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ENTREVISTAS
Florestan F ernande.s
Como interpreta toda a sua produção alteram ao· longo do tempo. Não há
científica? Há um projeto teórico, uma uma pessoa que nasça com um projeto
"linha-mestra", orientando seus e depois o realize completamente. Toda
trabalhos e pesquisas? Qual é a sua via, em termos de formação intelectual,
trajetória intelectual? o ensino que nós recebíamos na Facul
Essa é uma pergunta complicada para dade de Filosofia, como já escrevi, com
mim. Pelo que sei, só Comte sabia o binava um nível acadêmico muito alto,
que ele ia fazer durante todo o resto pois nós tivemos a sorte de termos pro
da vida. Em geral, as preocupações teó fessores de primeira ordem mas, ao
ricas de qualquer intelectual - espe mesmo terripo, uma espécie de didatis
cialmente se ele é um sociólogo, histo mo, que estava infiltrado no ensino. Isto
riador ou um antropólogo, enfim alguém n ão era decorrência da estrutura do
que trabalha com problemas que dizem ensino. Era decorrência da situação
respeito às sociedades humanas - se cultural brasileira.
(j
fatório, mas, de outro lado, que a pró básico seguro, ganha uma vantagem aca
pria universidade e a vida universitária dêmica sobre outros que não têm acesso
podiam ser implantadas nas condições a estes textos. Porém, fica com a reta
precárias em que as coisas corriam aqui, guarda prejudicada, porque há uma
sem consequências maiores do ponto de aprendizagem elementar inicial que não
vista da formação intelectual. Quer dizer, se fez e não se fazia por preconceito.
era uma simplificação, mas uma simpli ( O preconceito de que é preciso traba
ficação que dava sentido ao nosso tipo lhar com os textos fundamentais) .
de ajustamento. Só mais tarde, no caso do Departa
Em termos da minha relação com as mento de Sociologia e de Antropologia,
Ciências Sociais, meus professores não por influência minha e do Antônio Cân
tentavam encaminhar os estudantes para dido, é que se procurou dar mais aten
a Sociologia, a Economia, a Filosofia ção ao ensino básico, procurando
ou a Estatística. O ensino era eclético. instruir o estudante naquilo que é ele
Visava combinar as várias correntes do mentar, que é essencial e às vezes
pensamento e, de outro lado, enfatizava também é geral. O preconceito era tão
mais que tudo, o aspecto teórico do tra g rande que quando se lia um manual
balho. O preconceito contra o ensino isto era feito escondido. Foi graças a
de tipo elementar era tão grande que, um professor de História, frances, que
quando eu me tornei estudante da Fa esteve aqui, que uma parte desse mito
culdade de Filosofia, tive dificuldades de foi destruído. Ele contou em público
trabalhar com manuais. Os assistentes que estava se preparando para um con
recomendavam que não se lessem ma curso e, nesta fase, a melhor coisa que
nuais ; que se lessem os livros originais.
julgava poder fazer consistia em ler uma
Os professores, naturalmente, usavam
introdução elementar ao seu campo de
vários tipos de livros mas, eles próprios,
trabalho. Assim, refrescava a memória
também não usavam um texto funda
mentaI, preferindo o trato simultâneo e se punha em contacto com os proble
com vários autores. Tirando o professor mas gerais e essenciais. Mas a regra era
Hugon, que usava um manual de Eco esta : por uma grande ênfase no aspecto
nomia, os outros preferiam trabalhar teórico. O que vem a ser o aspecto teó
diretamente com os autores fundamen rico no caso? Isto significava que os
tais. Isto criava um problema bibliográ estudantes aprendiam a construir teo
fico complexo. Nós tínhamos a biblio rias ; que os estudantes fossem orienta
teca central da Faculdade e usávamos dos para as técnicas através das quais
os recursos da Biblioteca Municipal e se faz análise e a crítica das descober
de outras instituições ( as próprias livra tas, ao mesmo tempo se procede à sín
rias t ambém importavam intensamente) . tese? Não se fazia isso. Os cursos eram
De modo que ter acesso ao livro não mono gráficos, de balanços dos conhe
era difícil ; o problema era a heteroge cimentos obtidos em determinados
neidade e a vastidão das bibliografias, campos. Por exemplo, havia curso de
o limite do tempo, porque cursávamos Sociologia estética, de sociologia econô
de cinco a seis matérias todo ano e uma mica, de monografia familiar, de intro
bibliografia desta natureza criava exigên dução à economia, história das doutri
cias de orientação mais ou menos graves. nas econômicas. Não havia curso de
E, de outro lado, negligenciava-se a técnicas e métodos aplicados à investi
formação básica do cientista social. gação e, muito menos cursos de técnicas
Alguém que lê diretamente certos textos e métodos aplicados à parte lógica e de
de autores clássicos sem ter um ensino construção da inferência (indução, de-
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dução etc. ) . Esses cursos surgiram mais ao preparo teórico que o investigador
tarde, igualmente por influência nossa. deveria ter. Desta forma, a Faculdade
Assim o que se entendia por teoria, de Filosofia acabava sendo uma espécie
realmente era um ensino altamente abs de ponto menor de uma boa instituição
trato e que levava os estudantes a tra universitária francesa naquele momen
balhar principalmente com idéias . Quan to ; é claro que em proporções reduzi
do se falava em teoria, o que se pen das, mas principalmente voltada para
sava era mais em história das idéias ou, uma formação de intelectuais que por
então, em balanços críticos em certa ventura iriam ensinar a matéria. Não se
área de trabalho. Isto vocês podem ver cuidava de formar o investigador ou o
pelo livro do professor B astide sobre técnico. As duas coisas eram negligen
sociologia estética, que dá um balanço ciadas simultaneamente. De modo que,
do estado dos conhecimentos naquele quando eu me formei, a grande contri
campo, no momento em que o profes buição teórica que eu tirei da minha
sor o realiza e do modo em que ele o aprendizagem aparece na crise intelec
concebe. Agora, isso não é realmente tu al pela qual eu passei : descobri que,
uma orientação que permita dizer que depois de três anos de trabalho inten
se está pensando em teoria como, por sivo, estava muito inseguro, tinha la
exemplo, um físico, um biólogo, um cunas muito graves dentro da minha
químico pensa em teoria. Ou, então, formação intelectual e que precisava me
como o sociólogo ou o economista deve submeter a um trabalho organizado que
ria pensar em teoria. É o trabalho inte não tinha sido realizado dentro da insti
lectual do professor. Não é o trabalho tuição porque ela previa basicamente a
intelectual do investigador. O treina formação intelectual do professor. É por
mento do investigador foi negligenciado ; isso que então eu realizei um esforço
nós não tínhamos condições para fazer de leitura s que se dá paralelamente ao
isso. Os professores franceses, como os curso de licenciatura em 1 944 e ao curso
alemães e os italianos, que colaboraram que eu fiz de Pós-Graduação na Escola
com eles, tinham de enfrentar condições Livre de Sociologia e Política. Um
muito precárias de trabalho intelectual. esforço terrível que poderia ter gerado
Com isso, então é provável que ele s rea um resultado péssimo, se eu não tivesse
li.zavam a�nas uma parte do que pode tido a sorte de fazer o curso que fiz.
nam ter feIto, se porventura eles pudes Foi graças ao fato de ter feito esse
-
sem ir mais longe. curso que eu tinha condições intelectuais
?e qualquer maneira, o estado da pes de não me transformar em um autodi
qUIsa nas ciências sociais na Europa data indigesto. O curso me permitia
estava relativamente atrasado, em rela selecionar autores, saber trabalhar com
ção, por exemplo, ao estado da pesquisa os autores, quer dizer que, no fundo,
nos Estados Unidos. A pesquisa na eu tinha tido a preparação para poder
Europa foi largamente negligenciada. passar por isso.
�unca s� �ensou que o sociólogo deve Estas reflexões mostram que o inte
na constItUIr a sua documentação e com lectual produzido pela Faculdade de
o . �esmo rigor, por exemplo, com que o Filosofia na seção de Ciência<; Sociais
blologo reune a sua documentação. Essa não levava consigo uma imagem da car
é uma contribuição que se recebe dos reira teórica que ele se propunha fazer.
americanos e que depois os europeus Ele levava uma ambição intelectual
iriam absorver. Mas, naquele momento muito abstrata e o desejo de dar uma
havia uma relativa negligência quanto a� contribuição de significado maior.
treinamento do investigador e quanto Nenhum de nós gostaria de trabalhar em
ENTREVIST A : FLORESTAN FERNANDES 9
muito mais tarde eu iria elaborar. Ele meiro ano. No segundo ano, aproveitei
próprio queria qj;le eu fizesse a minha ainda mais a crítica concentrada dos
tese de doutorado sobre esse trabalho e professores e a atenção que o professor
aprofundasse a pesquisa. Em termos de podia dispensar ao estudante, que não
contribuição de um estudante de primei se perdia em classes muito numerosas.
ro ano, foi um trabalho importante para Além disso, os professores também
mim. Algumas idéias que explorei mais tinham interesse em uma colaboração. O
tarde, no campo de sociologia econô professor Bastide, por exemplo, estava
mica, se vinculam a essa investigação fazendo uma investigação sobre religiões
que eu fiz de processos econômicos na africanas no Brasil ; se ele descobria
sociedade brasileira. A contribuição do algum estudante interessado em pesqui
professor Hugon não se dirigiu no sen sa, logo o aproveitava para colher mate
tido de criticar as fontes utilizadas ou riais sob sua orientação. Era um entro
o modo de aproveitar estas fontes. Ele samento muito produtivo para o estu
pensou muito mais em termos de com dante.
pletar o levantamento para fazer, depois, Os estudantes que puderam fazer o
uma verdadeira tese de doutorado . Mas, que eu fiz ( penso que não fui o caso
de qualquer maneira, vocês vêm que era único ) , praticamente estavam fazendo
um trabalho que permitia combinar his simultaneamente o curso graduado e o
tória e estatística com a análise econô pós-graduado, porque este desdobra
mica. O que indica um nível de ambi mento do contacto com o professor
ção teórica pouco comum nas condições representava um treinamento muito
imperantes de aprendizagem. mais avançado e muito mais rigoroso
Em suma, uma experiência de coleta daquilo que se podia aprender em aulas
direta de dados, na realização de entre e nos seminários. No entanto, alguns
vistas, observação direta de atividade de seminários possuiam uma importância
grupos, contactos com crianças, entre maior. Alguns seminários, nas mãos de
vistas com mulheres adultas, com assistentes que negligenciavam o ensino,
homens adultos, descrição de tradições alcançavam importância medíocre . Mas
populares que podiam ser comparadas havia seminários de grande envergadu
com tradições do mesmo tipo em Por ra. O Dorival Teixeira Vieira, por
tugal, na Espanha, na França, na Itália exemplo, discutia nos seminários do
ou então no Brasil em outras épocas ou segundo ano de Ciências Sociais, auto
em outras áreas. Isso me abria não só res como Walras e Pareto. O professor
para a pesquisa empírica mas, também, Willhens tinha um seminário dedicado
para a pesquisa comparada. A análise ao estudo de grandes contribuições da
do folclore é uma análise de reconstru Antropologia, no qual trabalhava com
ção histórica, quando se discriminam as grupo sel ecionado de cinco ou seis
fontes e se analisa tanto as fontes ime pessoas ; cada um lia e debatia determi
diatas quanto as fontes remotas, e tor n ado livro . Mais tarde, o professor Gur
na-se uma análise comparada focalizada vitch introduziu as conferências públi
sobre temas genéticos e a dinâmica da cas, nas quais, realmente, todo o Depar
cultura. De outro lado, o alargamento tamento podia participar e por aí havia
do meu campo de trabalho, graças ao uma frutificação também muito ampla.
uso de dados estatísticos, de fontes histó Quer dizer que as condições para
ricas primárias ou secundárias e de encaminhar, de uma forma geral , o pen
investigação econômica, de quadros e samento abstrato eram relativamente
tendências estatísticas, tudo isso era frutíferas. Ao mesmo tempo, porém, fal
deveras importante e ocorria já no pri- tava uma idéia diretiva. Os professores
ENTREVISTA : FLORESTAN FERNANDES 11
sicas em vários campos. Orientamo-nos xível, mas gostaria que os novos profes
nessa direção. Naquele m0Il!ento isso sores não enfrentassem as mesmas limi
pareceu uma coisa secundária. Tratava tações, as mesmas dificuldades, e que
-se, visivelmente, de uma tentativa de pudessem dar uma contribuição maior
adaptar o ensino da sociologia às con tanto no terreno da investigação empí
dições brasileiras. Mas, a largo prazo, rica, quanto no da construção de teoria.
a iniciativa teve amplas consequências Foi nesse sentido que me orientei. Tra
para os estudantes. balhando com esse grupo a ênfase se
Qual foi a g ran d e implicação, em deslocou da minha carreira como soció
termos teóricos dessa experiência para logo individual, para a constituição de
mim? É que, a largo prazo, ela signi um grup o que deveria produzir sociolo
ficou que eu passei a me preocupar gia. Assim, a minha ambição sofre uma
menos com o que eu podia fazer como rotação completa. Em vez de estar pre
sociólogo e mais com o que a institui ocupado com o que me cabia fazer como
ção deveria fazer na formação de inte sociólogo, me preocupava com o que eu
lectuais que dev eriam preencher vários devia fazer, a partir e através da Univer
papéis. Eu tive a vantagem de perce sidade, para formar um grupo de soció
ber, rapidamente, a necessidade de dife logos. É claro que contei com a cola
renciar os papéis intelectuais. Não fiquei boração deles.
