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Luiz Carlos Osorio

adolescente hoje
2 Edição

N14
PORTO ALEGRE /
J
da Editora Artes M Sul Ltda.. 1959
Capa:
M Rohnclt
SupLr chtori
Pau o ( o Lc du r
Digi:itaç;i . a rtc c

A( E — Assessoria O r ica e Editorial 1 ida


Impressão e acabamento
Editora Gráfica Metrópole S.A.
Reservados todos os direitos de puhltcaç a
EDITORA ARTES MEDICAS SUL LTDA.
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IMPRESSO NO BRASIL
PRINTED IN BRAZIL
Sumário
- Introdução: As razões deste livro .
- O que é a adolescência, afinal’

- A crise adolescente e a questão da identidade


- O adolescente, a família e a sociedade
- Os grandes dilemas do adolescente contemporâneo O dilema existencial
O dilema vocacional
O dilema sexual Drogadicção: O dilema tóxico
- Conflito de gerações e os ritos de iniciação
- O adolescente “problema” Adolescência normal e patológica
Conduta e psicopatologia do adolescente
O adolescente “problema”: como abordá-lo

8 - Em busca da adolescência perdida: o mito fáustico


9 - O adolescente do ano 2.000: uma visão prospectiva
Apêndice: Conversando com adolescentes, pais e professores (perguntas e respostas)
Epílogo
Bibliografia
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Introdução: as razões deste livro
1
É verdadeiramente um grande prazer interrogar as próprias

coisas em lugar de ler a bibliografia já existente “(da carta de FREUD


a PFISTER, em 12/julho/1909)
Quais as motivações para se escrever uni livro?
Bem diferentes hão de ser certamente as de um autor de livros técnicos e as de um escritor
de obras ficcionais, ainda que em sua essência todas se srcinem de uma mesma fonte, qual
seja, o narcisismo humano, e todas desagüem num mesmo estuário: deixar algo que nos
sobreviva ou, ao menos, fazer algo que nos torne “notáveis” (no sentido de “tornar-se
notados”) a nossos contemporâneos. Da pretensão de alcançar o primeiro destes objetivos
os autores de livros técnicos teriam que dissuadir-se, já que a atual progressão geométrica
dos avanços tecnológicos torna rapidamente obsolescentes nossos conhecimentos; e da
notabilidade precisaria abrir mão quem se propõe a escrever um livro que, como
constatarão, renega até mesmo seu remoto paren tesco com uma obra técnica. Portanto,
para que possam
vicissitudes entendê-lo,
de sua necessito aludir a outras motivações, bem como a algumas
elaboração.
Há sete anos atrás, ao concluir um pequeno compêndio sobre as aborda gens psicoterápicas
do adolescente, dispus-me a dar-lhe seqüência num opús culo destinado ao “público leigo”
e onde pudesse expor algumas idéias emer gentes durante a elaboração do então recém-
publicado livrinho. Destinar-se-ia basicamente a pais e a seus filhos adolescentes, com a
intenção de ajudá-los na compreensão mútua. Cheguei mesmo a iniciá-lo, sob o título que
ora encima um dos capítulos deste livro: “Em busca da adolescência perdida”. Interrompi-o
prematuramente, à raiz de dois sentimentos predominantes: a impressão de que resultaria
num injustificável vade-mecum e a certeza de
Adolescente Hofe / 7
que pouco ou nada acrescentaria ao já conhecido sobre a matéria. Embora estes dois
sentimentos ainda persistam mesmo agora que estou a concluí-lo, este livro passou a ser
uma espécie de fantasma que precisava exorcizar antes de poder levar a cabo novos
projetos. Sempre que me dispunha a iniciar um artigo de mais fôlego sobre outra matéria ou
um livro sobre diferente área de interesse de meu cotidiano profissional, a temática da
adolescência se interpunha entre a vontade e a tarefa, como a exigir o cumprimento de uma
antiga dívida não resgatada.
Aqui estou, pois, para me livrar do compromisso auto-imposto, sentin do-me tal qual Jacó
após os sete anos adicionais de pastoreio pela mão de
Raquel, livre, enfim, para realizar as bodas sonhadas.
“Não há tolice que se diga agora
Que não tenha sido dita por
Um sábio grego de outrora”.
Esta máxima em versos do nosso anjo Malaquias tem me servido, ao longo dos anos, de
oportuno lenitivo contra a dorida falta de srcinalidade constatada a cada novo ímpeto de
pretensa criatividade. O que os leitores encontrarão nas páginas que seguem só vem
confirmar esta assertiva. Os conceitos nelas emitidos, em sua imensa maioria, provêm de
autores com quem ou com cuja obra convivi nestas duas décadas em que tenho procurado
“ouvir e entender adolescentes”. Tais conceitos, convalidados na prática de todos nós que
trabalhamos com adolescentes, foram de tal forma se incorpo rando à minha identidade
profissional que já não consigo, muitas vezes, deter minar sua srcem ou autoria. Não
obstante, como é mister “dar o seu a cujo é” — como diria um dos eméritos tribunos de
nossa república — ao final do livro fiz uma listagem de leituras de sustentação para fazer
justiça à procedência das idéias aqui expostas, de tal sorte que não me seja equivoca- mente
imputado o crime de apropriação indébita do pensamento alheio. Há um motivo adicional
para tal procedimento: não sendo esta, como já se afir mou, uma obra técnica, resultaria
tediosa sua leitura com a intercalação de citações bibliográficas. Assim, me limitarei a
mencionar no texto a autoria de conceitos de obrigatória referência por sua srcinalidade ou
relevância.
Mas afinal — estarão a me indagar, a esta altura, os leitores — qual o propósito desta obra
se tudoque
então, indica não não
o autor ser ela
estásenão
acomeumtido
confessado plágio de idéias
da tanta humildade alheias?
ou falsa Poisque
modéstia eu lhes
não diria,
possa
reconhecer a si mesmo (já que outros talvez não o venham a fazer!) o mérito de haver
enrique cido tais idéias com o aporte das suas e, sobretudo, do que apreendeu, mais do que
nos livros ou convivência com colegas, nas suas vivências com adoles centes destas e de
outras plagas, seus respectivos ambientes sócio-familiares e o contexto cultural deste átimo
da história universal em que nos tocou a todos viver.
8 / Linz Carks Osorio
E sem mais explicações ou justificativas, que, quando demasiadas, se tornam enfadonhas,
deixo-os entregues agora à avaliação pessoal dos objetivos deste livro. Dá-los-ei por
alcançados se puderem concluir, com algum proveito e prazer, sua leitura.
Adolescente Hoje / 9
O que é a adolescência, afinal?
2
A adolescência é uma etapa evolutiva peculiar ao ser humano. Nela culmina todo o
processo maturativo biopsicossocial do indivíduo. Por isto, não podemos compreender a
adolescência estudando separadamente os aspec tos biológicos, psicológicos, sociais ou
culturais. Eles são indissociáveis e é justamente o conjunto de suas características que
confere unidade ao fenômeno da adolescência.
Até há algum tempo atrás, a adolescência era considerada meramente uma etapa de
transição entre a infância e a idade adulta. Sua caracterização era feita a partir dos
comemorativos biológicos que marcavam esse momento evolutivo do ser humano. O
adolescente, se do sexo masculino, era descrito como um indivíduo desengonçado, que
estava mudando de voz e deixando entrever o buço em meio a uma constelação de
espinhas; se do sexo feminino, uma criatura igualmente desproporcionada, o torso arqueado
para esconder o desabrochar dos seios e as faces ruborizadas ao menor galanteio, como
ordenava o pudor e a boa moral caseira.
A puberdade ou adolescência era, pois, assinalada por modificações físi cas, especialmente
os denominados caracteres sexuais secundários (surgimento dos pêlos. mudança de voz,
crescimento das glândulas mamárias, etc...) e, quando muito, pela menção a certas
incômodas “mudanças de temperamento”.
Nas últimas décadas, contudo, a adolescência vem sendo considerada o momento crucial do
desenvolvimento do indivíduo, aquele que marca não só a aquisição da imagem corporal
definitiva como também a estruturação final da personalidade. E uma idade não só com
características biológicas próprias, mas com uma psicologia e até mesmo uma sociologia
peculiar. Não
é sem razão que se afirma que todas as grandes mudanças culturais da história da
humanidade ocorrem no limiar entre a adolescência e a idade adulta!
O adolescente não pode ser estudado apenas sob a ótica de suas modifi cações corporais,
pois se é verdade que nelas se radicam as angústias básicas da puberdade, não é menos
certo, contudo, que sem o adequado entendimento da “crise de valores” por que passa o
jovem jamais lograremos compreender o real significado da transformação da “criança” em
“adulto”.
PUBERDADE E ADOLESCÊNCIA
Embora alguns considerem a PUBERDADE (do lat. pubertate — sinal depêlos, barba,
penugem) como uma primeira fase ou momento da ADOLES CENCIA (do lat. adolescere-
crescer), a tendência universal é reservar o termo PUBERDADE para as modificações
biológicas dessa faixa etária e ADOLESCENCIA para as transformações psicossociais que
as acompanham. Como dissemos anteriormente, o fenômeno da PUBERDADE-ADOLES
CENCIA não pode ser estudado dissociadamente e apenas fazemos menção aqui à distinção
dos termos com fins de maior clareza expositiva.

A
dosPUBERDADE, como a própria
pêlos, particularmente etimologia
em certas docorpo,
regiões do termo tais
sugere, inicia-se
como com
as axilas o crescimento
e região pubiana,
tanto nos meninos como nas meninas, como resultado da ação hormonal que desencadeia o
processo puberal; estas e outras modificações corporais que então ocorrem dão-se
principalmente a partir do desenvolvimento das gônadas, ou seja, dos testículos nos
meninos e dos ovários nas meninas. E esse amadurecimento das células germinativas
masculinas e femininas que possibilita o surgimento de dois eventos que corro boram ao
advento da PUBERDADE: a menarca ou primeira menstruação, na menina, e a primeira
ejaculação ou emissão de esperma no menimo, indícios exteriores da capacitação biológica
para as funções de procriação. Isto dar-se-ia por volta dos 12 aos 15 anos, em termos
médios.
Nem sempre o início da ADOLESCENCIA coincide com o da PUBER DADE; tanto pode
precedê-la como sucedê-la. E se o advento da PUBER DADE tem a assinalá-lo evidências
físicas bem definidas, o mesmo não ocorre com a ADOLESCENCIA.
O fenômeno da PUBERDADE é universal e seu início cronológico, em condições de
normalidade física, coincide em todos os povos e latitudes (com raríssimas exceções, como
o caso dos pigmeus. púberes já por volta dos oito anos de idade, mas cuja expectativa de
vida também é menor do que no restante da espécie humana). A ADOLESCENCIA. por
seu turno. embora um fenômeno igualmente universal, tem características bastante pecu
liares conforme o ambiente sócio-cultural do indivíduo. Portanto, determinar seu início é
tarefa singularmente complexa e que não pode apoiar-se apenas em certa constância dos
elementos psicológicos, todos eles, contudo. apon
10 / Luiz carlos Osono
Adolescente Hoje / 11
tando na direção de um objetivo axial, que é o estabelecimento da identidade pessoal, tema
do qual nos ocuparemos mais adiante.
Já não se aceita atualmente o vezo simplista de tomar o despertar da sexualidade como
identificatório do desabrochar da ADOLESCENCIA, uma vez que FREUD demonstrou
que a sexualidade não surge ex-abrupto nesse momento da vida; nem, tampouco, se poderia
adotar a indevida generalização que atribui ao surgimento do interesse pelo sexo oposto o
elemento nuclear do processo adolescente.
Como já foi acentuado, a ADOLESCENCIA é um complexo psicossocial, assentado em
uma base biológica, cuja caracterização pode ser sumariada nos seguintes itens, que serão
objeto de estudo mais detalhado posteriormente:
1) redefinição da imagem corporal, consubstanciada na perda do corpo infantil e da
conseqüente aquisição do corpo adulto (em particular, dos carac teres sexuais secundários);
2) culminação do processo de separação/individuação e substituição do vínculo de
dependência simbiótica com os pais da infância por relações objetais de autonomia plena;
3) elaboração de lutos referentes à perda da condição infantil;
4) estabelecimento de uma escala de valores ou código de ética próprio;
5) busca de pautas de identificação no grupo de iguais;
6) estabelecimento de um padrão de luta/fuga no relacionamento com a geração precedente;
7) aceitação tácita dos ritos de iniciação como condição de ingresso ao status adulto;
8) assunção de funções ou papéis sexuais auto-outorgados, ou seja, con soante inclinações
pessoais independentemente das expectativas familiares e eventualmente (homossexuais)
até mesmo das imposições biológicas do gênero a que pertence.
Quanto ao término da PUBERDADE e da ADOLESCENCIA, podería mos dizer o
seguinte:
A PUBERDADE estaria concluída, e com ela o crescimento físico e o amadurecimento
gonodal (que permite a plena execução das funções repro dutivas), em torno dos 18 anos,
coincidindo com a soldadura das cartilagens de conjugação das epífises dos ossos longos, o
que determina o fim do cresci mento esquelético.
O término da ADOLESCENCIA, a exemplo de seu início, é bem mais difícil de determinar
e novamente obedece a uma série de fatores de natureza sócio-cultural. Tentando
discriminar quais os elementos mais universais na atualidade que nos possibilitariam
assinalar o término da ADOLESCENCIA, relacionamos o preenchimento das seguintes
condições:
1) Estabelecimento de uma identidade sexual e possibilidade de estabe lecer relações
afetivas estáveis.
2) Capacidade de assumir compromissos profissionais e manter-se (“inde pendência
econômica”).
3) Aquisição de um sistema de valores pessoais (“moral própria”).
4) Relação de reciprocidade com a geração precedente (sobretudo com os pais).
Em termos etários, isto ocorreria por volta dos 25 anos na classe média brasileira, com
variações para mais ou para menos consoante as condições sócio-econômicas da família de
srcem do adolescente.
ADOLESCÊNCIA HOJE
Por que a adolescência passou a ocupar, em nossos dias, o centro do interesse especulativo
e das preocupações dos profissionais da área das ciências humanas?
O interesse universal pelo estudo da adolescência atualmente advém de duas circunstâncias
principais:
1 - A explosão demográfica de pós-guerra, que trouxe como imediata conseqüência o
significativo crescimento percentual da população jovem mun dial. Basta que se lembre que
nos últimos 25 anos a população do Brasil duplicou para que se perceba quão significativo
é o contingente de jovens em nosso país. Estima-se que hoje cerca de 1/4 da população
brasileira é constituída de adolescentes.
2 - A ampliação da faixa etária com as características da adolescência. Assim, se antes a
adolescência era tida meramente como aquela etapa de transição entre a infância e a idade
adulta que coincidia com os limites bioló gicos da puberdade, atualmente a adolescência é
definida por elementos que, embora balisados pelas características psicológicas do
momento evolutivo em questão, são marcadamente influenciados pelas contingências
sócio-culturais circunstantes.
Assim, o estudo da adolescência hoje extrapola o interesse cognitivo sobre uma etapa
evolutiva do ser humano para, através dele, procurar entender todo um processo de
aquisições e motivações da sociedade em que vivemos.
12 / Luiz Carlos Osor:o
Adolescente Hoje / 13
A crise adolescente e
a questão da identidade
No capítulo anterior procuramos conceituar operativamente a ADOLES CENCIA e
justificar o interesse contemporâneo por seu estudo. Vamos agora seguir um pouco adiante
na elucidação de alguns mecanismos psicossociais que identificam o perfil básico de um
adolescente. Antes, contudo, assim como fizemos com a expressão ADOLESCENCIA, é
preciso delinearmos melhor o significado dos termos a que nos referiremos a seguir, CRISE
E IDENTIDADE, ambos contendo certo caráter ambíguo, contraditório ou polêmico,
gerando por vezes sentidos equívocos.
A expressão CRISE (do gr. krisis - ato ou faculdade de distinguir, escolher, decidir e/ou
resolver), como lembra ERIKSON, já não padece em nossos dias do significado de
catástrofe iminente que em certo momento pareceu constituir um obstáculo à compreensão
do termo. Atualmente aceita-se que a CRISE designa um ponto conjuntural necessário ao
desenvolvimento, tanto dos indivíduos como de suas instituições. As crises ensejam o
acúmulo de experiência e uma melhor definição de objetivos.
A adolescência é uma crise vital como o são tantas outras ao longo da evolução do
indivíduo (o desmame, o início da socialização ao término da primeira infância, o
climatério, etc..). Para melhor definir o sentido não patológico do termo, ERIKSON
chamou a adolescência de crise normativa, isto é, momento evolutivo assinalado por um
processo normativo, de organi zação ou estruturação do indivíduo.
E por IDENTIDADE, o que entendemos?
IDENTIDADE é, resumidamente, a consciência que o indivíduo tem de si mesmo como um
“ser no mundo”.
Esclarecendo melhor, a identidade é o conhecimento por parte de cada indivíduo da
condição de ser uma unidade pessoal ou entidade separada e distinta dos outros,
permitindo-lhe reconhecer-se o mesmo a cada instante de sua evolução ontológica e
correspondendo, no plano social, à resultante de todas as identificações prévias feitas até o
momento considerado. O conceito operativo de identidade está formulado a partir das
noções dos vínculos de integração espacial, temporal e social do sentimento de identidade,
introdu zidos na literatura por GRINBERG.
O vínculo de integração espacial está relacionado com a imagem corporal, ou seja, a
representação que o indivíduo tem de seu próprio corpo com características que o tornam
único.
O vínculo de integração temporal corresponderia à capacidade do indiví duo de recordar-se
no passado e imaginar-se no futuro, ou seja, é a base do “sentimento da mesmidade”, que é
a capacidade de seguir sentindo-se o mesmo ao longo da vida, apesar do influxo das
mudanças que ocorram interna ou externamente.
O vínculo da integração social diz respeito às inter-relações pessoais inicial- mente com as
figuras parentais e posteriormente com todas as figuras de relevância afetiva para o
indivíduo no decurso de sua existência.
Poderíamos ainda acrescentar que o sentimento de identidade é função de um equilíbrio
dinâmico entre os três vértices do triângulo abaixo:
O que eu penso que sou
O que eu penso que os outros pensam que sou
Do ponto de vista psicológico considera-se que a tarefa básica da adoles cência é a
aquisição desse sentimento de identidade pessoal. Por isso, diz-se que a crise evolutiva do
processo adolescente é sobretudo uma crise de iden tidade.
O ADOLESCENTE E SEU CORPO: A IDENTIDADE SEXUAL
Pari passu com as modificações biológicas que caracterizam o processo puberal, o
adolescente experimenta toda uma série de eventos psicológicos que culminam naquilo que
denominamos a aquisição de sua identidade sexual, ou seja, das características mentais do
sexo que lhe corresponde e que nem sempre é aquele ao qual pertence (homossexuais).
3
O que os outros pensam que sou
14 / Luiz C rios Osorio
Adolescente [ / 15
A sexualidade é, sobretudo, um elemento estruturador da identidade do adolescente. E essa
função estruturante é, em grande parte, realizada através da representação mental que o
adolescente tem de seu corpo, ou sej a, através de sua imagem corporal.
A imagem corporal é uma representação condensada das experiências passadas e presentes,
reais ou fantasiadas, do corpo do indivíduo. Ela involucra aspectos conscientes e
inconscientes.
A estrutura da imagem corporal é determinada por:
a) percepção subjetiva da aparência e habilidade à função;
b) fatores psicológicos internalizados;
c) fatores sociológicos (a imagem corporal é também função dos papéis que ao corpo são
atribuídos pela cultura prevalente num momento dado).
A medida que o corpo vai se transformando e adquirindo os contornos definitivos do
adulto, o adolescente vai gradualmente plasmando a imagem corporal definitiva de seu
sexo. Como na sua mente há uma espécie de “protó tipo idealizado” dessa imagem corporal
(formado a partir dos valores estéticos com respeito a forma humana que lhe são
transmitidos), via de regra ocorre um conflito entre a imagem “fantasiada” desse modelo
idealizado e a imagem “real” do seu corpo em transformação. Essa é a raiz das ansiedades
do adoles cente com respeito a seus atributos físicos e a desejada capacidade de atrair o
sexo oposto, isto é, a vertente somática de seus conflitos na esfera sexual.
E reconhecida a insatisfação dos adolescentes com sua aparência física. A percepção das
constantes mudanças ocorridas no corpo é a responsável pela freqüência com que ocorrem
os sentimentos de estranheza do próprio “self”na adolescência.

As ansiedades peculiares
desenvolvimento à adolescêncianotêm
físico, especialmente queseu
dizfulcro na preocupação
respeito aos caracteresdosexuais
púbere com seu
secundários. E comum encontrarmos distorções da ima gem corporal expressas em idéias
sobre o tamanho do pênis ou das mamas.
As vestes, concebidas como extensões ou prolongamentos do próprio corpo, adquirem
então uma importância toda peculiar. “Já que não posso alterar meu corpo, com o qual
estou descontente, modifico minhas roupa”, diz um adolescente.
Para melhor entender-se as vicissitudes da aquisição do sentimento de identidade durante a
adolescência vamos nos valer aqui de um marco referen cial teórico, que se apóia na idéia
da universalidade da srcem simbiótica da condição humana e na concepção de um
processo de separação/indivi dualização que começa logo após o nascimento e se estende
por todo o desen volvimento ulterior do indivíduo.
O processo puberal, deflagrado pelas transformações biológicas que mar cam a passagem
da infância para a idade adulta, caracterizar-se-ia, no plano psicológico, por uma reedição
da diferenciação “eu - não eu” que identifica os primórdios da individuação ao longo da
primeira infância.
MAI-ILER postula a existência de um estado indeferenciado inicial a partir do qual o
indivíduo terá que, gradativa e inexoravelmente, ir se diferen ciando para adquirir sua
identidade pessoal. A separação consistiria na saída da criança da fusão simbiótica com a
mãe e a individuação, desenvolvimento que a complementa, nas aquisições das
características pessoais que configuram a identidade do indivíduo.
Assim como o processo de discriminação “eu - não eu” não se faz ex-a brupto e segue o
princípio epigenético das aquisições graduais e sucessivas sem que a rapidez do
desenvolvimento possa alterar essa sucessão, tal diferen ciação nunca se completa
inteiramente e certo grau de simbiotização se mantém indefinidamente. Durante o processo
puberal, no entanto, acionado pela dife renciação somática que então ocorre, há uma
retomada do processo discrimi natório eu - não eu. Em razão das ansiedades mobilizadas
pela ameaça da perda do vínculo simbiótico residual da infância, o adolescente tenta
restaurar a situação srcinal com a adesão a substitutos aleatórios dos primitivos objetos
parentais. Isto explicaria, por exemplo, as identificações maciças dos jovens com seus

ídolos, amado
objeto o caráter possessivo
quando de suas relações de amizade ou ainda a supervalorização do
se apaixonam.
Nos estados de enamoramento, peculiares à adolescência, com exagerada idealização do
objeto amado, haveria não somente um investimento libidinal maciço no objeto tomado
como ideal amoroso mas, sobretudo, um desejo de recuperar um estado de “fusão com o
outro” frente à ameaça de separação e perda “definitiva” do vínculo simbiótico inicial,
ameaça essa acarretada pela intensificação dos mecanismos de diferenciação que então
ocorrem.
Em contraposição a essa tendência simbiotizante ou de manutenção do estada srcinal de
fusão ou indiferenciação com a matriz familiar, há um impulso à diferenciação e
individuação gradativas, visando à aquisição e ao estabelecimento da identidade pessoal.
Como expressão desse impulso à dife renciação, temos todo espectro comportamental
adolescente inserido no con texto do que se convencionou denominar “conflito de
gerações”. Como pelas identificações prévias é justamente com os pais que a mente juvenil
está mais “fundida”, torna-se imperioso acentuar o confronto de idéias a nível familiar para
que se facilite o processo discriminatório sem o qual a identidade permanece num estado
caótico ou indiferenciado.
Ao se contrapor freqüentemente aos desejos e expectativas de seus pais, o adolescente nem
sempre estará, como se poderia supor a uma observação mais superficial, expressando uma
diferença deuma
assinalando opiniões calcada
quebra no repúdio
no processo ao sistema com
identificatório de valores parentaisestá,
seus genitores; e muito menos
muitas vezes,
procurando através do mecanismo de oposição definir-se e a seus objetivos.
Por um raciocínio análogo, entender-se-iam os episódios de agressividade impulsiva dos
adolescentes. Assim como o amor idealizado dos jovens identi fica o desejo de fundir-se
novamente com o objetivo srcinal materno e está a serviço do vínculo simbiótico, os
acessos de fúria ou a propensão a divergir

podem facilitar o processo de dessimbiotização. Se o amor une e funde, a contenda separa e


discrimina. E como o indivíduo define-se primordialmente pelo que não é, ao buscar no
controvérsia o que no outro se lhe opõe o adolescente vai desta forma rastreando o
reconhecimento de seu próprio eu.
As vivências de despersonalização, outro fenômeno comum na adoles cência, seriam uma
das manifestações clínicas mais vívidas dessa luta entre os impulsos antagônicos de
separação e fusão, onde, por momentos fugazes (adolescentes normais) ou duradouros
(adolescentes com distúrbios mentais), a busca do sentimento de identidade pessoal vê-se
ameaçada pela persistência ou retorno à condição simbiótica srcinal.
A adição a drogas, freqüentemente encontrável entre adolescentes, seria a expressão oral
dessa mesma tentativa de manter ou recuperar o vínculo simbiótico perdido. O próprio
hábito de mentir, tão comum entre adolescentes, seria, uma decorrência dessa necessidade
de diferenciar-se que tem o adoles cente. Mentindo, e acreditando em suas mentiras, o
adolescente cria a “sua” verdade — faz da substância da ilusão o alicerce de “sua”
realidade para contrapô-la à dos adultos.
No processo puberal, que assinala um segundo momento evolutivo de
separação/individuação, predominam as angústias do tipo confusional geradas pelo conflito
entre a busca de identidade e a persistência dos vínculos simbió ticos remanescentes.
Por outro lado, os sentimentos de confusão quanto à identidade sexual e as correspondentes
fantasias ou temores homossexuais tão comuns entre os adolescentes, especialmente do
sexo masculino, evidenciariam a luta travada durante o processo puberal entre o impulso à
diferenciação sexual e a tendência oposta de conservar a indiferenciação anterior com vistas
a assegurar a manu tenção do par simbiótico srcinal, onde quem se ama é a projeção de si
próprio, conforme o modelo narcísico descrito por FREUD.
A gíria como expressão da crise de identidade adolescente
Quando um adolescente diz “não adianta conversar com os velhos porque eles não me
entendem” está expressando algo mais do que uma diferença de opinião entre eles e os pais.

queimplícito
acompanhaaí todo um processo
a quebra de defasagem
do processo lingüística
comunicante e semântica entre as gerações e
entre elas.
A adolescência se caracteriza basicamente por uma série complementar de perdas e
aquisições: perda da hissexualidade infantil e a correspondente aquisição da sexualidade
adulta, perda do pressuposto de dependência infantil e aquisição da autonomia adulta e
também perda da comunicação ou linguagem infantil para adquirir uma comunicação ou
linguagem adulta.
KNOBEL diz, muito acertadamente, que “não se pode dizer simples mente que o
adolescente busca ter uma identidade. Ele já tem uma, a identi
dade adolescente, que é justamente a que lhe permite seguir o curso de seu
desenvolvimento”.
Na mesma linha de raciocínio poderíamos dizer que o adolescente não está só abandonando
o modo de comunicação infantil por uma forma adulta de expressão, mas tem uma
identidade lingüística e semântica peculiar à sua condição de adolescente. E a gíria é a
representação verbal da identidade adolescente, com todo o polimorfismo e transitoriedade
tão característicos do próprio processo puberal.
A gíria é uma “perversão” da linguagem. Usamos o termo “perversão” deliberadamente
para aludir analogicamente ao que se passa no desenvol vimento sexual infantil. A
disposição perversa polimorfa define a sexualidade infantil assim como a gíria o faz com a
linguagem adolescente. No adulto normal o emprego de expressões de gíria é circunstancial
e quando sistemático corresponde a um desvio do comportamento lingüístico do indivíduo.
Abs traindo a influência dos fatores sócio-culturais, poderíamos dizer que o uso de termos
de gíria pelo adulto corresponde a substitutos parciais e aleatórios de uma comunicação
verbal plena e satisfatória. No adolescente, contudo, é uma forma de expressão peculiar à
sua identidade lingüística.
Assim como o adolescente, na ansiosa busca de sua identidade emergente, estabelece, por
vezes, pseudo-identificações, as quais incorpora parcialmente ou abandona posteriormente,
da mesma forma ele adquire modismos lingüís ticos que lhe servem transitória e
precariamente para veicular idéias e senti mentos que de outra forma não encontrariam
expressão verbalizada.

