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Cap Tulo 1 - Como Ler Um Texto Argumentativo PDF
Cap Tulo 1 - Como Ler Um Texto Argumentativo PDF
3.1. Exercícios
A seguir temos alguns textos de caráter e estilo predominantemente
argumentativo. Alguns estão transcritos na íntegra e outros são apenas
fragmentos. São textos de diferentes épocas, abordando assuntos variados, e com
contornos bastante diversos. Apesar dessas diferenças, eles possuem algo em
comum: todos são textos com pretensões argumentativas e difíceis, nos três
sentidos que delimitamos. Isso significa que tudo o que dissemos até aqui sobre a
leitura desse tipo de texto se aplica a eles. Leia cada um deles atentamente,
procurando adquirir uma noção do que é que cada autor estava querendo, no
momento em que os escreveu. Em seguida procure responder, a respeito de cada
um deles, às perguntas seguintes. Sugestão: experimente responder por escrito,
numa folha avulsa, e anexe-a ao material.
II
III
Art. 1 — Se, além das ciências filosóficas, é necessária outra doutrina. (IIa
IIae., q. 2, a. 3, 4; I Sent., prol., a. 1; I Cont. Gent., cap. IV, V; De Verit., q. 14, a.
10). O primeiro discute-se assim — Parece desnecessária outra doutrina além das
disciplinas filosóficas. 1. — Pois não se deve esforçar o homem por alcançar
objetos que ultrapassem a razão, segundo a Escritura (Ecle. 3, 22): Não procures
saber coisas mais dificultosas do que as que cabem na tua capacidade. Ora, o que
é da alçada racional ensina-se, com suficiência, nas disciplinas filosóficas; logo,
parece escusada outra doutrina além das disciplinas filosóficas. 2. — Ademais,
não há doutrina senão do ser, pois nada se sabe, senão o verdadeiro, que no ser se
converte. Ora, de todas as partes do ser trata a filosofia, inclusive de Deus; por
onde, um ramo filosófico se chama teologia ou ciência divina, como está no
Filósofo. Logo, não é preciso que haja outra doutrina além das filosóficas. Mas,
em contrário, a Escritura (2 Tm 3, 16): Toda a Escritura divinamente inspirada é
útil para ensinar, para repreender, para corrigir, para instruir na justiça. Porém, a
Escritura, divinamente revelada, não pertence às disciplinas filosóficas,
adquiridas pela razão humana; por onde, é útil haver outra ciência, divinamente
revelada, além das filosóficas.
SOLUÇÃO. — Para a salvação do homem, é necessária uma doutrina
conforme à revelação divina, além das filosóficas, pesquisadas pela razão
humana. Porque, primeiramente, o homem é por Deus ordenado a um fim que lhe
excede a compreensão racional, segundo a Escritura (Is 64, 4): O olho não viu,
exceto tu, ó Deus, o que tens preparado para os que te esperam. Ora, o fim deve
ser previamente conhecido pelos homens, que para ele têm de ordenar as
intenções e atos. De sorte que, para a salvação do homem, foi preciso, por divina
revelação, tornarem-se-lhe conhecidas certas verdades superiores à razão. Mas
também naquilo que de Deus pode ser investigado pela razão humana, foi
necessário ser o homem instruído pela revelação divina. Porque a verdade sobre
Deus, exarada pela razão, chegaria aos homens por meio de poucos, depois de
longo tempo e de mistura com muitos erros; se bem do conhecer essa verdade
depende toda a salvação humana, que em Deus consiste. Logo, para que mais
conveniente e segura adviesse aos homens a salvação, cumpria fossem, por
divina revelação, ensinados nas coisas divinas. Donde foi necessária uma
doutrina sagrada e revelada, além das filosóficas, racionalmente adquiridas.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Embora se não
possa inquirir pela razão o que sobrepuja a ciência humana, pode-se entretanto
recebê-lo por fé divinamente revelada. Por isso, no lugar citado (Ecle 3, 25), se
acrescenta: Muitas coisas te têm sido patenteadas que excedem o entendimento
dos homens. E nisto consiste a sagrada doutrina.
