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Anais do I Seminário Nacional de Pesquisa em Perfomance Musical


Fausto Borém e André Cavazotti, Editores
Belo Horizonte, abril de 2000
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MELODIA PARA CLARINETA SOLO DE OSVALDO LACERDA:


UMA ABORDAGEM INTERPRETATIVA - FASE I
Joel Luís Barbosa (UFBA)

1. INTRODUÇÃO
Este trabalho apresenta a primeira de três fases de um estudo sobre a peça Melodia para
Clarineta Solo de Osvaldo Lacerda. Ela foi escrita em 1974, revisada e publicada pela
Editora Novas Metas em 1980, gravada por José Botelho em 1996 e apresentada em
recitais no Brasil e exterior. Por não ser uma peça que exige grandes habilidades técnicas
e não se necessitar de acompanhamento para sua execução, tem feito parte de muitos
programas de ensino da clarineta no Brasil.

2. OBJETIVOS
Para cada uma das três fases do estudo estabeleceu-se um objetivo:
Fase I: Propor uma interpretação da variável dinâmica desta obra, fundamentando-a
numa interpretação de sua estrutura composicional.
Fase II: investigar se execuções desta obra concordam com a proposta da Fase I.
Fase III: investigar a concordância entre intérpretes quanto a coerência desta proposta de
execução com o gosto musical deles.

3. JUSTIFICATIVA
Suprir a necessidade de despertar o aluno ao exercício da reflexão sobre a execução.

4. QUESTÕES PARA ESTUDO


a. Há algum procedimento composicional que justifique tocar os sete locais que possuem
a indicação f com diferentes níveis de forte?
b. Supondo que haja, existe entre eles um que deva ser tocado com um grau de
dinâmica maior que os outros?

5. PROCEDIMENTOS
a. Análise da estrutura composicional;
b. Estudo comparativo dos sete locais que estão indicados com f, na edição e no
manuscrito.

6. INTERPRETAÇÃO DA ESTRUTURA COMPOSICIONAL


Melodia para Clarineta Solo constitui-se de uma linha melódica contínua que se repete de
maneira semelhante (Seções A e A’), possuindo, após o estabelecimento de sua
tonalidade, uma sucessão progressiva de movimentos melódicos, ascendentes e
descendentes, que atinge um único clímax e seu repouso final.

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BARBOSA, Joel Luís - MELODIA PARA CLARINETA SOLO DE OSVALDO LACERDA...

Quadro I

O Quadro I demonstra as notas enfatizadas na estrutura composicional da obra, através


de uma progressão harmônica, de uma intensificação do uso dos sinais de expressão, e
de uma expansão da extensão das alturas e da duração das notas. A frase do compasso
1-4 estabelece a tonalidade de lá menor.1 A nota lá inicia, termina e é a mais aguda e
grave desta frase, sendo o lá2 a mais grave e o lá4 a mais aguda. Nesta frase, as notas
sol#3, sol#4 e si bemol 3 geram dissonâncias que resolvem no lá3 do final da frase. A
dissonância dos sol#3 e 4 está em relação ao acorde de lá menor que o precede e do si
bemol por ser uma nota estranha à tonalidade que está sendo estabelecida. (Exemplo 1)
Considerando que cada uma destas notas é uma apojatura, notará-se que os quatro
fragmentos dessa frase começam e terminam com a nota lá. Esta suposição é apoiada
pelo uso de ligaduras presentes no manuscrito. (Exemplo 1) Há uma ligadura de fraseado
para cada par de fragmentos. Este procedimento pode indicar que, inicialmente, o
compositor desejava que estes fragmentos fossem bem conectados. Esta frase determina
o nível inicial de dinâmica da obra, sempre p.

Exemplo 1

Após a frase inicial, no primeiro movimento melódico, descendente-ascendente,


compassos 4-10, se destacam as notas sol#3 e ré#4 (comp. 9 e 10); a primeira por ser a
nota central do movimento, constatada pela indicação de crescendo-decrescendo, e ter
função de apojatura. A outra é ressaltada por não concluir o movimento melódico,
funcionar como apojatura, gerando um sentido de continuidade à linha melódica. Neste
movimento melódico a extensão da peça aumenta um semitom para o grave (sol#2) e um
tom para o agudo (si4). A próxima nota de importância na estrutura da obra é o sol#3 do
compasso 15, que desempenha um papel semelhante ao ré# anterior. Até este momento
a dinâmica é sempre p com cinco indicações de crescendo-diminuendo, das quais o
centro de três delas coincide com as duas notas sol#3 e a si4 mencionadas acima,
compassos 9, 10 e 15. Em seguida, o si bemol 4 do compasso 16 é destacado com a
primeira aparição da dinâmica f e com a função de nona no acorde de dominante da sub-
1
Este trabalho menciona os nomes das notas escritas para a clarineta em si bemol e não o som real. Em som
real a tonalidade é sol menor.
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ANAIS DO I SEMINÁRIO NACIONAL DE PESQUISA EM PERFORMANCE MUSICAL