A gíria é também um subproduto da cultura adolescente. Ainda quando a consideramos


uma forma de expressão verbal peculiar ao marginal ou delin qüente adulto, seu significado
psicodinâmico é o mesmo, ou seja, traduz a luta pela preservação de uma identidade grupal
na qual se funde e busca sustentação a frágil identidade individual de seus membros.
A gíria constitui a expressão verbal do processo de diferenciação do adolescente, de seu afã
de reconhecer-se e a seu grupo de iguais como porta dores de uma identidade própria e
distinta da identidade dos pais e do mundo adulto em geral.
Nessa procura de uma identidade lingüística o adolescente faz um verda deiro processo de
“adicção” às novas palavras ou expressões que surgem. Experimenta novos vocábulos
como experimenta novas drogas. Por outro lado, o sentido ambíguo com que nascem
muitas dessas expressões identificam o próprio caráter ambivalente das relações objetais do
adolescente. Um termo hoje empregado com um significado encomioso, amanhã o é
pejorativamente e vice-versa.
A gíria adolescente adquire em caráter hermético e imcompreensível para os adultos na
medida em que está a serviço das defesas contra as tentativas desses de violentar a “torre de
marfim” habitada pelos pensamentos e ernoçoes dos adolescentes. E como se quisessem
criar um microcosmos linguístico to
1 1 Luiz C Osoria
Ádole5cente Ho;e / 19
O Caráter Universal da Crise de Identidade Adolescente
mando como modelo os símbolos verbais propostos pela linguagem dos adultos,
manipulando-os, no entanto, dentro de um novo esquema semântico.
As progressões e regressões do processo puberal estão representados no léxico adolescente.
Assim, ao lado do forte contingente de vocábulos que denunciam os remanescentes orais,
anais ou fálicos do linguajar infantil, encontramos nas possibilidades expressivas de certos
neologismos e figuras de linguagem empregados pelos adolescentes todo o potencial
criativo identifi cável com a sexualidade adulta.
A observação clínica do fenômeno da gíria e sua significação psicopa tológica entre os
adolescentes nos permite constatar que o índice de saturação de termos de gíria na
linguagem dos adolescentes conserva certa relação com o grau de predisposição a “atuar”
os conflitos em
modalidade lugar
verbal da de expressá-los
tendência verbal mente.a evidenciar
dos adolescentes A gíria seria,
seusporconflitos
assim dizer, a de
através
perturbações na conduta. Como contrapartida, encontramos uma diminuição do emprego de
termos de gíria em adolescentes na medida em que conseguem verbalizar seus conflitos e
conscientizar o conteúdo de suas fantasias.
Para finalizar diríamos, como os teóricos da comunicação, que as gírias também
“metacomunicam”: a mensagem que transcende seu sentido pura mente lingüístico reside
juntamente no seu significado como expressão verbal da crise de identidade adolescente.
O “Grupo de Iguais” como Continente
da Crise de Identidade Adolescente
“L’Adolescent se rend différent de ladulte mais ii n’est point ‘srcinal parmi ses pareils qui
lui ressemhlent comme des frères”
(BELA GRUNBERGER)
O “grupo de iguais” é a caixa de ressonância ou continente para as ansiedades existenciais
do adolescente. Na medida em que, pela necessidade de cristalizar suas identidades adultas
e afirmar-se como indivíduos autônomos, deixam de utilizar os pais ou sub-rogados desses
(tais como os professores e adultos em geral)) como modelos de identificação, têm os
adolescentes necessidade de buscar novas pautas identificatórias no seu grupo de iguais,
cujos líderes tomam provisoriamente o lugar das imagos parentais idealizadas. Isto
explicaria a natural e espontânea tendência à formação de grupos entre adolescentes, pois
nos grupos surge um clima propício ao intercâmbio e con fronto de experiências que
permite a seus componentes uma melhor identifi cação dos limites entre o eu e o outro,
através da compreensão das motivações conscientes e inconscientes dos diferentes modos
de sentir, pensar
problemática e agir,
adoles favorecendo a resolução da crise de identidade, fulcro da
cente.
A adolescência — entendendo-se aqui o termo, conforme sugerimos, como o conjunto de
transformações psicológicas que acompanham o fenômeno biológico da puberdade — é a
resultante de um paralelogramo de forças, onde os fatores intrapsíquicos e sócio-culturais
constituem os vetores que o compõem.

Todas as considerações
consideração as distintasfeitas até agora
realidades seriam parciais
existenciais e aleatórias
dos jovens se nãolatitudes
de diferentes tomássemos
e em
culturas.
Quando estamos falando de adolescentes, na verdade apenas estamos considerando os
jovens cuja preocupação com a sobrevivência imediata é secundária. Quem sabe incorrendo
em certo exagero poder-se-ia dizer que a adolescência é um privilégio das classes mais
abastadas. Esse período de moratória ou preparação para a idade adulta é um “luxo” não
permitido àqueles que estão empenhados na encarniçada luta por sua subsistência. Estes
apenas experimentam a puberdade, enquanto inevitável processo de transfor mações
corporais, mas não se lhes concede a oportunidade de vivenciar o processo de elaboração
das perdas infantis e assimilação das aquisições adultas que caracterizam a adolescência do
ponto de vista psicológico. Para tanto, é preciso dispor de um espaço-tempo a que não têm
acesso os que estão confinados pela geografia da fome e da miséria.
Portanto, quando nos referimos à crise de identidade do adolescente contemporâneo
estamos na verdade considerando os processos de transfor mação psicológica que
experimentam aqueles jovens que pertencem aos extra tos sócio-econômicos mais
diferenciados, que têm o que comer, o que vestir e podem, então, usufruir as demais
prerrogativas da condição humana quando satisfeitas suas necessidades mais elementares.
Discute-se se o processo adolescente é universal, isto é, se ocorre em suas linhas gerais em
todo e qualquer adolescente, independente da matriz sócio-cultural à que pertence. Eu diria
que sim, que é universal, desde que se considere a ressalva apresentada no parágrafo
anterior. Mesmo em condi ções de vida extremamente adversas, desde que assegurada a
satisfação das necessidades básicas de alimentação e agasalho, podemos encontrar a seqüên
cia dos eventos psicodinãmicos que configuram o processo adolescente e a crise de
identidade que o caracteriza. Uma confirmação desta assertiva pode mos ter analisando, por
exemplo, o diário de ANNE FRANK, um dos mais ilustrativos registros de que se tem
notícia de um processo adolescente, viven ciado em toda a sua plenitude. mesmo sob a
vigéncia de condições de vida tão anômalas quanto o foram o confinamento num refúgio
para escapar à sanha anti-sionista dos nazistas na ocupada Holanda dos anos 41-44.
Num diário escrito dos 13 aos 15 anos e que viria a se constituir numa pequena obra-prima,
ANNE FRANK, uma adolescente judia cuja fortaleza moral sob uma manto de aparente
fragilidade é a própria imagem de sua
2(1 / Luiz ( ()50r10
AdoIesct.’nti Ho; / 21
gente, nos descreve o desenvolvimento de seu processo puberal. No seu relato espontâneo
sob a forma de confidências a Kitty, amiga imaginária que perso nifica seu alter ego no
sempiterno colóquio
uma adolescente do como
de sua mundodeinterno adolescente,
todas as revela-se todoaoanálise
épocas e circunstâncias; espectro
devivencial
seu diáriode
íntimo comprova-nos que, mesmo sob condições de vida tão adversas como as vigentes no
“anexo secreto” onde ela, sua família e alguns amigos refugiaram-se dos nazistas durante
aqueles dois anos, a ocorrência e seqüência evolutiva dos eventos psicodinâ micos que
configuram o processo puberal não se alteram. Ali, na evocação continuada de suas
fantasias e nos meandros de seu cotidiano existencial, encontramos toda a gama de
situações que caracterizam a vigência da crise adolescente: do recrudescimento do conflito
edipiano à cristalização da identi dade puberal através da redefinição da imagem corporal,
da elaboração dos lutos pela perda da condição infantil à dissolução do vínculo simbiótico
com a família, do estabelecimento de um padrão de luta/fuga com a geração anterior ao
surgimento de uma escala de valores próprios, enfim, todos os elementos que identificam a
“mutação” adolescente. Um estudo pormenorizado do pro cesso puberal, conforme ANNE
FRANK o vivenciou e descreveu com rara autenticidade em seu diário, é desde logo tarefa
que vai além dos objetivos e limites deste livro. Não obstante, cremos que a transcrição de
alguns trechos do referido diário darão melhor testemunho de muitas das afirmações feitas
ao longo deste estudo do que qualquer digressão teórica que pudéssemos agora fazer à
guisa de concluí-lo.
O desabrochar da puberdade, a descoberta dos mistérios biológicos que
a natureza ocultou no escrínio de seu corpo, o modo como vivencia e aceita
a emergência de sua ainda difusa e perturbadora sexualidade feminina, assim
são descritos por ANNE:
“Penso que é tão maravilhoso o que me acontece — não só o que aparece em meu corpo,
mas o que se realiza por dentro... Cada vez que tenho menstruação — e isto só aconteceu
três vezes! — sinto que apesar de toda a dor, desconforto e sujeira, possuo um segredo
delicado e é por isso que, embora de certo modo não passe de uma maçada, eu anseio pelo
tempo em que sentirei dentro de mim aquele segredo... Depois que vim para cá, logo ao
fazer 14 anos comecei a pensar em mim, mais cedo que a maioria das meninas, e a perceber
que era uma “pessoa”. As vezes deitada na cama de noite, tenho um desejo terrível de
apalpar meus seios e escutar as batidas calmas e rítmicas de ri Vi no espelho o meu rosto;
está bem diferente. Meus olhos es e profundos, minhas faces estão rosadas e — coisa que

há sema
sinto não acontece
a primavera — minhaem
que desperta boca está
todo maiscorpo
o meu macia...
e naSinto
minhadentro de mim
alma... Estouatão
prima vera,
confusa,
não sei o que fazer, só sei que sinto em mim um querer!
As oscilações do sentimento de identidade que caracterizam o processo puberal e que se
polarizam na dicotomia criança-adulto, trazendo muitas vezes ao adolescente a sensação de
ser duas (Ou mais) pessoas distintas, reve lam-se nos seguintes fragmentos de seu diário:
“Um dia Anne é tão ajuizada que consentem que tudo saiba; e no dia seguinte ouço que
Anne é uma cabrita estouvada que não sabe nada e imagina que apreendeu maravilhas nos
livros... As vezes tenho um jeito esquisito: consigo ver a mim mesma como se fosse pelos
olhos de outra pessoa. Então, observo os negócios de uma certa “Anne” e percorro as
páginas de sua vida como se fosse uma estranha... de súbito foi-se embora a Anne de
costume e uma segunda Anne tomou seu lugar, uma segunda Anne que nada tem de
estouvada e brincalhona e só deseja ser muito meiga e amar... Já lhe disse antes que possuo,
por assim dizer, personalidade dupla. Em metade encarna-se minha alegria exuberante que
faz graça de tudo, meu entusiasmo e sobretudo o modo por que levo tudo com pouco caso.
Aqui inclui-se o caso de não me ofender um “flirt”, um beijo, um abraço, uma pilhéria suja.
Este lado, quase sempre, está à espreita e empurra o outro que é muito melhor, mais
profundo e mais puro. Você precisa compreender que ninguém conhece o melhor lado de
Anne e por isso a maior parte das pessoas me acha insuportável”.
A ciclotimia e a labilidade emocional que caracterizam os estados afetivos típicos da
adolescência aparecem assim retratados:
As vezes os nervos me dominam; aos domingos, especialmente, sinto-me deprimida...
vagueio de um quarto para outro, escada acima, escada abaixo, sentindo-me como pássaro
cantor a quem arrancaram as asas e que se atira, em escuridão completa, contra as grades da
gaiola. ‘Vai lá para fora, dá risada, respira ar fresco’, grita dentro de mim uma voz; eu,
porém, não sinto a vibração responsiva e vou dormir, deitada no divã, para que o tempo, a
quietude e o medo terrível passem mais depres sa, uma vez que não há maneira de os
matar... Brilha o sol, o céu está profundamente azul, a brisa é deliciosa e eu tenho vontade,
tanta, tanta vontade — de tudo. De falar, de liberdade, de amizade, de estar só. E tanto
queria.., chorar! Parece que rebento e sinto que isto havia de melhorar com o choro; mas
não posso, estou inquieta, vou de um quarto para outro, respiro pela fresta de uma janela
fechada, sinto bater meu coração como se dissesse: ‘não poderá você satisfazer meus
anseios algum dia’.”
Nos trechos seguintes encontraremos delineado o recrudescimento do conflito edipiano na
adolescente Anne:
“... eu adoro Papai. É meu ideal. Não amo ninguém no mundo, só a ele... Quero de papai
algo que ele não pode me dar. Não tenho nem
22 / Luiz Carlos Osorio
Adolescente Hoje / 23
nunca tive ciúmes de Margot Não invejo a boniteza, a beleza dela. E que eu só preciso
muito do verdadeiro amor de Papai: não só como filha dele, mas como eu mesma — eu,
Anne,”
“... Mummy é que às vezes me trata como se eu fôsse nenê — coisa que eu não suporto...
somos polos
da minha opostos
cabeça umaem tudo, portanto é natural que entremos em choque... existe dentro
imagem
— a imagem do que deveria ser a perfeita mãe e esposa; ora, na que preciso chamar de mãe
não vejo sombra daquela imagem.”
“... as tentativas da sra. Van Daan para flertar com Papai são fonte de contínua irritação
para mim. Alisa o rosto e o cabelo dele, puxa a saia para cima, diz umas frases com
intenção de fazer espírito para atrair a atenção de Pim Pim, graças a Deus, não vê nela
graça nem atrativo algum, por isso não corresponde”.
Através da evolução de seu relacionamento com Peter e das modificações na imagem que
dele faz, podemos acompanhar o gradativo interesse heteros sexual de Anne e como
encaminha a resolução de sua fixação edipiana no pai pela troca de objeto amoroso, que
prenuncia o advento da sexualidade adulta.
Vejamos como Anne nos descreve inicialmente Peter: “Peter não tem ainda dezesseis anos;
é um rapaz molenga, acanhado e sem jeito. Não se pode esperar grande coisa como
companhia”. Dias após: “Não consigo mesmo gostar de Peter; é um rapaz muito
aborrecido. Atira-se na cama, cheio de preguiça, trabalha um momento na carpintaria e logo
volta a cochilar mais um pouco. E um tolo! “Ano e meio depois: “Meu desejo de falar com
alguém tão intenso se tornou que, não sei como, deu-me na cabeça de escolher o Peter”.
Semanas se passam e: “Vinha-me uma impressão esquisita cada vez que contemplava seus
profundos olhos azuis... Eu lia seus pensamentos inter nos... Via em seu rosto um traço de
virilidade; reparando em seus modos retraídos, senti-me muito meiga... Oh! pudesse eu
aninhar a cabeça no ombro dele — não me sentir mais tão desesperadamente só e
abandonada!... Creio estar bem perto de me apaixonar por ele”. Mais algumas semanas e
chega ao clímax de seu enamoramento por Peter: “Estou a transbordar de Peter e não faço
senão olhar para ele... Ele veio para junto de mim, atirei-lhe os braços à volta do pescoço,
beijei-lhe a face direita e ia beijar-lhe a outra face quando meus lábios encontraram os dele
e nós os apertamos. Num rede moinho, estávamos presos nos braços um do outro, outra vez
e outra ainda. não podíamos largar”
1 irmã de Anne,
2 forma com que habitualmente chama a mãe.

3dividem
a sra. Van Daan. seu marido e filho constituem a outra família com quem os Frank
o esconderijo secreto.
4 maneira carinhosa com que se refere ao pai.
5 o filho dos \‘an Daan
No entanto, com rara lucidez dá-se conta logo que não ama Peter, que foram as
circunstâncias especiais de sua convivência, o desabrochar de sua sexualidade e a imperiosa
necessidade de buscar companhia entre os de sua idade que a levaram àquele envolvimento:
“Precisava de um ser vivo a quem abrir o coração... ao conseguir que ele se tornasse amigo,
automaticamente desenvolveu-se uma intimidade que, pensando bem, não creio que
devesse ter permitido... Nossos encon tros o satisfazem ao passo que em mim apenas
produzem
exagerei o odesejo
efeitodesesperado
de me despertar vontade
que por de tentar
ele sentia... mais
Peter uma vez...
é bom, é um Penso às mas
encanto, vezesnão
que
posso negar que muita coisa nele me decepciona”.
Paralelamente vai se distanciando do pai e o desidealizando: “por que será que Pim me
aborrece?... tanto eu quero ser deixada em paz e prefiria mesmo que ele me esquecesse um
pouco, até que me sentisse mais segura de minha atitude para com ele.
Enquanto isto deprime-se ao constatar quão infundado era seu relaciona mento hostil com a
mãe e procura reconciliar-se com a “mãe interna”, sem deixar, contudo, que sentimentos de
culpa doentios comprometam seu pro cesso de separação da mãe e a paralela individuação:
“Revendo meu diário dei com páginas que trataram do assunto ‘Mummy’ de maneira tão
exaltada que me escandalizei, perguntando a mim mesma:

Oh, Anne,
pode?... foi realmente
E verdade você
que ela nãomesma quem mas
me entende, mencionou
tambémtanto ódio?
eu não Como é que
a entendo... você o
Já passou
período em que fazia Mummy verter lágrimas; tornei-me mais ajuizada e os nervos de
Mummy também não andam à flor da pele... mas não posso sentir por Mummy aquele amor
dependente, de criança — é sentimento que não está em mim”.
A disposição com que se lança à luta pela individualidade, mas sempre respeitando a dos
outros e zelando para que nessa refrega não se danifiquem os laços que a prendem a seu
universo familiar,para
Frank. Vejamos, talvez seja o traço
finalizar, algunsmais marcante
momentos da invulgar
dessa figura
sua busca humana de
de afirmação Anne
pessoal:
tenho que servir da mãe para mim mesma... eu mesma tomarei o leme de minha vida e mais
tarde procurarei onde aportar... Apesar de ter só 14 anos sei bem o que quero tenho idéias
minhas, princípios meus, opiniões minhas e, mesmo que vindo de uma adolescente, isso
pareça loucura, sinto-me mais como pessoa do que como criança e bastante independente
de quem quer que seja... Cheguei ao ponto em que posso viver por mim mesma, sem o
apoio de Mummy e. para falar a verdade. sem o apoio de quem quer que seja. Mas isso não
sucedeu da noite para o dia; foi amarga, foi dura a minha luta e muita lágrima chorei até
que me tornasse independente como agora sou... Sei que sou indivi
24 / Luiz Carlos Osorio
Adolescente Hoje / 25
dualidade a parte e não me sinto responsabilidade alguma de nenhum de vocês.., sou
independente de espírito e corpo. Não preciso mais da mãe, pois todo esse conflito me
tornou forte”.
E como corolário de um processo puberal que levou a bom termo o objetivo da aquisição
do sentimento de identidade, uma última “pérola” do pensamento de Anne Frank, onde se
revela sua notável fortaleza egóica a serviço do “instinto de vida”, mesmo quando o mundo
a sua volta convulsio nava-se em estertores de ódio e morte:
“Tenho em meu caráter um traço predominante que deve saltar aos olhos de quem me haja
conhecido durante algum tempo, que é o conheci mento que tenho de mim mesma. Posso
estar face a face com a Anne de todos os dias, sem preconceito algum e sem fazer
concessões, obser vando o que nela há de bom e mau. Essa consciência de mim mesma
acompanha-me sempre... Os pais só podem dar conselhos e indicar os caminhos certos, mas
a formação final do caráter de uma pessoa está em suas próprias mãos. Possuo coragem
grande, sinto-me sempre forte, como se suportasse muita coisa; sinto-me tão livre e
jovem!... E continuo a tentar encontrar a maneira de ser como desejo ser...”
26 / Luiz Car!o O5ono
O adolescente, a família e a sociedade
4
Através dos tempos, a família, pela função socializadora que lhe é ineren te, pressupôs um
papel de intermediação entre os jovens e a sociedade. No entanto, entre as grandes
mutações do processo civilizatório em nossa época está a alteração desse papel mediador,
segundo se verá mais adiante e conforme tenta ilustrar o esquema gráfico abaixo:
AdoIe Ho / 27
Antes de referenciarmos os elementos acima com os elementos que lhe dão sustentação,
vamos considerar algumas questões concernentes à noção de família e seu perfil na
contemporaneidade.
Preliminarmente, a que família estamos aqui nos referindo? Família não é um conceito
unívoco. Como afirmava ESCARDO, “a palavra família não designa uma instituição
padrão, fixa e invariável. Através dos tempos a família adotou formas e mecanismos
sumamente diversos e na atualidade coexistem no gênero humano tipos de família
constituídos sobre princípios morais e psicológicos diferentes e ainda contraditórios e

inconciliáveis”.
Partindo de vertentes antropológicas contemporâneas, podemos definir família como sendo
uma unidade grupal onde se desenvolvem três tipos de relações pessoais: aliança (casal),
filiação (pais/filhos) e consangüinidade (ir mãos), e que, a partir dos objetivos genéricos de
preservar a espécie, nutrir e proteger a descendência e fornecer-lhe condições para a
aquisição de suas identidades pessoais, desenvolveu ao longo do périplo evolutivo do ser
humano funções diversificadas de transmissão de valores éticos, estéticos, religiosos e
culturais.
No entanto, o proteimorfismo da família, conforme a consideramos em suas distintas
vertentes histórico-culturais, nos obriga a limitar a universalidade do conceito para tornar
viável a abordagem que aqui nos propomos. Portanto, vamos circunscrever as relações do
adolescente com seu meio sócio-familiar no contexto da denominada família nuclear
burguesa, herdeira da revolução industrial que sinalizou a modernidade. Esta é a família
como a conhemos nos agrupamentos urbanos do mundo ocidental de nossos dias, onde
mesmo os estratos proletários a tem como modelo de referência no rastro de suas aspirações
de ascensão sócio-econômica. Esta é, sem dúvida, a família na configuração que melhor
nos é conhecida, pois a maioria de nós, estudiosos da adolescência, dela provém. Esta é,
enfim, a família da qual se diz que está hoje “em crise”, face à emergência da nova onda
civilizatória deflagrada pelos avanços tecnológicos contemporâneos.
Quando me refiro à crise da família no mundo atual o faço obviamente levando em conta as
observações feitas anteriormente sobre o significado hodierno da expressão crise, ou seja,
considerando-a um ponto crucial mas indispensável para o desenvolvimento das
instituições humanas. Logo, quando estamos nos referindo à crise da família não estamos
certamente aludindo a uma eventual ameaça de desintegração ou extinção dessa mônada de
nossa estrutura social, que é e continuará sendo a unidade básica da interação humana e que
persistirá através dos tempos como o fez até hoje, apesar das cassandras que recentemente
têm anunciado sua morte. A permanência da instituição familiar ao longo de toda a história
do Homem e o pluralismo de sua configuração estrutural e funcional a legitimam como a
unidade primor dial da organização social. Ela não desaparecerá enquanto a espécie
humana não se extinguir, mas estará, como esteve até então, em lenta, por vezes
imperceptível, mas constante renovação. Parodiando LAVOISIER diria que “na família
nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”.
E que transformações seriam essas a balizar a configuração da família contemporânea em
sua espiral evolutiva?
Se a família é o ponto de tangência ou intersecção entre a natureza e a cultura, como o
querem os antropólogos, não podemos deixar de conside rá-la, para entendê-la, à luz dos
modelos culturais vigentes.
A utilização de um esquema referencial inspirado em idéias de MARGA RET MEAD,
conhecida antropóloga e estudiosa da adolescência em culturas primitivas, nos introduzirá à
abordagem desta questão.
M. MEAD considera três tipos ou modelos culturais segundo os quais o homem relaciona-
se com seus antepassados ou descendentes.
O primeiro deles corresponde às denominadas culturas pós-figurativas, que extraem sua
autoridade do passado, baseando-a num consenso acrítico e na lealdade inequívoca de cada
geração à que a precedeu. Nessas culturas as crianças e os jovens aprendem
primordialmente dos adultos e o futuro é visualizado como um prolongamento do passado,
ou seja, o passado dos adultos é o futuro de cada geração. Há nessas culturas uma falta de
“consciência de mudança” e o mito prevalente é o do ancião como fonte do saber e dos
valores a serem preservados e transmitidos às gerações futuras. Este é o modelo cultural
vigente até o advento da era contemporânea e ainda hoje encontrável em agrupamentos
humanos primitivos ou isolados e, portan to, à margem da onda civilizatória desencadeada
pela revolução industrial.
O segundo desses modelos é chamado pela autora citada de culturas co-figurativas, onde há
uma reciprocidade de influências entre jovens e adultos. Pelo surgimento de novas formas
de tecnologia para as quais os mais idosos carecem de informação, as camadas mais jovens
da população passam a deter uma significativa parcela do poder de influência
proporcionado pelo conheci mento. Nessas culturas o presente é o que conta e o mito nelas
prevalente é o do adulto produtivo. Esse é o modelo predominante no mundo atual, e que
partindo do ocidente tende a globalizar-se na medida em que as civiliza ções orientais são
por ele co-optadas.
Finalmente temos o modelo das culturas pré-figurativas, onde o futuro não é mais um
simples prolongamento do passado, mas tem sua própria (e desconhecida) identidade,
prevalecendo as expectativas futuras sobre as realizações passadas. Nessas culturas há uma
exacerbação dos conteúdos revo lucionários e das tendências iconoclastas e podemos
encontrá-las não apenas em nações que estão sofrendo mudanças radicais em sua estrutura
sócio-po lítica, mas também sob forma de “bolsões” culturais em países quer do Oci dente
como do Oriente. Nessas culturas o mito dominante é o do poder jovem.
E no contexto das culturas pré-figurativas que apontam para a civilização do terceiro
milênio que a família do futuro se insere e adquire seus contornos:
uma família onde os adolescentes chamam a si o papel de mediadores entre
28 1 Carlos Osorio
Adolescente Ho / 29
seus membros mais idosos e a sociedade em processo de transmutação tecnoló gica,
conforme tentamos reproduzir no esquema gráfico da página inicial.
O eixo em torno ao qual gravitam as transformações por que passa a família contemporânea
em consonância com o processo evolutivo da sociedade humana tem como fonte motriz as
relações de poder entre seus componentes.
A conquista e manutenção de “estados de poder” é inerente à condição humana e matiza
todas as suas manifestações. A família monogâmica preva lente no mundo ocidental deve
suas srcens à afirmação do poder masculino para assegurar filhos de paternidade
inconteste, garantindo, assim, a continui dade hereditária da propriedade privada e dos bens
materiais em geral.
Mas a alienação feminina sob o jugo patriarca! também se alinha nesse tabuleiro onde se
desenrolam os jogos do poder: a esposa abdica do prazer pela posse do campanheiro,
enquanto a concubina exerce seus direitos sobre a província hedonista da qual se tornou

arrendatária.
E fala-se agora numa filiocracia, ou tirania dos filhos, como reação à patercracia de direito
e à matercracia de fato da família convencional. Como, pois, discutir a instituição familiar
sem considerá-la uma instância promotora dos desígnios do Poder?
Parece-me indiscutível que o sentimento de posse envenena as relações humanas. E o
sentimento de posse radica-se nos núcleos narcísicos, arcaicos, da condição humana. Em
cada nova relação afetiva somos levados a reeditar o vínculo possessivo srcinal com a
matriz que nos gerou.
Não obstante, tenho uma visão otimista dos destinos da família na socie dade
contemporânea. E justamente a tenho por vê-la espelhada na realidade fática da evolução
ontogenética, onde a maturidade emocional é alcançada pelo gradativo abandono das
fantasias onipotentes.
Se pudéssemos traduzir em equações simbólicas a evolução da criança desde o estado de
indiferenciação e fusão com a mãe até a aquisição de sua identidade adulta, assim
poderíamos esquematizá-la:
O Universo sou Eu - criança no útero da mãe
O Universo existe em função de mim - criança nos primórdios da vida extra-uterina
O Universo é meu - criança ao completar o 1 ano de vida
O Universo existe independente de mim e eu sou parte dele — criança durante o processo
de aprendizagem escolar.
O Universo é algo que compartilho com outros seres vivos — indivíduo no limiar da
condição adulta (adolescente)

