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UMA IDEIA DE PAISAGEM ATRAVÉS DA OBRA DE ALBERTO CARNEIRO

Catarina Rosendo
Comunicação apresentada ao Colóquio Internacional Arte e Paisagem, Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 29-30 Setembro 2006

A obra do escultor Alberto Carneiro (São Mamede do Coronado, 1937) é


caracterizada, desde o início da sua actividade expositiva, por um trabalho com e na
natureza, operando, entre outras coisas, aquilo que pode ser descrito como uma
reflexão sobre a paisagem. Como princípio basilar de abordagem à sua obra é
necessário, deste modo, procurar averiguar qual o conceito de paisagem que lhe
subjaz, sendo que um enfoque na sua produção dos anos 70, marcada pela
visibilidade processual decorrente de um sentido de experimentação e pesquisa,
permite esclarecer melhor essa questão.
A aproximação do escultor à natureza tem assumido, ao longo dos anos,
vários contornos, desde logo pela utilização sistemática da madeira e da pedra, a
que Alberto Carneiro se refere, diversas vezes, como a “árvore” e a “montanha”1,
naquilo que é uma identificação operativa entre os materiais da escultura e as
matérias da natureza, ou ainda mediante um processo de sistematização e
decomposição da ideia geral de natureza nos elementos essenciais do ar, da água,
da terra e do fogo, situação que percorre toda a sua obra e que é claramente visível
numa obra com Os quatro elementos – segunda homenagem a Gaston Bachelard
(1969-70).
Uma outra manifestação da presença da paisagem no seu trabalho é a
transposição para o espaço interior e culturalmente codificado da galeria de arte ou
do museu de situações existentes na natureza e na paisagem rural, como é o caso
de Um campo depois da colheita para deleite estético do nosso corpo (1973-76), em
que o escultor procede à recriação de um campo de medas de feno e/ou centeio
num espaço interior, ocupando-o na totalidade. Pode referir-se ainda O canavial:
memória-metamorfose de um corpo ausente (1968) ou Uma floresta para os teus
sonhos (1970), onde essa mesma passagem, feita através do recurso à

1
Por exemplo, em “Alberto Carneiro em entrevista com Maria Helena de Freitas”, Alberto Carneiro,
exposição antológica. Lisboa, Porto : Centro de Arte Moderna – Fundação Calouste Gulbenkian,
Fundação de Serralves, 1991, p. 196.
manipulação formal das canas e dos troncos de árvores que constituem,
respectivamente, o canavial e a floresta, convoca um segundo nível de recriação
simbólica que se sobrepõe ao movimento, também ele simbólico, de transposição de
situações naturais e/ou rurais para o universo da arte.
Em situação inversa, um outro conjunto de obras revela a saída dos lugares
de apresentação da obra de arte em direcção ao exterior. Essa saída surge
materializada, mais uma vez, sob a forma de espaços onde a ideia de paisagem
está presente, tanto na sua forma “natural”, ou seja, onde a presença humana não
se fez sentir, até então, na sua constituição morfológica, como na sua forma rural, ou
seja, atravessada pela marcas do trabalho agrícola. Neste âmbito, contam-se obras
como a Operação estética em Vilar do Paraíso (1973), a Operação estética no Alto
de São João (Aregos) (1974-75), e Os sete rituais estéticos sobre um feixe de vimes
na paisagem (1975), caracterizadas pela realização de actos performativos onde o
escultor estabelece uma relação do seu corpo com as matérias naturais e/ou
agrícolas.
Dispensando a presença de assistência excepto a do fotógrafo que regista
essas acções, estas obras revelam, em traços genéricos e nas palavras do escultor,
um processo de elaboração em três fases, consistindo na «prospecção,
levantamento e selecção» dos lugares e das matérias onde a acção decorre, na
«marcação, transformação e posse» estética desses mesmos lugares e matérias e,
finalmente, na sua «nominação como arte»2. Posteriormente, estas acções são

