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fátima

nunca mais

-- digitalizado por: lurdes e tomé coelho --

outras obras do autor:


evangelizar os pobres, figueirinhas 1970
encontro, afrontamento 1971
maria de nazaré, afrontamento 1972
chicote no templo, afrontamento 1973
estava preso e visitastes-me, ed. autor 1974
cartas da prisão, iniciativas editoriais 1974
ser jornalista é tomar partido, ed. autor 1975
nascer de novo (ensaio de catequese libertadora), afrontamento
1975
o bispo converteu-se, ed. autor 1976
creio na revolução, ulmeiro 1977
viver sem deuses nem chefes, centelha 1978
no princípio era o amor, ed. autor 1980
cristãos por uma igreja popular, centelha 1983
evangelho de isabel, associação padre maximino 1986
como fui expulso de capelão militar, edições margem 1995
mas à África, senhores, por que lhe dais tantas dores?, campo
das letras 1997
p.e mário de oliveira
fátima
nunca mais
p5 (fi~p g
fÁtima nunca mais
autor: p. mário de oliveira
direcção gráfica e capa: loja das ideias
o campo das letras - editores, s. a., 1999 rua d. manuel li, 33 -
5" 4050-345 porto
telef.:6007728 fax:6004019 e-mail: campo.letras*maíl.telepac.pt
site: www.campo-letras.pt
impressão: a.t.-laja gráfica, lda. -porto 1.'~ edìção: abril de
1999
2," edição: junho de 1999 depósito legal n." 136062/99 , isbn
972-610-160-3
código de barras: 9789721604
colecção: camr a da actualidade - 23
Índice
1. fátima nunca mais! 9
2. no outro lado de fátima, à procura de maria de nazaré 41
3. irmãzinhas de jesus: com elas, entendemos melhor
maria de nazaré e o evangelho dos pobres 47
4. fátima: privilégio ou responsabilidade? 51
5. não será que também fátima precisa
de se converter ao evangélho de jesus? 55
6. o que as crianças viram não foi nossa senhora 59
7. fátima: um inferno de mau gosto 63
8. agora, com o comunismo derrotado,
frei bento interroga-se: qual o papel de fátima? 67
9. deuses contra deus 71
10. do deus de fátima livra-nos, senhor! 75
11. há anos que ele faz incómodas perguntas sobre "fátima"
e, em lugar de respostas satisfatórias, recebe insultos
83
12. evangelizar a senhora de fátima 89
13. fia-te na virgem e não corras! 93
14. eu, maria, mãe de jesus, não tenho nada a ver
com a senhora de fátima 99
15. não há nenhum segredo de fátima 109
16. o culto a n. s. de fátima afasta-nos do deus
que se revelou em maria de nazaré 113
7
17. muitas conferências, nenhum debate l25
18. o milagre da jacintinha 137
19. aparições e visões: quem nos livra delas? 143
20. manifestação de fé ou de paganismo? 151
21. fátima: a glória da nossa terra ou a nossa vergonha? 157 22.
teologicamente, um vómito lól
23. no inferno, os pecadores uivam como cães danados 169
24. como brasas transparentes 173
25. e a imagem da senhora de fátima chorou!... 179
26. fátima: a grande ilusão 183
8
fátima nunca mais!
1. quando, há tempos, aceitei participar num debate promovido
pela sic e respondi abertamente "não!" à pergunta "acredita nas
aparições de fátima?", foi um escândalo (quase) nacional. nunca
tal se ouvira na televisão, para mais, da boca de um padre
católico. infelizmente, o debate abortou pouco depois de ter
começado, e quase não me foi possível apontar as razões do meu
não. o que terá deixado toda a gente mais ou menos frustrada. e
até a pensar menos bem de mim.
mas o impacto da minha resposta foi tal, que até o próprio
jornalista que conduzia o debate não conseguiu esconder o seu ar
de espanto. apressei-me, por isso, a recordar tanto a ele como a
todas as portuguesas e portugueses que, nessa hora, sintonizavam
a sic - e deverìam ser milhões, tal o impacto do debate que, ao
contrário do que pensa a maior parte das pessoas, mesmo não
católicas, as aparições de fátima não fazem parte do núcleo da
fé cristã católica; o que quer dizer que se pode não acreditar
em fátima e continuar a ser cristão católico romano.
mesmo assim, e talvez porque não costuma ser esta a
mensagem-informação sobre as aparições de fátima que passa nas
pregações dos párocos e dos bispos, nem nas peregrinações que,
um pouco de todo o país e de muitas partes do mundo, são
reiteradamente organizadas para lá, a verdade é que, se eu já
era um padre meio maldito, passei, desde então, a ser maldito de
todo, aos olhos de quase todos os meus irmãos e irmãs de fé
católica.
entretanto, se ainda me aflijo com isso, não é por mim que me
aflijo, mas por todos aqueles e aquelas que, preguiçosamente,
preferem continuar a escandalizar-se com as minhas declarações,
honestamente ditadas pela fé cristã que me anima e dá sentido à
minha vida, em vez de, interpelados por elas, apressarem-se,
elas e eles também, a meter mãos ao trabalho para ìnvestigarem
seriamente o que se passa à volta de fátima.
É que, com posições assim preguiçosas e acomodadas,
objectivamente tão contrárias à fé cristã, dificilmente
conseguiremos ir longe em liberdade e em responsabilidade
humanas. i, em vez disso, manter-nos-emos, geração após geração,
como uma espécie de portugal dos pequeninos e uma igreja de
criwças (não é verdade que na generalidade, todos os que nos
confessamos católicos, fomos baptizados poucos dias ou poucas
semanas depois de termos nascido e que nunca mais crescemos na
fé nem nas razões dela?), inevitavelmente à mercê de influentes
hierarquias políticas e eclesiásticas! uma postura social e
eclesial que, indubitavelmente, também a senhora de fátima tem
ajudado, e muito, a implementar. não só em portugal, mas também
um pouco por todo o mundo católico.
2. entretanto, quando, na sic, respondi que não acreditava nas
aparições de fátima, mais não fiz do que retomar hoje a mesma
atitude que a igreja católica em portugal tomou entre 1917 e
1930. na verdade, durante 13 anos, também ela não acreditou nas
aparições de fátima. e podia ter-se apressado a reconhecê-las,
porque, até então, eram já muitos os milhares de pessoas que
acorriam a fátima, entre 13 de maio e 13 de outubro, de cada
ano. e, inclusive, havia já ocorrido o chamado "milagre do sol",
no dia 13 de outubro de 1917.
porém, só em 1930 é que a igreja católica reconhece fátima. um
reconhecimento oficial a que não terá sido alheio o facto de ter
saído vitorioso o golpe militar de 28 de maio de 1926.
o novo regime, obscurantista católico, saído deste golpe militar
e presidido pela dupla salazar-cardeal cerejeira, carecia de uma
coisa assim, para mais facilmente se implantar nas populações. a
senhora de fátima, com a mensagem retrógrada, moralista e
subserviente que lhe é atribuída e que, ainda hoje, vai tão ao
encontro da generalidade dos nossos funcionários eclesiásticos
católicos e do paganismo religioso-católico das nossas
populações, vinha mesno a matar. nem sequer era preciso

--10--

esforçar-se por arregimentar as populações à volta do clero.


bastava ir ao seu encontro, todos os meses, em fátima.
vai daí, em lugar de continuar a demarcar-se do fenómeno e até a
hostilizá-lo, a hierarquia maior da igreja católica, em 1930,
mudou radicalmente de estratégia e reconheceu-o e canonizou-o,
como sobrenatural.
terá percebido nessa altura que, se não adiasse mais esse
reconhecimento, os lucros seriam enormes, como, efectivamente,
foram. lucros financeiros, lucros políticos, lucros clericais.
lucros eclesiástico-católicos.
algo assim como um verdadeiro "milagre", não de deus,
evidentemente, que deus nunca faz milagres - com eles, faria de
nós uns súbditos assustados, em vez de filhas e filhos livres e
responsáveis-, mas um "milagre" produzido por aquela vertente
demoníaca que, sobretudo em horas de maior aflição, sempre se
manifesta no mais fundo dos seres humanos e os leva a
prostrar-se de joelhos não só diante de imagens surdas e mudas,
mas também diante dos representantes do idolatrado poder
religioso e eclesiástico, na ilusória esperança de que, assim,
as suas muitas aflições poderão encontrar uma qualquer mágica
saída.
por outro lado, esta nova atitude da hierarquia maior da igreja
católica veio revelar-se, igualmente, como um verdadeiro trunfo
contra a república de 1910. e contra a liberdade. contra a
autonomia individual. e contra todas as outras igrejas não
católicas. contra a maçonaria. e contra a laicidade e a
cidadania, então incipientes.
mas o pior - e parece que na igreja católica ainda ninguém ,
entre os mais responsáveis, deu por isso - é que essa
surpreendente mudança de estratégia da hierarquia maior
católica, relativamente às "aparições" de fátima, materializava
também uma histórica traição ao evangelho de jesus cristo. uma
traição que acabou por desfigurar completamente o cristianismo,
tal como o próprio jesus cristo o inspirou com a sua prática e
palavra, no sentido de que ele materializasse, na história, a
via de realização humana integral, saudavelmente cómoda, como o
sal da terra,
e libertadoramente subversiva, como a luz do mundo (mt 5). (
3. só que fátima e as suas pretensas aparições resumiam-se,
nessa altura, praticamente a nada. para cúmulo, das três crianças

--11--

que, em 1917, afirmaram a pés juntos que tinham visto nossa


senhora - uma delas, francisco, nunca ouviu nada e tanto ele,
como a sua irmã, jacinta, nunca disseram uma palavra que fosse à
senhora das "aparições", apenas lúcia foi protagonista, o que
prova que até nas "aparições do céu" há díscrímínação!... - duas
delas já tinham morrido, há uns dez-onze anos, de pneumónica. e
também em consequência do terror que a senhora de fátima lhes
incutiu (entenda-se, certas catequeses moralistas e terroristas
de grande parte do clero de então).
na circunstância, valeu, por isso, ao regime e à sua poderosa
dupla, salazar-cardeal cerejeira, a existência de lúcia, a mais
velha das três antigas crianças "videntes". talvez, por ser mais
vigorosa e menos ìmpressionável, conseguiu sobreviver a todo
aquele terror que a senhora de fátima materializava e
materializa ainda hoje.
entretanto, alguns clérigos mais fanáticos do catolicismo
obscurantista e moralista de então - eles viam nas "aparições de
fátima" não a presença do demoníaco, como elas efectivamente
são, mas sim a presença do dìvino, e até um verdadeiro milagre
do céu - haviam conseguido arrastar a pequenita lúcia, poucos
anos depois de 1917, para fora da sua aldeia e encurralaram-na,
primeiro, no asilo de vilar, no porto, e, depois, num convento
da galiza. foram ao ponto de lhe arrancar o nome (é o mesmo que
tirar-lhe a identidade) e passaram a chamar-lhe - imagine-se!
irmã maria das dores. ao mesmo tempo, proibiram-lhe que alguma
vez falasse a alguém das "aparições".
o terreno estava, pois, mais do que preparado para obter desta
antiga "vidente" uns relatos bem mais completos das "aparíções",
os quais, duma vez por todas, impusessem fátima à igreja e ao
mundo. e, se bem o pensaram, melhor o fizeram.
deram ordens à irmã dores (actualmente, ela é, de novo, lúcia),
sempre em nome, é claro, do voto de obediência, para que ela
escrevesse. e até lhe forneceram, antes de cada relato,
orientações muito precisas sobre o que ela deveria escrever.
finalmente, corrigiram-lhe os textos que ela manuscreveu, para
que pudessem ser publicados sem erros e com boa pontuação. tudo
muito isento, como se vê!...

--12--

4. nasceram, assim, as "memórias da irmã lúcia", um livro


bizarro e delirante, mas imprescindível para se entender fátima
e a sua senhora. os relatos do livro surpreenderam tanto os
críticos de fátima que estes passaram a chamar-lhes "fátima ii",
tão diferentes eles eram dos relatos primitivos de 1917, que,
por isso, passaram a ser referidos como "fátima i" e que não
passam, estes últimos, de curtos depoimentos, mais ou menos
ingénuos, das três crianças ditas "videntes".
quatro dessas cinco memórias foram escritas entre 1935 e 1941;
mas a quinta e última memória foi escrita ainda muito mais
recentemente -já em 1989! o livro que as contém encontra-se
traduzido em várias línguas e tem conhecido sucessivas edições.
quer isto dizer que são textos escritos muitos anos depois das
pretensas "aparições", e apenas por uma das suas vítimas, a
qual, embora tenha conseguido sobreviver ao terrorismo que elas
materializaram, nunca mais pôde ter, desde então, uma vida
normal e equilibradamente saudável no meio do mundo.
violentamente sequestrada da sua aldeia, poucos anos depois das
"aparições", encurralada mais ou menos à força num convento sob
um nome que nem sequer era o dela e acompanhada por confessores
fanáticos e beatos que viam sobrenatural em tudo, ao mesmo tempo
que tinham uma histérica fobia por tudo o que fosse mundo e
república, laico e secular, liberdade de consciência e
cidadania, eis que a pobre rapariga de fátima passou a ser um
joguete nas mãos deles, a cujos olhos, para cúmulo, todos os
processos a utilizar eram legítimos, desde que servissem para
ajudar a derrotar mais depressa e mais eficazmente a república e
todos os outros supostos "inimigos" da igreja católica.
pode, por isso, dizer-se que lúcia nunca mais se encontrou a si
mesma, e, pelo que ela própria conta no livro das memórias,
sobretudo, nos dois apêndices, vê-se que tem vivido em delírios
quase contínuos, com aparições de nossas senhoras e de nossos
senhores, a toda a hora e instante, que lhe confiam mensagens,
para ela, por sua vez, confiar aos bispos e ao papa.
enfim, uma verdadeira desgraça. para não dizer um crime, que, em
vez de ser denunciado e julgado, irá ser, depois da morte de
lúcia, provavelinente, canonizado, quando os sucessores dos

--13--

eclesiásticos que tanto a oprimiram e alienaram, exigirem do


vaticano que a beatifique e declare santa dos altares!
5. nestas circunstâncias, que valor probatório gozam essas
memórias da irmã lücia? que credibilidade merecem? tomar a sério
o que lá está escrito e edificar sobre estes relatos,
manifestamente delirantes, a base da religião de fátima não é
uma injúria à fé cristã e ao evangélho de jesus cristo? não é um
insulto a deus, pelo menos, àquele deus que se nos revelou
plenamente em jesus de nazaré, e em maria, sua mãe carnal e
exemplar discípula?
mas a verdade é isto que continuamos hoje a ver em fátima. ou
seja, vemos a senhora de fátima ser cultuada, como a grande
deusa da serra d'aire, e, embora este culto tenha tudo de
demoníaco e nada de cristão e de humano, é, sem dúvida, às
memórias da irmã lúcia e aos seus demenciais delírios que se vai
buscar todo o seu fundamento.
por mim, tenho plena consciência do chocante que estas minhas
afirmações consubstanciam. mesmo assim, não deixo de as fazer.
com serenidade. em nome da liberdade. em nome do bom senso. em
nome da sanidade mental. e, sobretudo, em nome do evangelho de
jesus, pelo menos, tal como eu o experimento e procuro viver,
para cujo arníncio aos pobres fui constituído presbítero, por
causa do qual, antes do 25 de abril de 74, fui duas vezes preso
e, desde então, me vejo votado ao ostracismo eclesiástico,
certamente por ter-me tornado demasiado incómodo na igreja.
mas não se pense que é apenas de agora esta minha posição sobre
fátima e a sua senhora. quando fui pároco de macieira da lixa,
entre 1969 e 1973, já então promovi com a paróquia uma séria
reflexão teológica e cristológica sobre maria de nazaré. foi
durante todo o mês de maio de 1970 (cf. o meu livro "maria de
nazaré", edições afrontamento, porto).
em lugar de nos refugiarmos no templo paroquial a repetir, no
mínimo, cinquenta vezes por dia as mesmas palavras do terço,
ocupámos o tempo a reflectir e a aprofundar, a partir do
evangélho e de jesus de nazaré, quem era maria, sua mãe.

--14--

foi uma inesquecível experiência de libertação para a liberdade


e de fraterna alegria. recordo-me que, no encontro
correspondente ao dia 12 de maio desse ano, uma das perguntas
que então soou no interior do templo paroquial, transformado por
nós em espaço de convívio e de busca comunitária da verdade, foi
esta: "a senhora de fátima ainda será maria?". e todos os dados,
já então apresentados, levavam-nos a concluir que a senhora de
fátima não tinha nada a ver com maria, mãe de jesus, ainda que,
oficialmente, a igreja católica persista, insensatamente, ainda
hoje, a dizer que sim, que são apenas dois nomes distintos para
nomear a mesma pessoa. pura mentira!
6. mas foi sobretudo depois que assumi as funções de director do
jornal fraternizar que senti o apelo a voltar ao assunto senhora
de fátima, concretamente, na edição referente a cada um dos
últimos meses de maio.
esta decisão levou-me a ler-analisar com mais atenção o livro
"memórias da irmã lúcia". e, se já não tinha qualquer fé na
senhora de fátima, nem nas chamadas aparições, a leitura crítica
deste livro, escrito com o manifesto objectivo de fundamentar as
aparições e impor definitivamente fátima à igreja e ao mundo,
fez de mim um convicto militante anti-fátima. também em nome de
maria. e do evangelho.
a leitura destes escritos deixou-me, evangélica e
teologicamente, horrorizado. nem a senhora de fátima da
"vidente" lúcia, tal como ela se lhe refere, corresponde a
maria, mãe carnal de jesus e a sua melhor e mais perfeita
discípula, nem o deus dos seus textos corresponde no deus que
nós, cristãos e cristãs, reconhecemos e proclamamos e que se
revelou definitivamente na pessoa de jesus de nazaré, o
ressuscitado que, antes, havia sido crucificado.
digamos que o deus das memórias da irmã lúcia tem tudo a ver com
o deus do templo de jerusalém, em nome do qual, o próprio jesus
foi condenado à morte e executado, por o ter posto em cheque, em
nome de outro deus, de misericórdia e de perdão, sem religião e
sem templo, a quem ele, numa intimidade ainda hoje
desconcertante para nós, tratava por "abbá", uma

--15--

expressão aramaica que diz mais, infinitamente mais, do que


"pai" ou "paizinho", como os tradutores da bíblia costumam
traduzir para as diversas línguas hoje faladas.
tenho, por isso, para mim que fátima e a sua senhora, mais do
que toleradas, deverão ser teologicamente denunciadas e
desmascaradas. para que as populações tomem consciência do
veneno que ambas veiculam, sob o disfarce de grandiosas
manifestações de fé.
quem tiver dúvidas e achar exagerado isto que acabo de escrever
experimente ler-analisar criticamente as "memórias da irmã
lúcia" e os seus dois curtos apêndices. mesmo que conheça pouco
o evangélho de jesus e não seja muito profundo em teologia
cristã, poderá acabar por experimentar o mesmo que eu
experimentei. basta que tenha um mínimo de humanidade, de bom
senso e de sanidade mental, para logo se demarcar de tudo aquilo
que só uma mente que outros criminosamente perturbaram é capaz
de ver e ouvir e de apresentar aos outros como de deus.
7. aqui ficam, entretanto, alguns extractos dessas cinco
memórias da irmã lúcia, tais como as lemos na 6. edição, de
março de 1990, numa compilação do pe. luís kondor, svd, com
introdução e notas do pe. dr. joaquim m. alonso, smf, falecido
em 1981, e do pe. dr. luciano cristino. leiam e deixem-se
estarrecer.
vejam o ambiente de terror religioso em que viveram as três
crianças das "aparições". o tipo de catequese que lhes era
ministrado. vejam quem é a senhora de fátima. como fala e do que
fala. o que pretende. com o que mais se preocupa. como trata as
crianças. que imagem lhes transmite de deus. que catequese
terrorista lhes ensina. ao que é que as chama. em nome de quê as
mobiliza.
verão, então, que até as crianças acabam por ser bem melhores do
que o próprio deus. se ele é capaz, por exemplo, de condenar os
"pecadores" ao lnferno eterno, as crianças, ao contrário dele,
são capazes de se sacrificar, para que tal não aconteça!...
leiam e concluirão, certamente, como eu concluí, que será muito
difícil alguém da igreja católica poder vir a criar uma imagem
mais monstruosa de deus, de jesus e de maria, do que esta imagem
que a irmã lúcia criou com as suas memórias.

--16--

8. primeira memória
a introdução esclarece que este é "o seu (de lúcia) primeiro
escrito extenso". e diz-nos como o livro nasceu. "no dia 12 de
setembro de 1935 eram trasladados, do cemitério de vila nova de
ourém para o de fátima, os restos mortais de jacinta. nesta
ocasião, tiraram-se diversas fotografias ao cadáver; algumas
delas foram enviadas pelo sr. bispo (de leiria) à irmã lúcia
que, então, se encontrava em pontevedra". lúcia agradeceu a
lembrança, em carta de 17 de novembro do mesmo ano.
as recordações que as fotografias suscitaram em lúcia "induziram
o sr. bispo a mandar-lhe escrever tudo o que se recordasse (da
sua primita jacinta)". a introdução esclarece ainda que "o
escrito, começado na segunda semana de dezembro, estava
terminado no dia de natal de 1935".
o texto apresenta-se dirigido ao "ex." e rev." senhor bispo".
atentem no misticismo e servilismo da linguagem, logo a começar:
"depois de ter implorado a protecção dos santíssimos corações de
jesus e maria, nossa terna mãe, de ter pedido luz e graça aos
pés do sacrário, para não escrever nada que não seja única e
exclusivamente para glória de jesus e da santíssima virgem,
venho, apesar da minha repugnância, por não poder dizer quase
nada da jacinta sem directa ou indirectamente falar do meu
miserável ser. obedeço, no entanto, à vontade de v ex."a
reverência que, para mim, é a expressão da vontade de nosso bom
deus" (sic).
e acrescenta: "vou ver se dou começo à narração do que me lembro
da vida da jacinta. como não disponho de tempo livre, durante as
horas silenciosas de trabalho, num bocado de papel, com um lápis
escondido debaixo da costura, irei recordando e apontando o que
os santíssimos corações de jesus e maria quiserem fazer-me
recordar".
eis alguns extractos.
"um dia, jogávamos isto (às prendinhas), em casa dos meus pais,
e tocou-me a mim mandá-la a ela. meu irmão estava sentado a
escrever junto duma mesa. mandei-a, então, dar-lhe um abraço e
um beijo, mas ela respondeu: - isso não! manda-me outra coisa.

--17--

por que não me mandas beijar aquele nosso senhor que está ali?
(era um crucifixo que havia na parede)... a nosso senhor dou
todos quantos quiseres."
"a jacinta gostava muito de ouvir o eco da voz no fundo dos
vales. por isso, um dos nossos entretenimentos era, no cimo dos
montes, sentados no penedo maior, pronunciar nomes em alta voz.
o nome que melhor ecoava era o de maria. a jacinta dizia, às
vezes, assim, a avé-maria inteira, repetindo a palavra seguinte
só quando a precedente tinha acabado de ecoar.
gostávamos também de entoar cânticos. entre os vários profanos
que infelizmente sabíamos bastantes, a jacinta preferia o "salve
nobre padroeira, virgem pura, anjos cantai comigo."
"tinham-nos recomendado que, depois da merenda, rezássemos o
terço; mas, como todo o tempo nos parecia pouco para brincar,
arranjámos uma boa maneira de acabar breve: passávamos as
contas, dizendo somente: avé maria, avé maria, avé maria! quando
chegávamos ao fim do mistério, dizíamos, com muita pausa, a
simples palavra: padre nosso!"
- jacinta! por que não queres brincar? - porque estou a pensar.
aquela senhora disse-nos para rezarmos o terço e fazermos
sacrifícios pela conversão dos pecadores (...). o francisco
discorreu em breve um bom sacrifício: - demos a nossa merenda às
ovelhas e fazemos o sacrifício de não merendar! em poucos
minutos, estava todo o nosso farnel distribuído pelo rebanho. e
assim passámos um dia de jejum, que nem o do mais austero
cartuxo! a jacinta continuava sentada na sua pedra, com ar de
pensativa e perguntou: -aquela senhora disse também que iam
muitas almas para o inferno. e o que é o inferno? - É uma cova
de bichos e uma fogueira muito grande (assim mo explicava minha
mãe) e vai para lá quem faz pecados e não se confessa e fica lá
sempre a arder. - e nunca mais de lá sai? - não. - depois de
muitos, muitos anos?! - não; o inferno nunca acaba. e o céu
também não. quem vai para o céu nunca mais de lá sai. e quem vai
para o inferno também não. (...)

--18--

mesmo brincando, de vez em quando (a jacìnta) perguntava: - e


aquela gente que lá está a arder não morre? e não se faz em
cinza? e se rezar muito pelos pecadores, nosso senhor livra-os
de lá? e com os sacrifícios também? coitadinhos! havemos de
rezar e fazer muitos sacrifícios por eles! depois, acrescentava:
que boa é aquela senhora! já nos prometeu levar para o céu!".
"a jacinta tomou tanto a peito os sacrifícios pela conversão dos
pecadores, que não deixava escapar ocasião alguma. (...) colhia
as bolotas dos carvalhos ou a azeitona das oliveiras. disse-lhe
um dia: - jacinta, não comas isso, que amarga muito. - pois é
por amargar que o como, para converter os pecadores. (...) a
jacinta parecia insaciável na prática do sacrifício (...). o dia
estava lindo, mas o sol era ardente (...) parecia querer abrasar
tudo. a sede fazia-se sentir e não havia pinga d'água para
beber. a princípio, oferecíamos o sacrifício com generosidade
pela conversão dos pecadores; mas passada a hora do meio dia,
não se resistia. propus então aos meus companheiros ir a um
lugar,
à que ficava cerca pedir uma pouca de água. (...) em seguida,
dei a infusão ao francisco e disse-lhe que bebesse. - não quero
beber, respondeu. - porquê? - quero sofrer pela conversão dos
pecadores. - bebe tu, jacinta! - também quero oferecer o
sacrifício pelos pecadores! deitei, então, a água numa cova duma
pedra para que a bebessem as ovelhas e fui levar a infusa à sua
dona. o calor tornava-se cada vez mais intenso. as cigarras e os
grilos juntavam o seu cantar ao das rãs da lagoa vizinha e
faziam uma gritaria insuportável. a jacinta, debilitada pela
fraqueza e pela sede, disse-me, com aquela simplicidade que lhe
era habitual: diz aos grilos e às rãs que se calem! dói-me tanto
a minha cabeça!
então o francisco perguntou-lhe: - não queres sofrer isto pelos
pecadores?
a pobre criança, apertando a cabeça entre as mãozinhas,
respondeu: - sim, quero. deixa-as cantar".
"foram interrogar-nos dois sacerdotes que nos recomendaram que
rezássemos pelo santo padre. a jacinta perguntou quem era o
santo padre e os bons sacerdotes explicaram-nos quem era e como
precisava muito de orações. a jacinta ficou com tanto

--19--
amor ao santo padre que sempre que oferecia os seus sacrifícios
a jesus, acrescentava: e pelo santo padre. no fim de rezar o
terço, rezava sempre três ave-marias pelo santo padre e algumas
vezes dizia: -quem me dera ver o santo padre! vem cá tanta gente
e o santo padre nunca cá vem."
"passavam assim os dias da jacinta, quando nosso senhor mandou a
pneumónica, que a prostrou na cama, com seu irmãozinho. nas
vésperas de adoecer, dizia: - dói-me tanto a cabeça e tenho
tanta sede! mas não quero beber, para sofrer pelos pecadores!
(...)
um dia, sua mãe levou-lhe uma xícara de leite e disse-lhe que o
tomasse. - não quero, minha mãe, respondeu, afastando com a
mãozinha a xícara (...) logo que ficámos sós, perguntei-lhe: -
como desobedeces assim a tua mãe e não ofereces este sacrifício
a nosso senhor? ao ouvir isto, deixou cair algumas lágrimas que
eu tive a felicidade de limpar e disse: - agora não me lembrei!
(...)
um dia, perguntei-lhe: - estás melhor? - já sabes que não
melhoro. e acrescentou: - tenho tantas dores no peito! mas não
digo nada; sofro pela conversão dos pecadores."
"de novo, a santíssima virgem se dignou visitar a jacinta, para
lhe anunciar novas cruzes e sacrifícios. deu-me a notícia e
dizia-me: - disse-me que vou para lisboa, para outro hospital;
que não te torno a ver, nem os meus pais; que depois de sofrer
muito, morro sozinha, mas que não tenha medo; que me vai lá ela
buscar para o céu."
9. segunda memória
a segunda memória começou a ser escrita no dia 7 de novembro de
1937 e terminou no dia 21. como é que esta aparece? segundo o
texto da introdução, "o sr. bispo, posto de acordo com a madre
provincial das doroteias, madre maria do carmo corte-real, dá
ordem à lúcia". ela escreve, então, 20 anos depois de 1917, com
a intenção de "deixar ver a história de fátima tal qual ela é".
talvez dissesse melhor se escrevesse: deixar ver a história de
fátima como a minha fantasia hoje

--20--

mo diz e, sobretudo, como mais convém à hierarquia da igreja


católica!...
ela própria começa por reconhecer que "nem sequer a caligrafia
sei fazer capazmente", mas a verdade é que o texto final
apresenta-se muito bem concebido e escrito. será integralmente
dela? que mãozinha terá estado por trás?
eis alguns extractos mais significativos.
9.1. antes das "aparições"
"havia na igreja (paroquial) mais que uma imagem de nossa
senhora. "se calhar, tantas quantas ela depois "verá" nas
"aparições".... mas, como minhas irmãs arranjavam o altar de
nossa senhora do rosário [pelos vistos, na última "aparição", de
outubro, a senhora dirá que se chama a senhora do rosário! mas
que coincidência!...], estava por isso habituada a rezar diante
dessa e, por isso, lá fui também dessa vez. pedi-lhe, pois, com
todo o ardor de que fui capaz [tinha acabado de se confessar
para a primeira comunhão, aos seis anos!...] que guardasse, para
deus só, o meu pobre coração. ao repetir várias vezes esta
humilde súplica, com os olhos fitos na imagem, pareceu-me que
ela se sorria e que, com um olhar e gesto de bondade, me dizia
que sim. fiquei tão inundada de gozo, que a custo conseguia
articular palavra".
imediatamente depois de ter comungado: "dirigi-lhe então as
minhas súplicas: - senhor, fazei-me uma santa, guardai o meu
coração sempre puro, para ti só.
aqui, pareceu-me que o nosso bom deus me disse, no fundo do meu
coração, estas distintas palavras: -a graça que hoje te é
concedida permanecerá viva em tua alma, produzindo frutos de
vida eterna. sentia-me de tal forma transformada em deus!"
9.2. as "aparições"
aos sete anos, lúcia é feita "pastora", em substituição da sua
irmã carolina, então com 12 anos. no dia seguinte, avança com
duas companheiras para "um monte chamado o cabeço. na encosta
deste monte, ao sul, ficam os valinhos, que v ex." rev."'
de nome, já deve conhecer. (...)
um pouco mais ou menos aí pelo meio-dia, comemos a nossa merenda
e, depois dela, convidei as minhas companheiras para

--21--

rezarem comigo o terço, ao que elas anuíram [olhem só para esta


palavra tão pouco popular...] com gosto. mal tínhamos começado,
quando, diante de nossos olhos, vemos, como que suspensa no ar,
sobre o arvoredo, uma figura como se fosse uma estátua de neve
que os raios do sol tornavam algo transparente. - que é aquilo?,
perguntaram as minhas companheiras, meias assustadas. - não
sei!".
mais tarde, em casa, a mãe pergunta: "- ouve lá: dizem que viste
para aí não sei o quê. o que é que tu viste? (...) como não
sabia explicar, acrescentei: - parecia uma pessoa embrulhada num
lençol (...) não se lhe conheciam olhos nem mãos.
minha mãe rematou tudo com um gesto de desprezo, dizendo: -
tolices de crianças".
9.3. "aparições" do anjo em 1916" passado algum tempo, voltámos
com os nossos rebanhos para esse mesmo sítio e repetiu-se o
mesmo, da mesma forma.(...) várias pessoas começaram por fazer
troça. e como eu, desde a minha primeira comunhão, me ficava por
algum tempo como que abstracta, recordando o que se tinha
passado, minhas irmãs, com algo de desprezo, perguntavam-me: -
estás a ver algum embrulhado no lençol?"
entretanto, as primeiras companheiras de lúcia, pastora, foram
substituídas pelos primos, jacinta e francisco. até que "um belo
dia (...) eis que um vento forte sacode as árvores e faz-nos
levantar a vista. (...) vemos então que sobre o olival se
encaminha para nós a tal figura de que já falei (...) À maneira
que se aproximava, íamos divisando as feições: um jovem dos seus
14 a 15 anos, mais branco que se fora de neve, que o sol tornava
transparente como se fora de cristal e duma grande beleza. ao
chegar junto de nós, disse: não temais! sou o anjo da paz. orai
comigo. e ajoelhando em terra, curvou a fronte até ao chão e
fez-nos repetir três vezes estas palavras: - meu deus! eu creio,
adoro, espero e amo-vos. peço-vos perdão para os que não crêem,
não adoram, não esperam e vos não amam. depois, erguendo-se
disse. - orai assim. os corações de jesus e maria estão atentos
à voz das vossas súplicas.
as suas palavras gravaram-se de tal forma na nossa mente, que
jamais nos esqueceram".
--22--

o relato prossegue. o anjo dirá, tempos depois, que é "o anjo de


portugal". ensina-lhes outra oração, enorme, nitidamente,
inventada por algum eclesiástico católico, dirigida à
"santíssima trindade" e que, bem analisada, não passa dum
disparate teológico. e até lhes dá a comunhão sob as duas
espécies!
"dá-me a sagrada hóstia a mim e o sangue do cálix divide-o pela
jacinta e o francisco, dizendo ao mesmo tempo: - tomai e bebei o
corpo e sangue de jesus cristo, horrivelmente ultrajado pelos
homens ingratos. [os republicanos?!...] reparai os seus crimes e
consolai o vosso deus."
o curioso é que a mesma lúcia, nas memórias que escreve sobre a
jacinta e o francisco, respectivamente, quase se "esquece" de
referir que eles viram o anjo de portugal, que lhes ensinou
estas orações.
temos, pois, de dizer que todas estas "aparições" do "anjo", das
quais ninguém, nem mesmo os estudiosos de fátima, até 1937,
sequer suspeitaram, têm todo o ar de montagem. e de coisa
artificial. são relatos mais ou menos decalcados de certos
textos bíblicos do antigo e do novo testamento.
só que lúcia, ou quem está por detrás de tudo isto, teve, neste
ponto, um grande azar, porque os relatos bíblicos que podem ter
inspirado estes seus relatos não são históricos, mas teológicos,
isto é, não aconteceram tal e qual. e ela aqui conta as coisas
como se elas tivessem sido assim. e não foram. não podem ter
sido. porque anjos nunca ninguém os viu. nem verá. a não ser na
sua imaginação, mais ou menos delirante e doentia.
9.4. problemas familiares
"meu pai tinha-se deixado arrastar pelas más companhias e tinha
caído nos laços duma triste paixão, por causa da qual tínhamos
já perdido alguns dos nossos terrenos."
[em nota, no final do relato, lê-se, a propósito: "não se deve
exagerar, na vida do pai da lúcia, a sua "paixão pelo vinho".
ele não era um alcoólico. quanto aos seus deveres religiosos, é
certo que os não cumpriu, durante alguns anos, na paróquia de
fátima, por não se entender com o pároco. ia a vila nova de
ourém".]
"(...) tanto sofrimento começou por abalar a saúde de minha mãe.
(...) correram então quantos cirurgiões e médicos por ali

--23--

havia. gastou-se uma infinidade de remédios, sem se obter


melhoras algumas (...).
eis o estado em que nos encontrávamos, quando chegou o dia 13 de
maio de 1917. meu irmão completava também por esse tempo, a
idade de assentar praça na vida militar. e, como gozava de
perfeita saúde, era de esperar que ficasse apurado. ademais,
estava-se em guerra e era difícil conseguir livrá-lo. com o
receio de ficar sem ter quem lhe cuidasse as terras, minha mãe
(...) meteu empenhos com o médico da inspecção e o nosso bom
deus dignou-se, por então, dar a minha mãe este alívio."
[mas que dizer de um deus assim, que livra uns, por meio de
ilícitos empenhos junto do médico da inspecção, e deixa que
outros avancem para a tropa e para a guerra?! de resto, será
muito elucidativo comparar esta alusão aos "problemas
familiares", com o que a mesma lúcia escreverá, muitos anos
depois, em 1989, na quinta e última memória sobre a sua família.
decididamente, não parece tratar-se da mesma família!...]
9.5. "aparições de nossa senhora"
"as palavras que a santíssima virgem nos disse em este dia (13
de maio de 1917) e que combinámos nunca revelar, foram: depois
de nos haver dito que íamos para o céu, perguntou: quereis
oferecer-vos a deus para suportar todos os sofrimentos que ele
quiser enviar-vos, em acto de reparação pelos pecados com que
ele é ofendido e de súplica pela conversão dos pecadores? - sim,
queremos, foi a nossa resposta. - ides, pois, ter muito que
sofrer mas a graça de deus será o vosso conforto".
[de um deus assim, não há que ser vigorosamente ateu? e que
senhora é esta que, em vez de estimular as pessoas a combater o
sofrimento, vem catequizá-las para que sofram ainda mais?]
em agosto, a "aparição" teve de ser no dia 15, nos valinhos, já
que no dia 13, as crianças foram "desviadas" pelo administrador
de vila nova de ourém. "a santíssima virgem recomendou-nos, de
novo, a prática da mortificação, dizendo, no fim de tudo: -
rezai, rezai muito, e fazei sacrifícios pelos pecadores, que vã
o muitas almas para o inferno, por não haver quem se sacrifique
e peça por elas."