Como podemos constatar, a trajetória em direção à identidade adulta pressupõe a paulatina


aceitação das limitações humanas e a renúncia às fanta sias regressivas de posse ou fusão
com o que está além dos limites do Eu.
Penso que a maturidade da família alicerça-se em iguais postulados, ou seja, a instituição
familiar tende a evoluir para níveis mais satisfatórios de
interação entre seus membros e uma maior aproximação a sua distinção histó rica na
medida em que gradativamente possamos abrir mão do primado da posse e domínio de uns
sobre os outros no contexto familiar, ou seja, na medida em que aceitarmos que o universo
familiar é uma realidade vivencial compartilhada por todos em relações de reciprocidade e
mutualidade. Para usufruí-lo em toda a sua plenitude é preciso renunciar à fantasia de que
ele, o universo familiar, nos pertence ou só existe para atender nossas necessi dades e
desejos.
Por outro lado, assim como o bem-estar psicossocial do indivíduo está intrinsecamente
vinculado à aceitação de sua finitude, o bem-estar familiar é indissociável da aceitação de
que a família é um grupo fadado a dissolver-se tão logo cumpra suas funções de ensejar a
constituição de novas famílias, estabelecendo um continuum de unidades sociais que
permitam a perpetuação da sociedade através de suas células-mater. A família que aceita
sua finitude permite, ipso facto, o crescimento individual, a autonomia e a diferenciação de
seus membros e torna-se mais apta a desenvolver-se satisfatoriamente dentro dos limites
previsíveis de sua ação e existência, ao passo que a família que nega sua transitoriedade e
mantém seus membros aglutinados numa perene disposição à possessividade uns dos outros
deixa de funcionar como um conti nente adequado para a definição e manutenção das
diferenças humanas e com isso estiola seu papel cultural e adoece como organismo social.
A aceitação por parte dos pais de que não são donos do destino dos filhos e que é inevitável
sua perda pelo crescimento e disposição a formar novos e distintos núcleos familiares e a
correspondente aceitação por parte dos filhos de que não podem deter o envelhecimento
dos pais nem assegurar sua onipresença protetora são condições básicas para balizar a
maturidade de um grupo familiar.
Na obtenção dessas condições reside não só o maior desafio à família contemporânea como
também a promessa de sua maior conquista em seu périplo evolutivo através dos tempos.
A família, como a percebo no limiar desse novo giro em sua espiral evolutiva, será, quiçá,

num tempo
instinto não muito
gregário remoto,
do homem; o locus
onde apropriado
a afinida às mais
de, e não legítimas
apenas laços demanifestações
afiliação ou do
consagüinidade, presidirá a relação entre seus membros; onde o sentimento de posse cederá
gradativamente seu lugar ao anseio de doação; onde o contrato cível ou religioso entre os
casais não prevalecerá sobre o livre e espontâneo vínculo amoroso; onde o direito sobre os
filhos não terá primazia em relação ao direito dos filhos; onde, enfim, todas essas
transformações assinalarão o advento da maioridade social da Família, de sorte que o
sombrio retrato dela traçado por Capistrano de Abreu — família como um grupo formado
por pais soturnos, mães submetidas e filhos aterrorizados — permaneça apenas como a
fugidia lembrança de um arquétipo definitivamente ultrapassado.
A mutação cultural que caracteriza a contemporaneidade transcende, como vimos, a
questão da identidade do adolescente de nossos dias, para
30 / Luiz CanoN Osonio
Adolescente Hoje / 31
se inserir no contexto da redefinição dos valores das relações humanas hodier nas no seio
da famflia e da sociedade.
Há na raiz de todo esse processo de mutação sócio-cultural um elemento que consideramos
chave para seu entendimento. Trata-se da concepção do “tempo histórico” como fator
determinante dos modos de organizar-se da sociedade humana ao longo de sua evolução.
FLUSSER, filósofo e teórico da comunicação, numa arguta postulação sobre o modo de
encarar o fluxo do tempo, nos abre novos vértices para a compreensão desta questão.
Vamos, numa livre tradução de suas idéias, relacioná-las com os modelos culturais de M.
MEAD que serviram de paradig mas para a elaboração deste capítulo.
A sociedade, inicialmente organizada sob um modelo “mftico-ma’gico”, onde o tempo é
presente e o mundo é vivenciado como uma cena dentro da qual o tempo circula, há ceca de
3.000 anos atrás evoluiu para um modelo organizado a partir da consciência histórica, onde
há um tempo linear que corre do passado para o futuro, passando por um ponto imaginário
chamado presente. A consciência histórica nos remete ao passado em busca das srcens de
nosso comportamento presente e nele alicerça os fundamentos da existência social. Seria o
equivalente ao que M. MEAD chamava de “sociedades pós-figu rativas”, onde o modelo

vivencial
FLUSSER, é fornecido
começou apela geração
emergir umprecedente.
novo modelo Háque
cerca de 150 anos atrás,
se fundamentaria segundo
no que, à falta de
outra denominação mais adequada, ele batizou de consciência cibernética. O fluxo do
tempo passa a ser exatamente oposto ao tempo histórico, pois segundo essa nova concepção
o tempo não pode fluir do passado rumo ao futuro, já que é o amanhã que vem e não o
ontem. O passado passa, então, a ser uma dimensão incorpo rada ao presente, uma espécie
de memória que sustenta o presente, mas não mais nele residem as pautas relacionais
condutoras da evolução social. Isso corresponde, na expressão de M. MEAD, às
“sociedades pré-figurativas”, onde o modelo vivencial é fornecido pela geração futura; daí
sua afirmação de que os adultos de hoje são como imigrantes no tempo, assim como seus
antepassados o foram no espaço, ou seja, nós estamos num processo de mu dança para um
“novo mundo” que não se localiza noutra latitude e sim noutra concepção temporal (as
utopias doravante seriam, portanto, ucro nias...).

Tanto FLUSSER como M. MEAD admitem, no entanto, que todas essas formas ou estágios
de organização sócio-cultural coexistem na atualidade:
assim como certos agrupamentos primitivos (os pigmeus, por exemplo) vivem ainda um
modelo mítico-mágico e a maior parte dos seres humanos estão imersos no resgate de sua
consciência histórica, há um contingente cada vez maior de indivíduos que “empurrados”
pelos avanços tecnológicos mergulham nessa civilização prospectiva. A consciência
cibernética, que vem substituir a histórica, é assinalada, segundo FLUSSER, na ciência pelo
abandono do pensamento causal, na arte pela renúncia ao conceito de obra e na política
32 / Luiz Carlos Osorio
pela separação das categorias ideológicas e a substituição do pensamento histórico pelo
pensamento programático.

Ora, o que tudo isto tem a ver com nosso adolescente contemporâneo em crise de
identidade?
Esta reviravolta na concepção do tempo, não mais vivenciado como um fluxo unívoco do
passado rumo ao futuro, mas como uma seqüência de elemen tos de “vir-a-ser” capturados
pelo fugidio registro do agora, sem dúvida causa um abalo sísmico no vínculo de integração
temporal do sentimento de identi dade, cujas conseqüências são imprevisíveis mas
plenamente detectáveis na confusão vigente entre os adolescentes de hoje quanto à sua
identidade sexual e profissional.
Como esperar que um adolescente faça sua opção profissional a partir das que lhe são
oferecidas pelo sistema e valores da geração precedente quando esta nem sequer cogitava
da multiplicidade de ocupações nascentes com a revolução tecnológica moderna? Como
exigir que um adolescente cinja seu comportamento sexual/afetivo aos padrões da
tradicional famflia burguesa quando hoje experimenta modalidades relacionais nunca
entrevistas por seus antepassados e o futuro da ciência lhe acena com a possibilidade de
desvincular sua função reprodutiva do intercurso sexual com um(a) compa nheiro(a)?
Como vemos, os parâmetros que balizaram as gerações passadas na busca de suas
identidades pessoais e grupais estão sob o influxo de um processo mutativo, que enseja o
surgimento de novos valores humanos, cimentados não mais nas experiências passadas mas
nas expectativas futuras.
Finalizando, ao propor e aceitar como inevitáveis as contradições do momento sócio-
cultural que vivemos e que amplificam as contradições do momento psicossocial que
atravessam os adolescentes em sua trajetória exis tencial, nos colocamos em condições de
assimilar nossas próprias dúvidas e perplexidades ao nos defrontarmos com a tarefa de
tentar explicar o signifi cado transcendente da crise de identidade do adolescente
contemporâneo.
Adolescente Hoje / 33
Os grandes dilemas do adolescente

1 - O DILEMA EXISTENCIAL

Ao querermos situar o adolescente em sua contemporaneidade, vem-nos à mente com


insistência uma imagem analógica: o mundo de nossos dias, em muitos sentidos, dá-nos a
impressão de estar atravessando uma crise de identidade em tudo e por tudo similar à da
adolescência.
A concepção universalista contida na idéia de que hoje somos os habi tantes de uma
“aldeias global” põe em xeque as identidades nacionais, sócio- políticas, religiosas e
culturais vigentes até agora. A necessidade de integrar-se a humanidade num único e
gigantesco corpo-mente planetário, onde co-parti cipem e convivam todas as contradições
de seus elementos constituintes, asse melha-se à situação do adolescente premido pela
exigência de cristalizar numa identidade adulta todas as identificações e vivências prévias
prenhes de signifi cados contraditórios e conflitantes. A angústia confusional que a
humanidade experimenta, pelo questionamento de seus valores tradicionais, e a imperiosa
necessidade de reformulá-los face às exigências do atual momento do processo
civilizatório, tem características similares à que apresenta o adolescente quando vê
confrontadas as expectativas conservadoras de seu meio familiar com as demandas da
sociedade competitiva e em mutação cultural onde irá viver sua condição de adulto.
Se focalizarmos a evolução política através dos tempos sob a ótica das transformações do
Poder, poderemos genericamente concluir que a época em que vivemos assinala a sofrida
transição de formas autocráticas de governo oriundas do passado para modalidades de
autogestão democrática que vislum
bramos no futuro, com todos os movimentos de avanços e recuos que caracte rizam
igualmente o processo de substituição da dependência infantil pela autonomia adulta
durante a crise adolescente.
Não seria difícil comprovar que o mundo de hoje está atravessando uma crise de identidade
em tudo e por tudo similar à que caracteriza a adolescência. Para objetivar esta afirmação,
tracemos um paralelo entre os eventos da crise adolescente e a crise sócio-política do
mundo atual:
contemporâneo

CRISE ADOLESCENTE

1.
doRedefinição da imagem corporal consubstanciada na perda do corpo infantil e aquisição
corpo adul to.
2. Culminação do processo de sepa ração/individuação e substituição do vínculo de
dependência simbió tica com os pais da infância por relações objetais de autonomia plena.
3. Elaboração do luto referente à per da da condição infantil.
4. Estabelecimento de uma escala de valores ou código de ética próprio.
5. Busca de pautas de identificação no grupo de iguais.
CRISE DO MUNDO
CONTEMPORÂNEO
Redefinição das configurações urba nas, em função do declínio das pólis primitivas
(arquetípolis-cidades que se formaram a partir de um fator geo gráfico, tais como
proximidade de um curso d’água, cume de uma elevacão, etc..) e do advento das
conurbações urbanas (megalópolis-cidades que coalescem em função de fatores sócio-
econômicos).
Culminação do processo de descolo nização e substituição dos vínculos de dependência
simbiótica com a metró pole por relações estatais de autono mia plena (política e
econômica).
Elaboração do luto referente à perda da condição colonial.
Estabelecimento dos objetivos ideo lógicos nacionais com o conseqüente código político
que o viabiliza.
Busca de pautas de comportamento na comunidade internacional a partir das identidades
regionais (Cf., p. ex., a aliança dos países devedores da América Latina).
34 / Luiz ( O
AdoIe Hoje / 35
6. Estabelecimento de um padrão de luta/fuga com a geração preceden te.
E é nesse contexto que se insere a adolescência contemporânea, com todas as suas dúvidas
e perpiexidades existenciais, suas angústias frente à necessidade de propor-se um projeto de
vida em meio à escalada suicida dos arsenais nucleares, sua desesperança frente à
impossibilidade de reassegu ramento através do mito do futuro predizível, fantasia
prospectiva que susten tava e norteava as gerações de adolescentes de épocas pregressas.
Esta é, portanto, uma época em que, como em nenhuma outra até então, a sociedade
funciona como uma caixa de ressonância para a crise de identidade adolescente,
amplificando seus elementos conflitivos e bloqueando os meca nismos elaborativos que
permitem sua resolução.
No vórtice dessa crise de identidade individual e coletiva geraram-se os movimentos
transgressores da juventude contemporânea, batizada nos anos 50 de “juventude
transviada”, com seus desdobramentos subjacentes: movi mento beatnik (corruptela do
inglês beaten — batido, derrotado, e de um vocábulo eslavo que significa companheiro-
viajante, como na composição da palavra “sputnik”), expressando o caráter pessimista,
depressivo, de uma parcela jovem descrente do passado e do futuro; movimento hippie,
caracte rizado por um pacifismo radicado na negação maníaca da agressão e na aliena ção
da realidade circunjacente; movimento punk, gerado no seio das camadas proletárias
marginalizadas, de características destrutivas, politicamente aliena do, aglutinado sob o
dístico “no future for me... no future for you”. Todos esses movimentos nascidos no seio
das sociedades capitalistas do mundo oci dental e rapidamente “internacionalizados”; todos
denunciando a desespe rança subjacente na sobrevivência e estabilidade dos valores
transmitidos pelas
36 Ltiiz ( O
gerações predecessoras; todos embebidos da dramática angústia confusional que comparece
quando o sentimento de identidade fica à deriva; e todos eles, afinal, fazendo do consumo
de drogas o signo ritualístico de suas cerimô nias de autodestruição.
“Viva e usufrua o dia de hoje porque amanhã você poderá ser a derradeira vítima da
violência urbana ou de uma hecatombe nuclear” — esta é uma mensagem subliminar que
diuturnamente bombardeia a mente dos jovens de todo o mundo, perturbando-lhes a
cristalização de seu sentimento de identi dade e gerando-lhes uma insegurança prospectiva
sem precedentes. E a queda do mito do futuro previsível (que possibilitava às gerações
passadas vislumbrar seu futuro espelhado no presente de seus genitores), trazendo em seu
bojo o combustível para todas as explosões e movimentos transgressores da juven tude
contemporânea das nações industrializadas.
Como propor-se um projeto de vida em meio à escalada suicida dos arsenais nucleares ou
da ameaça ecocida pela ação predatória do homem “civilizado”? O espectro do “dia
seguinte” paira sobre toda uma geração de jovens, em qualquer parte do planeta.
E o que dizer desse imenso contingente de jovens do Terceiro Mundo, para os quais o dia
seguinte foi antecipado para hoje e onde o fantasma das conseqüências de uma hecatombe
nuclear vem sendo materializado na realidade brutal da fome que lhes corrói as entranhas,
da prostração física que lhes abate o ânimo e da desesperança de que a mera sobrevivência
lhes seja assegurada?
Temos, hoje, no Brasil aproximadamente 30 milhões de adolescentes, dos quais 2/3, ou
seja, 20 milhões, vivem em condições subumanas, nas zonas rurais ou na periferia das
grandes cidades, resumindo-se seu dilema existencial em sobreviver. Sobreviver não ao dia
seguinte a uma hipotética hecatombe nuclear, mas ao dia de hoje onde a miséria não é uma
suposição mas uma certeza e onde a violência e o crime aparecem como únicas alternativas
para nivelar privilégios. Esta visão apocalíptica infelizmente não é simples figura de
retórica, mas está impregnada de realidades tangíveis.
Num país como o Brasil onde encontramos simultaneamente elementos civilizatórios das
três “Ondas” descritas por A. TOFFLER, não podemos analisar a juventude atual sob uma
ótica reducionista e simplificadora. Temos um imenso Brasil agrícola que apenas agora
toma contato com o processo industrial que caracteriza a segunda Onda; a seu lado, um
significativo contin gente urbano, controlado por uma elite empresarial com sólido respaldo
políti co-militar, envolvido na manutenção dos mandamentos do processo industrial
(estandardização, especialização, sincronização, concentração, maximização. centralização)
e já contamos com um emergente núcleo da intelectualidade lançando sua cabeça-de-ponte
no futuro, preconizando uma mentalidade eco lógica e criando tecnologia na área de
comunicações. Este é o Brasil — talvez a nação do globo que mais contrastes apresente —
e cuja adolescência por
7. Aceitação tácita dos ritos de inicia ção como condição de ingresso ao status adulto.
8. Assunção de funções ou papéis se xuais auto-outorgados, ou seja, consoante inclinações
pessoais, in dependentemente das expectativas familiares e, eventualmente (ho mossexuais)
até mesmo das impo sições biológicas do gênero a que pertence.
Estabelecimento de um padrão de confronto/distanciamento dos países “subdesenvolvidos”
com as nações “ricas” (vide pragmatismo econômi co).
Aceitação tácita dos ritos de iniciação democrática como condição de ingres so ao status de
nação adulta.
Assunção de ideologias sócio-políti cas auto-outorgadas, ou seja, con soante inclinações
nacionais indepen dentemente das expectativas dos po vos de srcem e, eventualmente, até
mesmo das imposições do bloco geo político a que pertencem (vide situa ção de Cuba e
Nicarágua na América Latina)
Adolescente Hoje / 37
isso mesmo constitui-se num amálgama de todas as tendências encontradas nos jovens das
mais diversas latitudes e culturas.
Em síntese, o dilema existencial dos adolescentes contemporâneos, inde pendentemente da
latitude em que se encontrem ou do sistema sócio-político em que vivam, é este: como
fazer um projeto de vida num mundo parado xalmente comprometido com um projeto de
morte, isto é, como desenvolver-se e arquitetar seu futuro numa sociedade autofágica, que
se imola diuturnamente no altar dos deuses econômicos, configurando o absurdo holocausto
da espécie que se aniquila a pretexto de assegurar sua própria sobrevivência.
2—O DILEMA VOCACIONAL
“Não tem sentido haver vagas para todos nas faculdades; não há campo para tantos
doutores” — Maria Elizabeth L. Marsiglia, 17 anos, estudante
Rev. Veja, 20/02/1 980
Ao considerarmos o dilema vocacional dos adolescentes no Brasil, iremos, ab initio, nos
defrontar com a defasagem entre as aspirações profissionais desses jovens e a realidade do
mercado de trabalho que lhes é oferecido. Suas expectativas inspiram-se em modelos
alienígenas que estão longe de corresponder às possibilidades sócio-econômicas de nosso
país, onde há uma enorme pressão social para que os jovens atinjam o estágio universitário,
transformando o ingresso nos cursos de nível superior num gigantesco funil gerador de
frustrações. Por outro lado, o acelerado processo de obsolescência técnica e decomposição
econômica da universidade brasileira gera profissionais cada vez mais incompetentes e
despreparados para ocupar espaços no já escasso mercado de trabalho existente para eles.
E, “Iast but not Ieast”, o processo recessivo da economia do país faz com que muitos desses
profis sionais de nível superior engrossem as fileiras dos desempregados (ou subem
pregados) nos anos subseqüentes a seu egresso das universidades.
E kafkiano falar-se de opções vocacionais num país como o Brasil onde as taxas de
desemprego sãopor
entendendo-se assustadoras; isso sem
tal as atividades se mencionar
laborativas a elevada proporção
cuja remuneração de subempregos,
não permitem condições
mínimas de subsistência.
Como dissemos anteriormente, a imensa maioria dos jovens brasileiros não têm direito a
sua adolescência, considerando-se como tal o processo de gradativo amadurecimento
psicológico e assunção de crescentes responsa bilidades sociais, pois antes mesmo da
puberdade já estão engajados na luta pela sobrevivência, ajudando seus pais e irmãos
maiores na árdua e nem sempre exeqüível tarefa de prover os meios para a subsistência do
grupo familiar. Mesmo entre os adolescentes da elite sócio-econômica, que é capaz de
alcançar e cursar uma universidade, a realidade não é mais alentadora:
apenas cerca de 10% dos jovens egressos de nossos cursos universitários conse
guem colocação no mercado de trabalho; os restantes 90%, quando não susten tados pela
família, são obrigados a desistir de suas aspirações vocacionais e disputar com os não-
graduados pelas universidades a escassa oferta de empre gos existente. E até entre os que,
por seu talento e competência, optam pela atividade liberal sem vínculo empregatício, há
um elevado índice de desistência após alguns anos de frustradas tentativas de afirmação
profissional. Não é hoje incomum em nosso país encontrarmos jovens advogados como
donos de bares e lancherias, médicos abandonando o estetoscópio e o bisturi para se
dedicarem à produção ou comercialização de alimentos naturais e arquitetos recém-
formados vendendo objetos artesanais em feiras hippies.
Por outro lado, entre os que ainda cursam as universidades há um igual mente significativo
índice de abandono da formação profissional que iniciaram ou freqüentes trocas de cursos,
estabelecendo-se por vezes um verdadeiro périplo acadêmico a procura da vocação
pretendida, denunciando com isso a insatisfação e a ambivalência dos jovens na área
laborativa.
Embora nos tempos atuais já não se condicione mais entre nós o filho a exercer o ofício
paterno nem a filha a imitar as prendas domésticas da mãe, a crescente indecisão e os
conflitos dos jovens no que diz respeito à eleição de uma profissão sugerem que a liberdade
de escolha não se fez acompanhar do bem-estar esperado.
Como explicar, então, essa aparente contradição entre a liberdade para escolher uma
profissão e a insatisfação vocacional de nossos adolescentes contemporâneos?

Há que se considerar, de início, a ocorrência de fatores intrapsíquicos, tais como a


insatisfatória resolução de conflitos com as figuras (imagos) paren tais, acarretando
perturbações no processo de aquisição da identidade pessoal e, conseqüentemente,
fracassos quer nas escolhas profissionais como afetivas.
Por outro lado, conquanto não se veja o jovem contemporâneo constran gido a decidir-se
por um ofício em função das expectativas paternas ou até mesmo da escassez de opções que
existiam outrora, as pressões sociais direcio nadores de sua escolha profissional são fatores
determinantes do elevado índice de frustrações vocacionais.
E fato notório que a sociedade hodierna privilegia o desempenho (e
a competição) em detrimento da ludicidade (ou prazer da “coisa em si”).
a ação em detrimento da reflexão e o condicionamento mental em detrimento
da emoção. Sua ética fundamenta-se num único paradigma: a busca do Poder
legitima toda e qualquer conduta humana.
Essa postura aciona inevitáveis conflitos entre as tendências vocacionais e o imperativo não
só das necessidades de subsistência, como, e quiçá principal mente, do estímulo a busca de
Poder, erigido em nosso momento civilizatório como o mais alto valor da condição
humana: não mais apenas um meio. mas o fim colimatório das aspirações individuais.

Como,
que nãopor outrosobrevivência
a mera lado, o ser humano tem outras expectativas
ou posicionamento na em sua atividade profissional
4dok Hojc 39
38 / Luiz Cark Osor:o
escala de valores da sociedade em que vive, aqueles jovens que alcançam
a privilegiada posição de poder optar por uma atividade laborativa (e que
são entre nós uma escassa minoria ainda) está cada vez mais se capacitando
a exercer duas ocupações, uma das quais lhe dá o sustento e a manutenção
do status social requerido e a outra lhe proporciona o prazer lúdico que
o trabalho deve (ou deveria) proporcionar.
“Mas essa segunda atividade, então, não é o mesmo que um hobby representava para a
geração precedente?”, indagarão alguns dos leitores. Não exatamente — eu lhes
responderia — porque o hobby insere-se no contexto das atividades de lazer que seguem ou
intercalam com as horas de trabalho, ao passo que aquela considerada acima é uma
atividade laborativa alternativa. Deste modo, enquanto nutrida pela esperança do jovem de
reformular seu projeto de vida e adequá-lo aos seus desejos e não apenas às suas
necessidades, essa atividade laborativa alternativa aspira em transformar-se na atividade
principal e sua práxis instrumenta a criatividade que só vem a lume nas autên ticas
vocações.
Se quisermos auxiliar os jovens na solução de seu dilema vocacional, é mister antes de mais
nada acabarmos com a mentalidade do “meu filho doutor” ainda vigente neste país e
responsável pela absurda política academi zante, totalmente defasada da realidade do
mercado de trabalho brasileiro.
O diploma universitário há muito já deixou de ser passaporte para o sucesso profissional;
hoje em dia ele habitualmente apenas assinala o fim de um longo calvário na perseguição
de um objetivo ilusório, que tantas vezes nem mesmo é o do sujeito que o busca.
E preciso, pois, esvaziarmos o mito do título universitário e permitirmos assim que nossos
jovens busquem a realização de seus talentos ou pendores vocacionais sem exigir-lhes o
sacrifício dos melhores anos de suas vidas no brete da habilitação pré-acadêmica,
ameaçados pela degola da reprovação no vestibular à Universidade, vestibular esse que se
tornou num dos mais estúpidos ritos de iniciação à vida adulta em nossa cultura.
A circunstância de a sociedade atual privilegiar o desempenho e a compe tiçâo em
detrimento do prazer lúdico da atividade laborativa predispõe à transformação da ocupação
em emprego, à valorização do capital em detri mento da utilidade social do produto do
trabalho, ao surgimento da ideologia do lucro fácil e todas as demais mazelas que
infernizam as relações de produção em nossa sociedade.
O fulcro da crise educacional dos jovens de hoje está nesta perversão da natureza do
trabalho, que os conduz ao já aludido périplo à procura da satisfação profissional. que
nunca chega porque busca sustentar-se em elemen tos desgarrados da genuína fonte do
prazer proporcionado pela atividade laborativa, que é o seu potencial criativo e sua inserção
numa escala de valores encimada pelo bem-estar coletivo.
Em suma, o dilema vocacional dos jovens contemporâneos é realizar-se profissionalmente
numa sociedade que reduziu o trabalho a mero sucedâneo do Poder Econômico.
3—O DILEMA SEXUAL
As investigações sobre a sexualidade juvenil levadas a efeito em vários países do
continente americano, incluindo o Brasil, tem revelado alguns dados inesperados para quem
supõe serem os tabus sexuais algo do passado: de um lado a evidência de quão rudimentar é
ainda o grau de esclarecimento sobre a vida sexual que possuem os adolescentes
contemporâneos e — o que mais nos causa espanto — como é universal essa precariedade
de informa ções, independendo do nível sócio-econômico ou das vertentes culturais; de
outro lado, a constatação de que na imensa maioria das situações a educação sexual
proporcionada pelos pais não vai além, para os rapazes, da advertência contra os perigos
das doenças Avenéreas
menstruais. entrada e,empara as das
cena moças, dos como
escolas cuidados higiê nicos
mentoras que cercam
da educação ospouco
sexual períodos
mais
fez do que ampliar as informa ções sobre a anátomo-fisiologia dos órgãos sexuais e o
mecanismo de repro dução.
A anticoncepção, por exemplo, continua sendo tema tabu entre pais e filhos, ou professores
e alunos, o que denota que os preconceitos não foram banidos, apenas mudaram de alvo. E
evidente que estamos aqui falando em termos genéricos, não ignorando que existem
bolsões culturais onde a temática sexual é tratada com a serenidade e objetividade
desejadas.
Feita esta constatação, podemos discutir o dilema sexual dos jovens con temporâneos a
partir de um equívoco que, a meu ver, tem sido cometido em relação à alardeada liberdade
sexual dos jovens de hoje e à suposta redução dos conflitos nessa área quando confrontados

com os da geração precedente.


