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J. R.

Geraldini 197

A Formação da Psicologia Pela Análise


Arqueológica

The formation of psychology through archaeological analysis

Janaína Rodrigues Geraldini1


Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

Resumo
A proposta deste artigo é refletir sobre a múltipla formação da psicologia na esfera do saber, por
meio da obra As palavras e as coisas, do pensador Michel Foucault. Trazendo algumas características
da abordagem arqueológica como o modelo histórico de investigação desenvolvido pelo autor, este
percurso inicia-se no século XVI, passando pelos séculos XVII e XVIII, e finalmente chegando à
modernidade – palco do nascimento das ciências humanas. A psicologia surge enquanto disciplina
influenciada pelas bases epistemológicas e metodológicas da ciência moderna, atravessada inclusive
pelas reflexões filosóficas da época. Dentro desse contexto é possível compreender a diversidade de
conceitos, métodos e objetos que constituem a psicologia, problematizando-a enquanto construção
histórica.
Palavras-chave: Psicologia; História; Análise Arqueológica

Abstract
The proposal of this article is to reflect on the multiple formation of psychology in the sphere of
knowledge, through the work the order of things by the philosopher Michel Foucault. Bringing with
it some characteristics of the archaeological approach such as a historical model of investigation
developed by the author, this philosophical journey begins in the 16th century, passing through the
17th and 18th centuries, and finally reaching modernity – the stage of the birth of human sciences.
Psychology emerges as a discipline influenced by the epistemological and methodological bases of
modern science, highly influenced by the philosophical discussions of the period. In this context, it is
possible to understand the diversity of concepts, methods and objects that constitute psychology,
questioning same as a historical construction.
Keywords: Psychology; History; Archaeological Analysis

1 Contato: jgeraldini@yahoo.com.br

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Este trabalho nasceu da necessidade de características de tal abordagem, as posições


abordar temas e discussões existentes no e inovações que esta metodologia trouxe
campo da história da psicologia a partir das como contribuição para o pensamento
ideias do pensador francês Michel Foucault. acadêmico.
Ao longo das nossas pesquisas surgiu, então, A arqueologia do saber pergunta o que
a obra de grande referência para realizar a torna possível determinado saber. É neste
construção desta proposta de estudo, qual sentido que Foucault, no processo da análise
seja, “As palavras e as coisas”. Foucault arqueológica, focaliza múltiplas
dedicou-se ao estudo das configurações do transformações que ocorrem no campo do
saber, deixando um complexo pensamento saber, inferindo sobre a criação de outras
que contribui para a compreensão da formas de racionalidade (Motta, 2005).
formação das ciências humanas na história Fazer análises arqueológicas significa
do pensamento ocidental. Por se tratar de fazer análises dos discursos. Entretanto, os
uma obra difícil, arriscamos trilhar este discursos de uma dada época são analisados
caminho não pretendendo dar conta de toda de forma a não priorizar um tipo específico,
a sua complexidade, mas na tentativa de como focalizar apenas discursos científicos,
entender o tema da história arqueológica ou apenas filosóficos, ou de romances e
dos saberes, buscando compreender o poesias etc. Foucault, e aí se encontra o
nascimento do homem e das ciências diferencial em suas análises, rompe com as
humanas, tendo como principal foco a análises tradicionais que caracterizam um
construção da psicologia dentro de tal discurso por um modo determinado de
contexto. enunciação, e procura uma unidade que
Pretendendo situar o leitor acerca dos perpasse os diferentes discursos de uma
pensamentos e discursos que contribuem época.
para a formação da psicologia na abordagem A arqueologia do saber conduz todo o
arqueológica proposta por Foucault, esta processo de construção histórica da
pesquisa inicia seu percurso no episteme renascentista, clássica e moderna.
Renascimento do século XVI, passando Foucault desenvolve esta abordagem
pelo Classicismo dos séculos XVII e XVIII influenciado pela epistemologia, trazendo
e, finalmente, chegando à modernidade – dela algumas posições metodológicas,
palco do nascimento da sociologia, da embora formule outro objeto de análise.
análise das literaturas e dos mitos, e da Assim, o objeto de estudo das análises
psicologia. arqueológicas é o saber enquanto
aproximação e distinção de discursos, os
A análise arqueológica quais são estudados independentemente de
Inicialmente, falaremos sobre o método se caracterizarem como científicos.
histórico que norteou a análise do saber, A fim de explicitar que, para Foucault,
compreendendo, por meio das ciência e saber não são sinônimos, é preciso