preso àquela idéia d e que quem vai para Se todo esse pessoal que trabalhou
a faculdade de filosofia deve ter uma comigo não colaborasse, não se teria
formação apenas teórica e geral. E sep a feito nada. É uma injustiça atribuir a
rei os papéis, pensando que a Facul mim todas as realizações, porque, de
dade de Filo s ofia deveria formar, simul fato , o que fizemos resultou do trabalho
taneamente o professor, que era a soli cooperativo em g rupo . É certo que o
cit açã o m ai o r, o investig ad o r e o téc impacto inicial foi meu ; eu tive de
nico. enfrentar e resolver problemas para
A batalha em torno do técnico é uma formar o grupo. Porém, à medida em
batalha que eu perdi. Durante vários que o grupo cresceu, a solução dos pro
anos, nas p ol ê micas que tivemos no blemas passou a depender da contribui
Departamento, sempre prevaleceu o ção de todos e de uma co lab o raçã o . Nós
ponto de vista de que a Universidade discutíamos coletivamente, tomávamos
não tem nada que ver com a técnica as decisões coletivamente e trabalháva
pois esta seria uma dimensão externa e mos coletivamente. Qualquer que sej a a
que, portanto, o ensino não deveria maneira pela qual se reflita sobre o as
levar em conta. Porém, no que diz res sunto, a verdade é esta; a ênfase se des
peito à formação intelectual d o profe s - loca da minha carreira, pois eu deixo
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de ter uma ambição voltada n a direção logos e seria uma injustiça lembrar
de meus alvos pessoais de carreira, e aqui os seus nomes. É claro que nós
me volto mais para as condições insti tínhamos a colaboração da cadeira de
tucionais de produção em grupo. E é a Sociologia 1 1 , inclusive eu próprio come
partir daí que toda a minha atividade cei a minha carreira nesta cadeira, e de
iria se nortear. Vocês encontram essas todo o Departamento. Mas, em termos
reflexões em vários ensaios. Inclusive na de organização de atividade em grupo,
Sociologia numa Era de Revolução nós funcion ávamos muito unidos. As
Social e em outros trabalhos, como linhas de cooperação eram definidas
também em Sociologia e Etnologia no segundo a lógica dos pequenos grupos
Brasil. Porque é claro que para ter - os proj etos de investigação, os pro
adesão e apoio dos outros eu tinha que gramas de ensino, nossa atividade extra
me comunicar, de abrir-me para os -acadêmica, e tudo o mais. Alimentáva
outros, senão as minhas idéias ficavam mos a ambição de criar e generalizar
dentro da minha cabeça e eu não rece um elevado padrão de pesquisa e de
beria a influência criadora dos demais . elaboração técnica, o que nos levou a
O u então, o que s e fazia num pequeno escolher o Brasil como "laboratório"
grupo, ficaria para sempre fechado das nossas pesquisas. Gostássemos ou
dentro daquele grupo. não, era o Brasil que se impunha como
Não há dúvida que pusemos em prá o centro das nossas cogitações.
tica uma certa linha de oportunismo n a Nós cultivávamos a ambição de
escolha de assuntos. H á u m foco impor chegar à análise comparada - mas,
tante que vai produzir conhecimento teríamos que tirar a análise comparada
sociológico de alto nível ; todos nós que deste desenvolvimento . Alguns acidentes
ríamos isso e eu, mais que qualquer nos ajudaram decisivamente. O projeto
outro, porque cabia a mim exigir de da UNESCO de investigação das rela
todos que a produção tivesse um gaba ções raciais trouxe alguns recursos, deu
rito alto. Mas, fora esta questão, os algum impulso para se montar um pro
temas iam depender das condições do jeto de grandes proporções. Quando me
ambiente e das oportunidades. No vi à testa da cadeira, aproveitei a opor
Brasil daquela época, as condições e as tunidade para estender o projeto para
oportunidades nunca foram favoráveis o sul do Brasil, aproveitando a dispo
para grandes projetos de investigações. sição de Fernando Henrique Cardoso,
Nós avançamos nessa direção, mas com Octavio lanni e Renato Jardim Moreira
muitas dificuldades. O progresso reali de se dedicarem ao assunto. Tratava-se
zado, no entanto, é constante quando se de um ótimo começo, embora nunca
compara o que fazíamos em 1 9 5 3 ou chegássemos a fazer uma análise com
1 9 54 com o que estávamos fazendo ou parativa global em colaboração, como
poderíamos fazer em 1 9 64. tínhamos em mente. Logo no começo
da década de 60, graças, principalmente,
Quem constituía esse grupo de ao Fernando Henrique, nós obtivemos
pesquisadores? uma dotação especial da Confederação
Nacional da Indústria. Montamos, então,
Quanto ao núcleo estratégico, é o o projeto "Economia e Sociedade no
pessoal a quem eu dedico o livro, A Brasil" . Nesse projeto nós tínhamos
Revolução Burguesa no Brasil. Quando quatro investigações : sobre o empresá
fui afastado da cadeira de Sociologia I rio industrial, do Fernando Henrique ;
eram, ao todo, 1 9 pessoas. Em sua maio sobre o Estado, do Octavio ; um tercei
ria, todas muito conhecidas como soció- ro, sobre o trabalho, da Maria Sylvia e
ENTREVISTA : FLORESTAN FERNANDES 17
z
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Cardoso, Maria Sylvia Carvalho Franco, ralmente surgiu uma área na qual nós
J osé de Souza Martins e outro s ) . Por podíalll O S trabalhar com maior ímpeto
isso, a pnmeira exposição global de tais e força criadora. O que quer dizer que
idéias só aparece no enSalO sobre "So o meio, por vias tortuosas, ao nos
ciedade de classes e subdesenvolvimen destruir também nos levou a fazer aquilo
to" ( apresentado em 1 9 6 7 à Universi que nós podíamos e devíamos fazer. É
dade de Münster e lá publicado em daro que nós interagimos de uma ma
edição mimeografada) . Outros elemen neira inteligente. Se nós nos acomodás
tos do nosso grupo trabalhavam, inde semos de uma maneira estreita, s em
pendentemente de mim, na mesma dire espírito crítico, provavelmente ficaríamos
ção : Fernando Henrique Cardoso, Octa fazendo um vulgar ABC da sociologia e
vio Ianni, Luiz Pereira, Leôncio Martins continuaríalll o s a pensar nos quadros
Rodrigues, Marialice M. Foracchi, Maria iniciais : se a sociologia é ciência ou não
Sylvia Carvalho Franco e outros. Pro é ciência, que ciência é etc. que formava
curei aproveitar o melhor possível a o b-a-ba do começo do nosso trabalho
contribuição positiva de todos eles e intelectual. Essa orientação não podia,
devo confessar que me foi muito útil a contudo, nortear o nosso trabalho a
primeira formulação da teoria da depen partir do momento em que ele crescesse.
dência, elaborada por Fernando Henri Na medida em que o nosso trabalho
que em 1 9 6 5 , e que chegou às minhas cresceu, nós tivemos de enfrentar os
mãos em 1 9 6 6. dilemas de tentar construir uma teoria
P o r aí, vemos que s e poderia traçar sociológica original, adaptada à situa
três momentos independentes em minha ção brasileira. Esse é, pois, o lado posi
c arreira e que eles expressam as mudan tivo da nossa condição . O que demonstra
ças de minha relação com o alllb iente. que o sociólogo, se tiver estofo intelec
Acho errada a pretensão de abstrair o tual para tanto, acaba fazendo o que a
intelectual do ambiente. Abstraído do situação histórica, por mais caótica que
ambiente, o intelectual não tem vida, é s ej a, exige dele. Aliás, por aí chegamos
uma planta de estufa, que morre preco a uma posição de ponta. O nosso grupo,
cemen�e. Essa interação, no caso brasi através da fusão da herança empírica ,
leiro sofre muitas pressões e, de outro técnica e metodológica de europeus e
lado, a contribuição que, eventualmente, norte-americanos, e do avanço que pude
ele poderia dar se perde. Não sei o que mos dar através das nossas pesquisas e
eu poderia fazer se eu tivesse ficado das descobertas que elas possibilitavalll ,
sempre no primeiro momento. Uma conquistou rapidamente uma posição de
allli ga que estimo, Paula Beiguelman, vanguarda. Em seguida, também perde
sempre tentou me incentivar a perma mos rapidamente terreno - não pude
necer na orientação que segui no pri mos reunir as condições que eram neces
meiro momento . Penso que o fato de sárias para continuar a crescer, como
ter gravitado em outra direção era ne explico em "A crise das ciências sociais
cessário, pois o país estava enfrentando em São Paulo" ( conglomerado de escri
os processos iniciais de absorção da tos publicado em A Sociologia em uma
ciência. As condições especiais para o Era de Revolução Social) . É que a
trabalho intelectual organizado só apa sociedade brasileira não nos podia ofe
recem depois que as instituições estão recer condições institucionais para man
maduras, não antes . O essencial, por ter o terreno ganho . A partir de certos
tanto, consistia em criar condições para saltos nós tínhamos de ser reabastecidos ,
que o trabalho teórico fosse possível . E, e m termos de recursos humanos e de
depois que ele se tornou possível, natu- recursos materiais . O sacrifício que há
ENTREVI STA : FLORESTAN FERNANDES 19
por trás de todo o trabalho é muito a ser conquistado possa ser realmente
grande. Quando se fazia pressão para conquistado ; para que haj a um avanço
obter mais recursos humanos e materiais contínuo e não um solapamento do tra
nós tínhamos em mente que não se pre balho intelectual, com um declínio
tendia engendrar um "elefante branco", incontrolável das potencialidades cria
o que sempre evitamos. doras concretas.
Mesmo quando se criou o CESIT
(Centro de Sociologia Industrial e do Como analisa e interpreta os movimentos
Trabalho ) o governador Carvalho Pinto e tendências presentes na formação
me disse pessoalmente que nós podíamos cultural paulistana durante as décadas
duplicar o pessoal. Eu recusei. Se nós de 20 e 30? Como a Universidade de
começássemos com o dobro do pessoal São Paulo se integra neste quadro?
estaria tudo perdido. Não dispúnhamos
de tantas pessoas em condições de ser Eu não sou indicado para analisar
aproveitadas. Só poderíamos começar esse período de 20 e 30, porque real
com um grupo reduzido e, depois, mente, eu seria, como figura humana,
formar outros especialistas e crescer gra aquilo que os historiadores, os antro
dualmente, de maneira segura. A pólogos e os sociólogos cha m a m de per
influência do Fernando Henrique na sonalidade desenraizada. Eu sou um
Universidade, através do Conselho Uni desenraizado. Eu sou descendente de
versitário, era grande e a minha própria uma família de imigrantes portugueses
influência também contava. Naquele que se deslocaram do Minho para o
momento vários fatores nos ajudavam. Brasil, pessoas rústicas. E, inclusive p ara
Apesar disso, nós nunca logramos obter poder estudar, tive de enfrentar um con
os recursos de que tínhamos necessidade flito com minha mãe. Precisei dizer-lhe :
para consolidar os avanços. Os avanços "a partir desse momento, ou fico em
exigem consolidação. Como a institui casa e vou estudar, ou saio de casa p ara
ção não está plenamente integrada, estudar e a senhora perde o filho" . Nessa
plenamente madura, ela não protege o ocasião eu já tinha 1 7 anos, tinha feito
professor individualmente, não protege parte do ensino primário, tinha lido
o investigador individualmente e não muitos livros. Por sorte; encontrei
protege nenhum tipo de trabalho cole pessoas com as quais eu podi a conver
tivo de ensino ou de pesquisa. Em se sar; fui formando a minha biblioteca e
guida, a perda de terreno foi ainda mais tinha uma pseudo-erudição em várias
grave. áreas. Mas eu era um desenraizado e
No começo nós podíamos, com o não me vinculara a nenhum grupo inte
nosso esforço e com denodo, compensar lectual em São Paulo. A primeira vin
a erosão inevitável. Mas, no fim, a crise culação que eu adquiri coincide com o
se tornou maior e marchamos para uma meu curso de madureza. Lá, com os
espécie de plano inclinado. Um grupo, meus colegas, entrei em contacto com
que era um grupo de ponta, acabou várias correntes literárias que prevale
sendo pulverizado. Isso não significa que ciam aqui no meio brasileiro. Até aí, a
nós tenhamos perdido tudo. Mas é pre minha concepção de escrever era prati
ciso meditar sobre o exemplo. Quem faz camente uma preocupação clássica. Foi
história das ciências em termos instru graças a um colega no curso de madu
mentais não está preocupado com o que reza que eu me iniciei na literatura
está acontecendo ; está preocupado com moderna brasileira e procurei melhorar
o que se deve fazer. E o que se deve a minha concepção de estilística. De
fazer é dar recursos para que o terreno modo que, naqueles anos, por exemplo,
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acho que, entre os modernistas, Mário ção seria preciso demonstrar que essa
de Andrade era um homem exigente ; literatura seria diferente se o Movimento
mas só ele. Ninguém mais era exigente. não tivesse acontecido. Doutro lado,
Ele era exigente de uma maneira pouco aquilo que é mais valioso, mais impor
organizada porque, embora tivesse a tante nos Modernistas, a gente encontra
dimensão humana de um scholar, não nos autores anteriores.