dominante. No mesmo compasso, a extensão da peça se expande, passando brevemente


pelo mi 5. Ele faz parte de uma seqüência de colcheias e caminha para o fá4 do
compasso seguinte.

No compasso 21, a linha melódica atinge sua nota mais aguda, o fá 5, que é enfatizado
com a segunda indicação de forte e como sétima do acorde de dominante da mediante,
caminhando para a nota mi. Juntamente com o fá4 com valor de colcheia que o antecede,
eles se tornam o ponto mais enfatizado até aqui, pela função harmônica e duração (dois
tempos, ainda que intercalado por uma pausa de respiração). Em seguida, a progressão
de movimentos atinge o clímax da Seção A da obra com a seqüência melódica ré#3–mi3,
compassos 24-28. Essa seqüência é ressaltada com trilo sobre o ré#, com rall em direção
ao mi, com as notas mais longas desta Seção (mínima pontuada, ré#, e semínima
pontuada com fermata, mi), e com a indicação mais extensa de f, sete tempos (enquanto
a primeira durou cinco e a segunda três tempos). Dentro da progressão harmônica da
estrutura da peça, esse movimento melódico é mais significativo do que os anteriores,
sensível da dominante para dominante. Finalmente, a progressão harmônica caminha em
direção a tônica e, quando parece que a linha melódica repousará, é reiniciada em piano
(Seção A’), compasso 33, passando rapidamente pela tônica.

Na seqüência, a Seção A é repetida de maneira sintetizada, mas ornamentada e com


maior atividade rítmica. Na repetição, os trechos de maiores ênfases são os indicados
com f, compassos 40 e 45-46, equivalentes aos compassos 16 e 21 da Seção A,
respectivamente. As notas si bemol 4, mi5 e fá5 destes trechos desempenham as
mesmas funções harmônicas apresentadas na Seção A, porém a primeira e a última
passam a ter valores mais curtos, colcheia. Contudo, nota-se a mesma progressão no
aumento das durações das notas encontrada na Seção A, se acrescentar o fá4 colcheia
ao fá5 que o sucede imediatamente. Esta diminuição da duração das notas da Seção A
para a A’ ameniza suas dissonâncias e dá um sentido mais fluente na condução ao ápice
da obra, ao mesmo tempo que cria uma atividade rítmica mais ativa. Também a duração
do forte se altera de uma seção para a outra, o primeiro diminui para quatro tempos e o
segundo aumenta para seis, gerando uma maior intensificação da dinâmica na Seção A’.

Apesar da linha melódica ser apresentada de maneira sintetizada na Seção A’, são
acrescentados alguns trechos à ela, indicando o movimento ré#3–mi3 desta seção como
clímax da obra. Além do trilo e do mesmo tratamento de dinâmica, o movimento ré#3–mi3
é antecedido e preparado por um movimento ascendente em mf e outro descendente com
accelerando e p crescendo, que volta a tempo no ré#3, compassos 47-54. O movimento
ascendente vai do sol#2 ao ré5 e o descendente do si bemol 4 ao ré#3. Comparando os
dois movimentos ré#3–mi3 da obra, compassos 27-29 e 54-56, na edição e no
manuscrito, pode-se notar que a dinâmica forte é mais prolongada na Seção A’ do
manuscrito. Na Seção A do manuscrito, ela perdura por sete tempos e na Seção A’ por
dez. Isto pode significar que o compositor desejava, antes da edição, que o trecho da
Seção A’ tivesse uma ênfase maior que o da Seção A. Na edição ocorre o contrário, sete
tempos na Seção A e seis na A’, que é a mesma duração do f anterior, compassos 45-46.
Contudo, o movimento de preparação mais prolongado para o ré#-mi da Seção A’ indica
que ele é mais significativo que o da Seção A.

