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TRÊS CAMINHOS NA FILOSOFIA


DA LINGUAGEM
Helena Martins

1. INTRODUÇÃO

Quem se aventura pela região das teorias gerais da linguagem tem alguma
chance de desconcertar-se com a multiplicidade de caminhos que ali se ofere-
cem. Para se orientar, o leitor deste livro tem nas mãos uma coleção de mapas
— desenhados em diferentes escalas, dedicados a diferentes áreas, organizados
segundo diferentes aspectos da vasta topografia. Este capítulo acrescenta um
último item a essa coleção, sobrepondo ao terreno examinado uma rede que
destaca três grandes vias para a compreensão do fenômeno da linguagem; ca-
minhos que atravessam e marcam de forma definitiva o território da Lingüísti-
ca, foco específico do livro, mas cuja origem mais remota vamos encontrar no
campo da Filosofia.
Exploro aqui, então, esses domínios onde o pensamento sobre a lingua-
gem desde muito cedo entreteceu-se com perguntas a princípio estranhas ao
projeto particular de uma ciência das línguas humanas: As coisas têm uma es-
sência fixa que nos transcendei Há verdades eternas? O homem pode ser a
sede de conhecimentos universalmente válidos? Pretendo, mais especificamen-
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te, mostrar como três dos mais influentes paradigmas hoje disponíveis para o Explorar em tão grande extensão a ascendência filosófica dos eixos para o
entendimento da linguagem — realismo, mentalismo e pragmatismo — tomam entendimento da linguagem é algo que pode ser feito de muitas maneiras, entre
forma bem cedo na história da Filosofia, em conexão íntima com essas e outras elas, inventariando-se tão exaustivamente quanto possível as proposições filo-
"grandes" perguntas clássicas. O fato de que interrogações de início tão fulcrais sóficas que ao longo da história do pensamento ocidental de algum modo con-
tenham amiúde perdido saliência ao longo da história desses paradigmas, so- tribuíram ou contribuem para a configuração de tais paradigmas. Não é este o
bretudo em sua carreira na província da Lingüística, não lhes subtrai a impor- propósito deste trabalho. Opto, em vez disso, por concentrar minha atenção no
tância constitutiva, de modo algum desfaz o seu impacto formador. Examinar a solo fundador do pensamento grego, buscando caracterizar as três concepções
ascendência filosófica dessas diferentes visões gerais da linguagem é, nesse de um ponto de vista conceitual — explorar as linhas mestras e principais im-
sentido, um recurso que pode ser útil àqueles que desejam entender-se no espa- plicações de cada uma a partir de sua manifestação na Antigüidade, mas sem
ço relativamente labiríntico das teorias lingüísticas contemporâneas. uma preocupação estritamente historiográfica. A referência que será feita a textos
Textos com semelhante disposição cartográfica jamais evitam, é claro, e idéias de filósofos gregos específicos não deve ser interpretada, portanto, como
alguma simplificação. Tentar evitá-la seria de fato trair a própria vocação do indicação de que a genealogia dos paradigmas examinados (se é que pode ser
mapa: como sugere uma muito citada passagem de Borges na História univer- objetivamente estabelecida) esgota-se no pensamento desses autores. Estes, aliás,
sal da infâmia, é bom candidato à inutilidade o mapa de um Império que preten- tampouco serão em si mesmos objeto de exegese neste texto; suas reflexões são
da ter o tamanho do Império e com ele coincidir ponto por ponto. Nunca é convocadas aqui para dar a leitores sem formação aprofundada em filosofia uma
visão geral dos paradigmas aos quais estes e outros pensadores, filósofos e lin-
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demais recordarmos com Borges quão patentemente descabida é a própria pre- güistas, podem de alguma forma ser associados.
tensão de construí-lo. Em todo caso, se a proposta é um reconhecimento de
terreno na Filosofia, mais especificamente filosofia da linguagem, cabem de Com sua pretensão assim delimitada, o texto se organiza da seguinte for-
início alguns comentários sobre o modo particular como se vão simplificar as ma: começo por apresentar as três perspectivas em tom preliminar, enunciando
coisas aqui. a questão geral por elas mobilizada, a questão do sentido. Partindo então para o
exame da ascendência filosófica de tais perspectivas, descrevo primeiramente a
Começo por observar que este texto estende seu olhar ao legado intelectual cena intelectual em que se inscrevem as reflexões gregas sobre a linguagem,
do ocidente, à tradição reflexiva cujo marco inicial nos acostumamos a fazer co- com destaque para o embate ali observado entre sofistas e filósofos ditos
incidir com o nascimento da Filosofia na Grécia, por volta do século VI a.C. "socráticos" em torno da questão da verdade. As três seções seguintes, dedicadas
Nos domínios largos dessa tradição, muitas coisas diferentes são acomodáveis respectivamente ao pensamento dos sofistas, de Platão e de Aristóteles, mos-
sob o título filosofia da linguagem. De uma forma bem estrita, podemos com
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tram como no horizonte mais amplo da questão da verdade ganham forma em
ele nos referir, por exemplo, às tradições recentes da filosofia analítica da lin- versões "inaugurais" das visões pragmática, realista e mentalista do sentido na
guagem e da filosofia ordinária da linguagem, ligadas emblematicamente ao linguagem. Fecho o texto assinalando a tensão básica entre essencialismo e
pensamento de autores como Frege, Russell, Wittgenstein e Austin, a partir da relativismo que opera no espaço dos paradigmas antes caracterizados.
virada do século XIX. Mas podemos também tomar o título de modo muito
mais amplo, em referência às concepções sobre linguagem encontradas nas obras
de autores reconhecidos como filósofos em todos os tempos, caso em que esta- 2. TRÊS CAMINHOS NA FILOSOFIA DA LINGUAGEM
mos autorizados a falar da filosofia da linguagem dos sofistas, de Platão, de
Aristóteles, de Locke, de Wittgenstein, ou de qualquer outro autor. Neste arti- Se vamos explorar a ascendência filosófica de paradigmas para a com-
go, adoto esta segunda acepção mais geral. preensão da linguagem, é um bom começo reconhecer que aspecto específico
desse multifacetado fenômeno se converte em ponto maior de interesse para a
Filosofia. Em outras palavras, a que tipo de pergunta sobre a linguagem res-
1. Cf. Borges, J. L. História universal da infâmia, p. 131-2. pondem as diferentes filosofias da linguagem nascidas na Filosofia? Não há
2. Sobre isso, ver Auroux (2001: 11-19) e Alston (1977: 13-25). nesse caso muita polêmica: quando, por razões as mais variadas, a Filosofia
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ocidental se debruça sobre a linguagem, interessa-se desde sempre pela ques- fos, não é raro ocorrer explícita hibridização; com efeito, veremos, por exem-
tão do sentido. 3 plo, como realismo e mentalismo tendem a associar-se e alimentar-se mutua-
Quando se interroga sobre a questão da significação — quando ergue para mente já em sua incepção no pensamento grego.
si a pergunta o que é para a palavra humana ter ou fazer sentido? —, a Filoso- Acrescentam-se aos perigos do pendor classificatório, os riscos associa-
fia do ocidente nos lega uma rica profusão de pontos de vista: perspectivas que, dos à equivocidade dos termos realismo, mentalismo e pragmatismo, os quais
como aquelas que encontramos explicitadas ou insinuadas em Platão, Aristóte- identificam na história do pensamento ocidental diferentes movimentos e ver-
les, Locke, Nietzsche, Frege, Wittgenstein e muitos outros, são em alguma me- tentes, nem sempre diretamente atrelados à questão da linguagem e do sentido. 4