era um scholar. Ele não foi treinado Eu não vou fazer um balanço disso
para isso. Quanto à geração modernista, porque eu não sou crítico literário nem
coloco-me diante dela mais em termos professor de literatura. Tampouco é o
do que seus componentes deveriam ter caso, aqui, de fazer uma análise socio
feito do que em termos do que eles fize lógica da cultura brasileira da década
ram. de 20 a 30. Penso que os Modernistas,
Eu gosto de usar o paralelo com de uina maneira geral, ficaram aquém
Mariategui porque ele é didático e nos do papel que lhes cabia. Eles tinham de
mostra, de uma vez e para sempre, o ser necessariamente críticos da sociedade
que o movimento modernista "deveria brasileira. E não foram. Se, se toma,
ser", mas não foi. Compare-se Os Sete por exemplo, R etrato do Brasil, d e
Ensaios com a produção dos nossos Paulo Prado ; aquele é um livro novo
modernistas. N a verdade, não temos que naSce velho. Quer dizer, são refle
nenhum livro importante para o conhe xões que, quando esbatidas sobre Os
cimento objetivo e a interpretação crí Sertões ou, principalmente, Um Esta
tica do Brasil ligado ao Modernismo. dista dodmpério, de Joaquim Nabuco,
Tais livros ou são anteriores, como é o revelam-'se , ocas. A investigação que
caso de Euclides da Cunha com Os existe no , livro do Joaquim Nabuco
Sertões, ou são independentes, de auto sobre o Império, aliás, deveria ser um
res que não participavam do Movimento ponto de referência. No movimento
Modernista, porque eram intrinsecamen mod ern Ist a não surge nada dessa dimen
te conservadores, como é o caso do Oli são. É ' um a reflexão que, praticamente,
veira Viana. O próprio Gilberto Freire está dentro de um mundo de contradi
se situa na órbita dos Modernistas. Mas ções butguesas que se fecham sobre si
a produção que ele desenvolve como mesm a s, tevelando uma burguesia simu
sociólogo não está vinculada ao Movi lada, que quer ser européia e não pode
mento Modernista. Talvez as intenções (ou ' só . é européia quando está em
estivessem, mas a gente nunca pode Paris). Então, ela é melancólica, porque
entrar nas intenções das pessoas. O fato vive ' em um mundo em que ela é con
é que o Modernismo aqui foi um Movi trariada 'eIJl suas aspirações essenciais.
mento pobre e eu não acredito que ele Isso sem desmerecer aquele homem que
tenha quebrado as arestas do obscuran tem certa importância na vida intelec
tismo tradicionalista, e que tenha sido tual brasileira, inclusive porque foi um
ele o fator que nos libertou das limita dos pouco s que escreveu contra a domi
ções do passado. Não só porque essas nação norte-americana. Contudo, O
limitações estão aí. tão vivas quanto Retrato do Brasil não é o "retrato do
eram antes; mais ainda, porque é evi Brasil" que um modernista deveria es
dente que o enriquecimento da litera crever : ·é, antes, o "retrato do Brasil"
tura, que ocorre na década de 3 0, não da consciência burguesa em crise ! Isso
tem ligação direta, causal, com o movi não é rno'dernismo . O modernismo é a
mento modernista. Pode-se afirmar o negação da consciência burguesa, o anti
contrário, como construção intelectual. da consciência conservadora, para ser
Todavia, para se comprovar a afirma- mais preciso. Ora, a consciência bur-
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tórico muito rico. Tudo isso fica evi neira mais clara e profunda no signifi
dente em 1 9 3 0, com a tomada do poder cado da industrialização como processo
por elementos que divergiam do estan de transição e de modernização.
camento histórico provocado pelos inte Figuras como Roberto Simonsen e
resses inerentes à encampação do Esta outros têm uma grande importância
do republicano pelo antigo regime. Aí porque avançam até ao ponto de admi
se define o que os setores divergentes tir uma intervenção estatal maior e um
pretendiam fazer com a economia, a cul planejamento em grande parte orienta
tura, a ordem social t� o sistema le poder do pelo Estado. Inicia-se uma polêmica,
da sociedade brasileira. A idéia de Uni que até hoje encontra clima para viva
versidade, a criação da faculdade de cidade, mas que só possui nesse mo
filosofia e a experiência universitária mento pleno significado histórico.
são rebentos desse contexto histórico, Porque os setores que defendiam a
pelo qual a modernidade burg:lesa <1 p a industrialização e procuravam a cola
rece, pela primeira vez, gravitando sobre boração do Estado, faziam isso porque
eixos internos próprios. Se a moderni entendiam que as classes burguesas no
zação cultural deséncadeada é tipica Brasil não tinham condições de alimen
mente dependente, ela assume propor tar um processo de industrialização
ções maciças, é desencadeada a partir maciço através de seus próprios recursos.
de dentro e tem por alvo utópico com Tinham de apelar para o Estado . Veri
pletar o circuito cultural e político da fica-se, no entanto, que o avanço não
frustrada "revolução republicana". era homogêneo, na medida em que o
Estado não conseguira, por exemplo, o
Quais foram as transformações culturais apoio que pretendia no caso da side
e políticas mais significativas que se rurgia. A iniciativa privada não se
operam na sociedade brasileira após o mostra bastante forte e ousada, exata
"Estado Novo"? mente porque temia que o processo aca
basse resvalando no vazio. Ela não con
Eu tenho a impressão que as trans fiava muito na industrialização autôno
formações foram muito mais ao nível ma. Apesar disso, esse período de LlO a
econômico e cultural do que ao nível 5 0 é um período de muita importância
político. As transformações ao nível eco em termos do impacto do mercado
nômico foram muito mais profundas interno sobre a industrialização e a
porque esse é um período em que o modernização cultural ( como conse
crescimento do mercado interno acaba quência direta ou indireta) . A industria
preenchendo a função de diferenciar lização não só muda de caráter - j á
ainda mais o sistema de produção. O se começa a produzir máquinas para
sistema de produção, que começa a se produzir máquinas, não se limitando à
diferenciar j á na última década do sé mera substituição de produtos de con
culo XIX desencadeando um processo sumo. Assume uma certa magnitude e
de industrialização incipiente, encontra cresce no sentido de tornar o parque
já na década de 20 um florescimento e industrial mais, denso e capaz de pro
é exatamente a partir da pressão de dução de escala em vários setores. Capa
círculos mais ligados com o mercado cita-se para produzir o's bens de produ
interno e com a produção para o mer ção industrial. O processo de industria
cado interno, que se delineia uma filo lização, em termos de relação de pro
sofia política favorável à industrializa dução, é o foco principal nesse momen
ção maciça. De modo que a ideologia to. É claro que, como acontece em toda
conservadora acaba penetrando de ma- a América Latina, o crescimento econô-
26
mico vai ser satelizado pela cidade. São um perigo para a intervenção burguesa
as cidades que, tendo redefinido sua no crescimento econômico. Portanto, a
função de dominação em relação ao década de 50, em termos de consciência
campo, vão drenar os recursos e exercer burguesa conservadora, é decisiva. Ao
uma função de estabilização do cresci mesmo tempo é ainda um momento em
mento econômico. que a consciência conservadora não des
Redefine-se, pois, a relação entre cobriu os riscos da atividade cultural
urbanização e industrialização. Se, entre independente.
o fim do século XIX e as três primei Se vocês lerem Lévi-Strauss verão que
ras décadas do século XX ( considerando os professores franceses, quando chega
o caso à luz de São Paulo ) , a industria ram aqui, foram adotados pelas classes
lização ajudava a intensificar a urba altas e praticamente incorporados ao seu
nização, a partir da década de 40, a padrão e estilo de vida. No início da
urbanização vai ter uma importância década de quarenta eu próprio consta
maior para a industrialização. Por fim, tei que, pelo menos dois professores
os dois processos acabam sendo interde franceses meus amigos, viviam segundo
pendentes - eles interagem de uma esse escalão. No entanto, aqueles pro
forma recíproca, um aumentando a den fessores não podiam reproduzir se não
sidade do outro . As transformações a base material do padrão de vida das
maiores se dão nessa área. E, a desco classes dominantes, pois necessariamen
berta principal da burguesia brasileira te estavam em conflito com elas no plano
de que ela é débil, e de que não pode político e cultural. De modo que não
controlar o processo de industrialização houve um casamento de professores
também se dá nesse período. europeus com elites econômicas ou polí
É claro que o significado político ticas brasileiras. Houve uma acomoda
desta descoberta só apareceria na déca ção, que no fim vai perder sua saliên
da de 60. Porém, é nesse período que cia e, em alguns casos, desaparecer. O
a utopia brasileira da burguesia sofre intelectual, por sua vez, gozava no meio
um contratempo sério. A ilusão de que brasileiro de uma independência e de
o Brasil poderia imitar países c,o mo a uma liberdade muito grandes. Essa
França se esboroa exatamente na dé liberdade entendida sociologicamente,
cada de 60. A ideologia conservadora no estava relacionada com o fato de que
Brasil levava à presunção de que o cres o intelectual no Brasil sempre fez parte
cimento do mercado interno e a dife dos setores dominantes e de suas elites.
renciação do sistema de produção iria Mesmo quando ele era divergente, como
criar para a burguesia n acional condi era o caso de Mário de Andrade ou
ções de liderança que iriam crescer con Oswald de Andrade, não escapava a esta
tinuamente a ponto de ela poder cola vinculação estrutural. A liberdade de
borar com o mercado externo e a tec divergência existia e era tolerada porque
nologia externa, mas ditando as condi ele era parte da elite, não se esperando
ções da interação, ou sej a, preservando dele, por conseguinte, que se conver
sua capacidade de liderança, de dire tesse em "fator de conflito contra a
ção e de dominação. Nesse período é ordem".
que ela descobre que não possuia enver De modo que a consciência conserva
gadura para isso ; e descobre também dora conferiu ao intelectual uma auto
que ela não podia alimentar crescimento nomia que não era intrínseca, mas ex
contínuo do Estado sem criar certos trínseca aos papéis do intelectual, algo
riscos. O Estado vai ter de crescer com decorrente da posição social, do estilo
certo ímpeto, tornando-se ele próprio de vida das classes dominantes e do
ENTREVISTA: FLORESTAN FERNANDES 27
termos de renovação cultural. É uma dé tudo isso está imbricado no floresci
cada em que a agitação passa da super mento que se produziu na e através da
fície para patamares mais profundos e década de 50.
na qual o controle conservador da vida
intelectual acaba sofrendo um extenso De que forma os movimentos e os
desgaste. Os círculos conservadores, acontecimentos políticos ocorridos na
para se refazerem, precisam procurar sociedade brasileira durante os anos 60
novos pontos de apoio na esfera do tiveram importância na elaboração de
poder político, militar, econômico, etc., sua obra? Nessa linha, qual o significado
e se vêm na contingência de revitalizar que atribui à sua ativa participação na
os padrões mandonistas de dominação "Campanha de Defesa da Escola
social e de controle do poder, ao nível Pública"?
estatal e fora dele.
Para mim, portanto, a década de 40 As coisas que tiveram maior impor
foi para o intelectual uma década de tância na minha obra como investigador
consolidação, especialmente quando se se relacionam com pesquisas feitas na
pensa em termos de universidade; a década de 40 (como a investigação sobre
década de 50 é uma década de flores o folclore paulista, a pesquisa de re
cimento, de autoafirmação e que engen construção histórica sobre os tupinam
dra a era de conflito irremediável. Um bás e várias outras, de menor enverga
conflito que se mantém criador no de dura) ou com a pesquisa sobre relações
senrolar desse período. Mas que logo raciais em São Paulo, feita em 1951-52,
iria se tomar negativo e destrutivo em colaboração com Roger Bastide (e
através da reação burguesa e do seu suplementada por mim em 1954). Esse
Estado contra-revolucionário. Perdem-se trabalho puramente intelectual confor
posições, perde-se continuidade .de tra mou o meu modo de praticar o ofício
balho, muitos elementos de valor, na de sociólogo. Já os movimentos descritos
escala de grupos, desaparecem. Ainda tiveram importância mais em termos de
assim, essa evoução é produtiva, porque minha relação com a sociedade brasi
todo conflito é produtivo. leira, embora fossem muito úteis para
modificar a posição através da qual eu
No caso brasileiro só se deve lamen
poderia observá-la, descrevê-la e inter
tar o fato de que não houve uma real
confrontação entre a concepção conser pretá-la.
vadora e a concepção radical da vida. Segundo penso, a importância maior
Se se faz uma simplificação bastante desses movimentos que eclodem no co
ampla, só se deve lamentar isso. Sy meço da década de 60 está neste fato:
tivesse havido um confronto mais vio o de quebrar a mistificação das elites.
lento e profundo os resultados seriam Inclusive, foi possível levar o desmas
melhores. De qualquer maneira, o con- caramento mais longe e constatar-se
flito se estabeleceu e ele está na cons que a revolução de 30 foi uma revolu
ciência do estudante, do professor, do ção elitista, com ressonância popular,
intelectual e mesmo dos que se vêm obri que o chamado "populismo" foi antes
gados a participar dessa situação sem uma manipulação demagógica do poder
serem letrados. burguês do que uma autêntica abertura
É importante o que aconteceu. Tenho para as "pressões de baixo para cima".
em mente que, como todo o conflito A revolução de 30 captou as frustra
que não se resolve, germina de forma ções das classes médias e de setores insa
latente. O setor conservador deu a pri tisfeitos das classes dominantes. Esses
meira palavra, mas não deu a última. E setores minoritários da sociedade brasi-
30
leira tinham razões de estarem descon se abriu, é verdade, para vários círculos
tentes. Porém, não devemos esquecer inovadores. Mas, em compensação, ele
que as massas populares - tanto os abriu muito mais para a composição
trabalhadores proletarizados quanto os com as antigas oligarquias. Se, de um
trabalhadores, que às vezes nem passa lado, um Mário de Andrade, ou um
vam pelo mercado - possuiam razões Fernando de Azevedo como amigos de
de descontentamento e de rejeição da Capanema, faziam frutificar certas ino
ordem existente muito mai s profundas. vações, de outro, as oligarquias novas e
A maioria da sociedade brasileira via-se modernas se revitalizam ou, por trás de
frustrada pela continuidade do antigo recomposições das estruturas de poder,
regime e pela cega dominação elitista preparam o campo para a unificação
que isso pressupunha, o que confere à dos interesses burgueses convergentes e
revolução de 30 uma ressonância popu para a universalização dos padrões man
lar ampla. E foi disso que ela extraiu donistas de dominação social e política.
