que as mulheres são mais fracas — isto é apenas a maneira
como muitas vezes interpretamos tal posição. Os homens
também têm necessidades especiais: por exemplo, geralmen-
te, um homem precisa de uma dose diária de calorias mais
elevada do que uma mulher. Mas nunca se pensou nisto
como sinal da inferioridade dos homens em relação às
mulheres. Assim, a aceitação de que um grupo tem necessi-
dades especiais não indica, por si só, que esse grupo é mais
fraco. E recusar admitir que as mulheres têm necessidades
especiais — especialmente as relacionadas com a sua nature-
za biológica — pode ser um modo de lhes assegurar uma

254
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

posição inferior. Por exemplo, não se pode ignorar que são


as mulheres, e não os homens, que dão à luz. Este facto dá
origem a necessidades especiais e, com elas, à necessidade de
direitos especiais.
Todavia, este tipo de argumento precisa de ser manusea-
do com muito cuidado. Quanto do que é considerado distin-
tivo nas mulheres se fica realmente a dever à sua natureza
biológica? Uma forma de as feministas sublinharem este
problema é através da distinção entre «sexo» e «género». O
sexo é identificado como uma categoria puramente biológica;
o género é uma categoria social ou «socialmente construída».
Assim, observa-se muitas vezes que os papéis associados ao
género diferem bastante arbitrariamente de sociedade para
sociedade. Para dar um exemplo aparentemente trivial,
nalgumas sociedades só os homens apascentam cabras e
noutras esta tarefa cabe exclusivamente às mulheres. Não
existe claramente qualquer razão biológica para isto ser
assim — a diferença é obviamente uma questão de costume,
uma construção social. E o que foi socialmente construído
pode ser reconstruído de outro modo. Os papéis dos géneros
parecem abertos a avaliação e mudança, pelo menos em
princípio.
Portanto, o reconhecimento de que há diferenças biológi-
cas entre os sexos não significa que tenhamos de aceitar
todas as diferenças tradicionais nos papéis dos géneros. Mas
as nossas imaginações são frequentemente muito limitadas.
Em quase todas as sociedades, foi considerado como um
facto praticamente indesmentível as mulheres serem as
principais prestadoras de cuidados às crianças, pelo menos
durante os seus primeiros meses de vida. Em resposta a esta
diferença, que cria diferenças de necessidade, as sociedades
modernas criaram nas últimas décadas sistemas de licença
de maternidade como forma de tentar tratar as mulheres e os
homens como iguais. Mas a licença de maternidade não
basta para garantir às mulheres igualdade no local de traba-
lho. Por generosa que seja a licença, a carreira da mãe será
quase certamente afectada pelo nascimento de um filho de

255
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

uma forma em que a do pai raramente é. A licença de mater-


nidade generosa pode até apresentar-se como um obstáculo
à progressão da mulher na carreira, particularmente se nos
lembrarmos de que a idade fértil da mulher coincide com a
fase da sua vida em que ela estará provavelmente a construir
a carreira, se quiser ter uma boa possibilidade de alcançar
um nível mais elevado. Como afirma a filósofa política femi-
nista Susan Moller Okin, na raiz do problema

estão duas suposições comummente avançadas mas inconsistentes: a


de que as mulheres são as principais responsáveis pela criação dos
filhos; e que os elementos sérios e empenhados da força de trabalho
[…] não têm a principal responsabilidade, ou mesmo a responsabili-
dade partilhada, da criação dos filhos. A velha suposição do local de
trabalho, ainda implícita, é que os trabalhadores têm esposas em casa.
(Justice, Gender, and the Family, 5)

Assim, algumas feministas procuraram pôr em causa os


pressupostos sobre os quais assenta a política da licença de
maternidade. Por que se assume que a mãe será a pessoa que
olhará pela criança nos primeiros meses de vida? Já não há
qualquer necessidade biológica de que assim seja. Por que
não assume o pai essa responsabilidade, se isso for o mais
apropriado nas circunstâncias? Propôs-se, então, que a licen-
ça de maternidade fosse substituída por uma «licença fami-
liar» que pudesse ser gozada por qualquer dos progenitores
(ou por ambos, durante menos tempo). Isto parece uma
proposta libertadora. Tornar-se-á uma questão de escolha a
mãe ou o pai assumirem um papel que tradicionalmente
atribuído à mãe. Claro que nem todos ficarão satisfeitos com
esta sugestão. Algumas mulheres sentirão que a aparente
«escolha» oferecida mais não é do que outra via de opressão:
serem obrigadas a regressar ao trabalho quando prefeririam
passar mais tempo com o seu bebé recém-nascido. Ainda
assim, a questão geral subsiste. A política social pode ser
usada para permitir que os papéis associados aos géneros
sejam reconstruídos quando são considerados injustos.

256
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Este exemplo ajuda também a ilustrar as relações existen-


tes entre duas áreas de particular interesse para as feminis-
tas: o local de trabalho e a família. Durante grande parte da
história, o casamento, para a mulher, foi visto como um
refúgio do trabalho insatisfatório e desqualificado. Muitas
vezes, contudo, não era grande melhoria e, mesmo na
melhor das hipóteses, perpetuava o papel social subserviente
da mulher. Não obstante, a tentativa — por escolha ou
necessidade económica — de conjugar uma carreira com
uma família conduziu muitas mulheres a esgotantes «dias
duplos» de trabalho e tarefas domésticas que, por sua vez,
abalaram as suas perspectivas de carreira. Poucos homens se
mostraram dispostos a partilhar as tarefas domésticas com as
suas mulheres trabalhadoras. Afirmou-se que: «os maridos
de mulheres com empregos a tempo inteiro registaram em
média mais dois minutos diários de trabalho doméstico do
que os maridos de mulheres domésticas, tempo suplementar
que mal chega para cozer um ovo mal passado» (Barbara R.
Bergmann, citada em Justice, Gender, and the Family, 153).
Quer desempenhe um trabalho remunerado quer não, a
mulher raramente tem o poder, o estatuto e a autonomia
económica usufruídos pelo marido. Isto, em parte, explica
por que é que mesmo uma mulher empregada normalmente
tem a principal responsabilidade da lida doméstica. Estas
desigualdades têm de ser consideradas tanto em si mesmas
como enquanto meio de permitir a igualdade às mulheres
nos empregos. Uma política como a licença familiar é um
pequeno passo em direcção a este objectivo.
Mas que mais se pode fazer? Uma outra sugestão é as
mulheres beneficiarem de programas de discriminação
positiva ou «acção afirmativa»: políticas activas de favoreci-
mento das carreiras de um grupo em desvantagem — neste
caso, as mulheres.

257
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Discriminação positiva

A discriminação positiva assume muitas formas. Pode


simplesmente passar por encorajar as pessoas de certos
meios a empregar-se ou a procurar uma promoção através
de uma política de recrutamento activo. Mas o mais frequen-
te é a discriminação positiva implicar uma contratação «pre-
ferencial» ou políticas de admissão. Uma vez mais, há for-
mas diferentes de fazer isto. Imaginemos o caso de uma
universidade que deseja aceitar mais alunas. Poderá ter uma
quota estrita de vagas que têm de ser preenchidas por jovens
mulheres. Ou poderá não ter quota e apreciar mais favora-
velmente as candidaturas femininas. Ou poderá simples-
mente usar o sexo como forma de desempate entre candida-
tos igualmente aptos. E haverá sem dúvida outras políticas.
Em termos gerais, no entanto, as políticas de discriminação
positiva parecem compatíveis com o individualismo liberal.
Há modos de atribuir direitos e deveres com o objectivo final
de alcançar uma forma de liberdade de escolha ocupacional
e a igualdade.
Apesar disso, muitas pessoas, incluindo algumas que se
autodenominam «liberais», reagem muito negativamente aos
programas de discriminação positiva. Como objecção, afir-
ma-se frequentemente que a política se auto-contradiz. Afi-
nal de contas, espera-se que os programas de discriminação
positiva constituam um remédio para a discriminação, mas o
que estes parecem fazer é discriminar por razões diferentes.
Embora seja comum, esta objecção é muito superficial. Qual-
quer política tem de discriminar por qualquer razão. As
admissões à universidade discriminam necessariamente
entre os mais inteligentes e os menos inteligentes, por exem-
plo. Não podemos dizer que toda a discriminação é injusta.
A questão real é saber se a discriminação praticada nos
programas de discriminação positiva é ou não aceitável.
Por que não deveria ser? A discriminação duvidosa pode-
ria ser definida como «escolher com base em razões não
relevantes». E, como foi dito, o sexo e a raça nunca são

258
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

razões relevantes de escolha. Talvez seja errado tratar as


pessoas como membros de grupos, e não como indivíduos.
O facto de alguém ser negro ou branco e homem ou mulher
devia ser irrelevante para o tratamento que recebe, em espe-
cial quando se trata da afectação de recursos escassos. O
argumento contra a discriminação racial ou sexual pode ser
transformado num argumento contra a discriminação positi-
va. Todas as pessoas deviam ser tratadas segundo os seus
méritos individuais. Agir de outro modo é injusto. Além
disso, pode ainda tornar as coisas piores. Qual é a justiça,
por exemplo, de ajudar as mulheres da classe média a
ingressar em medicina se elas não têm as qualificações de
determinados homens, talvez de meios menos favorecidos,
que ficarão de fora?
Outra objecção que se pode colocar à discriminação posi-
tiva é ela poder ser contraproducente. Aqueles que devem o
seu lugar a uma política de discriminação positiva podem
ser estigmatizados por isso. Ainda pior, os elementos de
grupos desfavorecidos que, de qualquer forma, teriam con-
seguido um emprego ou uma vaga serão tratados como
beneficiários do programa e, assim, serão também estigmati-
zados. Estas pessoas não conseguem ser vencedoras. Nesta
óptica, a discriminação positiva é paternalista e degradante
e, no longo prazo, pode fazer mais mal do que bem.
Estas críticas são de peso. Pode a discriminação positiva
ser salva? São possíveis várias defesas, nem todas com o
mesmo poder. Um argumento é que a discriminação positiva
é pouco mais do que uma extensão da ideia de igualdade de
oportunidade. Em qualquer sistema meritocrático, os postos
devem ser ocupados pelos mais aptos. Não obstante, esco-
lher com base nas qualificações formais discriminará siste-
maticamente a favor daqueles que frequentaram melhores
escolas, ou tiveram ambientes familiares mais favoráveis, ou
mais apoio e incentivo em casa. A discriminação positiva é
uma forma de compensar as qualificações exageradas dos
mais favorecidos.