2
Este processo, com uma ou outra variação, é comum às duas Operações estéticas e surge
esclarecido nas próprias obras, onde todos os passos da acção são descritos verbalmente e
documentados fotograficamente. No caso de Os sete rituais estéticos sobre um feixe de vimes na
paisagem, o mesmo tipo de processo desenvolve-se ao longo de sete fases, também elas descritas,
mas desta vez apenas fotograficamente, pois a sua descrição verbal surge somente no álbum Os sete
rituais estéticos sobre um feixe de vimes na paisagem, 1974-75. Porto : ed. do autor, 1976. Aqui, as
sete fases surgem enunciadas, mais uma vez seguindo as palavras de Alberto Carneiro, como a
selecção do «elemento agregador» (feixe de vimes) que «altera as relações do espaço-paisagem e
suscita os factores estéticos»; a «marcação das relações estéticas sobre o horizonte»; a «marcação e
meditação da posse sobre o elemento agregador das relações estéticas»; a «marcação das relações
estéticas periféricas», a «selecção e marcação de alguns elementos qualificativos do sistema de
relações estéticas»; a verificação do «sistema de relações como permanente estética num espaço e
num tempo definidos»; e, finalmente, a «codificação do ritual num espaço de arte», onde «o espaço e o
tempo do sítio da arte» são assumidos como «componentes variáveis». Refira-se ainda que a
apropriação estética das medas e do feixe de vimes, na Operação estética de Vilar do Paraíso e em Os
sete rituais estéticos sobre um feixe de vimes na paisagem, são uma pista introdutória ao plano de
transportadas para o espaço da galeria de arte ou do museu sob a forma de
instalações fotográficas, dispostas segundo uma ordem previamente estabelecida e
de acordo com as condições espaciais existentes – sendo que, no caso de Os sete
rituais estéticos…, a organização da peça conta ainda com a presença, no local de
exibição, do próprio feixe de vimes que esteve na sua origem 3.
Enunciadas, em traços gerais, as formas pelas quais a natureza e a
paisagem se apresentam nas obras de Alberto Carneiro, a questão inicialmente
colocada pode ser reformulada com mais definição: qual o sentido que a natureza e
a paisagem assumem no trabalho do escultor ou, dito ainda de outro modo, como é
que a natureza, a paisagem e os seus elementos concretos e simbólicos podem ser
entendidos na sua obra?
O primeiro passo para esclarecer esta questão foi procurar perceber de que
modo a presença da paisagem tem vindo a ser entendida pela produção teórica e/ou
crítica que, ao longo dos anos, tem acompanhado a obra do escultor. Uma primeira
evidência surgiu de imediato: durante bastante tempo, o conceito de paisagem,
quando mencionado, era sistematicamente usado de forma genérica para referir a
relação do escultor com a natureza, o que quer dizer que, se por um lado, não era
avançada qualquer explicação sobre o significado conferido ao termo, por outro lado
tal implicava também uma frequente indistinção entre “paisagem” e “natureza”. Por
exemplo, e a partir do trabalho do escultor, Ernesto de Sousa refere-se à «[m]emória
e re-invenção do corpo (…) na paisagem», e Fernando de Azevedo enuncia «a
reinvenção conceptual e sensível da natureza»4.
Pode dizer-se que a “paisagem” surgiu sempre como um dado adquirido na
obra de Alberto Carneiro, nunca tendo sido efectuada uma explicitação dos sentidos
que a palavra encerra, seja em termos gerais, seja na sua aplicação concreta às

estudos que Alberto Carneiro desenvolverá, entre 1976-77 e através de uma subsídio de investigação
concedido pelo Serviço de Belas Artes da Fundação Calouste Gulbenkian, em torno das «formas
resultantes das actividades rurais que impliquem um comportamento estético».
3
Na primeira ocasião em que foi exposta, na Galeria Alvarez (Porto, 1974), integrada no Ciclo
Internacional Perspectiva 74, organizado por Egídio Álvaro e Jaime Isidoro, a Operação estética em
Vilar do Paraíso contava também com quatro caixas, cheias de plantas de milho (retiradas das medas
que serviram de base à intervenção de Alberto Carneiro) e de faixas que tinham escritas as frases que
acompanham também as fotografias da peça. Nas suas apresentações subsequentes, a obra deixou,
no entanto, de integrar estes elementos, circunscrevendo-se apenas aos conjuntos fotográficos.
4
Alberto Carneiro. Dezembro 1968 – Setembro 1976. Porto : Centro de Arte Contemporânea – Museu
Nacional Soares dos Reis, 1976, s/ nº p.
suas instalações escultóricas. Os motivos que explicam esta situação devem, no
entanto, ser procurados para lá do âmbito estrito da obra do escultor e do que sobre
ela se escreveu. Eles assentam, sobretudo, e recorrendo às palavras de Santiago B.
Olmo, no «descrédito do género pictórico da paisagem no pós-impressionismo»5.
Com efeito, mesmo após uma série de intervenções artísticas em espaços
naturais, que teve lugar no final do anos 60, nos Estados Unidos e em Inglaterra
(naquilo que se denominou como Land Art e Earth Works), as repercussões teóricas
que geraram focaram-se mais, por exemplo, no entendimento dessas práticas como
resultado de uma vontade de anulação da objectualidade comercializável da
actividade artística, garantindo um campo de liberdade criadora, independente das
lógicas do mercado, para o artista, do que propriamente na procura de uma
redefinição da arte a partir das relações que essas mesmas práticas estabeleciam
com a paisagem – e onde esta adquire, potencialmente e também, novos valores.
Só mais tarde, com efeito, começaram a surgir alguns estudos em que o conceito de
paisagem, bem como alguns termos a ela associados (como o sublime e o
pitoresco), foi sendo pesquisado no seu potencial de gerar um discurso teórico em
torno da actividade artística que pudesse dar conta das transformações que nela
ocorreram ao longo das últimas décadas6.