sua força histórica, que ela traiu de Esse pano de fundo, que iria cobrar
modo rápido e irremediável. o seu preço histórico em 1 9 64, não
A primeira coisa que a revolução de impede que muitas inovações se conso
30 fez foi trair. Lembro-me que era lidassem, especialmente, nas áreas da
criança, tinha apenas dez anos, mas educação e do intervencionismo econô
andei pelas ruas gritando : "Nqs quere mico do Estado. Uma das altercações
mos ! Getúlio ! Nós queremos ! Getúlio!" mais importantes diz respeito à influên
Isso mostra qual era o impacto popu cia dos professores formados pela Fa
lar da revolução de 30. Mas, com o culdade de Filosofia. Eles se instalam
poder na mão, o setor que ganhou a no ensino médio e uma das conseqüên
revolução não podia deixar de ser re cias, em um estado como São Paulo,
presentante da maioria, e de implantar por exemplo, é que a qualidade intelec
um governo elitista, ainda que renova tual do estudante muda; E a relação do
dor e modernizador. Uma moderniza estudante com a sociedade, com os pro
ção controlada a partir de dentro, atra blemas da sociedade, também muda.
vés de reivindicações que muitas vezes Quer dizer que o estudante, que vai para
a universidade na década de 50, é rel a
tinha um sentido demagógico e com
tivamente diferente do estudante que ia
implicações populistas - mas, de qual
para a universidade na década de 40.
quer maneira, era um elitismo. E o
Na década de 40 era raro que um estu
pior, era um elitismo com concessões
dante tivesse professores especializados
demagógicas, anestesiantes. Todas as
na sua formação. Eu mesmo não tive
reformas controladas pelo Estado Novo nenhum licenciado como meu professor.
foram reformas de imposição feitas de Os meus professores, quando eram
cima para baixo. Mesmo na esfera sin "bons" vinham da faculdade de Medi
dical e na esfera educacional, as con cina, da faculdade de Direito, de um ou
cessões se faziam para impedir ou neu outro seminário religios o ; nenhum era
tralizar as pressões dos interessados e licenciado em geografia, em história, em
para impor a consolidação da "Paz biologia, em química ou em matemática.
Social" ditada pelos interesses e pelas Os professores que me examinaram nas
conveniências burgueses. bancas de ginásio estadual, por sua vez,
Hoje está em moda falar em estado vinham da velha improvisação e pos
tecnocrático. Ora, o Estado Novo não suiam registro precário. Eu próprio,
deixa de ser uma primeira experiência depois que terminei ° curso de madu
de Estado Tecnocrático, só que numa reza, fiquei professor com registro pre
escala reduzida e de "vôo baixo". Ele cário. A década de 50 desdobra um
ENTREVISTA : FLORESTAN FERNANDES 31
3
34
esta época, e u ficara preso n a s malhas dade de que ele faz parte em termos
da profissionalização do sociólogo. Do de cidadão, em sua condição de membro
sociólogo que faz o seu trabalho obede do mundo em que vive. Isso foi crucial
cendo a uma ética da ciência que foi para mim.
-
construída no período liberal. Por que Mas houve coisas ainda mais impor
não se faz a crítica científica dessa éti tantes. Afinal de contas, quando se
ca? Por que o cientista que se isola quebra o isolamento intelectual o diá
e se retrai pensa que está agindo em logo se estabelece. E, se o diálogo se
nome dos padrões da ciência? A ciência estabelece a partir do indivíduo que é
não impõe nada disso a ninguém. O pro sociólogo, que tem treino para fazer
blema diz respeito à natureza do conhe pesquisa, ele está desdobrando sua capa
cimento científico . Se esse conhecimento cidade de observação da sociedade . Eu
é exposto de uma ou de outra maneira, não tive uma : tive quase 60 oportuni
ou se o investigador está exposto ou dades de observar grupos em ação e de
não ao contacto com vários tipos de discutir com membros daqueles grupos
público, isso não afeta a natureza do de diferentes posições : os que apoiavam
conhecimento científico . Desta maneira, a Campanha, os que eram contra, os
quebrei o meu isolamento e deixei de que eram contra as medidas de raciona
estar confinado ( não só dentro da uni lização do ensino e os que defendiam a
versidade, mas de uma universidade que patrimonialização do sistema nacional
estava em processo de formação, sujeita de educação. Pude, então, ir a fundo da
à forte inibição de controles externos natureza do controle conservador do
conservadores, e submetida a várias poder. Em A Sociologia numa Era de
pressões, todas elas de tipo elitista ) . Revolução Social há um ensaio ( "Refle
Como intelectual aproveitei muito e. xão sobre os problemas de mudanç a
principalmente, descobri que a sociolo social no Brasil' ) onde defino a oposi
gia precisa responder às expectativas ção à mudança como uma modalidade
que não devem nascer dos donos do de resistência sociopática das classes
poder, mas sim de critérios racionais de conservadoras e que eram ditadas pelo
reforma, que levam em conta as neces medo de perder suas posições nas estru
sidades da Nação como um todo, ou turas de poder. Ê uma descoberta que
das pressõe s históricas de grupos incon eu jamais faria se não tivesse partici
formistas. Para evitar um conflito pado da " Campanha de Defesa da Esco
frontal com os controles conservadores, la Pública". Ali eu vivia praticamente os
definimos uma linha de ação que per papéis intelectuais do sociólogo-mili
mitia combinar esses dois tipos de moti tante. Era um participante do grupo e
vações, reduzindo ao mínimo o envol discutia em termos de participante para
vimento ideológico e político de nossa p articipante. A polarização radical de
atuação. Ainda assim, as transformações minha posição exigia das pessoas que me
exigidas eram demasiado profundas e o antagonizam que evidenciasse , até ao
conflito com os setores privatistas, mais fundo, a natureza imobilista, obscuran
ou menos conservadores, cresceu em tista e reacionária das pressões conser
intensidade e em violência. Portanto, vadoras. Eu podia também ter apoio.
como sociólogo, adquiria uma posição Nesse caso, líderes sindicais, estudan
estratégica que me ofereci a uma visão tes e jovens inconforrnistas, espíritas,
crítica do trabalho intelectual do soció maçons, protestantes, católicos dissiden
logo quando ele não se liga à comuni tes da posição oficial da Igrej a, gente
dade dos cientistas, dos cientistas com politização de esquerda - do par
s o ciais, mas se volta para a comuni- tido trabalhista ao partido ccmunista c
36
to, O que aconteceu foi produtivo. Espe que sugere, por si mesma, que os con
cialmente para o jovem, que ouvia. Ele flitos de classe se abriam para a refor
aprendia a refletir criticamente sobre os ma e a revolução democrática.
problemas da sociedade brasileira. E Independentemente disso, os movi
essa é uma aprendizagem fundamental. mentos radicais entram em uma etapa
Posteriormente, ocorreram movimen de confronto mais viril com o controle
tos mais significativos e de maior ampli elitista da universidade, do saber, do
tude política, com um nível mais alto papel do intelectual. E desse confronto,
e aberto de radicalização. Ê que, com naturalmente, nasceu um esmagamento
a mudança do contexto histórico, depois maior porque, realmente, a luta era
de 1964, o controle conservador tor desigual. Há, também, vários elementos
nou-se mais rígido, explícito e implacá interferentes, que não vêm ao caso ana
vel. Aí se inverte a relação descrita lisar agora. O que importa é reconhecer
acima. Os limites estabelecidos e as solu que esses movimentos tiveram muito
ções impostas aparecem para os estu maior significação, não para as ciências
dantes, os jovens e os intelectuais radi sociais, em si mesmas, mas por suas
cais, ou outros setores da sociedade, consequências. O nível do diálogo e do
como um desafio intolerável. Portanto, protesto era mais homogêneo. Os que
um desafio que obriga o elemento radi não sentiam alguma propensão à con
cal a tirar o capuz, a decidir o que é testação ou à radicalização não iam,
mais importante - o compromisso com evitavam o engajamento. A visibilidade
o imobilismo ou a atividade inconfor definida do intelectual ou do jovem
mista. Então, especialmente a partir do como radical vai criar, portanto, um
momento em que os estudantes, os ope público de tipo determinado. Esse públi
rários, os intelectuais, os padres e alguns co, por sua vez, aumenta aqui, diminui
políticos ou líderes sindicais vão saindo ali. Porém ele sempre dá apoio às várias
da perplexidade, do isolamento e do manifestações. Se não cresce como devia,
temor, especialmente depois de 66 -
isso se deve a uma estratégia ultraes
mas com muito mais intensidade entre querdista errada, que se confunde, que
67 e 68 - ocorrem movimentos de não identifica nem os aliados potenciais
muito maior importância, densidade e nem o inimigo principal, e aceita, por
significação política. Mas nesse momen isso, os clichês, os estigmas que o con
to o intelectual já estava exposto ao des trole conservador manipula a seu bel
mascaramento. Os grupos conservadores, prazer. A estigmatização em termos de_
partido divergente com escola de parti há críticas de vários tipos - umas são
do doutrinando na parte teórica e dando estúpidas, outras são inteligentes - e é
adestramento na parte prática. As nossas sempre possível aproveitá-las. Aprovei
fraq uez as e as nossas debilidades forçam ta-se a colaboração coletiva dos auditó
a situação histórica, o que faz com que nos, o que toma o movimento de idéias,
ENTREVISTA : FLORESTAN FERNANDES 39
muito mais rico, aberto e fecundo. E, a partir dos sindicatos. Aqui só o DIESE
em particular, o sociólogo e a socÍ'Jlogia permitiu o desenvolvimento de coleta
respondem às pressões do ambiente e de informações importantes sobre o
interagem com ele. Supera-se o patamar custo de vida, mas sem envergadura para
de uma sociologia profissional ressen suscitar contribuições teóricas de relevo
tida, em busca de uma sociologia n a ou para alimentar a carreira de um
qual sociólogos com formação profissio grupo de especialistas.
nal participam e põem o trabalho inte De modo que a Universidade, goste
lectual deles como e enquanto sociólo mos ou não de suas estruturas e funções,
gos em interação com expectativas e centraliza certos trabalhos. De fato, se
preocupações da coletividade. E isso, do fui alguma coisa em minha vida, fui um
ponto de vista da sociedade, é impor universitário. Não só me preparei para
tante. Porque se o meio intelectual bra ser um universitário, mas fui um uni
sileiro fosse diferente não haveria essa versitário no sentido mais pleno da pa
necessidade. lavra. A tal ponto que quando deixei
de ser universitário, fiquei desarvorado.
De que maueira as condições Eu não sei para onde vou. Estou numa
institucionais integraram, limitaram ou crise que é psicológica, é moral e é polí
neutralizaram os resultados de sua tica. Em grande parte porque, na me
produção científica e profissional? dida em que não tenho grande interesse
em ser professor de sociologia no exte
É claro que devemos considerar que rior, e não podendo sê-lo aqui, perdi
todos estes resultados estão misturados. um ponto de referência e de identidade
Nunca poderia ter me tornado soció que poderia ser muito vantajoso para a
logo se eu não fosse professor de socio minha sobrevivência e o meu trabalho.
logia na USP. Com todas as limitações Falando francamente, a Universidade
que a instituição possa ter, ela possui exerce uma função básica, pois permite
uma vantagem fundamental : permite que certo tipo de trabalho intelectual que
alguma coisa se faça ou deixe de ser não existiria de outra forma. Aceita esta
feita. O que não se faz lá não se faz idéia, de que a Universidade oferece uma
em nenhum outro lugar. Há certas pes oportunidade de trabalho que não se
quisas que, ou se faz dentro da univer concretizaria de outra forma, é preciso
sidade ou elas não se realizam. Se nós deixar claro que a Universidade brasi
vivéssemos, por exemplo, nos Estados leira não tem condições de dar suporte
Unidos, vários tipos de pesquisas pode pleno ao trabalho intelectual em todos
riam ser patrocinadas por fundações e os campos da ciência. Ela ampara mas
alguém poderia ser cientista social sem com limitações muito graves. Quanto às
precisar converter-se em professor da fontes que suplementam o apoio ( Fun
universidade. James West, um antropó dação de Amparo à Pesquisa e Conse
logo famoso, é um exemplo disso. E lho Nacional de Pesquisas etc. ) eles
existem muitos outros, que não vem ao também preenchem as suas funções com
caso citar - inclusive alguns que fize certas limitações. Eu próprio nunca me
ram carreiras brilhantes fora da univer beneficiei, de uma maneira pessoal,
sidade. De outro lado, há muitas inves dessas vantagens.
tigações que foram feitas na Europa a Refletindo em termos do que aconte
partir de partidos, como o partido socia ceu durante a minha vida, acho que a
lista, o partido comunista, o partido Universidade brasileira, ao mesmo tem
trabalhista etc. ; na Itália, na França, na po que me ofereceu a oportunidade de
Alemanha, na Inglaterra etc, ou, então, me tornar um sociólogo, determinou que
40
eu fosse um sociólogo com possibilida o sistema social tupi de uma maneira tal
des estreitas de produção teórica. A pa que encontrou corroboração de investi
lavra teoria exerce uma fascinação muito gadores com treino em pesquisa de
grande no Brasil, e não só entre os campo e que vistoriaram o meu traba
sociólogos, os matemáticos, os filósofos, lho d e uma maneira rigorosa. A Função
os críticos literários, professores de lite Social da Guerra na Sociedade Tupi
ratura - todos, em suma, querem fazer nambá, talvez tenha sido a obra na qual
trabalho teórico, e só dão sentido ao tra eu dei maior vazão aos meus ímpetos de
balho quando se pode falar em Teoria. scholar; o meu trabalho mais puro como
Para mim, o trabalho só é teórico quan sociólogo. É certo que dei pouca atenção
do produz um conhecimento novo, sej a a qualquer norII1a que reduzisse a ela
de alcance médio, seja de alcance geral. boração interpretativa ao que pudesse
Em um livro como A Organização Social ser corroborado pela análise comparada.
