Você está na página 1de 14

ELISETE MEDIANEIRA TOMAZETTI

JOSÉ BENEDITO DE ALMEIDA JÚNIOR


PATRÍCIA DEL NERO VELASCO
(ORGANIZADORES)

EDITORA UFSM
SANTA MARIA, RS – 2022
SUMÁRIO

Prefácio
TECENDO E FORTALECENDO ESPAÇOS DO FILOSOFAR E DO ENSINAR A
FILOSOFAR
Joana Tolentino

APRESENTAÇÃO
Elisete Medianeira Tomazetti, José Benedito de Almeida Júnior e Patrícia Del
Nero Velasco

Capítulo 1
O QUE PENSAMOS NÓS, FORMADORES/AS DE PROFESSORES/AS, SOBRE
FORMAÇÃO DOCENTE EM FILOSOFIA?
Patrícia Del Nero Velasco

Capítulo 2
ESTÁGIO EM FILOSOFIA E PRÁTICAS DE EXPERIÊNCIA DE SI (DOCENTE)
Elisete Medianeira Tomazetti

Capítulo 3
AUTONOMIA E MOTIVAÇÃO: DESAFIOS DA FORMAÇÃO DOCENTE
José Benedito de Almeida Júnior
Capítulo 4
HABITAR FILOSOFICAMENTE A LICENCIATURA EM FILOSOFIA
Lara Sayão

Capítulo 5
FILOSOFIA E CONSCIÊNCIA NEGRA: DESCONSTRUINDO O RACISMO
Rodrigo Marcos de Jesus

Capítulo 6
CURSO DE LICENCIATURA EM FILOSOFIA DA UEL: UM RELATO DE AÇÕES
Américo Grisotto

Capítulo 7
RELAÇÃO APRENDER E ENSINAR COMO EXPERIÊNCIA: TRILHANDO
CAMINHOS FORMATIVOS
Maria Reilta Dantas Cirino

Capítulo 8
ENSINO DE FILOSOFIA: PESQUISA, PRÁTICA E ESTÁGIO NA FORMAÇÃO DE
PROFESSORES DE FILOSOFIA PARA O ENSINO MÉDIO OU A INDOMÁVEL
LICENCIATURA
José Teixeira Neto
Capítulo 9
PRÁTICAS FORMATIVAS VIVENCIADAS NO CURSO DE FILOSOFIA DA UFAM:
RELATOS DE EXPERIÊNCIAS DE ESTÁGIO, PIBID E RESIDÊNCIA
PEDAGÓGICA
Valcicléia Pereira da Costa, Deodato Ferreira da Costa, Pedro Rodolfo
Fernandes da Silva e José Belizário Neto

Capítulo 10
RELATO DE EXPERIÊNCIAS NA FORMAÇÃO DOCENTE EM ENSINO DE
FILOSOFIA
André Luis La Salvia

Capítulo 11
ENSINO DE FILOSOFIA E O USO DE MAPAS CONCEITUAIS COM
ESTUDANTES SURDOS NO ENSINO MÉDIO
Edson Teixeira de Rezende, Geraldo Balduino Horn e Ademir Aparecido
Pinhelli Mendes

Capítulo 12
O QUE É PRECISO PARA SER UM “BOM” PROFESSOR DE FILOSOFIA NO
ENSINO FUNDAMENTAL?
Luciana Xavier de Castro e Rones Aureliano de Sousa
Posfácio
LUGARES PARA A FILOSOFIA
Paula Ramos de Oliveira