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considerar que o saber não é exclusividade, podendo, desta forma, mostrar outras
nem dependente das ciências, embora toda características da abordagem arqueológica.
ciência esteja localizada no campo do saber. A ciência é objeto de estudo da
O saber é definido por meio de documentos epistemologia e, aqui sim, cabe o destaque
científicos, filosóficos ou literários que para as análises de caráter científico.
possibilitam a constituição de formações A epistemologia tem como objeto as
ciências por ela investigadas em sua
discursivas. É por isso que a questão da historicidade a partir da constituição
cientificidade ou não de determinados histórica de seus conceitos, isto é, quanto
ao tipo de progresso que os caracteriza,
discursos não merecerem, para a quanto à conquista da objetividade, quanto
à produção da verdade, quanto à
arqueologia, importância teórica. instauração de critério de racionalidade, etc.
Fica claro, então, que, embora na análise (Machado, 1981, p.154).

arqueológica sejam encontrados conceitos A arqueologia tem como objeto o saber,


científicos, não é objetivo deste método enquanto que a epistemologia privilegia a
traçar o caminho percorrido pelas ciência. Desta forma, elas são diferentes na
disciplinas para obter o caráter de medida em que cada uma tem seu nível
cientificidade. Da mesma forma, não é próprio de análise (Machado, 1981).
objetivo da arqueologia focalizar somente os Enquanto a epistemologia procura
conceitos científicos, embora estes também estabelecer em que condições é dada a
façam parte de suas análises. Machado validade das ciências, ou seja, como obtêm
(1981, p.173) explica que “a arqueologia, seu caráter científico, a arqueologia busca as
neutralizando a questão da cientificidade, condições de possibilidade dos discursos,
interroga as condições de existências dos considerando estes enquanto saber. Embora
discursos, mesmo quando os discursos são haja distinções entre as histórias
ou se pretendem científicos”. arqueológica e epistemológica, não devemos
Desta forma, a arqueologia propõe seu tomá-las como incompatíveis. Elas
estudo problematizando a ciência enquanto apresentam vários pontos em comum, e vale
saber e não a ciência em sua estrutura destacar que Foucault é fortemente
específica. É por isso que, como formações influenciado por dois autores que
discursivas de um determinado saber, é desenvolvem em seus trabalhos o método
possível encontrar textos jurídicos, epistemológico. Estamos falando de Gaston
expressões literárias, reflexões filosóficas, Bachelard e Georges Canguilhem (Machado,
decisões de ordem política, propósitos 1981).
cotidianos, opiniões, etc. (Foucault, 1987). Tanto a arqueologia quanto a
É importante destacar, já que estamos epistemologia criticam a visão de história
falando da arqueologia, das semelhanças e que julga a ciência como sendo construída
diferenças existentes entre esse método de por um progresso contínuo. É por isso que
análise e o método epistemológico, Machado (1981) considera que a história

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arqueológica é epistêmica no sentido de não mas não no sentido de tempo cronológico.