RESPOSTA À SEGUNDA. — O meio de conhecer diverso induz a
diversidade das ciências. Assim, o astrônomo e o físico demonstram a mesma
conclusão, p. ex., que a terra é redonda; se bem o astrônomo, por meio
matemático, abstrato da matéria; e o físico, considerando a mesma. Portanto,
nada impede que os mesmos assuntos, tratados nas disciplinas filosóficas,
enquanto cognoscíveis pela razão natural, também sejam objeto de outra ciência,
enquanto conhecidos pela revelação divina. Donde a teologia, atinente à sagrada
doutrina, difere genericamente daquela teologia que faz parte da filosofia. Art. 2
— Se a doutrina sagrada é ciência. (IIa IIae., q.1, a. 5, ad 2; I Sent., prol., a. 3. qa
. 2; De Verit., q. 14 a. 9, ad 3; in Boet., De Trin., q. 2, a. 2) O segundo discute-se
assim — Parece não ser ciência a doutrina sagrada. 1. — Pois toda ciência
provém de princípios por si evidentes, ao passo que procede a doutrina sagrada
dos artigos da fé, inevidentes em si, por serem não universalmente aceitos;
porque a fé não é de todos, diz a Escritura (2 Ts 3, 2). Logo, não é ciência a
doutrina sagrada. 2. — Ademais, do indivíduo não há ciência. Mas a doutrina
sagrada trata de fatos individuais, como sejam os feitos de Abraão, Isaac, Jacó e
semelhantes. Logo, não é ciência a doutrina sagrada. Mas, em contrário,
Agostinho: A esta ciência só aquilo se atribui com que se gera, nutre, defende e
corrobora a fé salubérrima. Ora, a nenhuma ciência pertence tal, senão à doutrina
sagrada. Por onde, é ciência a doutrina sagrada.
SOLUÇÃO. — A doutrina sagrada é ciência. Porém, cumpre saber que há
dois gêneros de ciências. Umas partem de princípios conhecidos à luz natural do
intelecto, como a aritmética, a geometria e semelhantes. Outras provém de
princípios conhecidos por ciência superior; como a perspectiva, de princípios
explicados na geometria, e a música, de princípios aritméticos. E deste modo é
ciência a doutrina sagrada, pois deriva de princípios conhecidos à luz duma
ciência superior, a saber: a de Deus e dos santos. Portanto, como aceita a música
os princípios que lhe fornece o aritmético, assim a doutrina sagrada tem fé nos
princípios que lhe são por Deus revelados.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Os princípios de
qualquer ciência, ou são por si mesmos evidentes, ou se reduzem à evidência de
alguma ciência superior. E tais são os princípios da doutrina sagrada, como
dissemos.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Na doutrina sagrada, os fatos individuais
não são tratados principalmente, senão apenas introduzidos a título de exemplo
prático, como nas ciências morais; ou também no intuito de apurar a autoridade
dos homens que nos transmitiram a revelação divina, na qual se funda a Sagrada
Escritura ou doutrina.
TEXTO 4 – A Revolução Darwiniana
Autor: Daniel Dennett
Tradução: Álvaro Augusto Fernandes
Disponível em: http://ateus.net/artigos/filosofia/a-revolucao-darwiniana/
Original: A Perigosa Ideia de Darwin. Lisboa: Temas e Debates. 2001, pp. 20-24.
Não há futuro num mito sagrado. Por quê? Por nossa curiosidade. […]
Seja o que for que consideremos precioso, não podemos protegê-lo da nossa
curiosidade porque, sendo quem somos, uma das coisas que consideramos
preciosa é a verdade. O nosso amor pela verdade é sem dúvida um elemento
central no sentido que damos à nossa vida. Em qualquer caso, a ideia de que
possamos preservar o sentido da nossa vida à força de nos enganarmos é uma
ideia mais pessimista, mais niilista do que eu, pela parte que me toca, consigo
engolir. Se isso fosse o melhor que se pode fazer, concluiria que afinal nada tinha
importância. […]
A nossa curiosidade sobre as coisas assume diferentes formas, como
Aristóteles assinalou no tratado da ciência humana. O seu esforço pioneiro para
classificá-las ainda faz muito sentido. Aristóteles identificou quatro questões
básicas sobre qualquer coisa que queiramos responder, e chamou-as aitia, um
termo grego verdadeiramente impossível de ser traduzido, tradicional mas
desajeitadamente traduzido por quatro ―causas‖.
