Você está na página 1de 15

1

O QUE É ANTROPOLOGIA?

Adaptabilidade humana Aplicando a antropologia à cultura


Adaptação, variação e mudança popular: Indiana Jones
Antropologia geral Antropologia biológica ou física
As forças culturais formam Antropologia linguística
a biologia humana Antropologia e outros campos
As subdisciplinas da acadêmicos
antropologia Antropologia aplicada
Antropologia cultural Antropologia hoje: filho de
Antropologia arqueológica antropóloga é eleito presidente

“É apenas natureza humana.” “As pessoas ções a vela, nas águas do Atlântico. Entre o
são praticamente as mesmas em todo o povo Betsileu de Madagascar, trabalhei em
mundo.” Esse tipo de opinião, que ouvimos campos de arroz e participei de cerimônias
em conversas, nos meios de comunicação nas quais entrei em túmulos para reembal-
de massa e em muitas cenas na vida cotidia- samar corpos de ancestrais em decompo­
na, promove a ideia equivocada de que as sição.
pessoas de outros países têm os mesmos de- No entanto, a antropologia é muito
sejos, sentimentos, valores e aspirações que mais do que o estudo dos povos não indus-
nós. Essas afirmações proclamam que, trializados. É uma ciência comparativa que
como são em essência as mesmas, as pes­ analisa todas as sociedades, antigas e mo-
soas estão ávidas por receber ideias, crenças, dernas, simples e complexas. A maioria das
valores, instituições, práticas e produtos de outras ciências sociais tende a se concentrar
uma cultura norte-americana que se disse- em uma única sociedade, em geral nações
mina em todas as partes do globo terrestre. industrializadas, como os Estados Unidos
Muitas vezes, esse pressuposto acaba se re- ou o Canadá. A antropologia oferece uma
velando equivocado. perspectiva intercultural única, comparan-
A antropologia oferece uma visão do constantemente os costumes de uma so-
mais ampla – uma perspectiva comparativa ciedade com os das outras.
diferenciada e intercultural. A maioria das Para ser antropólogo cultural, costu-
pessoas pensa que os antropólogos estudam ma-se fazer etnografia (o estudo em primei-
as sociedades não industriais, e eles o fazem. ra mão e pessoal de contextos locais). O tra-
Minha pesquisa me levou a aldeias remotas balho de campo etnográfico geralmente
no Brasil e em Madagascar, uma grande ilha implica passar um ano ou mais em outra
na costa sudeste da África. No Brasil, nave- sociedade, vivendo com a população local e
guei com pescadores em simples embarca- aprendendo sobre seu modo de vida.
28 Conrad Phillip Kottak

Não importa o quanto descubra sobre gia, que é o estudo da espécie humana e
essa sociedade, o etnógrafo continuará sendo seus ancestrais imediatos. A antropologia é
estrangeiro naquele contexto. Essa experiên- uma ciên­cia exclusivamente comparativa e
cia de estranhamento tem um impacto pro- holística. O holismo se refere ao estudo de
fundo. Tendo aprendido a respeitar outros toda a condição humana: passado, presente
costumes e crenças, os antropólogos nunca e futuro, biologia, sociedade, língua e cul­
podem se esquecer de que existe um mundo tura.
mais amplo. Existem outros modos normais As pessoas compartilham a sociedade
de pensar e agir que diferem dos nossos. – vida organizada em grupos – com outros
animais, incluindo babuínos, lobos, toupei-
ras e até formigas, mas a cultura é mais es-
ADAPTABILIDADE HUMANA pecificamente humana. As culturas são tra-
dições e costumes transmitidos pela apren-
Os antropólogos estudam os seres humanos dizagem que formam e orientam as crenças
em locais e momentos em que os encon- e o comportamento das pessoas expostas a
tram – em um café turco, um túmulo da eles. As crianças aprendem uma tradição ao
Mesopotâmia ou em um shopping center crescer em uma determinada sociedade,
nos Estados Unidos. A antropologia é a pes- por meio de um processo chamado de en-
quisa da diversidade humana no tempo e culturação. As tradições culturais incluem
no espaço, estudando o conjunto da condi- costumes e opiniões desenvolvidos ao longo
ção humana: passado, presente e futuro, de gerações, que dizem respeito a compor-
biologia, sociedade, língua e cultura. De tamentos adequados e inadequados. Essas
particular interesse é a diversidade que se dá tradições respondem a perguntas do tipo:
por meio da adaptabilidade humana. Como as coisas devem ser feitas? Como po-
Os seres humanos estão entre os demos entender o mundo? Como podemos
­animais mais adaptáveis do mundo. Nos distinguir o certo do errado? O que é certo
Andes, na América do Sul, as pessoas acor- e o que é errado? Uma cultura produz um
dam em aldeias cerca de 5.000 m acima do grau de coerência de comportamento e de
nível do mar e sobem caminhando mais pensamento entre as pessoas que vivem em
500 m para trabalhar em minas de estanho. uma determinada sociedade.
Tribos no deserto australiano cultuam ani- O elemento mais fundamental das
mais e discutem filosofia. As pessoas sobre- tradições culturais é sua transmissão pela
vivem à malária nos trópicos. Os homens aprendizagem e não por meio de herança
caminharam na Lua. A miniatura da nave biológica. A cultura, em si, não é biológica,
estelar Enterprise, na Smithsonian Institu- mas se baseia em certas características da
tion de Washington, simboliza o desejo de biologia humana. Há mais de um milhão de
“buscar uma nova vida e novas civilizações, anos, os seres humanos têm pelo menos al-
de ir audaciosamente onde ninguém jamais gumas das capacidades biológicas das quais
esteve”. Os desejos de conhecer o desconhe- depende a cultura: aprender, pensar de
cido, controlar o incontrolável e criar or­ modo simbólico, usar a linguagem e empre-
dem a partir do caos encontram expressão gar ferramentas e outros produtos para or-
entre todos os povos. A criatividade, a adap- ganizar suas vidas e se adaptar aos seus am-
tabilidade e a flexibilidade são atributos bientes.
­humanos básicos, e a diversidade humana é A antropologia enfrenta grandes ques-
o tema da antropologia. tões da existência humana e reflete sobre
Os estudantes muitas vezes se sur­ elas ao explorar a diversidade biológica e
preendem com a amplitude da antropolo- cultural humana no tempo e no espaço.
Um espelho para a humanidade 29