Penso que a problemática sexual dos adolescentes de hoje não é diversa, em sua essência,
daquela das gerações precedentes. Se o grau de permissividade existente é inegavelmente
maior, não se acompanha, contudo, da resolução dos conflitos na área sexual. Precisamos
diferenciar a liberdade sexual outor gada ou concedida pela liberalização dos costumes
daquela que é conquistada pela superação, a nível individual, das inibições e preconceitos
atávicos. Por isto, parece-me que a tão decantada revolução* sexual de nossa época não
passou por enquanto de uma reação à repressão sexual e que só adquirirá um caráter
nitidamente revolucionário na medida em que trouxer simultanea mente uma proposta de
evolução para níveis mais satisfatórios de relaciona mento sexual, o que não me parece que
esteja ocorrendo ainda, se conside
* Revolução (Re-evolução), como a própria etimologia do termo sugere, pressupóe um
novo giro na espiral evolutiva do progresso humano, conduzindo a um nível superior da
estruturação
— no caso, do comportamento sexual.
40 / Luiz ( O
Adolescente Hoje / 41
rarmos a questão em um contexto social e não apenas nas circunstâncias de indivíduos ou
grupos isolados.
Nossa geração tem, no tocante à sexualidade, uma “liberalidade de facha da” que apenas
identifica algumas vezes a ânsia dos adultos em recuperar o tempo e a juventude perdidos
nas malhas da repressão sexual. Há toda uma escala de valores vinculada com a
“descoberta” do corpo humano como fonte e destino de prazer que ainda não assimilamos
ou nos confunde.
Penso que cada geração terá que fazer suas próprias experiências e con quistas, seja no
terreno sexual ou fora dele. O que serviu para nossa geração superar ou absorver seus
conflitos na área sexual dificilmente servirá para a de nossos filhos. As vertiginosas
transformações sócio-culturais de nossa época faz com que, conforme afirma M. MEAD,
sejamos hoje como imigrantes no estranho território que habitam nossos filhos, com usos,
costumes, lingua gem e valores tão distintos dos nossos como para os indivíduos de
décadas atrás eram os de seus antípodas.
Em realidade, só a superação dos próprios conflitos sexuais dá ao adulto, pai, médico ou
professor, investidos da função de educadores sexuais, condi ções de ajudar os adolescentes
a fazerem do sexo algo satisfatório e criativo, em lugar de um tabu que violenta a natureza
humana e compromete a mais genuína fonte de felicidade conhecida: a relação amorosa e
íntima com outro ser humano.
No entanto, há uma considerável parcela do aprendizado dos conteúdos essenciais da vida
humana que só a experiência pessoal irá proporcionar. No tocante à sexualidade talvez
tenhamos mais a aprender com nossos filhos adolescentes do que a ensinar-lhes. Tenho
uma vívida impressão de que os jovens de hoje estão superando muito dos arraigados
sentimentos “machistas” ou “femeachistas” que ainda infernizam nosso relacionamento
com o sexo oposto. Se serão mais felizes e realizados sexualmente do que somos ou fomos,
isto só o futuro dirá. Tratemos por ora de não atrapalhá-los na busca de uma sexualidade
mais sadia, reconhecendo humildemente nossas limitações para orientá-los.
Referimos acima a questão da concepção na adolescência e pela impor tância que esse
tópico adquire no contexto atual da sexualidade adolescente vamos nos deter um pouco
mais em sua análise.
A liberação dos costumes sexuais em nossa época e o grau de segurança proporcionado
pelo aperfeiçoamento dos métodos anticoncepcionais propor cionaram aos adolescentes
contemporâneos a possibilidade de alterar significa tivamente seu comportamento sexual
em relação à geração de seus pais: a iniciação sexual dos rapazes já não se processa mais
necessariamente com prostitutas como outrora e sim habitualmente com moças de sua idade
e convivência social, que, por sua vez, já não se vêem mais constrangidas a conservar a
virgindade até o matrimônio, sempre tardio se consideradas as demandas instintivas de uma
sexualidade normal.
No entanto, esta gradativa adequação do comportamento sexual dos jo vens a suas
necessidades biológicas acarretou outra ordem de conseqüências indesejáveis, tais como o
recrudescimento da incidência de doenças venéreas e o alarmante índice de concepções
entre adolescentes. Isto se explicaria pelo referido grau de ignorância ainda vigente entre os
jovens quanto às possibilidades de contágio durante o intercurso sexual e quanto ao
adequado emprego dos métodos anticoncepcionais. Tal desconhecimento radica-se não só
na persistência de uma atividade preconceituosa, repressiva e intolerante por parte dos pais
quanto à sexualidade de seus filhos (especialmente de suas “filhas”), como no descaso e
numa moralidade dúbia e hipócrita por parte dos responsáveis pela saúde pública. No
tocante à questão das concepções não desejadas em adolescentes, há que se mencionar
ainda o desejo, consciente ou não, dos jovens em geral de testar suas condições de
fertilidade.
Se é verdade que os métodos anticoncepcionais que oferecem maior mar gem de segurança
(pfiula, DIU) têm seus inconvenientes e até mesmo suas contra-indicações na adolescência,
não é menos certo, contudo, que a interrup ção de uma gravidez indesejada por práticas
abortivas traz riscos maiores do que qualquer processo anticoncepcional. Os adultos, ao
sonegar informa ções e impedir o acesso de seus filhos adolescentes aos métodos
anticoncep cionais estão indiretamente sendo responsáveis pelo aumento da incidência de
abortos clandestinos, realizados muitas vezes por leigos e nas piores condi ções higiênicas e
psicológicas possíveis. Prevenir uma concepção indesejada de uma adolescente e o aborto
conseqüente é responsabilidade de todos nós, pais, educadores e médicos.
O dilema sexual dos jovens de hoje assenta-se indubitavelmente na crise de valores da
família contemporânea e na falência da instituição do casamento como instrumento para
assegurar a estabilidade das relações afetivas e a função procriadora da espécie. Resume-se
este dilema, portanto, em dar seqüência à revolução dos costumes sexuais desencadeada
pela geração precedente, agora temerosa de ter sido a responsável pela abolição dos valores
morais que lhe foram transmitidos e até mesmo pela extinção da família em seus moldes
tradicionais.
4— DROGADICÇÃO: O DILEMA “TÓXICO”
Inserido no contexto do conflito de gerações. objeto de estudo do capítulo seguinte, está a
problemática do uso de drogas pelos adolescentes contempo râneos. Não penso que se
possa ampliar nossa compreensão do problema sem vinculá-lo às vicissitudes do confronto
generacional, com as características que assumiu nos dias que correm.
Cremos que há dois grandes equívocos na questão do uso de tóxicos entre os adolescentes
de hoje:
42 / Luiz Carlos Osorio
Adolesc fIo; 43
1 Por parte dos adolescentes, a ilusão de que as drogas os “libertam”, quando na verdade os
“suõmetem” ou “escravizam”; para escapar ao jugo dos pais ou dos “valores burgueses da
sociedade de consumo”, como apre goam, deixam-se dominar pelos tóxicos e acabam
manipulados pelos interesses escusos dos traficantes.
2 — Por parte dos pais, o correspondente engano de que os filhos estão, com as drogas,
desafiando a moral doméstica e “protestando” contra seus hábitos de vida, quando na
verdade os estão imitando; pode, de sã consciência, um pai que fuma invariavelmente uns
quantos cigarros por dia ou a mãe que consome outros tantos tranqüilizantes ou pílulas para
dormir, censurar seu filho adolescente porque está se “intoxicando” com maconha?
Com tais considerações não se está simplesmente procurando inocentar os adolescentes ou
incriminar os pais pela incidência, reconhecidamente cada vez maior, das toxicomanias em
geral entre os jovens, mas antes buscando assinalar que uma abordagem compreensiva do
uso de tóxicos na adolescência não é possível sem incluir, ao lado do estudo das motivações
conscientes e inconscientes dos jovens, a avaliação correta do papel dos pais e da sociedade
na gênese e manutenção do problema.
Dissemos acima que os jovens quando se drogam estão imitando a conduta drogaditiva dos
pais e da sociedade em geral, ainda que escolhendo drogas diferentes das usadas pelos pais.
Uma corroboração desta assertiva foi a da constatação feita em certo país europeu de que à
medida que o alcoolismo decresceu e paralelamente o uso da maconha incrementou-se
entre os adultos, idêntica curva, mas com a inversão das drogas, ocorreu entre os
adolescentes, ou seja, na medida em que os pais adotavam o hábito dos seus filhos de fumar
maconha, estes o abandonavam e passavam a usar a droga até então da preferência de seus
pais, isto é, o álcool. Esta observação nos leva à conclusão de que os jovens divergem da
geração precedente na escolha do tóxico que utilizam, mas os imitam no padrão
drogaditivo.
Por que os jovens se drogam? Porque a humanidade sempre usou tóxicos para aliviar suas
ansiedades ou para proporcionar-se uma gratificação compen satória em situações de
frustrações intensas. E se o uso de drogas incremen tou-se nos tempos atuais, outra não é a
razão senão o aumento significativo dos índices de angústia (e seus equivalentes
depressivos) na população em geral. Por isto, toda a política de repressão ao uso de tóxicos
está fadada ao fracasso. Dirige-se às conseqüências e não às causas. Estas são complexas,
de natureza intrapsíquica e sócio-econômica, o que não nos autoriza a adotar a postura do
avestruz, achando que estamos solucionando o problema da drogadicção apenas com as
paliativas medidas de combate ao tráfico ou com o esclarecimento aos eventuais usuários
dos inconvenientes de seu uso.
Para se entender a drogadicção e encaminhar-se sua solução, precisamos antes compreender
o que leva um indivíduo a não consumir drogas. Quem são os jovens que não se drogam?
Por que não o fazem? Quais os estratos
sociais que não utilizam tóxicos ou o fazem em escala reduzida? Qual é o perfil
psicossocial do não-drogaticto?
Pensemos não iatrogenicamente. Reflitamos sobre o que protege o indiví duo dos rituais
destrutivos da drogadicção. Pesquisemos que tipo de família ou sociedade prescinde da
conduta drogaditiva. E aí estaremos nos aproxi mando das soluções buscadas.
Resumidamente podemos afirmar que, do ponto de vista intrapsíquico, o padrão
drogaditivo é marcado por uma significativa tendência regressiva, isto é, face à emergência
de situações de angústia ou depressão, há uma busca de alívio ou proteção recorrendo a
modelos primitivos de sustentação psíquica, como os vigentes no período pós-natal ou
mesmo fetal. Isto explica, portanto, a preferência dos drogaditos por efeitos que os
subtraiam da reali dade circundante, tal como é a condição psíquica dos recém-nascidos, ou
até mesmo alcancem o estado mental “fetalizado” dos usuários das drogas ditas pesadas.
Quanto às condições ambientais, sabemos que as drogas são consumidas indistintamente
em todos os estratos sócio-econômicos, mas é notória sua maior incidência nos grandes
centros urbanos em comparação com os pequenos núcleos populacionais interiorianos ou o
meio rural. Isto nos leva incontinenti à conclusão de que os indivíduos mais expostos à sua
utilização são os que dispõem de uma precária estrutura de ego para fazer frente à carga
ansiogênica da vida urbana contemporânea, organizada sob a égide do desrespeito ao
humano em favor do produto material de sua atividade, numa flagrante inversão tanática de
valores e que conduz à praxis suicida de uma sociedade que violenta as leis naturais e,
portanto, predispõe ao uso de substâncias que em lugar de nos alimentar nos envenenam.
O dilema tóxico dos adolescentes é, pois, renunciar ao prazer substitutivo proporcionado
pelas drogas numa sociedade que induz a seu consumo.
44 / Luiz CarIo Osono
Ado!ecentc Hojc 45
Conflito de gerações e os
ritos de iniciação
6

“Si jeunesse sauvait Si vieillesse pouvait.. (adágio latino)


O conflito de gerações provém de uma “defasagem” no sistema de valores de duas gerações
sucessivas. Ele será proporcional à intensidade das mudanças sócio-culturais em processo
numa determinada época, razão pela qual nas últimas décadas tem assumido proporções
nunca antes verificadas na história da civilização ocidental.
Não obstante o inegável esforço dos pais modernos para compreender seus filhos
adolescentes e dialogar com eles, as gerações continuam em muitos sentidos mais
separadas e incomunicáveis que nunca; isto se deve em grande parte à aceleração da
reforma de costumes precipitada pelo fantástico pro gresso material e pelas conquistas da
mente humana em anos recentes.
Apesar de vivermos em plena “era das comunicações” o processo comuni cante entre as
gerações continua emperrado e claudicante. Exigências e intole râncias de parte a parte
continuam cavando uma “brecha generacional”, nem sempre evidenciável no âmbito
familiar mas muitas vezes expressando-se no cerne de conflitos sócio-políticos de cunho
marcadamente intergeneracional, como os que presenciamos em fins da década de 60.
No fundo do abismo que se foi cavando entre os jovens e seus pais está a luta pelo poder
que caracteriza a sociedade competitiva de nossos dias. Os adultos temem a ameaça
representada pelo crescente poder jovem cada vez mais reivindicativo e disposto a antecipar
a hora de substituir os mais velhos no comando dos destinos do mundo. A sociedade regjda
pelos adultos empenha-se. então, em protelar o mais possível sua inevitável substi
46 / Luiz Carlos Osorio
tuição através do expediente de prolongar a moratória adolescente com a exigência de
longos períodos de estudos acadêmicos, prestação de serviço militar, exigências cada vez
maiores de capacitação técnica para o exercício profissional, baixa remuneração a quem
não possui nível superior de instrução, circunstâncias estas que acarretam o conseqüente
retardo da autonomia finan ceira que permita aos jovens independizar-se dos pais e
constituir suas próprias famílias. Já não contando mais com o primado da autoridade moral,
os pais recorrem ao jugo econômico para prenderem a si e a seus desígnios os filhos
adolescentes. Estes, por sua vez, não se dão conta de que sua progressiva ascensão à
plenitude de sua condição física e mental e à possibilidade de realizar suas potencialidades
criativas coincide com o gradativo declínio das correspondentes aptidões dos pais.
As capacidades e as crescentes aquisições dos filhos adolescentes põem em xeque a posição
até então inconteste dos pais como líderes e ídolos e os coloca ante a inevitável e dolorosa
realidade de uma velhice e morte cada vez mais próximas. E chegada a hora de fazer um
balanço em suas próprias realizações e os pais enfrentam-se agora com as frustrações
decorrentes da constatação de que muitas de suas aspirações adolescentes não foram concre
tizadas.
Assim, à inveja do filho pelo poder sobre seu destino, de que é detentor o pai, corresponde
a inveja do pai pelo vigor físico e acesso ao futuro que possui o filho; e é em torno a tais
sentimentos de inveja (elemento deteriorador de qualquer relacionamento humano) que se
polariza o conflito de gerações. Na crista deste conflito delineia-se o temido espectro do
protesto da juventude contemporânea em suas várias manifestações.
Sem rebeldia e sem contestação não há adolescência normal. Em todas as épocas e em
todas as latitudes
identidades, o adolescente
testando diferentes sempre foirelacionar-se
formas de um contestador, um buscador
e ensaiando novasdeposturas
novas éticas.
E preciso que se lembre de que as grandes conquistas do espírito humano foram geralmente
produto desta fase tão contur hada quanto criativa. Quantas obras literárias e artísticas não
foram igualmente gestadas na adolescência, embora só tenham vindo à lume anos ou
mesmo décadas após?
O adolescente submisso é que é a exceção à normalidade. Ele é quem deve nos preocupar.
Pais repressores, como sociedades repressoras, geram adolescentes submetidos, criam
adolescentes potencialmente enfermos e estio lados em seu potencial criativo.
Os líderes de hoje foram adolescentes contestadores de ontem. Não pode mos escotomizar
isto. Se quisermos que a qualidade de vida humana não decaia nas próximas gerações não
devemos impedir nossos jovens de continua rem tendo oportunidade de testar suas
condições de às
terem acesso liderança, de experimen
informações de tudo otarem
que sesua criatividade
passa no mundo.noSe
laboratório da vida
o jovem não tivere tais
de
oportunidades de se desenvolver em liberdade e na liberdade encontrar os paradigmas de
Adolescente Hoje / 47
uma vida de maior respeito ao pensar alheio, então estaremos comprometendo
irremediavelmente o futuro.
Vivemos hoje num mundo de egoísmos e submissão aos ditames da busca ao poder porque
fomos adolescentes em uma época marcada pela guerra, pelo fratricídio, pela dissolução
dos valores humanos, pelo desrespeito ao direito do próximo, pela atitude ecocida em
relação à natureza que nos dá o sustento além da fruição de suas belezas; porque, enfim,
somos filhos das ditaduras e opressões de todas as srcens.
A liberdade de contestação que dermos aos jovens tem seus inconve nientes, tem seu preço,
mas é o ônus do qual não se pode escapar se quisermos que o mundo de amanhã seja
povoado de criaturas pensantes, sensíveis, criati vas e capazes de alcançar melhores
condições de vida e inter-relacionamento.
A contestação do jovem não deve ser reprimida e sim aproveitada inteli gentemente. Com
ela e através dela devemos aprender que espécie de mundo querem os jovens de hoje para
viver amanhã. Lembremo-nos de que o mundo do futuro não nos pertence e sim a eles. Eles
tem, portanto, o direito de opinar e optar pelo tipo de vida que pensam que lhes convêm. E
não vamos lhes dizer arrogantemente que sabemos o que é melhor para eles, pois nossa
alegada competência de adultos não tem criado melhores condições para nós próprios.
O modelo que os pais hoje oferecem aos filhos adolescentes é o do caráter frio, narcisista,
pouco afetivo, voltado para o culto do transitório, do efêmero, e para a busca obsessiva do
status material, utilizando-se de fontes de prazer evasivas e causadoras de danos, quando
não para si para os outros, com evidente prejuízo de sua natural inclinação para relações
afeti vas que propiciem calor humano e de seu impulso para liberar seus potenciais
criativos.
A ética que o mundo moderno transmite aos jovens não é uma ética de reflexão alicerçada
na responsabilidade e sim de ação inspirada no oportu nismo, onde meios e fins estão
confundidos e onde a violência encontra seu habitat ideal. Os adolescentes aprendem a não
sacrificar o prazer de hoje pela segurança de amanhã, pois esta carece de fundamentação
num mundo onde o futuro deixou de ser previsível e quiçá até mesmo de se fazer possível;
igualmente aprendem que a violência é a única forma de nivelar privilégios.
E aí o jovem rebela-se. Contesta. Politiza-se. E o faz antes de mais nada como reação ao
sentimento de que o estão marginalizando da grande e trágica competição que os mais
velhos travam pelas fatias disponíveis do bolo do Poder.
Como perversão dessa luta do jovem pela afirmação no seio da sociedade surge a
delinqüência juvenil, que se estigmatiza como uma das pragas sociais de nossa época,
esquecendo-se de que os maiores delitos continuam sendo cometidos pelos adultos. Não
estão aí as guerras agenciadas pelos adultos para sacrifício da juventude? Não são elas a
expressão institucionalizada do
48 / Ju Carlos O
fihicídio praticado por quem se arroga o pátrio poder sobre os filhos das nações
beligerantes?
Manifestações filicidas e seus equivalentes parricidas são encontráveis em todas as culturas
e são o testemunho universal da rivalidade existente entre as gerações. Discutir quem
cometeu o primeiro crime, se o pai ou se o filho, é como tentar estabelecer a antecedência
do ovo sobre a galinha ou vice-versa. Mas ao passo que o pensamento humano priorizou os
eventos parricidas na crônica das civilizações, os delitos filicidas ficaram quase sempre
relegados a um segundo plano (não fosse a História um relato adultocêntrico!), razão pela
qual é a eles que queremos dar ênfase aqui.
Entre as manifestações filicidas que atravessaram os tempos, além do estatuto marcial que
manda que as nações sacrifiquem seus jovens nos campos de batalha, encontramos a prática
da circuncisão, os castigos corporais infligi dos aos filhos, os sofrimentos físicos e
psíquicos que assinalam os ritos de iniciação nas civilizações primitivas e as torturas a que
as gerontocracias totali tárias submetem seus prisioneiros políticos, geralmente jovens.
Por que os adultos rechaçam os jovens? Por que os tratam como êmulos
supostamente tolos, presunçosos e despreparados? Por que troçam de seu
idealismo com a voz arrogante da experiência?
Tratemos de examinar e aprender um pouco melhor as possíveis razões
que motivam a conduta dos adultos em relação aos adolescentes.
Do ponto de vista intrapsíquico, o comportamento dos pais frente a seus filhos adolescentes
é determinado basicamente pelo grau de resolução de seus conflitos edípicos, ou seja, pelo
modo como aqueles, por sua vez, se relacionaram com seus próprios pais.
Tanto o rechaço sistemático quanto a identificação patológica de certos pais com seus
filhos adolescentes (de quem copiam hábitos ou pautas de conduta, como veremos adiante),
têm sua srcem em uma situação edípica não adequadamente resolvida e posteriormente
reeditada.
Assim como os filhos adolescentes, também os pais sofrem um processo de luto, pela perda
de sua condição de adultos jovens, e de cuja adequada elaboração dependerá em boa parte a
satisfatória convivência com seus filhos adolescentes.
A chegada dos filhos à adolescência e a concomitante despedida de sua própria mocidade
coloca os pais
Enquanto ante projetam-se
os filhos a irrecorrívelem
confrontação com a onde
direção ao futuro reali dade de sua
habitam suasprópria finitude.
expectativas
existenciais, os pais agarram-se ao passado, na vã tentativa de eternizar uma juventude
evanescente.
Esta ânsia em reter os grãos da mocidade na ampulheta do ciclo vital retrata-se na patética
imagem de homens maduros correndo atrás da adoles cência perdida em exercícios físicos
mais além de suas capacidades orgânicas e de mulheres consumindo-se em rituais
cosméticos que transformam o natural processo de envelhecimento numa melancólica
exibição de decadência física. Outra não é a razão para a inversão do processo
identificatório observado
Adolescente Hoje / 49
nas últimas décadas, onde são os adultos que imitam os adolescentes no seu modo do
vestir-se, falar ou comportar-se, no comprimento dos cabelos que usam ou nos esportes que
praticam, na música que escutam ou nos bares que freqüentam, no culto ao corpo ou no
exotismo das crenças, enfim, em tudo aquilo que é identificável com o poder jovem.
Mas, ao lado do que é imanente no confronto entre as gerações, há elementos conjunturais a
explicar a feição peculiar que assumiu em nossos tempos. Fixemo-nos, por exemplo, numa
circunstância nada aleatória para explicar por que o acme das manifestações do conflito
generacional em nossa época ocorreu em fins da década de 60, mais explicitamente no
decorrer do ano de 68, onde eclodiram quase simultaneamente em distintos pontos do globo
situações explosivas de confronto de poder jovem como o establísh ment adulto: o já
célebre maio de 68 em Paris, a primavera de Praga, a matança de Tlatelolco no México, os
conflitos nas universidades do oeste americano, as manifestações da esquerda jovem no
Brasil, em parte respon sáveis pela edição do AI-5, e assim por diante.

Ora, se recordarmos que os pais dos jovens de 68 foram adolescentes nos idos da II Guerra
Mundial e tendo, portanto, sua adolescência transcorrido em meio ao sofrimento universal
imposto pelo maior e mais generalizado conflito bélico da História, não estaríamos por
certo exagerando ao afirmar que naquela quadra da vida onde os pais só encontraram
frustrações e priva ções, seus filhos, nos anos 60, passaram a usufruir, em termos genéricos,
o período de maior bem-estar material do século e eram brindados com a mais prodigiosa
gama de opções de lazer jamais oferecidas a uma geração de adolescentes até então!
Este nos parece ser um elemento assaz significativo a considerar para
justificar a reação inconscientemente hostil dos pais aos filhos adolescentes
ao final dos anos 60. Como que para confirmar nossa hipótese, é notório
o declínio da intensidade do conflito intergeneracional no mundo ocidental
a partir dos anos 70.
“Conhecidas as causas, eliminados os efeitos” diz, otimista, o aforismo latino. Não tão
otimistas, e quiçá nem tão realistas, tampouco, faríamos coro com um idealista, médico de
adolescentes, que observa: .. “talvez o mais importante seja que nós, os adultos instruídos,
possamos inverter as atuais tendências de uma sociedade em direção ao aniquilamento de
nosso mundo e à perversão de todos os valores e, em troca, incorporar-nos à nossa
juventude num esforço permanente para construir para nós, para eles e para os que nos
sucederem uma civilização melhor”.
Para que isto se concretize é mister que os adultos se “conscientizem” de sua inveja aos
filhos adolescentes e não a deixem interferir no seu relaciona mento com eles. Da mesma
forma, os jovens precisariam temperar suas tendên cias impulsivas com a atitude reflexiva
dos mais velhos, o que só conseguirão na medida em que também tomem consciência do
quão invejosos são do
51) / Lwz Carlos Osono . s
poder que detêm seus pais, que constantemente desafiam com sua ação irrefle tida e por isto
inconseqüente.
OS RITOS DE INICIAÇÃO
“O certo é que os adultos sempre temeram as tendências revolucio nárias dos jovens. Por
isso, sob o pretexto de recebê-los cerimonio sam ente na sociedade dos “grandes”,
inventaram-se os ritos de inicia ção, variados quanto à forma, mas sempre iguais na
essência, pois todos visam amortecer o arrebatamento renovador do jovem, naquilo que
possa interferir nos privilégios dos adultos em relação ao sexo, ao trabalho e à própria
subsistência.”
(Cyro Marfins)
Desde os primórdios da civilização, a sociedade humana criou certos ritos ou cerimônias
para assinalar as mudanças críticas na evolução de seus membros e instituições. Entre estes
estão as cerimônias de entronização à idade adulta, corolário cultural do término da
adolescência.

Nos povos
mágica, primitivos
onde tais rituais
predominam são quase
elementos sempre
sádicos marcados
e maníacos, dospor conteúdos
quais de natureza
encontramos vestígios
em muitos ritos de iniciação das civilizações con temporâneas. Tais rituais representam
uma barreira colocada pelos mais velhos para dificultar o acesso dos jovens aos privilégios
do mundo adulto, mas também levam o propósito de facilitar as transições de status que
caracterizam a adolescência.
Entre os ritos de iniciação contemporâneos lembraríamos certas cerimô nias religiosas,
como a primeira comunhão dos católicos, a confirmação dos protestantes ou o barmitzvah
dos judeus, o serviço militar, o baile de debu tantes e o exame vestibular às universidades.
E de se observar que muitas vezes os próprios adolescentes estabelecem seus ritos de
iniciação, tais como o trote universitário ou as provas exigidas para admissão em
determinada “patota” ou grupo de iguais.

O prolongamento
surgimento do exigências
de novas período empara
que que
os jovens sãoo submetidos
atinjam status adultoaidentificam
tais ritos ouaso resistências
reiterado
da geração precedente em aceitar a chegada desse cada vez mais numeroso contingente de
novos e mais bem-dotados rivais no ingente esforço competitivo por um lugar ao sol na
sociedade atual.
Por outro lado, os jovens não são meras vítimas desse processo de retarda mento ao
ingresso na condição adulta, pois igualmente contribuem para boico tar seu acesso a ela
através
dias. de práticas alienantes como as que caracterizam a cultura adolescente de nossos
A negação das vicissitudes da convivência humana, a percepção da sofrida
ascensão à autonomia da identidade adulta e a escassa tolerância ante a frustra ção de
postergar certas necessidades agudizadas pelo consumismo hodierno
dole Hoje / 51
são alguns fatores que estão na srcem de muitos chamados movimentos contestatórios dos
jovens dos tempos atuais, que quando examinados à lupa escrutinante dos métodos
psicológicos e sociológicos hoje disponíveis mos tram-se muito menos contestatórios do
que parecem e muito mais conserva dores do que pretendem.
Na raiz desta dificuldade dos jovens de ascender à condição adulta estão as vicissitudes do
processo de separação/individuação, cristalizadas em torno da ambivalência entre o desejo
de crescer e a vontade de continuar protegidos no casulo srcinal.
Daí decorre a indefinição do término da adolescência, como já foi salien tado, o que nos
enseja a oportunidade de discutir se e quando tal processo
é interminável. Mas esta já é a temática do próximo capítulo.
52 Luiz CarIo Osono
O adolescente “problema”
7
1 — ADOLESCÊNCIA NORMAL E PATOLÓGICA

A primeira e mais crucial questão com que nos defrontamos no estudo


dos desvios de comportamento do adolescente é a distinção entre o normal
e o patológico. A já citada expressão crise adolescente, longe de ajudar-nos
a discriminar os limites entre o que é normal e o que não o é, tornou ainda
mais imprecisos e interpenetráveis os territórios da normalidade e da patologia
adolescente.
Normalidade, para alguns, é um conceito estatístico; embora tal afirmação seja uma falácia
científica, não há como negar que em psicologia o conceito de normalidade sofre
significativas variações conforme o momento evolutivo do indivíduo, o meio sócio-cultural
em que vive e até mesmo o instante histórico em que se acha inserida sua existência. Como
afirma AJURIA GUERRA, normalidade in abstracto não existe; ela é até certo ponto uma
criação no quadro de possibilidades que nos foram concedidas e das aquisições que fomos
conquistando”.
Para entender-se melhor o que consideramos um desvio da normalidade psíquica na
adolescência, é preciso revisar brevemente a noção de sintoma. Sempre que empregamos
este termo, ele nos traz à mente uma ineludível conotação patológica, ou seja, que há um
desvio dos padrões tidos como normais. No entanto, em se tratando de adolescentes,
sintoma não é necessa riamente indício de anormalidade psíquica e — como a própria
etimologia do termo sugere — é lícito usá-lo tão-somente no sentido de “acontecimento”.
Muitas perturbações do adolescente são apenas reações adaptativas normais para as
circunstâncias e o momento considerado de sua evolução ontogenética.
AdoIc !iojt 53