5 CONCLUSÕES
O argumento presidencialista mais utilizado no debate que precedeu a
realização do plebiscito de 1993 não resiste ao exame dos fatos. O voto brasileiro
é cada vez menos dependente de redes locais de influência, organizadas pelo
poder econômico, notadamente a propriedade fundiária. O voto majoritário hoje
é o urbano, que supera em muito o rural. Os determinantes desse voto são outros,
incluindo os meios de comunicação de massa, o peso dos movimentos sociais, a
concessão de benefícios à localidade por parte dos ocupantes de cargos em todos
os níveis do Executivo.
Em todo caso, não há razão para supor que o voto executivo, para prefeito,
governador ou presidente, obedeça a determinações diferentes daquelas que
pesam sobre o voto legislativo, que elege vereadores, deputados e senadores,
nem que resulte em maiorias com orientação ideológica diversa, do tipo
―executivos progressistas‖ versus ―legislativos conservadores‖.
No entanto, mesmo admitindo alguma diferenciação, não há como supor
que, num sistema em que o Poder Executivo goza de relativa autonomia, o poder
econômico, as oligarquias locais, etc., tenham interesse maior nas eleições
legislativas e não nas que definem o Executivo.
Na verdade, esse argumento presidencialista valoriza a presteza decisória
que, teoricamente, o sistema permitiria ao vencedor da eleição para presidente. O
que se deseja, à esquerda e à direita, é que o poder possa ser exercido sem peias
ou entraves durante o período do mandato; que um projeto de governo, uma vez
sufragado na eleição, disponha de uma garantia mínima de tempo para sua
execução, com o máximo de limitações à ação restritiva da minoria encastelada
no Legislativo. Para os presidencialistas de esquerda, particularmente, a
sociedade pode ser mudada de forma radical e a revolução pode acontecer, desde
que se consiga a vitória numa única eleição para presidente.
A postulação do argumento não é, portanto, apenas a autonomia do
Executivo, mas a fraqueza de um Legislativo incapaz de opor resistência à
maioria que se formou na eleição presidencial. Numa situação ideal, caberia à
minoria apenas a crítica e denúncia do Executivo, enquanto aguarda o confronto
eleitoral seguinte. A pergunta que se impõe, no entanto é: maiorias pontuais,
obtidas numa conjuntura específica, mesmo que fortalecidas pela sistemática dos
dois turnos, podem expressar legitimamente, nas condições contemporâneas, a
vontade da população por períodos maiores de tempo?
Volta-se aqui à argumentação parlamentarista. Sociedades modernas são
sociedades complexas, que estão se tornando ainda mais diferenciadas, numa
velocidade sempre surpreendente. Se, num passado ainda recente, todas as linhas
de oposição, incluindo as clivagens políticas e culturais relevantes,
subordinavam-se, até certo ponto, às divisões de classe, com raízes no mundo do
trabalho, hoje a situação é outra.
Novas temáticas assumem importância e cruzam transversalmente as
divisões de classe. Temas como meio-ambiente, paz, gênero, etnia, religião,
identidade local e idade criam novos atores políticos que emergem no espaço
público com suas próprias reivindicações. Esse movimento, embora incipiente
entre nós, encontra-se avançado nas democracias afluentes do mundo ocidental.
Sociedades com esse grau de complexidade, nas quais as lealdades
políticas tendem a definir-se conforme temas específicos, em que partidos
dividem o espaço da política com movimentos de novo tipo, em que o voto do
eleitor torna-se sensível a uma gama variada de assuntos relevantes, cada vez
menos conseguem se fazer representar por uma maioria simples, obtida de uma
vez para quatro ou cinco anos, no figurino presidencialista. A possibilidade da
produção de déficits de legitimidade, sem solução institucional adequada, torna-
se mais presente.