259
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Se os mais favorecidos tivessem simplesmente melhor


aspecto nos formulários de candidatura do que na vida real,
este argumento seria convincente. Mas muitas vezes aqueles
que conseguiram qualificações têm uma formação a par do
certificado e, portanto, estão em melhor posição para faze-
rem uso das oportunidades que surjam ou para desempe-
nharem melhor um trabalho. Pode dar-se o caso de a justiça
exigir a igualdade de oportunidades na aquisição de uma
competência — esta é a opinião de Rawls. Mas isto parece
requerer uma intervenção ao nível do ensino de recuperação,
e não uma discriminação positiva posterior.
Um segundo argumento defende a discriminação positiva
com base na utilidade social. Afirma-se que as pessoas se
sentem mais à vontade a lidar com profissionais da sua
própria raça e sexo. Ainda mais importante, os bairros habi-
tados por negros pobres são mal servidos de médicos, den-
tistas, advogados e outros profissionais. A sociedade precisa
de médicos e advogados negros e as faculdades de medicina
e direito têm o dever especial de formar pessoas provenien-
tes de todos os meios sociais para o desempenho destas
tarefas. Uma vez mais, este é um argumento que se deve
manusear com cuidado. À parte o facto de o argumento ter
um âmbito muito estrito, será realmente verdade que as
pessoas têm uma preferência por profissionais da sua pró-
pria raça e do seu sexo? E devemos simplesmente aceitar
estas preferências sem nos perguntarmos se as pessoas as
têm? Além disso, o que nos garante que os médicos e advo-
gados negros escolherão trabalhar nos bairros onde são
necessários, se puderem ganhar mais noutros locais?
Um terceiro argumento baseia-se na ideia da reparação ou
compensação de injustiças praticadas no passado. Isto é
particularmente evidente no caso dos americanos negros
cuja desvantagem actual é, pelo menos parcialmente, heran-
ça do esclavagismo. A discriminação positiva é uma política
inserida num pacote que tem como objectivo tentar compen-
sar estas injustiças do passado. Contra isto, afirma-se que os
brancos actuais não têm escravos e, portanto, não agiram

260
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

injustamente para com os negros. Mas isto passa ao lado do


problema. Os brancos beneficiam com as injustiças do pas-
sado, mesmo não sendo eles a sua causa. E os homens bene-
ficiam com uma cultura na qual os homens são tratados mais
favoravelmente do que as mulheres. Por isso há razão para
se tentar uma reparação.
Cada um destes argumentos possui alguma força, mas
ainda não terminámos. Um quarto argumento aponta o
poder simbólico de uma política de discriminação positiva. É
uma forma de simbolizar a ideia de que os negros e as
mulheres são bem-vindos nas universidades e nos empregos
e que a sua anterior exclusão é causa de pesar. Pelo menos
nos próximos tempos, deve tornar-se-lhes as coisas mais
fáceis, se quisermos que dêem o seu contributo à sociedade.
Isto vai de par com um quinto argumento: é essencial que-
brar definitivamente o molde graças ao qual se fecharam
certas oportunidades às mulheres e às minorias. A discrimi-
nação positiva fornece modelos de papéis, abrindo os olhos a
uma nova geração para o que lhes é possível fazer.
A grande vantagem destes dois argumentos é permitir-
nos reconhecer que um mundo que inclua a discriminação
positiva não é ideal. Como política de longo prazo, a discri-
minação positiva é indesejável e, em certos aspectos, injusta.
As pessoas devem ser tratadas de acordo com os seus méri-
tos individuais, como defendem os críticos da discriminação
positiva. Mas sem uma política temporária de discriminação
positiva será muito mais difícil criar um mundo no qual esta
seja desnecessária: um mundo no qual as pessoas sejam
tratadas segundo os seus méritos individuais. Por conse-
guinte, devemos entender a discriminação positiva como
uma política de transição em direcção a um mundo mais
justo.

261
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Transcender o individualismo liberal?

Se a discriminação positiva, juntamente com uma política


social que vise reconstruir os papéis dos géneros, nos apro-
ximar de um mundo mais justo, deverão porventura as
filósofas políticas feministas restringir os seus esforços à
identificação dos melhores programas de discriminação
positiva e políticas sociais? Muitas feministas colocam sérias
objecções a esta proposta e a razão de tal é claramente
expressa por Seyla Benhabib:

para compreender e combater a opressão das mulheres já não basta


exigir apenas a sua emancipação política e económica: é igualmente
necessário questionar as relações psicossexuais que existem nas esferas
doméstica e privada em que se desenrolam as vidas femininas e atra-
vés das quais se reproduz a identidade do género. («The Generalized
and the Concrete Other», 95)

O argumento geral pode ser ilustrado através da observa-


ção de que a acção afirmativa e a reforma social ocorrem na
sociedade actual e, portanto, concentrar os nossos esforços
em tais políticas, em nome da justiça, indicia uma aceitação
geral tanto da sociedade na sua forma presente, eminente-
mente liberal e capitalista, como da filosofia política na sua
forma tradicional. Contrastando com isto, encontramos duas
posições feministas particularmente surpreendentes: as
feministas deveriam rejeitar o capitalismo; as feministas
deveriam deixar de utilizar a linguagem da justiça. A segun-
da afirmação remete-nos directamente para a crítica do
individualismo liberal. Mas vejamos primeiro por que razão
algumas feministas acreditam que o capitalismo deveria ser
rejeitado.
Existe, claro está, uma razão óbvia: algumas feministas
são socialistas, e os socialistas rejeitam o capitalismo. Mas
isto não nos adianta uma razão distintamente feminista para
a sua rejeição. O passo seguinte é afirmar que existe um elo
intrínseco entre capitalismo e «patriarcado», ou dominação

262
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

masculina. Esta afirmação chega-nos em duas (ou três) ver-


sões.
Um argumento é que as estruturas económicas capitalis-
tas dão necessariamente origem a um sistema de dominação
masculina — por exemplo, as relações laborais capitalistas
reproduzem constantemente as relações opressivas existen-
tes no seio da família. Assim, o capitalismo tem de ser der-
rubado para ser possível fazer cessar a dominação masculi-
na. A reforma levada a cabo no interior de um sistema capi-
talista é incapaz de acabar com a dominação masculina
sistemática.
Uma segunda versão defende que a causalidade opera no
sentido inverso: a dominação masculina cria o capitalismo. A
igualização dos papéis dos géneros criaria, por conseguinte,
uma nova forma de sociedade. Por exemplo, em 1972, Sheila
Rowbotham escreveu:

É apenas quando as mulheres se começam a organizar em grande


número que se tornam uma força política e começam a aproximar-se
da possibilidade de uma sociedade verdadeiramente democrática, na
qual cada ser humano pode ser corajoso, responsável, reflectido e dili-
gente na luta para viver livre e altruistamente. Uma tal democracia
seria comunismo e encontra-se para lá da nossa imaginação actual.
(Mulheres, Resistência e Revolução, 12-3)

Por fim, conjugando as duas perspectivas, uma terceira


afirmação é que o capitalismo e o patriarcado se relacionam
reciprocamente. Não é possível abolir um sem abolir o outro
e, portanto, o sistema terá se ser alterado na sua totalidade.
Seria deveras surpreendente não encontrar qualquer liga-
ção entre a natureza do sistema económico de uma socieda-
de e as suas outras instituições e relações sociais. Por exem-
plo, é frequentemente observado que o poder num agregado
familiar tende a ser detido pelo elemento que ganha mais:
seja ele o marido/pai, a mulher/mãe ou, excepcionalmente,
o filho ou filha adolescentes. Assim, se uma economia local,
por exemplo, originar desemprego em larga escala entre os
adultos do sexo masculino e criar oportunidades para jovens

263
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

mulheres, isso terá forçosamente importantes consequências


sociais, na medida em que as mulheres passarão a ser relati-
vamente ricas e poderosas. (Na verdade, alguns observado-
res sugerem que, em tais casos, as filhas começam a eviden-
ciar traços comportamentais violentos e conflituosos ante-
riormente associados aos seus pais!) Na direcção oposta,
vemos também que as alterações ideológicas relativas à
responsabilidade no ambiente doméstico estão a conduzir a
mudanças nos tipos de emprego que as pessoas estão dispos-
tas a aceitar: talvez os pais de crianças muito pequenas este-
jam agora menos dispostos a aceitar empregos que requei-
ram longos períodos de ausência de casa. Mas tais observa-
ções avulsas não bastam para demonstrar a existência de
ligações enraizadas e sistemáticas entre as estruturas econó-
micas capitalistas e os padrões de dominação masculina.
Permanece por esclarecer até que ponto esta última pode ser
alterada através de reformas pontuais, em vez de uma revo-
lução completa. Consequentemente, políticas como a licença
familiar e a discriminação positiva podem percorrer um
longo caminho da via da igualização das posições dos sexos.
Mas também podem não o fazer. Ainda não sabemos se as
estruturas económicas capitalistas são compatíveis com a
igualdade sexual.
Voltemos então novamente a nossa atenção para o «indi-
vidualismo liberal extremo» que defini mais atrás, neste
capítulo. Este conjuga quatro perspectivas: a de que a filoso-
fia política é uma questão de definir princípios abstractos de
direito e justiça; a de que tais direitos deveriam proteger a
liberdade e a igualdade individuais; a de que a justiça é a
virtude primordial das instituições sociais e políticas; e a de
que se pode considerar que os direitos e deveres sociais têm
origem nas acções de indivíduos. As críticas feministas
questionaram estas quatro perspectivas e, analisando a
afirmação de que as feministas deveriam deixar de utilizar a
linguagem da justiça, é possível ver por que o fizeram.
A razão geral para tal afirmação é fácil de identificar: a
justiça, afirma-se, é um conceito contaminado pelo género.