dida idiossincráticas, correspondendo quase sempre a fios no tecido de pensa- Embora seja verdade que muitos desses desenvolvimentos intelectuais mais
mentos filosóficos complexos e muito diversos. A irredutibilidade última des- amplos articulem-se e por vezes mesmo informem os modos específicos de ver
ses modos particulares de ver a linguagem não nos impede, no entanto, de falar a linguagem que estamos aqui tomando em consideração, este texto não se pro-
em algumas tendências maiores manifestas já na Antigüidade Clássica, sendo põe explorar de maneira explícita essas conexões. Na medida do possível então,
essas diferentes propensões, como já se disse, o que se busca caracterizar aqui. devemos de agora em diante tomar os três termos em referência às posições
Pois bem, podemos começar por dizer simplificadamente que a Filosofia filosóficas sobre o sentido, assim como resumidamente descritas acima.
nos oferece três ângulos principais, sob os quais se entende que a linguagem A primeira coisa a reconhecer nessas posições é sua incontornável com-
humana significa quando: (i) identifica parcelas da realidade; (ii) representa plexidade.
acontecimentos mentais compartilhados entre falantes e ouvintes; e (iii) é usada Pode-se dizer que a princípio, cada uma à sua maneira, as três visões en-
ou vivenciada no fluxo das práticas e costumes de uma comunidade lingüística, contram algum respaldo no senso comum. Assim, parece intuitivamente razoá-
histórica e culturalmente determinada. Por conveniência abreviatória, denomi- vel supor que a palavra telefone, por exemplo, identifica uma certa coleção de
no aqui esses pontos de vista, respectivamente, realista, mentalista e pragmáti- objetos no mundo. Por outro lado, dizemos coisas como "não estou encontran-
co. O recurso tem no entanto alguns inconvenientes. do as palavras certas para as minhas idéias", caso em que tacitamente parece-
Em primeiro lugar, esse tipo de rotulação corre sempre o risco de excitar o mos estar tomando os significados como acontecimentos mentais "à espera" de
furor taxonômico tão característico do nosso tempo, movendo-nos na direção representação pela linguagem. Por fim, se atentamos para os abismos que po-
mais ou menos infeliz de classificar pensadores e pensamentos, de forçar, por dem separar os empregos de uma palavra, digamos beleza, entre gerações ou
assim dizer, a sua circunscrição em territórios bem demarcados. Contra essa entre formações culturais muito apartadas, podemos nos inclinar a reconhecer a
tendência mais ou menos acachapante, devemos ter sempre em vista que esta- determinação histórica e cultural da significação. Qualquer que seja a nossa
mos falando aqui em ângulos não propriamente excludentes para pensar a ques- inclinação de senso comum, no entanto — e veremos que o nosso "senso-co-
tão do sentido. Na verdade, em qualquer desses modos de ver a linguagem, mum" é ainda em larga medida grego —, o fato é que o projeto de converter
entram de alguma forma em cena, ainda que diferentemente entendidas, as di- essas intuições, plausíveis cada uma a seu modo, em explicações gerais para o
mensões do "real", do "mental" e do "histórico-cultural". A diferença entre os sentido na linguagem exclui em qualquer dos casos aproximações ligeiras e
ângulos parece se dar não pela exclusão de quaisquer dimensões, mas antes simplistas.
pela tendência alternada de eleger-se uma delas como condição mais nuclear Se adotamos, por exemplo, uma visada realista e consideramos que o
para o sentido. Além disso, no caso concreto do pensamento de muitos filóso- significado de uma expressão lingüística é a parcela da realidade que ela identi-
fica, não será suficiente compreender essa relação de significação sob o modelo
de uma simples "nomenclatura", em que tenhamos de um lado os itens verbais
3. No contexto deste livro, é oportuno registrar que isso explica por que as relações entre a Filosofia
e a Lingüística se travam especialmente no campo da Semântica. M. Pêcheux observa, com efeito, que "a
Semântica constitui para a Lingüística o ponto nodal de todas as suas contradições", acrescentando que, se 4. O termo realismo, para dar apenas um exemplo, tem muitas vezes conotações não diretamente
isso acontece, é justamente "porque é nesse ponto, e mais freqüentemente sem reconhecê-lo, que a Lin- lingüísticas na epistemologia das ciências e na Psicologia (ver, sobre isso, verbetes relevantes em Dancy
güística tem a ver com a Filosofia" (Pêcheux, 1997: 20; ver também Nef, 1995). & Sosa, 1992).
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e de outro objetos do mundo que são por eles nomeados. Pois, trivialmente, se língua que falamos e, à parte tentativas esparsas e isoladas de "reformá-la", em
esse caminho parece a princípio adequado quando pensamos, por exemplo, em geral não podemos deliberar mais sobre ela comunitariamente do que indivi-
palavras como telefone, mesa, cadeira ou pão, já não é tão confortável se pen- dualmente — as regras de uso das palavras parecem exercer sobre nós, ao con-
samos em palavras como fada, providência ou talvez. A idéia simplista de que
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trário, um poder coercitivo.
a linguagem é um mero duplo do real, que se baseia em uma correspondência
biunívoca e óbvia entre os nomes e as coisas, é de fato muito cedo problemati- A frustração de investidas simplistas por qualquer um dos três caminhos
zada na história da Filosofia (cf. Nef, 1995: 13). — a insuficiência patente de um realismo nomenclaturista, de um mentalismo
meramente imagético ou de um pragmatismo ingenuamente contratual — insi-
A aproximação mentalista acena aqui com a possibilidade de contornar os nua em caráter preliminar a espessura filosófica da questão em jogo. Qualquer
embaraços colocados por exemplos como fada, pois, concebendo os significa- que venha a ser a nossa apreciação daquilo que se promete em cada um desses
dos como entidades puramente mentais, desobrigamo-nos de exigir a referência caminhos, o primeiro passo que deve ser dado em cada um deles é o reconheci-
ao mundo real como condição para a significação. Novamente aqui, no entanto, mento dessa espessura — é desarmar qualquer expectativa de que a questão do
versões simplistas têm pouca chance de sustentação: se nos perguntamos sobre sentido possa ser resolvida, ou dissolvida, "por decreto". Veremos nas próxi-
o que exatamente são essas entidades mentais, a resposta será tudo menos tran- mas seções que essa questão é de uma recalcitrância de fato admirável, mesmo
qüila. A hipótese de que são, por exemplo, memórias imagéticas das coisas em face de proposições infinitamente mais sofisticadas do que essas que acaba-
parece caber quando pensamos no significado de minha mãe, ou Cristo Reden- mos de considerar.
tor, talvez fada, mas não se ajusta tão facilmente a um sem-número de casos
triviais. Mesmo quando estão em jogo coisas concretas, não é inteiramente cla-
ro o que seriam essas imagens: qual seria, por exemplo, a imagem de cachorro 3. PANO DE FUNDO: MITO E RAZÃO; SOFISTAS E SOCRÁTICOS
capaz de reunir um boxer, um pequinês e um pastor alemão? Isso para não falar
de palavras como não, justiça, coerência etc. Talvez não seja exagero dizer que as muitas maneiras com que hoje pen-
samos linguagem e a questão do sentido correspondem a modos diferentes de
Diante desses dilemas, podemos então experimentar "a saída" pragmáti- reclamar — ou de tentar recusar — a herança mais ou menos compulsória que
ca: deixamos de ver os significados como "coisas", reais ou mentais, e passa- nos foi deixada pelos gregos. Se é verdade que, como se deseja mostrar aqui,
mos a entendê-los como correspondentes somente aos usos culturalmente de- três ângulos básicos para compreender a linguagem com os quais até hoje nos
terminados que fazemos das palavras. Seremos então logo confrontados com relacionamos, inclusive e especialmente na Lingüística, se oferecem pelo me-
outro dilema: o de explicar como é possível identificarmos uma palavra como a nos em versão embrionária já no pensamento grego, é então importante de iní-
mesma em diferentes situações, em face de sua irredutível e em última instância cio aceitar-se o fato — prenhe de implicações — de que isso se dá a despeito de
não inventariável multiplicidade de usos. Se a palavra não se estabiliza pelo a linguagem não ocupar ela mesma um lugar propriamente central na filosofia
fato de vincular-se sistematicamente a uma entidade, real ou mental, então o desse período. Subordinada a que outras preocupações a linguagem entra então
que lhe garante estabilidade? Mais uma vez, não dá para simplificar. Sendo em cena?
mais ou menos óbvio que não podemos deliberar sobre os usos das palavras
individualmente, poderíamos talvez adotar uma espécie de visão "contratualis- Responder a essa pergunta envolve primeiramente considerarmos de forma
ta", sugestiva de que os usos estão sujeitos, não à vontade individual, mas antes breve os caminhos pelos quais o pensar filosófico se institui no mundo grego.
à deliberação comunitária — nossa língua seria como é porque assim o Ouvimos na voz de dois de seus mais emblemáticos representantes, Platão
convencionamos, podendo portanto ter alterada, a todo momento, qualquer uma e Aristóteles, que a filosofia se deflagra pela experiência do thauma, palavra
de suas "cláusulas contratuais". Mas isso não satisfaz: afinal, nós herdamos a grega de difícil tradução, mais ou menos correspondente a espanto, admiração
ou assombro: a essa experiência Platão se refere como "o próprio do filósofo",
"o começo da filosofia" (Teeteto, 155D); e é também a essa "admiração pelo
5. Na verdade, conforme nos ensinam Saussure e Wittgenstein, a visão nomenclaturista falha mesmo
no caso de palavras para objetos concretos.
fato de que as coisas são como são" que Aristóteles atribui o "começo de todos
os saberes" (Metafísica, 983a 12).
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A experiência do thauma pode, no entanto, associar-se não apenas à de- Não compreendemos muito bem como os antigos sentiam as coisas mais banais e
flagração da atitude dita filosófica ou racional, mas também à emergência mais correntes, por exemplo o dia e o despertar. Como acreditavam no sonho, a
daquilo que tradicionalmente se descreve como pensamento mítico (cf. Mar- vigília tinha para eles uma outra luz. Era a mesma coisa em relação a tudo o mais
condes, 1997: 19-22; Iglesias, 1986: 14-15). Em outras palavras, à perplexi- da vida, esclarecida pela contra-radiação da morte e sua significação: nossa mor-
dade e às indagações geradas pela "surpresa súbita que leva a alma a conside- te é uma outra morte. Todos os acontecimentos da existência tinham um brilho
rar com atenção os objetos que então lhe parecem mais estranhos e extraordi- diferente, porque um deus resplandecia neles; todas as decisões também, todas as
nários" — também se pode reagir por recurso ao mito. Se, por exemplo, um perspectivas abrindo-se para o longínquo futuro: porque tinham oráculos, secre-
tas advertências e acreditavam na adivinhação. A "verdade" era sentida diferen-
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grego antigo fosse um dia assaltado pela pergunta "o que é o trovão?", pode- temente, porque o demente podia ser o seu intérprete — o que a nós provoca
ria apaziguar sua dúvida aceitando tratar-se da fúria de Zeus; ou poderia bus- arrepios ou então leva ao riso... (A Gaia ciência, § 152).
car para o fenômeno um tipo de explicação que, por exemplo, não invocasse o
sobrenatural. Aceitando-se que explicações míticas da realidade, bastante dis- Como quer que compreendamos as implicações do advento da Filosofia
seminadas entre os diferentes povos da Antigüidade, precedem historicamen- enquanto fato cultural, podemos reconhecer, com Nietzsche, que em certa me-
te o surgimento da Filosofia, podemos dizer, repetindo as páginas iniciais de dida ele institui o terreno no qual separamos o verdadeiro e o falso: opera uma
um sem-número de manuais introdutórios sobre o assunto, que o pensar filo- transformação sob a qual não podemos senão ver como estranha — "temível"
sófico nasce em certa medida reivindicando-se como alternativa ao discurso ou "risível" — uma forma de vida em que, a exemplo do que de fato ocorria na
mítico para a explicação das coisas. 7
Grécia Antiga, os loucos são venerados e podem ser tomados como os intérpre-
A "passagem" do mítico ao racional não deve porém ser compreendida tes da verdade, em que alguém pode se pôr a conversar com uma árvore, acredi-