postular a existência da evolução do Daí Foucault (conforme citado por
conhecimento científico. Estes dois Machado, 1981) diferenciar
métodos históricos também se assemelham contemporaneidade de atualidade, e
ao negar as pretensas continuidades priorizar em seus estudos a primeira2.
estabelecidas pelas análises retrospectivas Embora tanto a epistemologia quanto a
que privilegiam os temas ou teorias. Ambas arqueologia levem em consideração a
criticam a história factual, e se constituem descontinuidade histórica em suas análises,
enquanto história conceitual (Machado, um ponto de divergência entre estes dois
1981). métodos é que a arqueologia não se propõe
Diante disso, podemos falar sobre a estabelecer as rupturas epistemológicas, mas
questão da descontinuidade histórica, atentar-se às diferenças e ao sistema que as
presente nas duas formas de análises que possibilita. Assim, falar de rupturas
não se caracterizam por um processo arqueológicas é referir-se à ruptura não de
homogêneo, nem atingem todas as um determinado conceito, como ocorre na
formações discursivas ou conceituais de epistemologia, mas da ruptura de uma
uma época. Assim, deve ser considerado, episteme, ou seja, de um conjunto de
mais especificamente para a arqueologia, que saberes de determinada época que possui
o tempo do saber, ou o tempo do discurso, conceitos interrelacionados (Machado,
não está disposto da mesma forma que o 1981).
tempo vivido, mas apresenta Diante das considerações feitas a respeito
descontinuidades e transformações da arqueologia, podemos ainda destacar que
específicas (Foucault, 2005b). É neste o método arqueológico não implica
sentido que a cronologia não é nem linear, um número determinado de procedimentos
invariáveis a serem utilizados na produção de um
nem homogênea. conhecimento [...] uma característica
Foucault (1987, p.199) considera que “a fundamental da arqueologia é justamente a
multiplicidade de suas definições; é a mobilidade
contemporaneidade de várias de uma pesquisa que, não aceitando se fixar em
cânones rígidos, é sempre instruída pelos
transformações não significa sua exata documentos pesquisados (Machado, 1981, p.14).
coincidência cronológica”. Assim, não quer
dizer que a ruptura que ocorre entre as 2
“Dizer que uma formação discursiva substitui outra
análises da história natural com a biologia [...] é dizer que [...] aconteceu uma transformação geral
coincida com o mesmo tempo cronológico de relações que, entretanto, não altera forçosamente
todos os elementos, que os enunciados obedecem a
da ruptura que se dá entre a análise das novas regras de formação e não que todos os objetos ou
conceitos, todas as enunciações ou todas as escolhas
riquezas com a economia política, por teóricas desaparecem” (Foucault, 1987, p.197). Neste
exemplo, embora ambas rupturas sentido de transformação geral de relações, é possível
perceber as rupturas dos saberes do século XVI com os
signifiquem a passagem do saber clássico saberes clássicos, e depois destes com o saber dos
modernos. Por isso afirmar que “a arqueologia fala [...]
para o moderno. Podemos dizer que houve de cortes, falhas, aberturas, formas inteiramente novas
contemporaneidade no sentido da episteme, de positividade e redistribuição súbitas” (Foucault, 1987,
p.194).

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É a partir desta definição que Machado discursiva” (Foucault, 1987, p.147).


(1981) explica existir uma trajetória da Citando Machado, no intuito de
arqueologia, referindo-se a não existência de aproximar as considerações feitas sobre a
uma unidade metodológica nas obras de análise arqueológica e o nosso objeto de
Foucault. Explicando melhor, essa trajetória estudo, que é a construção da psicologia na
foi realizada desde “A história da loucura”, episteme moderna, podemos dizer que
passando pelo “Nascimento da clínica”, e Foucault, na obra “As palavras e as coisas”
finalmente chegando à obra “As palavras e desenvolve uma
as coisas”3. Neste sentido, estes livros, que análise histórica que, estabelecendo um
mesmo recorte temporal para os saberes
são escritos por meio do método ocidentais do século XVI até o século XIX
arqueológico, merecem ser “estudados – Renascimento, época clássica e
modernidade –, procura destruir o mito da
como etapas cujas transformações se existência de um saber sobre o homem em
outras épocas que não a moderna, e
aplicam em parte pelos próprios objetos das demonstra o papel privilegiado que ocupa o
investigações” (Machado, 1981, p.14). homem nos saberes da modernidade,
através do estudo [...] das ciências empíricas
Citando uma das transformações da e da filosofia que instituem o homem como
ser empírico e transcendental e, finalmente,
arqueologia4, temos que o conceito de das ciências humanas que o representa
positividade equivale à cientificidade para a como interioridade psicológica ou
exterioridade social (Machado, 1981, p.176).
epistemologia e inicialmente para Foucault –
como pode ser constatado em sua obra “O As epistemes renascentista e clássica
nascimento da clínica”, por exemplo – Conforme Machado (1981), a análise das
(Machado, 1981); já em “As palavras e as ciências humanas em As palavras e as coisas
coisas” (1999), positividade passa a não corresponde a uma descrição isolada
desempenhar um papel de a priori histórico, sobre tais disciplinas, mas equivale a uma
ou seja, não mais se refere ao caráter interrelação de saberes:
científico de uma teoria, mas ao “conjunto assim, para analisar o aparecimento das
ciências humanas em determinado
das regras que caracterizam uma prática
momento foi necessário tanto [...] descrever
outras épocas [...] para mostrar porque
3 Para Machado (1981), estas obras de Foucault antes da época moderna não houve, nem
completam a constituição histórica dos saberes sobre o poderia ter havido, um saber sobre o
homem, como se fossem três volumes de um único homem – o das ciências humanas ou outro
estudo que procura compreender, por meio das qualquer –, como também descrever outros
diferentes etapas percorridas pela arqueologia, a saberes da modernidade sem a existência
formação das ciências humanas. É neste sentido que ele dos quais não poderia haver ciências
considera que “há [...] homogeneidade entre as humanas e que, por este motivo, devem ser
pesquisas arqueológicas de Foucault quando considerados seus saberes constituintes
consideradas em suas grandes linhas. Podemos afirmar (Machado, 1981, p.123).
que se trata de uma única e extensa pesquisa centrada na
questão do homem no saber da modernidade” É por meio dessa perspectiva que
(Machado, 1981, p. 176).
4 escolhemos fazer uma dilatação do tempo,
Colocamos apenas este exemplo a título ilustrativo
para mostrar uma das modificações na trajetória da trazendo as características do pensamento
arqueologia, pois não é objetivo desta pesquisa estender
tal discussão, já que esta trajetória faz referência a outras ocidental num período anterior ao moderno,
obras de Foucault que não serão aqui estudadas.