5
Santiago B. Olmo – “Alberto Carneiro: a natureza como vivência”, Alberto Carneiro. Santiago de
Compostela : Centro Galego de Arte Contemporánea, 2001, p. 126. Este descrédito relaciona-se, para
Kenneth Clark, e naquele que é um estudo precursor sobre a presença da paisagem na actividade
artística ocidental ao longo dos tempos, com a impossibilidade de manutenção do conceito de
paisagem perante os avanços da técnica e da ciência, que tiveram como resultado a perda da visão
antropocêntrica, da unicidade da natureza e da própria ideia de ordem natural. Kenneth Clark –
Paisagem na arte (1949). Tradução: Rijo de Almeida. Lisboa : Ulisseia, 1961.
6
Entre as primeiras reflexões que cruzaram a arte contemporânea com a questão da paisagem
contam-se, por exemplo, as de Robert Morris, que desenvolve, a partir de um visita ao Vale de Nazca,
Peru, um conjunto de ideias acerca do investimento da subjectividade na apreensão de manifestações
artísticas em que o objecto perde importância face ao espaço e ao contexto em que se inscreve (Robert
Morris – “Aligned with Nazca”, Continuous project altered daily: the writings of Robert Morris. Cambridge
Mass., London, New York : The MIT Press, Solomon R. Guggenheim Museum, 1993, p. 159-164), e
também as de Robert Smithson, nomeadamente no seu ensaio “Frederick Law Olmsted and the
dialectic landscape” (1973) (Jack Flam (ed.) – Robert Smithson: the collected writings. Berkeley, Los
Angeles, London : University of California Press, 1996, p. 157-171). Refira-se ainda o conjunto de textos
breves de Giuseppe Penone, cuja aproximação à essencialidade das matérias naturais tem pontos de
contacto com Alberto Carneiro (Giuseppe Penone – Respirer lʼombre. Préface de Didier Semin. Paris :
École nationale supèrieure des beaux-arts, 2004) e, claro, os próprios textos de Alberto Carneiro,
escritos ao longo do tempo sob a forma de “Notas para um diário”, de uma “Entrevista imaginada”, ou
Não é por acaso, então, que uma primeira reflexão sobre os termos
“natureza” e “paisagem” na obra de Alberto Carneiro, levada a cabo por João
Pinharanda, seja ainda subsidiária de uma noção de paisagem que, na sua
qualidade de género pictórico tal como foi praticado durante séculos, se traduz num
«cenário passivo de uma descrição ou enquadramento mais ou menos activo de
uma acção narrativa». Para Pinharanda, a diferença entre “paisagem” e “natureza”
reside na capacidade desta última «deixa[r] de ser exterioridade (uma imagem que
se procura reproduzir) para ser presença energética e física»7. Parece ser a partir
deste entendimento do que é a natureza que o mesmo autor, anos mais tarde,
formula a ideia de que «[a]s esculturas de Alberto Carneiro constroem paisagens
totais», pela forma como «estruturam o espaço físico (o alto e o baixo, a horizontal e