como uma sucessão de fases históricas estanques; acompanhando S. Cavell, tando estar ali uma ninfa. É, pois, demarcando e reivindicando para si um terri-
devemos sempre conceder que, em certo sentido, "diferentes períodos históri- tório legítimo para a busca da verdade — é contrapondo-se ao fictício, ao ima-
cos existem lado a lado, por longas épocas, e até no peito de um mesmo ho- ginário, à mentira (acepções então correntes da palavra mythos) — que o pen-
mem" (1996: 40). O advento da filosofia é talvez melhor compreendido como sar filosófico se institui no mundo grego. Assim, embora não seja iluminador
correspondente à incorporação de um novo modo possível de estar no mundo pensar na "passagem" do pensamento mítico ao racional como um aconteci-
ou de uma nova orientação do pensamento frente ao que causa perplexidade. mento histórico bem demarcado, é vital reconhecermos que ela se associa cru-
Não que seja uma incorporação qualquer — é na verdade um "acontecimento" cialmente a uma insatisfação quanto a uma certa forma de explicar as coisas, e
que determina a existência ocidental de uma forma que possivelmente ultrapas- à determinação de parâmetros para o que seriam explicações mais adequadas
sa nossa própria compreensão, seqüestrando, por assim dizer, o nosso modo de — explicações racionais e verdadeiras.
pensar e de ser, convertendo-se em nosso senso comum, naquilo que de tão Pois bem, desviando-se assim do terreno do mito, o caminho dito "racio-
habitual fica esquecido. Referindo-se ao mundo grego antes do surgimento da nal" muito cedo se bifurca de uma maneira radical, o que deve ser reconhecido
Filosofia, Nietzsche nos dá elementos para pensar a magnitude desse "aconteci- se desejamos compreender os movimentos que acabam por instar os filósofos
mento" e o modo como ele nos circunscreve: gregos a olhar para a linguagem. Trata-se aqui da polarização entre os sofistas,
por um lado, e os filósofos ditos socráticos, notadamente Sócrates (pela voz de
Platão), Platão e Aristóteles, por outro.
Descartes, Aí paixões da alma, parte II, arts. LXX-LXXVIII. Compreender esse antagonismo supõe em primeiro lugar abandonar o es-
7. Em Marcondes (1997), por exemplo, o pensar mítico é caracterizado, entre outras coisas, por tereótipo comumente associado aos sofistas, segundo o qual esses mestres de
recorrer a um discurso não justificado, e, portanto, não sujeito a questionamento; por exigir adesão a retórica e oratória que corriam as cidades com seus ensinamentos não passavam
lendas e narrativas tradicionais; por apelar recorrentemente ao sobrenatural nas explicações fornecidas. O
pensar racional ou filosófico, ao contrário, renunciaria ao sobrenatural nas explicações fornecidas, e seria de indivíduos venais, destituídos de ética — inescrupulosos manipuladores da
marcado pelo caráter crítico, pelo desapego ao dogma e pelo uso de um discurso justificado e portanto linguagem e das opiniões, interessados apenas em equipar os seus pupilos com
passível de discussão. técnicas eficientes para defender seus próprios interesses nas assembléias, onde
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se decidiam, pelo debate, as leis e os rumos dos acontecimentos civis em geral. mens sobre as coisas, podendo deixar de coincidir até mesmo com as mais
A essa imagem estereotipada, que sobrevive ainda hoje no sentido pejorativo consensuais dessas opiniões.
que atribuímos às palavras de origem grega sofisma e sofismar, vem sendo con-
traposta uma outra, em que se revaloriza a contribuição intelectual dos sofistas, Se a verdade prevalece sobre o consenso ou se, ao contrário, o consenso
sustentando-se que "foram filósofos e educadores, além de mestres de oratória prevalece sobre a verdade, eis então o nervo da controvérsia entre sofistas e
e retórica, embora esse papel lhes seja negado, por exemplo, por Platão" (Mar- socráticos (cf. Harris & Taylor, 1989: 18-9).
condes, 1997: 42; ver também Cassin, 1990). É sobre o pano de fundo dessa disputa, aqui apresentada de forma bastante
Admitindo-se então a existência de um pensamento sofista, a que cisão ligeira, que devemos compreender o pensamento lingüístico originado no mun-
intelectual estamos nos referindo quando falamos num antagonismo entre so- do grego: quase tudo aquilo que se diz ou insinua sobre a linguagem na filosofia
fistas e socráticos? Em certa passagem do diálogo Crátilo, Platão parece resu- desse período parece supor (ou motivar) uma tomada de posição no debate maior
mir a disputa: nesse momento, Sócrates pede a seu interlocutor Hermógenes quanto à questão da verdade. O fato de que os três modos básicos de ver a
que nela tome partido e diga se acha que os seres possuem linguagem "inaugurados" sob essa atmosfera tenham tido em seu horizonte mais
amplo a questão da verdade impacta a história subseqüente do pensamento lin-
cada um sua existência particular, como dizia Protágoras quando afirmou que o güístico de forma decisiva e merece especial atenção se desejamos compreen-
homem é a medida de todas as coisas, e que, por isso, conforme me parecerem as der a fundo as teorias da linguagem nascidas na Lingüística, num espaço onde
coisas, tais serão elas para mim, como serão para ti, conforme te parecerem. Ou historicamente a questão da verdade não raro se vê subfocalizada ou mesmo
és de opinião que sua essência seja, de algum modo, permanente? (Crátilo, 386a) não focalizada.
Veremos agora que a disputa em questão tende a separar, nesse momento
A passagem gira, como vemos, em torno da questão ontológica, de uma remoto da história do pensamento sobre a linguagem, de um lado a perspectiva
indagação sobre a natureza dos seres: As coisas têm uma essência permanente? que aqui estou denominando pragmática, associável ao pensamento sofistico; e
A resposta negativa é explicitamente imputada aos sofistas, fazendo-se menção de outro os ângulos realista e mentalista, compatíveis ambos, nessa sua versão
a um de seus mais conhecidos representantes, Protágoras, bem como a um dos inaugural, com a defesa da tese anti-sofística de que a verdade prevalece sobre
mais conhecidos dos ditos sofísticos: "o homem é a medida de todas as coisas". o consenso. Passemos agora então a examinar esses três pontos de vista, come-
A resposta positiva é aquela que se insinua como alternativa, pelo caminho çando por aquele que, compreendido em toda a sua radicalidade, é talvez o mais
socrático. difícil de ser experimentado. Comecemos pelo que nos têm a dizer os sofistas
As conseqüências de se adotar uma ou outra dessas atitudes face à questão sobre a linguagem e vejamos como e por que se pode associar a seu pensamento
ontológica são muitas, estendendo-se pelos planos ético-político e epistemoló- o embrião de uma visão radicalmente pragmática da linguagem e do sentido.
gico, entre outros. É a questão mais ampla da verdade, no entanto, o que parece
estar em jogo de forma mais central em qualquer desses planos. 4. 0 DISCURSO É UM GRANDE SOBERANO
Se, como queria Protágoras, as coisas não têm "medida" ou essência
própria, se são aquilo que nos parecem ser, variando de acordo com as cir- O interesse dos sofistas pela linguagem, sua preocupação com a eficiên-
cunstâncias, então o que será isso a que chamamos a verdade? Sob esse ponto cia retórica e com a correção do estilo, levou-os a empreender estudos siste-
de vista, a verdade só pode resultar "de nossas opiniões sobre as coisas e do máticos sobre diversos aspectos da língua grega, tendo com isso gerado gran-
consenso que se forma em torno disso", sendo, portanto, "múltipla, relativa e des contribuições para o estudo da gramática. Sem desmerecer esses estudos
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mutável" (cf. Marcondes, 1997: 49). Se, por outro lado, as coisas têm uma de teor mais empírico e propedêutico, os quais ocupam sem dúvida um lugar
essência que é de alguma forma permanente, então podemos dizer que há relevante e fundador na história das teorias lingüísticas, vamos aqui nos con-
quanto a elas uma verdade única e fixa, que transcende a experiência humana
concreta e vária do real — uma verdade que ultrapassa as opiniões dos ho- 8. Sobre isso, ver Robins. 1979: cap. 2.
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centrar na dimensão mais conceituai ou filosófica da perspectiva sofistica qual tomado em separado parece girar em torno apenas da impossibilidade de
sobre a linguagem. termos acesso às coisas em si, ela insinua, além disso, o lugar da linguagem no
Como se sabe, qualquer reconstrução do que seria o "pensamento sofistico", contexto dessa impossibilidade. Assim, o que Górgias sugere é que, ainda que
sobre a linguagem ou sobre o que quer que seja, dificulta-se pelo fato de que se pudesse conhecer o real, não se poderia dizê-lo, pelo menos não de uma
pouquíssimos fragmentos originais desses autores sobreviveram ao tempo. Na forma que tornasse esse dizer compreensível a um outro. Neste próximo frag-
verdade, os testemunhos mais detalhados de suas idéias nos chegam pela voz de mento, o filósofo parece movimentar-se na mesma direção, de modo ainda mais
seus mais ostensivos adversários, notadamente Platão. Nossa dificuldade de 9
explícito:
"acesso" ao pensamento sofistico pode ser, nesse sentido, compreendida de duas Assim como o visível não pode tornar-se audível, ou o contrário, assim também
formas: em termos mais concretos, considerando-se a parcimônia de evidências o ser que subsiste exteriormente a nós não poderia tornar-se nosso discurso (Frag-
textuais que nos são legadas sem o filtro hostil do olhar platônico; e, mais im- mento B, III).
portante que isso, em termos mais abstratos, considerando-se a própria penetra-
ção e disseminação do ponto de vista "contrário" ao deles na cultura do ociden-
te, em termos da própria força que parece exercer sobre nós a perspectiva de Uma das formas de ler esse trecho é entendê-lo como resposta à seguinte
inspiração socrático-platônica — uma perspectiva que, como já se sugeriu, res- pergunta: Qual é a relação entre a linguagem e o real, entre o "discurso" e o "ser
ponde em grande parte por aquilo que costumamos reconhecer como o "nosso exterior a nós"? A resposta é tão clara quanto perturbadora: a realidade não
senso comum". pode tornar-se nosso discurso; novamente, a linguagem não diz o real. O abis-
Devidamente advertidos quanto à delicadeza da empreitada, tentemos, no mo que Górgias sugere haver entre linguagem e realidade tem sua imagem re-
entanto, explorar o que poderia ser uma visão de linguagem ligada ao pensa- forçada pela analogia com a incomunicabilidade dos gêneros da percepção sen-
mento sofistico. sorial: a cisão entre linguagem e ser seria da mesma ordem da cisão entre o
visível e o audível. Não se pode escutar a cor ou ver a melodia; não se pode
O legado filosófico mais recorrentemente atribuído aos sofistas é aquele trazer o ser exterior ao discurso.
do relativismo — a já aludida tese radical da impossibilidade de estabelecerem-
se verdades universalmente válidas, autônomas com relação às circunstâncias Como já se disse, experimentar esse ponto de vista em toda a sua radicali-
concretas, contingentes e variáveis da experiência humana. O homem ser as- 10 dade não é simples; teremos mais adiante oportunidade de reconhecer que, pelo
sim a única medida das coisas o impediria de ter sobre as coisas uma medida menos na versão simplificada como aqui serão apresentadas, as visões platôni-
única — excluiria de forma irreversível a possibilidade de uma apreensão final ca e aristotélica têm boas chances de soar menos contra-intuitivas. Pois é relati-
e verdadeira da realidade tal como ela é em si mesma. Em sintonia com o pensa- vamente natural reagir-se à sugestão de Górgias: Como assim a linguagem não
mento cético e relativista de Protágoras, outro sofista emblemático, Górgias, diz o real? Então quando digo mar, não estabeleço um nexo entre uma palavra e
nos envia uma mensagem radical: algo exterior a mim? Se a linguagem não diz de alguma forma o real, o que diz
então? Ouçamos Górgias de novo:
Nada existe que possa ser conhecido; se pudesse ser conhecido, não poderia ser
comunicado; se pudesse ser comunicado, não poderia ser compreendido (Do não- não são pois os seres que nós revelamos àqueles que nos cercam; nós só lhes
ser, Fragmento I). revelamos um discurso que é diferente das substâncias (idem).
O interesse especial dessa passagem para nós está no fato de que, ao con- O desconcerto parece prosseguir: a linguagem revela apenas a própria lin-
trário do que ocorre com o lema "o homem é a medida de todas as coisas", o guagem. Górgias arremata:

9. Ver a esse respeito Kerferd, 1981.


Se é assim, o discurso não manifesta o objeto exterior; pelo contrário, é o objeto
10. Ver Kerferd (1981: cap. 9), e, para uma leitura menos convencional do legado sofista, Cassin, 1999.
exterior que se manifesta no discurso (idem).
T^T ~v
4 40 MUSSALIM • BENTES 453
INTRODUÇÃO À LINGÜÍSTICA

A significância dessa última passagem é sutil e muito complexa — mere- e com eles mantendo laços mutuamente constitutivos. O que uma expressão
ce tempo. Uma das formas de começar a apreciá-la é pelo seguinte raciocínio. vem a significar é algo mutável, que se institui no próprio curso das nossas
A linguagem não diz o real, o qual, sabemos, para Górgias, não pode ser conhe- práticas, no entrelugar deixado pela não-fixidez de nossas crenças e pelo poten-
cido. Sob esse ângulo, os objetos que se manifestam a nós não podem então ser cial persuasivo e mesmo demiúrgico da linguagem. É nesse espírito que Górgias
objetos que conhecemos em algum momento logicamente anterior ao uso da noz diz:
linguagem — a linguagem não representa um real autônomo que previamente
se nos dá a conhecer. O que tomamos como "o real" pode aqui então ser visto O discurso é um grande soberano, que com o mais diminuto e inaparente corpo as
como apenas aquilo que se manifesta para nós como tal no discurso. A passa- mais divinas obras executa (Elogio a Helena).
gem de Górgias permite-nos, pois, associar ao pensamento sofista um ponto de
vista segundo o qual, em certo sentido, a existência humana é lingüisticamente Tomar o caminho sofista pode ser difícil para nós, porque nele se impõe
articulada — um modo de ver no qual a linguagem desempenha um papel crucial compreender a própria formulação da questão do sentido de um modo que con-
em nossa experiência no mundo. traria o movimento do senso comum: quando nos perguntamos o que é para a
Não havendo possibilidade de acesso ao real, o que a linguagem diz então linguagem significar?, a tendência mais natural é esperar que a resposta envol-
são as próprias opiniões ou impressões dos homens — opiniões em torno das va o estabelecimento de um nexo entre a linguagem e algo que lhe é exterior (o
quais se formam consensos, que por sua vez responderiam pela estabilidade da real, por exemplo). Experimentar a perspectiva sofistica envolve renunciar a
linguagem. essa expectativa tão arraigada: na linha do que sugere Ferraz (1997), trata-se de
estar preparado para pensar talvez que a linguagem 'não diz o que é\ mas em
Mas aqui é importantíssimo para os nossos propósitos termos em mente o alguma medida 'faz ser o que diz'.
seguinte: ao olhar mais atento, a linguagem revela também a sua própria
volatilidade. Sob a perspectiva sofistica, quem se detiver em examiná-la cons- Enfatizando a volatilidade dos consensos sobre a fixidez da verdade, e
tatará que sua estabilidade não é maior (nem menor) do que aquela dos consen- apontando o lugar central que, sob essa ótica, a linguagem ocupa nos assuntos
sos que regulam os assuntos humanos de um modo geral. As crenças comuns humanos, os sofistas abrem o caminho para pensarmos que as expressões signi-
dos indivíduos sempre abrigariam contradições latentes, impondo-se à lingua- ficam não porque representam algo por si sós, não por possuírem qualquer sen-
gem o requisito de ser suficientemente plástica para acomodar essas contradi- tido imanente, mas antes porque, jamais dissociando-se dos assuntos humanos
ções. A esta altura, talvez já esteja ficando claro por que se pode reconhecer no de que tomam parte, inscrevem-se circunstanciadamente no fluxo dessas práti-
pensamento sofistico o embrião de uma visão pragmática da linguagem e do cas, com efeitos possíveis muito variados, efeitos que podem talvez ser estima-
sentido. ra dos mas nunca garantidos de antemão.
O que seria uma expressão lingüística ter sentido em tal perspectiva? Para A dificuldade para experimentar o ponto de vista oferecido no pensamen-
começar, não cabe aqui pensar no sentido como algo fixo, que pertença à ex- to sofista deve-se, pelo menos em parte, como já se disse, à disseminação da
pressão em si mesma. Talvez seja mesmo mais compatível com o estilo sofista perspectiva que se lhe opôs com alguma violência no mundo grego. Vamos
de pensamento colocar as coisas em termos de fazer sentido, pois um dos pon- passar agora ao exame desse movimento opositivo "triunfante", buscando dis-
tos centrais da sofistica é justamente enfatizar que um mesmo dizer, considera- cernir e compreender dois outros modos de ver a linguagem que ali se dese-
das as brechas deixadas pela relativa precariedade dos consensos que regulam nham. Comecemos por Platão.
as práticas humanas, pode não apenas significar mais de uma coisa, conffTfam-
bém, e mais importante que isso, pode significar uma coisa e o seu exato contrá- 5. 0 NOME É UM INSTRUMENTO PARA INFORMAR A RESPEITO DAS COISAS
rio. Desestabilizando-se assim qualquer distinção absoluta entre verdade e fal-
sidade capaz de regular os usos lingüísticos por assim dizer, "de fora", o que Se o objetivo é entender um modo de ver a linguagem que se delineia no
emerge aqui é um ângulo segundo o qual a linguagem significa quando é usada pensamento de Platão, é mais ou menos inevitável, como preparação do terre-
em circunstâncias concretas e variáveis, inscrevendo-se nos assuntos humanos no, reconvocar ainda que brevemente um dos eixos principais do seu pensa-
454
MUSSALIM • BENTES
INTRODUÇÃO À LINGÜÍSTICA ^ t [ Á S" 455

mento, a famosa Doutrina das Formas, ou Teoria das Idéias. Sem obviamente sentidos, haveria então uma outra dimensão, intemporal e universal, que servi-
pretender fazer justiça à complexidade dessa doutrina, comecemos por consi-
derar a seguinte passagem: ria de morada a tais entidades autônomas, as essências, as quais seriam dotadas
de um tipo especial porém real de existência.
Parece-me que, se existe algo de belo fora do Belo em si, essa coisa só é bela Pois bem, como é que se vai desse tipo de ontologia dualista para um
porque participa desse Belo em si, e digo que o mesmo ocorre quanto a todas as entendimento da linguagem e do sentido?
outras coisas (Fédon: 100 c/d). Conforme já se disse, a compreensão do pensamento grego sobre a lingua-
gem deve ser buscada tendo-se como pano de fundo a polarização em torno da
O fragmento, que, como se vê, nada traz de específico sobre a linguagem, questão da verdade aludida nas seções anteriores. Muito do que Platão diz ou
nos dá, contudo, indicações sobre o tipo de ontologia, ou compreensão da nature- insinua sobre a linguagem orienta-se no sentido de demonstrar que seu funcio-
za do real, que, como ficará claro, se encontra na base do que seria uma perspecti- namento é tal que pressupõe a verdade, que reforça a idéia de que a verdade
va platônica sobre o sentido. O "ponto" do trecho citado é a distinção entre as prevalece sobre o consenso. A vitória do consenso sobre a objetividade, a ho-
coisas assim como as percebemos, por um lado, e a sua natureza essencial, por nestidade intelectual e a verdade, teria, para Platão, como já se sugeriu, os mais
outro. Na República (VII, 508-518), Platão elabora sua célebre perspectiva dua- nefastos efeitos; teria estado, notadamente, por trás da injusta condenação de
lista do real, sustentando haver uma oposição entre o mundo sensível, das aparên- seu mestre, Sócrates, por subversão. O papel da linguagem no estabelecimento
cias, e um mundo inteligível, das essências ou idéias. A variação e a mutabilida- desses "perigosos" consensos não passou despercebido a Platão, tendo sido isso
de das coisas, tão enfatizadas pelos sofistas, seriam para Platão características o que possivelmente o levou a tematizar o fenômeno lingüístico, ainda que mar-
desse mundo das aparências, do mundo que está ao alcance dos sentidos: ali ginalmente em suas obras." Conforme observam Harris e Taylor (1989: 18),
habitaria de fato tudo o que é corpóreo, imperfeito e mutável; por exemplo, as nas duas instituições civis principais da polis, o tribunal e a assembléia, o êxito
coisas muito diferentes e variadas que designamos belas. Liberto dos "grilhões" dependia da linguagem, tornando-se, portanto, importante para Platão "mostrar
dos sentidos, no entanto, o intelecto teria em princípio a possibilidade de apreen- que a linguagem — o instrumento essencial utilizado pelos sofistas e políticos
der uma outra dimensão do real, a dimensão das coisas em si mesmas-, no caso democráticos em suas atividades — exige ela mesma que reconheçamos a ver-
em exemplo, o Belo em si. Transcendendo a experiência concreta e contingente dade como algo independente e não ilusório".
dos homens, haveria, pois, um real de coisas invisíveis, perfeitas e eternas: o Na reflexão que desenvolve sobre a natureza da linguagem no diálogo
domínio dos exemplares "originais", dos quais as coisas que podemos ver e Sofista, Platão parece de fato seguir esse caminho. Para preservar intacta a sua
tocar não passariam de meras cópias. Conforme ilustra Pessanha (1986: 59-60), posição de que os sofistas eram impostores e não faziam outra coisa senão con-
ferir a discursos falsos uma verdade apenas aparente, Platão precisa confrontar
uma cadeira que vemos ou tocamos pode ser de madeira ou metal, desta ou da- uma objeção potencial de seus adversários — o chamado paradoxo do discurso
quela cor, deste ou daquele formato; ela muda, envelhece, é destruída com o falso (cf. Santos, 1996: 439 e segs.).
tempo. Já a essência de cadeira permanece sempre a mesma, fora do tempo e do Com base num argumento perfeitamente racional e legítimo, o argumento
espaço. E é sempre única. Pois é o que qualquer cadeira, em qualquer época ou de Parmênides segundo o qual aquilo que "não é" não pode ter qualquer tipo de
lugar, tem de ser para ser cadeira.
existência, os sofistas poderiam sustentar a inviabilidade de uma distinção efe-
tiva entre o discurso falso e o verdadeiro: se o discurso verdadeiro diz aquilo
Para os nossos propósitos aqui, é importante entender e registrar que em- que é, então o discurso falso aparentemente só poderia dizer aquilo que não é
bora Platão chame de idéias essas essências, "elas não existem na mente huma- — no entanto, Parmênides teria mostrado que nada se pode dizer sobre o não-
na, como conceitos ou representações mentais: ao contrário, existem em si,
nem nos objetos (de que são os modelos), nem nos sujeitos (que conhecem
esses objetos)" (Pessanha, 1986: 59; ver também Cornford, 2001 [1932]: 57-9). 11. As línguas humanas, em sua multiplicidade e variedade, eram vistas por Platão como fenômenos
Sob a superfície mutável e inconstante do real assim como percebido pelos do mundo sensível e não mereceram por isso lugar de destaque em sua obra. É importante ter em vista essa
ressalva quando se fala em uma "visão platônica da linguagem".
440 INTRODUÇÃO À LINGÜÍSTICA 457
MUSSALIM • BENTES

ser, sobre aquilo que não é. Ora, quem diz diz algo, palavra esta que se refere ter o que tem sido freqüentemente descrito na literatura como a consumação de
em princípio àquilo que é: se uma pessoa diz o que é, seu discurso é verdadeiro. um parricídio: renuncia à tese de um de seus mais influentes mentores,
Se não diz o que é, então nada diz — seu discurso não é falso; apenas não é um Parmênides, e sustenta que, sob certo ponto de vista, podemos de fato dizer
discurso. Assim, conforme L. H. Santos resume o paradoxo, "um discurso diz o aquilo que não é. Como? Em primeiro lugar, é preciso rejeitar a sugestão
que é ou não é um discurso, é verdadeiro ou não é um discurso" (idem: 440). parmenidiana de que dizer o que não é corresponde necessariamente a dizer o
A implicação radicalmente relativista embutida nesse raciocínio é clara: nada, ou a ausência absoluta. Isso, Platão reconhece, seria de fato impossível.
se não é possível dizer o falso e todos os enunciados são igualmente verdadei- Mas podemos compreender esse "dizer o que não é" de modo relativo, sobretu-
ros — se Sócrates é inocente é tão verdadeiro quanto Sócrates é culpado —, do se atentarmos para o momento da combinação entre onoma e rhema.
então, a rigor, a verdade como parâmetro absoluto e distintivo não existe, é Um enunciado como Teeteto está sentado, proferido em uma situação em
ilusória; qualquer coisa que se diga com sentido é verdade por definição. que Teeteto está de fato sentado, diz aquilo que é por pelo menos duas razões:
Platão se vê naturalmente compelido a combater esse raciocínio, julgando porque suas partes dizem, cada uma, o que é, e também porque, ao combina-
necessário para isso mostrar que o funcionamento da linguagem é tal que supõe rem-se, elas reproduzem uma relação tal qual existe no real, a saber, entre Teeteto
a possibilidade de se dizer o que não é, além de uma distinção objetiva entre o e a propriedade "estar sentado". Já um enunciado como Teeteto voa, dizendo
discurso falso e o verdadeiro. Orientam-se nessa direção as considerações sobre igualmente o que é (de vez que suas partes referem-se independentemente a
a linguagem que emergem do diálogo entabulado entre Sócrates e Teeteto no coisas que existem), diz também, por outro lado, o que não é, na medida em que
Sofista, sobretudo na passagem 261c-264b. a articulação entre suas partes não reproduz uma relação existente no real (a
um ser humano não se pode atribuir a propriedade de voar). Platão convida-nos
Somos ali convidados de início a examinar a estrutura dos enunciados e a assim a constatar que, no plano da combinação, ou tessitura, realizada entre
reconhecer ou recapitular algo que hoje (graças sobretudo ao pensamento gre- onoma e rhema, poderá ou não haver uma imitação fiel da tessitura do real (cf.
go) é ponto pacífico em qualquer gramática elementar: o fato de que os enun- Iglesias, 2003: 155). Com isso, ao mesmo tempo em que nos oferece um ângulo
ciados típicos não são blocos monolíticos, sendo antes divisíveis em pelo me- pelo qual podemos atribuir à linguagem a capacidade de dizer o que não é,
nos dois segmentos, a saber, onoma (o nome, o sujeito) e rhema (o verbo, o Platão restitui um espaço para a distinção entre o discurso verdadeiro e o falso.
predicado). Partindo dessa constatação, Sócrates insta Teeteto (e o leitor) a re- Nos casos em que a estrutura da linguagem entra em descompasso com a estru-
conhecer a autonomia simbólica das partes de um enunciado: um onoma remete tura do real, o discurso é falso; nos casos em que é fiel a essa estrutura, é discur-
por si mesmo a determinada coisa, da mesma forma que um rhema. Assim, por so verdadeiro. 13