QUEM SOMOS

CRÉDITOS
CAPÍTULO 10

RELATO DE EXPERIÊNCIAS NA FORMAÇÃO


DOCENTE EM ENSINO DE FILOSOFIA

André Luis La Salvia

Começar um relato de experiências que tenho tido como professor


da formação inicial de docentes em Filoso a precisa passar por
alguns pressupostos que adotei quando iniciei essa prática e que fui
reformulando ao longo dos últimos 14 anos. Não quero me alongar
com teorias, mas sim destacar pontos de vista pessoais. E se são
pessoais, precisam passar pelos momentos marcantes da trajetória
de quem relata.
Na minha formação inicial, afeiçoei-me por Gilles Deleuze e Felix
Guattari, porém, por não ter construído a nidade com os trejeitos
acadêmicos e por serem autores que pouco caso faziam dessa
mesma leitura estrutural reinante, escolhi os livros sobre o cinema
de Deleuze para tema de mestrado. Conclui-o e imediatamente
depois comecei a dar aulas de Filoso a em escolas públicas e z
isso pelos próximos nove anos (de 2006 a 2015), dos quais os
quatro últimos foram concomitantes com um doutorado, agora em
torno da expressão “Pedagogia do Conceito”, que, apesar de uma
intenção inicial de problematizar o ensino de Filoso a a partir da
concepção de Deleuze e Guattari, acabou se voltando mais para
uma discussão sobre as condições de criação de conceito para os
autores.
Durante os nove anos em que ministrei aulas no nível médio de
ensino fui desenvolvendo algumas perspectivas que moldaram
minha prática docente e que posteriormente levei para minha prática
docente no ensino superior.
A primeira delas é que saber Filoso a, fazer pós-graduação,
escrever teses e livros não garante que se saiba ensinar Filoso a. Eu
chamaria isso de uma primeira naturalização do ensino de Filoso a,
uma perigosa naturalização. Essa naturalização consiste no fato de
que acreditar que, ao se saber muito sobre Filoso a, seria natural
saber ensinar sobre isso. Vejo muitos colegas dizerem e praticarem
essa naturalização: “Estudei por anos Filoso a antiga, Aristóteles.
Sei dar aula sobre ele tranquilamente”. Essa naturalização é
perigosa no ensino superior, mas no ensino médio é desastrosa.
Contra isso, defendo que há técnicas, didáticas, metodologias e,
antes disso tudo, pressupostos teóricos que são inerentes à prática
de ensino de Filoso a e que precisam ser pensados,
problematizados e, consequentemente, serem conteúdo das aulas
na formação inicial.
Outra naturalização perigosa, uma segunda já, é aquela pia crença
em um dom. Ser professor é um dom. Sempre me senti
desconfortável nas datas comemorativas em que os coordenadores
vinham, nos ATPCs da escola, com slides motivadores, com um pôr
do sol e um girassol e alguma frase que enaltecia o quanto o
professor tem um dom de transformar seus alunos via educação.
Não que não acredite na transformação da educação, acredito
muito, só penso que ser professor envolve desenvolver uma série de
conhecimentos, didáticas, metodologias e técnicas que estão longe
de um dom e que envolvem muito pro ssionalismo e busca
constante de aperfeiçoamento.
Por m, uma terceira naturalização perigosa que presenciei nos
anos de experiência no ensino médio é aquela que diz que os
conhecimentos e técnicas da prática de ensino se aprendem na
escola e que a universidade é o local da teoria. Lamentável
perspectiva, pois afasta o professor da pesquisa universitária e
ainda supervaloriza uma prática pela prática. É ainda mais
lamentável quando professores da formação inicial reproduzem
esse discurso também, apostando em uma noção conceitualmente
imprecisa de experiência e negligenciando certos conteúdos,
teorias, autoras e autores que, exatamente por já terem pensado, ou
experimentado, o ensino de Filoso a, elaboraram teoricamente o
que pensaram a partir disso e que podem nos ajudar a pensar
também.
O modo de se esquivar dos três perigos apontados acima é o
mesmo: buscar as didáticas, metodologias, teorias que nos ajudem
a pensar o ensino de Filoso a como problema losó co, e, para
tanto, acredito que seria melhor relatar minhas experiências como
professor na formação inicial, por ter a esperança que, com elas, eu
consegui traçar uma linha de fuga desses perigos.
Não são relatos na ordem cronológica de como eles têm ocorrido
nos últimos cinco anos em que estou atuando nessa área na UFABC,
mas sim as experiências mais marcantes na minha ainda incipiente
trajetória. Outro ponto é que as experiências relatadas são fruto de
um desenvolvimento que passou por versões anteriores até
culminarem no formato que relato aqui. Ou seja, essas experiências
não surgiram assim, mas foram sendo construídas.
Uma das questões que tentei enfrentar, por exemplo, é a
metodologia de pesquisa acadêmica mais comum na Filoso a: a
leitura estrutural de textos. É bem sabida a crítica a esta tradição
feita por Paulo Margutti (2014) e Osvaldo Porchat (1999); porém,
como propor práticas de ensino que alterem o hábito que os alunos
vão adquirindo nas disciplinas de Filoso a e que invariavelmente
trazem para as disciplinas especí cas da Licenciatura?
Sendo assim, uma das experiências que tive foi, em um curso de
metodologia de ensino de loso a, propor o questionamento sobre
como usar o texto losó co em sala. A disciplina começava pela
crítica à centralidade da leitura estrutural, passando por uma certa
desnaturalização do perigo de achar que basta saber muito de um
autor ou autora para que você saiba dar aula, chegando a uma
proposta bastante pontual: usar a obra Elementos para a leitura de
textos losó cos, de Frederic Cossutta (1994), na perspectiva de ter
uma ferramentaria mínima que servisse de critério para fazer
recortes de textos losó cos para se trabalhar no ensino médio. A
obra de Cossutta trabalha com um fundo teórico da análise de
discurso e visa, de certa maneira, ajudar os estudantes franceses no