de “aforismos”, e de onde se destacam as “Notas para um manifesto de uma arte ecológica”, Revista
de Artes Plásticas (dir.: Egídio Álvaro), Porto, nº 1, Out. 1973, p. 6-9. Do lado da teoria e da crítica,
refira-se o já muito citado ensaio de Rosalind Krauss sobre o “campo expandido”, onde o
questionamento da escultura contemporânea é feito a partir do seu confronto ou relação quer com a
arquitectura quer com a paisagem (Rosalind Krauss – “La escultura en el campo expandido” (1978), La
originalidad de la vanguardia y otros mitos modernos (1985). Versión española de Adolfo Gómez
Cedillo. Madrid : Alianza Editorial, 1996, p. 289-303); a utilização, por parte de Yves-Alain Bois, de um
conceito da pintura de paisagem, o pitoresco, para analisar Clara-Clara, a peça de exterior criada por
Richard Serra para assinalar e integrar a sua exposição no Centre Georges Pompidou, Paris, em 1983
(Yves-Alain Bois – “A picturesque stroll around Clara-Clara” (1983), Hal Foster, Gordon Hughes (ed.) –
Richard Serra. Cambridge Mass, London : The MIT Press, 2000, p. 59-96); ou ainda a análise
comparada do conceito ocidental de sublime e da pintura de paisagem tradicional chinesa, por parte de
Yolaine Escande (“Des véhicules du sublime dans le paysage chinois”, Chrystèle Burgard; Baldine Saint
Girons (com.) – Le paysage et la question du sublime. Association Rhônes-Alpes des conservateurs,
Réunion des musées nationaux, 1997, p. 149-162). Entre os numerosos estudos e ensaios que têm
vindo a ser publicados recentemente refira-se, ainda, Anne Cauquelin – Lʼinvention du paysage. Paris :
Plon, 1989; Augustin Berque – Les raison du paysage. s.l. : Hazan, 1995; Javier Maderuelo (dir.) – El
paysage. Huesca: Arte y naturaleza. Actas del II curso, Huesca, 23-27 septiembre 1996. Huesca :
Diputación de Huesca, 1997; Alain Roger – Court traité du paysage. Paris : Éditions Gallimard, 1997;
Gilles A. Tiberghien – Nature, art, paysage. s.l. : Actes sud, École nationale supèrieure du paysage,
Centre du paysage, 2001; Simon Schama – Landscape and memory. London : Harper Collins, 1995; W.
J. T. Power – Landscape and power, 2ª ed.. Chicago, London : The University of Chicago Press, 2002;
Luca Galofaro – Artscapes. El arte como aproximación al paisage contemporáneo / Art as an approach
to contemporary landscape. Traducción: Maurici Pla, Moisés Puente; Introducción: Gianni Pettena.
Barcelona : Gustavo Gilli, 2003; e Francesco Careri – Walkscapes. El andar como práctica estética /
Walking as an aesthetic practice. Traducción: Maurici Pla; Introducción: Gilles A. Tiberghien. Barcelona
: Gustavo Gilli, 2003.
7
João Pinharanda – “Pelo lado do corpo”, Alberto Carneiro. Ainda a memória do corpo sobre a terra.
Esculturas e desenhos. Porto : Galeria Nasoni, 1989, s/ nº p.
a vertical, o dentro e o fora) e o espaço interpretativo (o natural e o cultural, o eros e
o tanatos)». Nestes termos, a paisagem surge como o «espaço exterior de que
somos parte»8 integrante.
Aproximando-se mais do conceito de paisagem que interessa para o
presente estudo e que resulta do próprio entendimento que a obra de Alberto
Carneiro opera sobre ele, Delfim Sardo, em 1997, considera que o trabalho do
escultor «convoca uma memória específica que se liga e é descendente da tradição
de pensamento sobre a paisagem» e onde esta surge como «lugar de uma
evocação»9. A questão da memória associada à paisagem está também presente
quando Raquel Henriques da Silva, em 2001, relaciona a «essencialidade das
opções estéticas» de Alberto Carneiro com a «paisagem antiquíssima em que
nasceu»10.
Gradualmente, a procura de uma compreensão mais aprofundada sobre a
relação da paisagem com a actividade artística vai ganhando algum terreno. Em
1999, no texto do catálogo de uma exposição colectiva intitulada Paisagens no
singular, Miguel Wandschneider e Nuno Faria estabelecem uma diferença
fundamental entre “natureza” e “paisagem”, referindo como a primeira «preexiste ao
olhar» enquanto que a segunda «é formada pelo olhar», o que pressupõe «a
interacção de um sujeito e a realidade que é observada ou representada»11. Dentro
da mesma ordem de ideias e apoiando-se no sublime kantiano, a paisagem surge
para Bernardo Pinto de Almeida, como o que «transita entre objecto e sujeito (…)
quando a experiência estética do mundo tem lugar.»12
A noção de paisagem vai assim, e aos poucos, penetrando nos discursos
teóricos sobre a obra de Alberto Carneiro, assumindo-se, como tem acontecido por
vezes com a crítica e a historiografia espanholas13, como o eixo analítico preferencial