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a fim de compreender o nascimento do delas. A atenção volta-se para os sinais da


homem como objeto do saber no século natureza, para o discurso dos antigos e para
XIX, tal como proposto por Foucault as indicações naturais que se mostram
(1999). através das relações de semelhança que,
O século XVI é caracterizado por uma paulatina e insistentemente, vão sendo
forma de pensar que Foucault (1999) chama elaboradas. Consequentemente,
de “similitudes”. Pensar de acordo com as os conhecimentos do século XVI eram
constituídos por uma mistura instável de
similitudes significa ver o mundo através de saber racional, de noções derivadas das
semelhanças e de diferenças com relação às práticas da magia e de toda uma herança
cultural, cujos poderes de autoridade a
coisas da natureza. Assim, algo passa a ser redescoberta de textos antigos havia
multiplicado. Assim concebida, a ciência
caracterizado comparativamente às coisas já dessa época aparece dotada de uma
conhecidas. Nesta percepção de mundo, a estrutura frágil; ela não seria mais do que o
lugar liberal de um afrontamento entre a
construção do saber está imbricada, fidelidade dos antigos, o gosto pelo
maravilhoso e uma atenção já despertada
inclusive, na compreensão dos signos que a para essa soberana racionalidade na qual
natureza oferece aos homens e, de forma nos reconhecemos (Foucault, 1999, p.44).

mais específica, no entendimento dos signos Com relação aos séculos XVII e XVIII,
que Deus apresenta aos homens. Cabem aos denominado por Foucault (1999) de idade
homens, neste sentido, desvendá-los. clássica, vamos encontrar no espaço do
Se, por um lado, no século XVI existem saber a análise da representação no
conhecimentos e técnicas que falam dos momento em que “o pensamento cessa de
signos e descobrem seus sentidos e, por se mover no elemento da semelhança. A
outro lado, existem conhecimentos e similitude não é mais a forma do saber, mas
técnicas que distinguem onde estão estes antes a ocasião do erro, o perigo ao qual nos
signos, é neste “espaço sombrio” entre o expomos quando não examinamos o lugar
primeiro e o segundo - visto que ambos não mal esclarecido das confusões” (Foucault,
se encontravam claros nem vinculados - que 1999, p.70). Assim, no Classicismo,
o saber do século XVI vai encontrar seu constrói-se uma ciência geral ligada
espaço, e aproximá-los. fundamentalmente a uma “teoria da
As descrições das coisas da natureza representação”. Representar significa
através da decifração dos signos que os comparar estruturas visíveis das coisas da
homens acreditam ter encontrado são dadas natureza e relacioná-las, considerando
em termos de semelhanças. Como tais identidades e diferenças, por meio de um
signos são colocados por Deus, há muito de princípio ordenador que contém elementos
divino no pensamento ocidental deste homogêneos.
século. Assim, a natureza estaria repleta de Há, neste sentido, a colocação de plantas
figuras semeadas por Deus para serem e animais em séries lineares, caracterizando-
decifradas. Se os antigos já haviam feito suas se de um modo universal uma ciência geral
interpretações, cabia agora o entendimento da ordem, cujo instrumento principal é a