Examinando ossos e ferramentas antigas, ções culturais. A Tabela 1.1 resume os recur-
desvendam-se os mistérios das origens hu- sos culturais e biológicos usados para adap-
manas. tação a grandes altitudes.
Quando foi que nossos antepassados Os terrenos montanhosos apresentam
se separaram daqueles remotos tios-avôs desafios específicos, associados a altitude ele-
cujos descendentes são os símios? Onde e vada e privação de oxigênio. Considere qua-
quando teve origem o Homo sapiens? Como tro maneiras (uma cultural e três biológicas)
a nossa espécie mudou? O que somos agora com as quais os seres humanos podem lidar
e para onde estamos indo? De que forma as com a baixa pressão de oxigênio na altitude
mudanças na cultura e na sociedade in- elevada. Para ilustrar a adaptação cultural
fluenciaram a mudança biológica? Nosso (tecnológica), pensemos em uma cabine
gênero, o Homo, vem mudando há mais de pressurizada de avião equipada com másca-
2 milhões de anos. Os seres humanos conti- ras de oxigênio. Existem três maneiras de se
nuam se adaptando e mudando, biológica e adaptar biologicamente à altitude: adapta-
culturalmente. ção genética, adaptação fisiológica de longo
prazo e adaptação fisiológica de curto prazo.
Primeiro, populações nativas de áreas de alti-
Adaptação, variação e mudança tude elevada, como os Andes, no Peru, e os
Himalaias, no Tibete e no Nepal, parecem ter
A adaptação diz respeito aos processos pelos adquirido certas vantagens genéticas para
quais os organismos lidam com forças e ten- viver nesse ambiente. É provável que a ten-
sões ambientais, como as que são apresenta- dência andina de desenvolver peito e pul-
das pelo clima e pela topografia, ou os terre- mões volumosos tenha base genética. Em se-
nos, também chamados de acidentes geográ- gundo lugar, independentemente dos seus
ficos. De que modo os organismos mudam genes, as pessoas que crescem em uma altitu-
para se ajustar a seus ambientes, como cli- de elevada se tornam fisiologicamente mais
mas secos ou altitudes elevadas nas monta- eficientes naqueles lugares do que pessoas
nhas? Assim como outros animais, os seres geneticamente semelhantes que cresceram
humanos usam recursos biológicos de adap- ao nível do mar, ilustrando adaptação fisio-
tação, mas são os únicos a também ter solu- lógica de longo prazo durante o crescimento

TABELA 1.1 Formas de adaptação cultural e biológica (a altitude)

FORMA DE ADAPTAÇÃO TIPO DE ADAPTAÇÃO EXEMPLO

Tecnologia Cultural Cabine de avião pressurizada


com máscaras de oxigênio
Adaptação genética Biológica “Peito de barril”, maiores, de
(ocorre ao longo de gerações) nativos de grande altitude
Adaptação fisiológica de longo Biológica Sistema respiratório mais
prazo (ocorre durante o crescimento eficiente para extrair oxigênio
e desenvolvimento do organismo do ar rarefeito
individual)
Adaptação fisiológica de curto Biológica Aceleração dos batimentos
prazo (ocorre espontaneamente cardíacos, hiperventilação
quando o organismo individual
entra em novo ambiente)
30 Conrad Phillip Kottak

e o desenvolvimento do corpo. Terceiro, os por sistemas cada vez maiores – região,


seres humanos também têm capacidade para nação e mundo. O estudo dessas adaptações
adaptação fisiológica de curto prazo ou ime- contemporâneas cria novos desafios para a
diata. Portanto, quando quem vive nas planí- antropologia: “As culturas dos povos do
cies chega a terras altas, sua respiração e seus mundo precisam ser constantemente redes-
batimentos cardíacos se aceleram imediata- cobertas à medida que essas pessoas as rein-
mente. ventam ao transformar as circunstâncias
A hiperventilação aumenta o oxigênio históricas” (Marcus e Fischer, 1986, p. 24).
nos pulmões e artérias. Como o pulso tam-
bém aumenta, o sangue chega aos tecidos
mais depressa. Todas essas respostas adap- ANTROPOLOGIA GERAL
tativas variadas – culturais e biológicas – al-
cançam um único objetivo: manter o forne- A disciplina acadêmica da antropologia,
cimento adequado de oxigênio para o corpo. também conhecida como antropologia
No desenrolar da história humana, os geral ou antropologia de “quatro campos”,
meios sociais e culturais de adaptação se inclui quatro subdisciplinas ou subcampos
tornaram cada vez mais importantes. Nesse principais: sociocultural, arqueológica, bio-
processo, os seres humanos criaram diver- lógica e linguística. (Daqui em diante, a an-
sas formas de enfrentar a gama de ambien- tropologia cultural de mais curto prazo será
tes que ocuparam no tempo e no espaço. O usada como sinônimo de “antropologia so-
ritmo da adaptação e da mudança cultural ciocultural”.) Entre os subcampos, a antro-
tem se acelerado, em particular durante os pologia cultural é a que tem o maior núme-
últimos 10 mil anos. Durante milhões de ro de membros, e a maioria dos departa-
anos, caçar e coletar as dádivas da natureza mentos de antropologia ministra disciplinas
– o forrageio – foi a base única da subsistên- dos quatro campos.
cia humana, mas a produção de alimentos Há razões históricas para a inclusão
(o cultivo de plantas e a domesticação de de quatro subcampos em uma única disci-
animais), que teve origem cerca de 12 mil a plina. A origem da antropologia como
10 mil anos atrás, levou apenas alguns mi- campo científico, especificamente a antro-
lhares de anos para substituir a maioria das pologia nos Estados Unidos, pode ser iden-
áreas de forrageio. Entre 6000 e 5000 a.P. tificada no século XIX. Os primeiros antro-
(antes do presente), surgiram as primeiras pólogos do país estavam preocupados so-
civilizações, que eram sociedades grandes, bretudo com a história e as culturas dos
poderosas e complexas, como o Antigo povos nativos da América do Norte. O inte-
Egito, que conquistaram e governaram resse nas origens e na diversidade dos índios
grandes áreas geográficas. norte-americanos reuniu estudos sobre
Muito mais recentemente, a expansão costumes, vida social, língua e característi-
da produção industrial afetou de forma cas físicas. Os antropólogos ainda conside-
profunda a vida humana. Ao longo da his- ram questões como: de onde vieram os ín-
tória da humanidade, grandes inovações se dios da América do Norte? Quantas ondas
espalharam à custa das anteriores, e cada re- de migração os trouxeram ao Novo Mundo?
volução econômica tem tido repercussões Quais são as relações linguísticas, culturais
sociais e culturais. A economia global e as e biológicas entre esses povos, e entre eles e
comunicações de hoje ligam todas as pes­ a Ásia? (Observe que não se desenvolveu
soas contemporâneas, de forma direta ou uma antropologia de quatro campos unifi-
indireta, no sistema-mundo moderno. As cada na Europa, onde os subcampos ten-
pessoas devem lidar com as forças geradas dem a existir de modo separado.)
Um espelho para a humanidade 31