Numa situação como essa, em que maioria significa, cada vez mais,
coalizão de minorias, e de minorias mutáveis, a flexibilidade do parlamentarismo
acentua-se como vantagem. Eleito o parlamento, cabe aos representantes do povo
a constituição da maioria. Altera-se a conjuntura, o governo não é mais
considerado satisfatório, a mesma composição parlamentar, fruto da eleição mais
recente, busca uma nova maioria. Na impossibilidade política de um acordo,
novas eleições são convocadas e todos os personagens são submetidos ao voto
popular. Não há a possibilidade, corriqueira em países de sistema
presidencialista, de riscos de questionamentos quanto à legitimidade dos
dirigentes de governo a continuarem no cargo em razão de mudanças na
conjuntura e na opinião pública
Referências
Shang, Aijing et al. ―Are the clinical effects of homoeopathy placebo effects?
Comparative study of placebo-controlled trials of homoeopathy and allopathy.‖
The Lancet 366.9487 (2005): 726-732.
The Lancet. ―The end of homoeopathy.‖ The Lancet 366.9487 (2005): 690.
1
TEXTO 7 – O que Mary não sabia
Autor: Frank Cameron Jackson
Tradução: Ricardo Miguel / reimpressão: Osvaldo Pessoa Jr.
Original: JACKSON, F.C. (1986), ―What Mary didn‘t know‖, Journal of
Philosophy 83: 291-5, 148 (janeiro).
Disponível em:
http://opessoa.fflch.usp.br/sites/opessoa.fflch.usp.br/files/Jackson-Mary-nao-
sabia-1.pdf
Mary está fechada num quarto preto e branco, é educada por meio de
livros em preto e branco, e de aulas transmitidas numa televisão preta e branca. É
deste modo que ela aprende tudo o que há para conhecer sobre a natureza física
do mundo. Conhece todos os fatos físicos sobre nós e o nosso ambiente, num
sentido lato de ―físicos,‖ que inclui tudo em física, química e neurofisiologia
completas, e tudo o que há para conhecer sobre os fatos causais e relacionais que
resultam de tudo isto, incluindo, claro, os papéis funcionais. Se o fisicismo
[physicalism] for verdadeiro, Mary conhece tudo o que há para conhecer. Pois
supor que não o conhece é supor que há mais para conhecer do que todo o fato
físico, e isto é precisamente o que o fisicismo nega.
O fisicismo não é a tese incontroversa de que o mundo real é em larga
medida físico, mas a tese desafiadora de que é inteiramente físico. É por isso que
os fisicistas têm de sustentar que o conhecimento físico completo é um
conhecimento completo, sem qualificações. Pois suponha que não o seja: então o
nosso mundo tem de se diferenciar de um mundo, M(P), o qual é completo, e a
diferença tem de ser em fatos não físicos; pois o nosso mundo e M(P) concordam
com respeito a todas as questões físicas. Logo, o fisicismo seria falso no nosso
mundo (embora o fosse contingentemente, pois seria verdadeiro em M(P)). 2
Parece, contudo, que Mary não conhece tudo o que há para conhecer. Pois
quando a deixam sair do quarto preto e branco ou lhe dão uma televisão a cores,
aprenderá, digamos, como é ver algo vermelho. Isto é corretamente descrito
como aprendizagem – Mary não dirá ―pois é‖. Logo, o fisicismo é falso. Este é o
argumento do conhecimento contra o fisicismo, numa das suas versões.3 Esta
1
Devo muito a discussões com David Lewis e Robert Pargetter.
2
A afirmação aqui não é que, se o fisicismo for verdadeiro, só o que for expresso em linguagem
explicitamente física é um item de conhecimento. É antes que, se o fisicismo for verdadeiro, então se se
conhece tudo o que é expresso ou exprimível em linguagem explicitamente física, conhece-se tudo. Com
a devida vênia a Terence Horgan (1984), ―Jackson on physical information and qualia‖, Philosophical
Quarterly 34: 147-152.