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disposição das coisas em quadros ordenados p.201) concebe “a história natural como o
das identidades e das diferenças. Por meio conjunto dos métodos pelos quais se
de um suporte epistemológico em que “o definiram os seres vivos como objeto de
conhecimento dos indivíduos empíricos só uma classificação possível, e que relações de
pode ser adquirido sobre o quadro contínuo, ordem se estabeleceram entre eles”. Com
ordenado e universal de todas as diferenças relação à análise das riquezas, que ainda não
possíveis” (Foucault, 1999, p.199), surge um se inscreve como a economia política da
“tempo classificado” inscrito sob a modernidade, o processo de ordenação
influência do pensamento racional de clássica está situado em cima do valor;
Descartes que universaliza o ato da utilizam-se o comércio e a troca para
comparação. A partir dele, as coisas são analisar a formação do valor a fim de se
comparadas em termos de medida e de estudar as teorias da circulação e da
ordem. distribuição de riquezas (Machado, 1981). A
Para Foucault (1999, p.222), o que se gramática geral, por sua vez, preocupa-se
configura no Classicismo como uma ciência com a análise da representação por meio de
da vida, não se constitui ainda uma biologia, uma ordem sucessiva, dispondo-a parte por
pois “com efeito, até o século XVIII, a vida parte em uma ordem linear, articulando os
não existe. Apenas existem seres vivos”. sons um a um, “desde as mais simples
Considerando-se a existência dos elementos representações até as mais finas análises ou
da natureza, e constituindo-se uma forma as mais complexas combinações” (Foucault,
ordenada de abordá-los, busca-se também 1999, p.117).
uma nova maneira de nomear os seres vivos.
Assim, “a tarefa fundamental do ‘discurso’ A formação da psicologia na
clássico consiste em atribuir um nome às modernidade
coisas e com esse nome nomear o seu ser” Este autor diferencia a episteme clássica
(Foucault, 1999, p.169). Ocorre, então, no da moderna quando diz que a primeira é
domínio do saber, uma preocupação com caracterizada pela representação e a segunda
relação à linguagem no sentido de lhe dar a é marcada pela dupla experiência do homem
função e o poder de representar o enquanto sujeito e objeto do saber. Neste
pensamento. Ao saber, “cumpre-lhe fabricar sentido, o “homem moderno do
uma língua e que ela seja bem-feita – isto é, conhecimento” é chamado por Foucault
que, analisante e combinante, ela seja (1999) de “duplo-empírico-transcendental”.
realmente a língua dos cálculos” (Foucault, Foucault (1999) considera que, apesar de se
1999, p.86). poder reconhecer o “homem” no
A ciência da vida para o Classicismo não Classicismo, seja com relação à história
está na ordem da biologia, mas configura-se natural, à gramática geral ou à análise das
como uma história natural. Foucault (2005a, riquezas, esta ordem não se configura com

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uma consciência epistemológica do homem transcendental. Com o estudo do sujeito de