264
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Imaginar que a filosofia política nos pede que definamos


princípios de justiça é já aceitar uma perspectiva masculina.
Aparentemente, esta acusação é espantosa: afinal, espera-se
que a justiça determine o tratamento igual de todas as pes-
soas. Por que devemos dispensar atenção a esta afirmação?
Um tipo de argumento que lhe atribuiria força é aquele que
se encontra no trabalho de Nancy Chodorow. Em The Repro-
duction of Mothering (1978), Chodorow declara que as mulhe-
res procuram um «relacionamento» com os outros, ao passo
que os homens valorizam a «separação», tendo frequente-
mente dificuldade em estabelecer relações profundas e pes-
soais com outros, mesmo sendo elementos das suas próprias
famílias. As mulheres têm muito mais êxito nesta área, mas a
expensas do seu próprio desenvolvimento. Ao terem em
atenção, e satisfazerem, as necessidades dos outros, as
mulheres negligenciam, geralmente, as suas próprias pes-
soas. É verdade que estas observações parecem verdadeiras,
mas o que pode explicar esta diferença?
Na opinião de Chodorow, devemos apontar a «criação da
criança apenas pela mãe» como causa destes padrões com-
portamentais. Em poucas palavras, afirma-se que os primei-
ros anos de vida são os mais importantes, do ponto de vista
da formação e desenvolvimento da personalidade indivi-
dual. Geralmente, durante este tempo, a criança é criada
apenas pela mãe (ou, se não, então por outra mulher ou
mulheres), enquanto o pai é uma figura distante e eminen-
temente ausente. Ao identificar o seu sexo como masculino,
o menino tem de separar-se da mãe, enquanto, para a meni-
na, a identificação e o relacionamento com a mãe são cru-
ciais. Neste processo, a separação e a masculinidade conver-
gem, assim como o relacionamento e a feminilidade. Estas
características são então reproduzidas através das gerações
subsequentes.
Este argumento fornece a primeira premissa do argumen-
to feminista «anti-justiça»: os homens, muito mais do que as
mulheres, valorizam a abstracção e a separação. Uma segun-
da premissa, vital, é que a justiça é uma ética de abstracção e

265
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

separação, do que parece poder concluir-se que os homens


valorizam a justiça muito mais do que as mulheres. Daí que,
pelo menos neste sentido, a justiça seja um conceito tenden-
cioso. O que se afirma não é tanto que os chamados resulta-
dos justos favorecem os homens — e, portanto, são injustos
—, mas que sentir uma preocupação suprema com a justiça é
adoptar uma perspectiva masculina.
Os estudos empíricos apresentados por Carol Gilligan na
sua obra Teoria Psicológica e Desenvolvimento da Mulher (1982)
parecem confirmar esta conclusão. Na esteira de outros
pensadores, Gilligan supõe que há essencialmente dois tipos
de abordagem das questões morais: a abordagem da «justi-
ça» e a abordagem do «afecto». A abordagem da justiça
prende-se com a busca de regras ou princípios abstractos que
poderão ser utilizados para resolver dificuldades morais
específicas. Em contraste, a abordagem do afecto requer que
se considerem as particularidades da situação — quem sairá
magoado, quem beneficiará — e, assim, que se tome uma
decisão numa base muito mais concreta, caso a caso. Muitos
teóricos afirmam que, em grande medida, os homens ten-
dem a adoptar a perspectiva da justiça e dos direitos, e as
mulheres a perspectiva do afecto. Contudo, pressupõe-se
muitas vezes que a perspectiva masculina da justiça e dos
direitos é uma forma «mais elevada» ou «mais amadureci-
da» de raciocínio moral. A moral feminina do afecto é consi-
derada um desvio, um sinal de desenvolvimento moral
deficiente.
O projecto imediato de Gilligan é mostrar que a perspec-
tiva do afecto não é imatura nem pouco desenvolvida, mas
tão válida como forma de abordar as questões morais como a
perspectiva dos direitos (efectivamente, este chegou a consi-
derar-se como prova de que o raciocínio moral feminino é
superior). A filósofa ilustra o seu argumento com relatórios
de entrevistas realizadas com Jake e Amy, duas crianças
inteligentes e de expressão fácil, com onze anos. Conta-se a
ambos uma história em que Heinz tem de decidir se roubará
um medicamento que não consegue comprar mas é essencial

266
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

para salvar a vida da mulher. Deve Heinz roubar o medica-


mento? Jake diz que sim e defende a sua opinião nos seguin-
tes termos:

Em primeiro lugar, a vida humana vale mais do que o dinheiro, e se o


farmacêutico ganhar só mil euros vai continuar a viver, mas se Heinz
não roubar o medicamento, a sua mulher vai morrer. (Por que é que a
vida vale mais do que o dinheiro?) Porque o farmacêutico pode ganhar
mil euros depois, de pessoas ricas com cancro, mas Heinz não pode ter
a mulher de volta. (Por que não?) Porque as pessoas são todas diferen-
tes e, por isso, não se pode fazer voltar a mulher do Heinz. (Teoria Psi-
cológica e Desenvolvimento da Mulher, 26)

Amy, por outro lado, resiste a dar uma resposta directa à


questão:

Bem, acho que não devia roubar. Acho que podia haver outra maneira
que não fosse roubar o medicamento. Talvez ele pudesse pedir dinhei-
ro emprestado a alguém, ou pedir um empréstimo num banco, ou
assim, mas não devia mesmo roubar o remédio... mas a mulher tam-
bém não devia morrer.
Se ele roubasse o medicamento, podia salvar a mulher, mas depois
podia ir para a prisão e então a mulher podia ficar outra vez mais
doente e ele já não poderia comprar mais remédio e isso podia não ser
bom. Por isso, eles deviam conversar sobre o assunto e descobrir outra
maneira de conseguir o dinheiro. (Teoria Psicológica e Desenvolvimento
da Mulher, 28)

Gilligan observa que, enquanto Amy vê uma «narrativa


de relações que se estendem no tempo», Jake vê a questão
como um «problema matemático com seres humanos» (Teo-
ria Psicológica e Desenvolvimento da Mulher, 28). Isto é nota-
velmente confirmado na resposta a uma questão posterior:
quando a nossa responsabilidade e a responsabilidade dos
outros entram em conflito, como devemos escolher? Amy
debate-se com as várias formas que as situações podem
assumir, ao passo que Jake responde: «Calcula-se mais ou
menos um quarto para os outros e três quartos para nós».
Se se aceitar que Jake e Amy representam as perspectivas
caracteristicamente masculina e feminina (e, claro está, pou-

267
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

co se pode concluir de um único exemplo), então há razões


empíricas para pensar que os homens valorizam mais as
noções abstractas e gerais de justiça do que as mulheres. A
obra de Chodorow fornece uma explicação possível da razão
disto. Mas o argumento fica muito aquém de provar o que se
pretende. O trabalho de Chodorow é muito especulativo.
Muitas mulheres valorizam a justiça e muitos teorizadores
do sexo masculino rejeitam a ideia de que o objectivo da
filosofia política seja definir princípios abstractos de justiça.
Seria uma forma de reducionismo grosseiro pensar que
todas as crenças desta natureza podem ser explicadas com
base no modo como cada indivíduo foi criado — pelo menos
sem uma extensa investigação biográfica. Contudo, o argu-
mento de Chodorow devia dar que pensar ao liberal. Por que
razão os pressupostos de Locke sobre a liberdade natural, a
igualdade e a independência são tão duradouramente
atraentes? Muitos filósofos políticos consideram-nos difíceis
de pôr em causa. Será isto porque os pressupostos são auto-
evidentemente verdadeiros? Ou poderá a atracção ser sim-
plesmente uma consequência da educação que os teroizado-
res receberam nos primeiros anos de vida?
Este argumento — se o aceitarmos — parece enfraquecer
vários elementos da perspectiva individualista liberal extre-
ma. Só os homens aceitarão que a tarefa da filosofia política é
definir princípios abstractos de justiça. Só os homens supo-
rão que os filósofos políticos devem preocupar-se, acima de
tudo, com os valores da liberdade e da igualdade. E só os
homens afirmarão que a justiça é a virtude primordial das
instituições políticas e sociais.
Mas qual é a alternativa a uma ética da justiça? Há, de
facto, muitas circunstâncias nas quais apelar à justiça e aos
direitos parece não fazer sentido. Assim, o filósofo político
contemporâneo Jeremy Waldron observa:

As reivindicações de direitos deveriam ter pouca importância no con-


texto de um casamento normal e afectuoso. Se ouvimos um cônjuge
queixar-se ao outro sobre a recusa ou revogação de direitos conjugais,

268
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

sabemos que algo já correu mal na relação de desejo e afecto entre os


dois. (Liberal Rights, 372)

O contraste estabelecido por Waldron faz-se entre justiça


ou direitos, por um lado, e afecto — respeito e atenção
mútuos — por outro. Este exemplo é muito útil para pensar
acerca das limitações de todos os aspectos do individualismo
liberal extremo e, em especial, o quarto aspecto: que se deve
pensar que os direitos e responsabilidades sociais têm ori-
gem em acções individuais. O individualismo parece parti-
cularmente ineficaz a explicar as relações morais que surgem
no seio da família. Hobbes, por exemplo, interessou-se pela
questão da natureza e origem dos direitos de uma mãe sobre
o filho, no estado de natureza. E estes são os termos extraor-
dinários, pseudocontratuais, em que ele decide a questão:
«Na condição da mera Natureza […] o direito de Dominação
sobre a criança […] é […] dela […]. Tendo em conta que a
criança está primeiro em poder da Mãe — de forma que ela
pode alimentá-la ou abandoná-la —, se ela a alimentar, a
criança deve a vida à Mãe e fica, portanto, obrigada a obede-
cer-lhe» (Leviatã, 254).
Kant, que escreveu no final do século XVIII, viu o casa-
mento como um contrato relativo à «posse vitalícia e recípro-
ca das faculdades sexuais». Contudo, a ideia de que o casa-
mento, ou qualquer aspecto da vida familiar, é, no fundo,
uma relação comercial na qual há uma nova adjudicação de
direitos e deveres mutuamente benéfica não caracteriza bem
a forma como, pelo menos, nos apraz pensar sobre o casa-
mento. Claro que é verdade que, normalmente, se pode
escolher entre casar e não casar. Mas a natureza da relação
— pelo menos nos seus traços gerais — não é simplesmente
uma questão de escolha, mas também uma questão de cos-
tumes, leis e tradições da sociedade em que se vive. (Isto é
em parte verdade mesmo para os casais que escolhem per-
manecer solteiros.) E, no caso dos outros membros da famí-
lia, é como diz o ditado: podemos escolher os amigos, mas
não a família. Nascemos no seio de uma família. Um indivi-
dualista poderia responder que um indivíduo pode repudiar