Também há razões lógicas para a uni-


dade da antropologia norte-americana.
Cada subcampo trata da variação no tempo
e no espaço (i.e., em diferentes áreas geo-
gráficas). Os antropólogos culturais e os ar-
queólogos estudam (entre muitos outros
temas) as mudanças na vida social e nos
costumes. Os arqueólogos lançam mão de
estudos de sociedades vivas para imaginar
como poderia ter sido a vida no passado. Os
bioantropólogos examinam mudanças evo-
lutivas na forma física, por exemplo, altera-
ções anatômicas que poderiam ter sido as-
sociadas à origem do uso de ferramentas ou
da linguagem. Os antropólogos linguistas
Em seus primórdios, a antropologia nos Es-
podem reconstruir os fundamentos dos
tados Unidos estava preocupada sobretudo
idiomas antigos estudando os modernos.
com a história e as culturas dos povos nati-
Os subcampos influenciam uns aos vos norte-americanos. Ely S. Parker, ou Ha-
outros à medida que antropólogos falam -sa-no-an-da, foi um indígena Seneca que
entre si, leem livros e revistas e se reúnem deu contribuições importantes ao início da
em organizações profissionais. A antropo- antropologia. Parker também foi Comissário
logia geral explora os conceitos básicos da de Assuntos Indígenas dos Estados Unidos.
biologia, da sociedade e da cultura huma-
nas e considera suas inter-relações. Os an-
tropólogos compartilham determinados senvolvem. As tradições culturais promo-
pressupostos essenciais, dos quais talvez o vem certas atividades e habilidades, desen-
mais fundamental seja a ideia de que as corajando outras, e estabelecem padrões de
conclusões sólidas sobre a “natureza huma- bem-estar e atratividade físicos. As ativida-
na” não podem ser derivadas do estudo de des físicas, incluindo esportes, que são in-
uma única população, nação, sociedade ou fluenciadas pela cultura, ajudam a moldar o
tradição cultural, sendo essencial uma corpo. Por exemplo, as meninas norte-ame-
abordagem comparativa e intercultural. ricanas são estimuladas a praticar competi-
ções que envolvem patinação artística, gi-
nástica, atletismo, natação, mergulho e
As forças culturais formam muitos outros esportes e, portanto, ter um
a biologia humana bom desempenho nessas atividades; as bra-
sileiras, ainda que se destaquem nos espor-
A perspectiva comparativa e biocultural da tes coletivos, como basquete e vôlei, não se
antropologia reconhece que as forças cultu- saem tão bem em esportes individuais,
rais moldam constantemente a biologia hu- como as norte-americanas e canadenses.
mana. (O termo “biocultural” se refere a Por que as pessoas são estimuladas a se no-
inclusão e combinação das perspectivas tabilizar como atletas em alguns países, mas
biológica e cultural e a abordagens para co- não em outros? Por que as pessoas em al-
mentar ou resolver um determinado pro- guns países investem tanto tempo e esforço
blema ou questão.) A cultura é uma força em esportes competitivos a ponto de que
ambiental fundamental na determinação de seus corpos se alterem significativamente
como os corpos humanos crescem e se de- como resultado disso?
32 Conrad Phillip Kottak

Padrões culturais de atratividade e ade-


quação influenciam a participação e o de-
sempenho nos esportes. Os norte-america-
nos correm ou nadam não apenas para com-
petir, mas para se manter em forma e em
boas condições físicas. Os padrões de beleza
do Brasil tradicionalmente aceitaram mais
gordura, em especial nas nádegas e nos qua-
dris das mulheres. Os homens brasileiros
têm obtido algum sucesso internacional na
natação e em corridas, mas o Brasil raramen-
te envia nadadoras ou corredoras às Olim­
píadas. Uma das razões para as brasileiras
evitarem a natação competitiva podem ser
os efeitos que o esporte tem sobre a modela-
ção do corpo.
Anos de natação esculpem um físico di-
ferenciado: torso superior alargado, pescoço
grosso e ombros e costas robustos. As nada- O Brasil raramente envia nadadoras para as
doras de sucesso tendem a ser grandes, fortes Olimpíadas. Uma exceção é Fabíola Molina,
e volumosas. Os países que mais produzem que competiu nas Olimpíadas de 2000 e 2008.
atletas femininas da natação são Estados Uni- Nessa foto, em maio de 2009, Fabíola dá um
dos, Canadá, Austrália, Alemanha, os países mergulho vencedor na final feminina dos 100
metros – nado costas, do Troféu Maria Lenk,
escandinavos, a Holanda e a ex-União Sovié-
no Rio de Janeiro. De que forma anos de na-
tica, onde esse tipo de corpo não é tão estig- tação competitiva podem afetar o fenótipo?
matizado como em países latinos. As nada-
doras desenvolvem corpos rígidos, mas a cul-
tura brasileira diz que as mulheres devem ser
delicadas, com quadris e nádegas grandes, crescimento, o mesmo se aplica às orienta-
sem ombros largos. Muitas jovens nadadoras ções culturais. Qual é o comportamento
do Brasil optam por abandonar o esporte adequado a meninos e meninas? Que tipo
para manter o corpo “feminino” ideal. de trabalho os homens e as mulheres devem
Quando você estava crescendo, qual fazer? Onde as pessoas deveriam viver?
era o esporte de que mais gostava: futebol, Quais são os usos apropriados do seu tempo
natação, futebol americano, beisebol, tênis, de lazer? Que papel deve cumprir a religião?
golfe ou algum outro (ou talvez nenhum)? Como as pessoas devem se relacionar com
Isso se dá em função de “quem você é” ou seus parentes, amigos e vizinhos? Embora
por causa das oportunidades que teve para nossos atributos genéticos proporcionem
praticar e participar nessa atividade especí- uma base para o nosso crescimento e desen-
fica quando era criança? Quando você era volvimento, a biologia humana é bastante
pequeno, talvez os seus pais tenham lhe dito plástica, isto é, maleável. A cultura é uma
que tomar leite e comer legumes iriam aju- força ambiental que afeta o nosso desenvol-
dá-lo a ficar “grande e forte”. Eles provavel- vimento, tanto quanto a nutrição, o calor, o
mente não reconheceram de forma imedia- frio e a altitude, e também orienta o nosso
ta o papel que a cultura cumpre na defini- crescimento emocional e cognitivo, ajudan-
ção de corpos, personalidades e saúde do a determinar o tipo de personalidade
pessoal. Se a nutrição é importante para o que temos como adultos.
Um espelho para a humanidade 33