3
Nomeadamente, o argumento do meu ―Epiphenomenal qualia‖, Philosophical Quarterly 32 (1982) 127-
36. Ver também Thomas Nagel (1974), ―What is it like to be a bat?‖, Philosophical Review 83: 435-450, e
Howard Robinson (1982), Matter and sense (Nova Iorque: Cambridge).
nota é uma resposta a três objeções ao argumento elaboradas por Paul M.
4
Churchland.
I. TRÊS ESCLARECIMENTOS
O argumento do conhecimento não se apoia na afirmação duvidosa de que
logicamente não se pode imaginar como é sentir vermelho a não ser que se tenha
sentido vermelho. As capacidades de imaginação não estão em questão. A
afirmação acerca de Mary não é que, apesar do seu fantástico entendimento de
neurofisiologia e de todas as outras coisas físicas, ela não poderia imaginar como
é sentir vermelho; é antes que, de fato, ela não o saberia. Mas se o fisicismo for
verdadeiro, ela saberia; e nenhuma capacidade excepcional de imaginação seria
necessário. A imaginação é uma faculdade a que precisa recorrer quem não tem
conhecimento. Em segundo lugar, a intensionalidade do conhecimento não está
em questão. O argumento não se apoia em pressupor falsamente que se S sabe
que a é F e se a = b, então S sabe que b é F. O argumento diz respeito à natureza
do corpo total de conhecimentos de Mary antes de ser libertada: é completo, ou
escapam-lhe alguns fatos? O que é relevante é que S pode saber que a é F e saber
que a = b sem, contudo, argumentavelmente, saber que b é F, em virtude de não
estar logicamente atento o suficiente para seguir todas as consequências. Se a
falta de conhecimento de Mary fosse em alguma medida assim, não haveria nela
qualquer ameaça ao fisicismo. Mas é muito difícil acreditar que a sua falta de
conhecimento poderia ser remediada se ela se limitasse a seguir explicitamente
suficientes consequências lógicas do seu vasto conhecimento físico. Dotá-la de
excepcional perspicácia lógica e persistência não é por si suficiente para tapar as
falhas do seu conhecimento. Ao ser-lhe permitido sair, Mary não dirá ―Poderia ter
percebido tudo isto antes, fazendo mais algumas inferências puramente lógicas.‖
Em terceiro lugar, o conhecimento que faltava a Mary e que é de especial
relevância para o argumento do conhecimento contra o fisicismo era o
conhecimento sobre as experiências dos outros, e não sobre as suas. Quando lhe é
permitido sair, Mary tem experiências novas, experiências de cor que nunca teve.
Não é, portanto, uma objeção ao fisicismo que ela aprende algo ao ser-lhe
permitido sair. Antes de lhe ter sido permitido sair, Mary não poderia ter
conhecido fatos sobre a sua experiência de vermelho, pois estes não existiam.
Com isto tanto podem concordar o fisicista como o não fisicista. Depois de lhe
ser permitido sair, as coisas mudam; e o fisicismo pode de bom grado admitir que
ela o descobre; afinal, algumas coisas físicas irão mudar, por exemplo, os seus
estados cerebrais e respectivos papéis funcionais. O problema para o fisicismo é
que depois de Mary ver o seu primeiro tomate maduro, vai perceber quão
empobrecida tem sido, desde o início, a sua concepção da vida mental dos outros.
Irá perceber que havia, a todo o momento que efetuava as suas laboriosas
investigações sobre as neurofisiologias dos outros e sobre os papéis funcionais
dos seus estados internos, algo sobre estas pessoas de que não estava ciente de
modo algum. Desde o início, as experiências alheias (ou muitas delas, as que
tinham origem nos tomates, no céu, etc.) tinham uma característica conspícua
para eles mas até agora oculta para ela (de fato, e não logicamente). Mas ela
conhecia todos os fatos físicos sobre as experiências alheias desde início; logo, o
4
―Reduction, qualia, and the direct introspection of brain states,‖ Journal of Philosophy 82 (1982) 8-28.
Exceto indicação contrária, as indicações seguintes de páginas referem-se a este artigo.
que não conhecia até ser libertada não era um fato físico sobre as suas
experiências. Mas é um fato sobre elas. Esta é a dificuldade para o fisicismo.