269
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

as suas obrigações familiares e, portanto, subsiste um impor-


tante elemento de escolha. Contudo, é interessante constatar
que pensamos o pior de alguém que tenha exercido esta
«opção», pelo menos se o fez sem excelentes razões para tal.
Assim, parece que estamos dispostos a aceitar a existência de
obrigações positivas que existem independentemente da
vontade ou das acções dos indivíduos.
Uma melhor resposta individualista liberal seria reconhe-
cer a não-voluntariedade de muitas relações familiares, mas
ressalvar que, ainda assim, estamos muitas vezes dispostos a
repensar as nossas ideias sobre o que se consideram relações
aceitáveis numa família por deferência para com os valores
liberais. O direito familiar está constantemente a ser revisto.
Uma mulher já não é considerada propriedade do marido. A
violação no seio do casamento foi finalmente reconhecida
como possibilidade conceptual e crime grave. A inflicção de
maus tratos a crianças é cada vez mais denunciada e punida.
Deste modo, a família está a ser reformada na direcção do
individualismo liberal. Atribuem-se direitos aos familiares
que visam proteger a sua autonomia. E é indubitável que
ainda há um longo caminho a percorrer.
Apesar de tudo, o modelo da família fornece um contraste
interessante com o quadro individualista liberal extremo. O
amor ou, pelo menos, o afecto, e não a justiça, constitui a
virtude primordial da família. Deverá ser o afecto mútuo
igualmente a primeira virtude das instituições sociais e
políticas? Isto parece improvável. Por fácil que pudesse ser
chamar irmão ou irmã a todas as pessoas, só um santo pode-
ria agir como se toda a espécie humana (ou mesmo todos os
residentes numa rua) constituísse uma grande e feliz família,
com os laços especiais de afecto e atenção que os familiares
têm idealmente entre si.
Não obstante, estas reflexões apontam numa direcção
mais promissora. Mesmo que não consigamos ser irmãos ou
irmãs de todas as pessoas, podemos ser um bom cidadão ou
uma boa cidadã. A boa cidadã está disposta, por exemplo, a
ajudar outra pessoa, mesmo quando essa pessoa não tem o

270
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

direito de esperar ser ajudada. Assim, uma alternativa a


pensar que a filosofia política deveria definir um sistema de
regras e princípios de justiça é supor que esta devia tentar
identificar as condições nas quais as pessoas possuidoras de
um carácter específico poderiam prosperar. Ou seja, nesta
óptica, a tarefa da filosofia política seria apontar modos de
encorajar as pessoas a tornarem-se boas cidadãs; tentar criar
um mundo povoado por pessoas que prestassem atenção
umas às outras e não impusessem as suas reivindicações
perante reivindicações alheias mais importantes.
Efectivamente, encontrámos esta opinião em várias pas-
sagens deste livro. Rousseau, conforme vimos no Capítulo 3,
teve a preocupação de conceber uma sociedade que encora-
jasse o desenvolvimento das virtudes morais e políticas. Mill,
como também vimos, avaliou parcialmente a qualidade das
nossas instituições sociais em termos da qualidade das pes-
soas que elas tendem a gerar. Lembremos, igualmente, as
críticas tecidas por Marx ao liberalismo, reproduzidas no
Capítulo 4: os direitos liberais de segurança, igualdade,
propriedade e liberdade encorajam-nos a ver os outros como
limitações à nossa própria liberdade. Encorajam sentimentos
de separação e isolamento. Para Marx, teremos de transcen-
der esta perspectiva estreita e burguesa. Para as críticas
feministas do individualismo liberal, temos de acrescentar:
esta perspectiva estreita, burguesa e masculina. Neste passo,
contudo, muitas ramificações do pensamento anti-
individualista — marxismo, feminismo, comunitarismo,
conservadorismo — coincidem ao fazerem a afirmação geral
que, como vimos, todos partilham: a justiça, ou, pelo menos,
uma preocupação demasiado rígida e exclusiva com ela,
deteriora realmente relações humanas valiosas. (Pense-se na
pessoa que calcula sempre a sua parte exacta da conta do
restaurante!)
Talvez esta ideia da virtude da cidadania deva suplantar
a preocupação individualista liberal com a justiça, tanto
enquanto preocupação cimeira da filosofia política como
enquanto virtude primordial da sociedade. Contudo, é difícil

271
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

ver como poderíamos, ou por que deveríamos, tentar retirar


inteiramente a justiça de consideração. Se, na prática, a filo-
sofia política diz respeito à concepção e à avaliação das leis e
instituições de uma sociedade, então as regras e os princípios
abstractos parecem intrínsecos ao tema. Atenção, afecto e
outras virtudes podem influenciar o modo como conduzi-
mos as nossas vidas individuais e, portanto, podem gover-
nar as nossas relações com os outros, mas o mundo público
da tomada de decisões políticas parece destinado a perma-
necer dominado por «problemas matemáticos com seres
humanos». Não temos qualquer conhecimento sobre como
poderíamos efectuar a regulamentação pública da proprie-
dade, liberdade ou poder sem fazer apelo às ideias abstractas
da justiça.
Contudo, não se segue daqui que tenhamos de excluir as
considerações baseadas na ideia de afecto. Como vimos, uma
coisa é dizer que precisamos de princípios de justiça e outra
é dizer quais devem ser esses princípios. E mal começamos a
pensar em justiça distributiva, vemos que as necessidades
particulares das pessoas são do interesse do filósofo político
liberal. O estado-providência é um sistema de institucionali-
zação do afecto, mediada por assistentes sociais, enfermeiras
e voluntários. Assim, o interesse do liberal pela justiça inclui
já os valores do afecto, embora através de uma divisão do
trabalho.
Além disso, podemos sugerir que tais ideias ampliadas de
justiça devem coexistir com as virtudes da cidadania activa,
como sucede na filosofia política de Mill. Nesta abordagem,
os filósofos políticos devem definir princípios abstractos de
justiça, enquanto, ao mesmo tempo, tentam identificar as
condições nas quais as virtudes podem prosperar. Este pare-
ce certamente o compromisso correcto a seguir.
Mas este compromisso funcionará? Se se pretender que a
justiça seja a virtude primordial das instituições sociais e
políticas, que espaço restará? Consideremos novamente a
analogia com o casamento: se marido e mulher insistissem
nos seus direitos, isto pareceria derrotar a possibilidade de

272
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

um tratamento mútuo com o amor e o afecto normais. Um


casamento no qual o casal insiste nos seus direitos é um
casamento fracassado. Mas não se pode concluir daqui que
devamos abandonar o conceito de direitos conjugais: afinal
de contas, muitas vezes os casamentos fracassam. Waldron
afirma que a necessidade de tais direitos é «não constituir o
laço afectivo, mas fornecer a cada pessoa o conhecimento
seguro daquilo que ela pode esperar, na infeliz eventualida-
de de deixar de haver qualquer outra base para as negocia-
ções com o que foi o segundo elemento do casal» (Liberal
Rights, 374).
Há, então, um sentido no qual é completamente errado
dizer que a justiça é a virtude primordial das instituições
sociais e políticas. Poderá ser melhor dizer que ela é a derra-
deira virtude ou, pelo menos, o último recurso. Os direitos,
ou as considerações de justiça, são como uma apólice de
seguro: algo que oferece uma segurança em que nos pode-
remos apoiar. Os direitos não enfraquecem (ou não precisam
de enfraquecer) os laços de afecto. E isto, como é óbvio, não
diz apenas respeito ao casamento, mas estende-se a toda a
vida social. A justiça não precisa de enfraquecer uma ética da
virtude e do afecto, mas fornece uma rede de segurança
quando a virtude começa a rarear.
Podemos ilustrar este ponto de outra forma. Grande parte
da vida social humana depende da confiança. Fazemos
promessas uns aos outros, aceitamos a palavra ou o com-
promisso de outrem, e esperamos que os outros se compor-
tem de determinadas maneiras. Um mundo sem confiança
seria horrível, talvez mesmo inconcebível. Mas alguns dirão
que atribuir aos indivíduos direitos que se podem exigir à
força pressupõe que não podemos confiar uns nos outros. Se
pudéssemos, que necessidade haveria de direitos? E, de
qualquer modo, tendo direitos deixamos de ter necessidade
de confiar e, portanto, os direitos subvertem ou enfraquecem
a confiança.
Não é claro, todavia, que confiança e direitos tenham de
estar em conflito. Por exemplo, um comentador afirmou que,

273
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

para Locke, o «estado de natureza […] é uma condição na


qual a necessidade ou procura de confiança racional excede
irremediavelmente a oferta disponível» (John Dunn, Interpre-
ting Political Responsability, 24). A solução para isto é conce-
ber instituições que «economizem confiança»: essencialmen-
te, leis de justiça. A confiança é importante, valiosa e uma
característica indelével do nosso mundo social e político.
Contudo, não podemos simplesmente basear-nos sempre
nela. É por isso que precisamos de regras abstractas e
implementáveis de justiça, que concedam direitos aos indi-
víduos: não porque pensamos que é uma coisa boa as pes-
soas evocarem os seus direitos e exigir justiça, mas porque
sabemos que, por vezes, é só isso que lhes resta.
Mas a justiça é um conceito muito vasto. É errado pensar
que procurar a justiça é simplesmente uma questão de con-
ceber princípios abstractos e completamente gerais, confor-
me supõe o argumento que se opõe à justiça. Uma preocupa-
ção com a justiça não deve excluir a atenção ao pormenor: é
necessário ter em conta muitos factores, e não apenas ver
como os princípios terão de ser aplicados em casos específi-
cos. O pressuposto que se adopta neste livro é que a princi-
pal exigência que se faz à justiça é que solucione desigualda-
des ilegítimas. As críticas feministas exigem, não que substi-
tuamos a ética da justiça pela ética da atenção no centro da
filosofia política, mas que apliquemos a ideia de justiça com
uma sensibilidade enriquecida às formas através das quais
as nossas instituições podem dar corpo e reproduzir a injus-
tiça. As feministas não podem, e não devem, desistir da luta
por uma verdadeira liberdade e igualdade para as mulheres.
Assim, a teoria feminista não exige o abandono das nos-
sas ideias de justiça mais fundamentais, mas a sua aplicação
consistente. Também nos relembra um pensamento muito
antigo: não devemos ficar indiferentes à questão do tipo de
pessoas que as nossas instituições terão tendência para gerar.
Uma sociedade que tem tendência para criar exploradores
cruéis e egoístas é pior do que uma sociedade que tenda a
produzir cooperadores caritativos e altruístas, mesmo se, em

274
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

termos formais, podemos descrever ambas as sociedades


como justas. Talvez este pensamento nos ajude a perceber
até que ponto o individualismo liberal extremo tem de ser
alterado. Mas não tentaremos afirmar aqui tal coisa em
termos definitivos.