Quanto a duração das notas, os rés# dos movimentos ré#-mi são mais longos que todas
as outras notas enfatizadas, mínima pontuada, sublinhando sua importância. Na Seção
A’, não há fermata sobre o mi, mas é acrescentado um outro episódio na seção, entre o
ré#-mi e a tônica, que realça ainda mais este clímax. Ele mantém a linha melódica
suspensa até sua conclusão no compasso 68, através da cadência interrompida dos
compassos 56-57, e da seqüência: sol#4, sol#4, ré#3 e ré#3, compassos 58, 60, 63-63 e
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65-66. O primeiro sol# é p, porém o segundo f, o último f da obra, reforçando a


suspensão. Por outro lado, f pode ser demais neste local se não tocado dentro do
diminuendo geral deste contexto da obra. No manuscrito, as duas notas estão com mp,
sendo que o movimento melódico que precede a primeira é mf e a segundo mp, ambos
com os sinais crescendo-decrescendo, indicando a conclusão repousante da obra por
minimização da dinâmica. Tanto na edição quanto no manuscrito, o primeiro ré# dessa
seqüência é mais forte que o segundo, apontado a aproximação do fim tranqüilo, e ambos
têm indicações de trilo, mantendo a suspensão do movimento ré#-mi.

Finalmente, a obra chega ao fim com o movimento sensível-tônica, sol#2–lá2, compassos


67-68. Para que este movimento tenha um caráter conclusivo, o compositor sobe o nível
de dinâmica para mf e usa um ritenuto, além do rallentando poco a poco que já está
ocorrendo desde o compasso 62. O lá2 é seguido pelas outras notas do harpejo de tônica
com sétima maior, o mesmo movimento melódico inicial da obra, concluindo a obra com a
sétima do acorde, sol# 3. No manuscrito o sol#2 era colcheia e na edição foi modificado
para semínima. Pode-se supor que o compositor optou por um valor maior da nota para
reforçar o sentido conclusivo do lá2, mostrando que ali é o final da obra e que o harpejo
deve ser tocado como tal e não como condução para o sol#3 final. Isto é confirmado pelo
decrescendo no harpejo e pelo aumento da duração da pausa que precede a nota final:
de pausa de semínima no manuscrito para pausa mínima na edição. Para que o sol#3 do
final do harpejo não fique mais relevante que o lá final, ele é iniciado mais piano, que o fim
do diminuendo do harpejo. O diminuendo termina em p e o sol# começa com pp, cresce
até mp e finda em ppp.

Quadro II

O quadro II é uma redução do Quadro I, onde são mantidos apenas os pontos mais relevantes:
o estabelecimento da tonalidade, os trechos indicados com f e a conclusão da obra.

Quadro III

O Quadro III é a redução mínima da estrutura da obra: a determinação do centro tonal, o


ápice (movimento ré#-mi) e o repouso final.

7. RESULTADOS
a. A análise demonstrou que a peça constitui-se de uma linha melódica que se repete de
maneira semelhante, possuindo, após o estabelecimento de sua tonalidade, uma
progressão de movimentos melódicos que atinge seu clímax através da construção de uma
progressão harmônica, da expansão do registro e da duração de notas, e de intensificação
de sinais de expressão, e atingindo seu repouso nos quatro últimos compassos.
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b. A análise musical e o estudo comparativo demonstraram que o forte dos compassos


54-55 é o mais significativo da estrutura composicional

8. CONCLUSÕES
a. Uma hierarquização nos níveis de dinâmica dos sete locais indicados com forte pode
reforçar o desempenho de suas diferentes funções na sucessão de movimentos
melódicos em direção ao clímax da estrutura composicional
b. Executar o forte dos compassos 54-55 com um nível de dinâmica maior que os demais
pode reforçar a ênfase dada a este local como clímax da obra.
c. Uma proposta que mantenha os sete trechos com um mesmo nível de dinâmica,
enquanto dando diferentes nuanças de dinâmica a eles, é tocar cada um deles com
diferentes quantidades e prolongações de picos de forte ao longo de sua extensão.
d. Por outro lado, pode ser que o próprio tratamento dado pelo compositor a esses pontos
já seja suficiente para que eles desempenhem com eficiência suas diferentes funções
na estrutura da obra. Confirmando isso, existe o fato dele não ter utilizado o ff e ter sido
meticuloso a ponto de usar ppp, pp, p, mp, mf e f.
e. A estrutura da obra aponta notas que servem de guia na condução para o clímax da
obra, podendo resultar numa execução que não fragmente seu propósito musical.

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