--24--
[até parece que deus é um monstro que criou o inferno e só nos
livra dele se houver muitas vítimas inocentes que se imolem. É
um deus intrinsecamente perverso, que só se satisfaz com sangue
humano, de preferência, de crianças inocentes! que teologia está
subjacente às "aparições"? uma teologia cristã é que não é!]
"passados alguns dias, íamos com as nossas ovelhinhas, por um
caminho, no qual encontrei um bocado duma corda dum carro.
peguei nela e, brincando, atei-a a um braço. não tardei a notar
que a corda me magoava. disse então para os meus primos: -
olhem: isto faz doer. podíamos atá-la à cinta e oferecer a deus
este sacrifício. (...)
este instrumento fazia-nos por vezes sofrer horrivelmente. a
jacinta deixava às vezes cair algumas lágrimas com a força do
incómodo que lhe causava; e, dizendo-lhe eu, algumas vezes, para
a tirar, respondia: - não! quero oferecer este sacrifício a
nosso senhor, em reparação e pela conversão dos pecadores".
"assim se aproximou o dia 13 de setembro. em este dia, a
santíssima virgem, depois do que tenho narrado, disse-nos: deus
está contente com os vossos sacrifícios, mas não quer que
durmais com a corda; trazei-a só durante o dia".
da "aparição" de 13 de outubro, "as palavras que mais se me
gravaram no coração foi o pedido da nossa santíssima mãe do céu:
-não ofendam mais a deus nosso senhor, que já está muito
ofendido. (...)
tinha-se espalhado o boato que as autoridades haviam decidido
fazer explodir uma bomba junto de nós, no momento da aparição.
não concebi, com isso, medo algum; e falando disto a meus
primos, dissemos: - mas que bom, se nos for concedida a graça de
subir dali com nossa senhora para o céu! (...)
em meio desta perplexidade, tive a felicidade de falar com o
senhor vigário do olival. (...) sobretudo, ensinou-nos o modo de
dar gosto a nosso senhor em tudo e a maneira de lhe oferecer um
sem-número de pequenos sacrifícios: - se vos apetecer comer uma
coisa, meus filhinhos, deixai-a e, em seu lugar, comeis outra

--25--

e ofereceis a deus um sacrifício; se vos apetece brincar, não


brincais e ofereceis a deus outro sacrifício; se vos
interrogarem e não vos puderdes escusar, é deus que assim o
quer; ofereceis-lhe mais este sacrifício. (...) ele tinha,
então, a paciência de passar a sós comigo largas horas,
ensinando-me a praticar a virtude e guiando-me com os seus
sábios conselhos" [!!!].
9.6. depois das "aparições"
"um dia, a jacinta dizia-me: - quem me dera que os meus pais
fossem como os teus, para que esta gente também me pudesse
bater, porque assim tinha mais sacrifícios para oferecer a nosso
senhor.
no entanto, ela sabia bem aproveitar as ocasiões de se
mortificar. tínhamos também por costume, de vez em quando,
oferecer a deus o sacrifício de passar uma novena ou um mês sem
beber. fizemos uma vez este sacrifício em pleno mês de agosto em
que o calor era sufocante. voltávamos, um dia, de haver ido
rezar o nosso terço à cova da iria e, ao chegar junto duma
lagoa, que fica à beira do caminho, diz-me a jacinta: -olha:
tenho tanta sede e dói-me tanto a cabeça! vou beber uma pouquita
desta água. - desta não, respondi. minha mãe não quer que
bebamos daqui, porque faz mal. vamos ali pedir uma pouquita à ti
maria dos anjos (...) - não! dessa água boa não quero. bebia
desta, porque, em vez de oferecer a nosso senhor a sede,
oferecia-lhe o sacrifício de beber desta água suja. (...)
outras vezes, dizia: - nosso senhor deve estar contente com os
nossos sacrifícios, porque eu tenho tanta, tanta sede! mas não
quero beber; quero sofrer por seu amor."
"o senhor devia comprazer-se em ver-me sofrer, pois me preparava
agora um cálix bem mais amargo que dentro em pouco me dará a
beber. minha mãe cai gravemente enferma (...). as minhas duas
irmãs mais velhas, vendo o caso perdido, voltam junto de mim e
dizem-me: - lúcia, se é certo que tu viste nossa senhora, vai
agora à cova da iria, pede-lhe que cure a nossa mãe. promete-lhe
o que quiseres, que o faremos; e então acreditaremos.
sem me deter nem um momento, pus-me a caminho (...) rezando até
lá o rosário. fiz à santíssima virgem o meu pedido

--26--

(...) e voltei para casa confortada com a esperança de que a


minha querida mãe do céu me daria a saúde da da terra. (...)
eu tinha prometido à santíssima virgem, se ela me concedesse o
que eu lhe pedia, ir aí, durante nove dias seguidos, acompanhada
de minhas irmãs, rezar o rosário e ir, de joelhos, desde o cimo
da estrada até ao pé da carrasqueira; e, no último dia, levar
nove crianças pobres e dar-lhes, no fim, um jantar. fomos, pois,
cumprir a minha promessa, acompanhadas de minha mãe que dizia: -
que coisa! nossa senhora curou-me e eu parece que ainda não
acredito! não sei como isto é!"
[pelo que aqui escreve, lúcia teria procedido, não como "a
vidente", que, noutras ocasiões, se autoapresenta a tratar com a
senhora de fátima quase num tu-cá-tu-lá, mas sim como uma
qualquer devota, ainda não evangelizada, da senhora de fátima. o
que deixa perceber claramente que as três crianças, mais do que
protagonistas de fátima, se viram progressivamente envolvidas
num certo tipo de catolicismo religioso-pagão de fátima,
totalmente estranho ao evangelho de jesus. duas delas, jacinta e
francisco, morreram também em consequência de tudo isso. lúcia
resistiu e foi promovida a "messias" deste tipo de catolicismo.
quando, do que ela precisava, era de ser libertada dele quanto
antes. mas, se o tivesse sido, nunca a igreja católica teria
tido esta autêntica "mina de ouro" que é o santuário de fátima,
nem este púlpito moralista antilibertação que é o seu altar.]
"nosso bom deus deu-me esta consolação, mas de novo me batia à
porta com outro sacrifício, nada mais pequeno. meu pai era um
homem sadio, robusto, que dizia não saber que coisa era uma dor
de cabeça. e, em menos de 24 horas, quase de repente, uma
pneumonia dupla levava-o para a eternidade. foi tal a minha dor,
que julguei morrer também."
[aqui, pelos vistos, já nem a senhora de fátima lhe valeu.
talvez não goste muito de homens casados, apenas dos "virgens" e
dos clérigos celibatários à força]
"por este tempo, a jacinta e o francisco começaram também a
piorar. (...) um dia, (jacinta) deu-me a corda, de que já falei
e disse-me: - toma; leva-a, antes que minha mãe a veja.

--27--

agora já não sou capaz de a ter à cinta. (...) esta corda tinha
três nós e estava algo manchada de sangue. conservei-a escondida
até saír definitivamente de casa de minha mãe. depois, não
sabendo o que lhe fazer, queimei-a, com a de seu irmãozinho."
o relato conta, finalmente, como foi a saída da adolescente
lúcia da casa dos pais.
"na verdade, quando vos vi, ex. e rev." senhor, receber-me com
tanta bondade (...) interessando-vos apenas pelo bem da minha
alma e prontificando-vos a tomar conta da pobre ovelhinha que o
senhor acabava de vos confiar, fiquei, mais do que nunca, crente
que v. ex." rev." tudo sabia; e não hesitei um momento em me
abandonar nas vossas mãos. as condições impostas por v ex."
rev." para o conseguir, para o meu natural, eram fáceis: guardar
perfeito segredo de tudo que v. ex. rev." me tinha dito e ser
boa. lá me fui guardando para mim o meu segredo, até ao dia em
que v. ex. rev. mandou pedir o consentimento da minha mãe. (...)
sem me despedir de ninguém, no dia seguinte, às duas da manhã,
acompanhada de minha mãe e dum pobre trabalhador que vinha para
leiria, chamado manuel correia, pus-me a caminho, levando
inviolável o meu segredo. (...)
chegámos a leiria, aí pelas nove horas da manhã. (...) o combóio
partia às duas da tarde."
[em nota, pode ler-se: "lúcia deixou aljustrel na madrugada de
16 de junho de 1921 e chegou a leiria algumas horas depois. de
lá continuou a viagem até ao colégio do porto, onde chegou na
manhã seguinte".]
10. terceira memória
a introdução informa que esta memória foi concluída em 31 de
agosto de 1941. como as anteriores, foi escrita em obediência a
uma ordem do bispo de leiria. escreveu-a em tui. a temática
principal que lhe sugerem volta a ser a jacinta. querem mais
pormenores. se calhar, já a pensar na sua canonização por roma.
e lúcia presta-se. recorre à sua memória. parece que quanto mais
distante está dos factos, mais se lembra dos pormenores. ou, se
não se lembra, inventa-os nos seus delírios. factos

--28--

reais, ou imaginários, que importa, se, com isso, o deus de


fátima é glorificado e os "inimigos" da igreja católica são
esmagados?!... eis alguns extractos.
o "segredo"
"bem; o segredo consta de três coisas distintas, duas das quais
vou revelar. a primeira foi, pois, a vista do inferno!
nossa senhora mostrou-nos um grande mar de fogo que parecia
estar debaixo da terra. mergulhados em esse fogo, os demónios e
as almas, como se fossem brasas transparentes e negras ou
bronzeadas, com forma humana, que flutuavam no incêndio levadas
pelas chamas que delas mesmas saíam juntamente com nuvens de
fumo, caíndo para todos os lados, semelhante ao caír das faúlhas
em os grandes incêndios, sem peso nem equilíbrio, entre gritos e
gemidos de dor e desespero que horrorizavam e faziam estremecer
de pavor. os demónios distinguiam-se por formas horríveis e
asquerosas de animais espantosos e desconhecidos, mas
transparentes e negros. esta vista foi um momento, e graças à
nossa boa mãe do céu, que antes nos tinha prevenido com a
promessa de nos levar para o céu (na primeira aparição)! se
assim não fosse, creio que teríamos morrido de susto e pavor.
em seguida, levantámos os olhos para nossa senhora, que nos
disse com bondade e tristeza: - vistes o inferno, para onde vão
as almas dos pobres pecadores; para as salvar, deus quer
estabelecer no mundo a devoção a meu imaculado coração. se
fizerem o que eu vos disser, salvar-se-ão muitas almas e terão
paz. a guerra vai acabar. mas se não deixarem de ofender a deus,
no reinado de pio xi começará outra pior. quando virdes uma
noite, alumiada por uma luz desconhecida, sabei que é o grande
sinal que deus vos dá de que vai punir o mundo de seus crimes,
por meio da guerra, da fome e de perseguições à igreja e ao
santo padre. para a impedir virei pedir a consagração da rússia
a meu imaculado coração e a comunhão reparadora nos primeiros
sábados. se atenderem a meus pedidos, a rússia se converterá e
terão paz; senão, espalhará seus erros pelo mundo, promovendo
guerras e perseguições à igreja; os bons serão martirizados, o
santo padre terá muito que sofrer, várias nações serão
aniquiladas, por fim o meu imaculado coração triunfará. o santo
padre

--29--

consagrar-me-á a rússia, que se converterá; e será concedido ao


mundo algum tempo de paz."
"a segunda (parte do segredo) refere-se à devoção do imaculado
coração de maria. já disse, no segundo escrito, que nossa
senhora, a 13 de junho de 1917, me disse que nunca me deixaria e
que seu imaculado coração seria o meu refúgio e o caminho que me
conduziria a deus."
a propósito da aurora boreal, registada pelos astrónomos, na
noite de 25 para 26 de janeiro de 1938, que lúcia tomou como o
"sinal do céu" anunciador da 2. guerra mundial (não esqueçamos
que lúcia está a escrever esta memória depois dos factos, em
1941; por isso, é fácil acertar nas previsões...), escreve no
seu relato esta coisa teologicamente asquerosa: "deus serviu-se
disso para me fazer compreender que a sua justiça estava prestes
adescarregar o golpe sobre as nações culpadas e comecei, por
isso, a pedir, com insistência, a comunhão reparadora nos
primeiros sábados e a consagração da rússia. o meu fim era não
só conseguir misericórdia e perdão de todo o mundo, mas em
especial para a europa".
mas será que deus é mais dos europeus?!
11. quarta memória
a introdução esclarece que esta quarta memória foi escrita em
dois cadernos. o primeiro foi concluído e enviado ao bispo (de
leiria) no dia 25 de novembro de 1941. o segundo caderno estava
terminado em 8 de dezembro do mesmo ano.
desta vez, o que o bispo lhe manda é muito mais do que até aqui.
parece que era preciso inventar coisas (ainda) mais
maravilhosas. o que lúcia havia relatado antes continuava a ser
insuficiente para "impor" fátima à igreja e ao mundo.
vai daí, a ordem agora é: "escrever tudo o que recordasse sobre
o francisco, como tinha feito para a jacinta. escrever, com mais
pormenores, as aparições do anjo. uma nova história das
aparições (sic). tudo o que ainda pudesse recordar sobre a
jacinta. os versos profanos que cantava. ler o livro do pe.
fonseca e anotar tudo o que lhe parecesse menos exacto".

--30--

o relato abre com uns preâmbulos, com um misticismo de manifesto


mau gosto, que emprestam ao relato todo o ar de coisa artificial
e postiça. têm, contudo, a vantagem de nos deixar perceber que o
relato é mais ou menos mítico, onde o que mais terá funcionado,
para a sua elaboração, foi a imaginação delirante de lúcia.
eis alguns extractos.
"antes de começar quis abrir o novo testamento, único livro que
quero ter aqui diante de mim (...). volto ao que deus me
deparou, ao abrir o novo testamento, uma carta de s. paulo aos
fil 2, 5-8. (...) na verdade não sou mais que o pobre e
miserável instrumento de que ele se quer servir (...)."
11. 1. "retrato do francisco"
"na aparição do anjo, prostrou-se como sua irmã e eu, levado por
uma força sobrenatural que a isso nos movia; mas a oração
aprendeu-a, ouvindo-nos repeti-la, pois ao anjo dizia não ter
ouvido nada. (...)
- eu não sou capaz de estar assim (prostrado) tanto tempo como
vocês. doem-me as costas tanto que não posso.(...)
- gosto muito de ver o anjo; mas o pior é que, depois, não somos
capazes de nada. eu nem andar podia, não sei o que tinha."
depois da primeira aparição, "contámos, em seguida, ao
francisco, tudo quanto nossa senhora tinha dito. e ele,
manifestando o contentamento que sentia, na promessa de ir para
o céu, cruzando as mãos sobre o peito, dizia: - Ó minha nossa
senhora, terços, rezo todos quantos vós quiserdes.
e, desde aí, tomou o costume de se afastar de nós, como que
passeando; e, se chamava por ele e lhe perguntava que andava a
fazer, levantava o braço e mostrava-me o terço. se lhe dizia que
viesse brincar, que depois rezava connosco, respondia: - depois
também rezo. não te lembras que nossa senhora disse que tinha de
rezar muitos terços? (...)
por vezes, dizia: - nossa senhora disse que íamos ter muito que
sofrer! não me importo; sofro tudo quanto ela quiser! o que eu
quero é ir para o céu. (...)"

--31---

francisco, tu não bebeste a água-mel! a madrinha chamou tantas


vezes por ti, mas não apareceste! - quando peguei no copo,
lembrei-me de repente de fazer aquele sacrifício para consolar a
nosso senhor e, enquanto vocês bebiam, fugi para aqui. (...)"
"quando ia à escola, por vezes, ao chegar a fátima, dizia-me: -
olha: tu vai à escola. eu fico aqui na igreja, junto de jesus
escondido. não me vale a pena aprender a ler; daqui a pouco vou
para o céu. quando voltares, vem por cá chamar-me. (...)"
"um dia (já francisco estava doente), ao chegar junto de sua
casa, despedi-me dum grupo de crianças da escola que vinham
comigo e entrei, para lhe fazer uma visita e à sua irmã. como
tinha sentido o barulho, perguntou-me: - tu vinhas com todos
esses? - vinha. - não andes com eles, que podes aprender a fazer
pecados. quando saíres da escola, vai um bocado para o pé de
jesus escondido e depois vem sozinha. (...)"
"outro dia, ao chegar, encontrei-o muito contente. - estás
melhor? - não. sinto-me muito pior. já me falta pouco para ir
para o céu. lá vou consolar muito a nosso senhor e a nossa
senhora (...)".
"bem diferente é um facto que agora me está a lembrar. um dia,
num sítio chamado a pedreira (...), ouvimo-lo gritar e chamar
por nós e por nossa senhora. (...) por fim, lá demos com ele, a
tremer de medo, ainda de joelhos, que, aflito, nem arte tinha
para se pôr de pé. - que tens? que foi? com a voz meia sufocada
pelo susto, lá disse: - era um daqueles bichos grandes, que
estavam no inferno (que a senhora nos mostrou), que estava aqui
a deitar lume. (...)"
"um outro dia, ao saír de casa, notei que o francisco andava
muito devagar. - que tens?, perguntei-lhe. parece que não podes
andar! - dói-me muito a cabeça e parece que vou caír. - então
não venhas; fica em casa. - não fico! quero antes ficar na
igreja, com jesus escondido, enquanto tu vais à escola".

--32--

11. 2. "história das aparições"


nesta segunda parte, o relato adianta mais pormenores
maravilhosos a propósito das "aparições do anjo". e, depois,
passa a referir a "nova história das aparições" da senhora de
fátima. com pormenores macabros. que, se fossem verdade,
justificariam, só por si, o ateísmo, já que nos dão a imagem de
um deus carrasco, que parece alimentar-se de sofrimento e de
sangue de crianças. por este relato, temos ainda de concluir
que, afinal, também no céu, as nossas senhoras são mais do que
muitas. e até jesus estará lá em duplicado. por um lado, como
menino com s. josé e, por outro, como homem já adulto! tanto
disparate junto, nunca se viu!
mesmo assim, a este e outros escritos, atribuídos à irmã lúcia,
a sagrada congregação para a doutrina da fé, do cardeal
ratzinger, nunca os declarou perigosos para a fé cristã. pelo
contrário. até veio, há tempos, a fátima, dar a entender que o
segredo de fátima é coisa para tomar a sério. francamente,
senhores eclesiásticos!...
atentemos, também, nos diálogos entre lúcia e a senhora de
fátima. lúcia fala como se fosse sozinha. pergunta: que é que
vossemecê me quer? e não, que é que vossemecê nos quer? ela é "a
vidente" e "a intermediária", "a medianeira". os primitos, os
ajudantes que se limitam a estar e a ouvir calados. aliás, o
francisco nem sequer ouvia alguma coisa! mas que senhora de
fátima tão insensível. que pecador seria o miúdo, aos olhos
dela, para ser castigado por ela desta maneira!... É mesmo de
bradar aos céus! eis.
13 de maio
- não tenhais medo. eu não vos faço mal. - de onde é vossemecê?,
lhe perguntei. - sou do céu. - e que é que vossemecê me quer? -
vim para vos pedir que venhais aqui seis meses seguidos, no dia
13 a esta mesma hora. depois vos direi quem sou e o que quero.
depois voltarei ainda aqui uma sétima vez. (...) - a maria das
neves já está no céu? - sim, está. parece-me que devia ter uns
16 anos. - e a amélia? - estará no purgatório até ao fim do
mundo [neste caso, pelos vistos, nem a reza de muitos terços nem
as missas que, porventura, mandassem

--33--

celebrar por ela lhe valerão de nada. mas que deus este e que
mensageira de deus esta!!!]. parece-me que devia ter de 18 a 20
anos. - quereis oferecer-vos a deus para suportar todos os
sofrimentos que ele quiser enviar-vos, em acto de reparação
pelos pecados com que foi é é ofendido e de súplica pela
conversão dos pecadores? - sim, queremos. - ides, pois, ter
muito que sofrer, mas a graça de deus será o vosso conforto.
(...) passados os primeiros momentos, nossa senhora acrescentou:
-rezem o terço todos os dias, para alcançarem a paz para o mundo
e o fim da guerra."
13 de junho
- vossemecê que me quer?, perguntei. - quero que venhais aqui no
dia 13 do mês que vem, que rezeis o terço todos os dias e que
aprendam a ler. depois direi o que quero.
pedi a cura dum doente. - se se converter, curar-se-á durante o
ano. - queria pedir-lhe para nos levar para o céu. - sim; a
jacinta e o francisco levo-os em breve. mas tu ficas cá mais
algum tempo. jesus quer servir-se de ti para me fazer conhecer e
amar; ele quer estabelecer no mundo a devoção a meu imaculado
coração".
13 de julho
- vossemecê que me quer?, perguntei. - quero que venham aqui no
dia 13 do mês que vem, que continuem a rezar o terço todos os
dias, em honra de nossa senhora do rosário. para obter a paz do
mundo e o fim da guerra, porque só ela lhes poderá valer. [mas
então não era a própria que estava ali a falar com lúcia?!]
- queria pedir-lhe para nos dizer quem é, para fazer um milagre
com que todos acreditem que vossemecê nos aparece. - continuem a
vir aqui todos os meses. em outubro direi quem sou, o que quero
e farei um milagre que todos hão-de ver, para acreditar. (...)
sacrificai-vos pelos pecadores e dizei muitas vezes, em especial
sempre que fizerdes algum sacrifício: Ó jesus é por vosso amor,
pela conversão dos pecadores e em reparação pelos pecados
cometidos contra o imaculado coração de maria."
o relato prossegue com a "visão" do inferno, já divulgada
anteriormente. e acrescenta mais este pormenor: "quando rezais

--34--

o terço, dizei, depois de cada mistério: Ó meu jesus,


perdoai-nos, e livrai-nos do fogo do inferno; levai as alminhas
todas para o céu, ! principalmente aquelas que mais precisarem".
13 de agosto
- que é que vossemecê me quer? - quero que continueis a ir
à cova da iria no dia 13, que continueis a rezar o terço todos
os dias. no último mês, farei o milagre, para que todos
acreditem. -
que é que vossemecê quer que se faça ao dinheiro que o povo
deixa na cova da iria? - façam dois andores: um, leva-o tu com
a jacinta e mais duas meninas vestidas de branco; o outro, que o
leve o francisco com mais três meninos. o dinheiro dos andores é
para a festa de nossa senhora do rosário e o que sobrar é para a
ajuda duma capela que hão-de mandar fazer. (...) e tomando um
aspecto mais triste: - rezai, rezai muito e fazei sacrifícios
por os pecadores, que vão muitas almas para o inferno por não
haver quem se sacrifique por elas".
13 de setembro
-continuem a rezar o terço, para alcançarem o fim da guerra. em
outubro virá também nosso senhor, nossa senhora das dores e do
carmo, s. josé com o menino jesus para abençoarem o mundo. deus
está contente com os vossos sacrifícios, mas não quer que
durmais com a corda; trazei-a só durante o dia. - têm-me pedido
para lhe pedir muitas coisas: a cura de alguns doentes, dum
surdo-mudo. - sim, alguns curarei; outros não. em outubro farei
o milagre, para que todos acreditem."
13 de outubro
- que é que vossemecê me quer? - quero dizer-te que façam aqui
uma capela em minha honra, que sou a senhora do rosário, que
continuem sempre a rezar o terço todos os dias. a guerra vai
acabar e os militares voltarão em breve para suas casas. - eu
tinha muitas coisas para lhe pedir; se curava uns doentes e se
convertia uns pecadores, etc. - uns, sim; outros, não. É preciso
que se emendem, que peçam perdão dos seus pecados.
e tomando um ar mais triste: - não ofendam mais a deus nosso
senhor que já está muito ofendido. (...)

--35--
desaparecida nossa senhora, na imensa distância do firmamento,
vimos, ao lado do sol, s. josé com o menino e nossa senhora
vestida de branco, com um manto azul. s. josé com o menino,
parecia abençoar o mundo com uns gestos que fazia com a mão em
forma de cruz. pouco depois, desvanecida esta aparição, vi nosso
senhor e nossa senhora que me dava a ideia de ser nossa senhora
das dores. nosso senhor parecia abençoar o mundo da mesma forma
que s. josé. desvaneceu-se esta aparição e pareceu-me ver ainda
nossa senhora do carmo."
12. quinta memória
a introdução esclarece que esta memória "tem como origem um
pedido do rev. reitor do santuário de fátima, mons. luciano
guerra". em concreto, "pediu-se à irmã lúcia que completasse, na
medida do possível, as recordações da sua infância e da vida da
sua família, nomeadamente, a respeito do pai". o relato
"principia com uma carta endereçada ao reitor do santuário, à
maneira de prólogo, datada de 12 de fevereiro de 1989; segue-se
texto datado do dia 23 do mesmo mês e ano, e a concluir,
juntou-se mais uma carta do mesmo dia".
eis alguns extractos. poucos. porque é um relato manifestamente
canonizador da família, como se ela fosse uma nova sagrada
família, predestinada para nela nascer a "messias" da senhora de
fátima. tanta santidade e tanta bondade nem na família de
nazaré. lá, pelo menos, o filho saíu dos trilhos e acabou
crucificado às ordens dos chefes religiosos, a hierarquia de
então. ao contrário de lúcia, que não poderia ser mais
subserviente, do que foi e é, em relação à hierarquia católica.
"recebi a carta de v rev.", com data de 23 de novembro de 1988,
na qual me pede para eu precisar melhor a imagem de meu pai, por
a que dou nas memórias resultar muito deficiente, e querer pôr
na nossa casa um lugar de reflexão sobre a família. (...)
as respostas ao seu questionário ficarão para depois, mas, desde
já, advirto que a algumas - as que se referem às aparições - eu
não posso responder sem a autorização da santa sé, a não ser que
v. rev. queira pedir esta licença e a obtenha. (...)