8
João Pinharanda, “Sobre os elementos”. Porto : Galeria Quadrado Azul, 1998.
9
Delfim Sardo – “A invenção da floresta”, A Oriente, na Floresta de Ise Shima. Lisboa : Centro de Arte
Moderna José de Azeredo Perdigão – Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, s/ nº p.
10
Raquel Henriques da Silva – “Os corpos da escultura”, Alberto Carneiro. Santiago de Compostela :
Centro Galego de Arte Contemporánea, 2001, p. 24.
11
Miguel Wandschneider; Nuno Faria – “Introdução”, Paisagens no singular. Lisboa : Ministério da
Cultura, Instituto de Arte Contemporânea, 1999, p. 13.
12
Bernardo Pinto de Almeida – “Os nomes de uma obra”, Alberto Carneiro. Ser no não ser. Lisboa,
Porto : Galeria Fernando Santos, 2006, p. 14.
13
A crítica e a historiografia espanholas têm acompanhado o trabalho de Alberto Carneiro desde a sua
primeira exposição individual em Espanha, em 1999, na Diputación de Huesca, e sobretudo depois da
na abordagem ao seu trabalho. E é precisamente neste contexto que surgem dois
tipos de considerações que parecem, em si, antagónicos. Com efeito, Santiago B.
Olmo, no texto já citado, escreve como, no século XX, a arte procurou «desprender-
se (e/ou libertar-se) da ideia pictórica de paisagem como representação»,
enveredando por uma «dimensão mais experiencial e corporal, de relação directa
com a natureza»14. O distanciamento do pictórico e a aproximação ao experienciável
são, para este autor, os dois movimentos que explicam como

«[a] natureza sustenta a obra de Alberto Carneiro mais como resultado de uma
experiência interpretativa e vivencial do que como um argumento ou uma temática.
As suas diferentes séries e trabalhos incidiram, desde o início da sua carreira,
naqueles aspectos nos quais a natureza se sobrepõe a toda a noção visual de
15
paisagem e encontra uma conexão corporal com o humano.»

Por outro lado, Alberto Ruiz Samaniego evidencia a «fórmula essencialmente


mediadora» de que se revestem as noções de “árvore” ou de “natureza” na obra do
escultor e chama a atenção para o «impulso simbólico» que é detectável, por
exemplo, nos seus desenhos. Para este autor, este impulso pressupõe «una
tentativa de dominio de lo inaprensible» que parte da noção de imagem enquanto

«herramienta dialéctica entre el individuo y el terrritorio, una forma mediatizada de


la percepción y, al tiempo, un refrendo del proceso a través del cual alguien se
16
hace consciente de lo que existe y le rodea.»

O modo como, por um lado e para Santiago B. Olmo, a obra de Alberto


Carneiro resulta de uma «experiência interpretativa e vivencial» que implica uma
«conexão corporal» com a natureza, e por outro lado e para Alberto Ruiz
Samaniego, o facto de o trabalho do escultor assentar num «impulso simbólico»
onde a imagem é uma «forma mediatizada da percepção», que surge como
«ferramenta dialéctica entre o indivíduo e o território», fornece um excelente ponto

grande retrospectiva apresentada no Centro Galego de Arte Contemporánea, em Santiago de