Como podemos,
manifestações ouentão, discriminar na
“acontecimentos” prática oàque
peculiares é normal
crise (ou seja,
adolescente) o que
do que consideramos
é patológico?
Vamos procurar responder esta indagação utilizando-nos de um esquema referencial teórico
e dois “flashes” clínicos que o tornem inteligível mesmo para os “não iniciados” em
psicopatologia adolescente
O esquema referencial teórico a que aludimos é o que considera o caráter psicopatológico
dos sintomas na adolescência uma função de certos “módulos”
ou “variáveis”, que são:
1) Intensidade
2) Duração
3) Significado regressivo
4) Polimorfismo
Vejamos agora os dois “flashes” clínicos prometidos:
Situação 1
Trata-se de um adolescente que fuma maconha há aproximadamente dois meses. Começou
a fazê-lo por pressão de seu grupo de iguais e concedeu experimentar em parte “por
curiosidade”, em parte “para não ser diferente dos outros” e assim não se tornar antipático
aos companheiros.
então “Puxa fumo”
nos fins de semana, quandoesporadicamente, quando
a turma está reunida. lhe contatou
Nunca oferecemcom
um “baseado”,
traficantes eou
toda a “erva” que lhe chegou às mãos foi por intermédio de um colega ou amigo, sem que
tivesse que pagar por ela, a não ser em uma ocasião em que propuseram um “rateio” no
grupo. Cumpre razoavelmente suas obriga ções escolares, tem bom vínculo afetivo com a
família, pratica esportes, possui uma namoradinha e sua diversão preferida é “curtir um
bom som”.
Situação 2
Trata-se de um adolescente que fuma maconha há um ano e meio. Come çou a “puxar
fumo” sozinho, em seu próprio quarto, quando se sentia muito angustiado ou deprimido.
Inicialmente a “erva” lhe era oferecida, mediante pagamento, por um amigo que a obtinha
de um traficante, que depois passou a fornecê-la diretamente a ele. Antes fumava somente
quando estava
aulas para “na fossa”,
“zanzar mas ultimamente
por aí, curtindo “puxa fumo”
o seu fuminho”... regularmente.
Também abandonouAté os deixa
treinosdedeir às
basquete (esporte que praticava) e já não “transa” com a turma do surf’. Justificando-se
pelo desejo de “entrar numa boa” e “experimentar outro as tral” fez uso de ácido. Já provou
umas “pancas” (comprimidos) e também “se picou”. Passa dias sem tomar banho ou
alimentar-se regularmente. De certa feita furtou uma garrafa de uísque num supermercado e
noutro dia participou, juntamente com o colega que lhe conseguiu “fumo” pela primeira
vez, do roubo de um carro “para dar umas voltinhas apenas”... Em casa está sempre
tentando “desdobrar” os velhos para “descolar mais uma nota”
54 Luu C Qsor)()
e quando não obtém o que quer agride os pais com palavrões e sai chutando portas e
móveis. Atualmente não tem qualquer relacionamento afetivo com jovens do sexo oposto e

sua atividade
limita-se sexual
a prática dese“felácio”
restringee coito
a ocasionais encontros com
anal, geralmente com características
prostitutas, com as quais
sádicas.
Na situação 1 estamos diante de um sintoma (uso de maconha) de início relativamente
recente e de moderada intensidade ou freqüência, sem ocorrên cia de outras manifestações
psicopatológicas e cujo significado regressivo é comparável a outros hábitos orais
socialmente incorporados à condição adulta, tais como o de “fumar tabaco”.
Conseqüentemente, tal sintoma, a nosso critério, não é identificável com um quadro
psicopatológico. Tratam-se, ape nas, de manifestações da crise adolescente.
Já na situação 2 temos um quadro com marcadas características regressivas (isolacionismo,
abandono da escola e esportes, desleixo pessoal, deterioração do convívio familiar e social),
onde a intensidade do sintoma é identificável pela busca de drogas de efeitos
gradativamente mais potentes e a persistência no tempo (um ano e meio) já é significativa,
encontrando-se ainda associadas ao emprego de drogas outras manifestações
psicopatológicas (furto, conduta agressiva, perversões sexuais) que assinalam a presença do
que denominamos polimorfismo sintomático. E, pois, conforme o consideramos, um
quadro definidamente patológico. Trata-se, então, do que denominamos de um síndro me
delinqüencial.
Obviamente, entre as duas situações extremas consideradas acima há
um continuum de situações intermediárias, cujo caráter normal ou patológico
nem sempre é assim tão facilmente identificável.
Há que considerar-se ainda que o esquema referencial dos “módulos” ou “variáveis” dos
sintomas, conforme o apresentamos aqui, obedece a uma finalidade eminentemente didática
e não deve ser tomado como um modelo simplista para reduzir os fatos clínicos a uma
abordagem perfunctória e, portan to, inadequada.
2 — CONDUTA E PSICOPATOLOGIA DO ADOLESCENTE
Por que o adolescente expressa predominantemente na ação ou conduta sua psicopatologia?
E notória a tendência à impulsividade por parte do adolescente; nada o definiria melhor do
que o mote paradoxal da canção: é um indivíduo que “age duas vezes antes de pensar”.
Diz-se que o adolescente sistematicamente “atua” seus conflitos e isto o estigmatizou como
‘o paciente intratável”. por considerarem-no um delinqüente em potencial.
Até hoje, apesar da multiplicidade de explicações surgidas, dá-se como
ainda não bem-estabelecida a compreensão desta tendência impulsiva do ado lescente.
Alega-se desde a explosão instintiva com raízes na biologia da adoles
Adoie Ho / 55
cência até as suas dificuldades na aquisição do pensamento abstrato e que
o levariam a expressar seus sentimentos num nível mais concreto, como é
o corporal.
Equivocadamente somos muitas vezes levados a interpretar a “tendência à ação impulsiva”
como patognomônica da psicopatologia adolescente. Digo equivocadamente porque não
raro o adolescente está usando a “ação” como a maneira que lhe é peculiar de tentar pôr
ordem no caos mental em que eventualmente o jogo a crise que atravessa. “A ação” neste
caso é uma forma de dar continente às ansiedades confusionais características do processo
puberal. Por outro lado, ao usar a “ação” em lugar da “reflexão” (mesmo quando as
circustâncias exijam o contrário) o adolescente está evidenciando as vicissitudes de seu
processo de substituição do “concreto” pelo “abstrato”, que é indicativo do advento dos
estratos superiores da função cognoscitiva e que caracteriza a mente adulta.
Entendemos a conduta impulsiva típica do adolescente como vinculada intrinsecamente a
vicissitudes de sua crise de identidade. Como sabemos, o processo puberal provoca uma
situação de caos intrapsíquico, transitório e reversível, mas que marca indelevelmente o
comportamento do indivíduo nesta fase do desenvolvimento. De um lado o pressionam as
pulsões instintivas exacerbadas e, de outro lado, as exigências familiares quanto a um novo
e desconhecido posicionamento social, sem que ele conte ainda com um equipa mento
cognoscitivo e ume patrimônio
tempestade endo exopsíquicaafetivo capaz de ajudá-lo a absorver efetivamente essa dupla
que o atormenta.
O adolescente, então, atua. E, atuando, delinqüe. Delinqüência, como lembra BLOS, é um
termo sociológico com referências condutuais e psicoló gicas ainda mal definidas. Compara
ele o estado de delinqüência ao estado de “febre” no campo clínico, sem que os dados
disponíveis permitam por si só assinalar uma causa específica ou caracterizar uma entidade
nosológica precisa. Tudo o que podemos inferir da delinqüência é que o indivíduo e o
ambiente se encontram em estado de violenta discordância.
Em resumo, a psicopatologia peculiar ao grupo etário adolescente caracte riza-se
fundamentalmente por alterações na área comportamental, onde o adolescente, na
impossibilidade de superar seus conflitos com o mundo que o cerca, protesta contra o modo
como este está estruturado e tem como objetivo transformá-lo em lugar de modificar-se.
Esta talvez seja uma maneira demasiado simplista de abarcar a psicopatologia específica da
adolescência. mas como não é nossa intenção entrar aqui em maiores digressões técnicas,
creio ser esta a melhor síntese que podemos oferecer da essência da proble mática
adolescente: o conflito eu-mundo externo, decorrente da própria neces sidade evolutiva de
diferenciar-se e individuar-se do adolescente, quando exa cerbado, dá srcem aos distúrbios
de conduta, responsáveis pela imensa maio ria das consultas aos especialistas nesta faixa
etária.
56 / Luiz CarIu Osorio
3 — O ADOLESCENTE “PROBLEMA”: COMO ABORDÁ-LO
Se até agora tentamos discriminar quando um adolescente necessita aten ção especializada,
agora nos encontramos frente a necessidade de alinhavar
os recursos que dispomos para ajudar o jovem problematizado.
Um dos equívocos mais freqüentes cometidos por pais de adolescentes (e incrivelmente
compartilhado por muitos especialistas da área) é a crença de que o comportamento
perturbador de seus filhos pode ser eliminado através da ajuda psicoterápica, bastando para
isto que os pais tragam o filho adoles cente ao consultório do especialista. Ora, a
psicoterapia de adolescentes não é uma panacéia universal e suas limitações, conhecidas de
todos que a empre gam criteriosamente e dos que a procuram sem expectativas mágicas,
deri vam-se de certos determinantes tão óbvios quanto negligenciados por quem busca ou
faz uma indicação de atendimento psicológico nesta fase evolutiva.
Para que uma psicoterapia de adolescentes seja bem-sucedida — qualquer que seja a
vertente teórica que a sustenta e independentemente da técnica ou qualificações de quem a
maneja — é necessário que sejam preenchidas três condições básicas:
1) Que o adolescente tenha motivação para tratar-se, isto é, que venha à psicoterapia por
vontade própria e não por imposição dos pais.
2) Que a perturbação emocional que apresente ocasione mal-estar e sofri mento para o
próprio adolescente, não somente para seus pais e/ou circuns tantes.
3) Que o adolescente revele possibilidades de introspecção e percepção da natureza íntima
de seus problemas — aquilo que em linguagem técnica chamamos “irisight” —, ou seja,
que
sentiraceite a srcem
ou agir intrapsíquica
e se disponha das pertur
a buscar bações eque
em si mesmo nãoapresenta
no que ouemnos
seuque
modo de pensar,
o rodeiam a
srcem de seu desconforto psíquico (angústia) ou social (reiterados conflitos com adultos
ou outros adolescentes).
Esclarecendo melhor, há certos distúrbios de conduta apresentados pelos adolescentes que
são “egossintônicos”, isto é, não são reconhecidos pelo ado lescente como alterações de seu
padrão comportamental,
de familiares e adultos emsendo
geral.geralmente atribuídos
Em tais casos, toda aàajuda
falta psicoterápica
de compreensão ou tolerância
esbarra num
obstáculo inicial que a compromete e geralmente leva ao fracasso. Só na vigência dos três
pré-requisitos enumerados acima uma abordagem psicoterápica terá condições de
instrumentar modificações no estado psicopatológico que apresente o ado lescente.
“Mas então, que alternativas se nos oferecem quando não se verificam
tais condições?”, devem estar a indagar-se alguns pais aflitos que nos lêem.
Como a grande maioria dos problemas apresentados pelos adolescentes
são direta ou indiretamente expressões de seus conflitos com a geração prece dente e de sua
discordância com os valores sócio-culturais vigentes, sempre
Adolescente Ho;e / 57
nos restará a possibilidade de fazer uma abordagem sistêmica do problema, isto é,
considerá-lo como um emergente de um sistema familiar que está em sofrimento e que
merece atenção e ajuda como um todo. Em outras palavras, se os pais puderem suportar a
ferida narcísica que representa admitir que são parte integrante do problema e se
dispuserem a aceitar encará-lo sob esta perspectiva, e se os irmãos e demais componentes
do grupo familiar estiverem dispostos a colaborar, então estaremos aptos a propor uma
aborda gem da família como paciente, buscando soluções coletivas e não individuais.
Há quem, entusiasmado pelo alcance e possibilidade da terapia familiar, sugira ser ela o
recurso finalmente encontrado para abordar situações inabor dáveis com as técnicas
utilizadas até então; esta atitude, além de revelar uma perigosa tendência ao “misticismo
científico”, promete incorrer em outra das tantas ilusões no progresso das ciências
humanas, ao querer transformar em panacéia universal, o que certamente é apenas mais
uma valiosa
possibi contri
lidades buição ao
de minorar campo das causado
o sofrimento psicoterapias,
pelos permitindo que se ampliem
distúrbios mentais suas
aos que estão
circunscritos em seu raio de ação.
E com que outros meios contam os especialistas para ajudar os adoles centes e seus
familiares, na eventualidade de que sejam satisfeitos os pré-re quisitos referidos?
De um modo muito sumário, dadas as intenções deste livro e o público leitor a que se
destina, faremos menção, a seguir, a outros métodos psicote rápicos com os quais estamos
familiarizados, sem que isto implique obviamente em menosvalia ou descrédito de outras
abordagens existentes.
Antes de referir os métodos psicoterápicos propriamente ditos é preciso mencionar, pela
importância social de que se revestem, aquelas que se consti tuem na linha de frente da
batalha pela saúde mental da população adolescente:
são elas a orientação a pais e seus filhos adolescentes feitas por pediatras e clínicos em
geral, conscientizados da transcendência de sua função de “mé dicos da família”, e o
aconselhamento realizado nas escolas por pedagogos, psicólogos e assistentes sociais, de
cuja habilidade no manejo das situações do cotidiano existencial dos jovens depende o
êxito do enfoque preventivo que hoje preside qualquer ação em prol da saúde e bem-estar
da comunidade.

Passando a discorrer sobre os recursos psicoterápicos do especialista.


além da já mencionada abordagem do grupo familiar como paciente, destaca ríamos os
seguintes procedimentos, com suas respectivas indicações:
Psicoterapia de Grupo — é, no meu entender, um dos recursos psicote rápicos mais
valiosos nesta faixa etária, por corresponder à natural inclinação dos adolescentes de
procurar no grupo de iguais a caixa de ressonância para suas ansiedades existenciais. Suas
principais indicações seriam as crises no processo de aquisição da identidade adulta (onde
se inserem as relacionadas com as escolhas afetivas e profissionais) e os problemas de
relacionamento com outros adolescentes.
58 / Linz Carlos Osorio
A grupoterapia com adolescentes pode ser feita segundo distintos marcos referenciais
teóricos. A técnica oriunda do modelo psicanalítico é a de uso mais corrente em nosso
meio. Eventualmente podemos empregar a via dramá tica além da verbal, como veículo de
expressão e elaboração dos conflitos do adolescente, quando então estaremos em presença
da técnica denominada psicodrama.
Penso que pela tendência grupal manifestada pelos adolescentes, o grupo é a matriz
dinâmica onde melhor podemos acompanhar e entender a expressão de seus conflitos,
ensejando-lhes sua resolução dentro e através do próprio grupo de iguais.
Psicoterapia focal — é aquela modalidade técnica que busca centrar o atendimento no
“ponto de urgência”, isto é, no foco tensional em questão, considerando-se como tal
momentos traumáticos na vida do jovem, tais como a realização das provas de competência
intelectual ou física, ocorrência de doenças orgânicas incapacitantes, acidentes, divórcio
dos pais, morte de pes soas amadas e assim por diante.

A identificação do fator desencadeante da perturbação apresentada pelo


adolescente é o elemento nodal para o bom êxito desta abordagem psicote rápica.
Muitas das situações referidas acima não conseguem ser debeladas com a psicoterapia focal
porque há “pontos débeis” na estrutura da personalidade desses adolescentes, necessitando-
se, então, recorrer à abordagem psicana lítica.
Psicanálise — é uma técnica que visa fundamentalmente à pessoa, não às suas perturba
ções ou sintomas, e estaria indicada sempre que o objetivo fosse explorar em profundidade
os conflitos apresentados pelo adolescente, vinculando-se com suas motivações
inconscientes; em outras palavras, quando houvesse um estancamento no projeto de vida do
adolescente por situações crônicas de insatisfação pessoal, que geralmente estão associadas
a distúrbios neuróticos bem-estabelecidos (como presença de crises de ansiedade, obses
sões, fobias, manifestações conversivas) ou na eventualidade mencionada, ou seja, quando
não pudessem superar uma situação traumática superveniente em função de uma frágil
estrutura de personalidade subjacente.
De todos os métodos referidos é a psicanálise o que exige mais estrita mente o
preenchimento, por parte do adolescente, dos pré-requisitos aludidos:
desejo de analisar-se, consciência de que nele e não no meio ambiente está o fulcro de sua
problemática e possibilidade de visualizar e compreender as motivações inconscientes de
seus procedimentos.
Ambientotera pia — nos casos de adolescentes com distúrbios mentais
graves, com risco de conduta auto ou heterodestrutiva, há necessidade de
institucionalizá-los.
As modernas clínicas ou comunidades terapêuticas”, como são chama das, são estruturadas
de modo a constituir uma matriz sócio-familiar seme Adolescente Hoje / 59
lhante ao ambiente de onde provêm os pacientes adolescentes; a tônica do atendimento é
posta, então, no modo de funcionar desse ambiente substitutivo.
A ambientoterapia objetivaria criar um clima de tolerância e absorção das manifestações
regressivas do adolescente perturbado, ensejando-lhe mais adaptadas satisfações de suas
necessidades instintivas básicas e permitindo-lhe utilizar os núcleos íntegros ou sadios de
sua personalidade na busca de novos padrões transacionais com o mundo externo.
60 / Juiz Carlu Oçur,o
Em busca da adolescência perdida.
o mito fáustico
8

“Se um dia eu disser ao momento fugaz


Continua aqui! Es belo! Não te vás! Poderás algemar-me a bel-prazer...”
(do FAUSTO de GOETHE)
Não, não é dos jovens que quero falar agora. O título que encima este capítulo não se
refere, como pode fazer crer, à juventude perdida ou transviada nos descaminhos da
delinqüência, da drogadicção ou da perversão dos valores éticos em geral. E aos adultos
que me refiro aqui. Aos adultos de hoje que correm desesperadamente atrás de suas
adolescências perdidas, tal como meta foricamente o expressa essa plêiade de homens e
mulheres, na “flor de sua meia-idade”, que enfiados em seus vistosos abrigos esportivos
praticam jogging nas alamedas de nossos parques urbanos. Nada contra o exercício físico,
salutar prática que nos redime do sedentarismo hodierno. Ressalve-se, contu do, que, sob a
alegação de que estão a cuidar da saúde e do corpo, um imenso contingente de adultos,
inconformados comema perda
atlética, incidindo de sua
exageros manimocidade, lançam-se
festamente a um assim,
iatrogênicos; culto fanatizado à formaa
onde se pretende
saúde gera-se a doença e o desejo de postergar a velhice acaba muitas vezes por antecipar a
morte.
Esses indivíduos, que alimentam a ilusão de congelar o tempo existencial
através do mimetismo com a juventude que os rodeia, tratam de copiar hábitos
e modas dos adolescentes, dos quais imitam desde o corte dos cabelos e
a maneira de vestir-se até a forma de comportar-se ou o modo de falar,
expressando-se em suas gírias, praticando seus esportes e hohhies favoritos,
freqüentando seus templos de lazer, práticas que caracterizam um curioso
Adolescente Hoje / 61
e invertido processo de assimilação que se constitui hoje num fenômeno cultu ral em franca
expansão e a merecer mais do que a simples menção num livro dedicado ao estudo da
juventude contemporânea.
Por outro lado, são esses mesmos adultos que, no afã de reter a mocidade que se lhes
escapa, alternam o culto ao corpo, à saúde e à mística do poder jovem, com o ritual do
consumo de tóxicos, tal qual faustos modernos ofere cendo seu devir existencial em troca
de efêmeros instantes de prazer advindos da negação onipotente da realidade fática de sua
finitude humana.
Fausto, a lendária figura que passa a freqüentar as sagas míticas a partir
de meados do século XVI, e que pontifica na magistral obra de GOETHE,
tornou-se símbolo do desejo humano de sobrepor-se a seu próprio destino.
Assim como há distintas versões de Fausto, há inúmeras leituras de sua concepção mítica.
Há quem ponha ênfase na alegoria sobre a sempiterna luta entre o Bem e o Mal, o triunfo
final do espírito que afirma sobre o espírito que nega, a disputa entre Deus e o Diabo pelas
almas além-túmulo, a redenção dos espíritos pelo arrependimento cristão, e assim por
diante; há quem prefira, contudo, encará-la sobre a ótica das transformações que assinalam
o advento da modernidade, ideologizando Fausto como protagonista prototípico da tragédia
do desenvolvimento humano através do processo civili zatório. Há quem ponha acento na
feição romântica do herói fáustico e há quem se fixe na sedução mefistofélica. Entre tantas
acepções do mito fáustico tomaremos a que considera o pacto com o Diabo um retorno à
mocidade em troca da própria alma ofertada à voragem dos infernos após a morte do corpo.
O tempo é o crédito em questão e a Fausto pouco importa contabi lizá-lo no instante do
pacto, pois como afirma o Príncipe das Trevas (no “Doutor Fausto”, de T. MANN), “nós
concedemos tempo, muitíssimo tempo, tempo em abundância, tanto tempo que nem se
precisa pensar no fim — estamos longe dele”, criando assim a ilusão da juventude eterna.
Bacalaureus, o arrogante bacharel que troça da própria velhice do Diabo no Fausto de
GOETHE, é o arauto primevo desse culto à juventude que há que conservar-se a todo custo,
mesmo contrariando a elementar lei do ciclo vital, ao afirmar — em mote hoje assaz
festejado — que “se alguém passou dos 30 anos, podemos tê-lo já por morto”.
Ouçamos na íntegra a fala do personagem, incensando a condição jovem
e abominando a senectude:
“É presunção da mais primária alçada
Querer ser algo, quem não é mais nada.
A força humana é o sangue, e onde se movem
Seus fluxos mais do que em veias de um jovem?
Lá tudo flui potente, algo se faz.
Cai o que é fraco, medra o que é capaz.

E soro vivo em sua nova energia,


Que vida nova, em si, da vida cria.
62 / Luiz Carlos Osono
Enquanto conquistamos universos,
Que tendes feito? cochilado, imersos
Em sonhos de velhice, febre fria
Que pesa, idéia inúteis planos,
Estéril geada: fadada ao aborto;
Se alguém passou dos 30 anos,

Podemos tê-lo já por morto;


Oxalá em tempos de vós dessem cabo”.
E prossegue, à juventude concedendo a própria glória da criação:
“Da juventude, esse é o teor mais fecundo
Antes de eu criá-lo, não havia o mundo”.

Outro não é, dadamesma


prolegômenos forma,
tragédia, o sentidooda“Era
substituindo trasmutação
no início bíblica
o Verbo”proposta pornoFausto
por “Era inícionos
a
Ação”, tão mais ao gosto e feição do espírito adolescente.
E a aspiração fáustica de reter para sempre o momento fugaz da adoles cência que leva os
pais a tentar impedir, ou ao menos retardar, o crescimento dos filhos, não só pelo receio de
que esses tomem seus lugares na sociedade mas, sobretudo, para não se sentirem
empurrados inexoravelmente para a velhice e a morte.
Quando jovens procedemos como se a eternidade fosse atributo indisso ciável da condição
humana; quando, finalmente, percebemos a areia escoan do-se inapelavelmente na
ampulheta da vida, nossa inconformidade nos leva a querer restaurar a adolescência que se
foi, através de um mimetismo compe titivo com nossos filhos, responsável pelo mal-estar
entre as gerações que vigora neste fim de século.

Aí está, quem
na espiral sabe, o grande
civilizatória, impasse
pois, se da existência
os adultos humana
não puderem nesse
aceitar limiar de um novodegiro
a irrecuperabilidade suas
adolescências e não souberem renunciar a qualquer tentativa mágica de recuperá-las,
acabarão por sucumbir ao impulso tanático de destruir quem lhes impõe a consciência de
sua finitude, ou seja, os jovens. Esta imolação invejosa das futuras gerações poderá ocorrer
menos através de uma hecatombe nuclear, que igualmente anteciparia o fim da atual
geração adulta, do que pelo lento e gradual processo de destruição ambiental (ecocídio),
que roubaria dos jovens de agora a possibilidade de vida futura, tal qual dela os adultos de
hoje sentem-se privados pela implacável lei do ciclo vital.
O ideal fáustico de retorno à mocidade gera-se sob a égide de Hyhris. Hybris, a soberba,
divindade alegórica da mitologia greco-romana, que despre za as limitações impostas pelo
princípio da realidade e desconsidera o direito alheio. A ela rendemos homenagem quando
saímos à procura de nossa adoles cência perdida.
Ado!escentc Hojc 63
O adolescente do ano 2000:
uma visão prospectiva
9

eu acho que somos nós (e não o destino) quem faz do amanhã


um novo dia”
(Gabi, uma adolescente de 13 anos, 1984)
“De médico e louco, cada um tem um pouco”, diz o adágio. “Não há quem a profeta, fez
por outra não se meta”, aduziria eu, pedindo escusas pela rima anafônica. O fato é que a
prospecção ao futuro é inerente ao pensamento humano. E fez-se de Nostradamus a
personificação mítica desse impulso epistemofílico a remexer as entranhas do porvir, que
acompanha a espécie desde que se fez bípede e pôde com o olhar sobranceiro antever o
destino de suas flechas.
Afirmam os filósofos que o que caracteriza a condição humana é a capaci dade de o
Homem refletir sobre si mesmo — isto é o que na essência o distingue dos animais. E neste
re-fletir-se sobre si mesmo está sempre presente a indagação sobre seu devir existencial.
O passado é um tempo congelado: por mais que o exploremos nada há que nos revele que
não venha impregnado do “déjá connu”. O presente esgota-se no instante que transcorre,
sem permitir ao menos que o transfixemos com a reflexão, pois esta é irremissivelmente
mais lenta que o átimo existencial. Só o futuro nos oferece o lúdico prazer de criar
realidades prováveis ou possíveis com nossas fantasias prospectivas.
Como será o adolescente do ano 2000?
Antes de mais nada, será um indivíduo inteiramente alfabetizado pela
informática, contando com um código semiótico que para seus pais ainda
fora como uma língua estrangeira, jamais a materna. Por mais que nossa
64 / Luiz Carlos Osorio
geração aprenda a dedilhar as teclas dos computadores, sempre falaremos nela com o
sotaque de quem fez sua automação gráfica nas máquinas de escrever. Nelas tatibitatiamos
nossas primeiras letras impressas e nunca nos livraremos inteiramente dos vícios solipsistas
daí provenientes.
A linguagem dos computadores será a língua materna e universal dos adolescentes na
virada do século. A eles caberá, então, o privilégio de aposen tar o mito da Torre de Babel.
E no entendimento da fala virá, quem sabe, o dos povos e nações. Ao adolescente de
amanhã tocará viver num mundo globalizado pelos meios de comunicação. Isto significa,
possivelmente, o des terro definitivo dos preconceitos tribais da espécie humana.
Da possível superação de outros preconceitos — como o sexual — já falamos. Vamos nos
deter agora na hipotética criação de uma sociedade sem classes, sem ódios raciais ou
religiosos, sem confrontos bélicos, que será a tarefa crucial dos jovens do futuro, se o
gênero humano sobreviver aos tempos de violência predatória e auto-imoladora que
atravessamos.
Não resolvemos ainda — e quiçá nunca o façamos inteiramente — a adequada distribuição
dos bens e riquezas entre todos os seres humanos, fulcro das preocupações e do confronto
entre as duas grandes correntes sócio-e conômicas e políticas do século: capitalismo e
socialismo; mas já os jovens, que, como os poetas, antevêem o futuro, nos convidam a
abandonar a polari zação entre “direita” e “esquerda” e assumirmos decididamente a
preocupação maior do gênero humano neste limiar do milênio, que é a de nossa própria
sobrevivência como espécie. Esta preocupação já está se estruturando numa nova proposta
sócio-política que está galvanizando a juventude contemporânea e será a pedra-de-toque
das reivindicações dos jovens do ano 2000: o ecolo gismo.
O adolescente de amanhã não estará mais polarizado, como estivemos, entre a direita
capitalista e a esquerda socialista, e sim entre o industrialismo conservador da 2 onda
civilizatória e o ecologismo revolucionário de nosso próximo estágio evolutivo. E no fluxo
da corrente ecológica que se plasmará a identidade política do jovem no raiar do próximo
milênio. Não tenho dúvidas de que a ideologia ecológica, em comunhão com o progresso
tecnológico. pavimentará a práxis societária dos jovens nas próximas décadas. A chaminé
das fábricas cede passo ao hip-bip dos computadores no advento da era da informática e
esse evento histórico marcará indelevelmente o perfil do compor tamento adolescente nos
próximos anos.
O computador, que nessas primeiras décadas de sua existência tornou-se o símbolo por
excelência de uma civilização massificada, ao que tudo indica terá destino diverso nas mãos
dos jovens de amanhã, que esboçam crescentes sentimentos de revolta contra a tendência
despersonalizante que permeia as conquistas tecnológicas em curso.
Há entre os jovens um nítido anseio de substituir o serialismo massificador
da educação que lhes é ministrada pelo saber artesanal, proposta emergente
na cultura adolescente do século que chega. Não mais o conhecimento linear,
Ado!i Ho 6
padrão causa-efeito, que norteou a evolução científica até agora, mas o conhe cimento
circular que demanda um constante questionamento aperfeiçoador através dos mecanismos
de retroalimentação. E isto deverá ocorrer não apenas no campo intelectual, mas igualmente
no das relações humanas. Paradoxal mas compreensivelmente. os jovens estão se tornando
os cultores de tradições e práticas de convívio social que abandonamos. Enquanto a atual
geração de adultos rege-se pelo primado da ideologia consumista, os jovens buscam
propostas alternativas de vida e atividades laborais que privilegiem o ser em lugar do ter.
São eles os responsáveis pela redescoberta do artesanal, revalori zando o indivíduo que
produz o que necessita em lugar do produto que se impõe a quem o consome, conforme os
mandamentos da sociedade industrial do século XX.
O advento do milênio trará, na crista das transformações propugnadas
pelos jovens, o retorno do “feito à mão” em lugar do “feito à maquina”
e a conseqíiente aposentadoria gradativa das chaminés poluídoras, tudo em
consonância com a ideologia ecológica que, como dissemos, deve impregnar
a consciência juvenil nesta virada de século.
No confronto entre as Ciências Tecnológicas e as chamadas Ciências Humanas, os jovens
tendem a optar pelas últimas, quanto mais não seja como a reação de cada geração à ação
da anterior. Nosso pragmatismo tecno científico tem sufocado quaisquer aspirações de
caráter humanista nesta quadra finissecular. Os jovens já nos emitiram seu sinal de alerta,
reivindicando um mundo onde as emoções não se subordinem ao intelecto, mas possam
com ele conviver em estado de harmônica cooperação.
O perfil de um jovem executivo dos anos 80 pode-se traçar, como já
o fizemos, como o de um indivíduo frio, narcisista, egocêntrico, voltado para
a colimação de ambições materiais e fazendo da espoliação ao meio ambiente
em seu proveito pessoal o traço predominante de sua trajetória individual.
O perfil do adolescente do ano 2000, esboçado a partir das considerações feitas até aqui —
e nem tão fantasioso e idealizado quanto possa parecer, porque alicerçado na
conscientização de que é sua sobrevivência como indiví duo e espécie que está em jogo —
será ode um indivíduo basicamente preocu pado em preservar a natureza de onde extrai não
só o seu sustento como também sua alegria de viver. Estará ele direcionado pela noção de

que,
duaisnuma aldeia estar
não podem globaldissociados
como esta dos
em que o mundo
coletivos se transformou,
e, portanto, tenderá os objetivos
a regular indivi
seus padrões
de convivência pela aspiração ao bem-estar comum.
A apologia do êxito e o culto ao supérfluo, elementos balizadores da sociedade
contemporânea, serão o alvo preferencial dos questionamentos dos jovens dentro de uma
década. Haverá um gradativo enfraquecimento das noções de deveres cívicos e patriotismo,
substituídos pelos valores éticos emer gentes de uma sociedade globalizada pela
informatização.
A diversidade de opções deverá prevalecer sobre a padronização das
oportunidades na esfera das atividades profissionais dos jovens de amanhâ
66 / Luiz C O

estes tratarão,
processo então,
laboral, de opor-se
tratando a todas as tentativas
de descentralizá-lo de burocratizar
democraticamente. e centra
Diver lizar o
sificar,
individualizar, descentralizar — estas serão as palavras de ordem na sociedade laborativa a
ser criada pelos adolescentes do século XXI. A atual economia clandestina, srcem e
destino da atividade artesanal, será institucio nalizada no futuro, bem como a prática
coletivizada do “mutirão”, solução alternativa para a obsolêscencia da programação
comunitária centralizante e desumanizadora das administrações públicas vigentes.
Para todas estas transformações sociais que forçosamente terão que seguir- se aos avanços
tecnológicos contemporâneos, é indispensável contar com a capacidade sonhadora e
criativa dos jovens, sua disponibilidade para despo jar-se de modelos que a experiência
tornou obsoletos e, sobretudo, sua cres cente convicção de que é o futuro e não o passado
que referencia o progresso social.