--36--

a narração sobre o meu pai, vou iniciá-la, respondendo pergunta


n. 16 do seu questionário. (...).
o pai era de natural pacífico, condescendente e alegre; gostava
de música, festas e bailes. (...)
- que coisas tu ensinas à pequena! se lhe ensinasses a doutrina!
então o pai dizia: - vamos lá fazer a vontade à tua mãe! e
pegava-me na mãozita tão pequena, para ensinar-me a traçar na
fronte, boca e peito, o sinal da cruz. depois ensinava-me a
rezar o pai-nosso, ave-maria, credo, confissão, acto de
contrição, mandamentos da lei de deus, etc. depois (...)
voltava-se para a minha mãe e dizia: - vês? fui eu quem a
ensinou. a mãe, sorrindo respondia: - É que és um homem muito
bom! hás-de continuar sempre assim! o pai respondia: - deu-me
deus a melhor mulher do mundo! isto fazia-me crer que a mãe era
a melhor do mundo e, quando vinham as outras crianças para o
nosso pátio brincar comigo, eu perguntava-lhes: - a tua mãe é
boa? a minha é a melhor do mundo!
(depois das aparições), por motivo de um rebuliço que houve na
freguesia contra o pároco, no qual meu pai não quis meter-se,
mas que lhe fez muito má impressão, deixou por isso de
comparecer à desobriga como costumava e afastou-se do pároco,
deixando de confessar-se com ele. mas não se afastou da igreja:
continuou a ir todos os domingos e dias santos de preceito à
santa missa. ia, de vez em quando, a vila nova de ourém
confessar-se (...)."
13. apêndices
dos dois apêndices, apenas alguns extractos do primeiro, já que
o segundo a própria introdução reconhece ser um texto
transcrito, "directa e literalmente, dos apontamentos da
vidente", pelo director espiritual de lúcia, em 1929, o pe.
jesuíta josé bernardo gonçalves.
a introdução diz que o texto "é um documento escrito pela irmã
lúcia, em fins de 1927, por ordem do seu director espiritual, o
rev. aparício, e acrescenta este pormenor: "pouco tempo depois
de ter tido esta aparição, no dia 10 de dezembro de 1925, na sua
cela, redigiu um primeiro escrito que foi destruído pela própria
irmã lúcia. este documento constitui, portanto, a

--37--

segunda redacção, exactamente igual à primeira; apenas lhe


acrescentou o parágrafo introdutório referente à data de 17 de
dezembro de 1927. nele, a vidente explica como recebeu
autorização do céu, para dar a conhecer parte do segredo.
a introdução adianta ainda: "a este documento chamamos: texto da
grande promessa do coração de maria". efectivamente, é expressão
da misericordiosa e gratuita vontade divina, dando-nos um meio
de salvação fácil e seguro, visto que se apoia na tradição
católica mais sã, sobre a eficácia salvadora da intercessão
mariana.
e termina com este naco de prosa teológica, absolutamente
incrível, à luz do evangelho de jesus: "neste texto, podem
ler-se as condições necessárias para corresponder ao apelo dos
cinco primeiros sábados do mês, em reparação das injúrias feitas
ao coração de maria. e não pode esquecer-se nunca a sua intenção
mais profunda: a reparação ao coração de maria".
o texto abre assim:
"no dia 17-12-1927, (lúcia) foi junto do sacrário perguntar a
jesus como satisfaria o pedido que lhe era feito, se a origem da
devoção ao imaculado coração de maria estava encerrada no
segredo que a ss. virgem lhe tinha confiado.
jesus, com voz clara, fez-lhe ouvir estas palavras:
- minha filha, escreve o que te pedem; e tudo o que te revelou a
ss. virgem, na aparição em que falou desta devoção, escreve-o
também; quanto ao resto do segredo, continua o silêncio".
mais adiante:
"dia 10-12-1925, apareceu-lhe (à lúcia) a ss. virgem e, ao lado,
suspenso em uma nuvem luminosa, um menino. a ss. virgem,
pondo-lhe no ombro a mão e mostrando, ao mesmo tempo, um coração
que tinha na outra mão, cercado de espinhos.
ao mesmo tempo, disse o menino:
- tem pena do coração de tua ss. mãe, que está coberto de
espinhos que os homens ingratos a todos os momentos lhe cravam,
sem haver quem faça um acto de reparação para os tirar.
em seguida, disse a ss. virgem:
- olha, minha filha, o meu coração cercado de espinhos que os
homens ingratos a todos os momentos me cravam, com

--38--

blasfémias e ingratidões. tu, ao menos, vê de me consolar e diz


que todos aqueles que durante cinco meses, ao primeiro sábado,
se confessarem, recebendo a sagrada comunhão, rezarem um terço e
me fizerem 15 minutos de companhia, meditando nos 15 mistérios
do rosário, com o fim de me desagravar, eu prometo
assistir-lhes, na hora da morte, com todas as graças necessárias
para a salvação dessas almas.
no dia 15-2-1926, apareceu-lhe, de novo, o menino jesus.
perguntou se já tinha espalhado a devoção a sua ss. mãe. ela
expôs-lhe as dificuldades que tinha o confessor e que a madre
superiora estava pronta a propagá-la, mas que o confessor tinha
dito que ela, só, nada podia. jesus respondeu: É verdade que a
tua superiora, só, nada pode, mas, com a minha graça, pode tudo.
apresentou a jesus a dificuldade que tinham algumas pessoas em
se confessar ao sábado e pediu para ser válida a confissão de
oito dias. jesus respondeu:
- sim, pode ser de muitos mais ainda, contanto que, quando me
receberem, estejam em graça e que tenham a intenção de
desagravar o imaculado coração de maria.
ela perguntou: - meu jesus, e as que se esquecerem de formar
essa intenção?
jesus respondeu: - podem formá-la na outra confissão seguinte,
aproveitando a primeira ocasião que tiverem de se confessar."
e, já agora, saboreiem mais este naco de prosa e digam lá se
alguém pode tomar a sério o que lúcia tem andado a dizer desde
criança:
"no dia 15 (de fevereiro de 1926) andava eu muito ocupada com o
meu ofício e quase nem disso me lembrava. e indo eu deitar um
apanhador de lixo fora do quintal, onde, alguns meses atrasados,
tinha encontrado uma criança, à qual tinha perguntado se ela
sabia a ave-maria e, respondendo-me que sim, lhe mandei que a
dissesse, para eu ouvir. mas, como ela não se resolvia a dizê-la
só, disse-a eu com ela, três vezes; e, ao fim das três
ave-marias, pedi-lhe que a dissesse só. mas, como ela se calou e
não foi capaz de dizer, só, a ave-maria, perguntei-lhe se ela
sabia qual era a igreja de santa maria. respondeu-me que sim.
disse-lhe que fosse lá todos os dias e que dissesse assim: Ó
minha mãe do

--39--

céu, dai-me o vosso menino jesus! ensinei-lhe isto e vim-me


embora.
no dia 15-2-1926, voltando eu lá, como é de costume, encontrei
ali uma criança que me parecia ser a mesma e perguntei-lhe
então: - tens pedido o menino jesus à mãe do céu?
a criança volta-se para mim e diz: - e tu tens espalhado, pelo
mundo, aquilo que a mãe do céu te pediu?
e, nisto, transforma-se num menino resplandecente. conhecendo
então que era jesus, disse: meu jesus! vós bem sabeis o que o
meu confessor me disse na carta que vos li. dizia que era
preciso que aquela visão se repetisse, que houvesse factos para
que ela fosse acreditada, e a madre superiora, só, a espalhar
este facto, nada podia.
- É verdade que a madre superiora, só, nada pode; mas, com a
minha graça, pode tudo. e basta que o teu confessor te dê
licença e a tua superiora o diga, para que seja acreditado, até
sem se saber a quem foi revelado.
- mas o meu confessor dizia na carta que esta devoção não fazia
falta no mundo, porque já havia muitas almas que vos recebiam,
aus primeiros sábados, em honra de nossa senhora e dos 15
mistérios do rosário.
- É verdade, minha filha, que muitas almas os começam, mas
poucas os acabam e as que os terminam é com o fim de receberem
as graças que aí estão prometidas; e me agradam mais as que
fizerem os cinco com fervor e com o fim de desagravar o coração
da tua mãe do céu, que as que fizerem os 15, frios e
indiferentes..."
comentários, para quê?! É isto fátima, mai la sua senhora. o
descrédito do cristianismo e da igreja. a nossa vergonha! por
isso digo com redobrada convicção: fátima nunca mais!
nota: os capítulos que se seguem são textos sucessivamente
escritos e publicados no jornal "fraternizar", ao longo dos
últimos anos. ao lê-los, um após outro, facilmente se percebe
que há um crescendo na minha consciência acerca da perversidade
de fátima. por isso tudo desagua no capítulo final, titulado:
"fátima: a grande ilusão".

--40--

2
no outro lado de fátima iii ,
à procura de maria de nazaré
"olhei para si e lembrei-me de nossa senhora!" foi assim que o
jornal fraternizar fez parar, em pleno caminho, a senhora alda
alves correia, residente há 32 anos, no lugar da moita de cima,
freguesia de fátima. caminhava devagar carrego à cabeça, em
direcção a casa, num dos primeiros dias de abril passado. foi
como se, de repente, víssemos maria de nazaré, em carne e osso.
era à procura dela que andávamvs, à semelhança do sábio da
antiguidade, de quem se conta que, um dia, de lanterna na mão,
em pleno dia, dizia andar à procura de um homem.
propositadamente, não fomos por ela, nem na capelinha das
aparições, nem no santuário, erguido em sua honra. deixamo-nos
guiar pelo espírito. e ele levou-nos para a moita de cima.
quando nos cruzámos com esta mulher, primeiro, passámos adiante.
mas logo o espírito nos fez correr atrás, ao seu encontro. se
queríamos estar com maria, em fátima, ela estava ali à mão de
semear, carrego à cabeça, pobremente vestida, corpo de muito
trabalhar, mulher simplesmente.
uma barbaridade
assustou-se a senhora alda, com as palavras com que a saudámos.
e disse, naquele jeito dos pobres, "credo!". mas logo se tornou
acolhedora. atirou o carrego ao chão e falou sobre fátima e a
vida do seu povo, aquele que, como maria de nazaré, tem sabido
resistir à sedução da riqueza e continua a manter-se pobre, como
ela.

--41--

"vivo de andar a trabalhar. como a gente precisa de trabalhar,


não tem vagar para apreciar certas coisas. ir às peregrinações
de cada mês? não costumo ir, porque tenho de trabalhar. e mesmo
o pessoal de cá é raro, só se for no inverno; de contrário,
vivem do comércio, não assistem a nada disso, para atenderem os
peregrinos nas lojas."
a senhora alda tem dois filhos emigrantes na suíça e mais três
cá, um trabalha nas obras, outro é deficiente e o mais novo
frequenta as aulas no colégio dos padres. veio de castelo de
paiva para fátima. trabalhar.
"a pessoa trabalha muito e quase não ganha para comer. faço de
tudo, só da parte de tarde. de manhã, tenho de fazer o comer
para os filhos. as minhas mãos agarram-se a tudo. vim para cá
trabalhar e cá fiquei."
- e como vê nossa senhora no meio de tudo isto?
- eu acho cá para mim que isto é uma barbaridade, porque vêm
estas pessoas com as suas promessas e, aqui, muitos só não lhes
tiram o calçado, nem a roupa que trazem vestida, porque não
podem. aluga-se uma cama por dois, três contos, acho isso uma
barbaridade.
precisou depois: "há muitos que vêm a pé, durante oito dias, até
um mÊs, chegam cá, então é que o dinheiro se vai. não acho isto
bem. está bem que vivessem, explorassem, até, mas nem tanto. eu
acho demasiado. perante nossa senhora, eu, cá no meu
conhecimento, acho que isto não deve estar certo. aconteceu,
noutros tempos, que eu deixei dormir em colchões no chão, mas
não levava nada, aceitava o que me quisessem dar. assim, como
agora fazem, até tiram a fé às pessoas".
"nunca andei na escola"
a senhora alda lá voltou a colocar o carrego à cabeça, rumo a
casa. como maria de nazaré, outrora, terá feito. como sempre têm
feito os pobres, através dos tempos. mas nós, que com ela
havíamos estado, é que já sentíamos o nosso coração mais
aquecido, confortado. a verdade sempre nos deixa assim, quando
nos deixamos encontrar por ela.

--42--

mais adiante, lá estava à porta outra mulher. e o espírito


fez-nos ir até ela, corpo já carregado de anos, dois carros
deles, pois nasceu em 1909. rosário é o seu nome. criada de
servir era a sua condição, ao tempo das chamadas aparições. mas
também companheira de lúcia, na doutrina e missa aos domingos.
"nunca andei na escola. andei a servir até casar. a minha vida
não se alterou com isto de fátima. ganhava pouquinho, era só o
que queriam dar. filhos? tenho sim, mas são emigrantes."
fala, depois, do ano de 1917. "tinha oito anos e já andava a
servir. vinham as pessoas a correr para fátima, apanhavam
arregaçadas de ramos de azinheira e levavam para fazer chá.
dizia-se que curava doenças. também havia muitas perseguições.
vinha a cavalaria para correr com essas pessoas para fora. as
pessoas abalavam, mas vinham logo outra vez. e as crianças
(pastorinhos) andavam ao colo das pessoas. mas a nossa senhora
nunca a vi."
terrenos que valem milhões
o nosso jornal tinha ouvido dizer que, hoje, há pessoas de
fátima que choram, por terem vendido quase ao preço da chuva os
terrenos que, agora, valem uma fortuna. pusemos a questão à
senhora rosário.
"hoje, é quase tudo dos padres e das freiras." riu-se, com olhos
marotos, ao dizer isto. e prosseguiu: "os nossos, de cá, não
compravam, porque não tinham posses. mal dava para sustentar a
família. e vendiam o que tinham. os pobres foram afastados das
terras e, agora, é essa gente grande que vem de fora que se
governa..."
no mesmo sentido, pronunciou-se o ancião, josé dos reis, corpo
alquebrado pela doença, e que o nosso jornal foi encontrar a
viver sozinho, no seus 75 anos, numa casa pequenina e pobre,
também na moita de cima.
"ui! credo!", começou por dizer, a propósito do preço dos
terrenos, ontem e hoje. "o meu pai - contou - vendeu lá um
terreno por 16 contos, era muito grande e hoje vale milhões."

--43--

mas as suas palavras, poucas, iam insistentemente quase todas


para a doença que o ataca e para a solidão-abandono em que vive
todos os dias. porque, conforme testemunhou o nosso jornal
confirmou depois junto de outras fontes, na freguesia de fátima,
ainda não funciona um serviço de apoio a idosos e acamados ao
domicílio! outra barbaridade, poderia dizer a senhora alda, numa
tradução actualizada do cântico do magnificat, posto pelo
evangelho de lucas na boca de maria de nazaré.
disfarçada de pedinte
o espírito colocou outra mulher no nosso caminho, outro corpo a
fazer lembrar maria, a pobre de nazaré, capaz de alegria, por
descobrir que deus, ao contrário do que muitos pretendem fazer
crer à gente, só o é, na medida em que está activamente
solidário com os pobres do mundo. de outro jeito, não seria
deus, mas um faraó, ou uma multinacional do nosso tempo.
desta vez, eis que nossa senhora se nos apresenta disfarçada de
pedinte, ali mesmo à saída do terreno, propriedade do santuário,
da banda sul. o terreno que, outrora, antes de 1917, foi das
famílias pobres de fátima, antes de elas o terem vendido por dez
réis de mel coado.
parámos. e o espírito disse: procurais maria de nazaré? ei-la
nesta mulher pobre!
sentimos sagrado aquele corpo, de 82 anos, mão estendida, boca
habituada a pronunciar as palavras da esmola. não havia raios de
sol, nem frondosas azinheiras, nesta aparição de maria. mas que
era ela, era, naquele corpo trémulo, suplicante.
"o meu nome? chamo-me maria da glória, dê-me uma esmolinha!"
estremecemos de comoção. maria, a pobre de nazaré, é também esta
mulher. infinitamente desafiadora. porque ela é todas as
mulheres e homens empobrecidos à força. infinitamente
desafiadores. pedintes de uma terra outra, de um mundo outro,
uma terra de pobres sem pobreza, de companheiros, numa palavra,
uma terra de fraternidade.
no passado dela, lá está, ainda vivo, o ano de 1917. "sim, falei
com a lúcia, tinha eu então dez anos. aqui era só mato, hoje,
está tudo muito mudado."

--44--

mas lá está, mais vivo ainda do que esta recordação da infância,


o calvário imposto por uma sociedade edificada sem o jeito de
maria: "tive de ir servir, desde os sete anos, e nunca aprendi a
ler nem a escrever."
eis! a epopeia dos pobres que nunca enriquecem, porque nunca se
atrevem a explorar seja quem for! mas também o drama duma vida
inteira a pedir para sobreviver, só porque sempre tem havido
quem faça tudo, mesmo explorar os mais débeis, para enriquecer,
em vez de tudo fazer para que floresça uma terra de justiça. daí
a conclusão, ao mesmo tempo espantosa e confiante, da senhora
maria da glória: "temos de ir indo, até que nosso senhor nos
chame".
e chamará, porque os pobres assim, que nunca enriquecem, são
misteriosamente também parte sua, corpo seu, são ele mesmo, o
filho colectivo de maria, juiz da história (cf. mt 25, 31-46).

--45--

3 irmãzinhas de jesus: com elas entendemos melhor maria de


nazaré e o evangelho dos pobres,
quase não se dá por elas e, no entanto, elas são na sociedade
como os pulmões para o corpo. autodefinem-se "contemplativas no
meio do mundo" e vivem em pequenas fraternidades, vestidas
daquela simplicidade que caracteriza os pobres, os quais, na sua
espantosa sabedoria, sempre recusam seguir o exemplo dos ricos e
grandes deste mundo e, em vez disso, teimosamente, preferem a
prática dos mil e um pequenos-grandes gestos diários da
solidariedade sem reservas. quem alguma vez as encontrou, depois
sempre se há-de lembrar delas, as irmãzinhas de jesus, como,
infalivelmente, se apresentam em qualquer dos 60 países do
mundo, onde hoje habitam.
fomos respirar com elas em fátima e assim melhor escutar e
entender a vida e, sobretudo, o que maria de nazaré ainda agora
andará a querer dizer aos homens e mulheres, também aos homens e
mulheres que fazem a igreja em portugal e que, em fátima, estão
tão visivelmente presentes - pelo menos, nas 45 casas de
institutos religiosos femininos e nos 13 institutos religiosos
masculinos lá existentes, a acreditar na estimativa de um irmão
de s. joão de deus.
gente de vida dura
impressionam qualquer pessoa os milhares de peregrinos que, de
maio a outubro, deixam as suas casas e vão a pé, estrada fora,
rumo à montanha de fátima. não procuram o alto do monte. têm
fome de encontro, daquele tipo de encontro que retempera

--47--

a vida dura de todos os dias e nos deixa mais aptos a


prosseguir, apesar das contrariedades de toda a ordem,
nomeadamente, as resultantes de políticas que, em vez de
concretizarem projectos de vida para todos, apenas favorecem os
interesses de alguns.
impressionam os gestos que muitos assumem, em cumprimento de
promessas que os ricos e os tidos por cultos habitualmente não
fazem, mas que os pobres, de geração em geração, continuam a
realizar, mesmo à revelia das orientações das igrejas
institucionais e dos seus mais altos dirigentes, o clero.
que tem maria de nazaré a ver com isto? o que pensam de tudo
isto as irmãzinhas de jesus, há mais de 30 anos, em fátima, elas
que, cada mês, lá estão no serviço de acolhimento aos
peregrinos, com a mesma ternura que teriam pelo próprio jesus?
"respiramos maria nos próprios peregrinos, na simplicidade e na
fé deles. acreditar é ver para além do que se vê. vemo-los
chegar e expressar a fé de maneira diferente da que, por vezes,
gostaríamos de ver. mas não há dúvida de que lá está a fé. pode
chocar a gente, mas aquilo vem do fundo do coração das pessoas e
merece-nos muito respeito."
recordam que se trata de "gente que está habituada a uma vida
dura e sente necessidade de traduzir com o próprio corpo a sua
experiência do divino". como quem diz: os pobres, também nestas
alturas, falam. a linguagem com que sempre comunicam a sua
experiência, o que vivem, no mais fundo deles mesmos.
um caso exemplar
contam depois ao nosso jornal alguns casos que mais as
impressionam. entre estes, o caso daquela mulher, visivelmente
empobrecida, a quem um padre tentava convencer a guardar o
dinheiro que havia prometido a nossa senhora, com o argumento de
que lhe faria falta, lá em casa. e a reacção, imediata e
impressionante, que deixa qualquer um sem fala: "o senhor padre
só aceita dinheiro dos ricos? pois este dinheiro é para nossa
senhora e não será para mais nada".
mesmo à distância, no tempo, o impacto do relato deste caso foi
tão grande, que nos deixou, por momentos, sem fala. só algum
tempo depois, ousámos balbuciar um comentário. e foi este: que

--48--

responsabilidade, então, a daqueles que receberem um dinheiro


entregue com esta força, com esta generosidade, com este
despojamento e também com este destino!
outro comentário não nos ocorreu, de momento. seria mais tarde,
já depois de termos deixado a casa das irmãzinhas, mas bem na
comunhão contemplativa com elas, que percebemos a violência
deste "evangelho" que os pobres sempre vivem e proclamam, na
eloquência dos gestos desta natureza. um evangelho que até nós,
os cristãos e respectivas igrejas, corremos o risco de continuar
a não captar e, por isso, também a não viver.
aqui o formulamos, então, para que muitos e muitas de nós
beneficiemos e mudemos de vida. eis:
felizes os que, como os pobres, se despojam de tudo, até do que
lhes pode fazer falta. felizes os que sabem ser e fazer como
aquela pobre viúva, louvada por jesus, que, no templo de
jerusalém, deu tudo o que possuía, ao contrário de outros que,
embora dessem mais, davam apenas do que lhes sobejava.
mas ai de quem se aproveita do produto deste despojamento dos
pobres e concebe e realiza projectos de acumulação, de
enriquecimento, de grandeza, de aumento do património, de
construção de palácios que têm mais a ver com a vaidade dos
grandes deste mundo, do que com as preocupações e os anseios de
maria, nossa senhora. ai daquele que, diante do despojamento dos
pobres, não lhe captou o apelo a despojar-se de igual jeito,
para que, assim, a vida possa ser cada vez em maior abundância
em todos, a partir dos próprios pobres que tão generosamente se
despojaram.
o maior milagre foi, porém, mais longe a revelação que ao nosso
jornal foi dado ouvir, horas depois de termos saído de junto das
irmãzinhas. eis o que ouvimos:
não é em vão que, desde há anos, o nome de maria é pronunciado
em fátima, e cantado e chorado por milhares e milhares de
pobres. não é em vão que estes, com uma persistência a toda a
prova, continuam a despojar-se até do que lhes faz falta.

--49--

não é em vão que este "evangelho dos pobres" é teimosamente


praticado e mostrado por muitos deles, em gestos e atitudes que
os bem-pensantes têm por "primitivos" e "bárbaros".
quem sabe se, com tudo isto, não estará a chegar a hora de
muitos dos que, um dia, escolheram fátima para morar,
nomeadamente, as congregações religiosas femininas e masculinas,
assim como os bispos e todo o clero que regularmente lá se
deslocam de maio a outubro? não estarão à beira de captar este
evangelho para o praticarem como já os pobres fazem? quem sabe
se as congregações religiosas não acabarão por converter-se aos
pobres contra a pobreza, não acabarão por despojar-se como os
pobres de todos os bens, até ficarem reduzidos ao essencial?
quem sabe se não acabarão por perceber que, como os pobres,
devem despojar-se de todo o património que acumularam, também em
fátima, a partir de terrenos comprados ao desbarato? quem sabe
se não estão para concluir, aliás, em coerência com o voto de
pobreza que fazem, que devem restituir e partilhar tudo o que
possuem, para que a vida, finalmente, seja em abundância para
todos?
um sonho? não, antes o maior milagre que maria de nazaré, a mãe
dos pobres, deseja realizar em fátima e que, quando deixarmos
que aconteça, bem poderá mudar a face de portugal e do mundo.

--50--

4
fátima: privilégio ou responsabilidade?
É uma responsabilidade. mas nós, os portugueses em geral e a
igreja em especial, temos olhado para fátima como um privilégio.
e, levados por um impulso egoísta que, à partida pode inquinar
os melhores projectos e os melhores ideais, comportamo-nos,
perante fátima e perante aquela que, desde 1917, aprendemos,
mundialmente, a chamar "senhora de fátima", como crianças
mimadas. quase sempre pensamos nela, não para sermos como ela,
mas para nosso próprio proveito. e a prova é que a momtanha de
fátima tem sido simultaneamente uma montanha de pedidos de todo
o género, de cunhas, e comércio com o divino, de desenfreada
exploração do próximo, de discursos
eclesiásticos esvaziados de evangelho libertador, de orações sem
espírito, de promessas, as mais bizarras e exóticas, com muito
de degradação moral e espiritual, onde multidões e multídões,
enganadas e iludidas, acorrem a deixar muitas das suas parcas
economias, ou mesmo todas as suas parcas economias, na
expectativa de serem curadas, ou, ao menos, aliviadas de males
que está nas mãos de todos nós remediar, mediante uma
inteligente e aturada acção política libertadora e humanizadora
a desenvolver nas diversas áreas que fazem a nossa vida
individual e colectiva, nomeadamente, as áreas da saúde, da
educação, da habitação, do trabalho, do ambiente e, sobretudo,
da economia.
e assim, depois de 75 anos de existência de fátima, não se pode
dizer que todos tenhamos crescido mais em humanidade, que
estamos todos, hoje, mais libertos e responsáveis, que somos
mais criadores de fraternidade, que já não sabemos outra coisa

--51--

que ser solidários, numa terra feita por nós cada vez mais à
imagem e semelhança de maria, que um dia nos "apareceu", na sua
qualidade de mãe e de discípula plenamente conseguida de jesus
de nazaré, e também na sua qualidade de única criatura em quem,
até hoje, o deus da vida e da fraternidade melhor se reviu como
pai-mãe que é, ou seja, gerador e criador de seres que, livre e
festivamente, se descobrem, uns perante os outros e uns com os
outros, como irmãos, companheiros de jornada, amigos de peito.
fátima, infelizmente, tem sido para os portugueses e para o
mundo em geral, e para a igreja católica, em particular, mais
pedra de tropeço do que graça. temos tropeçado nela e feito
muitos outros, do país e do estrangeiro, tropeçar também. a
exemplo do que historicamente aconteceu, outrora, com outro povo
que, por ter sido "visitado" pelo deus da vida e da
fraternidade, logo se pensou, levado pelo egoísmo - sempre
redutor do homem/mulher e dos povos em quem assenta arraiais -,
que era o único que o tinha sido e, por isso mesmo, também logo
se pensou "eleito" relativamente aos outros povos que o não
seriam, e a si mesmo passou, até, a chamar-se "povo de deus",
como se os restantes povos da terra o não fossem também.
É sabido como, ao fim de pouco tempo, já se sentia um povo
orgulhoso do seu grandioso templo em jerusalém (uma espécie de
fátima de então), construído por suas próprias mãos, mas à
revelia desse mesmo deus que, entretanto, quando "apareceu" a
abraão e a moisés (cada povo tem também os seus e, se calhar, a
maior parte ainda nem deu por isso, tão dominados todos temos
sido pelo que sempre se teve na conta de "eleito", judeu
primeiro, eclesiástico depois), fê-lo, não em templos levantados
por mão humana, mas nos sítios mais profanos, onde a vida está a
acontecer e, sobretudo, onde a vida corre perigo. ou ele não
fosse o deus da vida e do amor, o deus pai-mãe, gerador e
criador de fraternidade.
fátima é uma responsabilidade, mas nós apressamo-nos a fazer
dela um privilégio. apressamo-nos a pensar que, a partir da
"aparição" de maria, todos os nossos problemas estavam

--52--

resolvidos. para todas as dificuldades, individuais e


colectivas, tínhamos, ali, à mão, a "senhora de fátima", a quem
sempre poderíamos recorrer, com quem sempre poderíamos negociar.
os governantes do país, nomeadamente, ao tempo da guerra
colonial, aproveitaram-se dela, para justificar o que é sempre
injustificável, como é toda e qualquer guerra. e os governantes
de hoje também não perdem oportunidades de "aparecerem" por lá,
nos momentos de mais gente, em hipócritas e repugnantes atitudes
de devoção mariana, eles que, entretanto, fazem da política uma
actividade ao contrário da "política" do deus de maria, pois
possibilitam que os ricos sejam cada vez mais ricos e os pobres
sejam cada vez mais despojados dos bens indispensáveis à vida, e
possibilitam que os poderosos reforcem o "peso" nacional e
internacional das suas multinacionais, enquanto os pequenos são
obrigados a permanecer no medo e na humilhação, mediante o
recurso à repressão policial e à publicação-aplicação de leis
injustas.
também a igreja em portugal tem vivido à sombra de fátima. e a
prova é que quase se tem limitado a ser uma empresa de serviços
religiosos, apoiada por um enorme e, ainda por cima, generoso
corpo de funcionários, e facilmente se dispensa do que lhe é
específico, ou seja, anunciar o evangelho da libertação e, desse
jeito, qual parteira, ajudar a dar à luz pequenas
comunidades-fraternidades de serviço libertador a favor do resto
da humanidade.
pensa que tem do seu lado a "senhora de fátima" e isso lhe
basta. mesmo que não faça mais nada, que se limite a manter,
ali, na montanha de fátima, aquele "altar do mundo", é garantido
que as multidões, famintas de pão e de dignidade, de saúde e de
justiça, de trabalho e de participação, de estabilidade e de
paz, sempre correrão para ela, mesmo que, entretanto, estruturem
as suas vidas à revelia dos valores alternativos do evangelho de
jesus que, aliás, quase fazem gala de nem conhecer.
É tempo de todos acordarmos. porque, se maria, mãe de jesus e de
todos os empobrecidos e humilhados e crucificados do mundo,
"apareceu" em fátima, não foi para, egoistamente, nos

--53--
aproveitarmos dela, mas para nos tornarmos, cada vez mais,
homens e mulheres libertos como ela, subversivos como ela,
ousados como ela, intervenientes e participativos como ela,
criadores de fraternidade e de solidariedade como ela, em vez
de, idolatricamente, nos plantarmos de rastos diante dela, a
fazê-la crescer a ela, à custa de nos diminuirmos a nós.
porque a glória de deus, do deus da vida e da fraternidade, é
que o homem/mulher e os povos vivam! e não pode ser outra a
glória de maria, a "senhora de fátima".

--54--

5
não será que também fátima precisa de se converter ao
evangelho de jesus?
completam-se, este mês de maio, 75 anos sobre as chamadas
aparições de fátima. com o desmantelamento da urss e a
subsequente "conversão" da rússia à nato e às multinacionais do
dinheiro que, hoje, se movimentam à vontade no seio da
comunidade europeia e noutras zonas do globo, parece que fátima
deveria encerrar as suas portas. porque, como se sabe, ela
nasceu sob o signo do anticomunismo e, durante estes 75 anos,
sempre apostou na "conversão da rússia", para que ela não
continuasse a espalhar os seus "males" pelo mundo. e
estranhamente, ou talvez não, sempre se esqueceu do capitalismo,
apesar de ele ser, à luz do evangelho de jesus, intrinsecamente
perverso e, neste momento, ser, até, o principal responsável
pela degradação da natureza e do meio ambiente, e o assassino,
pela fome e por doenças facilmente curáveis, de muitos milhões
de pessoas empobrecidas, em cada ano. mas não é isso que está
para acontecer.
pelo contrário. fátima prepara-se para prosseguir. agora, já não
com a bandeira do anticomunismo, mas com a da paz. e a prova
disso é o congresso internacional que decorrerá, entre os dias 8
e 12 deste mês, promovido pelo santuário, e cuja organização foi
confiada à faculdade de teologia da universidade católica
portuguesa. um congresso - "fátima e a paz" - que vai trazer à
serra d'aire, especialistas reconhecidos, entre os quais, o
sempre tido como "bispo vermelho" hélder câmara, o teólogo da
libertação josé comblin e o prof. jean ladrière, da universidade
de lovaina.
o jornal fraternizar não quis deixar passar em claro esta data.
e marcou encontro com o padre dominicano, frei bento domingues,
57 anos de idade, autor, entre outras obras, do livro "a
religião dos portugueses", onde o fenómeno fátima é também
dissecado. colocou-lhe algumas questões, polémicas, entre muitas
possíveis. e registou a sua reflexão.
frei bento, na conversa que, durante quase duas horas, manteve
com o jornal fraternizar, não teve a preocupação de responder às
questões, uma por uma. muito menos cuidou em esgotar o assunto.
também formulou algumas outras, que ele próprio transporta
consigo e falou, até, da existência de dois volumes, já
publicados por um confrade seu, o pe. joão de oliveira, feitos -
imagine-se! - só de perguntas, à volta do fenómeno fátima. tão
"embrulhado" ele se mantém, ao fim destes 75 anos!
as perguntas que formulámos ao frei bento aqui ficam. para que
também os leitores e leitoras se enfrentem com elas. porque,
também neste particular, se calhar, valem mais umas quantas
perguntas, do que muitas respostas.
de resto, do que é preciso é que a gente se habitue a pensar. e
perca de vez o medo de o fazer em voz alta. até porque quem vive
subjugado pelo medo, ainda não é homem/mulher. muito menos
cristão. ou não fosse verdade que foi para a liberdade que
cristo nos libertou (gálatas 5, 1). também e, sobretudo, para
nos libertar do medo!
perguntas pertinentes
1. fátima e a paz. fica a impressão de que a paz no mundo está,
desde há 75 anos, dependente, não da prática da justiça, mas da
reza de muitos terços. se rezarem, há paz. se não rezarem,
haverá guerra. são assim as coisas, à luz da revelação
bíblico-cristã?
2. ainda fátima e a paz. aconteceu a guerra do golfo, curta no
tempo, mas terrível na execução e nas consequências. foi uma
guerra total. e muitos milhões e milhões de terços se têm rezado
em fátima e por esse mundo fora. em que ficamos?