exemplo, um onoma como "Teeteto" refere-se a certo indivíduo; um rhema A complexidade e o caráter polêmico do raciocínio de Platão nesse ponto
como "estar sentado", a certo estado; um rhema como "voar" a certa atividade, não podem ser adequadamente contemplados aqui. É, no entanto, suficiente
14

e assim por diante. Sob esse ângulo, pode-se dizer que enunciados como Teeteto para os nossos propósitos observar que o movimento anti-relativista do filósofo
está sentado e Teeteto voa versam ambos sobre coisas que existem — pois suas no sentido de manter firme a oposição entre a verdade e a falsidade passa, no
partes, Teeteto, estar sentado, voar, simbolizam, cada uma, algo que é da or- Sofista, pela necessidade de garantir uma distinção objetiva entre o discurso
dem daquilo que é. Se essas frases dizem o que é, então, estando correta a tese falso e o verdadeiro. E é importante notar mais especificamente que essa garan-
de Parmênides, deveriam ser ambas verdadeiras. Mas são de fato?
Provocado por Sócrates a responder a essa pergunta, Teeteto reproduz o
senso comum e diz: "uma delas é falsa; a outra, verdadeira" (263b). Para pre- 13. Observe-se que não se resume à possibilidade do discurso falso, no entanto, a capacidade de a
servar a legitimidade de denominarmos falso um enunciado como Teeteto voa, linguagem dizer o que não é: Platão nos mostra que mesmo os enunciados verdadeiros em certo sentido
também o fazem. Na verdade, que o façam é, para Platão, condição sine qua non para o funcionamento da
e verdadeiro um enunciado como Teeteto está sentado, Platão precisa come-
12
linguagem: para que qualquer enunciado do tipo A é B tenha significado, é essencial que, sob certo
aspecto, A não seja B (um enunciado como A manga é uma fruta não faria sentido se manga e fruta fossem
exatamente a mesma coisa).
12. O enunciado é proferido no diálogo em uma circunstância em que Teeteto de fato está sentado. 14. Ver Denyer, 1991, Iglesias, 2003 e Santos 1996.
440 MUSSALIM • BENTES 459
INTRODUÇÃO À LINGÜÍSTICA

tia de objetividade está no nexo que o discurso estabelece (ou não) com o real, cada objeto como quer a natureza que ele seja cortado, e com os instrumentos
com as propriedades das coisas e suas inter-relações. O que determina a verda- apropriados para cortar" (387a). Em um momento crucial no diálogo, Sócrates
de ou falsidade de um enunciado é, nesse contexto, um parâmetro independen- observa então qut falar, assim como cortar, é também uma ação, devendo, pois,
te: a estrutura autônoma e única do real. analogamente, realizar-se conforme sua essência própria. Uma pessoa não pode
Que perspectiva se abre aqui para pensarmos o nosso tema central, a ques- "dizer de fato alguma coisa", fazendo-o "da maneira que lhe aprouver"; deve
tão do sentido das expressões lingüísticas? A tese de que a verdade ou falsidade antes dizer as coisas "segundo o modo natural de falar e como devem ser ditas"
dos enunciados é função exclusiva da relação entre a linguagem e o mundo (387c). Salientando que as ações se realizam por meio do uso adequado de
exclui naturalmente a possibilidade, cara aos sofistas, de um enunciado poder instrumentos relevantes em cada caso, Sócrates estende esse raciocínio à lin-
significar muitas coisas diferentes, notadamente de poder significar alguma coisa guagem, partindo então para a sua analogia com o tear. Assim como o tear é o
e o seu contrário. Essa possibilidade só é acomodável em uma visão da lingua- instrumento adequado para a ação de tecer, para separar "da trama a urdidura",
gem na qual o que os enunciados significam é função das circunstâncias parti- assim também os nomes seriam o instrumento do falar:
culares e variáveis que os sobredeterminam. No quadro que se esboça no Sofis-
ta, ao contrário, a significação dos enunciados precisa pertencer, por assim di- O nome, por conseguinte, é instrumento para informar a respeito das coisas, para
zer, à letra — ser atributo imanente dos enunciados em sua relação com o real, separá-las, tal como a lançadeira separa os fios da trama (388c).
excluindo-se do âmbito de sua significação as particularidades de quem os pro-
fere, de suas vivências no mundo, de sua relação com seus interlocutores, da Sócrates estabelece então nessa momentosa passagem o que seria a fun-
cultura à qual pertence, do momento histórico que vive etc. Pois como poderia ção essencial da linguagem — informar sobre as coisas.
um enunciado ser objetivamente verdadeiro ou falso se o seu sentido fosse va-
riável, se significasse para mim algo distinto daquilo que significa para você? O Prosseguindo em sua analogia, ele chama a atenção para o fato de que,
que parece se impor nessa forma platônica de pensar a linguagem é, em suma, que para funcionarem, os instrumentos de que nos valemos em nossas ações devem
se compreenda o sentido de um enunciado como a parcela da realidade, o estado necessariamente ter sido projetados da maneira correta, de preferência por es-
de coisas, que ele, por si mesmo e de forma objetiva, se destina a descrever. pecialistas, detentores de conhecimentos em geral ignorados pelos usuários dos
instrumentos inventados. Assim, o tecelão se vale do trabalho do carpinteiro,
Essa compreensão realista do sentido — e a idéia associada de que a fun- que construiu o tear segundo seu conhecimento especial da "arte da carpinta-
ção maior da linguagem é descrever ou representar o real — ganha também um ria". Para os propósitos da discussão, Sócrates introduz nesse momento a figura
espaço importante em um diálogo anterior de Platão, o Crátilo, onde se enfati- mítica de um "Legislador dos nomes", um inventor da linguagem, que, sendo
za, com efeito, a idéia de que "os nomes respondem não à comunidade, mas sim "de todos os artistas o mais raro", teria igualmente inventado os nomes para que
à realidade" (Harris & Taylor, 1989:19; ver também Modrak, 2001: 14-19). pudessem desempenhar com êxito a sua função (388e). Assim como o carpin-
Uma das analogias desenvolvidas por Platão nesse diálogo ilustra de forma teiro, enquanto fabrica o tear, "olha" para algo "naturalmente adequado para
especialmente eloqüente essa orientação realista. " — "idéia do tear", "o tear em si mesmo" (389a-d) —, o mesmo deverá
t e c e r a

Trata-se da analogia entre a linguagem e o tear, introduzida no diálogo ocorrer com relação ao Legislador dos nomes, que deverá ter "os olhos sempre
quando Sócrates provoca seu interlocutor, Hermógenes, a refletir sobre o pro- fixos no que é o nome em si, caso queira ser tido na conta de um verdadeiro
pósito dos nomes (386a-391a). O raciocínio que se desenvolve ali é o seguinte. criador de nomes" (390a). E o que seria esse nome em si, esse nome ideal? O
Hermógenes toma o partido de Sócrates na disputa com os sofistas e assente nome que desempenha com perfeição a sua função: identificar a coisa nomeada.
que as coisas têm uma essência permanente, não podendo "ser deslocadas em A analogia com o tear sugere um modo de ver a linguagem com uma
todos os sentidos por nossa fantasia" (386e). Sócrates então persuade série de implicações merecedoras de nossa atenção aqui: insinua-se que, assim
Hermógenes a convencer-se de que as ações, assim como as coisas, têm tam- como ocorre com o tear, a linguagem teria sido "inventada" com um propósito,
bém uma essência fixa: para cortar algo, por exemplo, não podemos fazê-lo e que este propósito se manifesta patentemente em sua própria estrutura; caso
"como bem entendermos e com o que for do nosso agrado"; temos que "cortar suas partes (os nomes) não estejam em conformidade com o seu propósito, a
440 460
MUSSALIM • BENTES INTRODUÇÃO À LINGÜÍSTICA