dos Tupinambás há teoria, mas é uma Realmente trabalhei tendo em mente
teoria implícita que, em grande parte, aprofundar o sistema tupi e acho que,
não foi criada por mim, que eu herdei principalmente na análise das várias
e outros etnólogos" antropólogos e so funções da guerra, o trabalho tem uma
ciólogos. A parte criadora que existe em contribuição teórica de grande impor
A Organização Social dos Tupinambás tância, embora limitada, pois nunca
está mais na articulação das várias partes ultrapassei a sociedade tupi e a sua civi
do sistema social tribal. Essa articulação lização.
representa um produto da minha capa Agora, vamos perguntar : esse traba
cidade criadora. Se eu não tivesse uma lho foi possível graças à Universidade
imaginação sociológica eu não seria de São Paulo? Foi, mas só no sentido
capaz de, explorando os dados ofere em que eu tinha um emprego pelo qual
cidos pelos cronistas e o que eu sabia me sustentava e facultava certas esco
da teoria da organização social, recons lhas. Isso quer dizer que eu dispunha
tituir o sistema tribal e chegar à expli de ócio e, graças à instituição do tempo
cação de uma civilização. integral, podia suplementar minha renda
Em A Função Social da Guerra na facilmente com artigos de jornal, po
Sociedade Tupinambá já existe um pou dendo empregar meu tempo para fazer
quinho mais de teoria explícita. Porém, um trabalho daquela envergadura. Le
é uma teoria que só tem validade para vando mais longe a pergunta : se eu pre
o sistema cultural tupi. É claro que é tendesse fazer uma investigação em que
esta a contribuição máxima que um ainda não dispussesse dos dados (porque
investigador empírico pode dar. Quando no meu caso já dispunha dos dados,
ele consegue uma explicação que vale pois havia feito um levantamento prévio
para um determinado sistema de civi das fontes ) , se quisesse investigar com
lização é que se pode falar em "contri a mesma plenitude um grupo tribal con
buição teórica". Mas, aí, temos uma temporâneo, não teria condições nem
espécie de teoria que está abaixo daqui meios para subvencionar as viagens e
lo que Merton chama de teoria de nível longas permanências no campo, em uma
médio, de nível intermediário, ou de pesquisa que durasse três ou quatro
alcance médio, como quiserem. Ainda anos. Igualmente não teria tempo para
assim, eu acho que nesses dois trabalhos me dedicar exclusivamente à crítica e à
eu dei uma contribuição teórica. Apesar análise dos dados, à verificação das
de ter encontrado pouco reconhecimen interpretações e à redação do trabalho.
to, ela não me parece ser uma contri Isso significa que a Universidade não dá
buição irrelevante. Consegui reconstruir condições de trabalho efetivo . Porque
ENTREVI STA : FLORESTAN FERNANDES 41
exemplo, para desenvolver teorias que impunham como a única área em que
são irrelevantes em termos da sociedade nós poderíamos realmente concentrar o
brasileira, da América Latina - ou das esforço da pesquisa criadora ) , a Univer
Américas Latinas - e dos países depen sidade não foi capaz de revelar nenhu
dentes, enfim de todo o terceiro mundo. ma yitalidade. Inclusive de dar um
E não sou só eu que penso assim. Há apoio funcional ao crescimento das
quem pense que sucumbimos à ideolo equipes de pesquisa e à renovação dos
gia e a uma posição política. Mas, se recursos materiais e humanos que eram
se leva em conta um trabalho impor indispensáveis.
tante de Myrdal, escrito já há quase Por isso é que se poderia dizer que
vinte anos, descobre-se que muitos tra de um lado a Universidade brasileira se
balhos de investigação nas ciências equipou apenas para ensinar, quase que
sociais só podem ser feitos nos países repetindo uma limitação fundamental da
chamados dependentes e se estes países escola superior isolada; e que, de outro
tiverem alguma autonomia intelectual, lado, ela ampara a pesquisa que cria a
política e científica. Por isso, uma arti teoria original mas apenas até um certo
culação muito estreita com os centros ponto . Quando a teoria original começa
de investigação do exterior ( tidos como a exigir mais recursos, maior flexibili
mais dotados de recursos materiais e dade, aí a universidade não tem condi
humanos ou mais avançados ) pode ser ções de oferecer qualquer tipo de apoio
indesej ável. ao investigador individual ou a grupos
Ê exatamente esse o caminho errado de investigadores que estiverem envol
e negativo que se está escolhendo, agora, vidos em projetos, mais ou menos com
nas ciências sociais, para compensar as plexos e prolongados. E essa limitação
deficiências da nossa universidade. Ao é básica porque, qualquer que seja a
invés de se procurar saturar a; univer opinião que se tenha a respeito da pola
sidade com funções novas, com recursos rização dos cientistas sociais por causa
que permitissem uma expansão da pes do conflito de ideoloj!ias, nenhum país
quisa autônoma, estão se estabelecendo da periferia do mundo capitalista terá
condições para articular a pesquisa cien hoje condições de lutar contra o subde
tífica com preocupações que eventual senvolvimento e a dependência se não
mente serão, quando pouco, centrífugas for capaz de produzir teoria original no
em relação àquilo que poderia ser mais campo das ciências sociais.
importante para o desenvolvimento da
ciér,cia no Brasil. Desta perspectiva é Como enfrentou durante toda a sua
que se pode fazer a crítica fundamental carreira profissional a questão da
à Universidade brasileira. Ela não ofe chamada "responsabilidade política e
rece ao investigador, em qualquer campo ideológica" do intelectual? De outro
das ciências sociais, condições para lado, a seu ver, de que forma a sua
avançar na construção de teoria origi produção científica teria contribuído
nal. Na ciência não interessa repetir para o enriquecimento do quadro
experimentos e verificar teorias já esta teórico e para a ampliação do campo
belecidas ; interessa produzir teorias de investigação das ciências sociais no
n ovas. E na Universidade brasileira é Brasil?
muito estreito o trabalho que pode con
duzir à produção de teorias novas. E De uma maneira geral, devo dizer
onde a produção de teoria nova se con que me sinto muito insatisfeito pelo fato
solidou ou está se consolidando (porque de que não consegui superpor os dois
era inevitável, j á que as escolhas se papéis que gostaria de preencher. Eu
ENTREVISTA : FLORESTAN FERNANDES 43
minha atividade docente a vários temas, intelectual para nós, de criar caminhos
que ainda hoje são importantes. próprios dentro da produção intelectual
Se eu tivesse de começar a minha car na ciência, caminhos que permitiriam a
reira de novo eu voltaria, nas condiçõe'i todos nós um esforço de criação inte
daquela época, àqueles temas. No campo lectual independente. É como se eu esti
da sociologia geral fiz um trabalho que vesse procurando as vias mais puras na
não poderia ser diferente, no momento investigação sociológica. Vias que depois
em que eu vivia. Talvez, hoje se pode se abriram nos Estados Unidos, no
ria dar mais ênfase à construção de Japão, e em outros países e puderam
teoria e às técnicas que permitam apro ser exploradas pelos investigadores de
fundar a contribuição do investigador na várias formas. Tome-se como exemplo
área teórica. Mas, naquele momento, nós A Estrutura da A ção Social de Parsons :
estávamos ainda no começo que, se não a montagem responde a um intuito aná
era incipiente, era quase incipiente. Nós logo, embora ele não sej a confessado.
não nos distanciávamos mais que uns 8 Seguindo outra orientação e dentro de
ou 9 anos da criação da universidade. outras preocupações, eu estava fazendo
Eu não podia ir mais longe do que fui. a mesma coisa, buscando novos cami
E acho que, ao tentar combinar influên nhos através dos clássicos. Não para
cias teóricas que vinham dos Estados formar o meu pensamento, mas para se
Unidos e da Europa e concentrar a re criarem balizas através das quais o pen
flexão crítica em Marx, Durkheim e samento sociológico pudesse se repro
Weber, estava fazendo algo de muito duzir aqui em condições de autonomia
sentido para a formação dos sociólogos intelectual máxima para nós. Nunca me
brasileiros. pareceu desejável que nós crescéssemos
O que representa esta ênfase nos clás como um centro de investigação socio
sicos? Por que os clássicos? Eles estão lógica sem condições de autonomia inte
tão longé. Eu me lembro do meu pro lectual. Daí os clássicos. É claro que
fessor Wilhens, que me dizia : "Florestan não se imitam os clássicos. Os clássicos
deixe disto. O importante são os auto são pontos de partida, pontos de refe
res dos nossos dias. Os autores que rência e elementos que permitem rede
preocupam você já morreram, eles não finir centros de preocupação . Se se mis
têm mais importância". Ora, eles tinham turam os vários clássicos, então fica
e continuam a ter importância. De um claro que o que se procura é criar,
lado, porque eles construiram os campos dentro das condições do país, meios
fundamentais da sociologia. A investi para a elaboração da sociologia a parti r
gação de cada um deles está ligada ao dos recursos internos desse país. Essa
desenvolvimento de certas áreas de era a ênfase, essa era a intenção.
investigação, que estão aí, e podem ser Podem criticar-me mas, eu fui fiel a
cultivadas ainda hoje. De outro lado, essa linha : basta que se comparem os
eles também construiram modelos atra primeiros capítulos dos Ensaios de
vés dos quais nós construimos a teoria Sociologia Geral e Aplicada e de Socie
original na sociologia. Nós ainda não dade de Classes e Subdesenvolvimento
superamos essa fase de trabalho n a para se verificar isso. A busca de auto
sociologia histórica o u n a sociologia nomia criadora gerou, pois, uma orien
comparada ou na sociologia sistemática. tação básica que se manteve constante e
E por aí afora. que cresceu sem destruir-se. Quando se
Mas h á um outro elemento a se des usam autores recentes, quase sempre o
tacar. A ênfase nos clássicos represen que se está fazendo é procurar uma ins
tava uma maneira de buscar autonomia piração direta, repetindo, imitando, re-
ENTREVI STA : FLORESTAN FERNANDES 45
tempo, em que eu me torno o que seria podia ir além dos olhos dos cronistas. O
depOls : um sociÓlogo com pleno domí trabalho abriu-me essa ampla perspec
nio da so clOl o g1 a descritiva e da socio tiva e, como tema para o estudo do
logia dl1erencla1. Brasil, ele também era significativo. Ali
se achava o ponto zero da nossa histó
Em que época isso ocorre? ria. Qual é o conhecimento positivo, pre
ciso, do indígena no momento em que
A Organização Social dos Tupinambás surge o branco? Para nós deveria ser
foi defendlda como tes e em 1 9 47 e foi uma preocupação fundamental. É claro
publicada em 19 49 - <luer u\:z.er, cro <lue a<lue\a uocuffien.\.ação é \lffiltao.a,
nologlcamente, é um trabalho que cai uma documentação distorcida, mas ela
na decada de 40, e ass im se coloca entre tem valor. Inclusive, são muitas as
os prim eir os que fizeram as investigações fontes; pode-se cotej ar umas com as
de tipo moderno . Eu me lembro o que outras e selecionar (ou peneirar) o
o Antônio Cândido me disse : "Flores conhecimento positivo. Às vezes exage
tan, vendo o seu trabalho a gente não rei, querendo colocar tudo em evidência.
tem invej a dos ing l e ses. Agora nós temos É provável que se eu fizesse um escru
um livro para mostrar" . Generosidade tínio crítico mais rigoroso eu teria eli
dele. Mas, de qualque r modo, para minado muitas informações e restringido
alguém que tinha 27 anos, um livro o campo de análise. Todavia a recons
como a qu ele não é brincadeira. Como trução histórica não contrariou o que se
aprendizagem , eu tive a op o rtuni dade de sabe ( ou se pode supor) sobre os tupis
ir muito l onge . através da pesquisa de campo. O pro
Hoje prevalec e uma i dé ia errônea a fessor Baldus, que funcionou como meu
respeito dos "estudos de caso " . A al déi a orientador e era um especialista sobre
e a socied ade tribal tupinambá comple os Tapirapé, endossou plenamente o s
taram a minha formação como soció resultados de minha investigação. N a
logo. Eram para mim o equivalente de defe s a d e tese, ele chegou a interromper
um laboratório ou quiçá, muito mais ! um dos examinadores, para dizer : "Oh,
Os grandes problemas de qualquer civi Wilhens ! Que bobagem! Bem se vê que
lização apare c em na comunidade. A você nunca viu um índio".
questão está em saber-se ligar a comu A monografia sobre A Função Social
nidade com a sociedade e a civilização da Guerra na Sociedade Tupinambá
- de ver, através do microcosmo, os tinha outra significação teórica, em si
dilemas humanos e históricos do macro mesmo e para mim. Foi a primeira ten
cosmo. Além disso, o estudo d e comu tativa que fiz de "sair do chinelo" e de
nidade obriga o sociólogo a operar com enfrentar o trabalho de elaboração teó
a totalidade. Ao estudar os tupinambás rica propriamente dito. A teoria que
eu tive, pela primeira vez, essa experiên estava em jogo era a teori a de solida
cia interpretativa. E, naquela época, riedade coletiva das sociedades tribais.
apesar de todas as limitações da minha E é alguma coisa que eu só podia fazer
formação, eu já conhecia o suficiente depois de ter feito um trabalho de re
de Mauss, para saber que não estava construção pura e simples, como no
estudando apenas uma comunidade livro anterior. Quem leu os dois livros
local, mas a civilização tupi. O que vai notar que eu avanço muito mais no
Mauss fez com os esquimós, eu fiz com segundo, porque a reconstrução está
os tupinambás. Tentei conhecer a sua estabelecida. Se um leitor desconfiar das
civilização nos limites da documentação interpretações, ele pode recorrer ao
possível, pois lamentavelmente eu não outro trabalho como fonte de controle.
