Você está na página 1de 3

Passado

do presente
O ensino do latim nas
“N
ão é possível sável pela implantação da Lei
descon hecer Orgânica do Ensino Secundá-
escolas marcou um pe- a irremovível rio, que permaneceu em vigor
ríodo em que os estu- vinculação de nossa cultura por quase 20 anos.
com as origens helênicas e la- Segundo a legislação, o en-
dos clássicos e huma- tinas. Não seria conveniente sino nas escolas seria divido
romper com estas fontes”. Essa em dois ciclos: o primeiro, cha-
nísticos eram uma das foi a justificativa dada pelo Mi- mado ginasial, teria duração
bases do sistema edu- nistro da Educação Gustavo de quatro anos; o segundo, de
Capanema, em 1942, ao expli- três anos, poderia ser voltado
cacional brasileiro car as razões de se ter, dentro à área clássica ou científica.
do ensino secundário, discipli- Durante os sete anos, o latim
nas humanitárias, como o La- seria – como, efetivamente, foi
POR MARIANA HILGERT tim. Capanema foi o respon- – disciplina obrigatória.


Zélia de Almeida Cardoso, pro- Cotidiana e Instituições, publica- de diversos outros, ele afirma que o
fessora aposentada de Latim da do também em 1962, ele organizou seu retorno não significaria, neces-
Universidade de São Paulo (USP), uma pesquisa com todos os seus co- sariamente, uma melhoria na Lín-
acredita que a resposta do Ministro legas de profissão a fim de justificar a gua Portuguesa. Como explicou no
se enquadrava nas exigências e con- importância do latim nos setes anos relatório do projeto, haveria outras
dições da época. “Além dessas razões de curso secundário. Com os resul- questões mais complexas por trás de
[apresentadas pelo Ministro], sem- tados, Nóbrega pôde afirmar aquilo tal objetivo, como “a elaboração de
pre se considerou o ensino do latim que pregou durante toda sua vida uma política de formação continua-
como importante instrumento para como docente: “[o estudo do latim] da dos professores da área, melhores
o desenvolvimento de faculdades constitui um instrumento seguro de salários e campanhas maciças de fo-
tais como o raciocínio, a atenção, a boa e sólida formação intelectual e mento ao hábito da leitura, aliadas à
memória, entre outras”. O problema prepara pela ordenação e disciplina implantação de bibliotecas públicas
é que as justificativas não afastavam do pensamento, pela agudeza do es- com acervos atualizados e redes de
das escolas as dificuldades de ensi- pírito, pelo amor à pesquisa e pelo livrarias em todo o País, com preços
no de um idioma que, para crianças respeito às tradições humanísticas de livros acessíveis ao consumidor.”
e adolescentes, aparentava não ter de nossa herança linguística, as ge-
qualquer utilidade. rações merecedoras de um futuro Inviabilidade
Um dos principais entraves era realizador”. Dentro do atual contexto sócio-
a metodologia usada na época. “Em Os resultados da pesquisa de educacional brasileiro muitos pro-
cada classe do antigo curso ginasial, Nóbrega e sua aplicação ficaram fissionais compartilham da mesma
havia apenas alguns alunos que se restritos ao Colégio Dom Pedro II. opinião: não é possível reinserir o
interessavam pela matéria. A maio- Mas na tentativa de não ter mais latim nas escolas. Cardoso acredita
ria simplesmente decorava decli- a instituição como uma exceção, o que é a condição dos próprios alu-
nações e conjugações verbais ou deputado Milton Monti (PR-SP) nos de hoje que não favorece essa
preparava meios fraudulentos para elaborou o Projeto de Lei No 3.963, reinserção, impossibilitando uma
prestar contas dos conhecimen- que pretendia reinserir o Latim, a comparação entre eles e os estu-
tos em provas escritas e chamadas partir da 5ª série do ensino funda- dantes do tempo em que vigorava a
orais”, conta Cardoso. Essa é uma mental, como disciplina obrigatória. Lei Capanema. “Nessas quase cinco
das razões pelas quais muitos alunos A questão é que a ideia foi lançada décadas [desde que o latim deixou
temiam a disciplina, que chegou a quase 40 anos depois da promulga- de ser obrigatório], a situação do
ficar conhecida como a “matemáti- ção da primeira versão da LDB (a ensino mudou completamente. O
ca das letras”. segunda foi publicada em 1996, mas próprio perfil do aluno se modifi-
Em 1962, o ensino do latim tor- não gerou mudanças no que dizia cou. Até os anos 60 do século XX, o
nou-se facultativo no segundo grau respeito ao Latim nas escolas), curso secundário era elitizante e os
– mudança prevista pela Lei de Dire- O objetivo do projeto era me- meios de informação bastante dife-
trizes e Bases da Educação Nacional lhorar a própria língua portuguesa: rentes dos de hoje. Basta considerar
(LDB). Mas foram poucas as esco- “Conhecendo a origem das pala- que a informática só se popularizou
las que optaram pela permanência vras, seu verdadeiro significado, po- a partir dos anos noventa. Os estu-
da disciplina no currículo – afinal, deremos ter uma língua rica, com a dantes – não apenas porque estuda-
além da falta de professores da área, utilização precisa dos termos. Além ram latim – são hoje muito diferen-
havia um despreparo dos poucos de auxiliar na própria gramática, na tes dos do tempo em que o latim era
que existiam. Um raro exemplo foi o análise sintática e morfológica, per- obrigatório”.
Colégio Dom Pedro II, fundado em mitirá a busca nos textos clássicos A inviabilidade de se ter uma dis-
1837, no Rio de Janeiro, que oferece da história da humanidade”, como ciplina também está ligada à falta de
a disciplina na sua grade curricular descreveu o deputado no documen- professores. De acordo com dados
até os dias de hoje. to oficial. do Censo do Ensino Superior, divul-
No mesmo ano da promulgação A tentativa de Monti não foi gado pelo Instituto Nacional de Es-
da lei, Vandick L. da Nóbrega era, já aprovada pelo relator, o deputado tudos e Pesquisas Educacionais Aní-
havia 17 anos, professor da discipli- João Matos (PMDB-SC). Apesar de sio Teixeira (Inep), do Ministério da
na na escola. Para a elaboração do reconhecer a importância do latim Educação (MEC), em fevereiro des-
livro Metodologia do Latim - Vida como língua-mãe do idioma pátrio e te ano, o número de formandos em