linguagem não funciona; para utilizá-la corretamente, precisamos conhecer e usam diferentes elementos vocais na composição das palavras. Na analogia com
respeitar sua arquitetura e seu propósito. Essas implicações são todas elas de o ferreiro, ele insiste, assim como havia feito com relação ao inventor do tear, o
uma complexidade extrema, que não é possível capturar de todo aqui. Para Harris que importa é que o produto final respeite a forma ou a idéia que preside a sua
e Taylor, no entanto, o "fio que costura todas essas idéias é o da funcionalidade, confecção. Sugere, pois, que diferentes "legisladores", utilizando diferentes síla-
algo que, por sua vez, presume-se, supõe a racionalidade" (1989: 7). bas, confeccionarão nomes igualmente bons e funcionais desde que esses nomes
Em outras palavras, o que Sócrates parece estar sugerindo é o seguinte: se mantenham fiéis a seu propósito: representar uma determinada parcela da rea-
não faz sentido sequer começar a investigar a natureza da linguagem a não ser lidade. É de se supor que diferentes povos tenham acerca do real diferentes opi-
partindo-se do princípio de que ela funciona. E funcionar aqui é tomado como niões culturalmente determinadas. Os nomes, para funcionarem, no entanto, de-
equivalente a servir ao propósito racional que motivaria a sua existência — vem transcender essas opiniões e representar o real. Segue-se daí que as diferen-
falar das coisas. A tese sofistica de que a linguagem traduz apenas consensos tes línguas humanas, se representam corretamente a realidade, têm, a despeito de
precários e mutáveis dos homens é tacitamente rejeitada como uma tese incom- sua aparente variabilidade, a mesma estrutura conceptual profunda.
patível com a própria funcionalidade da linguagem, na medida em que, sob a Sob a ótica platônica, em suma, para escapar à variabilidade aparente do
ótica platônica, acaba por representar a linguagem como algo irracional e for- real assim como é percebido pelos sentidos, a linguagem só pode ter como voca-
tuito. Ao contrário de Górgias, Platão não coloca em questão, portanto, a capa- ção representar a dimensão fixa e eterna do real: as formas essenciais, as coisas
cidade de a linguagem dizer o ser; em vez disso, ele pressupõe que seja essa a em si mesmas habitantes do céu virtual das idéias. As palavras não teriam por
sua manifesta e patente vocação. Se a linguagem desempenha sempre de forma vocação, pois, representar as coisas aparentes, variáveis e múltiplas por defini-
perfeita ou não essa função é algo que Platão parece deixar em aberto (ver ção, mas antes as suas essências — é a uma essência desse tipo que "se refere a
Modrak, 2001: 18-9); o que parece ser recorrentemente enfatizado no Crátilo, palavra 'cadeira' em qualquer língua, em qualquer tempo" (Pessanha, 1986: 60).
no entanto, é a idéia de que, na medida em que funciona, a linguagem funciona
em respeito a essa vocação primordial. Sob essa perspectiva, então, um nome é O olhar platônico sobre a linguagem que aqui tentamos de forma muito
tanto mais correto quanto melhor representar a parte da realidade que tem por breve reconstruir pode ser assim resumido: as palavras têm por propósito repre-
incumbência identificar. sentar a realidade, não a realidade fenomênica, mas a realidade essencial das
Em resumo, para funcionar, a linguagem deve transcender as nossas opi- coisas. As essências que as palavras representam são entidades extralingüísticas
niões e ela mesma, respondendo, como já se disse, não à comunidade, mas à universais, autônomas e transcendentes. Se a linguagem não tivesse por função
realidade. Mas para onde a linguagem transcenderia considerado o dualismo representar essa dimensão essencial e verdadeira da realidade, seria uma ativi-
platônico brevemente recapitulado no início desta seção? Em outras palavras: a dade irracional. O exame da linguagem nos leva então à tese de que a verdade
que dimensão do real a linguagem então responderia? A resposta não nos é dada deve prevalecer sobre o consenso.
diretamente nesse diálogo, embora nos seja sugerida em algumas passagens, Por razões que devem agora estar claras, o nome de Platão é então fre-
tais como a seguinte: qüentemente associado à incepção de uma compreensão realista da linguagem
e do sentido. Contudo, a insistência do filósofo no fato de que as essências
O fato de não empregarem os legisladores as mesmas sílabas não nos deve indu- habitam um domínio abstrato e virtual, transcendente e distinto da realidade
zir a erro. Os ferreiros, também, não trabalham com o mesmo ferro, embora todos assim como percebida pelos sentidos, tem levado alguns comentadores a iden-
eles façam iguais instrumentos para idêntica finalidade. Seja como for, uma vez tificá-lo como um precursor importante também da perspectiva mentalista. De
que lhe imprima a mesma forma, ainda que o ferro seja diferente, não deixará por fato, o entendimento do céu platônico das idéias com uma espécie de "mente
isso o instrumento de ser bom, quer o seja fabricado aqui quer o seja entre os universal" pode ser visto como um passo relativamente natural. A ênfase na
bárbaros. (Crátilo, 390a, grifo meu). tese de que as essências são entidades externas ao sujeito, no entanto, faz com
que Platão garanta lugar seminal na linhagem de pensamento que compreende a
Sócrates faz menção aqui ao fato incontestável de que línguas diferentes — questão do sentido na linguagem em termos de sua relação com o real, que vê o
a língua grega e as dos bárbaros, isto é, as de todos os que não eram gregos — sentido como algo que é constitutivamente exterior e independente dos sujeitos.
463
462 INTRODUÇÃO À LINGÜÍSTICA
MUSSALIM • BENTES

Seja como for, vale registrar esse curioso magnetismo que parece atrair as o utilizo, por exemplo, em referência a uma fase da vida (ao dizer que alguém
visões realista e mentalista já nesse momento tão remoto e fundador. A solida- está na flor da idade), estou com isso violando essa relação normal de pertenci-
riedade básica entre as duas visões assim como "inauguradas" no pensamento mento. Para que a metáfora possa ser compreendida assim, como um gesto de
grego será retomada na seção final deste artigo. Poderemos antes disso, no en- transgressão com respeito às correlações que governam o emprego das pala-
tanto, constatar que esse mesmo magnetismo parece reproduzir-se de forma, vras, é preciso supor que tais correlações são estáveis e objetivas o suficiente
por assim dizer, invertida em Aristóteles — um dos mais explícitos e notáveis para poderem se converter em paradigmas de normalidade. A manifesta afini-
precursores de uma compreensão mentalista da significação na linguagem, que dade no que tange à compreensão desse aspecto do funcionamento básico da
é, no entanto, reconhecido também como figura central no paradigma realista. linguagem deverá ficar mais clara no que se segue; é importante agora com-
preendermos, porém, que essa sintonia geral deixa espaço para alguns descom-
passos cruciais nas filosofias da linguagem desses dois pensadores. Uma dessas
6. 0 QUE EXISTE NA VOZ SÃO SÍMBOLOS DAS AFECÇÕES DA ALMA diferenças, que merece destaque especial aqui, diz respeito justamente ao tipo
de entidade extralingüística que se supõe em cada caso constituir o significado
Vamos explorar agora alguns aspectos da perspectiva de linguagem ofere- das expressões.
cida no pensamento de Aristóteles, com foco em seu De interpretatione. Vere- Para compreender o que separa Platão e Aristóteles no que respeita a esse
mos como se pode identificar ali a semente da terceira e última concepção a ser ponto específico sobre a linguagem, é útil antes atentarmos para aquilo que, em
considerada neste trabalho, a saber, aquilo a que estive me referindo como uma termos bem mais amplos, tem sido reconhecido como o nervo do antagonismo
compreensão mentalista do sentido na linguagem. entre os dois filósofos: a recusa aristotélica da teoria platônica das Formas,
E essencial, nessa exploração, que comecemos por reconhecer e registrar brevemente descrita no início da seção anterior. O espírito geral da discórdia é
15

a afinidade geral que une os pensamentos de Platão e Aristóteles: o modo como bem capturado por F. M. Cornford:
inúmeros aspectos importantes de suas filosofias parecem convergir e comple-
mentar-se explica a recorrência do adjetivo composto "platônico-aristotélico" O platonismo desconfia dos sentidos e os condena. Os olhos e os ouvidos não são,
nas referências ao movimento intelectual inaugurado na Grécia e convertido para os platônicos, a janela da alma, abrindo-se para a realidade. A alma vê melhor
em perspectiva hegemônica na história subseqüente do pensamento ocidental. quando essas janelas estão fechadas e mantém uma silenciosa conversação consigo
Em que pesem as marcadas diferenças e acirrados antagonismos que, de forma mesma na cidadela do pensamento. O espírito de Aristóteles inclinava-se natural-
explícita ou implícita, individualizam os modos de ver desses dois autores, o mente para outra direção, para o estudo do fato empírico. Seu impulso era explorar
fato é que, aliados no combate às doutrinas sofísticas, Platão e Aristóteles pare- o campo da experiência com insaciável curiosidade. (2001[1932]:77).
cem em muitos campos mover-se por um vetor comum.
Essa convergência fundamental pode sem dúvida ser observada no que Assim inclinado, Aristóteles não se dispôs a aceitar que formas ideais pu-
concerne especificamente às concepções de linguagem de cada um: assim como dessem ter qualquer tipo de existência concreta, para além das coisas que perce-
Platão, Aristóteles parece partir do princípio de que um elo objetivo e estável bemos pelos sentidos — não aceitava o vermelho acima das coisas vermelhas, o
une as palavras a nominata extralingüísticos (cf. Modrak, 2001: 19-37). A se- cavalo arquetípico acima dos cavalos particulares (cf. Harris & Taylor, 1989:
guinte passagem da Poética foi recentemente apontada como indício eloqüente 22). O intelecto humano, este sim, teria o poder de abstrair as essências univer-
dessa pressuposição (Harris e Taylor, 1989: 20-1): sais a partir do contato com os particulares — mas a idéia seria o meio da
cognição e não, como era em Platão, o seu objeto (cf. Nef, 1995).
A metáfora consiste em dar a uma coisa o nome que pertence a outra coisa (p. 21). É no contexto dessa recusa que devemos entender a alternativa aristotéli-
ca à sugestão platônica de que o que estabiliza a linguagem é o seu compromis-
A afirmação de Aristóteles sobre a metáfora só faz sentido quando se par-
te do princípio de que, em circunstâncias normais, os nomes pertencem às coi-
sas. Por exemplo, o nome flor pertence à coisa FLOR, de tal modo que, quando 15. Sobre isso, ver Cornford (2001[1932] cap. IV); Marcondes (1997: 70 e segs.); Nef (1995: 20-28).
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440 MUSSALIM • BENTES 465
INTRODUÇÃO À LINGÜÍSTICA