AS SUBDISCIPLINAS DA enormes. “As populações humanas cons­


ANTROPOLOGIA troem suas culturas em interação umas
com as outras, e não isoladamente” (Wolf,
Antropologia cultural 1982, p. ix). Moradores de aldeias partici-
pam cada vez mais de eventos regionais, na-
A antropologia cultural é o estudo da so- cionais e mundiais. A exposição a forças ex-
ciedade e da cultura humanas, o subcampo ternas se dá pelos meios de comunicação de
que descreve, analisa, interpreta e explica as massa, pela migração e pelo transporte mo-
semelhanças e diferenças sociais e culturais. derno. A cidade e a nação cada vez mais in-
Para estudar e interpretar a diversidade cul- vadem as comunidades locais com a chega-
tural, os antropólogos culturais realizam da de turistas, agentes de desenvolvimento,
dois tipos de atividade: etnografia (com autoridades governamentais e religiosas e
base no trabalho de campo) e etnologia candidatos a cargos políticos. Essas ligações
(com base na comparação intercultural). A são componentes importantes de sistemas
etnografia fornece uma descrição de deter- regionais, nacionais e internacionais de po-
minada comunidade, sociedade ou cultura. lítica, economia e informações. Esses siste-
Durante o trabalho de campo etnográfico, o mas maiores afetam mais e mais as pessoas
etnógrafo reúne dados que organiza, des- e os lugares tradicionalmente estudados
creve, analisa e interpreta para construir e pela antropologia. O estudo desses vínculos
apresentar essa descrição, que pode se dar e sistemas faz parte do tema da antropolo-
na forma de livro, artigo ou filme. Tradicio- gia moderna.
nalmente, os etnógrafos têm morado em A etnologia examina, interpreta, ana-
pequenas comunidades e estudado com- lisa e compara os resultados da etnografia –
portamentos, crenças, costumes, vida so- os dados coletados em diferentes sociedades
cial, atividades econômicas, política e reli- – e os usa para comparar, contrastar e fazer
gião locais (ver Wolcott, 2008). generalizações sobre a sociedade e a cultura.
A perspectiva antropológica derivada Olhando além do particular e vislumbran-
do trabalho de campo etnográfico costuma do o mais geral, os etnólogos tentam identi-
ser bastante diferente da que deriva da eco- ficar e explicar as diferenças e similaridades
nomia ou da ciência política. Esses campos culturais, testar hipóteses e construir teorias
trabalham com organizações e políticas na- para melhorar nossa compreensão de como
cionais e oficiais e, muitas vezes, com elites, funcionam os sistemas sociais e culturais. A
mas os grupos que os antropólogos têm es- etnologia obtém seus dados para compara-
tudado costumam ser relativamente pobres ção não apenas da etnografia, mas também
e desprovidos de poder. Os etnógrafos ob- de outros subcampos, em especial da antro-
servam muitas práticas discriminatórias pologia arqueológica, que reconstrói os sis-
voltadas a essas pessoas, que enfrentam es- temas sociais do passado. (A Tabela 1.2 re-
cassez de alimentos, deficiências alimenta- sume os principais contrastes entre etno-
res e outros aspectos da pobreza. Os cientis- grafia e etnologia.)
tas políticos tendem a estudar os programas
que os planejadores nacionais desenvolvem,
enquanto os antropólogos descobrem como Antropologia arqueológica
esses programas funcionam em nível local.
As culturas não são isoladas. Como A antropologia arqueológica (dito de
observado por Franz Boas (1940/1966) há forma mais simples, “arqueologia”) recons-
muitos anos, o contato entre tribos vizinhas trói, descreve e interpreta o comportamen-
sempre existiu e se estendeu sobre áreas to e os padrões culturais humanos por meio
34 Conrad Phillip Kottak

de restos materiais. Em locais onde as pes- população. A descoberta de que os ceramis-


soas vivem ou viveram, os arqueólogos en- tas usavam materiais que não estavam dis-
contram artefatos – itens materiais que os poníveis localmente sugere sistemas de co-
seres humanos produziram, usaram ou mércio. Semelhanças na fabricação e deco-
modificaram, como ferramentas, armas, ração em locais diferentes podem ser prova
acampamentos, construções e lixo. de conexões culturais. Grupos que tenham
Os restos de vegetais e animais e o lixo vasilhames semelhantes podem ter relações
antigo contam histórias sobre consumo e históricas e, talvez, compartilhem antepas-
atividades. Os grãos selvagens e os domesti- sados culturais, tenham negociado entre si
cados têm características diferentes que ou pertençam ao mesmo sistema político.
permitem que os arqueólogos distingam Muitos arqueólogos examinam a pa-
entre coleta e cultivo. O exame de ossos de leoecologia. A ecologia é o estudo das inter-
animais revela a idade dos animais abatidos -relações entre seres vivos em um ambiente.
e fornece outras informações úteis para de- Juntos, organismos e ambiente constituem
terminar se as espécies eram selvagens ou um ecossistema, uma configuração de flu-
domesticadas. xos de energia e intercâmbios que segue de-
Analisando esses dados, os arqueólogos terminados padrões. A ecologia humana es-
respondem a várias perguntas sobre as anti- tuda os ecossistemas que incluem pessoas,
gas economias. O grupo obtinha sua carne enfocando as formas como o uso humano
da caça ou domesticava e criava animais, “da natureza influencia a organização social
matando apenas os de certa idade e determi- e os valores culturais e por eles é influencia-
nado sexo? Os alimentos vegetais vinham de do” (Bennett, 1969, p. 10-11). A paleoecolo-
plantas silvestres ou da semeadura, cuidado e gia observa os ecossistemas do passado.
colheita dos cultivos? Os moradores produ- Além de reconstruir padrões ecológi-
ziam, comercializavam ou compravam de- cos, os arqueólogos podem inferir transfor-
terminados itens? As matérias-primas esta- mações culturais, por exemplo, ao observar
vam disponíveis localmente? Se não, de onde mudanças no tamanho e no tipo dos sítios e
vinham? A partir dessas informações, os ar- na distância entre eles. Uma cidade grande
queólogos reconstroem os padrões de pro- se desenvolve em uma região onde, alguns
dução, comércio e consumo. séculos antes, só existiam cidadezinhas, al-
Os arqueólogos passaram muito deias e vilarejos. O número de níveis de as-
tempo estudando fragmentos de cerâmica, sentamento (cidade grande ou pequena,
pois são mais duráveis do que muitos ou- povoado, aldeia) em uma sociedade é uma
tros artefatos, como os têxteis e a madeira. medida da complexidade social. As cons-
A quantidade de fragmentos de cerâmica truções dão pistas sobre as características
permite estimar tamanho e densidade da políticas e religiosas. Templos e pirâmides