48
ler A Função Social da Guerra ele me modo mais geral, para o desenvolvi
disse - "Olha Florestan, todo o livro mento do pensamento sociológico no
devia ser traduzido, mas nós não pode� Brasil.
mos. Vou traduzir a parte sobre o sacri� A análise estrutural-funcional que
fício humano, na qual você fez o que pratiquei foi instrumental em todas essas
eu deveria ter feito" ( e, de fato, provi direções. E ela nada tem a ver com o
denciou a tradução e a publicação de "funcionalismo" da sociologia sistemá
toda aquela parte em francês ) . Era uma tica. Trata-se da análise estrutural-fun
atitude científica bonita e que nos deixa cional que pode ser - e deve ser -
uma lição, quer quanto à natureza da explorada pela sociologia descritiva, pela
mentalidade científica, quer quanto ao sociologia comparada e pela sociologia
modo pelo qual se deve proceder à crí diferencial. Se eu fizesse o levantamento
tica segundo critérios científicos. O que empírico e o tombamento analítico dos
não se deve perder de vista é que os dados e não a aproveitasse, em segui
dois trabalhos foram produtos de minha da, jogaria o bebê fora com a água do
exclusiva iniciativa, que entre os 25 e banho . . .
os 3 1 anos, com toda a precariedade de Como um ponto final : para os que
nossa situação cultural, eu fizera uma pensam que se pode estudar as relações
investigação empírica tão complexa e sincrônicas de uma perspectiva dialética,
escrevera os dois livros. Eles não são
relembro Marcel M auss. Ele, por exem
perfeitos - é certo ! Não existe "obra
plo, estudou os esquimós, mas não achou
perfeita" na ciência. Contudo. nem a
investigação nem os seus resultados, necessário fazer análise dialética de sua
como eles aparecem nos dois livros, sociedade e de sua civilização. Mesmo
devem ficar sujeitos às oscilações da quando ele estuda o presente ( ou a dá
moda, às implicações da substituição da diva) através de uma análise compara
an álise estrutural-funcional por não sei da, ele não se impõe qualquer análise
que tipo de "estruturalismo". dialética. Por que? Porque as conexões
Quanto ao mais, estudos teóricos, que que ele procurava investigar não eram
fiz sobre organização social (publicados conexões que exigissem análise dialéti
condensadamente como introdução ao ca. Ou a gente falsifica a análise dialé
livro e na íntegra, posteriormente) ; sobre tica, no sentido vulgar da palavra f alsi
a guerra ( condensado em notas que ficar - para converter a análise dialé
constam do livro ou em uma subdivisão tica em uma espécie de cafiaspirina -
de um balanço prévio das fontes e das ou então a gente procura a especifici
possibilidades de aproveitá-las para o dade da análise dialética, descobrindo
estudo sociológico na guerra na socieda que a análise dialética só é válida para
de tupinambá) ; e sobre as técnicas de determinados tipos de problemas e, prin
formação de inferência e de explicação cipalmente, para os problemas que apa
sociológica, deixam claro o quanto essas recem nos povos que têm um determi
críticas são injustas e deslocadas . Não nado tipo de história, a qual n asce da
só eles ignoram o que eu pretendia, estrutura antagônica do modo de pro
podia e devia fazer ; elas deixam com dução e de organização estratificada d a
pletamente de lado que a ciência não sociedade, e se caracteriza pelo fato do
s e faz de "um dia para o outro". Naque presente negar o passado, como um elo
le momento, eu não era, apenas, um com um futuro que não repete as "estru
jovem abrindo o seu caminho dentro da turas existentes", porque no processo de
Sociologia. Eu abria também caminho se objetivarem e se reproduzirem elas
para outros, que vinham depois e, de se transformam.
50
financiamento tão precano, ao mesmo quisa, que aquilo tudo deu novo sentido
tempo que envolvia um projeto de pes à sociologia para mim (e deu sentido
quisa tão ambicioso . . . Só amadores, ao meu trabalho e ao que eu pretendia
como Bastide e eu, aceitariam fazer fazer com a pesquisa sociológica) . À
pesquisa por "amor à ciência" ! medida que a coleta de dados progre
De qualquer modo, a recusa de Pier dia, aumentava o meu entusiasmo. O
son forçou Métraux a insistir com B as projeto de pesquisa fora escrito ainda
tide, que era muito seu amigo e não de uma maneira ambivalente, o entu
sabia dizer não. Ele acabou tendo de siasmo era pequeno e o objetivo con
fazer o trabalho e me convidou para o sistia em corrigir as diferenças de pontos
mesmo. Eu j á tinha trabalhado com ele, de vista que existiam entre eu e o Bas
em virtude do meu estudo sobre o fol tide. Escrevi aquele proj eto como se ele
clore e, diretamente, de biografias de fosse uma técnica adaptativa, para che
algumas personalidades ligadas a cultos garmos a um entendimento e a uma
africanos. Além, disso, em 1 943 fizera perspectiva comum. No projeto, eu
em Sorocaba uma pesquisa para o Dr. usara as idéias do professor Pierson, de
Wilhens, tendo coligido dados sobre João que o Brasil constituia um caso nega
de Camargo, certas manifestações locais tivo, quanto à existência do preconceito
do preconceito de cor e o folclore negro e da discriminação raciais, como uma
de Sorocaba. O assunto não era novo espécie de straw mano O professor Bas
para mim. Mas, eu não queria aceitar tide atenuou as críticas, mas ficou nisso.
o convite de B astide porque eu ia fazer O que significa que, com o projeto,
meu doutorado sobre os Tupis. Estava alcançamos uma grande homogeneidade
com muito trabalho para acabar a tese no entendimento comum. Ele avançou
e para preparar-me para a sua defesa. numa direção e eu avancei noutra. O
A pesquisa sobre os sírios e libaneses, resultado é que pudemos trabalhar,
que fora suprimida das cogitações do durante todo o período da pesquisa e
meu doutorado, estava em andamento. da redação do livro, em colaboração
Eu não queria de jeito nenhum incluir sem enfrentarmos nenhum conflito. E,
mais uma pesquisa. Vi-me na contin realmente, nós cumprimos a programa
gência de recusar-me. Sabe qual foi a çã ? que está feita lá - aquele não foi,
reação dele? Ao sair da sala em que pOIS, um mero projeto "teórico" · ele
conversávamos e, no vão da porta, me foi elaborado para valer praticamente. O
perguntou : "o senhor não aceita só que não pude�os fazer em colaboração ,
escrever, eu colho os dados para o fIzemos postenorme nte, de modo inde
senhor". Ele foi meu professor durante pendente, em outros trabalhos. No livro,
quatro anos - de 4 1 a 44 (porque que tinha cinco capítulos, indicamos de
inclusive no curso de didática eu fui quem era a autoria ( coube-me redigir
aluno dele) . Eu fiquei tão comovido, trê� capítulos) . Aquela foi a maior pes
que sairam lágrimas dos meus olhos. Aí qUIsa de que participei e os dois livros
eu me levantei e lhe respondi : "está contam como a maior contribuição em
bem, o senhor venceu ! " pírica que logrei dar ao conhecimento
A pesquisa, n o entanto, foi algo de sociológico da sociedade brasileira. Por
fascinante porque apesar de tudo o que acaso, o encadeamento das pesquisas
se sabe sobre a vida das populações foi fundamental para mim. Através do
pobres no Brasil e da identificação que índio, ficara conhecendo o Brasil dos
o intelectual pode ter com a vida dessas séculos XVI e XVII; através do negro
populações, eu me senti tão compensado teria de estudar relativamente a fundo
com o fato de estar fazendo aquela pes- o Brasil dos séculos XVII, XVIII, XIX
52
com o capital externo e com a tecno como um recurso extremo para impedir
logia externa, a condição pró-imperia a irrupção de revoluções socialistas e a
lista da burguesia n acional dependente universalização do socialismo. Cria-se,
não exclui a revolução burguesa como assim, um quadro histórico que não foi
uma transformação estrutural. Ela signi levado em conta pelos "teóricos da
fica que esta transformação final se pro modernização". Além disso, o conceito
cessa em condições especiais. de revolução burguesa não é um con
De qualquer modo, a revolução bur ceito particular, ele é um conceito estru
guesa surge como o requisito global do tural ( ou, como se diria em sentido mar
processo e o alvo que lhe dá sentido. Ou xis ta : uma categoria histórica ) , que tem
há uma burguesia interna - embora sua de ser aplicado de forma mais ou menos
"condição nacional" seja heteronômica generalizada.
- que controla o processo ou não há Revolução burguesa ou revolução
nada. Porque se não houver uma bur capitalista - o que está em jogo é a
guesia interna que controle o processo, passagem para a industrialização maciça
qual é a alternativa? Em um extremo, a de um país da periferia. Nesse conjunto
persistência da situação colonial. Em de trabalhos, portanto, lido com temas
54
mencionei, acho que nós não temos con dessa análise, incorporando-as nos dina
dições de expandir a sociologia sistemá mismos de uma ordem social fundada
tica no país, nem há interesse nisso. no antagonismo das classes. Passa, pois,
Nos estudos sobre folclore, sobre os das "estruturas elementares e gerais",
Tupinambás e, um pouco menos, sobre para os "grandes processos históricos",
o negro, trabalhei no campo da socio o que não seria possível se não tivesse
logia descritiva. Lidei também com uni feito a análise estrutural-funcional e
formidades de seqüência mas sem pro utilizado os seus resultados para a com
curar construir o que chamo, a partir preensão das relações de classe, da domi
de Marx, de tipos extremos. Por isso, nação de classe, da concentração do
usei o método dialético da mesma ma capital, da formação de um exército
neira que M arx. Também não estava industrial de reserva, na reprodução
tentando explicar o aparecimento e o da forma capitalista de produção e em
desenvolvimento do capital industrial na seu desmoronamento. Todavia, ele em
Inglaterra ou da "revolução burguesa prega a ótica estrutural-funcional como
clássica". Entretanto, quem utiliza a uma técnica de observação de análise.
análise funcional, eventualmente pode O que permite falar, em certo sentido,
estar interessado na busca de causas. E, em uma compatibilização.
às vezes, é possível, especialmente quan Da mesma maneira, encontra-se em
do certos processos sociais estão em Lenin (em O Desenvolvimento do Capi
emergência, explorar a análise funcional talismo na Rússia) , várias análises onde
para explicações que quase captam pro a abordagem básica é funcional. No livro
blemas do tipo que surgem quando o famoso de Lukacs, com freqüência apa
investigador opera com relações de se rece o uso do conceito e da análise fun
qüência e com uniformidades de se cional. Por sua vez, Mannheim que des
qüência. Do outro lado, no trabalho creve o método dialético de modo sinuo
sobre os Tupinambás, especialmente a so, como análise circunstancial da rea
monografia sobre a guerra na sociedade lidade (uma espécie de "contrabando
tupinambá, eu só podia passar de corre radical-liberal" da dialética) , aplica
lações para a causação utilizando a aná abundantemente a análise estrutural
lise funcional. Foi o que fiz : para poder -funcional em situações históricas nas
explicar o comportamento guerreiro dos quais pode passar livremente de unifor
tupinambás em termos causais precisei midades de coexistência para uniformi
recorrer à análise funcional e descobrir, dades de seqüência. É uma maneira de
então, o mecanismo de causação através compatibilizar as técnicas lógicas da
da análise funcional. explicação sociológica na sociologia des
Em um plano mais amplo, autores critiva, na sociologia comparada e na
que fazem análises de tipo dialético, sociologia diferencial ou histórica.
muitas vezes são obrigados a fazer carac Não devemos exorciza!" nem a palavra
terizações estruturais-funcionais para junção, nem a análise causal resultantes
determinados fins. Por exemplo, quando de elaborações interpretativas estrutu
Marx em O Capital, elabora um esque rais-funcionais. Elas são instrumentais.
ma no qual proj eta o tempo de trabalho O que se deve exorcizar é uma concep
necessário para a reprodução do traba ção naturalista de ciências sociais : esse
lhador e o produto produzido, o que é que é o busilis da questão. Existem
está em jogo não é uma análise dialé autores que estabelecem similaridades
tica, porém uma análise estrutural-fun entre organismo e sociedade ou que
cional. A seguir, interpretativamente, ele operam como se a explicação devesse
elabora dialéticamente as descobertas ser uma explicação por analogia ; ou,
ENTREVISTA : FLORESTAN FERNANDES 57
��==-=-----�--=-
- O que se refere ao momento de desa Pode-se assim dizer que o elemento cien
gregação da ordem existente e o que tífico penetra tanto a ideologia quanto
diz respeito ao momento de uma ordem a utopia do pensamento e do movimen
social igualitária ( reservando para este to socialistas. Não se pensa em um
a noção específica de utopia) . O socia modelo de sociedade para o qual se
lismo não pretende só "destruir" ou procura tender; só se sabe que, concre
"desmoronar" ; o essencial nele é o re tamente, é preciso destruir as formas
verso da medalha, o que ele pretende privadas de controle da produção, da
"construir", ou seja, o elemento utópico. sociedade e do Estado, para estabelecer
Em suma, do ponto de vista do socia os pontos de p artida para construir-se
lista a ideologia não procura encobrir, uma sociedade socialista.
ela nega e transcende a realidade em Tenho a impressão de que quando se
um movimento que envolve a destruição afirma que o marxismo é um socialismo
da ordem existente e a construção de científico, se existe um elemento que é
uma ordem socialista. Teríamos pois, ideológico, existe outro que é especifi
três elementos fundamentais, que estão camente um sistema de explicação da
interligados e a partir dos quais se po realidade e que procura - o materia
deria delimitar o caráter crítico do so lismo histórico - uma tentativa de
cialismo como ideologia. Todavia, explicar a sociedade do presente ; e, se
cumpre reconhecer, este caráter crítico existe um elemento utópico, o pensa
naturalmente existe no socialismo tanto mento científico penetra, como tentativa
em termos de sua base científica, quanto de explicar a possibilidade e a necessi
em termos de sua impulsão utópica. Ele dade da sociedade do futuro. De modo
é crítico nas três direções, se se concebe que, para o marxista, não haveria o
o socialismo como totalidade. O que mesmo limite de temor ( ou de falta de
confirma a idéia segundo a qual o socia liberdade ) para associar a ciência à
lismo é a instância crítica por exce ideologia e à utopia. Mas eu não sei se
lência. é necessário fazer essa qualificação.