--56--
3. aparições. será que houve aparições de verdade? os fenómenos
da parapsicologia não explicam a experiência religiosa por que
terão passado as três crianças de fátima? a pregação assustadora
e de cores dantescas que os padres faziam nas chamadas missões
populares, pelas paróquias do país, não podem ter impressionado
tanto as crianças, que elas acabaram por ver e ouvir tudo aquilo
que viam e ouviam, quando ouviam os pregadores, ou o próprio
pároco, na missa dominical e na catequese?
4. a mensagem transmitida. está conforme à boa nova libertadora
de jesus, ou tem mais a ver com a pregação de joão baptista e do
antigo testamento? e aquele "rezai pela conversão dos pecadores"
é evangélico? não é sobretudo moralista e farisaico, enquanto
pressupõe que os pecadores são sempre os outros? e o mote
"oração e penitência" tem alguma coisa a ver com o essencial do
kerigmn proclamado por jesus e pelas primeiras comunidades
cristãs? tem alguma coisa a ver por exemplo, com a proclamação
de jesus, na sinagoga de nazaré, do ano da graça do senhor, e
com a metanoia (mudança) provocada pelo feliz anúncio de que o
reino de deus já está entre nós?
5. senhora de fátima. a senhora de fátima ainda será maria de
nazaré, tal como as narrativas evangélicas nos falam dela e que,
concretamente, o evangelho de lucas nos deixa perceber, naquele
subversivo cântico do magnificct, posto nos lábios dela?
6. o deus de fátima. É o deus pai-mãe, revelado por jesus de
nazaré e cantado por maria? não andaremos todos a laborar num
grande equívoco?
7. ainda as aparições. não serão uma hábil montagem pastoral,
uma espécie de parábola pastoral da época, bem ao gosto popular,
com a finalidade de, através dela, catequizar uma população que,
de outro modo, não o chegaria a ser? não é assim uma espécie de
missão popular concreta em acção, ou, como hoje se diz, uma
dramatização?
8. fátima, hoje. não será que todo aquele negócio, toda aquela
religiosidade, todo aquele dolorismo, toda aquela febre de

--57--

milagrisnu, todas aquelas idas a pé, todo aquele andar de


rastos, todas aquelas velas a arder, dia e noite, no crematório,
todo aquele dinheiro que se junta e que ninguém sabe quanto é e
para que é, todo aquele secretismo-, não têm mais a ver com o
templo-banco de jerusalém, no tempo de jesus de nazaré, e que
ele combateu até à morte, do que com a boa nova libertadora que
ele anunciou aos pobres e realizou na pessoa deles?
9. fátima e a rússia. agora que não há mais urss e que o
comunismo internacional parece ter-se convertido ao capitalismo
que futuro para fátima?
10. fátima e a igreja. que balanço, ao fim de todos estes anos,
do modelo moralista e anticomunista de igreja que fátima
veiculou? positivo? negativo? contribuiu para a libertação do
nosso povo, ou oprimiu? favoreceu o desenvolvimento do reino de
deus, aqui, ou foi, está a ser, mais pedra de tropeço? não será
que também fátima precisa de se converter ao evangelho de
libertação de jesus?
11. lúcia é a única sobrevivente das três crianças de fátima. as
outras duas morreram antes de tempo. É caso para dizer que nem a
senhora de fátima lhes valeu. ela, a quem, mensalmente, muitas
pessoas continuam a pedir a cura dos seus males, deixou morrer
antes de tempo as duas crianças. que pensar de tudo isto,
sobretudo, se, como já santo ireneu defendeu e o evangelho não
deixa de o revelar, a glória de deus é que as pessoas vivam? e
que pensar do estilo de vida a que lúcia, em todos estes anos,
parece ter sido condenada? pode servir de modelo de cristã, na
linha do verdadeiro discípulo de jesus, para alguém?
--58--

6
o que as crianÇas viram não foi nossa senhora
- disse ao jornal fraternizar o padre e teólogo dominicano frei
bento domingues
"o que apareceu em fátima foi uma voz. o que aquelas crianças
viram, em 1917, não foi nossa senhora, foi uma imagem. o
santeiro de braga pôde fazê-la." assim disse ao jornal
fraternizar, frei bento domingues. as palavras deste padre
católico podem parecer chocantes aos ouvidos de muitos, mas não
deixam de ser teologicamente correctas. porque "todas as
experiências religiosas do transcendente nunca são directas, mas
mediatizadas. também o que as crianças podem ter visto foi uma
representação de maria de nazaré, não maria de nazaré".
e esta representação de maria, desde então conhecida sob a
designação de "senhora de fátima", como todas as representações,
tão pouco saíu fora do imaginário religioso predominante naquela
época. "fátima, em 1917, não trouxe nada de novo. apenas edita o
que existe então. fátima foi o aproveitamento bem feito do
catolicismo popular existente nas paróquias, numa conjuntura
entre as dioceses de lisboa e leiria, dois meios industriais
anticlericais, num tempo de perseguição à igreja, mas também já
de uma certa abertura. podemos dizer que em fátima se catalisou
a resposta do catolicismo que havia. o papel das três crianças é
esse, serem as catalisadoras da catequese, dos sermões, de tudo
o que ouviam. de resto, a descrição que fazem, por exemplo, da
ida de nossa senhora para o céu é igual a qualquer procissão que
há lá na terra."
frei bento diz não ter dúvidas de que "houve uma experiência
religiosa por parte das crianças". mas, para ele, "a questão
está toda em estudar a natureza dessa experiência". o que, até
agora,

--59--

nunca se fez. aliás, essa foi até a primeira coisa que o teólogo
dominicano começou por dizer ao jornal fraternizar: "fátima
nunca foi estudada".
portanto, "pedir àquelas crianças que elas fossem o catolicismo
evangélico, que não era o que se respirava na sua terra, seria
pedir o milagre. exigir daquelas crianças o reencontro com a boa
nova libertadora de lucas 4 seria exigir o milagre. mas as
crianças limitam-se a repetir o que ouvem e o que vêem. e
projectam isso em nossa senhora e no imaculado coração de maria,
que era, então, uma devoção muito divulgada, assim como a
devoção do rosário. conseguir que estas crianças peguem nisso
que existia e lhe dêem toda aquela força, ao dizerem que isto
que ouvimos é do céu que vem, essa foi a novidade catalisadora
de fátima. mas não é uma redescoberta da novidade libertadora do
evangelho. fátima é feita do que há no sítio e na época. e
depois, há ainda os desenvolvimentos posteriores. lúcia continua
a escrever, faz reelaborações sobre reelaborações da experiência
religiosa inicial, de acordo com quem a tem ajudado. e tudo isso
está publicado".
questão tabu?
frei bento entende que o problema maior de fátima é, pois, ela
nunca ter sido estudada a fundo. parece que ninguém tem coragem
para o fazer. nem mesmo a universidade católica. e referiu que,
há poucos meses, aqueles que são responsáveis no santuário
estiveram num programa televisivo, e a impresão que deixaram aos
telespectadores é que "aquilo, em 1917, não passou de um
fenómeno ovni". o que, em seu entender, diz muito. ou seja,
"quem é responsável por fátima, não sabe dizer nada de
convincente sobre fátima". o que leva frei bento a concluir que
"fátima é importante, como fenómeno social da igreja católica,
mas não é nada que lhe dê que pensar, só dá que fazer a situação
é grave neste ponto".
É verdade que estão já agendados congressos internacionais, como
o que vai ter lugar este mês. contudo, "deve-se observar que
nada disso estuda o pressuposto de que o que é que,aconteceu em
fátima. deixa absolutamente em branco a questão sobre as origens
do fenómeno fátima". de modo que esta mais parece uma questão
tabu.

--60--

um comportamento assim tão estranho e perturbador leva as


pessoas, sobretudo, as que reflectem e procuram ser
intelectualmente honestas, a concluir que os responsáveis de
fátima pensarão que, agora, "a empresa está montada, saudável, e
com capacidade de expansão assegurada, pelo que não vale a pena
estar a reflectir sobre as suas origens".
e, tal como as coisas se apresentam, hoje, com a auto-estrada a
passar ali ao lado, com as ordens religiosas todas com casa
própria em fátima, com a indústria hoteleira em franco
desenvolvimento, com espaços para encontros de todo o tipo,
religiosos e laicos, pode até dizer-se que "fátima já não
precisa que lá tenha acontecido nada" para se aguentar. "ela é,
hoje, humanamente indestrutível". aquilo agora é sobretudo "uma
estrutura turística e económica", por sinal, extraordinariamente
rentável, mesmo ao nível eclesiástico, e em que o "substracto
religioso serve apenas para a montagem dessa estrutura. É muito
possível que, daqui a umas centenas de anos, haja gente que se
pergunte como é que é precisa tanta igreja, tanta capela, em
cada rua. como já acontece no alentejo, onde há três ou quatro
igrejas na mesma praça, a maior parte delas fechadas, ou
abertas, mas apenas para meia dúzia de pessoas".
tudo isto, porém, levanta muitas questões. também jerusalém, com
o seu grandioso templo, era, no tempo de jesus, algo assim,
centro de peregrinação obrigatória para judeus de todo o mundo,
e centro económico e financeiro. casa de oração e banco-mercado
nacional, ou covil de ladrões, como os profetas preferiam
chamar-lhe. lugar onde deus era, oficialmente, mais invocado,
mas onde, em seu nome, também mais se oprimia e enganava o povo.
e sabe-se - frei bento teve: o cuidado de o recordar nesta
conversa com o jornal fraternizar - que "todo o trabalho de
jesus consistiu em libertar jerusalém". o que lhe custou a vida.
porque os que se aproveitam das movimentações religiosas das
multidões do povo, quase sempre ditadas pelo ainda não
devidamente estudado inconsciente colectivo, nunca perdoam ao
profeta, quando ele, por amor da verdade e do povo, desmascara
todos esses negócios sujos.

--61--

e, porque nunca foi estudada a sério, mas cada vez mais se impõe
ao país e ao mundo, como o templo de jerusalém se impôs aos
judeus da palestina e da diáspora, também "fátima, neste
momento, ao ser a concentração de tudo, corre o perigo de ser
também a concentração de todos os vícios religiosos e laicos. É
um risco, não digo que é um facto. por isso, a maneira como vejo
fátima é muito interrogativa. acho que, em muitos aspectos, há
um franco progresso, o centro paulo vi, por exemplo, é um bom
centro, houve já uma certa higienização da liturgia, mas os
motivos de fundo que fizeram de fátima um lugar de obscurantismo
reaccionário, estão todos de pé. em síntese, direi que fátima é
uma graça com muitas desgraças, é um conjunto de muitas
desgraças com muita graça".

--62--

fátima: um inferno de mau gosto


- reconhece frei bento ao jornal fraternizar
"conseguiu-se fazer de fátima o maior concentrado do mau gosto
do imaginário católico que alguma vez já se tinha feito por
aqui. e que continua, impunemente, em expansão enorme. não são
só variações do mesmo, mas o mesmo sem variações. quer dizer, o
que se conseguiu em fátima é uma aflição, uma espécie de horror,
de campo de concentração do horror religioso, um inferno de mau
gosto. o que, a meu ver, é muito grave."
frei bento, saudavelmente cáustico e profundamente evangélico,
caracteriza assim, para o jornal fraternizar, o modelo
predominante de cristianismo e de igreja que "aparece" em
fátima. e vai mais além: "o problema que, neste particular, hoje
se põe, já não é se fátima fala o evangelho, mas se ainda é
possível evangelizar fátima".
para frei bento domingues, dizer que aconteceu alguma coisa em
fátima não diz que, agora, fátima é lugar sagrado. quem é que
garante isso? então, se fátima é lugar sagrado, agora, ali, o
dinheiro é sagrado? aquele mau gosto é sagrado? aquele
engana-tudo-e-todos é sagrado? aquele ganhar lucros de mil por
cento é sagrado?
e, a propósito do mau gosto de fátima, fala sem papas na língua.
"dizem que ali se mostrou um inferno, mas há um inferno que foi
montado, que é o inferno do mau gosto religioso. creio bem que,
em igreja, ainda se não viu a gravidade pastoral daquilo."
porque, afinal, "o visual religioso de fátima está para além do
que se pode imaginar de mais perverso. se quiserem torturar

--63--

uma pessoa que tenha o mínimo de bom gosto artístico,


obriguem-na a estar em fátima. podem fazer lá campos de
concentração, de castigo, para artistas".
para este padre dominicano, "fátima conseguiu construir, peça a
peça, a inestética da fé". mas há uma excepção. "há uma coisa em
fátima que julgo notável, que é o museu da consolata. aí,
conseguiu-se realizar algo de verdadeiramente novo, ao nível
estético, da imagem, da missão, da recolha da arte popular. É um
esforço que saúdo e me parece exemplar."
religião sacrificial
frei bento salta, depois, para outros aspectos, que ele chama
"manifestações sacrificiais" da religião e frente às quais a sua
sensibilidade de cristão especializado em assuntos de
cristologia não pode deixar de reagir.
"creio que há aí muito sofrimento acumulado, mas que também é
doseado pela sabedoria portuguesa popular; há, é verdade, uma
utilização da liturgia sacrificial que é, a meu ver a vitoriosa
em fátima. É sinal de que as pessoas que lá vão e cuja
sinceridade a gente nunca pode pôr em dúvida, com os dramas
enormes que levam, ainda não encontraram - na pastoral das
igrejas paroquiais, dos movimentos católicos, substituto para as
suas dores, para o seu sofrimento - nem um sentido para tudo
isso. vão lá e, dessa maneira, conseguem não entrar no
desespero. de certo modo, depois da promessa cumprida, há uma
suspensão. não há cura, mas suspensão. o que é melhor do que
nada. e, se isso ajuda as pessoas a viver, é melhor isso do que
elas ficarem amarradas à sua loucura."
entretanto - adverte logo frei bento - "coisa completamente
diferente é quem meteu e continua a meter isto, esta religião
sacrificial, na cabeça das pessoas". e refere-se, a propósito,
ao que ele chama "o programa sacrificial do catolicismo
português" ao tempo das "aparições". concretamente, fala dos
padres da vinagreira, ao norte do país, em cujo seio, nos
começos do século, surgiu e se divulgou o livro "missão
abreviada", porventura, o modelo mais acabado de um "catolicismo
ameaçador".
À luz desse catolicismo (ainda hoje é esse o catolicismo de
muita gente praticante e não praticante), que tanta influência
teve

--64--

na geração de católicos, em que se integravam as três crianças


de fátima e suas famílias, "não se sabe revelar nada, sem a
ameaça". uma mentalidade e uma visão das coisas que, por sinal,
não tem nada a ver com o deus revelado em e por jesus de nazaré,
nomeadamente, no evangelho de lucas 4, quando jesus, em plena
sinagoga de nazaré, deixa as pessoas todas irritadas, porque, ao
ler o texto de isaías, não leu a passagem que se referia à ira
de javé (deus), como quem proclama, de uma vez por todas, "ira
de javé, nunca mais!".
"ora, o problema é que, em fátima, tudo está montado sobre a ira
de deus. se não fazem, vão ver o que lhes acontece. É a religião
de um deus sacrificador, apresentado por nossa senhora às
crianças, e que era a religião própria da época. um deus em que,
agora, se inspirou saramago, no seu "evangelho". um deus que
malha com as pessoas no inferno. É um terror. quando, no
evangelho cristão, ao contrário, o que há é o triunfo da
revelação do deus do amor, do deus da pura graça, que não sabe
falar senão da graça de deus. e onde os carimbados de pecadores
pelos fariseus hipócritas (e são fariseus todos os que rezam
pela conversão dos pecadores, como se só os outros o fossem e
eles não) são os comensais, os companheiros (a palavra à letra
quer dizer os que comem do mesmo pão) com quem jesus faz questão
de sentar-se à mesma mesa."
a verdade, porém, é que a mensagem proclamada pelas crianças de
fátima, em 1917, como escutada da boca de nossa senhora, não
teve em conta nada desta boa nova libertadora de jesus. frei
bento reconhece-o sem dificuldade. "ali, o catolicismo pregado
era em nome de jesus, mas quem ganhou foi o catolicismo
sacrificial", mais próprio de joão baptista e da corrente
sacerdotal-levítica do antigo testamento.
totoloto sobrenatural
e que dizer sobre a febre do milagrismo, em fátima? "em fátima,
não há milagres. quando é que houve?" frei bento tem razão,
porque, em boa verdade, o que há são aqueles gritos, estilo
"senhor, fazei que eu veja; senhor, fazei que eu ouça; senhor,
fazei que eu ande; senhor, se quiserdes, podeis curar-me". "mas

--65--

isso é um ritual", comenta o frei dominicano. "É como se todos,


à partida, estivessem de acordo que não vai acontecer nada. como
ocorria com os doentes à volta da piscina de siloê, no tempo do
evangelho de joão".
frei bento salienta, ainda a este propósito, que "no movimento
religioso, as pessoas andam sempre à espera do milagre. mas o
que eu acho é que, em fátima, se reflecte bem a maneira de ser
português. as pessoas, pelo sim, pelo não, vão. não vão com a
certeza absoluta de que pode acontecer o milagre. para elas,
fátima é, neste aspecto, o totoloto do sobrenatural. mas ninguém
investe a vida toda nisso".
e, no entanto, era bem preciso que acontecesse o milagre em
fátima. mas o milagre, tal como o entende o novo testamento. "no
novo testamento, o milagre tem a função de dizer que tudo pode e
deve ser diferente. e, assim, mobiliza as pessoas para que façam
um mundo diferente. não é uma receita. nem uma técnica.
infelizmente, em fátima, nem sequer aparece esta pedrada no
charco, para dizer às pessoas que lá vão que tudo pode e deve
ser diferente, e que cabe a elas fazê-lo, cabe a elas ser os
obreiros duma terra que seja para todos nós, como o céu é para
deus. assim na terra, como no céu, ensina-nos jesus a
pedir-fazer."
e porque as coisas, infelizmente, não são assim ali, frei bento
não hesita em concluir então que, também neste particular, "a
imagem que se tem de fátima é deprimente". e deixa no ar uma
pergunta, bem pertinente, dirigida, nomeadamente, à universidade
católica portuguesa: "como fazer para que, em muitas zonas da
vida de fátima, apareçam fragmentos de salvação? como é que aí
podem ser injectados fermentos transformadores de toda aquela
realidade?"

--66--

agora, com o comunismo derrotado, frei bento interroga-se:


qual o papel de fátima?
"qual vai ser o papel de fátima, agora que o inimigo principal
(o comunismo de leste), que ela se propôs combater, foi
vencido?" para frei bento que, na conversa com o jornal
fraternizar, formulou a pergunta nestes termos, esta poderia ser
uma boa altura para "desactivar fátima", tal como se diz por aí
que "é preciso desactivar aquelas ogivas todas que estavam
apontadas para os, agora, derrotados países de leste", e que o
ocidente capitalista e cristão(?), até há pouco, sempre
considerou como os únicos "maus" do mundo. mas, descansem os
portugueses católicos e comerciantes, que não é isso que irá
acontecer. o próprio frei bento é o primeiro a reconhecer que,
em vez disso, hoje, "fátima está a ser bem activada e
reactivada". e permite-se, até, apontar-lhe "um emprego muito
menos farisaico do que aquele que ela teve até há pouco": que
fátima se assuma "como lugar de oração pela paz e de estudos dos
caminhos da paz".
antes, porém, frei bento defende que seja realizado um estudo
profundo sobre o fenómeno fátima, que ponha em confronto as suas
narrativas fmndadoras com as narrativas do novo testamento, e
investigue sobre os arquétipos religiosos conscientes e
inconscientes, a partir dos quais as populações, nomeadamente,
as camadas mais populares fazem as suas interpretações da
realidade, um estudo que envolva especialistas crentes,
agnósticos e ateus, de ciências humanas e também teólogos de
diversas sensibilidades, e que melhor nos faça "perceber o que
leva, de facto, as pessoas a fátima, não simplesmente o que elas
dizem que as leva".

--67--

um estudo assim tão em grande e em tamanha profundidade é


necessariamente prolongado no tempo e muito dispendioso. mas, no
santuário, dinheiro é coisa que sempre superabundou. "fátima tem
recursos económicos para meter ombros a esta obra. e, se não
tem, que apresente as contas, pois são contas do dinheiro do
povo."
e, a propósito do novo papel de fátima, frei bento pensa também
nos bispos portugueses, a quem, publicamente, pede que ousem
"fazer de fátima um lugar plural da expressão da fé cristã e
eclesial", pois, "ao ser, como até aqui, sempre a reprodução do
mesmo, ela está numa linha que não condiz com o que joão paulo
ii chama a nova evangelização". efectivamente, "fátima, quanto
aos métodos, objectivos e formas de os realizar, não é nova; tem
sido sempre a mesma coisa".
frei bento está consciente de que esta opção pastoral, que
significa "introduzir a possibilidade da diferença", no interior
da igreja, "tem um preço a pagar" e "tão-pouco pode ser feita
por decreto". trata-se, segundo este teólogo dominicano, de
"possibilitar que, em fátima, venha ao de cima a originalidade
de cada um dos múltiplos movimentos eclesiais cristãos e
comunidades". sem anátemas, nem exclusões. com bom senso e
alegria eucarística. num imenso espírito ecuménico que sabe
ultrapassar as fronteiras das igrejas e estender-se até ao
limite das fronteiras do reino de deus.
para frei bento, há ainda outros campos que podiam e deviam ser
objecto de estudos académicos e de séria investigação
científica. sugere, por exemplo, "o estudo do simbolismo
católico devocional, combinado com os simbolismos do
nacionalismo português". pensa, depois, nas inexistentes,
acríticas e piedosas "peregrinações" do papa a fátima e, a
propósito, sugere que se faça uma outra investigação sobre "a
relação de fátima-roma". É que, "todo este vaivém contínuo do
papa pode dar uma ideia de que há uma espécie de canonização de
fátima, sem ainda sequer se saber bem o que fátima é".
no sempre lúcido dizer de frei bento, "não calibrar
adequadamente o sentido e o alcance das presenças de roma em
fátima, pode contribuir para que haja mais uma dificuldade a
juntar às que já havia acerca de fátima, que é aumentar o arsenal

--68--

do não pensado". com a agravante de poder induzir muitas


pessoas, teologicamente não esclarecidas, num erro gravíssimo,
como seria, por exemplo, levá-las a pensar que "a versão
católica de fátima corresponde à versão do evangelho" (se até o
papa lá vai e não levanta qualquer crítica evangélica àquilo que
lá se faz!...), ou que "fátima é o evangelho" e, como tal, já
"nem tem que ser confrontada com ele, nem com as outras
narrativas do novo testamento".
investigações assim, até agora, nunca realizadas,
constituiria, certamente, uma espécie de "pedrada no charco",
pois viriam pôr em causa o que lá se faz. mas, em vez de serem
temidas, devem ser fomentadas. em nome da verdade que
liberta.
e do respeito que as pessoas, todas as pessoas, mas ainda mais
as multidões do povo que para lá correm carregadas de aflições e
de esperança. frei bento não tem dúvidas que esta seria uma
prática saudável e, porventura, a única que poderá contribuir
para afastar, de vez, as "questões perturbantes" que fátima,
ainda hoje, não resolveu, as quais têm a ver, até com as
próprias narrativas do que se diz ter ocorrido lá, em 1917.
por outro lado, só depois deste trabalho sério e consequente é
que fátima poderia transformar-se num "lugar de pregação
evangélica, em sintonia com o mundo que estamos a viver em
toda a sua complexidade". de contrário, continuará, como até
aqui, a ser guarida de "um movimento religioso, transformado
em slogans, em lugares comuns, uma das coisas que jesus de
nazaré mais combateu. porque o que mais oprime as pessoas é
um conjunto de lugares-comuns que as dispensa de pensar, de
se confrontar, e jamais lhes permite o acesso à palavra, à
intervenção directa, à movimentação a favor dos outros".

--69--

9
deuses contra deus
em fátima, como em qualquer outro santuário ou templo, não basta
invocar deus para se concluir que estamos perante uma
manifestação de fé. pelo menos de fé cristã. quando muito,
estamos perante uma manifestação religiosa. o que não é a mesma
coisa. de resto, o cristianismo, no início, nem sequer quis
aparecer como uma religião. os textos fundadores do novo
testamento, do que falam, não é duma nova religião, mas duma via
ou caminho. via ou caminho que nos há-de levar, não a deus, sem
mais, mas ao outro, aos outros, aos que não são da nossa carne e
sangue, e até aos que temos como "inimigos". para que entre nós
e eles, entre todos e todas, se estabeleça, progressivamente,
uma relação de fratermidade/solidarieadade. pois só quando esta
relação de fraternidade/solidariedade se toma efectiva é que o
deus de jesus é honrado e cultuado. e a fé cristã
verdadeiramente acontece.
i "nem todo o que me diz senhor, senhor, entrará no reino dos
céus, mas sim aquele que fizer a vontade de meu pai que está nos
céus" (mt 7, 21). o evangelho é assim. não admite fugas,
porventura, muito religiosas, mas também muito alienantes,
desumanizadoras e desfraternizadoras.
em fátima, como em qualquer outro santuário ou templo, é preciso
inquirir, com humildade e a toda a hora, que deus é que lá está
a ser invocado e cultuado. que deus é que atrai as pessoas e as
faz movimentar. porque, ao contrário do que habitualmente se
pensa, não há apenas um único deus. sempre houve, através dos
tempos, muitos deuses. e a dificuldade em poder discernir, entre
tantos deuses, qual o verdadeiro, aquele que progressivamente
nos humaniza e fraterniza (e só um deus que nos

--71--

humaniza e fraterniza é que é boa notícia para os humanos),


sempre foi muito grande. e, hoje, parece ser ainda maior do que
no passado. porque os deuses são muitos e qual deles o mais
atraente e sedutor.
sabemos que caim, por exemplo, já nos alvores da humanidade - é
a primeira carta de joão que o lembra, nos alvores do
cristianismo-e segundo reza o mito bíblico do génesis (4, 1-16),
também invocava deus, cumpria com todos os ritos religiosos,
frequentava, regularmente, a liturgia da época. isso, porém, não
o impediu de, na maior das calmas, e com a mais sossegada das
consciências, matar o irmão abel. o deus que invocava e cultuava
e ao qual, generosamente, oferecia as primícias das suas
colheitas não era incompatível com uma acção fratricida. pelo
contrário, até lha terá sugerido ou inspirado. no momento do
culto.
a narrativa foi escrita, não como um conto para nos distraír,
mas para nos edificar. para nos alertar. para nos ajudar a
discernir. para nos revelar que não basta admitir a existência
de deus, ser deísta, ser religioso, frequentar actos de culto, a
horas certas e em locais tidos como sagrados, para sermos,
automaticamente, homens e mulheres humanos, humanizados,
fraternos, numa palavra, cristãos. podemos fazer tudo isso e
muito mais, por exemplo, contribuir com chorudas ofertas para a
construção de templos e santuários, fazer difíceis e dolorosas
promessas, e cumpri-las escrupulosamente, manter até um bom
entendimento com os sacerdotes de alguma das múltiplas religiões
que por aí existem e, ao mesmo tempo, alimentar sentimentos de
ódio e vingança, de ciúme e de morte contra o outro e os outros.
pior ainda, podemos até passar a vias de facto e matar o outro,
matar os outros, os "inimigos", os que não pensam como nós, os
que não são da nossa religião, nem aceitam fazer o nosso jogo. e
tudo isto, sem chegarmos a perder a tranquilidade de
consciência. pelo contrário, com todo o ar de quem cumpre um
dever, de quem pensa que, assim, é que está a ser religioso.
escrever e dizer estas coisas pode ser eventualmente chocante
para muitos e muitas, crentes em deus ou ateus, mas não devia
sê-lo, pelo menos, para os cristãos e cristãs e respectivas
igrejas.

--72--

o cristianismo que, no início, nunca quis ser uma religião mais,


entre as múltiplas existentes no império romano, mas apenas uma
via ou caminho que, teimosamente, nos há-de levar ao outro, aos
outros, mesmo aos que uma certa educação cívica e religiosa nos
aponta como "inimigos" nossos, para com todos e todas fazermos a
descoberta e a experiência da fraternidade/solidariedade e da
comunhão cada vez maior, nasceu, como se sabe, desta revelação
definitiva, a mais radicalmente libertadora da humanidade e
também a mais humanizadora e fraternizadora.
jesus de nazaré, reconhecido e proclamado pelos primeiros
aderentes e seguidores como o cristo, por força da ressurreição
que, inesperadamente, lhe aconteceu, havia sido, até então, o
mais odiado dos homens, condenado à morte como blasfemo e
subversivo, e executado na cruz. ora, quem está por trás de todo
este crime maior da história da humanidade, quem conduz todo o
processo, até que seja consumado, são homens religiosos,
profundamente crentes em deus, postos à frente de instituições,
as mais sagradas. mas quando assim procedem, os príncipes dos
sacerdotes e o sinédrio, juntamente com os teólogos de serviço,
fizeram-no na convicção de que, dessa maneira, davam glória a
deus, ao deus cultuado e adorado, também por eles, no grandioso
templo de jerusalém. tanto assim que, mesmo depois de terem
cometido tão horrendo crime, continuaram, de consciência
tranquila, a frequentar o templo e a promover o culto em honra
do seu deus, em dias e horas certos.
ora, o que se passou com jesus de nazaré, chamado o cristo,
tornou-se, pelo menos, para os cristãos e cristãs e respectivas
igrejas, no acontecimento mais revelador da história, a luz que
ilumina todo o homem que vem a este numdo. o novo e definitivo
big-bang da criação da humanidade e do mundo. o novo e
definitivo começo. nele e com ele, a humanidade nasceu de novo,
nasceu definitivamente fraterna e solidária.
sabemos, por isso, e de maneira definitiva, a partir de jesus
crucificado, que o pai ressuscitou, que, de facto, deus não é,
nunca foi, uma realidade unívoca. há muitos deuses. há deus e
deuses. e há até uma luta dos deuses contra deus. há deuses
altamente perigosos, assassinos e opressores, que não estão bem
sem vítimas inocentes, cujo sangue reclamam insaciavelunente.
deuses sádicos

--73--

que devoram os seus adoradores, os escravizam e degradam. numa


palavra, os desumanizam e, finalmente, matam. e que assim como
são, fazem ser os seus adoradores que, por isso, podem ser muito
religiosos, como caim, mas também assassinos. À imagem e
semelhança dos deuses que invocam e cultuam.
e há o deus das vítimas, ele próprio vítima dos deuses
todo-poderosos e assassinos, que ressuscitou jesus dos mortos.
este é o deus de jesus e dos homens e mulheres que prosseguem a
sua causa (cristãos e cristãs e outros de boa vontade), o deus
vivo que vive e faz viver, o deus que não quer outro culto senão
a promoção da vida e vida em abundância para todos, o deus que
não só não quer nem faz vítimas, como trabalha sempre para as
tirar da cruz, o deus que está presente e se manifesta no olhar
e no corpo das vítimas da história, a partir das quais lança
aquela mais perturbante e desafiadora pergunta, também a mais
potencialmente criadora de fraternidade, dirigida a todos os que
o invocam como caim, mas que, como este, matam os irmãos: "onde
está o teu irmão? que fizeste do teu irmão?" ou esta outra,
actualizadora daquela: "por que me persegues?" (at 9, 4).

--74--

10
do deus de fátima, livranos senhor!
duas crianças que morrem e uma terceira que sobrevive, mas é
retirada da sua terra e para sempre impedida de levar uma vida
em tudo semelhante à das outras pessoas (primeiro,
internaram-na, secretamente, no asilo de vilar, no porto, e,
depois, mandaram-na para espanha e fizeram dela freira de
clausura para o resto da vida, situação que, 76 anos após os
acontecimentos de 1917, ainda se mantém!), eis o principal
balanço das chamadas aparições de fátima. provavelmente, nunca
ninguém da igreja católica ousou olhar as aparições sob este
ângulo. o jornal fraternizar, porém, embora corra o risco de
perder alguns dos seus assinantes, não pode deixar de o fazer,
nesta edição de maio de 93.
não pensem que o fazemos para alinhar com os chamados "inimigos"
de fátima. o que nos move é a fidelidade ao evangelho e ao deus
de jesus que maria de nazaré, melhor do que ninguém, cantou,
como libertador e salvador da humanidade, particularmente, dos
pobres e excluídos.
a leitura que fizemos do livro mais importante sobre fátima,
"memórias da irmã lúcia", a isso nos obriga. É que o deus que aí
i é anunciado e revelado não tem nada a ver com o deus revelado
em jesus de nazaré. tem tudo a ver com um deus sanguinário, que
se compraz no sofrimento de inocentes, um deus criador de
infernos para castigar aqueles que deixam de ir à missa aos
domingos, ou dizem palavras feias, um deus ainda pior do que
algumas das suas criaturas.
aos leitores e leitoras, pedimos que, em vez de se
escandalizarem, experimentem ler também o livro da irmã lúcia.