BAC, espécie de ENEM. A prova de loso a do BAC é composta da
análise de um fragmento de texto ou da dissertação sobre uma
questão losó ca.
Nesse sentido, apresentei aos alunos o BAC francês e passamos
a discutir a importância, ou não, do texto losó co na aula de
Filoso a no ensino médio e também adentramos a leitura da obra de
Cossutta a m de usar seus elementos para a leitura de textos
losó cos e como critérios para recortar textos direcionados à sala
de aula. Ainda apresentei aos discentes o ensino médio português
que prevê, em seu 12º ano, a leitura integral de três obras losó cas
completas. Isso porque uma das bibliogra as de apoio é um
mestrado em ensino de Filoso a português que explicita como foi
trabalhar com a leitura integral do Fédon, de Platão. A disciplina se
desenvolveu bem, alguns alunos já estavam no nal do curso e
relataram que se incomodavam com o método estrutural de leitura,
mais por ele não ser tematizado e explicado do que pela sua
institucionalização como “o” método de pesquisa em Filoso a. A
avaliação foi propor um plano de ensino no qual a leitura de textos
aconteceria nas aulas.
Uma segunda prática que gostaria de relatar ocorreu como um
processo, pois foi resultado de mais de uma experiência de ensino
até chegar ao curso propriamente dito. Eu tive experiências
anteriores que representaram pedaços do curso e que depois
chegaram a uma experiência especí ca que foi problematizar os
pressupostos teóricos para apresentar a Filoso a no ensino médio.
Para propor essa disciplina eu abordei três sensos comuns didáticos
de apresentação da Filoso a no nível médio: como original grega,
como admiração ou espanto diante do comum e como re exão
crítica. Passamos assim por alguns textos importantes do ensino de
Filoso a: de Renato Nogueira (2004) e Wanderson Flor do
Nascimento (2012) para questionar a originalidade grega da
loso a; a Metafísica, de Aristóteles (1999), para problematizar a
ideia de um certo dom do lósofo de se espantar e como isso
poderia ser pensado; e, por m, textos de Dermeval Saviani (1996) e
Antonio Gramsci (1999) para a leitura atenta sobre a passagem do
senso comum para a re exão crítica. Também são analisados os
livros didáticos aprovados no PNLD. A disciplina foi bastante
interessante, pois mexeu com alguns sensos comuns bastante
estabelecidos, o maior deles é a originalidade grega. Novamente, os
alunos e alunas relataram que sua própria formação em Filoso a se
via questionada pelas disciplinas de ensino de Filoso a.
Na condução dos estágios, o Projeto Pedagógico do Curso de
Licenciatura em Filoso a propõe um modelo que tenta dar conta de
5 pontos diferentes da possível atuação do professor de Filoso a,
sendo que sempre ministro o estágio que pensa a inserção no
ensino médio, que é o modelo mais tradicional de estágio. Algumas
vezes ministrei o Estágio I que pretende ser uma primeira chegada
às escolas, estimulando um olhar diferenciado e não clichê
capturado pelas lentes fotográ cas. Nesse estágio, desenvolvemos
discussões sobre a própria fotogra a, sobre fotografar a escola e
também sobre os clichês na representação das escolas. Nesse
trabalho, fazemos uma exposição de fotos tanto na escola quanto
em uma plataforma on-line de fotos, o ickr.com.
Essas três experiências narradas acima foram transformadas em
artigos e publicadas em diferentes revistas de ensino de Filoso a[53]
– o que evidencia o fato de que, para mim, os perigos apontados no
início deste capítulo precisam ser resolvidos com a invenção de
disciplinas que apresentem a complexidade do ensino de Filoso a.
A última experiência que gostaria de narrar aconteceu no primeiro
e conturbado semestre de 2020. Foi um curso que criei pela primeira
vez, e acabei não conseguindo implementá-lo como imaginado,
devido à pandemia e à mudança na forma de ministrar a disciplina.
Mas a ideia era discutir as possibilidades de metodologia de ensino
de Filoso a com o cinema.
A discussão passou pela evolução técnica de diferentes
dispositivos até chegarmos à invenção do cinema. Esses
dispositivos podem gerar diferentes práticas de ensino que
exploram questões ligadas ao tempo, espaço, memória e
reprodução da realidade e que são feitas através da construção de
aparatos simples como o ipbook, o traumascope e o zoetrope.
Também enfoquei a questão da montagem como construção do
sentido no cinema associado a um trabalho com storyboard. E
contrapus as teorias instrumentalizadoras do cinema de Julio
Cabrera com a Filoso a do cinema de Gilles Deleuze. Passamos
também por pontos ligados ao documentário e às novas tecnologias
e a possibilidade de, com o celular e o Youtube, fazermos e
divulgarmos nossos lmes. A disciplina teve uma ótima recepção
por parte dos alunos, porém a pandemia impediu um pleno
desenvolvimento daquilo que foi pensado para o curso. Isso é o que
ainda pretendo fazer.
Construir-se enquanto professor é o meu objetivo didático e a
minha própria trajetória como professor. Desse modo, procuro
sempre desa ar meu próprio repertório intelectual na busca de
temas para as aulas que sejam desa adores e, ao agir assim,
procuro despertar também nos discentes a mesma perspectiva de
que precisam construir-se, inventar-se enquanto professores e que,
uma vez formados, precisarão manter esse desejo de inventar-se
continuamente.
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Editora Abril, 1999. (Coleção
os pensadores).
COSSUTTA, Frederic. Elementos para a leitura de textos losó cos.
São Paulo: Martins Fontes, 1994.
FLOR DO NASCIMENTO, Wanderson. Outras vozes no ensino de
loso a: o pensamento africano e afro-brasileiro. Revista Sul-
Americana de Filoso a e Educação, v. 18, p. 74-89, 2012.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de janeiro: Civilização