TABELA 1.2 Etnografia e etnologia – duas dimensões da antropologia cultural

ETNOGRAFIA ETNOLOGIA

Exige trabalho de campo para coletar dados Utiliza os dados coletados por
uma série de pesquisadores
Muitas vezes descritiva Normalmente sintética
Específica de um grupo ou comunidade Comparativa/intercultural
Um espelho para a humanidade 35

Uma equipe de arqueólogos trabalha em Harappa, onde esteve uma antiga civilização do Vale
do Indo, que remonta a aproximadamente 4.800 anos.

sugerem que uma antiga sociedade tinha Embora sejam mais conhecidos pelo
uma estrutura de autoridade capaz de mo- estudo da pré-história, isto é, o período
bilizar o trabalho necessário para construir anterior à invenção da escrita, os arqueó-
esses monumentos. A presença ou a ausên- logos também estudam as culturas dos
cia de determinadas estruturas, como as pi- povos históricos e até mesmo dos que ainda
râmides do Egito e do México antigos, reve- vivem (ver Sabloff, 2008). Estudando na-
la diferenças de funções entre os assenta- vios afundados na costa da Flórida, arqueó-
mentos. Por exemplo, algumas cidades logos ­subaquáticos foram capazes de verifi-
eram lugares a que as pessoas iam para as- car as condições de vida nos navios que
sistir a cerimônias, outras eram locais de se- trouxeram ancestrais afro-americanos para
pultamento e outras, ainda, comunidades o Novo Mundo, na condição de pessoas es-
agrícolas. cravizadas. Em um projeto de pesquisa que
Os arqueólogos também reconstroem iniciou em 1973, em Tucson, Arizona, o ar-
os padrões de comportamento e estilos de queólogo William Rathje aprendeu sobre a
vida do passado fazendo escavações, ou vida contemporânea com o estudo do lixo
seja, cavando uma sucessão de níveis em moderno. O valor da “lixologia” (garbolo-
um sítio. Em uma determinada área, ao gy), como Rathje a chama, é que ela fornece
longo do tempo, os assentamentos podem “evidências do que as pessoas faziam, e não
mudar de forma e propósito, assim como as do que elas acham que faziam, do que
conexões entre eles. As escavações podem acham que deveriam ter feito ou do que o
documentar alterações em atividades eco- entrevistador acha que elas deveriam ter
nômicas, sociais e políticas. feito” (Harrison, Rathje e Hughes, 1994, p.
36 Conrad Phillip Kottak

108). O que as pessoas informam pode ser 4. Plasticidade biológica humana (capaci-
muito diferente do seu comportamento dade do corpo para mudar ao enfrentar
real, como revelado pela lixologia. Por estresse, como calor, frio e altitude).
exemplo, o lixólogos descobriram que os 5. A biologia, a evolução, o comporta-
três bairros de Tucson que relataram o mento e a vida social de macacos, sí-
menor consumo de cerveja tinham, na ver- mios e outros primatas não humanos.
dade, o maior número de latas de cerveja
descartadas por domicílio (Podolefsky e Esses interesses ligam a antropologia
Brown, 1992, p. 100)! A lixologia de Rathje física a outros campos: biologia, zoologia,
também mostrou ideias equivocadas sobre geologia, anatomia, fisiologia, medicina e
a quantidade de diferentes tipos de lixo que saúde pública. A osteologia – o estudo dos
está em aterros sanitários: embora a maio- ossos – ajuda os paleoantropólogos, que
ria das pessoas considerasse as embalagens examinam crânios, dentes e ossos, a identi-
de fast-food e as fraldas descartáveis como ficar os ancestrais humanos e acompanhar
os grandes problemas em termos de lixo, na as mudanças na anatomia ao longo do
verdade, elas eram relativamente insignifi- tempo. O paleontólogo é um cientista que
cantes em comparação com o papel, in- estuda os fósseis. Um paleoantropólogo é
cluindo o papel reciclável, que não seria uma espécie de paleontólogo que estuda o
prejudicial ao meio ambiente (Rathje e registro fóssil da evolução humana. Os pa-
Murphy, 2001). leoantropólogos muitas vezes trabalham
em conjunto com os arqueólogos, que estu-
dam artefatos, na reconstrução de aspectos
Antropologia biológica ou física biológicos e culturais da evolução humana.
É comum serem encontrados fósseis e fer-
O tema da antropologia biológica, ou físi- ramentas juntos. Diferentes tipos de ferra-
ca, é a diversidade biológica humana no mentas fornecem informações sobre os há-
tempo e no espaço. O foco na variação bio- bitos, os costumes e o estilo de vida dos hu-
lógica une cinco interesses especiais na an- manos ancestrais que as usavam.
tropologia biológica: Mais de um século atrás, Charles Dar­
win percebeu que a variedade que existe em
1. Evolução humana segundo a revela o toda a população permite que alguns indi-
registro fóssil (paleoantropologia). víduos (com características privilegiadas)
2. Genética humana. se saiam melhor do que outros na sobrevi-
3. Crescimento e desenvolvimento hu- vência e na reprodução. A genética, que se
manos. desenvolveu mais tarde, ajuda a esclarecer