(1) Mary sabe tudo o que há para saber acerca de estados cerebrais e suas
propriedades.
(2) Não é verdadeiro que Mary sabe tudo o que há para saber acerca das
sensações e suas propriedades.
Logo, pela lei de Leibniz,
(3) As sensações e as suas propriedades ≠ estados cerebrais e suas
propriedades (p. 23).
(1)‘ Mary (antes de ser libertada) sabe tudo o que de físico há para saber
sobre outras pessoas.
(2)‘ Mary (antes de ser libertada) não sabe tudo o que há para saber acerca
de outras pessoas (porque descobre algo sobre elas quando é libertada).
Logo,
(3)‘ Há verdades sobre outras pessoas (e sobre ela própria) que ficam de
fora da explicação fisicista.
5
Ver Laurence Nemirow (1980), ―Review of Nagel‘s Mortal Questions‖, Philosophical Review 89: 473-
477, e David Lewis (1983), ―Postscript to ‗Mad pain and Martian pain‘‖, Philosophical Papers, vol. 1
(Nova Iorque: Oxford). Churchland menciona Nemirow e Lewis, e poderá ter pretendido que a sua
objeção seja essencialmente a que acabei de apresentar. Porém, diz bem explicitamente (fim da p. 23) que
a sua objeção não precisa de uma análise do conhecimento relevante em termos de ―competência‖.
daquele para o qual usamos ―azul‖ como é o branco do preto. Mas por que supor
que lhe dizem tudo sobre qualia? Por outro lado, é plausível que as aulas pela
televisão em preto e branco possam em princípio ensinar a Mary todas as coisas
da explicação fisicista. Não é preciso televisão a cores para aprender física ou
psicologia funcionalista. Para se obter um bom argumento contra o dualismo (o
dualismo de atributos; o ectoplasma é uma pequena brincadeira), é preciso
substituir a premissa do argumento do conhecimento, segundo a qual Mary, antes
de ser libertada, conhecia a explicação completa do fisicismo, pela premissa de
que conhece a explicação completa do dualismo. A primeira é plausível; a última
não. Logo, não há a dificuldade da ―paridade de razões‖ para os dualistas que
usam o argumento do conhecimento.
(iii) A terceira objeção de Churchland é que o argumento do conhecimento
afirma ―que Mary nem sequer poderia imaginar como seria a experiência
relevante, apesar do seu exaustivo conhecimento neurocientífico, e portanto deve
ainda faltar alguma informação crucial‖ (p. 25), uma afirmação contra a qual
passa a argumentar.
Mas, como salientámos anteriormente, o argumento do conhecimento
afirma que Mary não iria saber como é a experiência relevante. O que ela podia
imaginar é outra questão. Se o seu conhecimento é incompleto, apesar de ser tudo
o que há para conhecer de acordo com o fisicismo, então o fisicismo é falso,
quaisquer que sejam as capacidades de imaginação dela.
SEÇÃO IV
DÚVIDAS CÉTICAS SOBRE AS OPERAÇÕES DO ENTENDIMENTO
PRIMEIRA PARTE
1 A presente posição de Hume representa um aperfeiçoamento (veja -se Flew, ob. cit., p. 62) em
comparação ao Tratado, que considera apenas a álgebra e a aritmética como ‗as únicas ciências em que
podemos conduzir uma cadeia de raciocínios a qualquer grau de complicação, e ainda preservar perfeita
exatidão e certeza Ao passo que a ‗geometria não é dotada deste perfeito rigor e certeza, que são
peculiares à aritmética e à álgebra‖ (Tratado, I, iii, 1, p. 71). [N. do T.]
3 O caminho que Hume pretende seguir aqui pode, talvez, ser iluminado pela seguinte passagem
do Abstract: ―o célebre Monsieur Leibniz observou, como um defeito comum dos sistemas de lógica, que
eles são prolixos quando explicam as operações do entendimento formando demonstrações, mas são
bastante concisos quando tratam das probabilidades e das outras medidas de evidência das quais a vida e a
ação dependem inteiramente‖. (pp.. 7-8; citado também por Flew, oh. cit., p. 69). [N. do T.]