--75--

porque, se o fizerem, mas à luz do evangelho de jesus, acabarão,


provavelmente, a rezar também connosco "do deus de fátima,
livra-nos, senhor!".
ambiente de terror
o livro de lúcia faz-nos recuar no tempo e mergulhar no ambiente
religioso e eclesiástico em que também as crianças de fátima
tiveram de viver, por volta de 1917. foram os tempos da primeira
grande guerra. mas o terror que se respirava, nomeadamente, nos
meios populares e rurais, não vinha apenas daí. a catequese
familiar e paroquial, mais as pregações dominicais e outras,
então, muito frequentes, constituíam um género de terror não
menos intenso e, também, não menos nefasto e assassino. porque
incidia sobre a consciência das pessoas, especialmente, das
crianças, pequeninos seres indefesos e carregados de
sensibilidade, prontos a acreditar em tudo quanto lhes dissessem
os adultos, pais e mães, e ainda mais, bispos e párocos, cuja
palavra era, miticamente, escutada e seguida, como se fosse a
própria vontade de deus, presente no meio do povo. (o livro de
lúcia mostra, à sociedade, que ela própria, ainda hoje, tantos
anos depois, se mantém nesta visão mítica da realidade, também
da realidade eclesial, embora uma tal visão seja completamente
estranha à libertadora mensagem do evangelho.)
jacinta e francisco, mai-la lúcia, respiram um ambiente assim. o
livro não deixa dúvidas a quem o souber ler nas entrelinhas,
criticamente, sem se deixar envolver no misticismo religioso,
quase doentio, em que ele nos aparece escrito.
percebe-se bem que o terror é uma constante nas vidas destas
três crianças. vivem apavoradas com o pecado, com o inferno e
com os pecadores que vão, aos magotes, para o inferno. tudo para
elas é pecado. até dar um beijo a outra criança, no jogo das
prendinhas.
dar um beijo, para a jacinta, por exemplo, só se for a nosso
senhor, na ima gem do crucificado. como se uma outra criança,
companheira de brincadeira, não fosse muito mais imagem dele,
mas apenas e só ocasião de pecado. (quem despertou uma visão tão
moralista, na pequenina e angelical jacinta? que satânica

--76--

catequese lhe distorceu tão gravemente o olhar? quem lhe tirou,


tão precocemente, a naturalidade?)
depois, tudo pode levar ao inferno. deus, aos olhos destas
crianças, está já tão cansado com os pecados das suas humanas
criaturas, que a sua ira está a ponto de atingir os limites. e
só não o fará, se elas aceitarem sofrer, sofrer, sofrer, fazer
toda a espécie de sacrifícios por amor dele e pela conversão dos
pecadores e, ao mesmo tempo, rezarem muitos terços.
ora, como não podia deixar de ser, as crianças que recebem toda
esta informação - sensíveis e indefesas como só elas são sofrem,
choram, têm pena de nosso senhor. e começam a pensar em
assumir-se como vítimas, até à morte, para desagravarem a deus
e, de alguma maneira, o forçarem a perdoar os pecadores. ficam
completamente possuídas por uma mística de morte, uma mística
sacrificial, que diz bem com um deus que se alimenta de gente,
em vez duma mística de vida, a única que o deus de jesus pode
inspirar aos seus filhos e filhas, já que ele próprio é um deus
que trabalha continuamente para que todos tenhamos vida e vida
em abundância.
verdadeira tortura
viver, num clima de religiosidade assim, tornou-se uma
verdadeira tortura. pelo menos, para estas três crianças
aterrorizadas, que sempre levam tudo tão a sério. tornou-se
também um terrível risco. o risco de vir a ser condenado ao
inferno. bastava fazer algum pecado. e o pecado, para elas, era,
por exemplo, dizer palavras feias ou cometer pequenas
traquinices. o bastante para poder ser condenado ao inferno,
descrito por elas próprias em imagens, as mais terríficas. nunca
mais, então, estas crianças puderam deixar de sentir vontade e
disposição de fazer sacrifícios pelos pecadores. o inferno era,
afinal, a grande ameaça para todos. e o que, com mais
probabilidade, poderia acontecer a qualquer um. e, para os
pecadores, mais do que ameaça, era já uma certeza.
num clima assim, de religiosidade verdadeiramente esvaziada de
evangelho, pior, contra o evangelho, não é de estranhar que o
desejo maior destas três crianças fosse ir para o céu.

--77--

porque essa seria a única maneira de não chegarem a caír no


inferno, onde quem lá caísse ficaria, para sempre, a arder na
imensa fornalha de fogo que ele era, e na companhia de animais,
os mais asquerosos e horrendos.
pelo que conta lúcia, neste seu livro, os dois irmãos, jacinta e
francisco, viviam aterrorizados com o inferno. outra coisa nem
era de esperar. a mãe, nas frequentes catequeses familiares que
lhes ministrava, carregava bem nas cores do terror. e os
pregadores de missões paroquiais que seguiam, com fidelidade, o
livro "missão abreviada", não lhe ficavam atrás.
por isso é que, num ambiente assim, de verdadeiro terror
teológico, o que mais espanta e escandaliza a quem, hoje,
procura ser discípulo de jesus e deixar-se fazer pelos valores
do seu evangelho libertador, é que aquela senhora que as
crianças dizem ver e ouvir, aos dias 13 dos meses de maio a
outubro de 1917, apesar de se dizer vinda do céu, isto é, de
deus, não tenha aparecido para as libertar do medo e convidá-las
à alegria de viver. pelo contrário, começa por lhes anunciar, às
duas mais novinhas e também mais aterrorizadas, que brevemente
as vai levar para o céu, maneira eufemista de dizer que elas vão
morrer antes do tempo.
catequese terrorista
em lugar da boa notícia libertadora de que deus quer que elas
vivam e vivam em abundância, anuncia-lhes que vão morrer
brevemente. no fundo, limita-se a reproduzir e a autenticar a
catequese terrorista e negadora do evangelho que as crianças
constantemente ouviam em casa e no templo paroquial.
mas o mais chocante estava ainda para acontecer. É a própria
aparição que, em julho, durante a conversa que mantém com elas,
mostra às três crianças o inferno. e a impressão que lhes causa
é tal, sobretudo, à jacinta e ao francisco, que bem se pode
dizer que os dois irmãozinhos, de tenra idade e de saúde
manifestamente debilitada, nunca mais se recompuseram desta
visão terrífica, acabando por morrer de susto. também da
fraqueza que, entretanto, se apoderou irreversivelmente dos seus
corpos, uma vez que tanto ela como ele, desde então, nunca mais
conseguiram

--78--

ser crianças como as outras, nunca mais conseguiram brincar


descontraídas, nunca mais conseguiram encarar a vida como
crianças saudáveis (o francisco, por exemplo, até deixou de ir à
escola; em vez disso, preferia esconder-se na igreja, a rezar
pelos pecadores!) e nunca mais se alimentaram convenientemente.
em todos os momentos, a partir daquele dia, a visão do inferno
persegue as duas crianças, aterroriza-as, obriga-as a rezar
pelos pecadores e força-as a fazer sacrifícios pela conversão
dos pecadores. o livro das "memórias" de lúcia testemunha que os
dois irmãozinhos eram capazes de passar dias inteiros sem comer,
davam a merenda às ovelhas, não bebiam ponta de água, mesmo em
pleno mês de agosto, andavam todo o dia, e mesmo durante o sono
da noite, com uma corda permanentemente amarrada à cinta, até
fazerem sangue.
masoquismo religioso
com estas atitudes, carregadas de masoquismo religioso e
sacrificial, pretendiam, numa ingenuidade e inocência que
confrange, e de que, pessoalmente, não são responsáveis mas
vítimas, consolar nosso senhor e o papa (as preocupações pelo
papa surgem depois que em certa ocasião um sacerdote lhes terá
falado dele e informado de que ele estava a ser muito perseguido
pelos "inimigos" da igreja).
chegou-se, assim, à total inversão da boa notícia que é a
revelação de deus na história da humanidade e que culminou em
jesus de nazaré, a maior e mais libertadora boa notícia que os
empobrecidos do mundo e todos os que, oficialmente, são tidos
como pecadores, alguma vez puderam ouvir.
neste caso de fátima, em vez de deus ser aquele que vem, como
companheiro e pai com coração de mãe, consolar as crianças e
libertá-las do terror e do sofrimento em que uma catequese
sacrificial e sádica as condenou a viver, são as crianças que o
consolam a ele e se imolam para conseguir que ele, à vista do
sofrimento delas, vítimas inocentes, contenha a sua ira e
desista de dar cabo das humanas e pecadoras criaturas. ou seja,
reduzem-se, para que ele cresça, numa liturgia tipicamente
sacrificial, mas também verdadeiramente repugnante que, quando
acontece,

--79--

é sempre um insulto ao deus de jesus e, simultaneamente, uma das


principais causas que explicam o desenvolvimento do ateísmo no
mundo.
urge evangelizar fátima
pode, pois, dizer-se que o livro "memórias da irmã lúcia",
onde ela escreve tudo o que recorda dos seus tempos de criança,
em fátima, e o faz por obediência a alguns homens da igreja -
que, estranhamente, se arrogam de uma tal autoridade sobre ela,
até lhe darem ordens dessas irrecusáveis -, contém e veicula uma
teologia (reflexão sobre deus) nos antípodas da teologia cristã.
trata-se duma teologia sobre um deus que ainda continua aí
como o deus de muita gente, mas que tem tudo a ver com um
ídolo devorador de pobres, bem pior do que algumas das suas
criaturas; um deus à imagem e semelhança dos verdugos que só
sossega a sua ira castigadora e destruidora, diante do sangue,
muito sangue, de vítimas inocentes; um deus justiceiro, verdugo,
sanguinário; um deus contra o homem/mulher e sem entranhas de
misericórdia, tirano e déspota; um deus intrinsecamente
perverso, a quem é preciso apaziguar e cujo braço justiceiro
está aí pronto a caír sobre a humanidade, o que só não aconteceu
ainda, porque, felizmente, temos junto dele uma criatura, a mais
santa de todas e, ao que parece, mais misericordiosa do que ele,
a senhora do rosário, de seu nome, que tem conseguido sustê-lo.
mas ela própria está a ponto de não poder aguentar mais a
fúria e o ódio dele contra a humanidade pecadora e, por isso,
decidiu saír do céu até à terra, mais concretamente, a portugal,
onde alguns anos antes, por coincidência, se instaurou uma
república maçónica e ateia, para pedir a três inocentes crianças
que a ajudem nesta ingente tarefa.
"quereis - disse-lhes, logo na primeira aparição que lhes fez
- oferecer-vos a deus, para suportar todos os sofrimentos que
ele quiser enviar-vos, em acto de reparação pelos pecados com
que ele é ofendido e de súplica pela conversão dos pecadores?"
as crianças, educadas numa catequese sacrificial e terrorista,
disseram que sim. e, como elas, ainda hoje muita gente continua
a dizer o mesmo a um deus assim. só quem não queira ver é que

--80--

pode ignorar que, em fátima, o deus que mais é procurado pelas


pessoas que sofrem doenças e aflições de toda a ordem, é um deus
assim. um deus que nos apavora, nos inspira medo, nos castiga,
nos dá e tira a vida, conforme o humor de momento. um deus que
exige sacrifícios humanos, que todo se compraz em ver os pobres
autoflagelarem-se, numa imolação que pode ir até ao limite das
forças e da vida. um deus à revelia do evangelho, com mais de
demónio do que de deus, que, desde os alvores da humanidade, tem
habitado o nosso inconsciente colectivo e onde, manifestamente,
ainda não chegou a boa nova libertadora de todo o medo, que é o
evangelho de jesus.
a igreja católica que, desde a primeira hora, tem gerido fátima,
ainda não foi capaz de evangelizar fátima. a valer. pelo
contrário, tem parecido mais interessada em aproveitar-se
sacrilegamente do fenómeno. talvez porque ele, como diz a
publicidade do totoloto, é fácil, é barato, dá milhões. e
garante elevadas estatísticas, na hora de contabilizar os
católicos portugueses, o que dá muito mais poder reivindicativo
à respectiva hierarquia, frente ao poder instituído.
o jornal fraternizar entende que é chegada a hora de mudar.
desde raíz. É arriscado? sem dúvida. mas é também imperioso e
urgente. está em causa o nome de deus, do deus revelado em jesus
de nazaré. está em causa a fé cristã. e, sobretudo, está em
causa a humanidade, particularmente, a maioria empobrecida e
oprimida, também em nome de um certo deus que, em fátima,
continua a ditar, impunemente, a sua sacrificial lei.
os teólogos cristãos têm, pois, uma palavra a dizer. com lucidez
e coragem. com discernimento. na luta de deuses em que vive a
humanidade, a palavra dos teólogos cristãos é insubstituível.
pode ser, para alguns, martirial, como tem sido para outros
companheiros nossos, na américa latina. mas não podem os
teólogos deixar de a dizer. assim como as comunidades cristãs
onde eles se inserem. pactuar nem que seja com o silêncio, é um
pecado contra os pobres e comtra o espírito santo.
É que deus, o deus de jesus, em vez de criar infernos para os
pecadores (e quem o não é?), acolhe-os e come com eles. por pura

--81--

graça. em vez de fazer vítimas, tira-as da cruz. e está


empenhado, como criador que é, em fazer desta terra, ainda com
muito de inferno, uma nova terra, onde ele viva connosco e entre
nós, para sempre, como em mel.
e maria, a mãe de jesus, longe de andar por aí a pedir
sacrifícios e a reza de muitos terÇos pela conversão dos
pecadores, é a maior poetisa celeste deus totalmente ocupado na
libertação e salvação da humanidade: e apostado em levar ao seu
termo a criação do mundo, iniciada há nuitos milhões de anos.
uma criação demorada, porque ele não a quer fazer sem nós, mas
connosco. e também porque respeita infiniitamente a nossa
liberdade. sem jamais perder a paciência, apesar dos inúmeros
disparates que cometemos contra nós próprios, contra os outros e
contra a natureza que nos serve de berço. e isto, porque nos ama
infinitamente. pois nem pode fazer outra coisa.

--82--

11
há anos que ele faz incómodas perguntas sobre "fátima e, em
lugar de respostas satisfatórias , recebe insultos"
em 1917, o livro "missão abreviada" era a bíblia de toda a gente
em ourém - reconheceu ao jornal fraternizar o padre dominicano
joão oliveira faria "o livro "missão abreviada" era, em 1917, a
bíblia de toda a gente de ourém e fátima." quem o garante é o
pe. joão oliveira faria, um dominicano residente no porto, e
nascido em ourém, um ano antes das chamadas aparições de fátima.
na conversa que manteve com o jornal fraternizar, aquele
discípulo de s. domingos, que já publicou dois livros de
perguntas sobre fátima, as quais continuam ainda sem respostas
convincentes, mostra muitas reservas, relativamente ao que ele
chama, juntamente com outros estudiosos do fenómeno, fátima 2,
ou seja, o relato das aparições, feito por escrito, muitos anos
depois dos acontecimentos, pela única vidente sobrevivente, e
genericamente conhecido por "memórias da irmã lúcia".
"pode haver nestes escritos, muita imaginação da lúcia adulta,
a viver como religiosa num convento", adverte.
este testemunho do p. joão oliveira faria é precioso, porque, só
por si, ajuda a compreender e a explicar muitos pormenores
ligados às chamadas aparições de fátima, os quais só ultimamente
vieram a ser conhecidos, graças à publicação daquelas
"memórias". para ele, enquanto "fátima 1, ou seja a fátima das
três criancinhas, *é uma coisa maravilhosa+ e contém *uma
mensagem lindíssima+, o mesmo já se não poderá dizer, de fátima
2, onde há muita coisa que não concorda com o cristianismo de
jesus.
***
--83--

daí as muitas perguntas que ele, publicamente, formula à igreja


e às quais ninguém tem querido responder a sério. em lugar das
respostas solicitadas, o que o pe. joão tem recebido são muitos
insultos e acusações de todo o tipo, reveladores de que, afinal,
pode ser-se muito fanático de fátima, mas pouco discípulo de
jesus e seguidor consequente do seu evangelho.
a uma conclusão, entretanto, o pe. oliveira faria já chegou e é
esta: para certas pessoas, "fátima é um tabu". como tal, não
pode nem deve ser estudado, nem discutido, apenas aceite sem
mais. como se as chamadas aparições constituíssem a última e
definitiva palavra reveladora de deus à humanidade, mais
importante ainda do que o próprio evangelho. quando, como se
sabe, o que a própria igreja católica sempre tem ensinado é bem
outra coisa. e o que ela tem ensinado e ensina, ainda hoje, é
que tanto fátima como todas as outras revelações particulares
que por aí se reclamam de tais podem ser liminarmente negadas,
sem que a fé cristã católica fique minimamente prejudicada.
isto é o que ensina, oficialmente, a igreja católica, ao nível
dos princípios. mas todos sabemos que, depois, na prática de
todos os dias e, particularmente, em fátima, quase ninguém se
atreve a dizê-lo. continuamos a preferir enterrar a cabeça na
areia, como a avestruz, e apostamos na ambiguidade, ou no
silêncio, como quem parece ter medo de tocar no tabu. o que diz
bem do infantilismo de muitas das nossas posições. por sinal,
muito pouco conformes à boa notícia libertadora e humanizadora
que é o evangelho de jesus, que nos chama a sermos pessoas com
discernimento, sempre posicionadas no "sim, sim", ou "não, não".
um desastre
o pe. oliveira faria, hoje com 77 anos de idade, vividos como um
recoveiro do evangelho libertador, junto dos mais pobres e mais
sofredores da sociedade, começou por confessar ao jornal
fraternizar que, ainda hoje, "o nosso povo é muito religioso,
mas, sob o aspecto evangélico, é um desastre".
e deu um exemplo muito pertinente. "ando pelo país todo, em
contacto com a gente mais marginalizada e oiço expressões da
boca de muitos que me arrepiam. encontro cegos, estropiados,
acamados

--84--

incuráveis e da boca de quase todos saem infalivelmente


expressões como estas, "deus assim quis", ou "deus assim manda,
ele é que mandou esta doença, eu era tão feliz, quando tinha
saúde, quando tinha vista, quando podia andar e, agora, sou um
desgraçado". falam-me de deus como se ele tivesse um armazém de
doenças, lá em cima, para mandar cá para baixo. quando isto
oiço, pergunto de imediato: olhe lá, mas deus não é pai? eles
respondem: Ééé! e eu insisto: mas você também é pai (mãe)? eles
respondem: souuu! e eu volto a perguntar: e você gosta de ver os
seus filhos sofrer? aí eles respondem: nãooo! e eu concluo com
outra pergunta: mas então deus é pior pai do que você? e eles
ficam calados."
"julgo - sublinha, depois o padre - que o deus da maior parte do
nosso povo ainda é do antigo testamento. mas o nosso povo não
tem culpa disso. o catecismo que recebeu, feito à base do livro
"missão abreviada", era, ao tempo das aparições de fátima,
praticamente a única bíblia que andava nas mãos do povo, lá na
minha terra, em ourém e em fátima".
aterrorizar o povo
o p. oliveira faria recorda, então, os anos da sua infância e o
que era a pregação das missões, nas paróquias, também elas
concebidas para aterrorizar o povo e anunciar-lhe um deus
castigador, cheio de furor. já de machado apontado à raíz da
árvore, muito ao gosto e ao estilo de joão baptista, mas
infnitamente distante do deus de jesus, cujo evangelho anunciado
aos pobres e aos oficialmente apontados como pecadores, tanto
escandalizou os religiosos do templo de jerusalém, que não
suportaram o seu enviado e filho Único e depressa o condenaram à
morte e o mataram. certamente, para poderem, mais à vontade,
prosseguir com a religião comercializada e sacrificial, de que
viviam e com que até enriqueciam.
À sua memória de lúcido ancião, acode, no correr da conversa, o
nome de um desses pregadores do terror, um tal pe. campos,
jesuíta, que, como os mais, se inspirava no livro "missão
abreviada". e o pe. oliveira faria conta, a propósito, a
impressão terrível que lhe causou uma missão pregada, andava ele
na escola primária, na "sé de ourém", para onde todo o povo
confluía como

--85--

um rio para u mar, totalmente dominado pelo medo, subjugado e


resignado. refere, concretamente, que quando terminava a
pregação, a maior parte das pessoas via-se obrigada a passar o
resto da noite na igreja. ali ficavam deitadas e apertadas no
chão, como animais, sempre a coçar-se das pulgas que as ferravam
sem dó nem piedade. um rebanho de ovelhas entrava, de manhã, no
templo vazio, para que as pulgas lá deixadas pelo povo saltassem
para elas.
era assim a vida do povo, então. um inferno de sofrimento que o
autor da "missão abreviada" e os respectivos pregadores, pelos
jeitos, ainda achavam demasiado leve, pois o ameaçavam, em nome
de deus, com outro bem pior, para depois da morte.
no seu livro "perguntas sobre fátima" o pe. oliveira faria não
pode deixar de mostrar a sua estranheza pela quase coincidência
entre a descrição que a "missão abreviada" faz do inferno e a
"visão" que dele tiveram os três pastorinhos, na aparição de 13
de julho de 1917.
descreve lúcia: e vimos como que um mar de fogo: mergulhado
nese fogo, os demónios e as almas, como se fossem brasas
transparentes e negras ou bronzeadas, em forma humana, que
flutuavam no incêndio, levadas pelas chamas que delas mesmas
saíam, juntamente com nuvens de fumo caíndo para todos os lados,
semelhante ao caír das faúlhas nos grandes incêndios, sem peso
nem equilíbrio, entre gritos e gemidos de dor e desespero que
horrorizava e fazia estremecer de pavor. (devia ter sido ao
deparar-me com esta vista, que dei esse "ai!" que dizem ter-me
ouvido.) os demónios distinguiam-se por formas horríveis e
asquerosas de animais espantosos e desconhecidos, mas
transparentes como negros carvões em brasa. assustadas e como
que a pedir socorro, levantámos a vista para nossa senhora que
nos disse com bondade e tristeza: vistes o inferno, para onde
vão as almas dos pobres pecadores".
por sua vez, o livro "missão abreviada" descreve assim o
inferno: "i~ uma lus ar no centro da terra; numa caverna
profundíssima cheia de escuridão, de tristeza e horror, cheia de
labaredas de fogo e nuvens de espesso fumo; lá estão os
pecadores atormentados com os demcínios, bramindo e uivando como
cães danados. são atormentados por um fogo o mais devorante".

--86--

entretanto, o livro do pe. joão oliveira faria acrescenta, de


imediato que "a mãe de lúcia costumava dizer aos filhos (na
catequese familiar, antes das aparições): "o inferno é uma cova
de bichos e uma fogueira muito grande e quem faz pecados e não
se confessa vai para lá e fica sempre a arder, sem nunca de lá
saír ".
depois disto, ninguém estranhará, certamente, que o pe. oliveira
faria diga que "as crianças de fátima foram vítimas duma
catequese um bocado forçada. a "missão abreviada" era o livro
que se lia mais, era a bíblia daquela gente, dem ter influído
bastante nela. temos por isso de andar muito alerta". acrescenta
ainda que "a igreja devia pensar muito nisto e há que fazer um
estudo teológico muito sério da mensagem de fátima".
teologia cristã
o jornal fraternizar não póde deixar de concordar com ele. e
disse-lho com toda a convicção. apenas acrescentou que esse
estudo seja de teologia cristã e não de uma outra qualquer
teologia, porque teologias há muitas, conforme os deuses. que o
diga o próprio jesus de nazaré, que foi crucificado em nome de
um certo deus e condenado com o aval de uma certa teologia e
respectivos teólogos.
o nosso jornal foi mesmo um pouco mais além, pois reclama que
esse estudo teológico se estenda também ao núcleo central da
mensagen de "fátima", tido por muitos, entre os quais o próprio
pe. joão oliveira, como uma reformulação do evangelho de jesus,
apresentado por maria ao povo da época dos pastorinhos.
É que, para o jornal fraternizar, até aí a teologia cristã
deverá levantar suspeitas. porque, para as coisas estarem,
evangelicamente, certas, não basta dizer, por exemplo, que a
mensagem de fátima se resume a "oração e penitência". e
acrescentar, com alguma ingenuidade, que também disso fala o i
evangelho. porque a verdade é que, quando inicia o seu
ministério, jesus não prega a penitência ao povo, como fez joão
baptista, por exemplo. o mais surpreendente em jesus, que terá
começado por ser discípulo, ou, pelo menos, simpatizante e

--87--

admirador de joão baptista, é que ele não começa a pregar o


arrependimento e a necessidade da penitência e da oração para as
pessoas se salvarem. ele prega a boa notícia de que a salvação
está perto; que o perdão de deus está aí; que deus é o amor e
quer que todos os homens se salvem; que para isso enviou o
próprio filho ao mundo, não para o condenar, sim, para o salvar.
a penitência de que, depois, também fala tem a ver,
essencialmente, com a mudança do modo de estar na vida, para
poder acolher esta boa notícia e alegrar-se com ela. não é, de
modo algum, uma penitência para conquistar a salvação, ou para a
merecer, pois esta é dada por deus a todos, totalmente de graça!
o pe. joão oliveira ouviu e ficou a pensar. para lá das muitas
perguntas que formulou sobre "fátima ii", terá percebido que as
coisas, afinal, podem ser ainda muito mais profundas. e que
precisamos de muita coragem para chegarmos a tocar na raíz das
coisas, isto é, para nos deixarmos evangelizar integralmente.
coisa que, se calhar, nunca foi realizada a valer em portugal,
nem mesmo na europa.
uma outra questão que o jornal fraternizar também frisou,
durante a conversa com o pe. joão oliveira, e que precisa de ser
bem iluminada pela teologia cristã, tem a ver com o que
aconteceu aos irmãos pastorinhos, jacinta e francisco. como se
sabe, ambos morreram sem terem tido oportunidade de crescer em
idade, estatura, sabedoria e graça, como se diz de jesus que
crescia, quando tinha a idade em que eles morreram, vítimas da
pneumónica, e no meio de terríveis dores.
a questão pode ser assim formulada: que deus é esse que, para
não condenar mais pecadores ao lnferno, exige em troca a
imolação até à morte de crianças inocentes? É que o deus de
jesus não é, de certeza!

--88--

12
evangelizar a senhora de fátima
evangelizar a senhora de fátima. pode ser chocante, mas é isso
que nunca foi feito, desde 1917, e que urge fazer sem mais
adiamentos. abandoná-la, pura e simplesmente, está visto que não
resulta. com bispos ou sem eles, com padres ou sem eles, as
pessoas continuarão a caminhar para fátima e a recorrer à
senhora de fátima. continuarão a fazer promessas. continuarão a
despejar lá muito do seu dinheiro e do seu oiro. continuarão a
autoflagelar-se sem dó nem piedade.
porque sim. porque têm necessidade disso. porque enquanto
continuarem a não ser acolhidas e escutadas e atendidas por
ninguém na terra, nomeadamente, pelos políticos e respectivos
governos, pelas igrejas e respectivos pastores, jamais deixarão
de procurar que alguém as acolha e escute e atenda nos céus.
e se não conseguem saír da terra e chegar aos céus, fazem-se
transportar imaginativamente até lá. e nem é assim difícil.
basta determinar, por convenção, que certas zonas da terra não
são mais terra, mas pedaços de céu na terra, zona privada da
divindade, terra sagrada, santuários ou casas de deus, basílicas
e quejandos, onde deus e os seus exércitos celestes estão à
disposição dos humanos em aflição. depois é só começar a
caminhar, mais ou menos regularmente para esses sítios. ou, pelo
menos, sempre que a necessidade aperta. e o desespero do
quotidiano começa a ser insuportável.
o curioso é que, ao proceder-se assim, fica, depois, a ilusão de
que as coisas até resultam. mas é só a ilusão. porque os
problemas de fundo mantêm-se, quando não até aumentam, de
ano para ano, de geração para geração. tanto que só são

--89--

suportáveis com doses e mais doses de ópio. também este ópio


religioso que, em portugal, dá pelo nome de senhora de fátima.
está visto que, no nosso país, nenhum pedaço de terra é,
actualmente, mais coutada da divindade e dos seus exércitos
celestes do que fátima. e ninguém é mais mensageiro dessa
divindade sem rosto e distante, do que a senhora de fátima. por
isso, sempre haverá quem se assuma como nômada, nem que seja por
uns dias, e caminhe para lá, a pé. ou de transporte colectivo,
alugado para esse fim. ou de carro familiar com orações
murmuradas. com aflições sem conta nem medida, com desesperos
insuportáveis.
todos se dizem movidos por uma fé religiosa que vem dos
antepassados. dos antepassados dos antepassados. o que é uma fé
religiosa que nunca foi evangelizada. que tem ainda tudo a ver
com um inconsciente pessoal e colectivo mais ou menos animista,
onde, até hoje, nunca chegou a penetrar a boa nova libertadora
de jesus de nazaré, o cristo, que foi crucificado, entre outras
razões, por ter revelado com a sua palavra e a sua vida
militante, que mesmo o templo de jerusalém não era casa de deus,
mas covil de ladrões, e que deus não mora em templos feitos pela
mão do homem, mas no mais íntimo de cada um/cada uma de nós,
sempre à espera que nos decidamos a escutá-lo, a acolhê-lo e a
atendê-lo como filhas e filhos seus, mais do que pedir-lhe que
nos escute, nos aculha e nos atenda.
a igreja que está em portugal não pode ignorar estas coisas. e
não tem ignorado. mas, infelizmente, tem-no feito da pior
maneira. em lugar de evangelizar fátima e a senhora de fátima,
tem-se aproveitado do fenómeno. não rema contra a corrente do
inconsciente colectivo animista das populações que recorrem à
senhora de fátima, numa confrangedora manifestação de alienação
religiosa que desumaniza quem a protagoniza. ao contrário,
procura manter-se na corrente e aproveitar-se dela. até
financeiramente. sobretudo, financeiramente. o que é um pecado
que brada aos céus.
são milhares e milhares de contos, porventura, milhões e milhões
de contos que todos os anos a senhora de fátima entrega

--90--

à igreja católica, de bandeja. e totalnente isentos de impostos.


inclusivamente, com dispensa de alguma vez ela ter de declarar
publicamente qualquer quantitativo. e também com a dispensa de
alguma vez ela ter de informar o que é que faz, depois, a tanto
dinheiro.
evangelizar a senhora de fátima. eis a prioridade das
prioridades pastorais da igreja que está em portugal. não é
fácil. É mesno martirial. talvez por isso nunca tenha sido
verdadeiramente tentado. pois exige da igreja; de quantos e
quantas a constituímos - a começar, pelos bispos, presbíteros,
religiosas e religiosos -, radical conversão ao reinado de deus,
misteriosamente, actuante no mundo, por força e instigação do
sempre subversivo e desordeiro espírito santo, incansável
criador de fraternidade e de igualdade e, por isso, o maior
desestabilizador das hierarquias e dos privilégios que teimamos
em construir, sem nos darmos conta de que umas e outros são
pecado, e pecado que mata.
mas não é só a conversão ao reinado de deus que é evangelizar a
senhora de fátima exige de nnós. também exige fé. não
evidentemente aquela fé religiosa, mais ou menos animista, que
nasce com cada homem/mulher que vem a este mundo, mas fé no
evangelho ou boa notícia de jesus de nazaré, o ressuscitado que
antes foi crucificado, exactamente por não se ter aproveitado da
religião - como faziam os príncipes dos sacerdotes e outros
dirigentes de então -, mas por ter tido a lucidez e a audácia
bastantes para revelar que a religião é um demónio que
desumaniza quem se deixa ir por ela, um dmónio que transforma em
demoníaco quem se deixa ir por ela, a ponto de uma tal pessoa
nem hesitar em matar - como numa santa e orgiástica cruzada, os
seus irmãos e irmãs - em nome do deus a quem presta culto.
evangelizar a senhora de fátima. com a igreja, na realização
desta prioridade pastoral, estará também maria de nazaré, a mãe
de jesus e sua primeira discípula já ressuscitada. que se tornou
na primeira de todas as criaturas, não por ter dado à luz,
fisicamente, jesus, mas por ter escutado a palavra de deus e por
ter vivido de acordo com ela, isto é, por ter passado da fé
religiosa

--91--

mais ou menos animista, para a fé no evangelho ou boa notícia de


jesus, o surpreendente filho do espírito que lhe saíu das
entranhas.
maria de nazaré, que de mãe carnal de jesus, passou a sua
primeira e exemplar discípula, não tem nada a ver com a senhora
de fátima. É mesmo antípoda dela. e é a primeira interessada na
sua evangelização. para que, de senhora de fátima passe a maria
de nazaré, isto é, de fonte de alienação popular e de ópio
popular passe a companheira do povo aflito e empobrecido. mas
companheira no jeito divino de jesus, seu filho: a companheira
que, em vez de anestesiar consciências e corpos em aflição,
desperta e liberta umas e outros para projectos concretos,
pessoais e colectivos, de construção de fraternidade e de
igualdade, de liberdade e de solidariedade, bem alicerçados na
justiça.
evangelizar a senhora de fátima. a tarefa é ciclópica.
martirial. mas inadiável. se, por alturas de 1917, a igreja em
portugal tivesse vivido verdadeiramente ocupada a evangelizar à
maneira de jesus de nazaré, as populações; se a catequese que
ministrava às crianças e as pregações que fazia nas paróquias
tivessem sido uma catequese e umas pregações evangelizadas, de
certeza que não teria sequer aparecido a senhora de fátima aos
pastorinhos.
a senhora que eles viram não era maria de nazaré, a mulher que,
de forma exemplar, escutou a palavra de deus e a pôs em prática,
a ponto de até engravidar dela. era uma espécie de deusa mais ou
menos mítica, nos antípodas do evangelho de jesus, que os
perseguia com ameaças e com anúmcio de castigos. e que falava de
um deus sem entranhas de misericórdia que, evidentemente, não
era, não podia ser, não pode ser, o deus de jesus, pai/mãe nosso
muito querido, e que muito nos quer.
--92--

13
fia-te na virgem e não corras!
"fia-te na virgem e não corras, verás o tombo que levas." o
ditado é popular e encerra uma sabedoria teológica que faz
inveja à própria teologia (mariana) da libertação. deveria, por
isso, ser esculpido à entrada de todas as igrejas e capelas
dedicadas a nossa senhora, a começar, evidentemente, pela
chamada capelinha das aparições, em fátima, e pelo soberbo
santuário que domina todo aquele recinto, pretensamente sagrado,
mas que, se calhar, é hoje dos mais sacrílegos recintos do
mundo, onde os nomes de deus e da virgem são sistematicamente
maltratados e vilipendiados por uma religião e um culto, cujos
responsáveis maiores não só os invocam em vão, como até os
invocam de forma teologicamente desviada e enganadora.
É sem dúvida muito doloroso ter de escrever-dizer isto. e muito
mais doloroso ainda ter de o reconhecer, sobretudo, de forma
pública. mas, se pensarmos bem, à luz do evangelho e da prática
exemplar e alternativa de maria, a mãe de jesus, veremos que é,
sobretudo, em fátima que, hoje, os nomes de deus e da virgem são
mais maltratados e vilipendiados, porque são invocados por
pessoas que o fazem, sem, ao mesmo tempo, se empenharem a sério
na consciencialização-libertação das populações empobrecidas, as
quais, às centenas de milhares, todos os anos lá se dirigem com
expectativa de milagres que, afinal, pertence a todos nós, seres
humanos, realizar; milagres que essas mesmas populações
empobrecidas, na sua ingenuidade e boa-fé, continuam a pensar
que pertence a deus e à virgem realizar.