Qualquer que seja a corrente do Porque mesmo para Marx e para Engels,
socialismo que se considere, no mundo impôs-se como essencial, nas explicações
moderno, a percepção crítica, a expli da formação da sociedade capitalista, e
cação crítica e a atuação crítica estão da transição para a sociedade socialista,
ligadas a investigações que são condi separar ideologia de ciência. Então é
cionadas e determinadas, ideologicamen preciso considerar o nível em que se
te, cientificamente e utopicamente pela interpretam as realidades. A explicação
compulsão socialista de conhecimento e rigorosa para Marx não deve ser ideo
de transformação do mundo (isto é, de lógica. Poder-se-ia lembrar que isso foi
destruição da sociedade capitalista e de importante para ele para desentranhar a
construção da sociedade socialista) . Por ciência da ideologia burguesa ( como el ê
isso, a visão de mundo do socialista é faz em Introdução à Crítica da Econo
uma visão crítica do mundo e visa, mia Política e em O Capital) . E que, em
simultaneamente, buscar uma explicação uma sociedade socialista plenamente
que seja objetiva mas intrinsecamente constituída, a equivalência entre "ciên
revolu cionária. Como contraposição, se cia" e "ideologia" poderia estabelecer-se
se tomam os argumentos de Engels, por pela primeira vez na história moderna.
exemplo, o elemento científico impede Contudo, a necessidade da ideologia é
o socialista de pensar no sistema social histórica e, espera-se, ela não teria
perfeito, como a entidade ideal para a funções construtivas ou destrutivas a
qual nós orientamos a ação prática. preencher sob o socialismo.
66
revela ou oculta e, principalmente, esta (ele contrasta desde uma ideologia com
belecer os limites do conhecimento cien polarização reacionária até uma ideolo
tífico - onde ele começa, o que ele gia substantivamente revolucionária) .
pode ou deve explicar e que tipo de São muitas as questões que se abrem,
forças ele submete a controle racional. portanto, à análise sociológica da ideo
logia. A questão consiste em saber o
A seu ver, seria possível constituir uma que se pretende : se se quer elaborar
teoria (científica) das ideologias? uma teoria geral da ideologia do ponto
de vista da sociologia ; ou se se pretende
Para o sociólogo, existe inteiro cabi fazer uma análise da ideologia tendo em
mento de fazer uma análise sistemática vista o movimento marxista. Para o
da ideologia e, talvez, até uma análise movimento marxista a análise da ideo
comparada, transcendendo ao mundo logia é muito mais instrumental. É muito
ocidental moderno e mesmo à margem provável que as elocubrações em que
de sua discussão. No entanto, o con funda a interpretação histórico-socioló
ceito de ideologia não é um conceito gica de Mannheim não interessa à crí
pacífico nas ciências sociais. Para tica marxista da ideolqgia. Do ponto de
Chapple e Coon, por exemplo, ideolo vista do movimento socialista, o pro
gia é a parte intelectual da cultura. A blema é muito mais, de um lado, de
esse conceito lato, contrapõe-se a con examinar a natureza da relação entre a
cepção dos "ideólogos", que no fim do concepção de mundo e as funções das
século XVIII e no século XIX se pro várias ideologias ligadas ao pensamento
puseram, com o nome de ideologia, os burguês e, de outro lado, de ligar aquilo
problemas da consciência falsa n a aná que é especificamente ideológico no
lise filosófica e histórica. Por sua vez, socialismo à sua função revolucionária.
o conceito de ideologia, que se desen Eu não sou muito de citar Althusser ;.
volve na análise marxista, aparece como mas, agora é importante citar Althusser.
uma tentativa de desmascaramento do Pois ele mostra muito bem que esta
pensamento burguês, das categorias de dimensão ideológica não está só vin
percepção do mundo dos filósofos idea culada à destruição de uma sociedade
listas e dos cientistas clássicos ingleses capitalista : ela se vincula à construção
e dos princípios políticos do liberalismo. de uma sociedade socialista. Se o movi
Com Mannheim, busca-se uma concei mento socialista perder de vista o sig
tuação especificamente sociológica, que nificado da ideologia, em termos não só
fundamenta uma distinção célebre - de de destruição da sociedade capitalista
um lado, o que é uma ideologia parti mas de construção da sociedade socia
cular; de outro, o que é uma ideolqgia lista, é provável que ele também perca
total. Há, pois, um campo amplo para a possibilidade de realizar os ideais últi
se fazer uma análise da ideologia. Não mos do próprio socialismo. O huma
se deve ignorar, por fim, que as ideolo nismo socialista se prende a ideais que
gias preenchem funções que dependem só se concretizarão mediante o duplo
da natureza das idéias que são defen movimento de negação da ordem exis
didas pelas diferentes classes sociais. O tente e de implantação de uma ordem
próprio Mannheim, no seu ensaio sobre social revolucionária socialista. Acho
as possibilidades de fundamentar uma muito importante essa reflexão porque
ciência da política, contrapõe cinco tipos os que se dedicam à análise da ideologia
de posição ou de orientação que entram ficam, com frequência, num limiar muito
em conflito quanto à relação com a esta pobre. A ideologia é vista em termos
bilidade ou a transformação da ordem de um ataque ao comportamento
68
controle das forças da própria socie Ieee para a ciência econômica clássica,
dade. Essa perspectiva não pode ser a economia dos clássicos, não é apenas
mantida após o aparecimento das ciên um limite ideolqgico. Os clássicos não
cias sociais. Temos, de novo, de voltar perceberam as coisas apenas porque
a Marx - os que tratam da contribui eram burgueses? Não, eles não percebe
ção de Marx à criação de uma socio ram as coisas porque, como eco�omistas,
logia do conhecimento, e àquilo que se eles consideraram o funcionamento da
poderia chamar de uma teoria da ideo economia e a transformação da econo
logia como uma forma de desmascara mia de uma posição limitativa. Essa
mento, quase sempre se limitam ao uso posição pode ter sido condicionada ideo
do método ideológico para atacar o anta logicamente mas, na verdade, eles pen
gonista, para desarmar o adver.sário e savam que a economia européia do
para armar a própria posição de ataque século 1 9 era uma economia universal
ou de contra-ataque. e geral ; e que aí terminava a história
Na verdade, também existe em Marx do homem.
uma epistemologia. E ela é permanente De modo que há aí uma epistemolo
- desde os trabalhos em que ele critica gia : uma crítica que transcegde à con
Hegel bem como nos trabalhos em que tribuição que os clássicos deram à teoria
ele é um leitor crítico de Feuerbach e econômica. E é a partir dessa crítica,
dos neo-hegelianos ela aí está presente. muito mais do que da crítica ideoló
É uma epistemologia que ele contrapõe gica, que se pode afirmar que a alter
à filosofia idealista, e que lhe permite nativa da explicação marxista é, real
chegar à idéia de pôr a dialética sobre mente, a ciência que não fora feita ante
seus próprios pés. O livro mais impor riormente. Isso n ão significa, em suma,
tante a este respeito, é, sem dúvida que há apenas uma ideologia, que aquela
nenhuma, A Ideologia A lemã: uma crí ideologia limitou a economia clássica.
tica dos princípios, das hipóteses e das A própria economia clássica, como e
explicações oferecidas pelos neo-hege enquanto ciência, era limitada. Era ne
lianos de todo processo histórico do cessário superá-la e transcençlê-Ia com
mundo moderno. No entanto, o trabalho outras categorias e outros modelos de
mais sólido - deixando de lado a crí explicação, para se chegar à elaboração
tica de Proudhon, que também possui de uma teoria que apanhasse todo o
a mesma implicação - é A Crítica da movimento histórico da transformação
Economia Política. Aí é que se vê do capitalismo e da transição para o
melhor como ele usa o método episte socialismo.
mológico para estudar criticamente cate
gorias que surgiram na área da percep A seu ver, pois, a reflexão
ção humana e da atividade humana, epistemológica sempre estará sujeita à
mas que se transferiram para o pensa "contaminação" ideológica?
mento sistemático produzido pela ciên Ou seja, tal reflexão, como toda
cia. Essa reflexão surge reiteradamente produção teórica, jamais estaria
em todo o livro e, de maneira explícita plenamente livre do processo de
e concentrada, nas reflexões que apare ideologização?
cem na famosa "introdução", que depois
de 1 907 foi incorporada ao livro como Como já disse, o epistemologista não
apêndice. Esta tem sido considerada está isento do condicionamento ideoló
como o núcleo de uma metodologia. No gico ; ele não está isento da posição
entanto, ela é também o núcleo de uma social. Todas as implicações que o con
epistemologia. O limite que ela estabe- dicionamento ideológico e a posição
72
social possuem para a ciência, repetem fariam essa reflexão. Isto quer dizer que
-se com referência à epistemologia. Não se eles não fazem tal reflexão, alguém
poderia ser diferente, pois a epistemolo deverá fazer. Esse alguém, é o filósofo
gia não existe no vácuo . De modo que das ciências. Na filosofia das ciências
ela também tem de se haver com essas nós temos, de um lado, a metodologia ;
influências socializadoras, que resultam e, de outro lado, a epistemologia. A
do impacto da estrutura da sociedade metodologia diz respeito aos recursos
sobre o pensamento. O pensamento que utilizados na abordagem da realidade e
recebe o impacto não é só o da ciência; no processo de investigação. A episte
todo pensamento recebe esse impacto. O mologia procura dar um balanço crítico
filósofo também o recebe e precisa não dos resultados, discutindo os princípios,
só estar preparado para reconhecer isso a natureza dos princípios, as hipóteses,
- como também para controlar suas os conhecimentos conseguidos. É claro
conseqüências puramente intelectuais. O que, pelo fato de ter uma autonomia
investigador que trabalha no campo da relativa, isso não significa que o episte
epistemologia pode valorizar certo tipo mologista deva se separar do cientista
de conhecimento ou outro, em função social. Esse é que é o problema. Isso
desse condicionamento externo. O que Mannheim já esclarece em Ideologia e
faz com que a contribuição do cientista Utopia. Ele demonstra muito bem qual
social sej a reversamente importante para é a comribuição que a sociologi a do
a epistemologia para salientar, ao nível conhecimento dá à epistemologia, rea
psicológico e no plano lógico, as impli gindo à tendência de certos filósofos a
cações de determinada posição social. um dogmatismo estanque exclusivista. O
A crítica não é uma crítica pura. Ela papel do filósofo seria, pois, o de um
nasce de idéias e valores ; estes são con supervisor do cientista social, a�guém
dicionados a partir da estrutura interna que teria um conhecimento das instru
do meio. De modo que a situação social mentalidades, que o sociólogo, o antro
do sujeito pode ser limitativa ou esti pólogo, o economista ou o historiador
mulante em várias direções. Não é só não pode alcançar. Isso não corres
na direção da ciência. Se o epistemolo ponde à verdade.
gista partisse desse pressuposto, de que Dependendo de sua formação, o cien
tudo é condicionado, menos a filosofia, tista social poderá dedicar-se ao estudo
ele daria com os "burros n'água", pois crítico das instrumentalidades da pes
ele cairia nos braços de uma reflexão quisa científica em seus caminhos de
tradicionalista, estreita e de circuito investigação. Agora, a própria investi
fechado. A contribuição do cientista gação econômica, histórica, sociológica,
social, n aturalmente, irá depender das antropológica e de outras ciências sociais
questões que o epistemologista souber ou pode esclarecer problemas que o episte
for capaz de formular. mologista não é capaz de esclarecer.