Aplicando a antropologia à cultura popular


INDIANA JONES

Pensemos em qualquer um dos quatro filmes de Indiana Jones, dirigidos por Steven Spielberg. Os arqueó­
logos costumam se queixar de que esses filmes distorcem a percepção pública de seu campo de trabalho,
retratando-os como saqueadores gananciosos, aventureiros, amorais e não científicos. De que forma India-
na Jones influenciou sua opinião sobre a arqueologia, se é que houve alguma influência? Falando em ter-
mos mais gerais, as imagens dos arqueólogos na mídia fazem você ter uma opinião melhor ou pior do
campo da arqueologia?
Um espelho para a humanidade 37

as causas e a transmissão dessa variedade. espaço e no tempo. Alguns antropólogos


No entanto, não são apenas os genes que linguistas fazem inferências sobre as carac-
causam a variedade. Durante a vida de terísticas universais da linguagem, ligadas,
qualquer indivíduo, o ambiente funciona talvez, a uniformidades no cérebro huma-
junto com a hereditariedade para determi- no; outros reconstroem línguas antigas
nar as características biológicas. Por exem- comparando suas descendentes contempo-
plo, pessoas com tendência genética a ser râneas e assim fazem descobertas sobre a
altas serão menores se forem mal alimenta- história; outros, ainda, estudam as diferen-
das na infância. Assim, a antropologia bio- ças linguísticas para descobrir percepções
lógica também investiga a influência do variadas e padrões de pensamento em cul-
ambiente sobre o corpo à medida que o in- turas diferentes.
divíduo cresce e amadurece. Entre os fato- A linguística histórica considera a va-
res ambientais que influenciam o corpo em riação no tempo, como as mudanças em
sua evolução estão altitude, nutrição, tem- sons, gramática e vocabulário entre o inglês
peratura e doenças, bem como os fatores médio (falado desde aproximadamente
culturais, como os padrões de atratividade. 1050-1550 d.C.) e o inglês moderno. A so-
A antropologia biológica (junto com a ciolinguística investiga as relações entre va-
zoologia) também inclui a primatologia. Os riações sociais e linguísticas. Nenhuma lín-
primatas incluem os nossos parentes mais gua é um sistema homogêneo em que todos
próximos: símios e macacos. Os primatólo- falam da mesma maneira. De que formas os
gos estudam a biologia, a evolução, o com- diferentes falantes usam um determinado
portamento e a vida social daqueles prima- idioma? Como as características linguísticas
tas, muitas vezes em seus próprios ambien- se relacionam com os fatores sociais, in-
tes naturais. A primatologia auxilia a cluindo as diferenças de classe e gênero
paleoantropologia, porque o comporta- (Tannen, 1990)? Uma das razões para a va-
mento dos primatas pode ajudar a explicar riação é a geografia, como acontece com os
o início do comportamento humano e da dialetos e sotaques regionais. A variação lin-
natureza humana. guística também se expressa no bilinguismo
dos grupos étnicos. Os antropólogos lin-
guistas e culturais colaboram no estudo de
Antropologia linguística ligações entre a língua e muitos outros as-
pectos da cultura, por exemplo, a forma
Não sabemos (e é provável que nunca che- como as pessoas avaliam parentesco e como
garemos a saber) quando nossos ancestrais percebem e classificam as cores.
adquiriram a capacidade de falar, embora
os bioantropólogos tenham examinado a
anatomia do rosto e do crânio para especu- ANTROPOLOGIA E OUTROS
lar sobre a origem da linguagem, e os pri- CAMPOS ACADÊMICOS
matólogos descrito os sistemas de comuni-
cação de macacos e símios. Sabemos que Como já mencionado, uma das principais
existem línguas complexas e gramatical- diferenças entre a antropologia e os outros
mente bem desenvolvidas há milhares de campos acadêmicos é o holismo, a mistura
anos. A antropologia linguística oferece singular que a antropologia faz de perspec-
mais um exemplo do interesse da antropo- tivas biológicas, sociais, culturais, linguís­
logia na comparação, na mudança e na va- ticas, históricas e contemporâneas. Para­
riação. A antropologia linguística estuda a doxalmente, embora diferencie a antropo-
língua em seu contexto social e cultural, no logia, essa amplitude é o que também a
38 Conrad Phillip Kottak

conecta a muitas outras disciplinas. Técni- dial, tem uma ligação particularmente ínti-
cas usadas para datar fósseis e artefatos che- ma com a antropologia. Também está ligada
garam à antropologia vindas da física, da ao folclore, o estudo sistemático de histó-
química e da geologia. Como os restos de rias, mitos e lendas de diversas culturas. Po-
plantas e animais são encontrados muitas de-se argumentar que a antropologia está
vezes com ossos humanos e artefatos, os an- entre os mais humanistas de todos os cam-
tropólogos colaboram com botânicos, zoó- pos acadêmicos por causa de seu respeito
logos e paleontólogos. fundamental à diversidade humana. Os an-
Como é uma disciplina ao mesmo tropólogos ouvem, registram e representam
tempo científica e humanista, a antropolo- as vozes de uma enorme quantidade de na-
gia tem ligações com muitas outras áreas ções e culturas. A antropologia valoriza o
acadêmicas. É uma ciência – um “campo de conhecimento local, visões de mundo dife-
estudo ou corpo de conhecimento sistemá- rentes e distintas filosofias. A antropologia
tico que visa, por meio de experimentação, cultural e a antropologia linguística, em
observação e dedução, produzir explicações particular, trazem uma perspectiva compa-
confiáveis de fenômenos, com referência no rada e não elitista sobre formas de expres-
mundo material e físico” (Webster’s New são criativa, incluindo língua, arte, narrati-
World Encyclopedia, 1993, p. 937). vas, música e dança, vistas em seu contexto
Os capítulos seguintes apresentam a social e cultural.
antropologia como uma ciência humanista
dedicada a descobrir, descrever, compreen-
der e explicar semelhanças e diferenças no ANTROPOLOGIA APLICADA
tempo e no espaço entre os seres humanos e
nossos antepassados. Clyde Kluckhohn A antropologia não é uma ciência do exóti-
(1944) descreveu a antropologia como “a co realizada por estudiosos excêntricos em
ciência das semelhanças e diferenças huma- torres de marfim; ela tem muito a dizer ao
nas” (p. 9). Sua declaração sobre a necessi- público. A principal organização de profis-
dade desse campo ainda permanece: “A an- sionais da antropologia, a American An-
tropologia fornece uma base científica para thropological Association (AAA), assumiu
lidar com o dilema crucial do mundo de formalmente um papel de serviço público
hoje: como povos de aparência diferente, ao reconhecer que a área tem duas dimen-
línguas ininteligíveis entre si e formas dife- sões:
rentes de vida podem conviver pacifica-
mente?” (p. 9). A antropologia elaborou um 1. antropologia acadêmica ou geral e
impressionante corpo de conhecimento 2. antropologia aplicada ou profissional.
que este livro tenta sintetizar.
Além de suas ligações com as ciências Esta última se refere à aplicação de
naturais (p. ex., geologia, zoologia) e as dados, perspectivas, teoria e métodos antro-
ciên­cias sociais (p. ex., sociologia, psicolo- pológicos para identificar, avaliar e resolver
gia), a antropologia também tem fortes li- problemas sociais contemporâneos. Como
gações com as humanidades, que incluem afirma Erve Chambers (1987, p. 309), a an-
inglês, literatura comparada, temas clássi- tropologia aplicada é o “campo de pesquisa
cos, folclore, filosofia e artes. Essas áreas es- que trata das relações entre o conhecimento
tudam idiomas, textos, filosofias, artes, mú- antropológico e os usos desse conhecimento
sica, atuações e outras formas de expressão no mundo para além da antropologia”. Cada
criativa. A etnomusicologia, que estuda as vez mais antropólogos dos quatro subcam-
formas de expressão musical em nível mun- pos trabalham nessas áreas “aplicadas”, como
Um espelho para a humanidade 39