Brasileira, 1999. v. 1.
LA SALVIA, André Luis. Recorte de textos losó cos e o seu ensino.
Pensando: Revista de Filoso a (UFPI), v. 9, p. 366-389, 2019.
LA SALVIA, André Luis. Construindo imagens para a loso a:
discussão sobre algumas de nições introdutórias ao seu ensino.
Kínesis, Marília, v. 10, p. 13-30, 2018.
LA SALVIA, André Luis et al. A fotogra a como observação no
estágio supervisionado em loso a. Revista Digital de Ensino de
Filoso a, v. 3, p. 17-37, 2017.
MARGUTTI, Paulo. Sobre a nossa tradição exegética e a
necessidade de uma reavaliação do ensino de Filoso a no país.
Kriterion, Belo Horizonte, n. 129, p. 397-410, jun. 2014.
NOGUERA, Renato. O tabu da loso a. Filoso a, São Paulo, v. 1, p.
45, 2004.
PORCHAT, Oswaldo. Discurso aos estudantes de loso a da USP
sobre a pesquisa em loso a. Dissenso: revista de estudantes de
loso a, n. 2, 1º. sem. 1999.
SAVIANI, Dermeval. Educação: do senso comum à consciência
losó ca. Campinas, SP: Autores Associados, 1996. (Coleção
Educação Contemporânea).

[53] Na ordem de citação no presente relato, cf. LA SALVIA, 2019; LA SALVIA, 2018; e o
artigo escrito em conjunto com os alunos de Estágio I: LA SALVIA et al., 2017.

Você também pode gostar