so último com o mundo das Formas, sua vocação para representar as idéias A linguagem simbolizaria em primeiro lugar, então, aquilo que vai no
eternas que ali habitariam. Recusada a existência desse "terceiro domínio", o espírito, o resultado do impacto do mundo sobre o homem, o modo como aque-
que então estabilizaria a linguagem? Assim como Platão, Aristóteles precisa le o afeta. Aristóteles trata logo de reprimir, no entanto, qualquer eventual ten-
garantir uma ordem objetiva subjacente ao dinamismo e à variabilidade das dência de tomar-se como concessão ao relativismo esse seu gesto de deslocar
línguas humanas enquanto fenômenos culturais; deseja tanto quanto Platão re- do ser exterior (real) para o ser interior (alma) o lócus da significação primeira
futar a perspectiva radicalmente pragmática da linguagem insinuada no pensa- das palavras. Afirma sem rodeios que as afecções da alma são as mesmas para
mento sofista e evitar sobretudo as implicações ultra-relativistas que traz consi- todos, suprimindo com isso a possibilidade de ganhar espaço qualquer com-
go. A saída de Aristóteles aqui é compreender a linguagem como subordinada preensão segundo a qual a linguagem pudesse representar não uma ordem única
em primeiro lugar à capacidade mental ou racional humana — atribuir às ex- e objetiva, mas antes diferentes realidades subjetivas. O que garantiria a unifor-
pressões lingüísticas a função primeira de representar o que vai no espírito.
Assim, em De interpretatione (1, 16a3), ele nos diz: midade das afecções da alma seria em última instância o fato de reproduzirem
por semelhança a estrutura do real — as afecções são as mesmas para todos
Antes de tudo: o que existe na voz é símbolo das afecções da alma, e o que está porque "são as mesmas as coisas às quais essas afecções se assemelham". Ob-
escrito é símbolo do que existe na voz. E assim como as letras não são as mesmas serve-se aqui, então, que, embora haja em Aristóteles um gesto claro e distinto
para todos os homens, tampouco os sons vocais são os mesmos. No entanto, na direção do mentalismo, pode-se dizer que também para ele, como para Platão,
aquilo de que os sons vocais são signos, as afecções da alma, são as mesmas em a linguagem e o sentido são em última instância tributários da realidade e de sua
todos, como já são as mesmas as coisas às quais essas afecções se assemelham. ordem intrínseca.
No entanto, o real aristótelico não é, como o de Platão, "replicado" em
Essa passagem, que já foi descrita como "o texto mais influente na histó- dois mundos, aquele do que é aparente e variável e aquele do que é essencial e
ria da semântica", sintetiza o modo como Aristóteles, renunciando a recorrer
16 fixo. Como vimos, Aristóteles localiza no homem o espaço em que a dispersão
ao mundo virtual das essências platônicas, desenha um quadro para a lingua- e a variabilidade fenomênica se reduzem a uma ordem essencial. Assim sendo,
gem no qual se preserva a sua objetividade essencial. O movimento na direção a objetividade da linguagem supõe que ela represente em primeiro lugar aquilo
do mentalismo se anuncia logo na abertura da passagem: "o que existe na voz é que toma forma nesse espaço. Para compreendermos melhor o raciocínio de
símbolo das afecções da alma" — as palavras representam alguma coisa que Aristóteles convém, aqui, no entanto, situar em um contexto um pouco mais
tem lugar no interior do homem. Aqui cabe, no entanto, sermos prudentes e largo as suas reflexões sobre a linguagem.
sublinhar que o que se insinua no texto de Aristóteles é tão-somente o embrião A filosofia de Aristóteles confere uma dimensão prioritária à Lógica, campo
de uma perspectiva do sentido como representação mental. Pois é importante de investigação dedicado ao exame da faculdade mental distintiva que faz do
ter em vista que nem a alma é para Aristóteles um análogo do que hoje se homem um animal racional. Tal faculdade era, com efeito, considerada por Aris-
compreende como "a mente humana", nem as afecções da alma são exatamente tóteles como o órganon, o instrumento utilizado pelo homem em toda forma de
análogos das "entidades" que se supõe com freqüência que habitam um tal do- conhecimento, merecedor, portanto, de grande atenção. A Lógica se ocupa, pelo
mínio. Seja qual for, no entanto, o sentido mais adequado que venhamos a
17
menos desde Aristóteles, dos princípios que regem a articulação racional do
atribuir aos termos alma e afecção aqui, o fato inegável é que há nessa passa- pensamento, isto é, dos princípios de inferência formalmente válidos. E é em
gem de Aristóteles uma novidade importante com relação à tematização da lin- decorrência do interesse último em estabelecer tais princípios que Aristóteles
guagem em Platão: a substituição de uma díade, linguagem-real, por uma tríade, desenvolve boa parte de suas reflexões sobre a linguagem e o sentido. A con-
linguagem-alma-real. vergência fundamental entre um interesse pelo pensamento racional e uma aten-
ção à linguagem traduz-se desde logo na própria polissemia do termo logos no
16. Cf. Kretzman (1974: 3) apud Modrak (2001: 1). mundo grego: este significava, entre outras coisas, linguagem ou discurso, mas
17. As noções contemporâneas de mente são sem dúvida bastante mais tributárias do pensamento referia-se também justamente à capacidade racional humana que tanto interes-
moderno, notadamente de autores como Descartes e Locke. sava a Aristóteles.
466 MUSSALIM • BENTES
INTRODUÇÃO A LINGÜÍSTICA 467

Se tomamos em consideração, com efeito, o clássico silogismo:


Todo homem é mortal; outra" (1989: 26). Seria, portanto, sobretudo por responderem primeiramente
Sócrates é homem; ao propósito de representar essa espécie de linguagem interior universal que as
línguas humanas concretas poderiam, para Aristóteles, apesar de toda a sua
Logo, Sócrates é mortal, variabilidade, funcionar como instrumentos para o pensamento racional e para
percebemos nele uma estrutura articulada em diferentes níveis: conceitos (mor- a comunicação.
tal, Sócrates, homem) se articulam em pensamentos ou proposições (Todo ho- Se o gesto inaugural de um mentalismo é, sob esse ponto de vista, clara-
mem é mortal, Sócrates é homem, Sócrates é mortal), que, por sua vez, articula- mente discernível no pensamento de Aristóteles acerca da linguagem, não po-
dos, constituem a inferência como um todo. O paralelo lingüístico dessas cama- demos nos esquecer, por outro lado, que é também marca distintiva de sua filo-
das de articulação do pensamento é claro: conceitos/palavras, proposições/fra- sofia uma aderência maior ao real empírico — ele rejeita com veemência, como
ses, inferências/concatenações de frases. vimos, a postulação platônica de um real ideal ou virtual. Pode-se dizer que,
Assim, não é de surpreender que Aristóteles tenha dado grande espaço à nesse sentido, Aristóteles é mais realista ainda do que Platão. Como esse realis-
questão da linguagem nos tratados que constituem o que hoje denominamos a mo radical se combina em Aristóteles com o mentalismo por ele inaugurado? A
Lógica aristotélica. Uma das preocupações de Aristóteles é oferecer uma pers-
18
chave para essa questão está na sugestão aristotélica de uma isomorfia ou coin-
pectiva de linguagem a partir da qual as línguas humanas possam, a despeito de cidência entre a estrutura da linguagem universal do pensamento e a estrutura
toda a sua aparente variabilidade, ser vistas como uma base estável para a arti- do real: como vimos na passagem 16a3 de De interpretatione, as "afecções da
culação racional do pensamento, e como sistemas de representação suficiente- alma" são elas mesmas sucedâneos ou representações das "coisas reais"; e as
mente objetivos para funcionar como meios confiáveis de comunicação. É pre- coisas reais são as mesmas para todos. E levando em conta essa coincidência
ciso garantir, em outras palavras, que a linguagem funcione de tal forma que fundamental entre o plano do real, o plano dos conceitos e o plano das palavras
um termo, digamos, homem, signifique com objetividade a mesma coisa nas que podemos compreender Aristóteles, quando diz, em Das categorias (cap. IV):
múltiplas circunstâncias em que é utilizado — que se mantenha semanticamen- Cada palavra ou expressão enunciada sem nenhuma conexão designa uma das
te estável, por exemplo, nas duas ocasiões em que comparece num silogismo seguintes coisas: o que (ou Substância), o quanto (ou Quantidade), que tipo de
como aquele citado acima. Do contrário, estaria irremediavelmente comprome- coisa (ou Qualidade), em relação a que (ou Relação), onde (ou Lugar), quando
tida a empreitada de investigarem-se os princípios de articulação racional do (ou Tempo), conforme que atitude (ou Postura, Posição), sob que circunstâncias
pensamento. Nas palavras de Harris e Taylor, "a própria racionalidade humana (ou Estado, Condição), quão ativo, o que se faz (ou Ação), quão passivo, o que se
exige dos nomes uma estabilidade que no mínimo não colapse entre uma linha sofre (ou Afecção).
e outra de um silogismo" (1989: 25).
E nesse sentido, não é de surpreender tampouco que Aristóteles seja por A cena que se desenha no pensamento de Aristóteles é, em suma, mais ou
muitos considerado como um dos mais importantes precursores da idéia de uma menos a seguinte: os homens apreendem o mundo de forma universal e são,
linguagem abstrata do pensamento. Modrak (2001: 19), por exemplo, sugere pelo exercício de sua faculdade racional, capazes de reproduzir internamente,
que a filosofia da linguagem por ele insinuada "distinguiria entre uma lingua- sob a forma de uma espécie de linguagem universal, a ordem essencial da reali-
gem do pensamento (conceitos universais) e a linguagem falada (os sons vocais dade — suas entidades, propriedades e relações. As línguas humanas são, por
particulares)". No mesmo espírito, Harris e Taylor afirmam que, sob certo ân- sua vez, sistemas de símbolos convencionais destinados a representar essa lin-
gulo, a própria lógica aristotélica poderia ser concebida como o resultado de guagem universal. É pela postulação dessa cadeia duplamente simbólica — a
"uma tentativa de abstração das diferenças verbais que separam uma língua de linguagem simboliza o pensamento, que por sua vez simboliza o real — que se
pode dizer do mentalismo aristotélico que é um mentalismo realista.
Uma pergunta que poderia nos ocorrer nesse ponto, no entanto, é a seguin-
18. Notadamente, Das categorias (lógica dos conceitos), De interpretatione (lógica da proposição) e te: Mas as línguas humanas sempre representam a ordem do real? O próprio
Primeiros e segundos analíticos (lógica das inferências propriamente ditas).
Aristóteles não nos disse que podemos, por meio de metáforas, transgredir essa
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função, e dar às coisas nomes "que pertencem a outras coisas"? Aristóteles é de etc. — um real que, por assim dizer, se "ofereceria" de forma relativamente
fato o primeiro a reconhecer que as línguas têm outras funções, além de repre- transparente ao exercício simbólico do intelecto, com resultados que seriam,
sentar a estrutura do pensamento e do real: escreveu, com efeito, dois tratados por sua vez, representados de forma objetiva pelas diferentes línguas humanas.
dedicados a essas potencialidades adicionais: a Retórica, para a persuasão; e a O legado de Aristóteles para a história do pensamento lingüístico nem de
Poética, para a beleza. Tendo, no entanto, compreendido a faculdade racional perto se esgota nos elementos aqui brevemente reunidos sobre sua filosofia da
como o órganon, como a dimensão prioritária da existência humana, é natural linguagem. Espero que tenham ficado claros, no entanto, os seguintes pontos
que suas considerações sobre a linguagem reservem também um lugar mais principais: assim como Platão, Aristóteles reconhece na racionalidade a condi-
central para a função vinculada a essa faculdade. ção nuclear de funcionamento da linguagem. As palavras teriam para ele, assim
Concebendo assim a linguagem essencialmente como manifestação de nos- como para Platão, o propósito fundamental de representar objetivamente
sa capacidade racional, Aristóteles se vê então compelido a circunscrever a par- nominata extralingüísticos — essências universais e autônomas. A divergência
cela das línguas humanas que responderia por essa sua função mais essencial. básica entre os dois pensadores estaria no lócus dessas essências: na alma, para
Assim, ele nos diz em De interpretatione (17al-5): Aristóteles; no real para Platão. Apesar desse importante ponto de dissensão, as
afinidades entre os dois autores os opõem, em bloco, à perspectiva que encon-
Toda frase tem sentido (...); nem todas, contudo, apresentam algo, mas sim ape- tramos no pensamento sofista, na qual, como vimos, tais essências simples-
nas aquelas que podem ser verdadeiras ou falsas. (...) Uma prece, por exemplo, é mente não comparecem.
uma frase, mas não é verdadeira nem falsa. A presente investigação trata apenas
das frases declarativas; sejam deixadas de lado todas as outras, pois seu exame
cabe ao estudo da retórica ou da poética. 7. FECHO: ENTRE 0 ESSENCIAL E 0 RELATIVO