Toda ciência se transforma; não existe
Como cientista social, como pensa a ciência estagnada, ciência estaque, inclu
questão da reflexão epistemológica? sive no que diz respeito à base episte
Seria ela uma atividade mológica requerida para a avaliação do
fundamentalmente subsidiária da prática conhecimento científico. Quais são os
científica? fatores nesse processo de transformaç ão
da ciência, que explicam porque certa�
É claro que ela tem um papel próprio concepções surgem e depois desapare
porque se ela não o tivesse, o próprio cem? Por que certas concepçõe s impreg
sociólogo , o economista, o antropólogo nam de tal maneira o horizonte inte-
ENTREVISTA : FLORESTAN FERNAN DES 73
lectual do cientista que acabam pare tica exige uma massa de conhecimentos
cendo universais? científicos muito variada e ao mesmo
A concepção liberal do mundo, por tempo de uma terrível complexidade,
exemplo, impregnou o horizonte inte envolvendo um número muito grande de
lectual do cientista de tal maneira que investigadores, essa concepção não pode
se difundiu uma ampla confusão entre ser mais mantida. Nos dias que correm,
a concepção liberal do mundo e a posi por exemplo, os grandes nomes da física
ção liberal do cientista. Tratadistas atômica surgem na área da investigação
como Stuart Mill, Pearson, Stanley empírica e teórica e t ambém na área
Jevons e tantos outros perfilham como prática. Porque a área prática exige um
"cânones da ciência", recomendações tipo de cérebro que seja capaz de lidar
que não tinham n ada a ver com a ciên com os dados mais complexos do pen
cia em si mesma. Inclusive, hoje, o s samento científico. Então, como é que
cientistas que trabalham nas mesmas o cientista de hoje poderia manter aquela
áreas não estão mais preocupados com concepção dos seus papéis práticos, do
as referidas formalizações. A coisa mais cientista que se pensava em termos da
fácil de salientar � a que diz respeito concepção liberal do mundo? Não seria
ao destino das descobertas científicas. O possível.
cientista do século XIX tendia a pensar O epistemologista, por seu lado, pre
que a função dele era construir a teoria. cisa do historiador, do sociólogo e do
O quq se faz com a teoria - depois antropólogo para compreender essa evo
que ela é "descoberta" e "revelada" - lução e, inclusive, questões mais com
é um problema que precisa ser resol plicadas que dizem respeito às trans
vido por outros indivíduos, que teriam, formações de campos particulares da
naturalmente, de lidar com ela no plano ciência. Essas transformações acabam
técnico. A técnica, a arte, não constitui sendo muito rápidas, pelo menos a partir
uma área do cientista, pois pertenceria do momento em que as técnicas de ra
a especialistas de menor valor. Por que cionalização penetram a produção indus
isso aconteceu? Por causa do âmbito d a trial sob o capitalismo na era em que
lógica da invenção : a invenção, naquela o socialismo aparece. Em suma, o uni
fase da história cultural do homem mo verso tomou-se muito complicado, o que
derno, era uma invenção na qual o faz com que o investigador, que não lida
,inventor trabalhava com um modelo com os problemas técnicos da epistemo
antecipado do que ele ia produzir. logia, possa ser útil ao epistemolqgista.
Então, a idéia que se tinha é que o De modo que o melhor seria pensar que
processo de invenção era forçosamente há uma interação de complementaridade
independente. A descoberta científica no entre eles. O epistemologista dá uma
plano empírico e teórico era uma coisa; contribuição que é vital, pois onde ele
a articulação das descobertas feitas, não opera, corre-se o risco de negligen
com soluções práticas pertinentes era ciar, de maneira permanente ou esporá
outra coisa totalmente diferente. dica, a necessidade de submeter-se o
Essa concepção se manteve durante o aparato teórico e conceitual das ciên
período em que a porção da ciência de cias sociais a uma crítica sistemática. De
que o inventor precisava dominar era outro lado, o epistemologista pode
muito pequena ; no qual, por conseguin perder terreno se ele não estiver com o
te, o número de pessoas que trabalhava horizonte aberto, não só para as expli
com inventos também era pequena. cações que os cientistas sociais podem
Quando se passa para uma situação dar a respeito das transformações das
totalmente diversa, em que a área prá- pesquisas, como também para a contri-
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de castas, é o Estado de uma certa natu Muitas das explicações elaboradas pelos
reza ; e o Estado que surge em conexão socialistas na Europa não levam em
com o desenvolvimento do capitalismo conta a situação que vivemos n a peri
competitivo, com a expansão das cida feria. Certas idéias a respeito da domi
des, com a transição para o capitalismo nação imperialista são inadequadas
monopolista é outro tipo de Estado. Ele pois o conflito mundial entre capita
é o Estado de uma sociedade de classes, lismo e socialismo engendrou novas
com um poder burguês já consolidado. formas de acomodar as burguesias
Não se trata do mesmo Estado. Não há nacionais e os centros imperialistas as
no livro nenhuma confusão entre esses quais foram aproveitadas e consolidadas
dois tipos de Estado. Mas, o que há de pelas grandes corporações multinacio
comum nos dois casos é que o Estado nais. O debilitamento da burguesia peri
representa um comitê de uma minoria férica destruiria as fronteiras do próprio
muito pequena. Nas duas situações his capitalismo mundial, desagregando as
tóricas extremas, há a presença de uma bases do poder internacional do capita
estrutura intermediária, uma sociedade lismo. Procuro explicar como se dá a
civil que organiza o poder político con relação de fato entre a burguesia da
centrado ou institucionalizado e permite periferia, ou as classes burguesas da
às várias classes burguesas unificar a periferia e a dominaço imperialista; em
dominação social e político-legal. A que sentido a dominação imperialista
explicação desse fato parecia-me muito procura fortalecer estas burguesias de
importante, ainda mais importante que um lado e, de outro lado, como essas
a explicação institucional do Estado. burguesias, sendo pró-imperialistas, são
Os nossos especialistas em ciência forçadas a sufocar a revolução nacional.
política têm se dedicado ou à investi Ambos os interesses centrais - da do
gação do ritualismo político, isto é, ao minação imperialista e das classes bur
estudo dos partidos e dos regimes, ou à guesas nacionais - convergem para o
investigação da organização do Estado. m esmo fim, a aceleração da revolução
Ora, o elemento central, do ponto de econômica.
vista sociológico e político, vem a ser o Houve quem fizesse confusão quanto
modo pelo qual os Estados dominantes ao que eu entendo por dissociação dos
(no passado ) e as classes dominantes tempos porque a análise que faço implica
(hoje) se unificam socialmente para em que o tempo econômico e o tempo
conseguir uma articulação política a político da revolução burguesa são dis
partir da qual chegam a uma ditadura sociados. Enquanto que no modelo clás
de classes e a põem em prática através sico europeu, especialmente dos países
do Estado. Porque realmente o problema em que a revolução burguesa teve uma
é esse. Trata-se de uma ditadura que evolução rápida - não estou pensando
vincula a sociedade civil a uma demo na periferia da Europa, em Portugal, na
cracia restrita, ao mesmo tempo em que Polônia, na Espanha, na Grécia; estou
a converte em uma oligarquia perfeita, pensando na Inglaterra e na Fran
nas relações da sodedade civil e do seu ça - houve uma sincronia entre tem
Estado com a Nação como um todo. po econômico e tempo político. Ao
Minha tentativa é a de compreender mesmo tempo em que se realizavam as
o que acontece na periferia do mundo três revoluções quase concomitantes -
capitalista em nossos dias, não só uma rural, urbana e industrial - havia um
fase de apogeu e de crise do capitalismo processo acelerado de integração do
monopolista mas, também, de conflito poder em bases nacionais. Em grande
mundial entre capitalismo e soci alismo. parte porque as pressões de camadas da
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ra� para fazer uma conferência de vigorosas que alternavam na cena histó
âmbito maior foi aquela que está publi rica sem poder impor-me qualquer exi
cada em Mudanças Sociais no Brasil, gência teórica ou prática de maior sig
sob o título "Existe Democracia no nificado.
Brasil?". As pessoas que me convida No começo da década de 60 espe
ram eram do IBESP - instituição que cialmente em torno de 62, a idéia de
precedeu o ISEB - entidades muito uma colaboração com a burguesia na
ligadas com ideologias de nacionalismo cional era uma idéia dominante e muito
equivocado. Naquela época ( 1 9 54 ) , o forte. Isso criava uma espécie de ilusão,
impacto da conferência foi tão grande de que aqui nós estávamos lutando com
que os organizadores suspenderam o seu êxito pela democracia burguesa. Por
debate. uma burguesia que ia fazer, simultanea
Assim, uma interação mais produtiva mente, a revolução industrial e a revo
do sociólogo com os movimentos sociais lução nacional, ou seja, unindo os
só começa, realmente, na década de 60. tempos econômico e político da revo
Os movimentos, porém, eram espontâ lução bU1:guesa. Como socialista não
neos, que se pulverizavam em várias acreditava naquilo, mas se me negasse a
direções e, por conseguinte, também aceitar os debates reformistas ficaria
pulverizavam as contribuições dos inte condenado ao silêncio. Vários trabalhos
lectuais. N a verdade, estavam muito deixam implícito ou explícito o traço
mais interessados em saber o que um melancólico de tal situação, que eu não
especialista podia dizer sobre certos podia alterar. A minha contribuição
assuntos do que envolver os intelectuais sociológica se definia no plano mais
em um processo socialista de transfor baixo possível do racionalismo burguês
mação da ordem. Eles queriam ouvir o caboclo. As minhas veleidades socialis
sociólogo que havia em mim, muito tas eram pura e simplesmente sufocadas.
menos do que o socialista. Estava mais De modo que a evolução do meu tra
ou menos implícito que todos tenderiam balho traduz muito mais a precariedade
para o socialismo ; o que eles queriam da situação do investigador no Brasil do
ouvir, porém, era a opinião do soció que uma constante que pudesse ser per
logo. Isso ainda é verdadeiro hoje. mitida pela combinação de um movi
De modo que a pressão externa foi mento socialista forte com uma univer
muito fraca e a minha adaptação se sidade aberta às correntes democráticas
deu no sentido de proteger-me contra da maioria da sociedade brasileira. Nós
as concessões a uma pseudo democracia sabemos que a nossa universidade é eli
burguesa. Como as experiências da tista ; eu já insisti nisso. Que ela traba
época do Estado Novo e, logo poste lha para minorias, de uma forma muito
riormente ao Estado Novo, me mostra limitada.
ram que não havia um movimento so A minha carreira intelectual reflete,
cialista organizado, no qual eu pudesse de ponta a ponta muitas precariedades
ter papéis intelectuais definidos, de uma convergentes. Todavia, na década de 60
forma cri adora para mim e para o movi podia lançar-me de uma maneira mais
mento, tive de buscar a alternativa de intensa ao debate de certos temas que,
ser útil a todos os grupos de esquerda. se carecem de significado socialista,
Daí a minha obsessão de proteger-me eram pelo menos importantes em termos
contra concessões espúrias e um radi de luta por condições crescentes de
calismo tosco, que não era bem com autonomia política para as massas e
preendido nos "meios políticos". Pro para os intelectuais. O máximo que con
curei, no entanto, as correntes mais seguia era proteg er o meu trabalho inte-
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lectual e realizar uma investigação tão único período, pois na USP sempre me
rigorosa quanto me era possível. Essas ajustei aos papéis de professor, acima
constantes estão em todos os trabalhos de tudo, como um professor eclético,
de fundamento empírico. Inclusive, em dando naturalmente igual importância às
A Revolução Burguesa no Brasil, no diferentes correntes da sociologia sem
qual o fundamento empírico não é tão privilegiar o marxismo. Também, nunca
evidente. Assim, se se tem em conta um procurei ser um marxista dogmático e
determinado momento, no qual tento rígido. Isso simplificaria o meu ajusta
fazer - dentro das minhas aspirações mento intermediário e me dava certa
- o que estava ao meu alcance, é nos força p ara "remar contra a corrente" .
trabalhos que se localizam na década de
60 que as idéias mais críticas são ela A releitura, a que se referia a pergun
boradas. E, de modo mais concentrado ta formulada por vocês, não deve ser
nos livros : A Integração do Negro na feita necessariamente por mim. Quer
Sociedade de Classes, Sociedade de dizer, a obra de qualquer intelectual
Classes e Subdesenvolvimento, Capita sempre tem s�gnificado em função das
lismo Dependente e Classes Sociais na correntes que existem dentro do país.
A mérica Latina e A Revolução Bur Inclusive, quando comecei minha car
guesa no Brasil. Em relação a todos eles reira nas ciências sociais, os grupos mais
se poderia dizer que não são contribui avançados esperavam que nós fossemos
ções de cunho marxista puro. Nem funcionalistas. Isto é, naquele momento,
mesmo tentei simular, passando por se se conseguisse fazer aqui investigação
"análise dialética", o que eu sabia que como faziam Malinovski na Inglaterra
não o era. Poderia fazer a ressalva, não e MarceI Mauss na França, estaríamos
obstante, de que mantive uma patente dando uma contribuição excelente. De
fidelidade para com os meus ideais 40 a 60 houve uma mudança radical n a
socialistas e uma congruência que foi avaliação d o trabalho intelectual dos
posta à prova muitas vezes. O que não cientistas sociais pela juventude. No
me desobriga de reconhecer que, em futuro, tenho a impressão de que o tra
nenhuma ocasião, tentei ou pude fazer balho que fiz - não sei se ele merece
um trabalho no qual eu surgisse como o nome de uma obra, pois não vejo aí
um marxista puro. A única vez em que, uma contribuição tão maciça e tão
como professor, me ajustei ao papel inte significativa - receberá a avaliação
lectual de sociólogo marxista, de ma que merece. Mesmo A Revolução Bur
neira bastante dogmática, foi durante o guesa, que em 1 9 66 foi considerada sob
período em que estive em Toronto. Lá, um clima de controvérsia, pelos que tra
de fato, talvez como medida de autode balhavam comigo, poucos anos depois
fesa, tentei quebrar essa sobreposição de mereceu uma releitura, mais atenta e
papéis, que põe os de sociólogo em um uma apreciação favorável.
lado e os de socialista em outro. Os A questão da releitura é portanto uma
estudantes da Universidade de Toronto questão de tendências, de modas nas
reagiram bem; pelo menos os estudan ciências sociais. Uma das constantes do
tes de esquerda ou radicais. Mas eu meu trabalho foi tentar escapar à moda;
tinha um bom público e poderia ter de ter um rigor marcado, que me desse
ficado lá ou poderia voltar para lá, se certa congruência. Os que me conhecem
quisesse. O que mostra que a Universi sabem que, apesar de todas as transfor
dade de Toronto é uma universidade mações que ocorreram na minha vida,
onde há efetiva liberdade intelectual e procuro manter a mesma posição diante
política para os professores. Esse foi o dos problemas básicos da vida brasileira
ENTREVISTA: FLORESTAN FERNANDES 83