Uma palavra final

Espero que este livro tenha veiculado algumas das razões


por que a filosofia política é objecto de estudo e fascínio de
há 2500 anos a esta parte. Mas espero igualmente ter tornado
claro que esta está longe de estar completa. Não só há pro-
blemas por solucionar e atalhos por explorar em cada esqui-
na, como há quem afirme que temos de começar tudo de
novo. Significará isto que nunca conseguiremos fazer qual-
quer progresso? Estou em crer que esta é uma perspectiva
mais pessimista do que se justificaria. Mill afirmou que, em
filosofia política, «devem ser apresentadas considerações
capazes de obrigar o intelecto a dar ou retirar o seu assenti-
mento à doutrina», o que é certamente verdade. Contudo, o
filósofo acrescentou que «isto equivale a prova» (Utilitarismo,
255). Mas não se percebe muito bem como pode isto ser. O
próprio Mill reconheceria que, por poderosas que pareçam
quaisquer considerações numa dada altura, talvez sejam
apresentadas considerações ainda mais poderosas a favor de
uma perspectiva oposta. Assim, embora possa haver posi-
ções e argumentos mais ou menos plausíveis, em filosofia
política não pode haver uma última palavra. Apesar disso, e
até mais ver, é aqui que terminaremos.

275
Sugestões de leitura complementar

No final destas sugestões encontrará a lista das principais


obras discutidas no presente livro.

Prefácio

Conforme indicado no Prefácio, este livro não pretende


ser uma descrição sistemática do estado actual do debate em
filosofia política nem uma história académica do tema. Mas
há livros excelentes que cumprem estas finalidades. Das
muitas introduções à filosofia política contemporânea, reco-
mendaria particularmente as seguintes: Will Kymlicka,
Contemporary Political Philosophy: An Introduction (Oxford,
Oxford University Press, 1990) e Raymond Plant, Modern
Political Thought (Oxford, Blackwell, 1991). A Companion to
Contemporary Political Philosophy, organizado por Robert E.
Goodin e Philip Petit (Oxford, Blackwell, 1993), contém
inúmeros artigos introdutórios úteis. A melhor introdução
recente à história da teoria política é de Iain Hampsher-
Monk: A History of Modern Political Thought (Oxford, Black-
well, 1992). Esta inclui descrições fiáveis e acessíveis das
perspectivas defendidas por grande parte dos filósofos refe-

277
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

ridos no presente livro, como Hobbes, Locke, Rousseau,


Marx e Mill.

Introdução

A citação de A Guerra do Peloponeso, de Tucídides, é reti-


rada da edição inglesa de 1972, da Penguin. A citação de
Engels provém da sua obra Socialism: Utopian and Scientific,
disponível em várias edições das obras seleccionadas de
Marx e Engels [Engels, Do Socialismo Utópico ao Socialismo
Científico, Lisboa, Estampa, 1978].

Capítulo 1

A citação de Lord of the Flies, de William Golding, é retira-


da da edição de 1954 da Penguin [O Deus das Moscas, Lisboa,
Vega, 1997].
Há muitas edições disponíveis da obra de Hobbes, Leviatã.
As referências surgidas no texto dizem respeito à edição
inglesa organizada por C. B. MacPherson (Harmondsworth,
Penguin, 1968) [Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado
Eclesiástico e Civil, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moe-
da, 2002]. Para uma introdução ao pensamento de Hobbes,
veja-se Richard Tuck, Hobbes (Oxford, Oxford University
Press, 1989). Mais avançada, mas muitíssimo recomendável,
a obra de Jean Hampton: Hobbes and the Social Contract Tradi-
tion (Cambridge, Cambridge University Press, 1986).
As referências de Locke são retiradas de Two Treatises of
Government, com organização de Peter Laslett (Cambridge,
Cambridge University Press, edição escolar, 1988) [Ensaio
sobre a Verdadeira Origem Extensão e Fim do Governo Civil,
Lisboa, Edições 70, 1999]. As indicações bibliográficas incluí-
das no presente livro fornecem a secção, assim como o
número de página, para os utilizadores de outras edições. A
obra de David Lloyd Thomas, Locke on Government (Londres,
Routledge, 1995), constitui uma excelente introdução ao
pensamento político de Locke.

278
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

A edição inglesa mais útil dos vários escritos de Rousseau


a que se faz aqui referência é: The Social Contract and Discour-
ses (org. G. D. H. Cole, J. H. Brumfitt e John C. Hall; Londres,
Everyman, 1973) e os números de página indicados dizem
respeito a esta edição (no caso de The Social Contract, também
se indicam o livro e capítulo em questão) [em protuguês:
Rousseau, O Contrato Social, Mem Martins, Publicações
Europa-América, 2003, 5.ª ed.]. Esta edição contém todas as
principais obras filosóficas de Rousseau, com excepção de
Émile, que também existe em edição Everyman, publicada
em 1974.
Em People Without Government, de Harold Barclay, encon-
tra-se uma descrição de sociedades sem estado (Londres,
Kahn & Averill, 1990). Há diversas obras que se dedicam ao
dilema do prisioneiro. Uma boa introdução a esta e outras
questões com ela relacionadas é de Jon Elster: Nuts and Bolts
for the Social Sciences (Cambridge, Cambridge University
Press, 1989) (o exemplo de Sartre foi retirado de Elster).
George Woodcock organizou The Anarchist Reader (Glasgow,
Fontana, 1977) — uma selecção interessante de escritos
anarquistas, incluindo partes de Enquiry Concerning Political
Justice, de William Godwin, e de Mutual Aid, de Peter Kro-
potkin. Mas existem edições integrais destas duas obras:
Godwin, Enquiry Concerning Political Justice, org. Isaac Kram-
nick (Harmondsworth, Penguin, 1976); Kropotkin, Mutual
Aid, org. Paul Avrich (Londres, Allen Lane, 1972). Encontra-
se uma útil resenha das várias posições na obra de David
Miller, Anarchism (Londres, Dent, 1984).

Capítulo 2

As referências a número de página relativas a On Liberty,


de John Stuart Mill, dizem respeito à muito conveniente
edição de Utilitarianism and Other Writings, organizada por
Mary Warnock (Glasgow, Collins, 1962) [Sobre a Liberdade,
Mem Martins, Publicações Europa-América, 1997). As refe-
rências a Locke reportam-se novamente à edição inglesa dos

279
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Dois Tratados organizada por Laslett. O utilitarismo de Ben-


tham é apresentado na sua obra Introduction to the Principles
of Morals and Legislation (org. J. H. Burns e H. L. A. Hart,
Londres, Methuen, 1982). Os primeiros cinco capítulos desta
obra surgem na edição dos escritos de Mill organizada por
Mary Warnock.
A definição de estado de Max Weber é apresentada no
seu artigo «Politics as a Vocation», em Essays from Max
Weber, trad. H. Gerth e C. W. Mills (Londres, Routledge &
Kegan Paul, 1948) [A Política como Profissão, Lisboa, Universi-
tárias Lusófonas, 2000).
Há dois excelentes tratamentos do problema da obrigação
política: de A. J. Simmons, Moral Principles and Political Obli-
gations (Princeton, NJ, Princeton University Press, 1979) e de
John Horton, Political Obligation (Londres, Macmillan, 1992).
Simmons defende o «anarquismo filosófico», tal como R. P.
Wolff em In Defense of Anarchism (Nova Iorque, Harper,
1973). Uma defesa recente da teoria do consentimento encon-
tra-se em The Consent Theory of Political Obligation, de Harry
Beran (Londres, Croom Helm, 1987).
A teoria da democracia directa é defendida por Carole
Pateman em duas obras: Participation and Democratic Theory
(Cambridge, Cambridge University Press, 1970) e The Pro-
blem of Political Obligation (Oxford, Polity Press, 1985).
A citação respeitante ao acordo tácito foi retirada de
Hume, «Of the Original Contract», nos seus Essays Moral,
Political, and Literary, org. E. F. Miller (Indianapolis, Ind.,
Liberty Press, 1985, pp. 465-87) [Ensaios Morais, Políticos e
Literários, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002],
e a citação de Rousseau provém de The Social Contract and
Discourses, org. Cole et al.
H. L. A. Hart apresentou a teoria sobre equidade no artigo
«Are There Any Natural Rights?», reproduzido em J. Wal-
dron (org.), Theories of Rights (Oxford, Oxford University
Press, 1984). Esta foi amplamente defendida numa obra de
George Klosko: The Principle of Fairness and Political Obligation
(Lanham, Md., Rowman & Littlefield, 1992). As objecções

280
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

colocadas por Nozick vieram a lume em Anarchy, State, and


Utopia (Oxford, Blackwell, 1974) e são debatidas por Sim-
mons e Horton.
A teoria de Bentham é apresentada no seu Fragment on
Government (org. Ross Harrison, Cambridge, Cambridge
University Press, 1988). O livro Utilitarianism: For and Against
(Cambridge, Cambridge University Press, 1973), de J. J. C.
Smart e Bernard Williams constitui uma boa análise do
utilitarismo. O caso dos Seis de Birmingham é analisado em
pormenor na obra de Chris Mullin, Error of Judgement
(Dublin, Poolbeg Press, ed. revista, 1990).
Para além do ensaio «Of the Original Contract», referido
acima, Hume trata a justiça e a obrigação política no livro III
da sua obra A Treatise of Human Nature (org. L. A. Selby-
Bigge, Oxford, Oxford University Press, 2.ª ed., 1978) [Trata-
do da Natureza Humana, Lisboa, Gulbenkian, 2002]. Ver
igualmente An Enquiry Concerning the Principles of Morals, em
Enquiries (org. L. A. Selby-Bigge, Oxford, Oxford University
Press, 3.ª ed., 1975).