Compostela, em 2001.
14
Santiago B. Olmo, op. cit., p.126.
15
Idem, p. 126.
16
Alberto Ruiz Samaniego – “Al otro lado de la naturaleza”, Árboles. Alberto Carneiro / As árvores
florescem em Huesca. Huesca : Centro de Arte y Naturaleza. Fundación Beulas, 2006, p. 13 e 19-20.
de partida para ensaiarmos uma reflexão sobre a presença da paisagem no seu
trabalho.
Há uma obra de Alberto Carneiro que coloca exemplarmente o problema
presente no aparente antagonismo que encontramos nos excertos supracitados dos
dois autores espanhóis. Trata-se de Escultura dentro da floresta (1968-69), uma das
peças que formam As três extensões da natureza17. Aqui, uma sucessão de ramos,
assente em perfis e/ou chapas metálicas pintados de preto e ligados entre si por
cordas também pretas, alinha-se num percurso que parte do chão e sobe por uma
parede, servindo de base a um conjunto de fotografias a preto e branco que captam
a imagem de uma floresta. Trata-se da recriação de um pedaço de paisagem que,
convocando inicialmente a presença do corpo, pela sugestão de um caminho que
pode ser percorrido, efectua uma alteração de plano que indica também que,
gradualmente, o corpo se desinveste de protagonismo sensitivo a favor do campo de
visão aberto pela imagem bidimensional da floresta colocada na parede, ao nível do
olhar.
Escultura dentro da floresta resolve-se em dois passos diferenciados que se
sucedem, de forma inter-relacionada mas mesmo assim perfeitamente discerníveis
um do outro: de um lado a realidade, que os ramos tautologicamente apresentados e
a exploração do gesto corporal, como gerador de sentido, evidenciam; por outro lado
a sua imagem, codificada no espaço histórico, clássico, da representação. Ou seja,
esta obra revela a simultaneidade da realidade e da sua imagem, apresentando-se e
representando ao mesmo tempo. Decompondo o seu título, a Escultura dentro da
Floresta pode bem ser a Arte dentro da Paisagem, ou a Imagem dentro da
Realidade…
O que está implícito nesta obra é o modo como, a partir da noção de
paisagem, se pode estabelecer uma relação entre a experiência de um corpo e a
formação de uma imagem. É a isto mesmo que Alberto Carneiro se refere quando,
num dos muitos textos que desde sempre têm acompanhado as apresentações do
seu trabalho, diz:

17
As três extensões da natureza é o nome genérico de três instalações escultóricas (para além de
Escultura dentro da floresta, Árvore dentro da escultura e O mar prolonga-se em cada um de nós, todas
de 1968-69) que foram feitas a partir dos desenhos-projectos contidos em O caderno preto (1968-71),
obra-súmula do trabalho efectuado por Alberto Carneiro em Londres, no decurso do Advanced Course
in Sculpture da Saint Martinʼs School of Art.
«a minha formação, as minhas convicções estão ligadas a todo o mundo da minha
infância, no qual (…) tive que inventar quase tudo de que precisava, ao nível da
minha aprendizagem natural, a partir dos materiais da terra, construir o meu
mundo nela, compreendê-la ludicamente por dentro e estruturar assim um
esquema corporal que foi sendo, cada vez mais, a imagem das coisas da terra,
18
transformadoras da minha semelhança.»

Através destas linhas apercebemo-nos que, em primeiro lugar, a infância


surge, para o escultor, como um período de formação em que, ao contrário da
formação escolar ou académica, tem lugar uma aprendizagem de tipo «natural».
Devemos referir como, e antes de ingressar no curso de Escultura da Escola
Superior de Belas Artes do Porto, em 1961 e com 24 anos, Alberto Carneiro viveu
até aos 21 anos de idade na sua terra natal, São Mamede do Coronado, uma aldeia
da região maiata a cerca de 21 km do Porto, onde desenvolveu a profissão de
santeiro durante aproximadamente dez anos. Apercebemo-nos também, e em
segundo lugar, que a estruturação do seu esquema corporal é feita à «imagem das
coisas da terra». Estas «coisas da terra» que Alberto Carneiro refere reportam-se
directamente à paisagem e à vida rural da região do Vale do Coronado.
Precisamos por isso de perceber melhor como funciona o esquema corporal.
Esta é uma noção desenvolvida em 1923 pelo neurologista austro-americano Paul
Schilder e designa, em termos latos, a formação da estrutura cognitiva de um
indivíduo a partir de um corpo que se move e que interage psíquica e socialmente
com o meio. Enquanto suporte da identidade e constituindo-se progressivamente
durante a infância, o esquema corporal forma-se como uma imagem, ou
representação, que permite situar, de modo integrado, o nosso corpo no tempo e no
espaço, ou seja, permite-nos formar uma consciência de nós próprios19.
O que está implícito na noção de esquema corporal é também a ideia de
“corpo-vivência”, que está na base das teorias fenomenológicas de Husserl e nos
seus desenvolvimentos depois efectuados por Maurice Merleau-Ponty e Gaston
Bachelard, autores importantes na formação teórica de Alberto Carneiro, já no