ANTROPOLOGIA HOJE
Filho de antropóloga é eleito presidente

É sabido que Barack Obama é filho de pai que-


niano e mãe branca norte-americana, do Kansas.
Menos reconhecido é o fato de que o 44o presi-
dente dos Estados Unidos é filho de uma antro-
póloga, a Dra. Stanley Ann Dunham Soetoro (em
geral chamada apenas de Ann Dunham). Essa
descrição centra-se em sua vida e sua atração
pela diversidade, que a levou a trabalhar em
antropologia. Antropóloga sociocultural por for-
mação, Dunham trabalhou com microfinanças e
questões socioeconômicas que afetam as
mulheres da Indonésia, um exemplo de aplica-
ção da antropologia para identificar e resolver
problemas contemporâneos. Em outras pala-
vras, ela fazia, ao mesmo tempo, antropologia
cultural e aplicada.
Os antropólogos estudam a humanidade em
tempos e lugares variados e em um mundo em
rápida transformação. Em virtude de suas ori-
gens, sua enculturação e sua experiência no
exterior, Barack Obama é um excelente símbolo
da diversidade e das interconexões que caracte-
rizam um mundo desse tipo. Além disso, sua
eleição é uma homenagem aos Estados Unidos
como país cada vez mais diversificado.
O menino Barack Obama com sua mãe, a
Na versão resumida da história de Barack Obama,
sua mãe é simplesmente a mulher branca do Kan- antropóloga Ann Dunham.
sas... Durante a campanha eleitoral, ele a chamou
de sua “mãe solteira”. No entanto, nenhuma dessas descrições consegue retratar a vida não conven-
cional de Stanley Ann Dunham Soetoro, quem mais influenciou Obama entre seus pais.
No Havaí, ela se casou com um estudante africano aos 18 anos. Depois, casou-se com um
indonésio, mudou-se para Jacarta, tornou-se antropóloga, escreveu uma dissertação de 800 pági-
nas sobre a atividade dos ferreiros camponeses de Java, trabalhou para a Fundação Ford, defen-
deu o trabalho das mulheres e ajudou a levar o microcrédito aos pobres do mundo.
Ela tinha grandes expectativas para seus filhos. Na Indonésia, acordava o filho às 4h da manhã
para que fizesse cursos de inglês por correspondência antes de ir à escola. Trazia para casa grava-
ções de Mahalia Jackson, discursos do reverendo Dr. Martin Luther King Jr. e, quando Obama
pediu para ficar no Havaí para cursar o ensino médio, em vez de voltar à Ásia, ela aceitou viver
longe dele – uma decisão que sua filha diz ter sido uma das mais difíceis na vida de Stanley Ann.
“Ela achava que, de alguma forma, vagando por territórios desconhecidos, poderíamos trope-
çar em algo que, em um instante, pareceria representar quem somos no íntimo”, disse Maya Soe-
toro-Ng, meia-irmã de Obama. “Essa era basicamente a sua filosofia de vida: não se limitar por
medo de definições estreitas, não construir muros ao redor de nós mesmos e fazer o melhor que
pudermos para encontrar a afinidade e a beleza em lugares inesperados”.
Barack Obama... pouco viu o pai após os 2 anos de idade. Embora seja impossível precisar a
influência de um pai sobre a vida de um filho, as pessoas que conheceram bem Stanley Ann afir-
mam ver sua influência de forma evidente em Obama.

(continua)
40 Conrad Phillip Kottak

ANTROPOLOGIA HOJE
Filho de antropóloga é eleito presidente (continuação)