Capítulo 3

O mais útil tratamento filosófico da democracia é feito por


Ross Harrison, em Democracy (Londres, Routledge, 1993).
Igualmente úteis são a obras de David Held, Models of Demo-
cracy (Cambridge, Polity Press, 1987) e de Keith Graham, The
Battle of Democracy (Brighton, Wheatsheaf, 1986). Encontra-se
um desenvolvimento mais pormenorizado de alguns dos
temas abordados neste capítulo em Jeremy Waldron, «Rights
and Majorities: Rousseau Revisited», in Liberal Rights (Cam-
bridge, Cambridge University Press, 1993).
Há várias edições inglesas da República, de Platão. As
citações aqui feitas foram retiradas da edição organizada por
H. P. D. Lee (Harmondsworth, Penguin, 1955) [A República,
Lisboa, Gulbenkian, 1996]. Para um extenso e famoso ataque
a Platão, ver Karl Popper, The Open Society and its Enemies
(Londres, Routledge, 1945) [A sociedade Aberta e os seus Inimi-

281
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

gos, Lisboa, Fragmentos, 1993]. Uma excelente introdução à


República no seu todo é o livro de Nickolas Pappas: Plato: The
Republic (Londres, Routledge, 1995) [A República de Platão,
Lisboa, Edições 70, 1997]. O argumento de Condorcet é
resumido em Brian Barry, «The Public Interest», in A. Quin-
ton (org.), Political Philosophy (Oxford, Oxford University
Press, 1967) e dissecado em Duncan Black, The Theory of
Committees and Elections (Cambridge, Cambridge University
Press, 1958). Os exemplos dos sindicatos como ilustração da
ideia da vontade geral foram adaptados do artigo de Barry.
As referências ao Contrato Social e ao Discurso sobre Econo-
mia Política, de Rousseau, foram retiradas da edição inglesa
da Everyman, organizada por Cole et al. [O Contrato Social,
Mem Martins, Europa-América, 1999]. A obra de Mary
Wollstonecraft, Vindication of the Rights of Women existe na
edição Penguin de 1992, organizada por Miriam Brody. A
distinção entre liberdade positiva e negativa é celebremente
debatida por Isaiah Berlin em «Two Concepts of Liberty»,
contido na sua obra Four Essays on Liberty (Oxford, Oxford
University Press, 1991) [A Busca do Ideal, Lisboa, Bizâncio,
1998]. Foi reeditado, juntamente com outros artigos relevan-
tes, em Liberty (org. David Miller, Oxford, Oxford University
Press, 1991). O ensaio de Berlin apresenta várias críticas a
Rousseau aqui avançadas. As obras de Carole Pateman sobre
democracia directa (referidas acima) são também especial-
mente relevantes. A posição de Mill é apresentada em Consi-
derations on Representative Government, em Utilitarianism, On
Liberty, and Considerations on Representative Government (org.
H. B. Acton, Londres, Dent, 1972) [Considerações sobre o
Governo Representativo, Brasília, Editora Universidade de
Brasília, 1981; ver também: Utilitarismo, Coimbra, Atlântida,
1976; Sobre a Liberdade, Mem Martins, Publicações Europa-
América, 1997].

282
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Capítulo 4

As referências a On Liberty e Utilitarianism, de Mill, repor-


tam-se novamente à edição, organizada por Mary Warnock,
de Utilitarianism. Em J. S. Mill, On Liberty In Focus, obra
organizada por John Gray e G. W. Smith (Londres, Routled-
ge, 1991), encontra-se uma excelente análise da posição de
Mill. Para um tratamento das ideias políticas de Mill no
contexto mais amplo do seu pensamento, ver John Skorups-
ki, John Stuart Mill (Londres, Routledge, 1989). A referência a
Rousseau reporta-se novamente à edição Everyman de The
Social Contract and Discourses (org. Cole et al). A defesa de
Mill da liberdade de pensamento é analisada crítica e por-
menorizadamente por R. P. Wolff em The Poverty of Libera-
lism (Boston, Mass., Beacon Press, 1968). O exemplo da «tia
rica» é tirado a David Lloyd Thomas, de «Rights, Conse-
quences, and Mill on Liberty», in A. Phillips Griffiths (org.),
Of Liberty (Cambridge, Cambridge University Press, 1983). O
ataque de Bentham aos direitos naturais é apresentado nas
suas Anarchical Fallacies, reproduzidas em Nonsense Upon
Stilts (Org. Jeremy Waldron, Londres, Methuen, 1987). Para
além de incluir uma boa análise geral do conceito de direito,
esta obra contém ainda uma versão de «On the Jewish Ques-
tion», de Karl Marx, amplamente disponível em antologias
dos textos de Marx [Para a Questão Judaica, Lisboa, Avante,
1997]. Recomenda-se especialmente Karl Marx: Selected Wri-
tings (org. D. McLellan, Oxford, Oxford University Press,
1977), de onde foram retiradas as citações de «Para a Ques-
tão Judaica» feitas no presente livro.
A posição de Henry Sidgwick é apresentada na sua obra
The Methods of Ethics (Londres, macmillan, 1907). A designa-
ção «utilitarismo colonial» provém da Introdução do livro
Utilitarianism and Beyond (Amartya Sen e Bernard Williams
(orgs.), Cambridge, Cambridge University Press, 1982).
James Fitzjames Stephen, Liberty, Equality, Fraternity, está
disponível numa reedição (Chicago, Chicago University
Press, 1991). «Morals and the Criminal Law», de Patrick

283
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Devlin, publicado pela primeira vez em 1958, foi reeditado


no seu livro The Enforcement of Morals (Oxford, Oxford Uni-
versity Press, 1965) e foi analisado criticamente por H. L. A.
Hart em Law, Liberty and Morality (Londres, Oxford Univer-
sity Press, 1963). Para as críticas comunitaristas ao liberalis-
mo, ver os ensaios em Communitarianism and Individualism
(org. Shlomo Avineri e Avner de-Shalit, Oxford, Oxford
University Press, 1992), em especial os de Michael Sandel,
Charles Taylor, Alasdair MacIntyre e Michael Walzer, os
fundadores filosóficos do comunitarismo moderno. Michael
Sandel, Liberalism and the Limits of Justice (Cambridge, Cam-
bridge University Press, 1982) é uma influente e extensa
apresentação de uma posição comunitarista, centrando-se na
crítica a John Rawls, A Theory of Justice (Oxford, Oxford
University Press, 1971) [Uma Teoria da Justiça, Lisboa, Presen-
ça, 2001].

Capítulo 5

A citação retirada da Segunda Investigação, de Hume,


provém da edição organizada por Selby-Bigge. Chapters on
Socialism, de Mill, está incluído em On Liberty and Other
Writings (org. Stefan Collini, Cambridge, Cambridge Univer-
sity Press, 1989). A obra de Nozick, Anarchy, State, and Utopia
[Anarquia, Estado e Utopia, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,
1991], é analisada longamente no meu livro intitulado Robert
Nozick: Property, Justice and the Minimal State (Cambridge,
Polity Press, 1991). Ver também G. A. Cohen, Self-Ownership,
Freedom, and Equality (Cambridge, Cambridge University
Press, 1995) e os ensaios in Reading Nozick (org. Jeffrey Paul,
Oxford, Blackwell, 1982). Norman Daniels (org.), Reading
Rawls (Oxford, Blackwell, 1975) é uma excelente colectânea
de ensaios sobre Uma Teoria da Justiça, de John Rawls. Rawls
alterou a sua perspectiva ao longo das últimas duas décadas,
sendo a versão mais recente apresentada no seu livro Political
Liberalism (Nova Iorque, Columbia University Press, 1993) [O
Liberalismo Político, Lisboa, Presença, 1997]. Algumas dessas

284
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

alterações encontram-se documentadas em C, Kukathas e P.