--93--

com as coisas neste pé, é mais do que evidente que nem aquele
ditado popular esculpido à entrada das igrejas e capelas
dedicadas a nossa senhora (nunca mais o dinheiro das populações,
finalmente, consciencializadas, entrava nos mealheiros-caixas de
esmolas e nos cofres que todas elas têm dentro, em lugares de
destaque!), nem a libertadora teologia mariana que ele contém e
divulga é pregada e difundida por entre as populações católicas
que regularmente as frequentam, mormente, as de mais nomeada e
também de mais rendimento comercial. pelo contrário, esta
libertadora teologia mariana é aí sistematicamente silenciada e,
porventura, olhada até como blasfémia.
em seu lugar, os responsáveis por todos os santuários marianos
preferem cultivar e promover uma outra teologia mariana, que,
por sinal, dá milhões aos seus mais directos patrocinadores,
embora, ao mesmo tempo, represente a desgraça maior que, alguma
vez, pode ocorrer às pessoas e aos povos que continuem a
deixar-se fazer por ela.
podemos chamar a esta outra teologia a teologia do "valha-me
nossa senhora" ou, em versão mais portuguesa, "valha-me nossa
senhora de fátima". É uma teologia que, qual ópio do povo, leva
as populações mais empobrecidas a suportarem, como fatalidade
intransponível, o mundo em que vivem e que, pelo menos, para
elas, tem tudo o que é preciso para ser um tremendo "vale de
lágrimas" e um autêntico "desterro". mas não só. para cúmulo,
leva-as também a permanecer nesse mesmo mundo, geração após
geração, escandalosamente resignadas, apenas "gemendo e
chorando", em vez de tudo fazerem para lhe porem termo e o
transformarem num mundo com o máximo de condições de dignidade
para todos.
estamos, assim, perante duas teologias marianas distintas, mas
só uma delas é verdadeira. e é preciso discernimento para
acertar na verdadeira, o que nem é tão difícil assim, se, é
claro, atentarmos nos frutos que uma e outra produzem; porque,
se em vez de atentarmos nos frutos de uma e de outra, nos
deixarmos levar pela roupagem com que cada uma delas se nos
apresenta, corremos o risco de tomar por verdadeira a falsa, só
porque ela

--94--

veste roupa piedosa, quando, afinal, a verdadeira é a que


ostenta uma certa cor ateísta, ou, pelo menos, arreligiosa.
optar por uma ou por outra não é indiferente para as pessoas e
os povos. porque, também aqui, pode-se dizer, com total
propriedade, "diz-me qual é a tua teologia (qual é o teu deus) e
dir-te-ei quem és e qual é a tua qualidade de vida".
ora, só quem quiser ser cego é que não vê que, tanto em portugal
como no mundo católico em geral, a teologia mariana que até hoje
as populações mais empobrecidas têm seguido e aplicado nas suas
vidas não é, infelizmente, a verdadeira, sintetizada no "fia-te
na virgem e não corras, verás o tombo que levas", mas a outra, a
teologia mariana falsa, sintetizada no "valha-me nossa senhora
(de fátima)".
as consequências estão à vista, tanto no nosso país, como no
resto do mundo católico. basta ver que é nestes países que as
populações católicas mais praticantes desta teologia desviada e
heterodoxa são também, duma maneira geral, as mais culturalmente
subdesenvolvidas, as mais socialmente empobrecidas, as mais
politicamente desorganizadas e as que, geralmente, votam mais à
direita contra as grandes reformas de fundo.
precisamente, o contrário do que gosta de cantar a virgem de
nazaré, e mãe de jesus, para quem o deus que a fez a ela é um
deus politicamente interveniente e subversivo, pois sempre
"derruba os poderosos dos seus tronos e levanta os humilhados,
enche de coisas boas os que têm fome e manda embora os ricos
de mãos vazias" (lc 1, 52-53). i (i É impossível negar que a
principal responsabilidade deste desastre, com foros de
autêntico genocídio espiritual, vai inteira para a igreja
católica. concretamente, para todos nós, os cristãos e cristãs
que a constituímos. mas, de modo muito especial, para as
teólogas e os teólogos cristãos e todos os pastores - bispos e
presbíteros - que têm estado à frente de cada uma das múltiplas
igrejas locais, em que ela historicamente acontece e se realiza.
entretanto, porque também no nosso país sempre fomos
catequizados como povo para seguirmos e praticarmos a teologia
mariana do "valha-me nossa senhora (de fátima)", em vez da

--95--

libertadora teologia do "fia-te na virgem e não corras, verás o


tombo que levas", acabamos naturalmente por ser um povo que
ainda hoje, nas dificuldades e nas aflições que nos batem à
porta, começamos logo a pensar a que santo ou santa nos havemos
de apegar e que promessa poderemos fazer, para que ele ou ela
nos livre delas.
depois, quando as santas e os santos dos altares não nos
protegem (na nossa cegueira, nem sequer nos damos conta de que
são santos e santas de madeira ou de caco, que não comem nem
bebem, não falam nem ouvem e nem sequer se sabem defender quando
algum ladrão lhes deita a mão para com eles fazer bom dinheiro
no mercado de santos), viramo-nos, então, para os "santos" e as
"santas" deste mundo, isto é, aqueles e aquelas que temos por
mais fortes e mais poderosos do que nós, junto dos quais vamos,
de chapéu na mão e de mão estendida pedir favores, a troco de
presentes, ou pelo menos a troco de reverência e de
subserviência. uma operação, vezes sem conta repetida, que, por
ser intrinsecamente idolátrica, nos devora a alma e jamais nos
deixarÁ chegar a ser pessoas de corpo inteiro, libertas,
autónomas, independentes, criadoras, responsáveis e donas do
próprio destino.
tornamo-nos, por isso, num povo que ainda hoje, apesar de contar
com mais de oito séculos de história, continua a não ser capaz
de contar consigo próprio, com o seu próprio esforço, com a sua
imaginação, com a sua criatividade, com o seu engenho e arte,
com as suas capacidades, para fazer frente às dificuldades e às
aflições (o desemprego, por exemplo) que, com frequência, para
não dizer ininterruptamente, lhe batem à porta.
pelo contrário, sempre contamos com os de fora, seja nossa
senhora de fátima, nossa senhora da saúde, nossa senhora das
dores, nossa senhora do leite, ou s. bentinho da porta aberta,
seja o senhor fulano de tal, a senhora fulana de tal, o deputado
a, o deputado b, o empresário amigo do padre, o sr. doutor, a
caixa de previdência, a cee-união europeia, no estilo, "dá-me um
subsídio, que eu dou-te a minha liberdade".
pois bem, só a libertadora teologia mariana do "fia-te na virgem
e não corras, verás o tombo que levas" fará de nós um

--96--

povo outro, liberto para a liberdade, audaz, criativo,


imaginativo, alegre, solidário, sem deuses nem chefes. porque é
uma teologia que, em vez de nos pôr na dependência de deus,
algures fora de nós, ou de outros senhores e senhoras que lhe
fazem as vezes, abre-nos à misteriosa presença do deus que fez
de maria de nazaré uma mulher para os demais, serva do senhor e
dos pobres, e não senhora de ninguém, e que está também no mais
íntimo de cada um e cada uma de nós, a potenciar-nos para
sermos, como ela foi, homens e mulheres para os demais, irmãos e
irmãs, alegremente disponíveis para dar até a própria vida pela
vida do mundo.

--97--

14.
eu, maria, mãe de jesus, não tenho nada a ver com
a senhora de fátima
o que é que maria de nazaré, a mãe de jesus, pensará de
fátima? mais concretamente, o que é que ela pensará da senhora
de fátima? e do culto que em fátima lhe é prestado? será que
também ela acha que fátima é o altar do mundo? nesse caso, de
que deus? e como é que ela vê as peregrinações que todos os dias
13, de maio a outubro, ali têm lugar, com centenas de milhares
de pessoas juntas numa esplanada, de pé ou de joelhos, ao sol ou
à chuva? e que terá ela a dizer das promessas que os pobres, em
momento de grande aflição, lhe fazem e que, depois, ainda por
cima, cumprem fielmente, com medo de que ela os castigue? que
dirá, igualmente, ao ver tantas e tantas pessoas de joelhos, até
sangrar, ou a rastejar que nem bichos, entre a cruz alta e a
chamada capelinha das aparições? e de tantas e tantas outras
pessoas que, durante 10-15 dias, vão, a pé, pelos caminhos e
estradas de portugal, até fátima? será que se sente honrada com
tudo isto? e será que vê em todos estes comportamentos
manifestações de fé cristã ou, pelo contrário, vê em tudo isso
manifestações de medo, de subdesenvolvimento, de crueldade, numa
palavra, de paganismo, que resiste à influência libertadora do
evangelho de jesus?
jornal fraternizar sentou-se, um dia destes, a reflectir estas e
outras questões semelhantes, com vistas ao destaque para este
mês de maio. tinha consciência do melindre que elas representam,
mas nem por isso as evitou. invocou, também, o espírito santo,
aquele que fez de maria de nazaré, a mãe de jesus e a mãe de
toda a humanidade, mas especialmente da mais
empobrecida. ficou depois longo tempo à escuta em silêncio,
como quem espera uma revelação.
até que escutou, com toda a nitidez, esta boa notícia que
interessa a todo o povo: eu, maria de nazaré, mãe de jesus, não
tenho nada a ver com a senhora de fátima, nem com nada do que em
fátima se realiza, a coberto do meu nome. e o deus que lá é
invocado também não tem nada a ver com o deus de jesus, meu
filho.
por isso - prosseguiu - avisada andará a igreja, em portugal,
se, em vez de continuar a promover fátima, a abandonar
definitivamente. e avisados andarão os institutos religiosos se
se desfizerem, quanto antes, das casas que construíram em fátima
e forem, com toda a simplicidade, morar entre as populações
empobrecidas do país e com elas, tanto as populações das aldeias
do interior como as populações dos bairros degradados, que
crescem nas periferias das grandes cidades.
hiperinflação de maria
há, hoje, na vida da igreja católica, uma hiperinflação de
maria, o que não é saudável. e dá origem a aberrações como as de
fátima. porque a pedra angular da humanidade nova que está em
construção na história, e da qual a igreja deverá ser o
principal sacramento, é jesus cristo, o crucificado que
ressuscitou, não é maria.
maria também é importante na chamada economia da salvação. É até
decisiva. não tanto por ser a mãe carnal de jesus, mas sim por
ser a sua primeira discípula, tornada, por isso, discípula
exemplar, modelo de todas as discípulas e de todos os
discípulos. ou, como reconhece a mais antiga das quatro
narrativas evangélicas, marcos (3, 31-35), por ter sido aquela
criatura humana que, mais e melhor do que nenhuma outra, foi
capaz de ouvir a palavra de deus e realizá-la na sua vida, sem
desvios, até ao fim.
em maria de nazaré, a palavra de deus conseguiu fazer-se carne e
habitar entre nós e connosco, para sempre. ou seja, o que deus
mais deseja realizar com todo o ser humano, mulher e homem, já
aconteceu em maria de nazaré. conhecê-la é, por isso, conhecer o
que todas e todos havemos de ser também.

--100--

ela tornou-se, então, a primeira criatura duma humanidade nova,


aquela em quem o espírito criador de deus habitou como num
templo e com quem pôde trabalhar sem interregnos. por isso o
filho que lhe nasceu é filho de deus, ainda que possa e deva ter
sido concebido e gerado no decurso de um processo natural, em
tudo idêntico ao de todas as outras crianças.
virgem e mãe
já todos deveríamos saber que a virgindade de maria, de que
falam os evangelhos de mateus e de lucas, e de que tanto se tem
falado ao longo destes vinte séculos de cristianismo, não há-de
ser entendida em chave sexual-genital, mas em chave teológica.
a grandeza de maria, como aliás a de qualquer outra mulher ou de
qualquer outro homem, não consiste em não ter ou em ter
actividade sexual-genital, mas sim em sintonizar ou não
sintonizar com o deus criador, que está continuamente ocupado na
criação de mulheres e de homens à sua imagem e semelhança, até
poder tê-los, finalmente, como interlocutores à sua altura.
dizer que maria é virgem, no sentido teológico, é reconhecer
que, com ela, o deus criador conseguiu o que pretende vir a
conseguir com todas as outras mulheres e com todos os outros
homens. conseguiu encontrar nela uma interlocutora à altura.
isto é, maria de nazaré, por pura graça, à qual foi
espantosamente fiel e da qual se não afastou nem um momento
sequer, sempre protagonizou com o deus criador um diálogo de
amor e de intimidade sem desvios, sem interrupções.
por outras palavras, nunca os deuses da religião, inventados por
medos ancestrais, de que a humanidade ainda se não libertou de
raíz, nem os deuses do dinheiro e do poder, aos quais a
humanidade tantas vezes recorre, na sua impotência e diante dos
quais se ajoelha e logo deles fica escrava, alguma vez
conseguiram atraír a atenção de maria de nazaré. a todos eles,
ela resistiu, com eles jamais colaborou, nunca fez seus os
projectos deles, nem os projectos de quantos se deixam seduzir
por eles, os exploradores e poderosos.
neste sentido teologicamente profundo é que maria de nazaré foi
e é virgem. o que não a impediu, evidentemente, de

--101--

ser mulher casada e mãe. e, como ela é virgem, toda a humanidade


está também chamada a ser. a única maneira, aliás, de chegarmos
a ser humanidade liberta para a liberdade e chegarmos a ser
humanidade humanizada, se assim se pode dizer, bem nos antípodas
da humanidade selvagem que, hoje, duma maneira geral, ainda
continuamos a ser.
sobriedade evangélica
diante da hiperinflação de maria, na actual igreja de jesus,
nomeadamente, na igreja católica romana, não pode deixar de
espantar a sobriedade das narrativas evangélicas, escritas pelas
primitivas comunidades cristãs.
apenas as narrativas de mateus e de lucas falam expressamente do
nascimento de jesus e fazem "reportagens" sobre as
circunstâncias em que ele nasceu de maria.
mas ao contrário do que, ainda hoje, muita gente continua a
pensar, aquelas não são reportagens jornalísticas, mas
reportagens teológicas. o que, aliás, ajuda a compreender por
que são tão diferentes entre si, como diferentes eram os
objectivos teológicos de cada um dos evangelistas.
por sua vez, o evangelho de marcos, que está mais próximo do
acontecimento histórico protagonizado por jesus de nazaré, não
diz nada sobre o nascimento dele, nem sobre a sua mãe, nessa
altura. para este evangelista, tudo decorreu, pelo menos
aparentemente, como costumam decorrer a concepção e o nascimento
de qualquer criança. o extraordinário não era de ordem física;
era de outra dimensão, invisível aos olhos.
e, segundo esta narrativa, foi o próprio jesus de nazaré, o
carpinteiro, filho de maria (mc 6, 3), quem revelou onde estava
o extraordinário, por parte daquela que o havia dado à luz. É
que, em toda a sua vida de mulher, maria foi capaz de
ouvir-seguir, exclusivamente, o deus criador e nunca se deixou
seduzir pelos deuses da religião, do dinheiro e do poder; isto
é, toda ela é a concretização do projecto de deus criador; toda
ela é, por antonomásia, a mulher acabada, a mulher perfeita, a
criação sem defeito, sem desvio, toda ela é o ser humano tal
como esse mesmo deus criador o pensou e o quer. por outras
palavras, diante de

--102--

maria, o deus criador pôde exultar, dançar de alegria, fazer


aliança, verdadeiras núpcias.
nesta mesma linha vai o evangelho de joão, também um dos mais
antigos, juntamente com o de marcos.
maria é aí apresentada, primeiro, como a mulher fiel da antiga
aliança, que - desde o princípio e muito antes da hora (jo 2,
1-11), definitivamente reveladora, que veio a ser, para toda a
humanidade, a morte-ressurreição do seu filho jesus - soube
abrir-se à nova aliança, protagonizada por ele. este facto fez
de maria a primeira e a mais perfeita discípula de jesus, a
ponto de ele a apontar e reconhecer no momento da sua morte na
cruz, como a primeira mulher que, ao mesmo tempo que o gerou a
ele também gerou a comunidade cristã, como primícias, um e
outra, da humanidade nova em construção na história (jo 19,
26-27).
a grande deusa
ora, quem alguma vez passou por fátima, com olhos de ver, e
conhece minimamente a boa notícia libertadora e salvadora que
jesus cristo é para a humanidade, a começar pela humanidade mais
empobrecida, depressa tem de concluir que a senhora de fátima lá
invocada não é, não pode ser, maria de nazaré.
É preciso que se diga sem ambiguidades: maria, a mãe de jesus,
das narrativas evangélicas, não tem nada a ver com a senhora de
fátima. está até nos seus antípodas.
o seu culto, mais do que ser promovido, deve ser desmascarado,
porque envenena a vida das populações. mesmo que, em
determinadas ocasiões, ajude a atenuar-lhes as dores, é como
ópio que o faz; não é como fermento libertador, nem como luz que
consciencializa, menos ainda como graça que humaniza e
fraterniza.
a senhora de fátima tem tudo a ver com a grande deusa dos povos
primitivos, e o culto que se lhe presta no alto da serra d'aire
tem tudo a ver com os ancestrais cultos que então se lhe
prestavam. com a agravante de que, hoje, nem sequer são cultos
genuinamente matriarcais, como terão sido nos tempos mais
primitivos.

--103--

pelo contrário, são cultos habilmente manipulados por solitários


homens do poder, no caso, certos clérigos que, desde cedo, se
puseram à frente de tudo para melhor levarem a água ao seu
moinho e, assim, manterem privilégios sem conta, só possíveis
enquanto na sociedade continuarem a vigorar sistemas violentos e
discriminatórios que impedem a radical igualdade entre os
indivíduos e os povos e, em última instância, atentam contra a
vida e vida em abundância, em todos os indivíduos e povos.
basta ver que, em fátima, tudo está sob férreo controlo do
clero. até o reitor do santuário é um clérigo todo-poderoso. o
santuário é da senhora de fátima, mas só de nome. porque na
realidade é o santuário do senhor reitor que, no cargo,
representa a hierarquia eclesiástica, esse pretenso poder
sagrado que, em última instância, explora monopolisticamente
todo aquele negócio religioso, escandalosamente isento de
impostos e sem que ninguém saiba quanto rende e em que é
aplicado.
igualmente, nas chamadas peregrinações de cada mês, quem sempre
aparece em grande plano e com direito à palavra pública e às
decisões, nunca são mulheres, como seria legítimo ver acontecer,
numa terra que se diz ser da senhora de fátima, mas sim,
exclusivamente, clérigos e dos mais altos dessa estranha
pirâmide anti-evangélica que dá pelo nome de hierarquia
eclesiástica.
e os discursos que eles então produzem são, geralmente,
discursos sem a inspiração do espírito do deus que ressuscitou,
jesus crucificado e que dançou no corpo de maria de nazaré e fez
dela a mãe de deus. são discursos que têm tudo a ver com uma
visão moralista da vida, o mesmo é dizer, não libertam, nem
promovem a libertação das populações que, de boa-fé e
ingenuamente, continuam a correr para fátima, desesperadas que
vivem com problemas e dramas que os políticos deveriam
equacionar e resolver, mas que, infelizmente, não têm estado
para isso.
deus terrorista
É, pois, manifesto, e só quem quiser ser cego é que não vê; que
a senhora de fátima não é maria, a mãe de jesus. nunca foi.

--104--

nenhum teólogo cristão, de boa-fé, pode dizer que é. porque


entre ela e maria de nazaré, a mulher de que nos falam as
narrativas evangélicas, não há nenhum ponto comum. por exemplo,
a mensagem que, desde 1917, é atribuída à
senhora de fátima, não tem nada em comum com a boa notícia
daquele deus que o carpinteiro de nazaré, o filho de maria, nos
revelou e anunciou: um deus que incondicionalmente nos ama e
perdoa, que nos quer bem, que caminha connosco, que é solidário
connosco até ao extremo, que é amigo de publicanos e pecadores !
e come com eles, que não se agrada de sacrifícios humanos; pelo
contrário, está totalmente comprometido na promoção da nossa
libertação, até nos guindar à estatura de filhas suas e filhos
seus.
aquela é, isso sim, uma mensagem que tem tudo a ver com um deus
terrorista, que promove o sofrimento dos pobres e nele,
doentiamente, se compraz; é uma mensagem que nos leva a pensar
que deus é um deus que se alimenta do sangue e do dinheiro dos
pobres e, ainda por cima, lhes mete medo, os escraviza e oprime;
é uma mensagem que nos leva a pensar que deus é um deus que não
dá nada de graça a ninguém, nem sequer a graça, e que só entende
a linguagem dos cifrões e do negócio (concedo-te este favor, se
me deres o teu cordão de ouro ou o teu dinheiro), e nela
catequiza quem se deixa ir por ele.
terço, oração pagã
igualmente, a reza do terço, em que tanto insiste a senhora de
fátima, é outro exemplo flagrante de que ela não é maria, a mãe
de jesus. em lugar nenhum do evangelho consta que, alguma vez,
jesus tenha ensinado as discípulas e os discípulos a rezar o
terço.
e os actos dos apóstolos (1, 14) noticiam a presença de maria,
no seio da primeira comunidade cristã de jerusalém, mas não
dizem que ela estava aí a ensinar as outras discípulas e os
outros discípulos de jesus, seu filho, a rezarem o terço.
a oração que então faziam só podia ser a oração que jesus
ensinou às suas discípulas e aos seus discípulos. e esta em que
consiste?

--105--

consiste, não em repetir até à exaustão, as mesmas palavras,


como quem, por esse truque, consegue adormecer mais depressa,
mas sim em estarmos vigilantes, de olhos bem abertos, para
discernirmos os sinais dos tempos e, assim, descobrirmos por
onde é que, em concreto, está continuamente a passar o espírito
do deus criador, a fim de nos colarmos incondicionalmente a ele,
até nos experimentarmos, de dentro para fora, tão filhas e tão
filhos dele que, com indizível alegria e gozo, nos vejamos, sem
nunca sabermos bem como, a chamar-lhe, como jesus chamava,
"abbá", pai nosso/mãe nossa.
a esta luz, está visto que o terço da senhora de fátima não é,
não pode ser, uma oração cristã; é, isso sim, uma oração pagã,
ainda que tecida com algumas expressões constantes nos
evangelhos cristãos.
de resto, o próprio evangelho de mateus não pode ser mais
esclarecedor a este respeito: "quando orarem, não sejam como as
pessoas fingidas que gostam de rezar, de pé, nas sinagogas e às
esquinas das ruas, para toda a gente as ver" (6, 5). e ainda:
"quando orarem, não façam como os pagãos, que usam de vãs
repetições [o terço não é uma cansativa repetição?], porque
pensam que, por muito falarem, serão atendidos. não sejam como
eles. o vosso pai sabe muito bem do que vocês precisam, antes de
lho pedirem" (mt 6, 7-8).
na guerra colonial
e que dizer do papel de fátima e do papel da senhora de fátima,
nos tristes e amargurados anos da ditadura e da pide, em
portugal, e, sobretudo, nos dolorosos anos da guerra colonial em
África? teria sido possível suportar, durante tantos anos, e sem
nenhuma revolta popular, três frentes duma guerra dessas, sem a
senhora de fátima, sem as peregrinações nacionais a fátima, sem
as promessas à senhora de fátima? quantos cordões de ouro,
quantos anéis e pulseiras, quantas velas compradas e queimadas
estupidamente, quantos milhares e milhares de contos em ofertas
de promessas religiosamente cumpridas por militares e suas
famílias é que, durante esses trágicos anos de guerra colonial,
não entraram nos cofres do santuário de fátima?

--106--
e não há em tudo isto muito daquele crime de lesa-humanidade e
de lesa-pobres que levou o profeta jeremias, primeiro, e jesus
de nazaré, depois, a classificar como "covil de ladrões" o
próprio templo de jerusalém? não há, no santuário de fátima,
muito deste crime também e, por isso, muito de "covil de
ladrões?"
entretanto, nem a senhora de fátima, nem a sua vidente ainda
viva alguma vez foram capazes de dizer uma palavra que fosse
contra o verdadeiro genocídio que era a guerra colonial, nem
sequer uma palavra de solidariedade e de verdadeira simpatia
pelos povos africanos que lutavam pelo mais que legítimo direito
à sua autonomia e independência.
pelo contrário, sempre fátima, em todo esse tempo, deixou nos
militares portugueses e seus familiares a ideia de que maria de
nazaré, a mãe de jesus, era também a mãe dos portugueses, mas,
de maneira nenhuma, era igualmente a mãe dos africanos.
e, por isso, ali estava ela em fátima, para defender e proteger
os portugueses, mas já não estava em angola, nem em moçambique,
nem na guiné-bissau, para defender e proteger os respectivos
povos, apesar de serem eles as maiores vítimas duma guerra que o
regime ditatorial e colonialista de salazar lhes impunha e nos
impunha.
muitas outras coisas típicas de fátima e que lá se promovem,
regularmente, como actos de culto, revelam à sociedade que maria
de nazaré, a mãe de jesus, não tem nada a ver com a senhora de
fátima. porém, o que fica dito basta, até ver.
resta, pois, esperar que a igreja católica que está em portugal,
em vez de continuar a enterrar a cabeça na areia, como a
avestruz, passe a ter a audácia e a humildade de aprender com
maria de nazaré a ser verdadeira discípula de jesus.
de modo que, em vez de prosseguir na exploração da ingenuidade
religiosa e da boa-fé das populações, se disponha corajosamente
e já, a esclarecê-las, a evangelizá-las/libertá-las, nem que,
nesse serviço profético, perca a vida. nunca, como então, será
tão igreja e tão fecunda.

--107--

15
não há nenhum segredo de fátima
a vinda a portugal do cardeal ratzinger, por ocasião das
cerimónias religiosas do 13 de outubro último, em fátima, deu
pretexto à comunicação social portuguesa para voltar a falar do
chamado "terceiro segredo de fátima". mas o mais estranho é que
o próprio cardeal ratzinger, em vez de desfazer, duma assentada,
todos os equívocos que por aí proliferam, deitou mais algumas
achas para a fogueira e, assim, alimentou ainda mais esta
espécie de delírio generalizado em que alguns, pelos vistos,
insistem em fazer-nos viver.
como teólogo que também é - depois que foi para a cúria romana,
perdeu, infelizmente, a audácia profética que antes havia feito
dele uma referência esperamçosa para os pobres e suas lutas de
libertação -, ratzinger tinha obrigação de, sem papas na língua,
dizer aos jornalistas e à população em geral que não há nenhum
segredo de fátima a desvendar. e que tudo o que, a este
propósito, por aí se tem dito e escrito não passa de doentia
fantasia e de preocupante infantilismo que mais e mais
contribuem para manter as populações amedrontadas e oprimidas,
quando é imperioso e urgente libertá-las do medo em que têm
vivido, para que elas, finalmente, possam assumnir com alegria e
nas próprias mãos, os seus destinos.
na verdade, ratzinger, como teólogo que é, tem obrigação de
saber que nem deus, nosso pai e mãe, nem maria, a mãe de jesus e
nossa companheira e irmã, existem para andar por aí a brincar às
aparições e aos segredos com certas pessoas mais ou menos
neuróticas e sexualmente reprimidas.

--109--

pelo contrário, a paixão de deus sempre foi dar-se inteiramente


a conhecer aos seres humanos, para que todos eles, mulheres e
homens, tomem consciência de que são filhos seus e filhas suas,
chamados, por isso, a viver em radical igualdade uns com os
outros e em fecunda e universal fraternidade, tanto económica,
como social e política.
para tanto, nem hesitou em fazer-se, um dia, deus entre nós e
connosco, na pessoa do seu filho, jesus de nazaré, o cristo.
há infelizmente por aí uma certa igreja que nunca se deu a jeito
com homens e mulheres livres, autónomos, criadores e
responsáveis. prefere, em seu lugar, homens e mulheres
amedrontados, tímidos, submissos, ignorantes, analfabetos em
tudo o que diz respeito à vida, inclusive, à vida cristã.
essa igreja sabe que é muito mais fácil lidar com súbditos do
que com mulheres e homens livres e responsáveis. e, por isso, o
que mais promove, com a sua prática pastoral, não é a liberdade,
mas o medo. medo que começa por ser medo de deus, e acaba a ser
medo dos chefes, sejam eles do poder político e económico,
militar e judicial, sejam do poder religioso.
ao longo dos séculos, sempre essa igreja acolheu e realizou uma
catequese com laivos de terrorismo. e, sempre que invocou e
invoca o santo nome de deus, não é tanto para comunicar boas
novas às populações, cuja consciência ela controla, mas
sobretudo para lhes anunciar castigos, cada qual o mais
aterrador.
É também essa igreja que está sempre disposta a acreditar em
visões e aparições de santos e santas, do coração de jesus e de
nossas senhoras a criancinhas e a outras pessoas totalmente
despojadas, como elas, de qualquer sentido crítico. muito
especialmente, quando tais visões e aparições se apresentam com
um tipo de discurso moralista e catastrófico, e a recomendar
mais orações nos templos, onde o clero dessa igreja é rei e
senhor, assim como mais frequência e fervor nas devoções que ele
aí regularmente promove.
essa igreja sabe que, assim, o sucesso é garantido. os templos
voltam a ser procurados, as caixas das esmolas ou cofres que lá
existem voltam a encher-se, certas obras eclesiásticas que não
havia maneira de serem concluídas, por falta de verba, podem

--110--

ser acabadas e outras obras de maior vulto podem ser projectadas


e realizadas, porque dinheiro é coisa que não faltará, lá, onde
se diz que houve uma visão ou aparição.
mas é por demais manifesto que uma igreja que não tem escrúpulos
em recorrer a meios destes para alcançar os seus fins é uma
igreja demoníaca, como tal, bem nos antípodas do que deve ser a
igreja que se reivindica da memória subversiva e perigosa de
jesus de nazaré, o crucificado que ressuscitou.
mas é uma igreja muito assim que, no nosso país, tem dado
guarida às chamadas "aparições de fátima" e quejandas. e,
ultimamente, tem alimentado esse delírio mais ou menos
generalizado, que dá pelo nome de "segredo de fátima". um
delírio que inevitavelmente se desenvolve entre populações ainda
oprimidas e sacrilegamente mantidas no medo e na ignorância a
todos os níveis, também e sobretudo ao nível teológico.
manda, porém, a verdade que se diga, sem rodeios e com toda a
frontalidade, que uma igreja assim não só é vomitada por deus,
nosso pai e mãe. também as próprias populações, à medida que se
libertam da ignorância e do medo, lançam-na fora das suas vidas,
como aprenderam a fazer ao sal que perdeu a força de salgar.