como fundamento e objeto. Assim, o século Kant, a filosofia sai da metafísica da
XIX constitui uma nova positividade que representação operada por Descartes e pelos
compõe ainda em grande parte as ciências Ideólogos, e traz o tema do transcendental
atuais (Foucault, 1999). para a modernidade. A partir da analítica
O homem surge na biologia, na kantiana, surgem a analítica positivista com
economia política e na filologia enquanto Comte, as reflexões dialéticas com Hegel, e
invenção recente desses saberes, não a fenomenologia de Husserl (Machado,
estando mais no final do quadro clássico 1981). Na modernidade, os domínios
como o modelo último e perfeito. Ele agora empíricos dialogam com as reflexões
é dado à experiência, e é pensado como um filosóficas sobre a subjetividade e o ser
objeto a ser descoberto e desvendado, como humano (Foucault, 1999).
um objeto que tem um corpo físico com Ao explicar a configuração
estrutura e funcionamento que devem ser epistemológica das ciências humanas, ou
explorados. Enquanto um ser que trabalha, seja, da psicologia, sociologia e análise das
as condições que circulam este espaço serão literaturas e dos mitos, Foucault (1999)
pensadas como constitutivas dele próprio. A inicialmente delimita um espaço composto
linguagem também irá fazer parte desta por três dimensões, chamado por este autor
busca que pretende entender o modo como de “triedro epistemológico ou triedro dos
o homem se constitui; investe, por sua vez, saberes”. Nas faces do triedro estão as
na fala enquanto meio para se obter tal ciências matemáticas e físicas (ciências
conhecimento. dedutivas), as ciências da vida, da linguagem,
Além de considerar que a episteme da produção e da distribuição das riquezas
moderna constrói um novo modelo de (ciências empíricas) e, por último, aquela
pensamento pautado na cientificidade, é definida como a reflexão filosófica. Estas
importante destacar outra característica dimensões são caracterizadas a partir do
marcante deste período, que servirá também século XIX e encontram-se definidas entre
como base para a formação das ciências si num plano comum.
humanas: a filosofia moderna que é A figura do triedro esquematizada por
caracterizada enquanto antropologia Foucault (1999) mostra a configuração
analítica (Machado, 1981). Antropologia, no epistemológica do saber na modernidade, de
sentido de inaugurar a problemática do forma a evidenciar que as ciências humanas
homem, sendo ele próprio o sujeito que não cabem neste modelo, e que não há,
legisla e que constitui o objeto. E analítica, portanto, um espaço vazio nas superfícies
no sentido das repetições que são para elas ocuparem. É nos interstícios deste
promovidas pela identidade e pela diferença triedro, nas arestas destas faces, que as
entre o homem que se apresenta, ao mesmo ciências humanas irão transitar, sem estarem
tempo, como ser empírico e como ser fixadas em um lugar específico. Elas irão

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reduplicar os conceitos das ciências enquanto disciplina científica. Assim,


empíricas e filosóficas e utilizar métodos e as psicologias que surgem até o final dos
anos 1920 trazem o estigma do pensamento
conceitos inclusive das ciências dedutivas a científico clássico, que é fragmentário,
fim de se constituírem e se firmarem indutivista, quantitativista e positivista, e
nascem sujeitas ao paradigma mecânico da
enquanto disciplinas. física newtoniana, como não poderia deixar
de ser com qualquer saber com pretensão
O modelo de ciência que se edifica na ao estatuto de ciência nesse momento.
modernidade diz respeito à produção de Predominam no discurso psicológico [...] o
pensamento funcionalista e um certo
verdades devidamente fundamentadas. Para biologismo naturalizante – o conhecimento
psicológico é ainda acrítico, e está muito
tanto, buscam-se regularidades, objetividade próximo de suas matrizes biológicas (Prado
e universalismo, com a finalidade de Filho, 2005, p.82-83).

desvendar as leis imutáveis que regem a A psicologia tem como característica uma
natureza. A psicologia, na pretensão de formação bastante diversificada de modelos
alcançar status de cientificidade, desenvolve transferidos de outras ciências. Vemos, num
teorias e técnicas pautadas no modelo primeiro momento, que o processo
positivista da ciência moderna (Prado Filho, norteador da sua constituição arqueológica é
2005). Assim, a psicologia transfere das dado por meio da transferência de alguns
ciências empíricas as leis que determinam os conceitos da biologia e da fisiologia,
fenômenos naturais para, por meio de bases passando a se realizar um estudo das
metodológicas quantitativas e por meio dos representações no homem enquanto ser
estudos de verificação com experimentos, vivo funcional, fisiológico e neuromotor.
aplicá-las ao homem (Foucault, 2002). Sua diversidade passa pelas influências da
É neste sentido que podemos falar da filosofia moderna, e pelos modelos formais
naturalização dos fenômenos psíquicos e da herdados das ciências dedutivas.
naturalização dos estudos empreendidos Embora as influências sofridas pela
para descobrir tais fenômenos (Hüning & psicologia estejam bem marcadas, é
Guareschi, 2005). Com raízes no modelo da interessante pontuar que isto não implica
objetividade natural, o conhecimento um consenso entre os estudos psicológicos.
desenvolvido pela psicologia é voltado para O modelo orgânico da biologia e da
descobrir as leis que regem a realidade fisiologia, as perspectivas evolucionista e
psíquica do homem, espelhando-se nas adaptacionista herdeiras dos estudos de
descobertas das leis que movem a natureza. Darwin, os modelos quantitativos
O mesmo movimento de separação entre o empiricamente comprováveis das
sujeito ativo do conhecimento e seu objeto matemáticas e das físicas, e ainda as
de estudo, garantido pelos discursos de reflexões filosóficas, que vão desde o
neutralidade do observador, foi transferido homem transcendental kantiano, passando
para os estudos empreendidos pela pelo positivismo de Comte, transitando
psicologia, no intuito de se constituir vezes pelo pensamento fenomenológico de

