Artigo extraído do livro – KALOUSTIAN, Silvio (org.). São
Paulo: Cortez/ UNICEF, 2004. AJUSTANDO O FOCO DAS LENTES Um novo olhar sobre a organização das famílias no Brasil Gizlene Neder[1]
Uma observação preliminar deve remeter direto ao enfoque a ser
adotado: tratar neste texto da história das famílias no Brasil. Repor no palco das atenções um debate conhecido desde a fundação da República (1889), quando a discussão sobre a formação da nacionalidade e da cidadania tinha, enfim, que levar em conta a massa de ex-escravos e de miscigenados de origem africana e indígena. Ou seja, na sua origem, a formação nacional brasileira teria que englobar e amalgamar as "três raças" e, como o paradigma científico hegemônico no contexto da Proclamação da República era o racismo de inspiração biologista (o darwinismo social que fundamentava o positivismo e o evolucionismo), tal situação criava um constrangimento – como formar a nacionalidade e a cidadania num país de ex-escravos e de miscigenados, de "raças inferiores"? Ao mesmo tempo em que forjava novas crenças (agora "científicas") sobre a superioridade de brancos de origem européia, reificava ou reforçava velhos preconceitos sobre a "barbárie" e a "inumanidade" dos africanos, eivados do racismo tradicional (inspirado no pensamento cristão tomista presente na formação histórica ibérica, que justificou a dominação colonial escravista) [2].
Objetiva-se, neste pequeno artigo, apresentar algumas
possibilidades interpretativas sobre a questão da organização das famílias no Brasil [4], que aponte a direção futura. Menos ainda que o padrão europeu de família patriarcal, do qual deriva a família nuclear burguesa (que a moral vitoriana da sociedade inglesa no século XIX atualizou historicamente para os tempos modernos), seja a única possibilidade histórica de organização familiar a orientar a vida cotidiana no caminho do progresso e da modernidade. Sobretudo no Nordeste a mulher da família patriarcal (chamada sinhazinha) apresenta o perfil delineado pelo autor pernambucano quanto à docilidade e passividade, com atividades voltadas mais para o interior da casa-grande. Os historiadores têm se debruçado sobre os "Manuais de Confissões" que ditavam a conduta dos padres-confessores, a partir do detalhamento dos múltiplos controles desenvolvidos pela reforma religiosa católica no período da Inquisição[8]. O projeto republicano vitorioso dos militares jacobinos, assim chamados porque apresentavam alguns pontos em comum com os republicanos radicais da Revolução Francesa (propunha a separação da Igreja do Estado e tinha preocupações com a Educação, dentre outros pontos), traça as possibilidades de construção da ordem burguesa no Brasil. Deblatera-se, entretanto, com o republicanismo casuístico dos setores agrários paulistas que estavam fora do jogo político do poder durante o Império e que viam no fim do regime monárquico a possibilidade de ingresso no processo político decisório. O projeto republicano dos militares inspirava-se no positivismo de Augusto Comte que penetrou no país nas últimas décadas do século XIX e deitou raízes no imaginário social. Adotava-se também novas práticas de sociabilidade, inspiradas nos modismos da belle é poque francesa e do conservadorismo moralista vigente no reinado da Rainha Vitória, que durou quase toda a segunda metade do século XIX na Inglaterra. (Até os dias atuais, todo processo de mudança na organização das famílias que acompanha o aburguesamento da sociedade moderna, divórcio, nova parentela oriunda dos filhos de outros casamentos, por exemplo, ou uma maior liberalidade dos costumes e da vida sexual que, no conjunto, implique a modernidade, recebe a designação de nova família.) Modernizaram-se, então, as concepções sobre o lugar da mulher nos alicerces da moral familiar e social. Ao contrário da família tradicional, a nova mulher, "moderna", deveria ser educada para desempenhar o papel de mãe (também uma educadora - dos filhos) e de suporte do homem para que este pudesse enfrentar a labuta do trabalho fora de casa. Aí está o perfil da mulher-suporte, que os positivistas brasileiros do início do século talharam como modelo para o "novo" Brasil. Ao lado das formulações mais gerais acerca da Educação, uma outra questão pairava sobre as consciências: como garantir a continuidade da exclusão dos homens pobres e livres (agora um contingente numericamente expressivo, com o fim da escravidão) do acesso à propriedade da terra? Neste ponto, o positivismo dá as mãos ao racismo biologista, em voga na Europa na segunda metade do século passado, e cobre com o véu do cientificismo, da modernidade e do progresso a continuidade do racismo. Da mesma forma, a Educação não é senão mencionada enquanto estratégia para a saída da crise que levou ao fim do regime monárquico e da escravidão no Brasil. Isto porque, do ponto de vista das famílias populares de origem africana, sobretudo nos centros urbanos mais populosos do país na virada do século XIX para o XX (Rio de Janeiro, Salvador, Recife), pouco se podia fazer, pois o determinismo biológico que inferiorizava os negros conduzia a uma profunda descrença na eficácia de qualquer política social de inclusão destes setores. Do ponto de vista da Educação, o quadro era semelhante. No período do Estado Novo esboçaram-se as primeiras incursões do Estado à realização de políticas públicas na área de família e educação, mas aí já com forte inspiração no autoritarismo nazi- facista. Ênfase especial passou a ser dada à idéia de "família regular", "saudável", suportada na eugenia, com desdobramentos no racismo assimilacionista que apostava no branqueamento da sociedade brasileira. As estratégias da Igreja para a família e para a escola
Separada do Estado no início da República, a Igreja traçou
estratégias de atuação no Brasil que resultaram na definição de uma política educacional católica de amplo alcance, com a implantação de escolas confessionais em todo o país.