--111--

16
o culto a n.a s.a de fátima afasta-nos do deus que se revelou
em maria de nazaré
e se a actual devoção a nossa senhora é um tremendo desvio
teológico que nos afasta de deus, nomeadamente, do deus revelado
em jesus e maria de nazaré? e se o seu culto-hiperdolia é como
lhe chamam os especialistas marianos, para o distinguir do dos
santos, a que chamam simplesmente culto de dolia - tem muito de
idolatria? não é, realmente, um culto que fomenta a religião,
mais do que a criatividade humana? que alimenta a alienação,
mais do que a militância libertadora e solidária? que promove a
resignação, mais do que o esforço individual e colectivo? que
desenvolve o egoísmo, mais do que a entrega da própria vida pela
vida do mundo? e não é verdade que, lá, onde mais cresceu a
devoção a nossa senhora, a humanidade ficou mais atrasada e
subdesenvolvida, analfabeta e em situação de imerecida pobreza e
até miséria? não é verdade que a devoção a nossa senhora serviu,
sobretudo, para perpetuar, sem revolta popular, um mundo que tem
mais de "vale de lágrimas", do que de terra de justiça e de
fraternidade, mas onde, mesmo assim, as suas devotas e devotos
se têm limitado a "gemer e a chorar", em vez de lutarem com
todas as forças contra os males que as afligem e suas
respectivas causas? não é verdade que a devoção a nossa senhora
tem sido sobretudo freio que atrasou e até impediu o
protagonismo das mulheres, tanto na sociedade como na igreja,
especialmente na igreja? não se pode dizer de nossa senhora que
ela cresceu e as mulheres diminuíram? e não deveria ter sido o
contrário, isto é, que as mulheres crescessem e ela diminuísse?
aliás, não foi para que nós, os seres humanos, mulheres e
homens, crescêssemos em estatura e em idade, em sabedoria e em
graça,

--113--

que deus nos deu jesus e maria de nazaré? mas ao falar tanto de
nossa senhora, em lugar de falar simplesmente de maria de
nazaré, a igreja católica não cometeu uma traição de tremendas
consequências? não criou um modelo cultural de dominação e de
resignação, nos antípodas da boa notícia libertadora de deus,
que é o evangelho de jesus, e do qual maria faz parte? mas,
afinal, maria é para ser idolatrada ou é um modelo vivo, em quem
nós, mulheres e homens, havemos de pôr os olhos? É uma
privilegiada de deus, ou a nossa irmã e companheira mais velha,
na qual vemos por antecipação, o que haveremos de ser também?
ser da família não conta
nos primeiros tempos da igreja, maria começa por aparecer
associada a jesus de nazaré, como sua mãe carnal, mas essa não
é, de modo algum, a dimensão que mais interessa às comunidades
cristãs primitivas.
aliás, o evangelho de marcos (3, 31-35), o mais antigo dos
quatro, chega a apresentar maria, juntamente com os demais
familiares de sangue de jesus, como exemplo paradigmático de
resistência activa e de não-adesão à sua via de libertação e de
misericórdia. um homem que faz o que jesus faz e ensina o que
jesus ensina, tão diametralmente oposto ao que faziam e
ensinavam os chefes religiosos e políticos do templo de
jerusalém e do sinédrio judaico, só pode ser, nos critérios
culturais e religiosos dominantes da época, um louco, um
possesso do demónio, como, aliás, passam a dizer dele todos os
seus opositores e inimigos (ver, por exemplo, mc 3, 22).
como se vê, marcos nem a mãe de jesus excluiu desta atitude
hostil, por parte da sua família de sangue. de tal modo quis
proclamar que, à luz de deus criador, não são a carne e o sangue
que contam nestas coisas da salvação da humanidade, mas apenas a
gratuidade do amor de deus, que não hesitou em dizer que até
maria, enquanto mãe carnal de jesus, esteve entre aqueles e
aquelas que não o entenderam e não o acolheram.
com isso, quer simplesmente dizer que ser ou não ser da família
carnal de jesus, ser ou não ser do seu sangue, é coisa que

--114--

não tem qualquer valor para deus e para a salvação que deus dá
gratuitamente a todos os seres humanos. de maneira nenhuma
marcos quis dizer que maria de nazaré não aderiu a jesus, seu
filho, ou que não se fez discípula dele, que não o entendeu e
acolheu. o que ele, com este episódio, proclama aos quatro
ventos é que a carne e o sangue não contam para nada, nestas
coisas da graça e da salvação de deus.
pelo que maria e todos os demais familiares de jesus estiveram,
em relação à salvação de deus, no mesmo pé de igualdade que a
humanidade em geral. porventura até com dificuldades acrescidas,
já que a tendência natural dos familiares do profeta de deus
será sempre tentar tirar proveito dele, sem terem de fazer
qualquer esforço pessoal, sem aceitarem passar por uma
verdadeira metanóia, isto é, sem terem de passar por uma
verdadeira mudança de ser e de viver. como se, alguma vez, deus
fosse fonte de privilégios para alguém, para alguma família ou
para algum povo ou nação. ou como se, diante de deus, alguém,
alguma vez, pudesse invocar direitos adquiridos, que o
dispensasse de reconhecer, como maria reconheceu, a total
liberdade e a total gratuidade da sua iniciativa.
maria, como todas as outras mulheres e homens de todos os tempos
e lugares, teve de dar a sua adesão a jesus cristo, crer na sua
palavra e deixar-se conduzir pelo mesmo espírito que o conduziu
a ele. e isso ela fez, mais do que nenhuma outra criatura, desde
a primeira hora.
esse, e apenas esse, é o seu valor, no dizer teológico das
primitivas comunidades cristãs. não o facto histórico de ter
sido a mãe carnal de jesus, mas o ter escutado a palavra de
deus, que ele historicamente é, e tê-la posto em prática (mc 3,
35).
e maria fê-lo em grau tal, que, para sempre, ficou associada à
boa notícia de deus, lado a lado com jesus de nazaré. de tal
modo que as comunidades cristãs primitivas vêem em jesus e
maria, não tanto o filho e a mãe, simplesmente, mas o novo par
humano, o novo adão e a nova eva, em quem deus, pela vez
primeira, conseguiu realizar, integralmente, a sua criação. por
isso, jesus e maria de nazaré ficam, para todo o sempre, como o
modelo acabado do que toda a humanidade há-de chegar também

--115--

a ser, à medida que toda ela se abrir ao espírito de deus e se


deixar conduzir por ele, como ele e ela deixaram.
primeira discípula
esta boa notícia, proclamada pelas primeiras comunidades
cristãs, faz de maria de nazaré a primeira e maior discípula de
jesus, o cristo. ainda ele não havia sido historicamente
concebido, e já maria se lhe abria sem reservas. foi até o seu
"faça-se em mim", que tornou possível a encarnação do verbo ou
palavra de deus entre nós e connosco (lc 1, 26-38).
e, quando maria de nazaré acolheu esta palavra ou verbo de deus,
na sua vida e no seu seio, é que se experimentou mulher outra,
radicalmente liberta e salva, por pura graça. a palavra de deus
que ela acolheu e que, depois, recebeu o nome histórico de
jesus, é que a salvou a ela. e salvará a todos os seres humanos
como ela, na medida em que nós, mulheres e homens, fizermos como
ela fez, dissermos também o nosso "faça-se em mim", como ela
disse.
maria de nazaré não é, então, como equivocadamente nos têm
ensinado as catequeses católicas, uma privilegiada,
relativamente ao resto da humanidade. o que deus fez com ela é o
que está sempre a tentar fazer connosco, assim nós lhe demos a
mesma oportunidade que ela lhe deu.
aliás, seria inconcebível e até blasfemo pensar deus a conceder
privilégios a alguém. como diz a revelação bíblica, deus não faz
excepção de pessoas (rm 2, 11). todos os seres humanos, mulheres
e homens, são filhos seus e filhas suas. e, se alguém é objecto
de especial atenção, por parte de deus, são precisamente os
menos capazes, os pobres e oprimidos, os excluídos, os
rejeitados, os marginalizados, os considerados pecadores pelos
sistemas religiosos dominantes.
aliás, o evangelho de lucas, por exemplo, é isso que proclama
relativamente a maria de nazaré. não hesita em pôr na boca dela
a proclamação de que deus olhou para a humilhação da sua serva -
esta palavra "humilhação" diz muito mais que a palavra
"humildade", como gostam de traduzir quase todas as bíblias e
fez grandes coisas nela, por pura graça (lc 2, 48-49).
---116--

dizê-lo assim não é um privilégio que se anuncia, mas a boa


notícia que a humanidade jamais havia escutado. na verdade, as
religiões sempre haviam ensinado, e ainda hoje continuam a
ensinar, contra a revelação bíblica e sobretudo cristológica de
deus, que deus gosta dos bons e rejeita os maus. que salva os
que se portam bem e castiga os que se portam mal.
e não é nada assim. maria de nazaré faz parte da boa notícia de
deus, ao lado de jesus e graças a jesus, precisamente, porque
também ela foi capaz de se dar conta de que deus nos salva por
pura graça e não pelos nossos méritos. como tal, não temos nada
que passar a vida a tentar comprar os favores de deus e as
graças de deus. como se ele fosse um negociante ou o dono duma
multinacional religiosa que vende a salvação por dinheiro, ou a
troco do nosso bom comportamento.
maria de nazaré, ao contrário dos chefes religiosos do templo de
jerusalém e de todos os templos do mundo, deu-se conta de que
deus nos salva por pura graça e proclamou-o aos quatro ventos.
com alegria e num poema ainda hoje altamente subversivo e
polémico - o magnificat -, como subversivo e polémico é todo o
evangelho de jesus, de que esse poema é uma espécie de
frontispício.
deusa das deusas
infelizmente, com o passar dos anos e à medida que a igreja de
jesus começou a transformar-se numa religião mais do império
romano, com os seus sacerdotes e os seus ritos, com os seus
cultos e as suas liturgias levíticas nos templos, tudo se
alterou.
e a boa notícia de que deus nos salva por pura graça - numa
iniciativa, ainda hoje, impensável para a generalidade dos seres
humanos e que é fruto do infinito amor criador e libertador que
ele tem a todas as mulheres e homens, por igual - deu lugar à má
notícia que todas as religiões anunciam e que, em síntese, diz:
se queres salvar-te, frequenta os nossos cultos, paga os teus
dízimos aos sacerdotes e pastores, obedece a todas as normas que
as nossas catequeses ensinam, vem regularmente aos nossos
templos e esforça-te por cumprir tudo o que te dizem os pastores
e sacerdotes.

--117--

foi depois desta traição que maria de nazaré perdeu a


dimensão teológica que as primeiras comunidades cristãs
viram nela e que proclamaram como parte integrante da boa
notícia de deus, que é o evangelho de jesus, o cristo, e passou
a ser olhada como uma espécie de deusa das deusas, raínha das
raínhas, senhora das senhoras, igual ou mesmo acima do próprio
deus e sempre bem melhor do que ele.
(segundo esta teologia blasfematória, deus seria o
castigador dos pecadores e maria, o manto de misericórdia, junto
da qual os humilhados e ofendidos do mundo, as vítimas de todos
os sistemas, também dos sistemas religiosos, poderiam
acolher-se, para pedir a sua protecção e a salvação que os
grandes deste mundo, sistematicamente, lhes recusam, com as suas
sádicas economias e políticas sem justiça e sem fraternidade
solidária.)
ao mesmo tempo, nasceu e desenvolveu-se, como nunca, a
chamada mariologia, em lugar da teologia, e até contra a
teologia.
maria, e não deus, é que passou a ser decisiva para a
salvação da humanidade. de tal modo que hoje parece que a
humanidade pode muito bem passar sem deus, mas o que não pode é
passar sem maria (há lá aberração teológica maior?!).
este desvio teológico, de consequências tremendas para
a humanidade e para a credibilidade da revelação de deus,
continua ainda hoje a fazer-se sentir nas vidas das populações
empobrecidas.
sem que a igreja católica, mesmo depois da revolução
teológica e pastoral que foi o vaticano ii, tenha coragem para o
denunciar.
em vez disso, o que os responsáveis maiores da igreja
católica fazem é continuar a canonizar, sem reservas, festas e
romarias populares em honra de nossa senhora, como se entre esta
e maria de nazaré não houvesse qualquer diferença e ambas fossem
a mesma pessoa. e não são.
nem sequer o facto de essa nossa senhora das festas e
romarias populares ser invocada sob múltiplos e variados
nomes, desde os mais ternos aos mais agressivos ("senhora
das vitórias", por exemplo), tem levado os responsáveis maiores
da igreja católica a suspeitar de que as coisas podem não estar
teologicamente correctas.
aliás, é por demais manifesto que tais festas e
romarias populares em honra de nossa senhora, de modo algum têm

--118--

contribuído para a consciencialização e libertação das


populações que nelas se envolvem, com mais ou menos entusiasmo.
pelo contrário, cada vez mais as populações que as fazem se vêem
atrozmente desamparadas, sem dignidade e sem cultura, sem
participação e sem voz. ou seja, exactamente numa situação
diametralmente oposta àquela que deus quer e que nos revelou,
paradigmaticamente, em maria de nazaré.
dor de alma
entretanto, é uma dor de alma ver as multidões que acorrem aos
santuários ditos marianos e que se envolvem nos festejos e nos
cultos religiosos que certas comissões de festas, habilmente,
promovem, quase sempre com inconfessados fins, que estão nos
antípodas dos fins que deus, revelado nas atitudes e na vida de
jesus e maria, busca para a humanidade.
são multidões e multidões com fome de pão e sede de justiça, a
quem impunemente continuam a roubar a alma e o protagonismo, por
isso, populações aflitivamente subdesenvolvidas, que chegam a
rastejar como bichos do monte e que se desfazem do que têm e do
que não têm, para encher os cofres dos santuários da "senhora"
ou da "santa" da sua devoção, sem se darem conta de que, desse
modo, todos eles se engrandecem e enriquecem à custa do seu
empequenecimento e empobrecimento. exactamente o contrário do
que deus fez com maria de nazaré e que é a revelação do que ele
está empenhado em fazer com todos e cada um dos seres humanos.
assim nós lhe demos oportunidade, como ela deu.
e o mais doloroso é que ninguém dos eclesiásticos, pastoralmente
responsáveis por esses santuários, alguma vez levante a voz para
dizer às populações que estes comportamentos não podem estar
certos, que constituem uma injúria ao nome de maria e muito mais
ao nome de deus, que fez dela o modelo acabado da humanidade que
ele quer criar até ao fim. e que é uma humanidade liberta para a
liberdade, saudável e fraterna, de irmãos e irmãs, desenvolvida
e protagonista, na qual não possa haver mais lugar para abutres
e vampiros que roubem e suguem as populações empobrecidas, sem
que ninguém lhes vá à mão.

--119--

práticas idolátricas
É preciso que se diga, duma vez por todas, que todas estas
práticas pastorais, por mais religiosas que sejam, são práticas
essencialmente idolátricas, nas quais o ídolo se apresenta
disfarçado sob o nome de nossa senhora disto e nossa senhora
daquilo, como se todas essas nossas senhoras fossem a própria
maria de nazaré, quando, bem vistas as coisas e pelos frutos que
produzem os seus cultos, não passam de antigas e míticas deusas
inventadas e imagw adas que se alimentam da vida e do dinheiro,
da saúde e do tempo das populações empobrecidas e oprimidas.
populações que, assim, cada vez mais se encontram
alienadas-desconciencializadas da força libertadora e da
capacidade criadora e transformadora que o verdadeiro deus
colocou nelas, para que elas, em comunhão com ele, mudem a face
da terra.
tem também que se dizer que toda a mariologia que está
subjacente a estes cultos marianos e que, de algum modo, os
justifica, não tem nada de teologia cristã. É fruto do paganismo
que, em lugar de ter sido evangelizado pelas igrejas, as
paganizou.
muita gente desconhece, a este propósito, que antes do
cristianismo, o império romano foi terreno fértil em mitologia
pagã, na qual eram múltiplas as deusas invocadas e adoradas, sob
os mais variados nomes.
com a transformação do cristianismo em religião, e em religião
oficial e única do império, todas essas deusas e respectivos
cultos foram banidos. e os seus santuários passaram, quase
automaticamente, a santuários marianos, agora, sob a invocação
do nome de nossa senhora disto, nossa senhora daquilo. mas, em
muitos casos, a única mudança que se operou foi mesmo só a
mudança do nome. porque tudo o mais se manteve, até as festas e
as formas rituais, assim como as imagens da deusa ou da virgem.
está provado, por exemplo, que no século v um santuário dedicado
à deusa artémis de Éfeso, já conhecida no tempo de paulo (at 19,
23-40j e contra cujo culto idolátrico ele se insurgiu, foi
simplesmente convertido num santuário dedicado a nossa senhora.
igualmente, a famosa catedral de chartres, em frança, dedicada à
virgem mãe, foi construída sobre o primitivo templo

--120--

da "virgem parturiente", uma deusa cultuada pelos povos celtas.


aliás, ainda hoje, se conserva no subsolo da catedral a estátua
da antiga deusa.
sabe-se também que a actual igreja de santa maria antíqua, em
roma, foi edificada sobre o templo da deusa "vesta mater". e a
igreja de santa maria do capitólio ocupa o lugar que foi
dedicado ao deus juno. e tantos outros casos semelhantes.
elucidativo é também o que se passou com a famosa deusa Ísis do
egipto, venerada como a grande deusa criadora do céu e da terra,
dos deuses e dos seres humanos. pois bem, muitas estátuas negras
desta deusa, com hórus, seu filho, ao colo, foram veneradas
(leia-se, adoradas, idolatradas) em templos cristãos, como se
representassem a própria virgem maria com o menino jesus!
abrir-se ao espírito
estes são factos históricos irrefutáveis, que não podemos
ignorar. tão-pouco podemos enterrar a cabeça na areia.
os tempos que vivemos, com o terceiro milénio já a espreitar,
exigem-nos, às crístãs e cristãos e às igrejas que se
reivindicam do nome de jesus e de maria de nazaré, que
reneguemos as atitudes idolátricas e nos abramos ao espírito de
deus a quem tanto ele como ela, no seu tempo histórico, deram
carta branca para realizar nos seus corpos o projecto criador e
libertador de deus.
por isso é que tanto ele como ela, indissoluvelmente unidos, se
tornaram o grande sacramento ou revelação de deus entre nós e
connosco, cada qual à sua medida, mas ambos integralmente.
mas nem jesus, nem maria nos foram dados para que, agora,
passemos o tempo a adorá-los, a gastar com eles o nosso
dinheiro, na construção de templos e catedrais e basílicas, e em
liturgias mais ou menos alienantes que têm o triste condão de
nos desviar da militância libertadora e solidária, em prol duma
humanidade outra, de irmãs e irmãos, em radical igualdade e em
progressiva comunhão de bens e de vida.
jesus e maria de nazaré foram-nos dados para que ponhamos neles
os olhos e mais rapidamente tomemos consciência de que aquilo
que deus fez neles e com eles é o que está empenhado em fazer em
cada uma e cada um de nós também. assim a gente

--121--

consinta, como eles consentiram e, só por isso, é que deus os


constituiu, cada qual à sua maneira e medida, em modelos de vida
humanamente correcta, que havemos de actualizar, em fidelidade
ao mesmo espírito.
deixemos, pois, de pensar e de dizer que maria de nazaré foi uma
privilegiada de deus. o facto de ser mãe carnal de jesus não lhe
deu qualquer vantagem, sobre o resto dos seres humanos, na via
da salvação.
deixemos de pensar e de dizer que apenas ela foi concebida sem
pecado. essa afirmação teológica, a respeito de maria, quer
simplesmente revelar-proclamar que todos os seres humanos,
mulheres e homens, foram concebidos em graça e por pura graça.
aliás, o sacramento do baptismo, mais do que dar-nos a graça de
filhas e de filhos de deus, é uma outra maneira de
revelar-proclamar a boa notícia de que deus nos fez a todas e
todos, sem discriminação, filhos seus e filhas suas.
deixemos igualmente de pensar e de dizer que apenas maria foi
virgem. o que esta afirmação teológica revela-proclama é que,
como ela, todos nós, seres humanos, somos resultado do amor
criador e libertador de deus, e como tal, havemos de tudo fazer
para permanecermos fiéis a este amor, sem nunca nos passarmos
para o campo do adversário ou inimigo de deus, o anti-deus ou
ídolo - hoje, o deus dinheiro -, e, muito menos, obedecer às
suas leis e mandamentos.
finalmente, deixemos de pensar e de dizer que apenas maria foi
elevada ao Çéu em corpo e alma. esta afirmação teológica, a
respeito de maria, revela-proclama que, como ela, todos nós,
seres humanos, crentes ou não, trazemos dentro de nós o espírito
ou impulso criador e libertador de deus que faz de nós mulheres
e homens em contínua transformação-ressurreição, até nos
tornarmos, finalmente, seres-em-deus para sempre. sobre quem a
morte, ao contrário do que parece, não tem já qualquer poder
definitivo. e revela-proclama também que até esta nossa terra
está a ser transformada gradualmente em céu, isto é, uma terra
com deus e em deus.
À luz desta teologia genuinamente cristã, deixemos de vez todas
as nossas senhoras que por aí proliferam, a começar pela

--122--

de fátima, e alegremo-nos com maria de nazaré e com a boa


notícia que, através dela, deus nos deu e continua a dar. e
aprendamos com ela a cooperar com deus criador de filhos e
filhas, irmãs e irmãos, numa aliançl de amor que fará de nós,
mulheres e homens realizados e felizes. para sempre.

--123--

17
muitas conferências ,
nenhum debate
anunciou-se um congresso sobre "fenomenologia e teologia das
aparições", mas o que aconteceu, entre os dias 9 e 12 de outubro
de 97, no centro paulo vi, em fátima, foi, porventura, a maior
desonestidade intelectual católica deste século. promovido por
uma autodenominada comissão científica, presidida pelo actual
reitor da universidade católica portuguesa, e pelo santuário de
fátima - que também financiou todas as despesas e é o mais
beneficiado com o tipo de metodologia nele adoptada -, o
encontro reuniu um significativo número de intelectuais
católicos portugueses, na sua maioria, professores na respectiva
universidade e por ela financiados, mais alguns intelectuais
católicos estrangeiros, uns e outros, expressamente, convidados
com antecedência, para nele intervir, cada qual com uma
comunicação previamente escrita, sem que, entretanto, nenhum
deles pudesse, naturalmente, saber o que iriam dizer os demais.
depois, ao longo dos quatro dias que durou o evento, todos estes
senhores - apenas dois temas foram confiados a outras tantas
professoras universitárias, uma da faculdade de letras de
lisboa, outra da faculdade de teologia da universidade católica
proferiram um total de 45 conferências para um público
proveniente de vários países, composto por mulheres e homens
fanaticamente entusiastas de fátima e da sua senhora, por sinal,
em número bastante reduzido, não muito mais de seis centenas, no
total. mas debate aberto e livre foi coisa proibida neste
congresso, pelo menos, não desejada, já que nunca se lhe dedicou
um minuto que fosse.

--125--

críticos ausentes
por outro lado, intelectuais católicos ou não, mas
publicamente assumidos como críticos de fátima e do típico
cristianismo à portuguesa que fátima promove, a tempo e fora de
tempo, e que é um cristianismo praticamente nos antípodas do
evangelho de jesus e de maria de nazaré, nenhum deles foi
visto por lá.
mas o pior ainda foi verificar que, no decorrer da
última sessão plenária do congresso, um dos conferencistas de
mais responsabilidade na sua condução, o prof. josé jacinto
farias, em comunicação não distribuída aos jornalistas
presentes, permitiu-se nomear explicitamente alguns desses
críticos portugueses mais conhecidos, mas como quem pareceu
querer insinuar que, devido a essas suas posições, eles não
passam de notórios inimigos de fátima, e pessoas de craveira
intelectual pouco relevante.
claro que, entre as várias dezenas de convidados que
intervieram no congresso, alguns deles serão, porventura,
críticos de fátima, mas a verdade é que, se o são, ninguém
chegou a saber.
É o caso, por exemplo, do dominicano português
francolino gonçalves, biblista famoso em jerusalém e companheiro
do célebre crítico de fátima, pe. oliveira faria, cujos dois
livros "perguntas sobre fátima" e "pergunta, sobre fátima ii"
continuam, desde há bastantes anos e mesmo depois deste
congresso, ainda sem convincente resposta.
frei francolino limitou-se, habilmente, a dissertar
sobre o tema que lhe propuseram - "os videntes e os visionários
no profetismo do antigo testamento" - sem, contudo, dizer uma
única palavra sobre fátima, os seus videntes e suas aparições.
o mesmo sucedeu com Émile puech, também professor da
escola bíblica e arqueológica francesa de jerusalém, que
dissertou sobre "as aparições na literatura peritestamentária" e
igualmente não disse uma única palavra sobre fátima, nem as suas
aparições, nem a sua literatura. (ou seja, dois silêncios de
outros tantos especialistas, tremendamente eloquentes que, é
claro, urge saber interpretar.)

za
lve nenhum confronto
também deveras espantoso foi verificar que os próprios
conferencistas convidados a intervir directamente com uma
comunicação, em momento algum do congresso foram chamados a
confrontar uns com os outros os respectivos pontos de vista
sobre o fenómeno de fátima.
terá sido, até, esta ausência de debate entre os diferentes
conferencistas que impossibilitou a formulação de um documento
de conclusões, aprovadas pelo congresso. assim, simplesmente,
não houve conclusões!
qualquer tentativa nesse sentido seria, naturalmente, foco de
tensões e de divisões, e lá se ia por água abaixo tanto
unanimismo e tanta harmonia. o "milagre" da construção e
manutenção desta opressiva torre de babel portuguesa que é,
hoje, fátima e o seu santuário, ter-se-ia convertido então num
verdadeiro pentecostes, com todas as línguas soltas a falar
livremente. só que, neste caso, é quase certo que, do empório
religioso e comercial que fátima materializa não ficaria pedra
sobre pedra. e isto é o que querem evitar a todo o custo todos
aqueles que, actualmente, tiram proveito de fátima, desde os
comerciantes ao turismo, desde a hierarquia eclesiástica às
ordens religiosas lá estabelecidas também com os seus negócios,
isentos de impostos.
pecado contra o espírito santo
perante tudo isto e porque, como por aí se diz, e bem, mesmo
fora das universidades, é da discussão que nasce a luz, pode
concluir-se, com toda a propriedade, que a comissão científica e
o santuário de fátima não quiseram, com a promoção deste
congresso, que se fizesse luz sobre as chamadas "aparições de
fátima".
apenas terão querido canonizar definitivamente fátima e o tipo
de cristianismo à portuguesa que aí se realiza, e dar-lhes um ar
de autenticidade indiscutível, numa cega e interesseira
tentativa de que uma e outro possam prosseguir, terceiro milénio
além, sem percalços de maior, pois assim também os privilégios
deles estão automaticamente salvaguardados.

--127--

porém, um comportamento assim é tudo menos científico e, do


ponto de vista da teologia cristã, materializa mesmo um pecado
contra o espírito santo, do tipo daqueles pecados que o
evangelho de jesus chega a nomear como imperdoáveis (mc 3, 29).
o que, só por si - é com dor que o dizemos, mas não podemos
deixar de o dizer -, faz de fátima, não um lugar teológico
cristão e de fé cristã, mas um lugar de religião e de idolatria,
com quase tudo de demoníaco e praticamente nada de deus, pelo
menos, do deus revelado em jesus de nazaré, o cristo, e em
maria, sua mãe, que veio a ser também a primeira e a mais
perfeita das suas discípulas e discípulos.
pode, por isso, dizer-se que a paz que se viveu, durante todo o
congresso, foi tudo menos a paz, fruto directo do espírito
santo. e tem tudo a ver com a paz castradora e genocida que se
respira no interior dos sistemas autoritários e teocráticos,
como aquele em que a nossa igreja católica, infelizmente, se
tornou, pelo menos, até ao concílio vaticano ii, e que ainda
hoje continua interiorizado no inconsciente de grande parte dos
nossos católicos, professores catedráticos que sejam.
uma voz houve, em todo este unanimismo cinzento e necrófilo,
que, sem cortar radicalmente com fátima - e foi pena soube,
contudo, ser sadiamente lúcida, e terá soado aos ouvidos dos
mais atentos e prevenidos, como uma pedrada no charco.
foi a comunicação do actual bispo do porto, por sinal, a última
intervenção que se ouviu, imediatamente antes da sessão de
encerramento.
pelo menos no entender-interpretar do jornal fraternizar, cujo
director acompanhou os trabalhos do congresso, do primeiro ao
último momento, d. armindo lopes coelho demarcou-se nitidamente
daquela fátima e daquele cristianismo à portuguesa que, ao longo
destes 80 anos de peregrinações, o país conheceu e conhece e que
são a vergonha da nossa igreja católica, ao mesmo tempo que são
também os responsáveis maiores por muito do ateísmo e do
agnosticismo que vemos por aí crescer a olhos vistos na nossa
sociedade portuguesa e ocidental.
em alternativa, o bispo do porto apontou para uma outra fátima
que, se calhar, nem a comissão científica nem os

--128--

responsáveis do santuário que promoveram este congresso estarão


minimamente interessados que venha a materializar-se no futuro.
pelo que a sua voz, apesar de lúcida, dificilmente passará duma
voz a clamar neste confrangedor deserto povoado de multidões que
tem sido fátima, sobretudo, nos dias 12 e 13 de maio a outubro
de cada ano, e que são multidões possessas de medos ancestrais
que lhes roubam toda a capacidade de liberdade e de inicia tiva
pessoal, e que fazem delas gato-sapato, à semelhança do que
acontecia ao doente de gerasa, de que falam os evangelhos
sinópticos (mt 8, 28-34; mc 5, 1-20; lc 8, 26-39), até ao ponto
de levarem muitos que as integram a protagonizarem, lá e nas
estradas do país, demenciais delírios de autoflagelação e de
autodegradação, com a agravante de pensarem que, com esses
demenciais delírios, estão a dar glória a deus.
jornalismo crítico
o jornal fraternizar escutou todas as conferências proferidas,
durante as manhãs, nas sessões plenárias que decorreram no
anfiteatro do centro pastoral paulo vi. ouviu, num dos quatro
grupos, as conferências que, durante as tardes, eram proferidas
em outras tantas salas do mesmo centro. e aquelas que não pòde
uuvir pôde lê-las nas cópias integrais previamente entregues aos
profissionais da comunicação social. mas não vai, evidentemente,
reproduzir aqui extractos delas, como certamente terão feito os
outros "media" de grande informação diária.
ao jornalismo mais ou menos acrítico que se limita a dizer o que
disseram os oradores, preferimos o jornalismo crítico que escuta
também e sobretudo o que não foi dito pelos oradores e que
deveria ter sido dito. porque só a verdade liberta e nos faz
livres, não a reprodução pura e simples do que disseram os
oradores.
de resto, está visto que, em iniciativas como esta, sem
manifesta busca da verdade, esta quase nunca está no que é dito,
mas no que é silenciado, interesseiramente silenciado.
corporativamente silenciado.