No campo da Lógica, da investigação dos princípios de articulação do pen- Exploramos neste texto três ângulos básicos que o pensamento da Anti-
samento racional, Aristóteles sugere, não há lugar senão para as frases declarati- güidade nos lega para o entendimento da linguagem e do sentido. Em suas ver-
vas — e, poder-se-ia acrescentar, para as frases literais. As proposições que po- sões gregas, as três perspectivas podem na verdade reduzir-se a duas, conforme
dem ser objetivamente verdadeiras ou falsas, e que por isso interessam à Lógica, a posição que ocupam no território intelectual cindido pela disputa maior em
não serão encontradas nos domínios da retórica ou da poética: uma prece não torno da questão da verdade.
cabe em um silogismo; um silogismo não comporta uma mesma palavra utilizada De um lado, teríamos uma compreensão das palavras como sucedâneos de
aqui em sentido literal, ali em sentido figurativo. A perspectiva de linguagem que entidades objetivas — essências, reais ou mentais, transcendentes em relação
deriva das preocupações de Aristóteles com a Lógica institui-se, então, demar- às experiências concretas e variáveis dos homens. Sob essa ótica, as línguas
cando o território daquilo que deveria ser considerado como a dimensão prioritária humanas seriam vistas em seu âmago como instrumentos de que dispomos para
ou nuclear do fenômeno lingüístico — o seu "âmago" literal e declarativo. falar objetivamente sobre as coisas, como sistemas de descrição ou representa-
Constituindo, por assim dizer, o paradigma da existência humana como ção de uma ordem externa universal. Outras vocações que poderíamos atribuir
um todo, a racionalidade presidiria, enfim, a confecção da linguagem em seu à linguagem, como a persuasão, a criação do belo etc., seriam ao mesmo tempo
plano mais essencial. Enquanto instrumento que nos permite dizer o que vai no derivativas e isoláveis desse propósito nuclear de representar as coisas, o qual
espírito, a linguagem traduziria em primeiro lugar os efeitos simbólicos univer- se configuraria na verdade como a própria condição de funcionamento da lin-
sais da experiência racional do homem no mundo. Perifericamente, poderia fran- guagem: se as palavras não tivessem por função primeira e imanente represen-
quear-nos também os territórios menos previsíveis da beleza e da persuasão, tar entidades estáveis e trans-subjetivas, o intercâmbio verbal racional estaria
mas em seu cerne estaria o pensamento lógico, objetivo e universal sobre as ele mesmo comprometido. Esse modo de ver a linguagem nasce, como vimos,
coisas. A ancorar este pensamento, a garantir a sua universalidade — e indireta- em íntima conexão com a orientação platônico-aristotélica, fundando-se, pois,
mente também a da linguagem —, estaria um real autônomo e estruturado, do- na crença em que verdades essenciais perenes prevalecem sobre os consensos
tado por si mesmo de substâncias, qualidades, quantidades, lugares, relações voláteis dos homens.
r
INTRODUÇÃO À LINGÜÍSTICA 471
4 40 MUSSALIM • BENTES

Do outro lado, teríamos a linguagem entendida não como um sistema de A sintonia com a tese de que a heterogeneidade é um fenômeno de super-
representação, mas antes como uma práxis circunstanciada pela cultura, pela fície — a idéia solidária a esta de que subsiste nas línguas humanas um fundo
e

história, pelas idiossincrasias de cada ocasião do contato verbal. No tom radical essencial — está, com efeito, por trás de inúmeros conceitos e escolhas meto-
que assume em sua versão grega, essa compreensão pragmática subtrai das pa- dológicas centrais em teorias lingüísticas, destacando-se aí, é claro, a própria
lavras qualquer sentido imanente, e desconhece na linguagem a nobreza de uma idéia fundamental de um sistema subjacente a governar os usos da linguagem.
vocação descritiva: as línguas humanas não poderiam ter por função primeira Do empenho para capturar e circunscrever esse núcleo essencial em meio à
descrever objetivamente qualquer ordem universal externa, simplesmente por- "massa heteróclita dos fatos", nascem distinções epistemológicas tão cruciais
que uma tal ordem não nos seria jamais franqueada. O que a linguagem traria quanto notoriamente problemáticas, como aquelas que separam o lingüístico e
em seu tecido seria antes um repertório dinâmico de opiniões, em última instân- o enciclopédico, o literal e o figurativo, o declarativo e o performativo, o se-
cia não-inventariáveis e dotadas de uma transparência e uma estabilidade rela- mântico e o pragmático, e assim por diante. Da resistência da linguagem para
tivas. Na condição de espaço privilegiado de cristalização e transformação dos desvelar no plano do sentido essa dimensão profunda decorre possivelmente a
nossos consensos, a linguagem desempenharia um papel não meramente des- infalível predileção histórica da Lingüística pelos fenômenos "de forma" —
critivo, mas antes constitutivo nos assuntos humanos. Como vimos, esse modo seu impulso maior, pelo menos até muito recentemente, nos campos da fonologia,
de entender o fenômeno lingüístico emerge alinhado ao ideário sofista, vinculan- morfologia e sintaxe.
do-se à idéia de que a verdade é múltipla e mutável, efeito passageiro dos con-
sensos relativamente precários que regulam as práticas humanas. Que o essencial resiste a desvelar-se é algo reconhecido desde sempre
Pode-se dizer então que os ângulos básicos para a compreensão da lingua- pelos que tomaram ou tomam para si a incumbência de desvelá-lo — o projeto
gem que o pensamento antigo nos oferece nascem sob a marca da tensão entre metafísico que domina a história do pensamento no ocidente pode de fato ser
essencialismo e relativismo que caracteriza a cena grega desde os primórdios compreendido como um esforço continuado de superação dessa resistência. Da
da Filosofia. Do fato de que a perspectiva platônico-aristotélica dominou a his- virada do século XX para cá, temos, no entanto, assistido à proliferação de
tória do pensamento ocidental decorre a correspondente hegemonia histórica de pensamentos filosóficos que reinvestem de sentido essa resistência, deixando
uma concepção essencialista da linguagem e do sentido. Esta parece ter se con- de tomá-la como um obstáculo a transpor, e passando a vê-la como um fator a
vertido, com efeito, em nossa compreensão de senso comum: a surpresa que em considerar — como um indício talvez favorável à orientação antiessencialista
geral experimentamos quando a comunicação falha nos dá uma medida de como manifesta no pensamento dos sofistas e no de outros autores que, através dos
tende a ser alta a nossa aposta tácita no funcionamento da linguagem como um séculos, mantiveram audível a sua voz marginal. Filósofos contemporâneos como
sistema de representação de significados essenciais fixos e compartilhados. Wittgenstein, Heidegger, Derrida, Foucault e muitos outros afinam-se no ques-
Variações muito refinadas desse "senso comum" forjado pela filosofia grega tionamento do projeto essencialista, numa investida clara para desestabilizar a
reincidem também no pensamento moderno e contemporâneo, em expoentes própria aposta milenar na existência de absolutos metafísicos. E o mais im-
20

como Descartes, Locke, Arnauld e Lancelot, Frege e Russell, para citar apenas portante para nós aqui: a razão reincidentemente apontada por esses autores
alguns nomes. E é essa a visão dominante também na história da Lingüística, para a falência da empreitada metafísica residiria justamente na adoção siste-
que, informada por essa longa tradição, ameaça desestabilizá-la em seu mo- mática de um entendimento equivocado da linguagem, a saber, uma compreen-
mento inaugural, com a revolucionária concepção não-substancialista de são como aquela que associei neste texto ao ponto de vista socrático. De dife-
Saussure, mas acaba por encampá-la sistematicamente de forma advertida ou rentes maneiras, tais autores defendem a pertinência de uma perspectiva alter-
inadvertida, manifestando-se, por exemplo, no próprio estruturalismo saussu- nativa de linguagem semelhante àquela que identifiquei aqui ao pensamento
riano, no gerativismo, e mesmo em muitas das vertentes que se reconhecem sofista, sugerindo, com efeito, que a admissão simultânea da volatilidade e da
como abordagens pragmáticas da linguagem. 19
centralidade da linguagem nos assuntos humanos expõe o desacerto da ambi-

19. Ver sobre a reverberação histórica da visada essencialista, Baker e Hacker (1984: caps. 1 e 2). 20. Ver, sobre isso, Rorty (1991).
440 MUSSALIM • BENTES 473
INTRODUÇÃO À LINGÜÍSTICA

ção metafísica, o equívoco da própria pretensão de se apreenderem essências REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


perenes e imutáveis.
A Ciência da Linguagem sem dúvida absorve esse "clima de opinião" ALSTON, P. W. Filosofia da linguagem. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
contemporâneo, em que se reacende a tensão entre essencialismo e relativismo ARISTOTLE. The complete works. 2. ed. Princeton: Princeton University Press, 1985.
adormecida durante tantos séculos de hegemonia da metafísica. O acirramento AUROUX, Sylvain. Filosofia da linguagem. Campinas: Editora da Unicamp, 2001.
dessa tensão marca na verdade o nascimento dessa ciência, manifestando-se de BAKER, Gordon & HACKER, Peter. Language, sense andnonsense. Oxford: Blackwell,
forma aguda no pensamento de Saussure, que pode sem dúvida ser contado 1984.
entre as vozes "desestabilizadoras" mais fortes do século XX. O desconforto BORGES, Jorge Luís. História universal de la infâmia, 1954.
epistemológico provocado pela plausibilidade de uma perspectiva não-essen- CASSIN, B. Aristóteles e o lógos: ensaios de fenomenologia comum. Trad. Luís Paulo
cialista da linguagem anuncia sua presença, no entanto, já nesse momento inau- Rouanet. São Paulo: Loyola, 1999.
gural, estando por trás das celebradas "contradições" do Curso (e talvez tam- CAVELL, Stanley. The Cavell reader. Cambridge: Blackwell, 1996 (seleção de artigos
bém das nem tão celebradas contradições da Lingüística que se fez depois de organizada por S. Mulhall).
Saussure). Pois, levado às últimas conseqüências, o relativismo embutido nessa CORFORD, F. M. Antes e depois de Sócrates. São Paulo: Martins Fontes, 2001 [1932],
perspectiva incompatibiliza-se com o projeto da ciência assim como entendida DANCY, J. & SOSA, E. A companion to epistemology. Oxford: Blackwell, 1992.
tradicionalmente, podendo ser associado, como de fato tem sido por alguns DENYER, Nicholas. Language, thought, and falsehood in ancient greek philosphy.
autores contemporâneos, aos perigos da "morte da epistemologia" — à idéia London: Routledge, 1993.
radical de que, no final das contas, jamais renunciamos de fato ao caminho do HARRIS, Roy & TAYLOR, Talbot. Landmarks in linguistic thought I. London:
mito na explicação das coisas, não passando de uma mitologia bem disfarçada o Blackwell, 1989.
conhecimento que nos acostumamos a tomar como verdadeiro, racional e uni- IGLESIAS, Maura. O que é filosofia e para que serve. In: REZENDE, Antonio. (org.).
versalmente válido (cf. Williams 1992: 88-91). Curso de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.
. A relação necessária entre a primeira parte e a parte central do Sofista de
O impacto epistemológico e a pertinência de perspectivas não-essencialistas Platão. Boletim do CPA. Campinas, n. 15, p. 143-155, 2003.
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contemporânea, havendo espaço para entendimentos bem menos radicais do que NUSSBAUM, M. C. (orgs.). Language and logos. Cambridge: Cambridge Uni-
esse. As ciências em geral absorvem a polêmica de forma desigual, muito variada versity Press, 1982.
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como seu objeto o próprio nervo contemporâneo da controvérsia, a linguagem. MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
A complexidade da tensão epistemológica entre relativismo e essencialis- 1997.
mo, e do lugar da linguagem nesse contexto, nem de longe se reduz à discussão MODRAK, Deborah K. Aristotle's theory of language and meaning. Cambridge:
que empreendi neste texto. O mapa que desenhei aqui é, nesse sentido, um mapa Cambridge University Press, 2001.
"de turista", simplificado e um pouco artificial. Deve servir, no entanto, ao PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.
propósito de iluminar de alguma forma os muitos caminhos que se oferecem PESSANHA, José A. Platão e as idéias. In: REZENDE, Antonio. (org.). Curso de filo-
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