As famílias no Brasil
Os estudos históricos acerca das famílias no Brasil são recentes e
reúnem dados ainda fragmentados, porque até pouco tempo atrás raramente estudava-se o tema. Esta obra, tão importante para a interpretação do pensamento social e político no Brasil, deve ser vista no contexto das condições históricas dos anos 30 (o livro de Freyre é de 1933), ainda que esteja a brindar com muitas referências de suma importância, sobretudo para o estudo da presença lusitana na colonização do Brasil. São poucos, entretanto, os trabalhos que traçam o quadro etnográfico dos africanos na sociedade brasileira. O médico baiano Nina Rodrigues iniciou os estudos sobre a população de origem africana[15] e fez da Bahia o berço dos estudos antropológicos e etnográficos no Brasil. Destaque também deve ser dado às pesquisas realizadas por Kátia de Queiróz Mattoso[18] que no livro Ser Escravo no Brasil trabalha a família escrava, e por João José Reis[19], que estudou a revolta dos malês na cidade de Salvador, em meados do século XIX (1835). Sobretudo se se considerar que entre 1822 - ano da emancipação política, quando o intermediário português foi afastado das relações do Brasil com o mercado mundial – até 1850, fim do tráfico de escravos, houve numerosos desembarques. Na família africana, os membros são todos da mesma comunidade ou da mesma etnia, ressalta a historiadora. Neste particular, há diferenças em relação às estratégias dos senhores de escravos dos Estados Unidos da América do Norte, onde foi estimulada a constituição de famílias nucleares, com a catequese puritana e moralista atuando fortemente neste processo. Noutro, a figura do senhor, potencialmente substitutiva da figura paterna (no sentido psicanalítico imprimido por Gisálio Cerqueira Filho), era também ausente, pela distância que a idealização e o poder impunham às relações sociais na dinâmica do acontecer social. 25]
Quadro atual das famílias no Brasil
A ênfase nos aspectos histórico-culturais que tem marcado a
organização das famílias no Brasil justifica-se por algumas constatações que devem ser reveladas, sobretudo em relação à família escrava, pois tem-se aí a chave para novos encaminhamentos de políticas futuras. Por melhores que sejam as intenções dos agentes histórico-sociais que atuam nas políticas sociais em relação às classes populares, que a pontuação tão somente da pobreza coloca no centro do argumento a determinação econômica das mazelas que levam às dificuldades na manutenção dos vínculos familiares. Relativamente às famílias dos segmentos populares, sugere-se algumas estratégias de ação. 1) Os programas de capacitação e reciclagem dos servidores públicos e dos agentes sociais nas áreas de saúde, educação, assistência social e segurança pública devem contemplar estudos sobre Formação Histórica Brasileira e Identidade Social e História das Famílias no Brasil. 2) O enfoque dado à questão das famílias deve valorizar os núcleos familiares enquanto locus de construção da identidade. A ênfase nos aspectos históricos e culturais possibilitará a afirmação da autoridade e da lei (no sentido psicanalítico) dos adultos responsáveis pelas crianças no núcleo familiar, estabelecendo seus limites. ldeologia do Favor e Ignorância Simbólica da Lei. Visões da Liberdade.
3) As políticas sociais para a área de famílias devem levar em conta
o apoio a ser dado às mulheres nas famílias dos setores populares, enquanto arrimo econômico; devem, no entanto, atentar também para a sua valorização enquanto suporte político e psicológico, o qual lhes é culturalmente atribuído dentro do núcleo familiar.
4) Por fim, deve-se atuar para o assentamento destas
famílias, seja no campo, seja no espaço urbano, a fim de evitar a quebra violenta de seus vínculos e a conseqüente fragmentação da identidade.