Petit, Rawls (Cambridge, Polity press, 1990), que contém
igualmente outras matérias interessantes [Rawls: Uma Teoria
da Justiça e os seus Críticos, Lisboa, Gradiva, 1995].
Jan Pen, Income Distribution foi editado pela Penguin
(1971). Um relatório recente sobre rendimento e riqueza na
Grã-Bretanha, que recorre à ideia de Pen do cortejo dos
rendimentos, encontra-se em John Hills, Joseph Rowntree
Foundation Inquiry into Income and Wealth, vol. ii (Iorque,
1995). A citação de Rousseau é novamente da edição Every-
man de O Contrato Social e dos Discursos. A análise de Locke
da propriedade encontra-se no capítulo 5 do seu Segundo
Tratado (citações da edição organizada por Laslett). Para ver
alguns tratamentos úteis do tema dos direitos de proprieda-
de, consultar Lawrence C. Becker, Property Rights (Boston,
Mass., Routledge & Kegan Paul, 1977) e Alan Carter, The
Philosophical Foundations of Property Rights (Hassocks: Har-
vester, 1988).
Uma boa análise filosófica do mercado encontra-se em
Allen Buchanan, Ethics, Efficiency and the Market (Totowa, NJ,
Rowman & Allanheld, 1985). Este livro contém um útil
resumo da posição de F. A. von Hayek, que é por este apre-
sentada extensamente em vários trabalhos mas, especialmen-
te, em The Constitution of Liberty (Londres, Routledge &
Kegan Paul, 1960). As obras de Milton Friedman são mais
acessíveis: veja-se, em especial, Capitalism and Freedom (Chi-
cago, Chicago University Press, 1962) e (em co-autoria com
Rose Friedman) Free to Choose (Harmondsworth, Penguin,
1980) [Capitalismo e Liberdade, São Paulo, Abril Cultural,
Victor Civita, 1984, e Liberdade para escolher, Mem Martins,
Publicações Europa-América, 1980]. No meu artigo «Play-
things of Alien Forces», in Cogito, 6/1 (1992), analiso as
razões de Marx para advogar a economia planificada. Os
Discursos de Elberfeld estão reeditados in K. Marx, F. Engels e
V. I. Lenine, On Communist Society (Moscovo, Edições Pro-
gresso, 1974) [Sobre o Humanismo na Sociedade Comunista,
Lisboa, Estampa, 1977]. A edição citada de Marx é Early

285
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Writings (org. Lucio Colletti, Harmondsworth, Penguin,


1975).
A citação de Adam Smith foi retirada de The Wealth of
Nations, com primeira edição em 1776 (Harmondsworth,
Penguin, 1970) [Inquérito sobre a Natureza e as Causas da Rique-
za das Nações, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993-
99]. A citação de The Economics of Feasible Socialism, de Alec
Nove, foi retirada da primeira edição (Londres, George Allen
& Unwin, 1983). Encontra-se agora publicada, em segunda
edição, com o título The Economics of Feasible Socialism Revisi-
ted (Londres, Harper Collins, 1991).
A principal fonte para os escritos de Marx sobre alienação
é o seu Manuscritos Económico-Filosóficos (1844), em especial
«Trabalho Alienado». Há várias edições inglesas destes
textos: por exemplo, Karl Marx: Selected Writings (org. D.
McLellan) e Early Writings (org. Colletti) [Marx, Manuscritos
Económico-filosóficos, Lisboa, Edições 70, 1993]. Acerca do
fenómeno de perda de competências, no capitalismo, ver
Harry Braverman, Labour and Monopoly Capitalism (nova
Iorque, Monthly Review Press, 1974) [Trabalho e Capital
Monopolista: A Degradação do Trabalho no séc. XX, Rio de Janei-
ro, Jorge Zahar Editor, 1980]. A citação da obra de Engels,
The Condition of the Working Class in England, cuja primeira
edição data de 1845, é retirada de Marx and Engels on Britain
(Moscovo, Instituto Marx-Engels-Lenine-Estaline, 1953). Há
outras edições disponíveis [Engels, A Situação da Classe Traba-
lhadora em Inglaterra, Porto, Afrontamento, 1975].
Grande parte das objecções colocadas a Rawls surgem na
colectânea organizada por Norman Daniels, Reading Rawls,
referida acima. Veja-se, em especial, os artigos de Richard
Dworkin, Thomas Nagel e Thomas Scanlon. A ideia do
«mínimo social» é esclarecedoramente analisada em Jeremy
Waldron, «John Rawls and the Social Minimum», na sua
colectânea intitulada Liberal Rights. Para uma versão de
«anarquismo de esquerda», veja-se Hillel Steiner, An Essay
on Rights (Oxford, Blackwell, 1994).

286
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Capítulo 6

Uma boa introdução à diversidade do pensamento políti-


co feminista encontra-se em «Feminism», de J. Mansbridge e
Susan Moller Okin, incluído em A Companion to Contemporary
Political Philosophy (org. Robert E. Goodin e Philip Petit,
Oxford, Blackwell, 1993). Este volume contém igualmente
uma extensa bibliografia. Contemporary Political Philosophy,
de Will Kymlicka, inclui uma resposta (parcialmente) com-
preensiva ao pensamento feminista de uma perspectiva
liberal. A citação de Simone de Beauvoir foi retirada de The
Second Sex (nova Iorque, Vintage, 1952) [O Segundo Sexo,
Amadora, Bertrand, 1981]. Susan Moller Okin, em Justice,
Gender and the Family (Nova Iorque, Basic Books, 1989), apre-
senta uma posição feminista liberal muito debatida. Uma das
melhores análises da discriminação positiva encontra-se em
Thomas E. Hill, Jr., «The Message of Affirmative Action»,
incluído no seu livro Autonomy and Self-Respect (Cambridge,
Cambridge University Press, 1991).
Há boas antologias de escritos feministas: Feminist Philo-
sophies (org. Janet A. Kourany, James P. Sterba e Rosemarie
Tong; Hemel Hempstead, Harvester Wheatsheaf, 1993) e
Feminism and Philosophy (org. Nancy Tuana e Rosemarie
Tong; Boulder, Colo., Westview Press, 1995). Quase todos os
meses surgem novas antologias de escritos filosóficos femi-
nistas.
As citações de Ethical Studies, de F. H. Bradley, foram
retiradas de uma reimpressão da segunda edição (Indiana-
polis, In., Bobbs-Merrill, 1951). Reflections on the Revolution in
France, de Burke, existe numa edição Penguin de 1968 [Refle-
xões sobre a Revolução em França, Brasília, Editora Universida-
de de Brasília, 1982]. A obra de Michael Oakeshott, Rationa-
lism in Politics foi publicada pela Methuen (Londres, 1962).
Ver também Roger Scruton, The Meaning of Conservatism
(Londres, Macmillan, 2.ªa ed., 1984).
Women and Revolution é uma colectânea de ensaios sobre a
relação existente entre capitalismo e patriarcado (org. Lydia

287
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Sargeant; Boston, Mass., South End Press, 1981). Esta inclui o


famoso artigo de Heidi Hartmann: «The Unhappy Marriage
of Marxism and Feminism» (também reproduzido em Femi-
nist Philosophies, referido atrás), que se inicia com as seguin-
tes palavras: «O “casamento” do marxismo com o feminismo
tem sido como o casamento entre marido e mulher, tal como
descrito no direito comum inglês: o marxismo e o feminismo
são um só, e esse um só é o marxismo.» A citação de Sheila
Rowbotham foi reitada de Women, Resistance and Revolution
(Londres, Penguin, 1972) [Mulheres, Resistência e Revolução,
Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1976] e o artigo de Seyla
Benhabib, «The Generalized and the Concrete Other» está
reproduzido em Feminism as Critique (org. Seyla Benhabib e
Drucilla Cornell¸Cambridge, Polity Press, 1987).
Os principais escritos feministas analisados no texto são
os seguintes: Nancy Chodorow, The Reproduction of Mothe-
ring: Psychoanalysis and the Sociology of Gender (Berkely, Ca.,
University of California Press, 1978) e Carol Gilligan, In a
Different Voice (Cambridge, Mass., Harvard University Press,
1982) [Teoria Psicológica e Desenvolvimento da Mulher, Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, 1997]. Outras obras particu-
larmente influentes pertencem a Catherine MacKinnon,
Feminism Unmodified (Cambridge, Mass., Harvard University
Press, 1987), Alison M. Jaggar, Feminist Politics and Human
Nature (Hemel Hempstead, Harvester, 1983) e Carole Pate-
man, The Sexual Contract (Stanford, Stanford University
Press, 1988). Susan Moller Okin, em Women in Western Politi-
cal Thought (Princeton, NJ, Princeton University Press, 1979),
fornece uma descrição muito interessante do lugar ocupado
pelas mulheres no pensamento de Platão, Aristóteles, Rous-
seau e Mill.
O artigo a que se alude, da autoria de Jeremy Waldron, é:
«When Justice Replaces Affection: The Need for Rights»,
reproduzido na sua obra Liberal Rights. O artigo de John
Dunn, «What is Living and What is Dead in the Political
Theory of John Locke?» surge no seu livro Interpreting Politi-
cal Responsability (Cambridge, Polity Press, 1990). A obra de

288
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Michael Ignatieff, The Needs of Strangers (Londres, Hogarth,


1984), pode ser considerada um estudo do modo como o
afecto se pode institucionalizar.

Principais obras discutidas neste livro

Bentham, Jeremy, Anarchical Fallacies, em Nonsense Upon


Stilts, org. Jeremy Waldron (Londres, Methuen, 1987).
— Fragment on Government, org. Ross Harrison (Cambridge,
Cambridge University Press, 1988).
— Introduction to the Principles of Morals and Legislation, org. J.
H. Burns e H. L. A. Hart (Londres, Methuen, 1982).
Godwin, William, Enquiry Concerning Political Justice, org.
Isaac Kramnick (Harmondsworth, Penguin, 1976).
Hart, H. L. A., «Are There Any Natural Rights?», repr. em J.
Waldron (org.), Theories of Rights (Oxford, Oxford Univer-
sity Press, 1984).
Hobbes, Thomas, Leviathan, ed. C. B. MacPherson (Har-
mondsworth, Penguin, 1968) [Leviatã, Lisboa, Imprensa
Nacional Casa da Moeda, 2002].
Hume, David, An Enquiry Concerning the Principle of Morals,
em Enquiries, org. L. A. Selby-Bigge (Oxford, Oxford Uni-
versity Press, 3.ª ed., 1975).
— «Of the Original Contract», em Essays Moral, Political, and
Literary, org. E. F. Miller (Indianapolis, Ind., Liberty Press,
1985) [Ensaios Morais, Políticos e Literários, Lisboa, Impren-
sa Nacional-Casa da Moeda, 2002].
— A Treatise of Human Nature, org. L. A. Selby-Bigge (Oxford,
Oxford University Press, 2.ª ed., 1978) [Tratado da Natureza
Humana, Lisboa, Gulbenkian, 2002].
Kropotkin, Peter, Mutual Aid, org. Paul Avrich (Londres,
Allen Lane, 1972).
Locke, John, Two Treatises of Government, ed. Peter Laslett
(Cambridge, Cambridge University Press, edição escolar,
1988) [Ensaio sobre a Verdadeira Origem Extensão e Fim do
Governo Civil, Lisboa, Edições 70, 1999].