POR JOSÉ ERNESTO DE VARGAS

Didática do futuro

áreas específicas de magistério Responsável por preservar o nos- de vídeos, ele se torna mais um dos
caiu 4,5%, entre 2006 e 2007. O so idioma e contar toda a sua histó- elementos que compõem a estrutura
curso de Letras teve uma redução
ria, o Museu da Língua Portuguesa, do Museu.
de 10%, ficando entre os que apre-
em São Paulo, não é apenas uma No Beco das Palavras, uma da
sentam dados mais preocupantes. simples exposição. Interativo e inte- seções mais concorridas do local, a
As próprias universidades ten-
ressante, ele é visitado, desde a sua presença do idioma antigo se torna
tam reverter essa situação, crian-
inaguração, em 2006, por crianças, mais palpável. Com uma mesa inte-
do meios de aproximar a cultura
jovens e adultos. rativa dedicada à etimologia, o pú-
romana das crianças. É o caso do Como não poderia ser diferente, blico brinca e aprende.
projeto Latim na Escola, colocado o latim ganha destaque dentro da Periodicamente, o Museu tam-
em prática a partir de 2000, com a
história de formação da língua. Com bém faz exposições sobre persona-
colaboração de professores e alu-
desenhos, explicações, tabelas de lidades que tiveram a língua portu-
nos de Latim da Universidade Fe- palavras que se modificaram, além guesa como seu foco de trabalho.
deral de Santa Catarina (UFSC).
A atividade, como consta no
documento do projeto, “visa ao
resgate da Língua Latina, à recu-
peração da sua história e cultura, difundir a história e a cultura da Apesar de não acreditar muito
ao desenvolvimento do raciocínio civilização romana. Mas é preci- em fórmulas prontas de motiva-
lógico, bem como contribuir para so incentivar outras atitudes para ção, ele visualiza uma condição
o processo ensino/aprendizagem que as crianças de hoje se interes- ideal para que ela funcione: “Acho
da língua portuguesa.” O projeto sem pelo estudo do latim. sim, que quando se junta uma so-
de aplicação nas escolas foi inter- A leitura é uma delas, como ciedade com indivíduos sedentos
rompido em 2005 – mesmo assim, afirma o professor de Lingua Por- de conhecimento e professores
o trabalho de re-edição das obras tugesa da USP, Mário Eduardo muito maleáveis, aí a fórmula dá
voltado ao público infanto-juvenil Viaro, “Quem não gosta de ler ou certo. Uma utopia é impossível de
continua à espera de editoras inte- não gosta de desafios, jamais gos- imaginar, mas é o que se verifica
ressadas em publicá-lo. tará de línguas difíceis e o latim é em muitos países, não necessaria-
Ideias como esta podem ser uma língua difícil para nós, não mente os mais desenvolvidos eco-
bastante proveitosas no sentido de nego”. nomicamente”.


Você também pode gostar