O colapsocapitalista
modelos ideológico finissecular
e socialista de aposentando definitivamente,
pensar a realidade por anaecrônicos,
sócio-eco nômica os
política, dará
ensejo a que os jovens do ano 2000 dêem à luz novas concepções ideológicas, mais
consentâneas com o novo mundo criado pela aceleração das mudanças tecnológicas, que
trazem em seu bojo a necessidade urgente de revisarmos as estruturas sócio-políticas que
lhes darão sustento no porvir.
Há quem receie que inevitavelmente haverá uma onda saudosista, uma reação ao
pragmatismo materialista deste ocaso do século XX, e que os jovens nos próximos anos
sucumbirão ao desejo de reviver utopismos bucólicos à la Russeau ou, bem pior que isto,
como resposta à indefinição ideológica presente, ressuscitem antigas fórmulas totalitárias
com suas equivocas pro messas de estabilidade social. Não creio, contudo, que o advento
do milênio presencie, no plano sócio-político, uma glorificação do passado ou a exaltação
de um estilo de vida calcado na opressão da maioria em benefício de uma escassa parcela
da sociedade. Atenas, que se imortalizou como o berço da democracia, mas, na verdade, só
o foi para uma elite cuja sobrevivência alicerçava-se na escravidão de muitos, já não seduz
os jovens de agora, empe nhados em denunciar todas as formas de opressão, não apenas
aquelas que se exercem sobre maiorias desqualificadas como as que tiranizam as minorias
esclarecidas.
Crescerão entre os adolescentes do século que chega os protestos contra as diferentes
formas de estupidez humana, como as que conduzem ao exter mínio mútuo proposto pelas
guerras. São os jovens que lideram hoje os movi mentos pacifistas em todo o mundo, bem
como o esforço de aproximação entre judeus e árabes, entre coreanos do norte e do sul ou
entre brancos e negros nos conflitos raciais do sul dos Estados Unidos.
Serão os jovens certamente que, a partir da consciência adquirida nos
vietnames do século sobre as práticas filicidas de governos helicistas, advogarão
a extinção dos serviços militares obrigatórios, odiosa prática que, sob o manto
Adolescente Hoje / 67
enganador do dever cívico, esconde mal disfarçadas intenções homicidas que solapam o
ideal humanitário de confraternização universal.
Em suma, os jovens do ano 2000 estarão comprometidos, como estiveram os jovens de
sempre, com as “re-evoluções” que balizam o progresso civiliza tório na direção do Bem-
Estar individual e coletivo, aspiração última do Homem em seu périplo existencial.
6 / Iwz ( O
Apêndice
Conversando com adolescentes, pais e
professores (perguntas e respostas)

Para organizar estepais


por adolescentes, apêndice, foram selecionadas
ou professores em quase uma algumas
centenadasdemais depalestras
aulas, 300 perguntas
e feitas
conferências que ministrei ou painéis, mesas-re dondas e congressos de que participei no
país e no exterior.
Distribuímos as perguntas e suas respectivas respostas em itens correspon dentes aos temas
ventilados nas páginas anteriores, para facilitar aos leitores sua procura específica.
Acrescentamos, ainda, outros tópicos emergentes dos questionamentos propostos pelas
platéias dos referidos eventos.
Este apêndice é destinado, sobretudo, à “leitura leiga”, isto é, aos não-ini ciados na
“adolescentologia”, ao passo que os capítulos precedentes diri giam-se predominantemente
à “leitura especializada”, ou seja, àqueles profis sionais da área das ciências humanas que
buscam complementar seus conheci mentos relativos à problemática adolescente.

Não obstante,
leitura assim
leiga, leva como procurei
igualmente manter oa conteúdo
este apêndice doser
intenção de restante
útil a do livro acessível à
todos,
indiscriminadamente, e, portanto, merecedor também da leitura especializada, por
preencher as lacunas inevitáveis na redação de um texto corrido. As digressões e
comentários que poderiam ter comprometido a fluência do texto tem aqui, pois, o que me
parece ser seu locus apropriado.
Obviamente, as respostas a seguir vertidas em linguagem escrita não correspondem
exatamente às então dadas verbalmente, embora conservem seu espírito. Acrescente-se,
como última observação, que não tem elas agora, como, não tiveram na ocasião, qualquer
pretensão de esgotar o assunto e muito menos de propor-se como um vade-mecum, o que,
além de se constituir
Adolescente Ho;e / 69
em prática inconciliável com a relatividade dos conceitos expostos em área de tamanha
subjetividade, como a que é objeto de estudo deste livro, violen taria o espírito adogmático
do autor.
O ADOLESCENTE E SEU CORPO
O que é a imagem corporal e qual sua importância para o adolescente?
A imagem corporal, ou seja, a idéia que o indivíduo tem de seu próprio corpo, sofre um
processo de contínua e acelerada reformulação até plasmar-se o corpo adulto definitivo.
Como na mente do(a) jovem há uma espécie de protótipo idealizado dessa imagem corporal
(formada a partir dos valores estéticos com respeito à forma humana que lhe são
transmitidos), via de regra ocorre um conflito entre a imagem fantasiada desse modelo
idealizado e a imagem real de seu corpo em transformação. Essa é a raiz das ansiedades do
adolescente
oposto, com
isto é, respeitosomática
a vertente a seus atributos
de seus físicos e ana
conflitos desejada capacidade de atrair o sexo
esfera sexual.
E universal a preocupação dos jovens com sua aparência física. A percep ção das
constantes mudanças em seu corpo muitas vezes ocasiona sentimentos de estranheza ou
despersonalização, que na adolescência não podem ser consi derados patológicos, mas sim
elementos da crise puberal.

As ansiedades básicas
transformações físicas da adolescência
ocorridas estão relacionadas
nesta idade, especialmentecom
no as
queintensas e profundas
diz respeito aos
denominados caracteres sexuais secundários (crescimento de pêlos, aumento de volume das
glândulas mamárias, mudanças na voz, etc...).
E comum encontrarmos na adolescência distorções da imagem corporal, expressas em
idéias sobre o tamanho do pênis ou das mamas. A valorização do tamanho do pênis como
evidência de masculinidade ou das mamas como atributo da condição feminina para amar e
procriar são, via de regra, uma das mais freqüentes e equivocadas noções relacionadas com
a imagem corporal durante a puberdade. E importante que se frise que o tamanho do pênis
nada tem a ver com a competência para o exercício das funções sexuais, ou seja, para obter
ou proporcionar prazer durante o coito, como também nenhuma relação tem com a
fertilidade humana. Igualmente a forma ou tama nho das mamas não assinala qualquer
peculiaridade do erotismo feminino nem de sua maior ou menor adequação às funções
maternas.
As fantasias dos púberes quanto à sua prontidão para as funções sexuais
a partir de sua imagem corporal é, quiçá, a maior fonte de angústia durante
o processo adolescente, razão pela qual é de suma importância esclarecê-los
sobre suas dúvidas e eventuais idéias distorcidas sobre o corpo e sua relação
70 / Luiz Car1o Osorio
com a sexualidade, pois tais equívocos podem persistir pela vida afora como seqüela
indelével, srcinando preconceitos e inibições que irão afetar o livre e saudável exercício da
sexualidade adulta.
— Em que medida as mudanças culturais de nossa época têm afetado as relações do
adolescente com seu corpo?
Até algum tempo atrás, a adolescência era visualizada apenas como um processo biológico,
uma inevitável e sofrida transição do pequeno e gracioso corpo infantil, símbolo da
inocência e pureza, para o corpo adulto, com suas excreções, seus odores, suas
protuberâncias, sua inequívoca identificação com os apetites sexuais e a noção de pecado.
A grande mutação cultural deste século, para nós que vivemos no hemisfério ocidental,
talvez tenha sido a dessacralização do corpo, ou seja, o fato de que o tenham
gradativamente liberado das injunções morais e religiosas com que o sobrecarregou durante
tanto tempo a civilização judaico-cristã. Como diria aquela européia emanci pada da
anedota, com seu forte sotaque germânico, sobre o tabu da virgindade entre famílias latino-
americanas: “mulherr brasileirra coloca seu honrra em cada lugarr estrranho...”
Tenho uma firme convicção de que as relações do adolescente com seu corpo deixarão de
ser para ele, no futuro, motivo de tamanha angústia e sofrimento na medida em que
superarmos definitivamente esse vezo atávico de fazer do corpo a sede preferida de nossas
idiossincrasias morais.
— Qual a relação do modo de vestir-se dos adolescentes com seus confli tos ligados à
imagem corporal?
As vestes, concebidas como extensões ou prolongamentos do próprio corpo, adquirem para
o adolescente um significado todo peculiar. “Já que não posso alterar meu corpo, com o
qual estou descontente,
vestimentas, assim comomodifico minha
os adornos roupa”, usados
e adereços dizia-me certaadolescentes,
pelos vez um adolescente.
bem comoMas
o as
modo de cortar ou (des) pentear os cabelos, podem igualmente servir de código para
expressar uma identidade tribal — a tribo dos hippies, dos punks, dos funks, ou mesmo a
dos adolescentes “caretas” ou “quadrados”, precursores dos atuais yuppies. O “uniforme”
identifica tanto o batalhão de soldados quanto o time de jogado res ou a “patota”
adolescente.
Por outro lado, a moda “unissex” lançada pelos jovens (e o “marketing’
é sensível ao poder jovem emergente seguindo fielmente as tendências do
comportamento e da moda ditada pelos adolescentes urbanos e hoje) revela,
a meu modo de ver, uma reação à marcada definição dos sexos na aparência.

que era buscada pela geração anterior. E como se dissessem: “Vocês precisam,
Adok Hoje 71
através das roupas e do corte de cabelos, identificar o gênero a que pertencem; nós
deixamos de nos preocupar com isso — aceitamos nossa bissexualidade; masculino ou
feminino, tanto faz”. Como se vê, esta postura inserida no contexto do confronto entre
gerações traz em seu bojo certas perpiexidades e questionamentos para nós, adultos:
“Estarão os jovens com seu ‘unissexismo’ aposentando nossos preconceitos ‘machistas’ ou
‘femeachistas’ ou apenas reve lando uma regressão coletiva a etapas anteriores de seu
desenvolvimento, onde a indefinição sexual corria paralela com a falta de condições para
assumir responsabilidades individuais? E este um movimento de avanço em direção a uma
heterossexualidade menos discriminatória ou apenas um recuo defensivo frente às
exigências afetivas de uma sociedade que nivela privilégios e acentua a competividade
entre os homens
prospectivas, e mulheres?
ainda Indagações
sem promessa estas que
de respostas apenas
consis nos convidam a reflexões
tentes.
O ADOLESCENTE E SEU GRUPO DE IGUAIS
— Qual a influência das “más companhias” na formação moral dos jo vens?
Este é um dos mitos circulantes nas famílias com filhos adolescentes, qual seja, o de que a
convivência com outros adolescentes tidos como “más companhias” possam influenciar
negativamente o comportamento de seus filhos. Na verdade, companhias se buscam, não se
oferecem. Quem procura, por exemplo, a companhia de um delinqüente é porque tem em
sua persona lidade afinidades com a conduta anti-social. Diz sabidamente o ditado: “Diz me
com quem andas e eu te direi quem és”.
Os pais, numa compreensível busca de causas fora do ambiente familiar para a conduta
desadaptada
influência dosimportância
cuja filhos adolescentes, procuram
é certamente imputar
supervalo às “más
rizada; companhias”
quando muito estasuma
servirão para
exarcebar tendências que o próprio adolescente já possuía previamente.
— Um adolescente que evita o convívio com outros de sua idade é sempre um adolescente
problema?
Não necessariamente. Há adolescentes arredios ao convívio social em grupos maiores, mas
que demonstram sensibilidade humana e bom potencial afetivo para relações de cunho mais
intimista. O importante
problemático. é não
Remeto aqui ostomar umaoelemento
leitores capítulo isolado para rotular
correspondente, ondeo adolescente
se discutemde
os
“módulos” ou “variáveis” a serem considerados para o diagnóstico de um quadro psicopa
tológico na adolescência.
72 / Luiz Carlos O
A QUESTÃO EXISTENCIAL
— Como e em que intensidade as contradições sociais de nossa época interferem na
formação do caráter do adolescente?
O processo civilizatório construiu-se através dos tempos sobre uma pre missa básica:
assegurar ao ser humano condições de segurança contra os perigos que pudessem ameaçar a
trajetória de seu périplo existencial. Pois, paradoxal- mente, neste século a grande ameaça
de extinção do homem como espécie provém do próprio homem. Vencida a natureza,
subjugados os elementos físicos, dominadas as grandes epidemias que no passado
dizimaram populações inteiras, o homem dirige seu progresso tecnológico para sua
autodestruição. Isso inegavelmente gera uma insegurança prospectiva sem precedentes na
história da humanidade. Foi-se o mito do futuro predizível. O porvir dos jovens de hoje já
não mais espelha-se no presente de seus pais, como ocorria em gerações anteriores.
As instituições humanas carecem de estabilidade e os valores éticos trans mitidos do
passado perdem credibilidade. Há uma crescente vocação para
a violência e a negação de que é a vida a maior riqueza que possuímos.
O protótipo do caráter desejável para triunfar nas sociedades hodiernas, e que se oferece à
identificações dos jovens, é o indivíduo que pauta sua existência pelo primado da ação
egoísta, com total desrespeito à sensibilidade e ao direito do próximo. E o culto ao
narcisismo, à procura
da amizade compar obsessiva
tilhada, pelode statusinstante
fugidio material,desacrificando-se
prazer pelo usoa do
satisfação duradoura
outro como degrau
na escalada do sucesso. Há pouco ou nenhum interesse pela introspecção e um crescente
desprezo pelas relações afetivas estáveis no cidadão-modelo de nossa época. Enfim, toda a
força idealista característica da adolescência muito preco cemente vê-se confrontada com
os desígnios da cega e obstinada busca de poder pessoal que caracteriza o tempo em que
vivemos. Se o caráter forma-se na fronteira entre as tendências inatas do indivíduo e as
influências do meio ambiente, há que confiar-se muito na estrutura básica do ser humano
para resistir às mensagens contraditórias e de inequívoco apelo suicida que recebem os
jovens de hoje da sociedade no seio da qual crescem.
— Se a sociedade de hoje acha-se empenhada num “projeto de morte
com risco até mesmo da sobrevivência da espécie humana pelas guerras nucleares ou o
desrespeito
essa sinistraàsperspectiva?
leis ecológicas, que esperança podemos depositar nos jovens para reverter
Diz-se que a juventude pensa ideologicamente e está sempre disposta
a adaptar o mundo a si mesma, o que, segundo o pensamento conservador,
a distancia da realidade dos fatos e a mantém flutuando no etéreo território
4doIc Hoji / 73

das
parailusões e fantasias.
um mundo perplexoPois,
anteparadoxalmente,
a constatação deesta
suaserá, quem
própria sabe, a única
inviabilidade — saída
contarpossível
com o
potencial renovador das aspirações juvenís para redirecionar o mundo na rota de um
“projeto de vida” para a humanidade.
PLATAO, em sua obra ‘República’, já dizia, referindo-se aos jovens, que eles vão
redescobrir normas de condutas que seus predecessores deixaram cair em desuso. Nada nos
parece tão atual quanto esta afirmação do filósofo grego quando vemos os jovens de hoje
redescobrindo as sábias leis da natureza, que fomos não só esquecendo como violentando
ao longo do progresso tecno lógico de nossa era, e empenhando-se na reconscientização
ecológica da socie dade.
Como afirma EISENBERG, conhecido psiquiatra norte-americano: “De veríamos estar
profundamente agradecidos aos jovens cujo idealismo repre senta a maior promessa de um
mundo melhor. Apesar das soluções que até aqui puderam nos oferecer carecerem de um
maior pragmatismo, a verdade é que assinalaram as desumanidades das sociedades que
convertem os homens em escravos de suas máquinas e negam ao indivíduo o direito de
participar na modelação de sua própria vida”.
Talvez o mais importante seja que nós, os adultos instruídos, possamos reverter as atuais
tendências de uma sociedade em direção ao aniquilamento de nosso mundo e à perversão
de todos os valores e, em troca, nos incorpo rarmos à nossa juventude num esforço
permanente para construir para nós, para nossos filhos e para os que nos sucederem uma
civilização melhor.
— Qual o maior risco que os jovens de hoje correm de perder seu rumo na busca de seus
objetivos existenciais?
É o de repetirem os equívocos das gerações anteriores, sobretudo os
ditados por uma atitude onipotente e arrogante diante das limitações da condi ção humana.
KNOI3EL, um dos pioneiros do estudo da adolescência na América Lati na. a partir do que
outro autor (MASSERMAN) chama de “as ilusões Ur” da humanidade (denominação
oriunda de Ur, cidade da Caldéia, sugerindo serem tais ilusões praticamente tão antigas
como a própria humanidade), observa que a manutenção dessas ilusões, às vezes
verdadeiros delírios coleti vos, são o grande risco que corre a juventude contemporânea.
Tais ilusões são: 1) que oniscientes e onipotentes nos convertiremos em seres mortais que
conquistaremos o cosmos, 2) que já estamos prestes a nos graduar — depois de 3 milhões
de anos de experiências ferais de medo e extermínio mútuos —em verdadeiros seres
civilizados que podem compartir pacificamente a sociedade e 3) que a mente humana vai
lograr efetivamente o controle do transcendente e do divino. A partir dessas ilusões os
jovens de nossos dias mantêm uma deificação do tecnológico, a par da negação das
limitações
74 / Luiz Carlos Osorio
da natureza humana, o que compromete a aquisição de novos valores e a superação de
submissão ao mito de que a felicidade repousa na prosperidade material e no poder sobre os
outros. Só quando nos libertarmos da escravidão a essa falácia poderemos construir uma
sociedade prenhe de realizações huma nas e voltada para o bem-estar comum.

A QUESTÃO VOCACIONAL
— Quais as conseqüências da saturação do mercado de trabalho para o problema
vocacional dos adolescentes?
Na década de 60, os cursos universitários mais procurados no Brasil eram Medicina,
Engenharia e Direito. Nas duas décadas seguintes, paralela- mente ao decréscimo
proporcional na procura destes cursos, houve um signifi cativo aumento na procura dos
cursos de Ciências Econômicas, Administração de Empresas e, mais recentemente,
Ciências da Computação (Informática). Mudaram as vocações dos jovens ou estes
redirecionaram seus alvos profis sion ais em função de novos pólos de atração sócio-
econômica? As promessas de status, ascensão social ou segurança financeira proporcionada
pelas chama das “profissões do momento” sem dúvida afetam as expectativas dos jovens
quanto à escolha de uma profissão e mais ainda as de seus pais, cuja pressão aberta ou
velada continua a ser fator preponderante para a decisão dos filhos.
Assim como no passado havia casamentos de conveniência, hoje em dia vemos escolhas
profissionais ditadas não por inclinações vocacionais, mas por acomodação às
disponibilidades do mercado de trabalho. As conseqüên cias? E de se supor que não serão
diferentes dos tais casamentos de conve niência, ou seja, a rápida saturação e uma
persistente insatisfação pelo resto da vida. Mas se isto ocorre com aquela ínfima parcela da
população que chega às universidades, o que se dizer da enorme camada de jovens margina
lizada pelo desemprego ou aprisionada nas malhas do subemprego, sem outra alternativa
que labutar pela mera sobrevivência sem qualquer possibilidade de escolha de tarefas
sintônicas com seus pendores vocacionais?
Antes do advento da era industrial a força de trabalho estava mais OU
menos assim distribuída:
Animais — 79%
Seres Humanos — 15%
Máquinas — 6%
Atualmente, nas nações industrializadas. a relação passou a ser assim:
Máquinas — 96%
Seres Humanos — 3%
Animais — 1%
Considerando-se ainda o hoom’ do crescimento demográfico em nossa época, o
desemprego passou a ser um flagelo universal, afetando indistinta Ad f1o / 75

mente nações
oferta de desenvolvidas
empregos) (onde a relação
e subdesenvolvidas máquina/homem
(onde na força de trabalho
o crescimento populacional é maior reduz
e a
aumenta a demanda, embora a relação máquina/homem na força de trabalho seja
proporcionalmente menor).
Em resumo, genericamente falando, é desalentador o quadro das perspec tivas profissionais
para os jovens de hoje e isto só poderá ser revertido na hipótese de uma radical mudança
nos
dos objetivos
cidadãos edoseu
desenvolvimento
enrique cimentosocial,
humano no esentido de visar
não apenas ao primordialmente ao bem-estar
aumento do PIB (produto
interno bruto) das nações.
— Como avaliar a questão do vestibular e todo o ‘stress” que ele traz para os adolescentes?
O vestibular é antes de tudo um rito de iniciação, ou seja, um ritual de passagem à condição
adulta e com este propósito é ele inconscientemente mantido, apesar de todas as vozes que
se levantam contra sua crueldade e inoperância como critério seletivo para o ingresso dos
mais aptos ao exercício das profissões a que se destinam.
A Universidade nasceu como um locus promotor do saber e da pesquisa nas distintas áreas
do conhecimento humano. Sua transformação em organismo formador de profissionais é
uma perversão de seus objetivos srcinais. A transmissão dos conhecimentos necessários
para o exercício de uma função profissional, seja ela qual for, continua a se fazer — como
tem sido feita através dos tempos — com, sem ou apesar das universidades. Quem de nós,
profissionais de nível universitário, poderá de sã consciência afirmar que se habilitou para o
seu mister cotidiano apenas por que freqüentou os bancos acadêmicos? Arrisco-me a
afirmar que é possível prescindir da universidade para apreender-se o ofício de médico,
arquiteto, agrônomo ou jornalista. mas certamente não se poderá prescindir do convívio
com os colegas mais experientes que, como em tempos milenares, são a grande fonte de
transmissão de conhecimentos no dia-a-dia da experiência compartida.
A Universidade, como campo de transmissão de habilidades profissionais, é dispensável,
embora cada vez mais seja imprescindível como área a ser preservada para a aquisição e
armazenamento de novos conhecimentos nos distintos campos do saber humano. Penso que
deveríamos aliviá-la dessa ingra ta tarefa de formar profissionais. que a sobrecarrega e a
desvia de seus propó sitos srcinais. E se assim fizéssemos estaríamos retomando práticas

de antiga eou
profissões comprovada eficácia
ofícios. Com no treinamento
este procedimento dos mais jovens,
estaríamos, aprendizes
então, elimi nando de quaisdos
a praga quer
vestibulares, poupando os jovens deste dispensável esforço na cada vez mais longa e
ingente caminhada em direção à condição adulta.
76 / Luiz Carlos Osorio
— Qual a utilidade dos testes vocacionais?
A mesma de qualquer exame complementar em clínica médica, se me faço entender. Um
exame de sangue ou de urina não substitui o tirocínio do profissional que o solicitou. Para
chegarmos a um correto diagnóstico, os exames laboratoriais são quase sempre de enorme
valia, mas não substituem o raciocínio clínico. Assim, os testes vocacionais podem ser úteis
em apontar ou confirmar impressões diagnósticas prévias, mas jamais devem se constituir
num vade-mecum de confiabilidade irrepreensível. Creio, além disto, que se o jovem
pudesse ter alguma
sua eleição, vivência prévia
esta experiência ao melhor
lhe daria ingressoindica
na universidade no campo
ção dos rumos a seguirprofissional
que qualquerde
avaliação psicométrica.
— Qual a diferença entre sexualidade e genitalidade e o que se entende por “desabrochar
do sexo” na adolescência?
Genital é uma expressão que se refere especificamente aos órgãos de reprodução. Já sexual
tem significação bem mais ampla: inclui não apenas o que se relaciona com a função
reprodutiva
sexos e à suados seres humanos,
maneira peculiar demas com tudo o mais
se relacionarem, bemque digaàsrespeito
como formasàdedistinção
obter e entre os
proporcionar prazer através do corpo.
FREUD demonstrou, a partir do estudo da sexualidade reprimida de seus pacientes adultos,
que, como qualquer outra manifestação biopsicológica, a sexualidade não se instala de
repente na adolescência, mas surge paulatina- mente a partir de experiências vivenciadas
desde o nascimento do ser humano e, quiçá, mesmo antes, ainda no útero materno.
Desta maneira, quando nos referimos à sexualidade na adolescência não estamos apenas
considerando as mutações somáticas secundárias ao amadure cimento das gônadas ou
células germinativas, mas todos os fenômenos psicos sociais que acompanham estas
modificações no plano biológico e que são os que, em última análise, determinam o que
chamamos “desabrochar do sexo” entre os jovens.
— O que a sexualidade tem a ver com o processo de aquisição da identi dade por parte do
adolescente?
De um modo sumário, poder-se-ia dizer que a tarefa básica da adotes cência é a aquisição
da identidade pessoal, ou seja, a consciência por parte
do indivíduo de ser uma criatura separada e distinta das demais. Embora
O ADOLESCENTE E O SEXO
AdoIe± Hoje / 77
esta individuação se inicie desde os primórdios da vida extra-uterina, é na adolescência que
se intensifica e culmina o processo.
Um dos vértices deste processo de cristalização da individualidade durante a adolescência é
justamente ea dos
biológicos aquisição
eventosdapsicológicos
identidade sexual, pontoevolutiva.
desta etapa de converDiz-se
gênciaque
dosacomemorativos
sexualidade atua
como um organizador da identidade do adolescente.
A menarca na mulher e a primeira ejaculação no homem são como esto pins fisiológicos a
desencadear o processo de aquisição da identidade sexual; o modo como o adolescente
vivencia tais acontecimentos nos dá, por outro lado, uma avaliação preliminar do grau de
normalidade em que transcorrerá sua adolescência.
— Qual o papel da masturbação na adolescência?
A masturbação é outra manifestação que ajuda o estabelecimento da
primazia genital na adolescência. A masturbação, além de propiciar a descarga
das tensões genitais, também prepara o adolescente para o intercurso sexual.
A masturbação — e não só na adolescência como já a partir da infância
— é uma verdadeira preparação para a vida genital adulta. Crianças e adoles centes que
nunca se masturbam nem revelam maiores curiosidades sobre como funcionam seus órgãos
sexuais, ou não experimentam tocá-los e experi mentar as sensações que despertam, serão
provavelmente adultos com marca das inibições e dificuldades na área sexual.