18
“Entrevista imaginada”, Alberto Carneiro. Lisboa, Basel : Galeria Quadrum, Art 10ʼ79, 1979, s/ nº p.
19
Para mais elementos sobre o esquema corporal, veja-se Daniel Widlöcher – “Esquema corporal”,
Roland Doron, Françoise Parot (dir.) – Dicionário de psicologia (1991). Lisboa : Climepsi Editores, 2001,
p. 299-200; e Didier Houzel – “Esquema corporal”, Didier Houzel, Michèle Emmanuelli, Françoise
Moggio (coord.) – Dicionário de psicopatologia da criança e do adolescente (2000). Lisboa : Climepsi,
2004, p. 351-352.
período escolar. Com efeito, o escultor tem referido várias vezes como as leituras,
extra-curriculares, de Bachelard, o motivaram para a descoberta das qualidades
sensitivas dos espaços e das matérias, e sobretudo para o modo como estas
qualidades são despoletadas por um trabalho da memória ou da rememoração. No
caso da obra de Alberto Carneiro, os espaços e as matérias em questão são os da
realidade natural ou paisagística, como já vimos. Mas como se concretiza esta
situação ao nível do seu trabalho?
Tomemos como exemplo uma obra realizada em 1977, Meditação e posse
do espaço/paisagem como obra de arte. Este trabalho foi feito para um ciclo de
exposições intitulado Un espace parlé. A spoken space que decorreu na Galeria
Gaëtan, em Genebra, entre 1977-79 e que reuniu 47 artistas em 47 exposições
individuais com a duração de uma semana cada, sendo que o ponto comum a todas
elas era a utilização do dispositivo sonoro. Inicialmente, por isso, esta peça de
Alberto Carneiro é apenas uma gravação áudio, com a duração de 4ʼ40ʼʼ, que ficou
registada no atendedor de chamadas da galeria e activa durante as 24 horas do dia,
pelo período que durou a exposição. Só depois passou a ser acompanhada pelo
conjunto de oito folhas que têm escritas (com alguns desenhos esquemáticos) a
acção que se ouve na gravação.
Através da gravação ou do texto, tomamos contacto com uma voz (que no
registo áudio é a do escultor) que, usando a primeira pessoa do singular, se
descreve «sentado na terra», de «pernas cruzadas», numa posição de meditação a
partir da qual procede à identificação e enumeração dos elementos que formam a
paisagem a toda a sua volta. Em quatro momentos distintos, o seu corpo surge
virado, sucessivamente, para as quatro orientações-tipo do ciclo do dia: virado a
Este ao amanhecer, com o sol a nascente; virado ao Sul, ao meio-dia, com o sol a
pino; virado a Oeste ao entardecer, com o sol a poente; e virado a Norte à meia-
noite, sob a luz do luar.
A descrição do que está a sua volta é objectiva e sintética, despida de
adjectivos, e corresponde a três planos diferenciados: em primeiro lugar, o horizonte,
onde se desenham as grandes massas que se recortam contra o céu; em segundo
lugar, o plano intermédio, onde as coisas ganham materialidade: um pequeno
bosque, os campos lavrados, os conjuntos de rochedos, o rio serpenteante, as
ondas; em terceiro lugar, o plano próximo, onde se divisam os campos separados
por muros de pedras soltas, as árvores, a vegetação, as dunas, os seixos, as
pedrinhas.
A estes três planos observacionais sucede-se, se bem que não nomeado
como tal, um quarto plano, de carácter sensorial, que tem como única indicação a
frase «sob o meu corpo flores silvestres» e que manifesta a passagem de um campo
visual aberto à percepção para uma incorporação física aberta à sensação. Nestes
termos, a paisagem não é apenas o conjunto dos elementos naturais que está à
nossa frente para vermos, numa situação de exterioridade em relação à presença do
nosso corpo, mas a sua realidade surge também pelo envolvimento activo do sujeito
que a vivencia.
Outros elementos, que não são explícitos neste trabalho, apontam para um
segundo nível de entendimento, nomeadamente o facto de a paisagem que aqui se
descreve não existir, ou seja, ela resulta de uma condensação de memórias de
várias paisagens percorridas pelo escultor. Do mesmo modo, todo o processo de
meditação que está presente na obra também não aconteceu na realidade20. Esta
obra encerra, por isso, um duplo sentido imagético: por um lado, a paisagem aqui
descrita é uma representação, ou uma imagem mental das matérias reais e
concretas que formam a paisagem, sendo esta constituída através da sua
rememoração. Por outro lado, o facto de esta obra assentar, quase exclusivamente,
na palavra (escrita ou falada) – e não em signos pictóricos – reenvia todo o processo
rememorativo que esteve na sua origem para o próprio espectador que, lendo ou
ouvindo este texto, procede à sua própria representação de um monte, de uma
árvore ou de uma duna, isto é, configura a sua própria ideia de paisagem, a partir da
sua própria experiência sensorial e motora da realidade concreta que forma esse
tipo de espaço.
Recordando como, a partir da noção de esquema corporal, a identidade do
indivíduo se forma em termos projectivos e imagéticos em relação ao que o rodeia, a
paisagem surge, então, como um dos termos da realidade com o qual o sujeito
estabelece uma relação de reflexo, ou semelhança, ou seja, sujeito e paisagem
projectam a imagem/representação um do outro como se de um jogo de espelhos se
tratasse. É esta uma das pistas para entender uma das obras mais interessantes de
Alberto Carneiro, Arte corpo/corpo arte (1976-78), onde, em cada uma das suas
partes constituintes, uma paisagem captada pela objectiva da máquina fotográfica
devolve, através de um jogo de reflexão, o vulto do sujeito que se recorta no mesmo