289
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Marx, Karl, Early Writings, org. Lucio Colletti (Harmonds-


worth, Penguin, 1975).
— «On the Jewish Question», em Karl Marx: Selected Wri-
tings, org. D. McLellan (Oxford, Oxford University Press,
1977) [Para a Questão Judaica, Lisboa, Avante, 1997].
Mill, John Stuart, Chapters on Socialism, em On Liberty and
Other Writings, org. Stefan Collini (Cambridge, Cambrid-
ge University Press, 1989).
— «Considerations on Representative Government», em
Utilitarianism, On Liberty, and Considerations on Representa-
tive Government, org. H. B. Acton (Londres, Dent, 1972).
— On Liberty, em Utilitarianism and Other Writings, org. Mary
Warnock (Glasgow, Collins, 1962) [Sobre a Liberdade, Mem
Martins, Publicações Europa-América, 1997].
Nozick, Robert, Anarchy, State, and Utopia (Oxford, Blackwell,
1974) [Anarquia, Estado e Utopia, Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Editor, 1991].
Platão, The Republic, ed. H. P. D. Lee (Harmondsworth, Pen-
guin, 1955) [A República, Lisboa, Gulbenkian, 1996].
Rawls, John, Theory of Justice (Oxford, Oxford University
Press, 1971) [Teoria da Justiça, Lisboa, Presença, 2001].
— Political Liberalism (Nova Iorque, Columbia University
Press, 1993) [O Liberalismo Político, Lisboa, Presença, 1997].
Rousseau, Jean-Jacques, Émile (Londres, Everyman, 1974).
— The Social Contract and Discourses, org. G. D. H. Cole, J. H.
Brumfitt e John C. Hall (Londres, Everyman, 1973) [O
Contrato Social, Mem Martins, Europa-América, 1999].
Stephen, James Fitzjames, Liberty, Equality, Fraternity (Chica-
go, Chicago University Press, 1991).
Von Hayek, F. A., The Constitution of Liberty (Londres, Rou-
tledge & Kegan Paul, 1960).
Wollstonecraft, Mary, Vindication of the Rights of Women, ed.
Miriam Brody (Harmondsworth, Penguin, 1992).

290
Índice remissivo

justiça na aquisição inicial,


discriminação positiva,
agnosticismo,
Alexandria, biblioteca de,
alienação,
embaixadores,
anarquismo,
autoritarismo,
autonomia, ver liberdade

Ballantyne, R. M.,
Bauer, Bruno,
Beauvoir, Simone de,
Benhabib, Seyla,
Bentham, Jeremy:
dirige-se aos legisladores,
sobre a justificação do estado,
sobre os direitos naturais,
Bergmann, Barbara,
Seis de Birmingham,
Bradley, F. H.,
Burke, Edmund,

291
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

afectos, ética dos,


censura,
Chodorow, Nancy,
cidadania:
individualismo e,
Mill e,
Rousseau e,
desobediência civil,
religião civil,
sociedade civil, ver estado, o,
comunismo,
comunitarismo,
compaixão,
Condorcet, marquês de,
conservadorismo,
contrato, ver contrato hipotético; contrato social; consenti-
mento tácito
analogia das profissões
criacionismo,
costumes,

democracia,
directa,
valor intrínseco,
em Madison,
maioritária,
participativa,
representativa,
Denning, Lorde,
merecimento,
Devlin, Lorde,
ditadura,
Diderot, Denis,
Diferença, Princípio da,
discriminação,
justiça distributiva,

292
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

teorias padronizadas da,


ver também justiça na aquisição inicial; propriedade; rique-
za; rectificação, justiça na; transferência, justiça na
Direito Divino dos Reis,
embriaguez,
Dunn, John,
Dworkin, Ronald,

emancipação, humana e política,


Engels,
igualdade:
democracia e,
económica,
em Hobbes,
individualismo e,
liberdade e,
em Locke,
de oportunidade,
racial,
religiosa,
sexual,
utilitarismo e,
teoria da evolução,
expectativas, maximização das,
experiências de vida,
exploração,
expressão, liberdade de,
externalidades,

facções,
equidade, princípio de,
famílias,
medo,
Federalistas,
felicidade,
feminismo,
Filmer, Sir Robert,

293
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Franco,
mercado livre, ver mercados
oportunismo,

Galileu,
vontade geral,
Alemanha,
Gilligan, Carol,
Deus,
Godwin, William,
Golding, William,
bem, concepção do,
governo, ver estado, o
Grossman, Vasili,
guardiães,
ciganos,

Hamilton, Alexander,
felicidade,
comparações interpessoais de,
dano,
princípio do dano ver princípio da liberdade (Mill)
Hart, H. L. A.,
Hayek, F. A. von,
Hobbes, Thomas,
e o absolutismo,
sobre a família,
sobre o estado de natureza,
e o consentimento tácito,
holismo,
natureza humana e motivação,
Hume, David:
sobre as circunstâncias de justiça,
sobre o interesse próprio racional,
sobre o contrato social,
contrato hipotético,

294
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

imparcialidade,
incentivos,
cortejo dos rendimentos,
atentado ao pudor,
utilitarismo indirecto, ver utilitarismo, indirecto
individualismo,
individualidade,
interesses,
direitos baseados nos,
IRA,

Jake e Amy,
Jay, John,
Jesus,
justiça:
administração da,
circunstâncias da,
determinada pelo género,
primazia da,
no estado de natureza,
distributiva

Kant, Immanuel,
conhecimento, falibilidade do,
Kropotkin, Peter,

trabalho,
laissez-faire,
terra, ver propriedade
lei, leis,
obrigação de obediência, ver obrigação política
Lei da Natureza (Locke),
Poder Executivo da,
Leis da Natureza (Hobbes),
lei fundamental,
individualismo liberal,
liberalismo,

295
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

anarquismo,
liberdade e liberdades,
liberdade vs. autoridade,
democracia e,
feminismo e,
individualismo e,
valor intrínseco da,
princípio da liberdade (Mill),
limitações ao,
princípio da liberdade (Rawls)
liberdade natural (Hobbes),
liberdade natural (Locke),
positiva e negativa,
relação com a propriedade,
ver também igualdade e liberdade; utilitarismo e liberdade
Locke, John:
e o individualismo,
sobre a justificação do estado,
sobre os direitos naturais,
sobre a propriedade,
separação de poderes,
sobre o estado de natureza,

Madison, James,
mercados,
Marx, Heinrich,
Marx, Karl,
contra o mercado livre,
economia planificada,
sobre direitos e emancipação,
licença de maternidade,
maximax,
maximin,
intermediários,
Mill, John Stuart:
sobre a democracia,
sobre a igualdade,

296
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

sobre a justificação do estado,


sobre a liberdade,
sobre a filosofia política,
sobre a propriedade,
dinheiro,
monges,
Montesquieu, Barão de,
moral:
e democracia,
família e,
liberdade e,
e obrigação política,
no estado de natureza,
deveres voluntários e não voluntários,
ver também afectos, ética dos; justiça
movimento, conservação do,
Mullin, Chris,

direitos naturais, ver direitos, naturais


natureza, ver lei da natureza; razão, natural; estado de natu-
reza
normas,
Nozick, Robert:
contra as concepções padronizadas de justiça,
contra o socialismo,
anarquismo,
sobre o princípio da equidade,
sobre a propriedade,
Nove, Alec,

Oakeshott, Michael,
Okin, Susan Moller,
sondagens de opinião,
posição original,

licença parental,
paternalismo,

297
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

patriarcado,
Pen, Jan,
Péricles,
piedade, ver compaixão
economia planificada,
Platão,
veneno,
obrigação política,
filosofia política,
ciência política,
poder,
político,
preferências,
fortes preferências,
orgulho,
bens primários,
dilema do prisioneiro,
progresso,
propriedade,
justificação da,
em Locke,
cláusulas de Locke,
em Rousseau,
representação proporcional,
opinião pública,
Publius,
punição,
direito natural de punir,

raça, ver igualdade, racial


racionalismo,
racionalidade:
em Hume,
consentimento hipotético e,
individual e colectiva,
teoria da escolha racional,
Rawls e,

298
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Rawls, John,
razão, natural,
rectificação, justiça na,
direito de natureza (Hobbes),
direitos,
convencionais,
democracia e,
individualismo e,
críticas marxistas aos,
naturais,
utilitaristas, ver utilitarismo e direitos/liberdade
risco,
Rousseau, Jean-Jacques:
contra o progresso,
e a democracia,
sobre o estado de natureza,
e o consentimento tácito,
sobre a tributação,
ver também vontade geral; soberano, concepção de Rous-
seau do,
Rowbotham, Sheila,

Sartre, Jean-Paul,
escassez,
princípio da auto-adopção,
direito de autodefesa,
acções respeitantes a si próprio e respeitantes aos outros,
autopreservação/autoprotecção,
ver também autodefesa
separação de poderes,
sexo e género,
ver também igualdade, sexual
Sidgwick, Henry,
Smith, Adam,
contrato social,
mínimo social,
socialismo,

299
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Sócrates,
soberano,
concepção de Rousseau de,
estado, o,
anarquismo e,
holismo e,
justificação do,
liberdade e,
estado de natureza,
individualismo e,
enquanto estado de guerra,
e confiança,
Stephen, James Fitzjames,
obrigações decorrentes do comprometimento,
valor simbólico,

consentimento/acordo tácito,
tributação,
teologia,
pensamento, liberdade de,
Tucídides,
Tocqueville, Alexis de,
tolerância,
tradição, ver costume
transferência, justiça na,
confiança,
ditadura da maioria,

utilitarismo,
colonial,
indirecto,
individualismo e,
justificação do estado,
propriedade e,
Rawls e,
e direitos/liberdade,
objecção do bode expiatório,

300
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Voltaire,
voluntarismo,
eleições:
e facções,
motivação dos eleitores,
e participação,
e obrigação política,
não democráticas,
ver também democracia

Waldron, Jeremy,
Weber, Max,
estado-providência,
Wilde, Oscar,
exemplo do jogador de basquetebol,
Relatório de Wolfenden,
Wolff, R. P.,
Wollstonecraft, Mary,

301

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