— Os jovens
a liberdade de hoje,
sexual queem nosso meio, estarão psicoiogicainente prepa rados para vivenciar
têm?
A observação “em nosso meio” é uma adequada limitação para a resposta
a esta pergunta.
Nos povos primitivos não há distinção entre prontidão física e psicológica para o exercício
da sexualidade. Tão logo estejam fisicamente aptos para manter relações sexuais, o fazem.
Já em nossa cultura as diferenças foram se acentuando pelo processo repressivo que se
instalou.
Paralelamente ao desenvolvimento corporal, a eclosão dos impulsos se xuais prepara o
adolescente para o intercurso genital. Fisicamente ele está apto a desempenhar tais funções
tão logo desabroche a puberdade, quer seja um adolescente que viva nas ilhas do Pacífico
como aquele que habita uma metrópole européia ou o sertão nordestino. Mas e
psiquicamente? Diria que se ele vive “em fl0550 meio”, não. Não, porque na verdade o vis-
a-tergo
da repressão sexual ainda se faz sentir — e mais intensamente do que se
supõe —nesta geração. Fala-se muito na queda dos tabus sexuais na sociedade
78 / Luiz Carlos Osorio
moderna, quando na verdade o que parece ter ocorrido é antes a franquia de práticas
parassexuais e perversões em geral do que propriamente a supe ração dos preconceitos
existentes.
— Por que os jovens parecem hoje tão conflituados sexualmente quanto seus pais?
Acontece que os adultos contemporâneos, no seu afã de se libertarem do jugo da repressão
sexual que lhes escravizou os instintos durante tanto tempo, criaram para seus filhos um
clima antes promíscuo que permissivo e que em lugar de facilitar-lhes a veiculação de suas
demandas instintivas têm paradoxalmente funcionado como um fator de inibição, confusão
e desvio dos objetivos srcinais do instinto sexual.
— Qual o risco de a maior liberdade sexual de nossa época induzir os jovens à
promiscuidade sexual?
A adolescência é a época das experiências no campo da sexualidade e a inconstância dos
vínculos afetivos que os jovens estabelecem com seus parceiros amorosos não significa
necessariamente uma tendência à promis cuidade, estando antes a serviço da escolha.
Penso que a promiscuidade é, antes, conseqüência da repressão do que da liberação dos
costumes sexuais. E ela justamente uma prática comum entre os adultos que ao longo de
sua evolução psicossexual sofreram desvios ou distorções dos objetivos da sexualidade
humana e se tornaram incapazes de estabelecer relações amorosas com seus parceiros
sexuais. São, pois, os adultos sexualmente insatisfeitos ou outrora reprimidos os que se
entregam à prática da promiscuidade, e não adolescentes, que apenas transitoriamente
exercitam o direito de testar afinidades no campo sexual e geralmente são pouco afeitos a
relações promíscuas se gozam do pleno direito ao exercício de sua sexualidade emergente.
Diria que homossexualismo é antes de tudo uma questão de opção. Opção
em deter-se em determinado nível da evolução psicossexual que necessária
e irrevogavelmente atravessa etapas com conteúdos homossexuais para chegar
à heterossexualidade que identifica a sexualidade madura e que chega a seu
termo. Obviamente quando falo em opção não me refiro aqui tão-somente
a uma escolha consciente, mas à eleição de um comportamento que é igual-
— Homossexualismo é uma questão de educação?
Adolescente fhje / 79
mente determinado por motivações inconscientes. E como em toda a escolha muitas vezes
esta é feita pela impossibilidade de fazer-se outra diferente.
Há um período da evolução psicossexual, tanto em indivíduos do sexo masculino como
feminino,
ou em suascom nítidos
fases elementos
iniciais. homossexuais,
Quem não e que
ouviu falar no ocorre
“clube pouco antes
do Bolinha” damenina
onde adolescência
não
entra? Ou no “clube da Luluzinha” onde meninos são indesejados? A fixação em
preferências usuais desta etapa evolutiva num período posterior, onde a maturação genital
predispõe ao inter- curso sexual, é que irá caracterizar a escolha homossexual como opção
de identidade sexual. Fatores constitucionais mais do que educacionais ou cultu rais são
responsáveis por esta determinação na evolução psicossexual. Há que lembrar ainda os
distúrbios nos processos de identificação com os indiví duos do mesmo sexo que ocorrem
na infância e que se somam à predisposição constitucional para explicar as tendências
homossexuais do adolescente e do adulto.
Se homossexualismo é doença? Podemos assim considerá-lo se igualmente consideramos
doença o vício do cigarro ou outras tantas fixações libidinais do ser humano. Prefiro apenas
assinalar o caráter de opção comportamental e a inequívoca fixação numa etapa prévia do
desenvolvimento psicossexual para caracterizar o homossexualismo, desvinculando-o,
assim, da morbidez preconceituosa com que o temos considerado, responsável por
afirmações aberrantes como esta que o vincula a falhas no processo educacional.
— E a questão da AIDS, como situá-la junto aos adolescentes?
O livre exercício da sexualidade que preconizamos para os adolescentes obviamente tem
que se acompanhar do necessário esclarecimento quanto aos riscos inerentes a este
exercício, tais como a possibilidade de uma concep ção indesejada ou a aquisição de uma
doença venérea.
Como a concepção na adolescência — e sua indesejável conseqüência, o aborto —
estatisticamente tem uma importância significativamente maior que a AIDS ou as doenças
venéreas em geral como causa de mortalidade juvenil, nossa atenção médica tem estado
concentrada na prevenção da primei ra, mas é inegável que um recrudescimento na
incidência de doenças venéreas nas últimas duas décadas, e agora nos anos 80 o aterrador
quadro da imunode ficiência adquirida (AIDS), ainda sem soluções terapêuticas à vista, têm
trazi do novas e intensas preocupações aos profissionais da área médica que traba lham com
adolescentes. Diria mesmo que o crescente número de abortos entre adolescentes
(proporcionalmente maior do que o verificado entre outras faixas etárias) e o aumento da
incidência das doenças venéreas, a que se soma agora o impacto causado pelo surgimento
da AIDS, tem refreado o ímpeto dos que se colocam a favor do livre exercício da
sexualidade juvenil.
81) / Juiz ( ()sorio
Creio, contudo, que estes não são argumentos procedentes para se advo gar a volta à
repressão sexual outrora vigente, como pregam certos setores mais conservadores da
sociedade. E inegável o valor intrínseco da liberação sexual dos jovens como fator
predisponente a uma melhor qualidade de vida no futuro. O aperfeiçoamento das práticas
anticoncepcionais e o gradativo controle das doenças sexualmente transmissíveis tornarão
irrevogáveis as con quistas feitas em nossa época no sentido de garantir aos seres humanos
em geral, e aos jovens em particular, o direito à sexualidade plenamente usufruída,
condição indispensável para o enriquecimento afetivo da humanidade.
“Faça amor, não a guerra”, apregoam os jovens, como a assinalar os rumos que a
civilização terá que forçosamente tomar se quiser evitar seu fim apocalíptico e
reposicionar-se
felicidade que senaconhece:
direção de um projeto
a relação de vida
amorosa nutrido
e íntima compela mais
outro sergenuína
humano.fonte de
O ADOLESCENTE E O CONFLITO DE GERAÇÕES:
RELAÇÕES COM A FAMÍLIA E A SOCIEDADE
— Como resolver o conflito de gerações?
Vida é conflito. Não há como evitar-se confljtos no convívio humano, porque premissas
diferentes geram inevitavelmente confrontos e, como diz o ditado, “cada cabeça uma
sentença”. O que é viável, contudo, é reduzir ao mínimo possível as tensões existentes entre
pais e filhos pelo mútuo reconhe cimento dos direitos e deveres de cada um. Por outro lado,
estas tensões poderão ser mitigadas na medida em que os pais deixem de usar os filhos
como instrumentos de suas realizações pessoais e estes, por sua vez, possam compreender
que são a consciência viva da finitude de seus pais, ou seja, que o simples fato de estarem
se tornando adultos comprova a inevitabilidade da velhice e morte dos pais, o que gera
neles intensas e nem sempre reconhe cidas ansiedades existenciais, certamente não menores
do que as que permeiam a adolescência de seus filhos.
— Como exercer a autoridade sobre os filhos adolescentes sem ser autori tário?
A autoridade diz respeito à colocação de limites, sem a qual a vida em sociedade não seria
possível. E, portanto, necessária, indispensável. A autoridade não se exerce, ela emana de
quem possui. Vincula-se com o prin cípio que rege (Ou deveria reger) qualquer
relacionamento humano: a liberdade de cada um termina onde começa o direito do
próximo.
Adolescente Hoje / 81
O autoritarismo é parente próximo da repressão, do uso (e abuso) do poder de um ser
humano sobre o outro, e, portanto, é prejudicial, é nefasto
às relações humanas.
O sentimento de posse indubitavelmente envenena as relações pessoais. Ninguém, filho ou
pai, jovem ou idoso, homem ou mulher, gosta de sentir-se propriedade de outrem. Todas as
grandes revoluções da História foram contra formas de opressão ou escravidão. E
continuam sendo.

A autoridade é uma entidade normativa do desenvolvimento dos homens


e de suas instituições. O autoritarismo é um desvio ou perversão da autoridade.
O autoritarismo não foi “inventado” pelos adultos como muitos filhos pensam. De certa
forma podemos dizer que ele nasce com o indivíduo e
está sempre a ameaçar a convivência humana.
O bebê é um ser autoritário. Age como se sua mãe ou seus pais
— existisse apenas em função de suas necessidades. E se os pais não sabem ou não
conseguem pôr limites a esse desejo ilimitado de domínio do bebê
ele, no futuro, transformar-se-á numa criança, num adolescente tirânico. E mais adiante,
provavelmente, num adulto opressor ou em pais que igual mente pensarão serem seus filhos
propriedade sua e meros executores de seus desígnios.
Filhas ou filhos tirânicos srcinam esposas ou maridos igualmente tirânicos
e esses, por sua vez, mães ou pais tirânicos. Daí a importância de coartar
esse círculo vicioso em sua srcem.
Pais em total e permanente estado de disponibilidade não ajudam os
filhos a reconhecerem seus limites. Adolescentes cujos pais não lhes imponham
limites podem vivenciar isto como abandono por parte dos pais.
Achar a exata medida para que a autoridade paterna possa ser exercida sem cair no
autoritarismo é antes função de um talento inato para o exercício das funções parentais do
que qualquer preceito ou fórmula educacional que lhes possa ser confiada.

— Como os pais podem assegurar uma boa relação afetiva com seus filhos adolescentes?
Costumo dizer que os únicos laços que amarram afetivamente as criaturas humanas são os
laços do bem-querer. Isto é válido para as relações conjugais como para as relações
parento-filiais. Não há outra forma de assegurar o amor dos filhos pelos pais (e vice-versa)
que não seja pelo livre e espontâneo exercício do bem-querer. E querer bem tanto pode ser
dar ao outro consciência de seus limites como renunciar a qualquer forma de domínio sobre
sua pessoa. Isto é particularmente importante em se tratando de adolescentes.
82 / Luiz Carlos Osorio
— Qual a culpa que cabe aos pais nos problemas do filho adolescente?
A geração dos pais de hoje, ao que parece, erigiu a culpabilidade como sua principal
conselheira. E a culpa é má conselheira. Não conheço qualquer benefício que o sentimento
de culpa tenha
responsável trazido aos
é diferente seres humanos.
de sentir-se O de responsabilidade, sim. Mas sentir-se
culpado.
Assumirmos responsabilidade por nossos atos e intenções diante dos filhos adolescentes é
diverso de nos sentirmos culpados por tudo que lhes aconteça. Qualquer relação humana é
uma via de dois sentidos. Não há culpados num casamento que não dá certo: há, isto sim,
dois seres com responsabilidades compartidas numa relação que não funcionou. Assim
ocorre no relacionamento entre pais e filhos: nossos filhos são seres com identidade
própria, isto quer dizer com vontade própria também. Desde muito pequenos têm uma cota
de livre-arbítrio que foge a nosso controle e manipulação. Não podemos nos responsabilizar
por todos os seus atos, pensamentos ou modo de sentir. São unidades autônomas, ainda que
sujeitas à dependência dos pais.
Aqui é mister fazer uma distinção entre autonomia e independência.
Somos, pela condição humana, dependentes uns dos outros, do berço à tumba. Não há seres
independentes; há, isto sim, indivíduos autônomos, ou seja, capazes de ser portadores de
uma individualidade, de dirigirem suas vidas num determinado sentido e com certos
propósitos, embora sempre de pendendo do próximo para algo.
Talvez sejamos uma geração tão cheia de culpas porque a que nos antece deu fez da
culpabilidade o elemento primordial da formação do caráter filial, assim como
institucionalizou a hipocrisiaa grande
hipocrisia é provavelmente na relação dentro
tarefa do casamento.
de nossa geração naLivrarmo-nos da culpahumana
espiral da evolução e da
e consiste num verdadeiro pro cesso de mutação psíquica — o salto quântico que nos
projetará para melhores condições de relacionamento humano no futuro.
Em suma, penso que ao se declararem culpados pelo que está acontecendo aos filhos
adolescentes, ou até pelo que lhes possa acontecer no futuro, em nada os pais estão
ajudando os filhos nas suas agruras evolutivas, cuja responsa bilidade é dos próprios filhos
tanto quanto dos pais e da sociedade, e da própria vida, enfim, com todas as vicissitudes
que lhe são inerentes.
A culpa paralisa. Pais culpados geralmente deixam de funcionar como os necessários
continentes para as ansiedades dos filhos; acabam por incre menter suas sensações de
confusão e desamparo ante as dificuldades de seu momento evolutivo. Culpa, volto a

afirmar,maltrata
apenas é má conselheira na relação entre pais e filhos. Não cria nada de construtivo,
quem a sofre.
Adolescente Hoje / 83
— Qual a “exata medida” na criação de filhos adolescentes?
Não há obviamente “medidas exatas”. Criação de filhos não é algo quanti ficável; antes tem
a ver com a qualidade humana de pais e filhos. Não obstante,
arriscar-me-ia a enunciar alguns princípios gerais.
Criar filhos requer antes de tudo uma inesgotável capacidade de doação afetiva
contrabalançada necessariamente pela serena coragem para renunciar ao desejo de impor
nossa vontade e presença quando elas não são solicitadas pelos filhos. E o equilíbrio entre o
estar disponível e o tornar-se dispensável que se aproximaria da “exata medida” na criação
dos filhos. Nisto
ou materni consiste,
dade na talvez, a“Ser
adolescência. condição
pai é abásica
arte depara o bomdesnecessário”,
tornar-se desempenho dadisse
paternidade
alguém. E mister renunciar ao pressuposto de que porque geramos os filhos eles são
propriedade nossa, para consumo de nossas vaidades ou indenização de nossas frustradas
expectativas de realização pessoal.
Os pais modernos estão perdidos no cipoal de suas boas intenções liberali zantes por não
estarem sabendo discriminar entre repressão e colocação de limites. Nisto reside a opção
entre ter filhos
emocional como vassalos
e a autonomia ou amigos.
necessária para oRepri mi-losexercício
adequado impede-lhes o crescimento
das funções adultas. Por
outro lado, deixando-os simples mente entregues à própria sorte e autocontrole, só os fará
sentirem-se abando nados. Aos amigos, como aos filhos, não se abandona, mas não se lhes
invade a privacidade nem se interfere no seu livre-arbítrio. Com os amigos, além de leais, é
preciso sermos disponíveis. Com os filhos, também.
— Porque os adolescentes de hoje custam mais a amadurecer e a se tornarem adultos
responsáveis e qual o papel dos pais e da sociedade
nisto?
Como uma planta que cresce, os seres humanos necessitam de certas condições externas
que lhes viabilize e estimule o crescimento. Em tais condi ções representa papel
significativo a estabilidade ambiental. Para a planta, por exemplo, luz solar, solo regado a
intervalos requeridos e ausência de pragas, ventos bruscos ou outras agressões da natureza
ou do homem são condições essenciais para que se desabroche a promessa vegetal que ela
traz desde a semente. Para a criança que se projeta em direção à plenitude adulta através da
adolescência, faz-se necessário igualmente a presença de certos elementos nutrientes e a
ausência de condições excessivamente traumáticas para que se processe o seu pleno
crescimento emocional. Quando faltam estímulos ou abundam elementos cerceadores desse
crescimento há um natural prejuízo no desenvolvimento.
Filhos cujos pais os consideram uma extensão narcísica de suas próprias
personalidades podem ter dificuldades evolutivas para alcançar a maturidade.
84 / Luiz Carlos Osorio
As mensagens contraditórias tipo “cresça para que eu possa exibir ao mundo meu triunfo
por tê-lodestinos”
de seus gerado” alternando-se comelementos
funcionam como “não cresça porque isto do
perturbadores representa a perda depsíquico.
amadurecimento controle
Por outro lado, famflias em conflito, sociedades abaladas por disfunções
político-econômicas, nações envolvidas em guerras, são todas essas situações
desestabilizadoras que comprometem o amadurecimento dos jovens.
A luta pelo poder, inserida no conflito generacional e exarcebada em nossa época pelo
boom do crescimento demográfico intensifica os esforços da geração precedente para
protelar o acesso dos jovens à condição adulta. Os pais angustiam-se e sentem-se
ameaçados pelo crescimento dos filhos. Conseqüentemente, a sociedade regida pelos
adultos se empenha em prolongar a adolescência o mais que pode: longos períodos de
estudos universitários (que por sua intensidade e profundidade não permitem aos jovens
proverem paralelamente
econômica seu sustento,
dos pais), exigências tornando-os
cada vez sujeitos
maiores de a prolongarem
capacitação sua depen
técnica para dência
o exercício
profissional, extensos períodos de prestação de serviço militar e assim por diante. Tudo
isto, como dissemos, retarda o amadurecimento dos jovens e a aquisição de sua identidade
adulta.
— Por que os filhos tendem a sair precocemente da casa dos pais nos dias que correm?
Os filhos agora saem precocemente ou antes saíam tardiamente?! Penso que outra não é a
razão para este desejo dos filhos em saírem de casa e viverem sua própria vida do que as
apontadas na resposta à pergunta anterior. Quanto mais se procura cercear-lhes a autonomia
mais eles reclamam, num natural e automático processo de ação e correspondente reação.
No entanto, parece-me que ultimamente tem havido um menor impulso a essa fuga “preco
ce” dos lares paternos. Na medida em que os pais estão se conscientizando dos direitos dos
filhos adolescentes à privacidade, à liberdade sexual, a usufruir os mesmos privilégios dos
adultos quanto à escolha de amizades e direciona mento do lazer, esses já não se sentem tão
necessitados de sair da casa dos pais; até mesmo parece que os estão redescobrindo como
companhias que podem ser agradáveis, se não se arvoram em porta-vozes da tão alardeada
experiência e sabedoria adultas.
— O “conflito de gera ções”não tende a desaparecercom a maior comuni cação e
entendimento entre país e filhos?
Digamos que numa projeção futura a tendência é reduzir-se à brecha generacional na
medida em que haja maior comunicação e intercâmbio afetivo
Adolescente Hoje 85
entre pais e filhos, mas ainda estamos longe disso. Até se poderia dizer que pela aceleração
das mudanças comportamentais em nosso século o hiato já não ocorre entre uma geração e
outra, mas dentro de uma mesma geração:
não estaríamos exagerando ao afirmar que há maiores diferenças no modo de encarar a vida
entre o irmão mais velho e o caçula de uma família numerosa de nossos dias do que entre
pais e filhos há décadas atrás. Um indivíduo de 30 anos hoje já é considerado por um
adolescente um “coroa” no qual
— como diz o mote da canção — não poderá ele confiar, pois estão inseridos em distintas
escalas de valores, ainda que separados cronologicamente por apenas meia geração.
O ADOLESCENTE E AS DROGAS (TOXICOMANTAS)
— Todo adolescente que “puxa fumo” é um viciado em potencial?
Sabemos que apenas uma ínfima porcentagem dos jovens que fumam maconha ou mesmo
experimentam, desde que eventualmente, outro tipo de tóxicos, desenvolve hábitos ou
dependência. Em outras palavras, não é o uso transitório de drogas durante a crise
adolescente capaz de, por si só, traçar o perfil característico do “viciado” ou “toxicômano”.
— Quando, então, há risco de os adolescentes se tornarem toxicômanos?
De um modo muito sumário e apenas como guia genérico para auxiliar os pais a detectarem
quando o uso de drogas deixou de ser um “inocente” hábito peculiar à cultura adolescente
para se transformar numa situação poten cialmente perigosa (e que exige a consulta a um
especialista), daremos abaixo algumas características que indicam um mínimo risco de
drogadicção e, em contrapartida, as que sugerem uma alta probabilidade de sua ocorrência.
Pequeno Risco
Adolescentes que:
1 - Fazem uso apenas esporádico de drogas ou, se sistematico, tão-somente uso de rua-
conha.

2 - Revelam bom contato afetivo com fa miliares.


3 - Não possuem antecedentes infantis de agressividade impulsiva, nem do hábito de
mentir, furtar ou outras práticas anti-sociais. 4 - Praticam esportes ou tém “hobhies” e
interesses artístico-culturais.
Grande Risco
Adolescentes que:
1 - Fazem uso sistemático de drogas em esca lada”, ou seja, começam fumando maconha,
passam para a ingestão de comprimidos tran qúilizantes ou estimulantes e acabam utilizan
do-as por via injetável.
2 - Mostram frieza ou indiferença afetiva com tio grupo familiar.
3 - Apresentam antecedentes infantis de agres sividade impulsiva ou do hábito de mentir,
fur tar ou praticar atos anti-sociais.
4 - Tem o seu lazer restrito a práticas de nítido sentido auto ou heterodestrutivo. sem
qualquer propósito criativo.
86 / Luiz Carlos Osorio
5 - Relacionam-se sexualmente com indiví duos do sexo oposto predominantemente.
6 - Revelam desejo manifesto ou latente
de buscar e receber ajuda psicoterápica.
7 - Evidenciam níveis significativos de ansie dade e certo grau de consciência da inadequa
ção de seu comportamento.
5 - Relacionam-se sexualmente de preferência
com indivíduos do mesmo sexo e, quando com
os do sexo oposto, tal relacionamento limita-se
a práticas perversas.
6 - Não apresentam qualquer motivação para
procurar ajuda psicoterápica.
7 - Não se mostram manifestamente ansiosos
nem apresentam qualquer grau de consciência
da inadequação de sua conduta.
— Por que os jovens fazem uso tão freqüentemente em nossos dias de maconha?
Os adolescentes fumam hoje maconha como seus pais — adolescentes de ontem —
fumavam tabaco: porque é “moda”, porque é proibido ou porque, afinal, as sensações que
proporcionam os tóxicos são prazeirosas. Por uma ou por todas estas razões. O adolescente
“puxa fumo” porque esta é a forma de “estar na onda”, de ser como os outros, de pertencer
a seu grupo de iguais, como também poderá fazê-lo porque o tóxico exerce sobre ele a
atração do “fruto proibido” ou ainda porque esteja contrariado com os “velhos” e esta é a
forma que escolheu de evidenciar seu protesto. Há um sem-fim de razões invocadas ou
invocáveis para explicar por que os adolescentes fumam maconha ou ingerem as tão
temidas “boletas”. Sejam quais forem tais razões, elas não diferem muito das alegadas por
seus pais quando eram adolescentes para justificar por que fumavam ou bebiam.
Este é um dos equívocos vigentes na questão da drogadicção por parte dos jovens. Será
rebelde um adolescente que não sabe o que fazer da própria
vida e por isto dela procura alienar-se através do uso de tóxicos?
A rebeldia é um ingrediente presente, em maiores ou menores doses, na adolescência
normal; a dependência às drogas na juventude identifica justa mente um padrão patológico
de submissão e não de rebeldia. Submissão ao tóxico, aos que traficam e, muitas vezes,
como a História já o comprovou, aos interesses políticos de governos autocráticos
interessados em manter os jovens aletargados pelas drogas para que não os contestem com
orebeldia
ardor, disposição e fervor ideológico que costumam caracterizar as manifestações de
na mocidade.
— Qual a relação entre a rebeldia dos jovens e o uso de drogas?
Adolescente Hoje / 87
— Qual a solução para o problema da drogadicção entre os jovens:
a repressão ou a liberação?
Ambas as soluções já foram tentadas em diferentes contextos sócio-po líticos e ambas
igualmente mostraram-se incompetentes para resolver o proble ma. Isto porque foram
basicamente dirigidas às conseqüências e não às causas, que são múltiplas e complexas e
que exigem soluções não tão simplistas como as que se polarizam na escolha de uma dessas
duas alternativas: repressão ou liberação.
Reprimir o uso de drogas , por exemplo, é proceder como o marido
enganado da anedota que, ao saber que sua mulher o traía no sofá da sala
limitou-se a retirar o sofá.
Assinale-se que não estou aqui questionando a repressão ao tráfico de tóxicos, o que é
diferente da repressão ao uso de tóxicos. Quanto à liberação, já tentada em alguns países
por determinados períodos de tempo, surgiu como uma tentativa improvisada frente à
impotência dos poderes públicos em resolver o problema e igualmente revelou-se inócua
como solução global.
Insisto que a solução não está na escolha simplista entre repressão ou liberação; talvez
estejamos mais próximo dela se, e quando, prestarmos aten ção não aos motivos que levam
muitos jovens a se drogarem, mas às razões que levam outros tantos a não terem
necessidade de fazê-lo.
O ADOLESCENTE E A RELIGIÃO
— Como explicar a atração dos jovens contemporâneos pelas religiões orien tais?
Penso que se poderá dar a esta pergunta explicação análoga ao do por que os jovens usam
drogas diferentes das que empregam seus pais: a atração dos adolescentes pelas religiões
orientais decorre do desejo de adotar crenças diferentes das de seus pais — dentro do
padrão
busca dedeafirmação
contestação
da com que os jovens
sua identidade pautam
— mas sua relação
obedece com a geração
a necessidades místicasprecedente na
equivalentes
às de seus genitores.
A religiosidade e o misticismo têm acompanhado a história da humanidade desde seus
primórdios e provavelmente continuará a fazê-lo por longo tempo ainda. A necessidade de
crença num ser ou poder superior é um imperativo para a maioria dos seres humanos ainda
hoje e os jovens não fogem a essa precisão. No entanto, ao buscarem cultos religiosos
exóticos, ou, quando menos, distintos das religiões tradicionalmente praticadas no ocidente,
estão com esta atitude reafirmando seu livre-arbítrio e desejo de contrapor-se aos valores
provenientes da geração precedente.
8 / Luiz Carlos Osorio
— Não teria sido por abandonar os preceitos religiosos que a juventude de hoje está tão
desorientada e perdida?
É inegável que a religião tem servido através dos tempos como uma espécie de bússola para
indivíduos que sentem ter perdido seus rumos na vida; mas se isto é uma verdade
confirmada pelos fatos, não o é a afirmativa de que, ao se afastar da religião, os indivíduos
necessariamente se sintam perdidos ou desorientados — pois, se assim fosse, sempre lhes
restaria buscar no reencontro com a religião a orientação de que se acham carentes.
Certamente os jovens de hoje não se sentem perdidos ou desorientados porque se afastaram
da religião. Até porque, como está implícito no conteúdo da pergunta anterior, tal
afastamento é discutível, pois o que os jovens estão fazendo é procurar outras crenças para
satisfazer suas necessidades místicas ou suas carências de sustentação moral.
Os jovens estão confusos e perpiexos, sim, mas não mais do que nós outros, adultos, diante
dos rumos equivocados que a civilização parece estar tomando, com a aparente abolição
dos padrões éticos indispensáveis para balizar o progresso humano.
Não é de mais religião que carecemos — e eu até diria que a religião já teve sua vez e não
aprovou como método de salvaguarda dos valores intrínsecos à vida humana—, mas de
uma nova proposta ética que não contrarie o primado instintivo do ser humano nem negue
as contradições de sua natureza anímica. E é para essa busca de uma nova moral, emergente
dessa crise maturativa da espécie humana, que a juventude de nossos dias deverá mobili
zar-se, se quiser assegurar a continuidade do proceso civilizatório e a esperança de um
futuro mais risonho.
— Não é o espírito religioso o grande aliado com que contam os jovens para superar a
agressividade própria dessa etapa da vida?
O espírito religioso tem acompanhado, e muitas vezes até endossado, as manifestações de
agressividade ao longo
conivência velada da história
ou assumida de da humanidade.
sacerdotes A inquisição,
de todas as crenças as guerras
e cultos santas,
com a
os propósitos
belicistas de governos leigos ou militares, são algumas entre miríades de situações que
identificam não haver qualquer incompatibilidade entre espírito religioso e agressividade,
ao menos na práxis social. Portanto, não creio que possa a religiosidade ser antídoto das
manifestações agressivas dos jovens. Quando muito poderá ela mascará-las, reprimindo a
energia agressiva da juventude — que de resto é condição básica para a luta pela vida —
com possíveis funestas conseqüências para a saúde mental dos jovens.
AcJo1c Ho / 89
— A religião não é, então, fundamental para os seres humanos e conse qüentemente para os
jovens?
A religião tem sobrevivido ao longo da História como fonte de consolo e balizamento
moral dos indivíduos; mesmo aqueles que dizem reger suas vidas pela mais pura
racionalidade científica adotam vez por outra práticas religiosas ou místicas em seu
cotidiano existencial. Civilizações se extinguiram e a Religião sobreviveu, mas adotando
formas cada vez mais distantes do difuso panteísmo srcinal e que se aproximam do que,
imaginamos, será sua abstração final e que coincidirá com o império da Razão Pura.
Já fomos adoradores do trovão, depois prestamos tributos a animais deifi cados, mais
adiante antropomorfizamos os deuses e, finalmente, “monotei nizamos” a religião. Temos,
outrossim, evoluído do concreto para o abstrato:
hoje, mesmo nos meios religiosos mais ortodoxos da vertente judaico-cristã, já se admite
considerar Deus um ente cósmico sem a figura humana de um ancião de barbas brancas.
Caminhamos, portanto, em direção à adoção de formas cada vez menos divinizadas e mais
racionais de pensamento religioso. Dia chegará em que este se confundirá com a
racionalidade científica, quando for alcançada a compreensão da essência da natureza
humana.
O ADOLESCENTE E AS IDEOLOGIAS POLÍTICAS
— Por que os jovens são tão influenciáveis pelas ideologias políticas?
Já se disse que os jovens pensam ideologicamente. Pela necessidade de consolidar seu
sentimento de identidade, os jovens procuram nos grupos ideo lógicos um continente, uma
caixa de ressonância
de continuidade futurapara sua concepção
de seus projetos dedevida.
mundo, algonão
E outra queé lhes ofereça
a função dasuma perspectiva
ideologias
políticas do que compor um panorama prospectivo do que pode vir a ser a vida humana
com o aperfei çoamento de suas instituições sociais. Sobretudo em um momento de
profundas transformações e ameaça de desintegração do processo civilizatório como esse
que atravessamos, as ideologias políticas passam a exercer uma atração magnética sobre os
jovens, que nelas encontram a saída huscada para suas angústias existenciais. E quanto
mais dogmáticas forem, quanto mais radicais suas propostas, tanto maior a atração que
exercem sobre os jovens, pois a promessa de certezas em um instante de tantas dúvidas
pessoais e tamanha insegurança prospectiva é como oferecer uma bússola ao navegante
extraviado. A possibilidade de mapear seu destino de acordo com as coordenadas ofere
cidas pelas ideologias políticas é, muitas vezes, uma espécie de salva-vidas a que se
agarram os jovens enquanto sacudidos pela tormenta do processo puhe ral
9() Juiz C ()50r
— Quais as conseqüências da repressão política sobre a mente em forma ção dos jovens?
A repressão política, como a sexual, age diretamente sobre a fonte da criatividade humana.
Indivíduos reprimidos se robotizam, se desumanizam. Os perigos da alienação são
infinitamente maiores do que os da contaminação com doutrinas políticas tidas como
prejudiciais à mente em formação dos jovens. Há uma inequívoca relação entre repressão
política e práticas autodes trutivas entre os jovens. E fato comprovável na história recente
de nosso país o aumento da incidência de toxicomanias entre os jovens coincidindo com a
alienação política suscitada pela repressão do regime totalitário a que estivemos submetidos
nas duas décadas anteriores. Como contraprova, tivemos a redução dessa incidência por
ocasião da abertura política nos anos 80.
— Como se entenderiam as manifestações políticas nos meios estudantis? São elas parte
indispensável da formação dos jovens ou apenas expres são de seu descontentamento com a
geração anterior?
Diria que ambas as hipóteses são corretas. Os jovens escolhem ideologias políticas distintas
das que professam seus pais, como praticam religiões ou usam drogas diferentes das que
empregam seus pais, por razões vinculadas ao confronto generacional e que obedecem,
como vimos anteriormente, à necessária busca de autonomia na afirmação da identidade
adulta. Por outro lado, como a participação política é um natural canal de expressão da
necessi dade dos jovens de encontrar um continente ideológico para seus desejos de
participar na construção da sociedade onde lhes tocará viver, nada mais legítimo do que
lhes facilitar essa expressão através do exercício da vida política desde os bancos escolares.
A práxis política nos meios estudantis é tão indispensável para a formação social dos jovens
como o é a alfabetização para o desenvolvimento de seu intelecto.
— Como impedir que os jovens se tornem violentos em um país cujo governo totalitário
prende, mata e tortura?
Nada mais capaz de estimular a violência entre os jovens do que pais ou governos que
agem sob a égide do autoritarismo. Todos conhecemos a lei da ação e reação. A resposta
óbvia à repressão sexual foi o desregramento dos costumes que, em lugar de propiciar uma
adequada satisfação instintiva, provocou uma onda de promiscuidade permeada de
angústias e desvio dos objetivos sexuais. A História registra, com repetição monótona, que
a governos autocratas sucedem-se períodos de violência cívica e desorientação geral quan
to aos objetivos nacionais. O subproduto mais nefasto de regimes totalitários
HOJC / 91
— porque de efeitos a longo prazo — é a castração do idealismo jovem sem o qual
qualquer sociedade perde seus rumos e se consome na prática da violência gratuita, ditada
pelo individualismo ególatra, destituído de qual quer visão do bem-comum.
— Qual a contribuição que os jovens poderiam trazer a este momento de perplexidades na
área polftica que não só o Brasil mas, ao que
parece, todo o mundo vive hoje?
Todas as teorias sócio-políticas que herdamos do século passado estão em acelerado
processo de obsolescéncia em virtude do ingresso na chamada terceira onda civilizatória ou
era pós-industrial (TOFFLER). As duas grandes correntes sócio-econômicas e políticas que
polarizam o mundo contemporâneo, o capitalismo e o socialismo, têm se mostrado
ineficazes para fornecer a necessária sustentação institucional ao progresso científico e ao
desenvolvi mento tecnológico que caracterizam o advento da terceira onda. Podemos
mesmo dizer que tanto o capitalismo como o socialismo são reacionários em relação às
demandas da terceira onda, pois são doutrinas que se assentam no paradigma da era
industrial.