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Informação obtida junto do escultor no decurso de uma série de conversas informais e não registadas
realizadas entre Dezembro de 2002 e Janeiro de 2006.
horizonte visual e onde ambos, paisagem e sujeito, se fundem num único espaço,
representacional ou simbólico, que é o da arte.
Na obra de Alberto Carneiro tanto a noção de arte como a de paisagem
partilham uma mesma qualidade: ambas são uma mediação entre o indivíduo e o
meio, ou, em termos mais latos, entre o sujeito e a realidade que o rodeia e da qual
faz parte, gerando o seu sentido à medida que a experiencia, ou que é por ela
afectado. E é curioso verificar como a sua proposta artística tem tantos pontos de
contacto com os estudos do geógrafo francês Augustin Berque, que tem pesquisado
a questão da paisagem cruzando a sua disciplina de formação, a geografia, com a
fenomenologia e também com os conceitos de paisagem e de pintura de paisagem
da tradição oriental.
Para este autor, a noção de paisagem pode ser definida a partir de duas
palavras-chave: médiance e trajectif21. A médiance refere-se à reciprocidade que
existe entre uma sociedade e o seu meio físico, reciprocidade essa elaborada ao
nível físico, fenomenal, ecológico, simbólico, factual ou sensível, e de que a
paisagem é uma das manifestações. Enquanto “sentido do meio”, a paisagem possui
uma ambiguidade simultaneamente física/factual e simbólica/sensível, pois a mesma
palavra refere-se tanto a um determinado território como a um género pictórico. Ou
seja, ela é composta tanto dos seus elementos concretos como das representações
que o homem faz nela e a partir dela, sendo a coisa e, ao mesmo tempo, a
representação da coisa na sua ausência. O trajectif refere-se ao modo como a
paisagem se define por um processo que, no tempo histórico e no espaço
geográfico, acompanha e participa da interacção entre a sociedade e o seu meio.
Essa interacção é definida por um complexo de experiências e memórias que é
desenvolvido por um sujeito que apreende a paisagem ao mesmo tempo que se
reconhece nela.
A relação de um indivíduo com a paisagem, também de acordo com Berque,
implica um investimento sensitivo que parte do olhar para as palavras e para as
imagens que prolongam e representam esse olhar, tal como vimos acontecer com
Meditação e posse do espaço/paisagem como obra de arte, de Alberto Carneiro,
trabalho onde se esclarece como, e usando as palavras do geógrafo francês, «notre
regard ne se porte pas seulement sur le paysage; dans une certaine mesure, il est le
paysage.»22

21
Augustin Berque – “Comment parler du paysage?”, op. cit., p. 11-38.
22
Idem, p. 25

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