“Ela era uma grande pensadora”, disse Nancy Barry, ex-presidente do Banco Mundial das
Mulheres, uma rede internacional de fornecedores de microfinanças na qual Soetoro trabalhou em
Nova York no início da década de 1990.
Em uma aula de russo na Universidade do Havaí, Ann Duham conheceu o primeiro aluno afri-
cano da faculdade, Barack Obama. Eles se casaram e tiveram um filho em agosto de 1961, uma
época em que o casamento inter-racial era raro nos Estados Unidos.
O casamento durou pouco. Em 1963, Obama partiu para Harvard, deixando a esposa e o filho. Ela
então se casou com o estudante indonésio Lolo Soetoro. Quando ele foi chamado a seu país, em 1966,
após a agitação em torno da ascensão de Suharto, Stanley Ann e Barack foram junto com ele.
Seu segundo casamento também acabou, na década de 1970. Stanley Ann queria trabalhar,
disse um amigo, e seu marido queria mais filhos. Ele ia se tornando mais norte-americano, ela disse
uma vez, enquanto ela se tornava mais javanesa. “Existe uma crença javanesa de que, se você
estiver casado com alguém e não funcionar, a situação vai deixá-la doente”, disse Alice G. Dewey,
antropóloga e amiga. “É simplesmente uma idiotice permanecer casada.”
Em 1974, Stanley Ann estava de volta a Honolulu, fazendo pós-graduação e criando Barack e
Maya, nove anos mais nova. Quando ela decidiu retornar à Indonésia, três anos mais tarde, para
fazer seu trabalho de campo, Barack decidiu não ir.
Fluente em indonésio, Stanley Ann mudou-se com Maya primeiro para Yogyakarta, o centro do
artesanato javanês. Tendo sido tecelã na faculdade, ela ficou fascinada com o que Soetoro-Ng
chama de “as deslumbrantes minúcias da vida”. Esse interesse inspirou seu estudo sobre indústrias
de aldeia, que se tornou a base da sua tese de doutorado em 1992.
“Ela adorava morar em Java”, disse a Dra. Dewey, que se lembra de acompanhar Stanley Ann
até uma aldeia onde se trabalhava com metal. “As pessoas diziam: ‘Oi, tudo bom?’. E ela dizia:
‘Como vai a sua esposa? A sua filha ganhou nenê?’. Eles eram amigos. Aí ela pegava o caderno e
dizia: ‘Quantos de vocês têm energia elétrica? Você está tendo problemas para conseguir ferro?’”.
Ela se tornou consultora da Agência dos Estados Unidos para Desenvolvimento Internacional
na criação de um programa de crédito em aldeias e, em seguida, responsável de programas da
Fundação Ford em Jacarta, especializada em trabalho de mulheres. Mais tarde, foi consultora no
Paquistão e, em seguida, trabalhou no banco mais antigo da Indonésia, naquilo que é descrito
como um programa mundial de microfinanças sustentáveis, criando serviços como crédito e pou-
pança para os pobres.
Os visitantes sempre frequentavam o escritório dela na Fundação Ford, no centro de Jacarta,
e sua casa em um bairro ao sul, onde mamoeiros e bananeiras cresciam no jardim e eram servidos
pratos javaneses no jantar. Os seus convidados eram líderes do movimento indonésio de direitos
humanos, gente de organizações de mulheres, representantes de grupos comunitários que faziam
desenvolvimento de base.
Soetoro-Ng se lembra de conversas com a mãe sobre filosofia ou política, livros, motivos eso-
téricos em trabalhos indonésios em madeira.
“Ela nos deu um entendimento muito amplo do mundo”, disse sua filha. “Ela detestava a into-
lerância e estava muito determinada a ser lembrada por uma vida de serviço e achava que servir
era de fato a verdadeira medida de uma vida”. Muitos de seus amigos veem seu legado em Obama
– na autoconfiança e motivação que ele demonstra, em sua disposição para ir além dos limites e
até mesmo seu conforto aparente com mulheres fortes.
Ela morreu em novembro de 1995, quando Obama estava começando sua primeira campanha
para um cargo público. Depois de uma cerimônia fúnebre na Universidade do Havaí, disse um
amigo, um pequeno grupo de amigos partiu de carro para o litoral sul, em Oahu. Com o vento
arremessando as ondas sobre as pedras, Obama e Soetoro-Ng colocaram as cinzas de sua mãe no
Pacífico, enviando-as na direção da Indonésia.

Fonte: Janny Scott, “A free-spirited wanderer who set obama’s path”, New York Times, 13 de março de 2008.
Direitos autorais © 2008 The New York Times. Co. Reproduzido com permissão.
Um espelho para a humanidade 41

saúde pública, planejamento familiar, negó- tomada de decisão. Os gestores de recursos


cios, desenvolvimento econômico e gestão culturais trabalham para órgãos federais,
de recursos culturais. estaduais e municipais e para outros clien-
A antropologia aplicada abrange qual- tes. Os antropólogos culturais que fazem
quer uso de conhecimentos e/ou técnicas trabalho aplicado por vezes trabalham
dos quatro subcampos para identificar, ava- com os arqueólogos públicos, avaliando os
liar e resolver problemas práticos. Em função problemas humanos gerados pela mudan-
de sua amplitude, a antropologia tem muitas ça proposta e determinando como podem
aplicações. Por exemplo, os profissionais da ser reduzidos. A Tabela 1.3 relaciona os
antropologia da saúde aplicada consideram quatro subcampos da antropologia a suas
os contextos socioculturais e biológicos e as duas dimensões.
implicações de doenças e problemas de
saúde. As percepções de saúde boa e ruim,
junto com ameaças à saúde e problemas RESUMO
reais, diferem entre as sociedades.
Vários grupos étnicos reconhecem di- 1. A antropologia é o estudo holístico,
ferentes doenças, sintomas e causas, e de- biocultural e comparativo da humani-
senvolveram diferentes sistemas de saúde e dade. É a exploração sistemática da di-
estratégias de tratamento. versidade biológica e cultural humana
A arqueologia aplicada, em geral cha- no tempo e no espaço. Examinando as
mada de arqueologia pública, inclui ativi- origens e as alterações da biologia e da
dades como gestão de recursos culturais, cultura humanas, a antropologia apre-
serviços de arqueologia prestados por con- senta explicações para semelhanças e
trato, programas de educação pública e diferenças entre seres humanos e suas
preservação histórica. Um papel impor- sociedades.
tante para a arqueologia pública foi criado 2. Os quatro subcampos da antropologia
pela lei que exige a avaliação de locais geral são (sócio) cultural, arqueológi-
­ameaçados por barragens, rodovias e ou- co, biológico e linguístico. Todos consi-
tras atividades de construção. Decidir o deram a variação no tempo e no es­
que precisa ser salvo e preservar informa- paço. Cada um também examina a
ções importantes sobre o passado quando adaptação – o processo pelo qual os or­
isso não puder ser feito é o trabalho da ­ganismos lidam com as pressões am-

gestão de recursos culturais (GRC). A bientais. A perspectiva biocultural da


GRC envolve não só a preservação de lo- antropologia é uma forma particular-
cais, mas também permite sua destruição, mente eficaz de se aproximar de inter-
se eles não forem importantes. A parte re- -relações entre biologia e cultura. As
lativa a “gestão” diz respeito a avaliação e forças culturais moldam a biologia hu-

TABELA 1.3 Os quatro campos e as duas dimensões da antropologia

SUBCAMPOS DA ANTROPOLOGIA EXEMPLOS DE APLICAÇÃO


(ANTROPOLOGIA GERAL) (ANTROPOLOGIA APLICADA)

Antropologia cultural Antropologia do desenvolvimento


Antropologia arqueológica Gestão de recursos culturais (GRC)
Antropologia biológica ou física Antropologia forense
Antropologia linguística Estudo da diversidade linguística em salas de aula

Você também pode gostar