A ideologia sócio-política
o ecologismo. emergente
E são os jovens, neste
com seus final deverdes
partidos séculoe é,suas
se me permi tem aquanto
reivindicações expressão,
a
herdarem um mundo habitável, os deflagradores de novas ideologias sócio-políticas que
apontam para o futuro e se mostram mais coadunáveis com o momento civilizatório que se
esboça neste limiar do terceiro milênio.
A contribuição que da juventude podemos esperar, no espaço de reno vação e mudança que
representam, é no sentido de assegurar a continuidade do processo histórico através da
denúncia que fazem de nossa cegueira quanto à ameaça de auto-extinção da espécie
humana. Agora, mais do que cogitar da melhor maneira de distribuir bens e gerar riquezas,
é imperativo preservar a vida humana sobre o planeta, pois, senão a curto prazo, não
teremos bens nem riquezas a compartilhar. Os jovens são nossa consciência crítica e deles
espera-se a criação de novas concepções sócio-políticas que viabilizem a se qüência do
processo civilizatório.
O ADOLESCENTE E A EDUCAÇÃO
— Pode-se dizer que à família compete educar o adolescente e à escola instruir?
Na verdade, é importante esta distinção entre educação e instrução. Pode mos dizer
genericamente que a educação é um processo de dentro para fora,
92 / Linz Car1o Osorio
ou seja, como a própria etimologia do termo sugere (e + ducare), é conduzir para fora ou
exteriorizar valores e potenciais pré-existentes no indivíduo. Já a instrução ou ensino
corresponde a colocar para dentro novas informações ou conhecimentos.
Creio que tanto à famiia como à escola corresponde educar e instruir. Pode-se dizer,
contudo, que à família cabe primordialmente educar e à escola instruir, mas, na realidade,
ambos os processos
condições se interpenetram.
e potenciais Sem educar,
latentemente existentes nohumano,
no ser sentido dado acima,
o ensino de liberar asem
constituir-se-á
um simples verniz cogni tivo destinado a homogeneizar o perfil intelectual dos jovens,
abolindo sua criatividade.
Com demasiada freqüência, tanto os pais como os professores caem no vezo de entupir as
cabeças dos jovens com dados sobre o conhecimento huma no, em lugar de ensinar-lhes a
inovar. Tratamos seus intelectos como depósitos a serem preenchidos com informações e
não como instrumentos a serem usados na aquisição de novos conhecimentos. Isto é
lamentável.
— Como despertar no jovem o gosto pelo estudo?
O chamado instinto epistemofílico, ou seja, o desejo inato do homem de conhecer é-lhe tão
natural e espontâneo como a fome, o apetite sexual ou a preservação da própria vida. Como
despertar em uma pessoa o gosto pela vida? Quem sabe apenas não lhe apresentando esta
como algo tedioso, que não tem outro sentido ou objetivo que o de manter a rotina
vegetativa de preservar as funções vitais. Se o aprendizado não se constituir no cumpri
mento da mera finalidade de exercitar a inteligência, com o remoto objetivo de uma
capacitação profissional, mas possa estar impregnado do propósito de dar livre curso à
criatividade pessoal e desenvolver capacidades latentes, então, quiçá, não o teremos, como
até agora, reduzido a uma espécie de câmara de tortura para as mentes jovens, O instinto
epistemofílico é habitual mente sacrificado em benefício do estreitamento das mentes para
adaptar-se a esse verdadeiro leito de Procusto em que se transformou tanto o ensino de 1: e
2: graus como o universitário. Para quem não está familiarizado com a lenda grega,
queremos recordar que Procusto era um ladrão que obrigava suas vítimas a deitar-se em um
leito: se a vítima era mais curta que o leito. Procusto estirava suas pernas até que
alcançassem o cumprimento do leito; se, ao contrário, o leito fosse mais curto que a vítima,
Procusto a reduzia a golpes até que se ajustasse ao cumprimento do leito. Ora, se
transformarmos a educação em um leito de Procusto o que obteremos será apenas
indivíduos deformados.
O gosto pelo estudo só se desperta em um clima de liberdade e respeito ao desejo inato dos
seres humanos de conhecer e compreender tudo que
está a sua volta ou no seu próprio interior.

Âdo!c’ íh>;t 93
— Qual o papel a desempenhar pela escola na formação dos jovens de hoje?
Antes de mais nada, deixar de ser um sub-rogado das expectativas dos pais de seus alunos.
A escola tem um importante papel diferenciador no desenvolvimento psicossocial dos
jovens. A escola é o elemento facilitador por excelência da individuação dos jovens. Para
que ela exerça esta função de catalisadora do processo de aquisição da identidade adulta
dos jovens, deve manter-se imune às pressões familiares para que nela se formem indiví
duos que possuam as características consideradas desejáveis pelos pais.
A escola, a meu modo de ver, tem uma inestimável função a desempenhar como “lugar de
mudança”, isto é, área neutra onde os jovens possam exerci tar-se, dando livre curso à sua
criatividade e talentos potenciais, testando novas idéias e assim podendo contribuir com
soluções inéditas para a melhoria da qualidade da vida humana.
No plano psicossocial tendemos a repetir velhas, surradas e comprova damente ineficazes
fórmulas de convivência humana. Quem sabe, quando pudermos deixar a escola privilegiar
seu papel de laboratório de relações humanas em detrimento de suas finalidades meramente
pedagógicas, tenhamos não só melhores perspectivas para o convívio social como também
descubramos que é justamente despreocupando-nos com o estudo que fomentamos o gosto
por ele.
— E a disciplina, como considerá-la nos dias que correm? Não será o ensino de hoje menos
eficiente porque se contaminou com a ideologia do laissez-faire?
Entre a repressão e a permissividade, ambas expressões da falência no exercício adequado
da autoridade, temos o território da colocação de limites, regido pelo princípio de que “a
liberdade de cada um termina onde começa o direito do próximo”.

Em verdade, os educadores de hoje estão às voltas com um dilema:


OU aferram-se a normas disciplinares que já caducaram por mostrar sua inope rância como
promotoras do bem-estar e respeito mútuo ou renunciam a qual quer propósito de
regulamentar o inter-relacionamento professor/aluno ou aluno/aluno, deixando os jovens
entregues às suas próprias, incipientes e mui tas vezes caóticas, regras de convívio.
Penso que simplesmente exigir obediência em nome do primado da autori dade é regra em
desuso, pois tem se evidenciado prática promotora do autorita rismo que deteriora as
relações
coerente humanas. Disciplina
nas atitudes não se de
e impregná-las exige, conquista-se.
auto-res E. para fazê-lo,
peito e consideração é mister
ao direito ser
alheio.
fuji ( Oru
O ADOLESCENTE “PROBLEMA”
— Os adolescentes rebeldes necessitam tratamento psiquiátrico?
Rebeldia não é, certamente, doença; portanto, não há por que tratá-la. Preocupam-nos mais
os adolescentes acomodados que os rebeldes. Adoles centes apáticos, desmotivados, pouco
sociáveis, estes sim são potencialmente enfermos psiquicamente. A rebeldia é inerente à
juventude. Claro está que há gradações dessa rebeldia. Quando se aproxima da violência,
expressa em ataques físicos, condutas arrogantes e intrusivas, aí sim já não se trata apenas
de contestação peculiar à faixa etária adolescente, para constituir-se, então, no espectro
comportamental que caracteriza a chamada delinqüência juvenil, esta sim já extrapolando
os limites da normalidade.
— Por que há uma incidência tão grande de suicídios na adolescência?
Há inúmeros fatores a considerar, quer de ordem intrapsíquica como cultural, na questão do
crescente índice de suicídios da adolescência. Para tomarmos apenas uma das tantas
variáveis do problema, vamos considerar a mensagem contraditória que os pais emitem a
seus filhos adolescentes:
adultos pessimistas, queixosos, sempre a lançar imprecações contra as vicissi tudes
existenciais, não estarão, porventura, contribuindo para criar nos filhos a convicção de que
a vida não vale a pena? Por outro lado, a ameaça contida na hipótese nada improvável de
que o Homem torne a Terra inabitável por sua conduta predatória ou esteja à beira do auto-
extermínio em uma guerra nuclear não são maneiras de contagiar os jovens com nossa
práxis suicida?
O ecocídio, ou destruição da natureza, assim como o genocídio, ou aniqui lamento da
espécie humana, são inegavelmente práticas suicidas que convidam
os jovens a se destruírem antes que os destruam.
“Viva rápido, morra jovem” — dístico apregoado no frontespício de um agrupamento
juvenil — é a ilustração contundente desse espírito suicidó geno dos adolescentes
contemporâneos face à conduta autodestrutiva dos adultos contemporâneos.
— Como os adolescentes problema tizados recebem a oferta de ajuda por parte dos
profissionais especializados? E que características são
desejáveis em um psicoterapeuta de adolescentes?
O adolescente espera encontrar no psicoterapeuta um indivíduo apto a compreender seus
conflitos sem precisar mimetizar seu comportamento ado lescente. Os adolescentes querem,
para tratá-los. adultos que sejafli receptivos a seus problemas por serem capazes de evocar
ou encontrar ressonâncias
Adolescente Hoje / 95
em suas próprias adolescências, mas sem que para isso tenham que se vestir ou falar como
adolescentes. Precisam de profissionais com uma identidade adulta bem estabelecida, que
possam lhes fornecer novos modelos ou pautas de identificação, e não venham a confundi-
los adotando um procedimento pseudo-adolescente em seu contacto com os jovens.
Os adolescentes são em geral menos preconceituosos do que os adultos com relação às
abordagens psicoterápicas, mas são muito mais exigentes e sensíveis do que eles com
relação à pessoa que vai atendê-los. Os fracassos, não raros no atendimento de
adolescentes, devem-se menos à sua rejeição dos métodos psicoterápicos do que à falta de
tato e incompetência dos profissio nais, bem como ao boicote dos pais, que vêem
equivocadamente os psicotera peutas de seus filhos como agentes retificadores de sua
conduta e não como aliados da saúde mental dos mesmos.
96 / Juiz (anus Osoniu
Epílogo
‘A adolescência é como um muro de vidro: não há portas nem passa gens, só a disposição
de crescer pode transpó-lo. Quem tenta escalá-lo só o fará após muitos escorregões; quem
ousa parti-lo, há de ferir-se com seus estilhaços. Do lado de cá há reminiscências de ternura
e aconchegos; do outro, promessas de conquistas e êxtases”.
(das anotações de um adolescente)
Certa ocasião me indagaram o que é preciso para ouvir e entender adoles centes. Lembrei-
me então do famoso soneto de O. BILAC “Ouvir Estrelas”
e à guisa de resposta, parodiei-o:
OUVIR ADOLESCENTES
Ora (dirás) ouvir adolescentes! Certo
Perdeste o senso! E eu te direi, no entanto,
Que para ouvi-los há que chegar bem perto
E nunca assumir aquele ar de espanto...
Não é preciso “na deles” entrar, no entanto.
Basta a mente e o coração ter aberto
Para escutar seu mui aflito canto
Na dura busca de um futuro incerto.
Dirás agora: Tresloucado amigo!
Que conversas com eles? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo,
E eu te direi: se é inveja o que sentes Por vê-los gozar o que hajas perdido, Não és capaz de
ouvir adolescentes...
Adolescente Hoje / 97
Se nós, adultos, soubermos e pudermos ouvir e entender o adolescente que fomos um dia e
que trazemos homiziado em algum recanto secreto de nossas mentes , e se os adolescentes
de hoje, por seu turno, souberem e puderem dialogar com esse remanescente da
adolescência que seus pais escon dem no âmago de seus seres, quem sabe poderemos juntos
dar um novo curso ao destino da humanidade, sob a égide do idealismo, que é a marca
registrada da juventude de todos os tempos.
Falou-se muito nas páginas anteriores em dar livre expressão à criatividade
dos adolescentes, se quisermos manter acesa a esperança de que nos conduzam
a melhores tempos. Pois é escutando-os e a suas manifestações criativas,
e compartilhando de suas ansiedades existenciais, que quero encerrar este
périolo através da condição adolescente nos dias que correm.
Vejamos, pois, em três fragmentos literários oriundos do desejo juvenil
em comunicar-se e comunicar-nos sua visão do mundo o que dizem os adoles centes de
hoje e de sempre:
AMANHÃ
(poema de uma adolescente de 15 anos sobre sua mãe)
Amanhã
Eu tentarei entendê-la
Tentarei entender a emoção
Atrás daqueles grandes olhos azuis
Tentarei entender seu zelo pela vida
Sua infatigável energia e amor pelos outros
Amanhã
Eu me sentarei e procurarei compreender
Esta mãe minha
Procurarei compreender a mãe
Que me ensinou a viver
Por todos esses meus 15 anos
Amanhã
Trocaremos segredos
Vamos dar um longo passeio
Vamos nos sentar juntas e rir
E eu vou dizer-lhe que me desculpe
Por todas as vezes que a magoei
E as longas noites que ela passou chorando por mim
H oj e
Eu estou muito ocupada
Tenho muito que fazer
E ela me irrita
98 Juiz C;,rh Osorio
Hoje
Ela me faz perguntas estúpidas
Que não tenho vontade de responder
Hoje
Estou muito cansada
Mas amanhã
Eu lhe direi quanto eu a amo
Vou abraçá-la e pedir que me perdoe

Vou dizer-lhe que estou contente por ter


Uma mão como ela
Amanhã
ANOS DO FUTURO
(poema de um adolescente de 17 anos dos anos 50)
Os anos do futuro chegarão
E nos encontrarão perpiexos e confusos
Ante seus umbrais.
Que mundo é este que herdamos de nossos pais?

Que fizeram com ele? Que faremos nós agora?


Não, este certamente não é o mundo que desejaríamos!
O vocês da geração que nos precedeu
Olhem o sol deixando seu rastro dourado
E não o escondam com a fumaça das fábricas
(Sabemos que as fábricas são necessárias,
Mas não estarão elas servindo antes à ganância dos poderosos
Do que às necessidades de todos nós?)
Aspirem ao perfume da floração primaveril
(Se é que ainda podem identificá-lo
Entre os gases e miasmas urbanos)
Ouçam o murmúrio dos regatos e o chilrear dos pássaros
Solicitando por um instante a atenção dos passantes
Para a sinfonia harmoniosa da natureza
(Caso já não hajam ensurdecido pelo ruído do tráfego e das máquinas)
Percebam as sutis diferenças de gosto
Das frutas maduras e do puro mel
(Ou o fumo e o álcool lhes entorpeceram o paladar?)
Sintam o roçar da brisa vespertina
E a espuma marinha e lhes escorrer pelos dedos
(Ou perderam o tato nos guichês dos bancos’?)
Hoje / 99
Gozem o instante de amor que se oferece
E a simples ventura de existir

(Ou já se embruteceram para sempre nas lutas fratricidas?)


E vejam se lhes sobra algum entendimento
Para se darem conta, afinal,
Que o futuro nos pertence, não a vocês...
QUINZE ANOS
(Trechos do diário de uma adolescente de 15 anos dos anos 80)*
Eu acho que a organização que o homem faz na Terra tem muitos defeitos.
Quando eu começo a falar da pobreza, de massacre, de exploração, vai começando a me dar
uma raiva, uma vontade de lutar por mim, pelo Brasil, pelo futuro! Eu acho que eu tô numa
fase de revolta tão grande, uma paixão pela política, que qualquer assuntinho que me
revolte, já me uma
vai me dando deixavontade
louca dedeódio e euo acabo
mudar mundo,lembrando
de corrigirdeosguerra,
erros, de
umaviolência,
vontade de
quepoder
é tãoe
maior que eu chego a achar medíocre tentar explicar alguma coisa numa folha de papel. E
ainda por cima às vezes eu tenho um certo medo, medo dessa fase passar e eu me tornar
uma pessoa alienada e confor mada como milhões de outros brasileiros. Porque para mim
não basta ser consciente, tem que ser atuante. E a pergunta que fica no ar, que sempre resta
é essa: Atuar, mas como?
Espero que você entenda essa revolta desse adolescente com essa vontade louca, linda, tão
adolescente (será?) de mudar, de participar junto com a massa desse processo de
crescimento geral do ser humano e de suas condições de vida.
Dentro de mim uma grande raiva. Um medo de que não me deixem lutar pelas coisas que
devem ser feitas, que me fechem a boca e façam da minha vida apenas mais uma. Medo de

não ser forte


encarar essa, suficiente,
quem é quedevai?
não ir avante, de não me entregar inteira, porque se eu não
Levo uma flor insegura no coração. A agonia de saber que o mundo
não pode acabar agora porque eu ainda nem fui feliz.
Do livro Quinze Ano5, de Gabriela Bastos Loureiro
lO() / Luiz (arh Osor,o
E agora me dirijo aos jovens que porventura me lêem, indagando-lhes se o conteúdo destas
reflexões não identificaria muitos de seus próprios senti mentos em relação ao mundo em
que lhes tocou viver, suas queixas da herança que receberam da geração que os precedeu,
suas preocupações ecológicas com o estado desta aldeia global em que terão que viver
amanhã sua condição de adultos, e que o homem predatoriamente, filicidamente, está
tornando
previsívelinabitável para as gerações
como antigamente, enfim, futuras, suas incertezas
pergunto-lhes diante deste
se estas palavras não porvir já não
poderiam ter mais
sido
escritas por qualquer um de vocês, jovens de hoje, para traduzir seu estado de espírito
diante da ordem (ou desordem) vigente nos dias que correm?!... Como podem perceber,
também fomos adolescentes com preocupações e revoltas muito semelhantes às de vocês,
também tivemos nossas perpiexidades e igualmente compartilhamos essa angústia
existencial que é o seu, o nosso, dilema no mundo em que vivemos.

Quero concluir com uma nota de otimismo prospectivo e de confiança


no ideário dos jovens de hoje, nem tão alienados como os queremos crer
nem tão brutalizados como os fazemos supor:
Para cada adolescente que toma drogas, comete violências ou se margi naliza há outros
tantos escrevendo poemas, pintando quadros, compondo músicas, ou simplesmente
caminhando com o sol a lhes bater nos ombros, curtindo a natureza que nós adultos
deixamos de apreciar, sonhando os ideais que já arquivamos e sentindo pulsar no peito
aquela emoção que só vive em nossa saudade.
Que os adolescentes contemporâneos possam nos ensinar a amar porque desapreendemos a
nos comover porque, por tola vergonha, não mais nos permitimos, e a conviver, porque na
multidão de que nos cercamos somos cada vez mais solitários.

Adolescente Hoje 1 101


Bibliografia
Esta listagem não pretende ser uma bibliografia sobre o assunto, mas tão-somente uma
relação de livros ou artigos cujo conteúdo foi explícita ou implicitamente mencionado ao
longo dos capítulos, ou que direta ou indireta mente influenciaram o pensamento do autor
com respeito aos temas abor dados.
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Adolescente Hoje / 103
r
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* Anzieu, Didier: A Auto-Análise de Freud
* Austin: Quando Dizer é Fazer — Palavras e Ação
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* Beveridge & Ramsdem: Crianças com Dísturbios de Lingua gem

* Boscolo, L: Terapia Familiar Sistêmica — A Escola de Milão


* Bowlby, John. Uma Base Segura
* Calkins. Lucy’ Lições de uma Criança
* Chasseguet-Smirgel: O Ideal do Ego
* Chasseguet-Smirgel: Ética e Estética da Perversão
* Clavreul, Jean’ O Desejo e a Lei
• Cook-Gumperz: A Construção Social da Alfabetização
* Copolil Psicoterapia Psicodinãmica de Crianças Costa & Katz: Dinâmica das Relações
Conjugais
* Costa, Sady & Cruz, Laércio: Otorrinolaringologia — Um Texto Basico
• Coulehan & Biock: A Entrevista Medica
* Cratly, Bryant: O Desenvolvimento Perceptual e Motor em Lactentes e Crianças
* Czermak, Marcel: Paixões do Objeto (Estudo Psicanalítico das Psicoses)
* Dolto, Françoise: Solidão
* Dor, Jotil: A A da Psicanálise Dor, Joril: Estrutura e Perversão
Duncan. Giuliani & Schmidt: Medicina Ambula tonal
• Enguita. M.’ Trabalho, Escola e Ideologia Esteves, Jorge: Manual de Urgéncias em
Oftalmologia
* Faillace, Renato’ Interpretação do Hemograma
* Fain & Dejours. Corpo Enfermo e Corpo Erotico
* Ferreiro, Emilia: Os Filhos do Analfabetismo
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* Fogel, Lane & Leiberl. Psicologia Masculina — Novas Pers pectivas Psicanalíticas
* Foley: Introdução à Terapia Familiar
* Frostig & Maslow: Problemas de Aprendizagem
• Gearhearl, Bili: Disturbios da Aprendizagem — Estra regias
Educacionais
Gellman & Tordjman: O Homem e Seu Prazer

Glitow: Alcoolismo
* Gomel Manual de Neonatologia
* Goodrich: Terapia Familiar Um Enfoque Feminista
• Grinberg. L: Teoria da Identificação
* Hamayde. Decroly — Uma Introdução Completa ao Método do Grande Educador

* Hardeman, Mildred: Os Caminhos do Conhecimento na In fância


Hobbs: Toxicologia e Higiene dos Alimentos
* Hornstein, L.: Cura Psicanalítica e Sublimação Hughes: A Criança e os Números —
Dificuldades na Aprendi zagem da Matemática
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* Julien, Phillipe: O Retorno de Lacan a Freud
• Kaplan & Sadock’ Com péndio de Psiquiatria St cd. - 1989
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* Keeney & Ross: Tratamentos Sistêmicos de Familia — Estra tégias Clínicas
* Klaus & Klaus: O Magnífico Recém-Nascido Klaus & Kennel: Relação Pais & Filhos
* Klerman: Psicoterapia da Depressao
Kohut, Heinz: Como Cura a Psicanálise?
Koppitz, Elizabeth. Avaliação Psicológica do Desenho da Fi gura Humana por Escolares
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os Disturbios de Linguagem e
Aprendizagem
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Manlredi & Bassa: Oralidade e Psicogênese
Manfroi, Wa Ação Medicamentosa e Implicações
Clínicas dos Fármacos Mais Usados em Cardiologia
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MelIo E?, Júlio: O Ser e o Viver — Uma Visão na Obra de Winnicott
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Nasio & Dolto’ A Criança do Espelho


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Neil & Kniskem: Da Psiquê ao Sistema A Evolução da Terapia de Cad Whitaker
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l’iaget: Abstração Reflexiva
Piagel & Inhelder: A Representação do Espaço na Criança r G.. Freud Apolitico?
* Portuondo. J.: O Teste Projetivo de Karen Machover
* Quiroga, Ana: Psicologia Social — Enfoques e Perspectivas Ritvo. Laxer & Maci
Autismo
Rossolato, G.: O Sacrifício
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• Tusrin, F.: Barreiras Autis ricas em Pacientes Neuróticos Vayer & Roncin: As Atividades
Corporais na Cnança

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* Whilaker: Dançando com a familia
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J

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