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Husserl, vezes pelo materialismo histórico (Foucault, 1999).


de Marx, ou ainda pelo humanismo Diante destas análises, compreendemos
proposto por Rousseau, compõem uma que eleger uma verdade universal, ou
multiplicidade de diferentes conceitos, legitimar um método perfeito para se
métodos e objetos que se unificam sob o conhecer um objeto, acaba se tornando
nome de psicologia. descabido dentro da diversidade que
É neste sentido que chamamos atenção compõe a formação da psicologia. A
para se perceber uma amplitude de proposta que aqui fazemos é contrária ao
cruzamentos que a psicologia faz desde seu modo de se produzir conhecimento sob a
nascimento, visitando as diferentes ótica da evolução, na qual a psicologia
disciplinas do triedro epistemológico na sua construída no contemporâneo é dada como
constituição histórica, não se fixando num mais avançada e melhor que as propostas de
lugar determinado. Num movimento se pensar o homem feitas anteriormente, e
diferente, ela transita pelas arestas desta na qual se busca a concorrência e
figura, e se compõe enquanto múltipla, legitimação de um modelo-perfeito a ser
remetendo a uma disciplina que se fabricou substituído pelas demais psicologias
de diferentes formas, o que impossibilita construídas.
pensá-la a partir de uma unidade ou de uma A formação do campo de estudos
universalidade. Consequências desse psicológicos está configurada de forma
percurso incessante são as várias teorias e múltipla, possui diversas entradas, transita
técnicas psicológicas, que se diferenciam ou sob diferentes espaços na esfera do saber e
se encontram, a depender do “guarda- se mantém realizando novas parcerias e
chuva” ou “âncora” epistemológicos que arranjos. Sendo assim, menos que investir
cobrem ou (sustentam) cada uma delas. em esforços para se produzir sua unificação
Por meio do pensamento foucaultiano, e menos que fomentar o gerenciamento de
perguntamos quais são as condições de uma única maneira para se pensar o homem,
possibilidade para a formação do saber nossa proposta encontra-se mais
psicológico. A análise arqueológica permite consonante com a ideia de se pensar, por
buscar na história as práticas e os saberes meio da história, no “homem” que estamos
que provocam a emergência da psicologia produzindo e nos modos de vida e de se
enquanto disciplina científica no campo do viver que a psicologia, enquanto saber
conhecimento. Sob tal perspectiva, tomamos instituído, legitima e normaliza. Visto que o
a ciência e a verdade como produções homem é um ser histórico, objeto de uma
históricas, desnaturalizando-as. O homem, ciência que institui verdades e produzido
enquanto objeto de uma ciência que institui pelo saber científico, a ocupação da
verdades, é uma invenção recente, datado psicologia de pensar-se enquanto
historicamente, e que nasce no século XIX agenciadora e parte constituinte desta
com a formação das ciências humanas formação de verdades que se concretiza sob

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o que conhecemos por “ser homem” se Trad). (8. ed). São Paulo: Martins Fontes.
torna imprescindível.
Foucault, M. (1987). A arqueologia do saber. (L. F.
B. Neves, Trad). (3. ed). Rio de Janeiro: Forense
Referências Universitária.
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Hüning, S. M., & Guareschi, N. M. F. (2005).
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Efeito Foucault: desacomodar a psicologia. In N.
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Recebido em: 29/05/2011


Aceito em: 28/05/2012

▲ Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, 5 (2), jul - dez , 2012,197- 207

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