--129--

já são paulo, na carta aos romanos (1, 18), advertiu para este
grau de impiedade máxima em que podemos caír, só para garantir,
até inconscientemente, privilégios adquiridos. essa
impiedade traduz-se, segundo o apóstolo, em reter a verdade
cativa na injustiça. quando o imperioso e urgente é acabarmos
com a injustiça para, assim, resgatarmos e libertarmos a
verdade, de modo que esta, por sua vez, nos resgate e liberte
também a nós e a humanidade inteira, única maneira, aliás, de
fazermos teologia cristã e de darmos glória a deus.
ora, é por aqui que procuramos ir, conscientes dos riscos que
esta postura acarreta. mas não queremos saber outro jornalismo,
pois não estamos na disposição de ser caixa de ressonância da
voz dominante, por mais que ela se vista de democrática, na
política, e de hierárquica, nas igrejas.
a verdade salta quase sempre das vítimas silenciadas da
história, as quais, século após século, continuam aí sem voz e
sem vez, condenadas a ter de ouvir e a ter de obedecer à voz
dominante, seja do poder de turno, seja das hierarquias
eclesiásticas ou religiosas - as vítimas das novas seitas que o
digam -, cujos membros, enquanto tais, nunca são capazes de se
fazer próximos do seu próximo, muito menos irmãos dos outros
homens e mulheres; apenas pretendem ser reconhecidos como
superiores a todos e todas.
mas não tenham pena de não saberem por nós o que disseram os
oradores do congresso. todas as conferências serão publicadas em
volume nas chamadas "actas do congresso". e valerá a pena
adquiri-lo, para logo se concluir, como nós concluímos, que tudo
aquilo não passou duma floresta de palavras mais ou menos
eruditas, com as quais nos tentam impedir de ver a árvore que
dá pelo nome de fátima e que é uma árvore, cujos frutos são
cílllsm de grave alienação no país e no mundo católico, de modo
especial, nas pessoas que lá se dirigem com regularidade.
aparições? impossível!
nenhum dos teólogos que intervieram no congresso teve a lucidez
e a coragem de dizer que, pelo menos, para a teologia cristã, é
absolutamente impossível, alguma vez, haver aparições

--130--

e visões de deus, de nossas senhoras e de santos.


consequentemente, também em fátima, elas não podem ter
acontecido.
cabe à ciência e aos cientistas a tarefa de explicar e desmontar
todos esses fenómenos, habitualmente designados por visões e
aparições. e que, objectivamente, não são nem uma coisa nem
outra.
entretanto, até que essa explicação científica chegue, o que a
teologia cristã jamais poderá fazer é dizer que esses fenómenos
são manifestações de deus. o que ela tem de dizer, oportuna e
inoportunamente, é que deus jamais recorreu ou recorrerá a esses
truques, para levar a humanidade a reconhecê-lo e a cooperar com
ele.
admitir uma tal possibilidade seria reduzir deus à medida dos
nossos cálculos e das nossas ambições, fazer dele um deus à
nossa imagem e semelhança, pior ainda, à imagem e semelhança dos
nossos fantasmas e dos nossos medos.
dirão - e o congresso também não se cansou de o repetir mas até
a bíblia está cheia de relatos desses!... e têm razão, embora a
mesma bíblia também esteja cheia de outros relatos que afirmam
exactamente o contrário, ou seja, a radical impossibilidade de
alguém poder ver a deus.
por isso, não devemos pensar que os relatos bíblicos que falam
de visões e aparições de deus são relatos jornalísticos, isto é,
que as coisas sucederam tal e qual como são relatadas. não
sucederam.
esses relatos são simplesmente maneiras literárias e míticas,
próprias de contextos densamente religiosos e não científicos,
às quais os autores humanos da bíblia também recorrem, sempre
que pretendem testemunhar sobre certas pessoas, em cujas vidas
deus terá conseguido passar e permanecer invulgarmente activo,
coisa que veio a ser experimentada, pelo menos, por alguns dos
contemporâneos dessas pessoas, como coisa boa e bela, não só
para eles, mas também para toda a humanidade. e, por isso,
acharam que esse acontecimento tinha de ser relatado e
divulgado. o que fizeram, com recurso aos meios de comunicação
então em uso para vivências do género.
mas quem escreve estes relatos nunca são as próprias pessoas, em
cujas vidas deus conseguiu passar e permanecer especialmente
activo. estas, provavelmente, nem chegaram a saber que

--131--

deus passou e esteve mais intensamente presente e activo nas


suas vidas. até porque, quase sempre, os chefes religiosos, seus
contemporâneos, as olharam com desconfiança e, muitas vezes, as
perseguiram e até mataram como blasfemas e irreligiosas. ou elas
não fossem pessoas muito críticas da religião que eles promoviam
e alimentavam nos templos, e que se traduzia quase sempre numa
sacrílega exploração dos póbres.
foi depois que essas pessoas passaram a ser invisíveis aos
nossos olhos, mediante a morte-ressurreição, que os escritores
da bíblia - inspirados pelo mesmo deus que havia conseguido
passar e permanecer activo nelas - escreveram esses relatos que
hoje conhecemos.
mas, atenção! deles, o que é verdade é essa boa notícia de que
deus conseguiu passar e permanecer activo na vida das pessoas em
causa. já os pormenores literários de que os escritores
inspirados lançaram mão phra dizer esta boa notícia são apenas
isso. não devemos, pois, tomá-los à letra e ficar a pensar que
deus verdadeiramente apareceu e falou a certas pessoas, tal e
qual como os relatos dizem. de modo nenhum. tudo na vida dessas
pessoas sucedeu como suced.e com cada uma e cada um de nós, hoje.
aliás, os próprios relatos das chamadas aparições de jesus
ressuscitado às suas discípulas e discípulos, se repararmos bem,
é também para aqui que apontam. no conhecido episódio do
apóstolo tomé (jo 20, 19-29), que dizia só acreditar depois de
ver, o evangelista fecha o relato com o próprio jesus
ressuscitado a dizer estas reveladoras palavras: "felizes os que
não viram e creram". ou seja, porque acreditamos é que podemos
chegar a dar pela misteriosa e sempre invisível presença-acção
de deus em nós e no mundo e colaborar conscientemente com ela.
numa palavra, não acreditamos porque vimos - exigir ver para
crer é tentação demoníaca -, mas, porque acreditamos, vemos
(não, evidentemente, fora de nós, mas no mais dentro da nossa
consciência). tudo o que vai além disto é fantasia e delírio
demencial.
por isso, quando hoje aparecem por aí pessoas a dizer que deus,
ou nossa senhora, ou este e aquele santo ou santa lhes apareceu,
ou que viram deus desta maneira ou daquela, que

--132--
nossa senhora vinha assim vestida e que deixou este ou aquele
recado, a igreja de jesus que vive neste tempo de
desenvolvimento científico tem a obrigação pastoral de,
imediatamente, dizer que tais aparições e visões não passam de
pura reprodução do mesmo, isto é, são reprodução, mais ou menos
fiel e adaptada a cada circunstância, de relatos ancestrais que
a própria bíblia conserva e que, sem disso termos consciência,
continuam gravados, como em cassete, no inconsciente dos povos e
dos indivíduos, apenas à espera duma oportunidade para saltarem
cá para fora, o que pode acontecer em momentos de graves crises
na marcha, quer da humanidade, quer de um país concreto, e que,
porventura,
nos afectem, individual ou colectivamente.
fantasmas
não pode ter sido outra coisa o que aconteceu, no ano de 1917,
em fátima, com as três crianças assustadas, quer por catequeses
terroristas que os pregadores da missão abreviada se fartavam de
produzir nos púlpitos das igrejas paroquiais do país, quer pelas
terríveis notícias que chegavam da primeira guerra mundial, e na
qual o nosso país, precisamente nesse ano, acabou por entrar
também.
essas catequeses terroristas mais não eram do que uma
obscurantista e moralista reacção contra o que os pregadores da
missão chamavam de laicismo e secularismo da república
recém-implantada, a qual, aos olhos deles, representava não a
mão de deus a intervir na história, como certamente foi, mas -
pasme-se! - a encarnação do próprio diabo. e isto, só porque a
república havia desapropriado a igreja católica dos privilégios
que ela, indevidamente, usufruía, nos tempos da monarquia
(clero, nobreza e povo, lembram-se?!).
neste contexto, as crianças da aldeia de fátima viram e ouviram,
sim senhor, mas apenas os fantasmas que o seu inconsciente e o
inconsciente das populações católicas e não católicas
portuguesas carregavam. mais tarde, chamaram senhora de fátima a
esses fantasmas. e nunca mais as peregrinações deixaram de
acontecer, desde então para cá. não porque deus ou a virgem
maria, mãe de jesus, aí tivessem aparecido - é

--133--

absolutamente impossível, à luz da teologia cristã -, mas porque


as populações, ainda possessas desses ancestrais fantasmas
religiosos e míticos, assim o exigiam e exigem.
no "vale de lágrimas" em que então viviam e ainda hoje vivem as
populações oprimidas e amedrontadas do país e de grande parte do
mundo, e no "desterro" que continua a ser a sua vida, a senhora
de fátima aparece aos seus olhos, como um refúgio, uma
necessidade, algo de que não podem dispensar. mas apenas como o
toxicodependente não dispensa a droga e como o deficiente motor
não dispensa as canadianas ou a cadeira de rodas em que se
desloca.
na cegueira em que são mantidas, essas mesmas populações nem
sequer se apercebem que até a "salve-raínha"que são levadas a
repetir durante toda a vida como oração, não passa, afinal, de
um insulto à virgem maria e ao deus que ela cantou no
magnificat, o qual, em vez de manter os pobres e pequenos em
"vales de lágrimas" e em "desterros", os exalta, e, em vez de os
empobrecer ainda mais, os enche de bens (lc 1, 52-53).
ao correr para fátima, onde deixam o seu dinheiro sem saberem
para quem e para quê - a senhora de fátima só existe na sua
imaginação, como tal, não come nem bebe nem habita em basílicas
construídas em seu nome -, as populações não dão prova de fé
cristã, como insistentemente diz certo jornalismo acrítico e não
científico, mas de notória falta dela.
porque em vez da libertação para a liberdade e da alegria de
passarem a assumir a vida nas próprias mãos, o que as populações
procuram e encontram em fátima e na sua senhora - que não tem
nada a ver com a virgem maria, mãe de jesus - é o ópio de que
carecem para poderem continuar a suportar a vida sem sentido e
sem dignidade que os senhores do mundo nos impõem a todos, e que
é de privilégios para alguns poucos e de desgraça para a maioria
da humanidade.
fátima, novo sinal?
a nossa igreja, em vez de ter tido a audácia de ver e
compreender as coisas nesta direcção libertadora -bastaria, para
tanto, que permanecesse aberta ao espírito santo e sempre se

--134--

confrontasse com a prática radicalmente libertadora de jesus de


nazaré, o cristo, que passou a sua curta vida a expulsar
demónios, isto é, a libertar as pessoas de tudo aquilo que as
impede de serem elas próprias com dignidade, liberdade e
responsabilidade, em vez de correr a aliar-se aos
demónios-poderes deste mundo, para partilhar dos privilégios que
eles habitualmente garantem a quem lhes fizer o jogo -, acabou
por reconhecer, em 1930, fátima e a serra d'aire como uma
espécie de novo sinal, e lúcia, a sua profeta, ou seja, o novo
moisés, ou até o novo cristo!
e desde essa data, não se cansa de repetir uma frase do cardeal
cerejeira, o pai de fátima - também o congresso não teve
vergonha de a repetir, como se o antigo patriarca de lisboa que
sempre esteve casado com o fascismo, de repente, virasse profeta
-, que não foi a igreja que impôs fátima, mas fátima que se
impôs à igreja . (francamente, senhores!)
depois, na febre de buscar relatos fundantes que impusessem
definitivamente fátima a toda a igreja católica e ao mundo, em
vez de, com coragem martirial, a desmascarar, a hierarquia
católica portuguesa, na pessoa do então bispo de leiria, mandou,
sob obediência, a lúcia que escrevesse as memórias de tudo o que
havia ocorrido naqueles meses de 1917, na cova da iria.
nasceram assim as chamadas "memórias da irmã lúcia" - escritas
muitos anos depois, precisamente entre 1935 e 1941, já o
comunismo soviético, na voz da hierarquia católica portuguesa e
do próprio vaticano, era o papão que comia criancinhas, e o
ditador salazar era o messias salvador da pátria! -, as quais o
congresso aceitou acriticamente como relatos fundadores de
fátima, e às quais pareceu atribuir, para a fé cristã católica,
hoje, um valor superior ao que atribuiu às narrativas
evangélicas do novo testamento, uma vez que nunca teve a audácia
de confrontar o deus da irmã lúcia com o deus de jesus, e a
senhora de fátima com a virgem maria, mãe de jesus e a sua mais
perfeita discípula.
É o que se pode classificar de magna operação demoníaca, para
fazer passar por verdade o que não é mais do que delírio
demencial corporativo, por sua vez, gerador de mais e mais
delírio e generalizada demência.

--135--

mas não há que nos deixarmos enganar porque, como diz o


evangelho de jesus, é pelos frutos que se conhece a árvore (mt
12, 33). e a árvore de fátima não pode ser boa, a julgar pelos
frutos que directamente produziu nas próprias crianças que
protagonizaram o respectivo fenómeno.
basta lembrar que as duas mais novinhas - jacinta e francisco -
morreram pouco depois, de fome e de medo, e a delirar com o céu.
e a sobrevivente lúcia é, desde então, uma espécie de
morta-viva, pois foi sempre impedida pelo clero mais fanático da
senhora de fátima de levar uma vida como as demais crianças e
adolescentes da sua aldeia, e acabou por ter de entrar num
convento de total clausura, onde ainda vive em delírios
demenciais quase contínuos, com visões e aparições a toda a hora
e momento, que lhe deixam mensagens tão infantis e tão fora da
realidade actual, que só pessoas mais crédulas do que crentes no
deus de jesus e de maria de nazaré podem acolher, tomar a sério
e gastar tempo e dinheiro a divulgar.

--136--

18
o milagre da jacintinha
quem lê as "memórias da irmã lúcia", nomeadamente, a primeira, a
terceira e a quarta, nas quais ela nos faz o retrato da
pequenina jacinta e do pequenino francisco, seus primos e
companheiros nas chamadas aparições de fátima, não pode deixar
de ficar horrorizado. os testemunhos foram escritos, bastantes
anos depois da morte das duas crianças, respectivamente, em 1935
e 1941, e em obediência ao bispo de leiria de então.
(há certos homens e certas mulheres que têm destas coisas:
mandam na consciência dos outros, como se fossem ainda mais do
que deus, já que mandar na consciência de alguém é coisa que nem
o próprio deus faz. mas é preciso que se diga, sem hesitações,
que comportamentos destes têm mais a ver com fascismo religioso
do que com espiritualidade cristã. por isso, nunca será de mais
denunciá-los e prevenir as pessoas, para que estejam em guarda.
porque, quando alguém manda na nossa consciência, pode fazer de
nós gato-sapato e ir-nos ao bolso ou à conta bancária com a
maior das facilidades. até em nome de deus! mas não há coisa que
mais ofenda a nossa dignidade humana e cristã, e que também mais
ofenda o santo nome de deus.)
de tudo quanto escreve lúcia sobre jacinta e francisco (quem
ainda não leu o livro não deveria deixar de o fazer, porque ele
é, provavelmente, o mais vigoroso testemunho contra a veracidade
das chamadas aparições de fátima, embora ela, ao escrevê-lo, o
fizesse, evidentemente, com a manifesta intenção de lhes dar
completa autenticidade e fundamento!), uma conclusão salta de
imediato à vista: as duas crianças terão morrido de terror, de
fome e de sede. não porque a família não tivesse os recursos
materiais

--137--

mínimos, que felizmente tinha, mas porque ambas foram


catequizadas para se privar de tudo o que lhes fazia falta, como
forma de sacrifício pela conversão dos pecadores. o que é
objectivamente terrorismo. e um crime contra a vida de duas
crianças indefesas, ainda sem capacidade de resistência crítica.
É de presumir que ninguém individualmente planeou tão grave
crime a frio. mas nem por isso deixa de haver responsáveis
morais, que deverão ser apurados e trazidos à luz do dia. para
evitar que, pelo menos, outras crianças e pessoas adultas,
psiquicamente mais fragilizadas e espiritualmente mais
influenciáveis, venham a ser vítimas, como estes dois irmãos
foram. e que nem tempo tiveram de chegar a ser meninos.
estas memórias da irmã lúcia testemunham um tipo de catolicismo
que tem tudo de terror religioso, e nada, mesmo nada, de boa
notícia ou de evangelho. É o que se pode chamar um catolicismo
anticristão. e terá sido certamente esse tipo de catolicismo um
dos príncipais responsáveis, porventura, até o maior
responsável, pela morte antes de tempo da pequenina jacinta e do
francisco.
É manifesto, nas páginas do livro, que a menina e seu irmão
nasceram e cresceram no seio de um catolicismo assim. foram
obrigados a beber no leite materno uma catequese terrorista que
só falava de castigos de deus, de inferno e de pecadores que vão
para o inferno por causa dos pecados que cometeram, do género -
imagine-se! - não ìr à missa ao domingo, falar mal, dizer
asneiras, fazer pequenos furtos, atirar pedras, jurar.
[vejam só este diálogo entre jacinta e lúcia, p. 30: jacinta:
"aquela senhora disse também que iam muitas almas para o
inferno. e o que é o inferno?" lúcia: "É uma cova de bichos e
uma fogueira muito grande (assim mo explicava minha mãe) e vai
para lá quem faz pecados e não se confessa e fica lá sempre a
arder . jacinta: "e nunca mais sai de lá?" lúcia: "não".
jacinta: "e depois de muitos, muitos anos?!" lúcia: "não; o
inferno nunca acaba. e o céu também não. quem vai para o céu
nunca mais de lá sai. e quem vai para o inferno também não. não
vês que são eternos, que nunca acabam?". jacinta: "mas olha,
então depois de muitos, muitos anos, o inferno ainda não acaba?
e aquela gente que lá

--138--

está a arder não morre? e não se faz em cinza? e se a gente


rezar muito pelos pecadores, nosso senhor livra-os de lá? e com
os sacrifícios também? coitadinhos! havemos de rezar e fazer
muitos sacrifícios por eles!"].
por sua vez, os pregadores da chamada "santa missão", então
muito em voga, não faziam as coisas por menos. subiam aos
púlpitos das igrejas paroquiais e arengavam sobre um povo
menorizado, condenado a viver na ignorância e no medo. e o que
diziam destinava-se a deixá-lo ainda mais assustado, mais
aterrorizado, mais oprimido e mais ignorante. porque não era com
cristã teologia, com evangelho e com a palavra de deus, que os
pregadores da "santa missão" construíam os seus sermões, mas com
terrorismo espiritual e moralismo do pior. sem que ninguém,
entretanto, lhes saísse ao caminho e tivesse mão neles. pelo
contrário, valia tudo para garantir igrejas cheias, para ter
populações dominadas, numa palavra, para reforçar o poder
clerical e eclesiástico sobre uma sociedade que só muito a custo
conseguia tornar-se autónoma, relativamente à igreja católica.
aliás, o povo era educado e catequizado pela generalidade do
clero (excepções houve que pagaram caro tamanha audácia
profética e evangélica!) para tudo suportar, tudo sofrer com
paciência e resignação, em desconto dos seus próprios pecados e
dos pecados alheios, na esperança, não de melhores dias na
terra, mas apenas de escapar, depois de morrer, ao fogo do
inferno.
as três crianças-pastores de rebanhos, lúcia, jacinta e
francisco, respiraram este a mbiente agressivamente religioso,
mas sem deus. ou melhor, de anti-deus, já que o deus revelado em
jesus e maria de nazaré, como a mais espantosa e feliz boa
notícia para a humanidade, jamais lhes foi apresentado, nem na
catequese familiar, nem na catequese paroquial, nem nas chamadas
aparições da senhora de fátima, que lúcia garante ter-lhes
acontecido.
de deus, os três apenas sabiam que metia no inferno os pecadores
que não se confessassem, pelo menos, antes de morrer. e sabiam
também que a úmica coisa que o poderia levar a não castigar tão
terrivelmente era eles disporem-se a fazer muitos sacrifícios
pela conversão dos pecadores! (há lá terrorismo maior?)

--139--

mas é o que sobretudo jacinta e francisco, os mais novinhos dos


três, passam a fazer, nomeadamente, depois das chamadas
aparições. aterrorizados com o inferno que, segundo o relato de
lúcia, teria sido mostrado aos três, numa dessas aparições (a
senhora de fátima que isto fez não tem, não pode ter nada a ver
com maria de nazaré, a mãe de jesus, cujo filho, quando menino,
ela ajudou, com desmedida ternura, a crescer em idade, estatura,
sabedoria e graça, e de modo algum cuidou em aterrorizá-lo com
visões doentias e sadomasoquistas de infernos, como a que nos é
descrita pela irmã lúcía nestas suas memórias. mas descansem,
que o inferno que as crianças dizem ter visto nunca existiu.
mais não era do que o inferno das catequeses e das pregações
terroristas, reiteradamente escutadas por elas na casa dos pais
e no templo paroquial).
infelizmente, tais catequeses e pregações terroristas ainda não
morreram de todo. pelo menos, no inconsciente de grande parte do
nosso povo, que, por isso, continua aterrorizado com deus, e se
mostra incapaz de confiar nele como as meninas e os meninos
confiam uns nos outros.
exemplo disto mesmo é o caso daquela nossa concidadã que, por
ocasião do dia mundial do doente, de 1997, realizado, há poucas
semanas, em fátima, as televisões nos mostraram. durante muitos
anos, esteve paralisada numa cama. e agora consegue andar. ao
que diz, "por milagre da jacintinha de fátima".
na sua boca, nem os médicos que, ao longo destes anos a
acompanharam, serviram para nada. nem os medicamentos que sempre
tomou valeram alguma coisa. nem os cuidados dos familiares e
outras pessoas tiveram qualquer valor. nem a enorme vontade dela
própria em voltar a andar representa qualquer força. apenas a
intervenção da "jacintinha" junto de deus.
(mas que deus é este que só atende os clamores dos pobres e dos
doentes, se estes arranjarem bons advogados junto dele, ou boas
cunhas, sempre acompanhadas de avultadas quantias de dinheiro
para os santuários de nomeada, onde as imagens de tais advogados
são cultuadas? então é um deus demoníaco?)
uma coisa, porém, fica ainda por explicar: como é que a
jacintinha, que as catequeses e as pregações terroristas do seu
tempo aliciaram a cometer graves atentados à sua saúde, a ponto
de ela, coitada, acabar por morrer antes de tempo, agora se
mostra tão empenhada em que uma senhora já bem entrada em anos,
volte de novo a andar, depois de anos e anos paralisada numa
cama? e como é que lhe deu a ordem, que ela diz ter escutado.
"levanta-te, que já podes andar", em vez de lhe dizer, como
outrora lhe disseram a ela, "sofre tudo com paciência pela
conversão dos pecadores e para evitar que deus os meta no
inferno"?
(mas ainda bem que, hoje, a jacinta ressuscitada já trocou a
catequese terrorista da senhora de fátima pela catequese
libertadora de maria de nazaré, mãe de jesus, o cristo!)
mas o mais chocante no caso é que todas estas coisas são ditas e
exibidas nos telejornais, sem que a nossa igreja católica, ao
nível dos seus responsáveis maiores, apareça com uma palavra de
sabedoria e de consciencialização-libertação colectiva. até
parece que, depois de ter contribuído decisivamente para a morte
antes de tempo dos dois pastorinhos da aldeia de fátima, através
de catequeses e de pregações terroristas que, naquele tempo,
foram manifestamente as que eles receberam, a nossa igreja agora
nada mais deseja do que poder apresentar ao mundo estas duas
crianças como santas. talvez porque, assim, os chorudos lucros
que o santuário de fátima lhe garante, sem qualquer esforço da
parte dela, e sem quaisquer impostos ao estado, fiquem
definitivamente assegurados. mas então é caso para dizer que
também neste tipo de catolicismo que brada aos céus, o crime
compensa!

--141--

19
aparições e visões: quem nos livra delas?
mais do que fazer aqui, na universidade nova de lisboa, uma
comunicação de fundo, optei por lançar umas quantas provocações,
para um inevitável debate, sobre o tema que me foi proposto:
"aparições e visões: quem nos livra delas?". eis.
1. se alguma vez virem deus, matem-no de imediato! porque ,
se o não matarem, depressa estão a adorar o fantasma que viram e
que tomaram por deus, e isso é pura idolatria.
se, depois, esse culto se torna público, estão a enganar as
populações teologicamente menos esclarecidas e a torná-las
idólatras e alienadas. o que é uma indignidade de todo o tamanho.
mesmo que, mais tarde, os jornais e as tv apareçam e digam, em
parangonas, que se trata de grandiosas manifestações de fé
(cristã), não acreditem. são grandes manifestações religiosas e,
como tal, manifestações mais ou menos idolátricas. aliás, todas
as religiões, com os seus cultos, têm muito de idolatria.
2. os jornais e as tv que temos em portugal e no mundo em geral,
padecem de enorme défice de teologia cristã. percebem bastante
de futebol e um pouco menos de certo tipo de economia - a
neoliberal - mas de teologia cristã, nada. há honrosas
excepções, evidentemente.
mais parecem cassetes que reproduzem o mesmo, ou seja, o
discurso oficial dos governantes, dos partidos, das
multinacionais ganhadoras e das hierarquias religiosas e
eclesiásticas, nomeadamente, as hierarquias das igrejas que têm
muitos adeptos.

--143--

(pelos vistos, a quantidade, hoje, é que está a dar. mas que


longe se está, por isso, de jesus cristo, para quem, em seu
sábio e fecundo entender, bastará um pouco de fermento para
levedar toda a massa)
os "media", actualmente, são também caixa de ressonância dos
nossos medos colectivos. em vez de serem meios de
consciencialização e de libertação, são o que se pode dizer meio
de comunicação em heresia. perderam a vertente profética que os
caracterizou na origem, praticamente já não denunciam. e muito
menos anunciam alternativas ao estabelecido e dominante.
veiculam o que os promotores dos eventos, dos acontecimentos
encenados, querem que seja dito.
não cuidam, nos acontecimentos que noticiam e como deveria fazer
todo o jornalista que se preza, de apurar a verdade (às vezes, a
verdade é o que os eventos mais escondem; às vezes, os eventos
até são promovidos com o objectivo de esconder a verdade, como
aconteceu, recentemente, com o congresso sobre fenomenologia e
teologia das aparições, em fátima, numa iniciativa da
universidade católica e do santuário local).
são jornalistas com uma grande dose de ingenuidade. ainda não
foram alfabetizados pela modernidade. não lhes nasceu ainda a
consciência crítica. ou então fizeram-lhe o manguito e vendem-se
por um prato de lentilhas.
num e noutro caso, tais jornalistas são um perigo público.
(volto a repetir: há abençoadas e honrosas excepções,
infelizmente, quase sempre na "prateleira" das redacções dos
grandes "media" ! )
3. a deus nunca ninguém o viu. nem verá. É uma impossibilidade
teológica. apareça o primeiro teólogo cristão a desmenti-lo.
só vemos os fantasmas que imaginamos, que criamos nas nossas
imaginações mais ou menos delirantes e demenciais. nem jesus,
filho de maria e de josé, alguma vez viu a deus!
na hora da verdade maior que foi a da sua morte na cruz (a sua
hora, como ele sempre se lhe refere!), o que jesus vê é o
abandono total, a ausência total de deus. daí o seu grito,
eventualmente

--144--

chocante para ouvidos pios, "meu deus, meu deus, por que me
abandonaste?".
gostemos ou não, é esta a nossa condição humana.
a deus podemos chegar apenas pela fé. por sinais. por pegadas na
areia. que nunca são ele. por isso, quem disser que viu a deus é
mentiroso. ou está a delirar. em vez de ser tratado como vidente
(há sempre organizações religiosas que se aproveitam, senão a
igreja católica romana, a igreja ortodoxa, como no caso da
ladeira do pinheiro, ou, agora, as novas igrejas, mais
conhecidas por seitas), deve ser tratado no psiquiatra. ou, se é
inofensivo, deve ser tratado com tolerância e muita compreensão.
mas nunca é para ser levado a sério.
(vejam, a este propósito, a vergonha que os nossos bispos têm
feito com a lúcia de fátima. desde que perdeu os primitos,
jacinta e francisco - é caso para dizer que nem a senhora de
fátima lhes valeu! -, foi sequestrada e nunca mais pôde fazer
uma vida vulgar e comum. não é de estranhar por isso, que ainda
hoje ela viva em delírios quase permanentes. o mais espantoso é
que até o papa em roma, cardeais e quase todos os bispos da
nossa igreja católica a tomam a sério. sinal de que há grandes
interesses em jogo, interesses ideológicos, moralistas, de
influência religiosa e, sobretudo, interesses financeiros).
nem jesus vê deus. e, quando um dos doze, filipe, lhe pede
"mostra-nos o pai" (jo 14, 8), ele não lho mostra, porque não
podia. dá-lhe então a volta e aponta-lhe o caminho correcto:
"filipe, quem me vê, vê o pai". isto é, não há outra maneira de
ver a deus, senão no corpo, no rosto do outro, mulher ou homem.
e podemos até dizer que, quando no rosto do outro, cigano que
seja, e nomeadamente no rosto desfigurado das vítimas humanas,
vemos uma irmã, um irmão, deus está aí presente, como sarça
ardente; mas a ele nunca o vemos.
da visão de deus, temos de dizer o que joão, discípulo de jesus,
diz do amor a deus. "se alguém disser que ama a deus, a quem não
vê, e não ama o irmão a quem vê, é mentiroso e a verdade não
está nele" (ljo 4, 20). igualmente, se alguém diz que vê a deus,
que jamais pode ser visto com estes nossos olhos humanos (1jo 4,
20), e não vê o irmão que tem diante dos olhos, é mentiroso. ou
está a delirar.

--145--

(o que aqui se diz de deus, vale, por maioria de razão, para as


visões ou aparições de todas as nossas senhoras, de todos os
santos e de todos os anjos e arcanjos...)
tudo é fantasia e delírio, reprodução do mesmo. ou seja, o que
os chamados videntes (quase sempre, as videntes!) vêem é o que
têm gravado no seu inconsciente e que lhes entrou pelos olhos
(imagens), pelos ouvidos (narrativas de hierofanias e
teofanias), ou que herdaram nos cromossomas da mãe e do pai que,
por sua vez, os herdaram dos seus pais e assim sucessivamente.
quando há uma ruptura no cérebro (acontece com mais frequência
nos tempos de crise individual ou colectiva, e nas mudanças de
século e de milénio), o que estava lá armazenado, adormecido,
silenciado, salta cá para fora e a pessoa torna-se uma espécie
de gravador- vivo ou um vídeo vivo. ouve e reproduz sons e vê
imagens, mas sons e imagens que fazem parte do seu próprio
inconsciente; não estão fora dessa pessoa, como coisa real.
a pessoa que se diz vidente pode ser sincera (geralmente, é o
que sucede), mas o que ela vê e ouve não está fora dela, mas
dentro dela, no seu inconsciente. por isso, as igrejas façam o
favor de nos poupar e não venham a correr dizer-nos que estamos
perante uma manifestação/aparição/visão de deus ou de nossa
senhora. não estamos.
4. em nome da sanidade mental dos indivíduos e dos povos,
precisamos urgentemente de ter coragem para queimar as nossas
bíblias todas. elas, mais do que tudo, são responsáveis por
todos os delírios demenciais que, ao longo dos tempos, também
hoje, têm atacado certas pessoas autopromovidas a videntes.
as suas páginas estão cheias de narrativas, exegeticamente,
chamadas hierofanias e teofanias, aparições de deus em locais
que são logo promovidos a espaços sagrados e onde, depois, se
levantam templos, nos quais as populações são roubadas,
enganadas, sacrificadas, mantidas na menoridade, passivas,
dependentes de sacerdotes (homens do sagrado) e de hierarquias
(homens do poder sagrado) e drogadas com overdoses de ópio que
as mantêm resignadas e submissas.
o que seria do mundo, com tantos e tantos milhões de
empobrecidos e de excluídos, a sobreviver em condições de
--146--

indignidade, no lixo, enquanto minorias privilegiadas morrem


afogadas no luxo, se não fossem as religiões a anestesiar/
/domesticar/resignar as populações? não seria um mundo
ingovernável?
ora, as nossas bíblias, tal como estão redigidas, com uma
linguagem quase sempre simbólica, poética, teológica, são
responsáveis, involuntariamente embora, pelos delírios
demenciais dos que, através dos tempos, se têm por videntes.
se o hebreu moisés viu a deus, por que não havemos de o ver nós
também? se deus falou a abraão, por que não há-de falar também a
nós? se um anjo apareceu e falou a maria e a josé, em sonhos que
seja, como se diz que aconteceu com este, por que não há-de
aparecer também, por exemplo, a três pastorinhos de fátima?
dirão: mas aquelas narrativas bíblicas, é preciso saber
interpretá-las. É verdade. no entanto, está visto que elas
marcam as pessoas que as lêem ou ouvem ler, impressionam, como
ferro em brasa, a imaginação de crianças e adultos mais ou menos
criançados. e qual o resultado?
ainda hoje, até intelectuais da nossa praça, ateus que sejam,
mesmo depois do novo pentecostes cristão que foi a modernidade,
continuam a referir-se a essas narrltivas, como se elas fossem
relatos jornalísticos... quanto mais as populações iletradas ou
quase, ou que só lêem jornais desportivos ou revistas de
coração!...
urge pois queimar as nossas bíblias! não temos coragem? também
não é isso, à letra, que eu pretendo, evidentemente. mas
dizê-lo, assim, com esta crueza toda, é preciso para que todos
nos apercebamos de que temos de abordar todas as suas narrativas
com cautela.
a verdade bíblica não são os fios com que se tecem as suas
narrativas, por sinal, verdadeiras jóias literárias, mas o que,
com esses tecidos ( textos) se quer dizer-revelar. as narrativas
apenas pretendem introduzir-nos no mistério, chamar a nossa
atenção para a presença invisível e gratuita, mas não supérflua
(de deus), mistério e presença que nos fazem ser cada vez mais
humanos, solidários e fraternos.
as narrativas bíblicas são o dedo que aponta para a lua, não são
a lua! apontam para o mistério, não são o mistério!

--147--

despertam-nos para a presença que nos acompanha e nos potencia


para sermos integralmente nós próprios, não são a presença.
5. a terminar fica a pergunta: aparições e visões, quem nos
livra delas?
deveriam ser as igrejas, mas estas, convertidas em empresas
multinacionais de religião (não há nenhuma que não faça negócio
em nome de deus; e então as chamadas novas igrejas, nem se
fala!...), preferem aproveitar-se das visões e aparições.
algumas até se apresentam à gente autenticadas por uma
aparição/visão que teria acontecido - tinha que ser! - ao seu
fundador (geralmente, alguém com queda para o negócio...).
ora, se as igrejas falham e, em vez de nos livrarem das visões e
aparições, ainda procuram aproveitar-se delas, agarremo-nos ao
bom senso. e resistamos por nós próprias e nós próprios. em nome
do bom senso e da sanidade mental.
por outro lado, é legítimo esperar que teólogas e teólogos
cristãos que não comem à mesa das hierarquias eclesiásticas
(infelizmente, são sempre poucos, sobretudo, em tempos de
generalizada crise e de instabilidade, como são estes nossos
tempos de fim de século e de milénio), e outras e outros
intelectuais honestos, saltem corajosamente para a frente de
batalha da libertação para a liberdade. em nome do mesmo bom
senso e da mesma sanidade mental. também em nome da inteligência
e da dignidade humana. e, sobretudo, em nome dos empobrecidos e
iletrados que, no meio de tudo isto, são sempre os mais
"comidos" pelas visões e aparições (já não lhes bastava ser
pobres e mantidos em estado de subdesenvolvimento, há-de
aparecer sempre quem se aproveite da sua condição de imerecida
miséria e imerecida ignorância, para os empobrecer ainda mais e
para os manter ainda mais no obscurantismo. e tudo isto, que é
objectivamente crime e dos maiores, fica sempre impune, a
pretexto de que se trata de religião!).
este combate pode ser martirial, isto é, pode custar-nos a
própria vida. mas que importa se é libertador para nós e para
toda a humanidade? por outro lado, se formos por esta via ou
caminho, não estaremos nunca sozinhos. nem sequer somos os

--148--

primeiros. os profetas bíblicos e, sobretudo, jesus, o cristo, e


tantas outras e outros, até ateus, já nos precederam neste mesmo
combate e neste martírio. entremos então corajosamente nele, com
alegria e esperança.

--149--

20
manifestação de fé ou de paganismo?
com a chegada do mês de maio, volta às estradas portuguesas o
triste e vergonhoso espectáculo dos chamados peregrinos de
fátima. das mais diversas aldeias do país, com destaque para as
aldeias que integram paróquias das dioceses de coimbra, aveiro,
porto, braga e viana do castelo, ei-los, aos grupos, de todas as
idades e de ambos os sexos, a percorrer, a pé, os muitos
quilómetros que os separam de fátima.
se se cumprìr o ritual dos anos anteriores, lá teremos, pelas
proximidades do dia 13, algumas e alguns destes muitos
peregrinos a testemunhar, nos telejornais, os motivos que os
levaram a meter pés a caminho até fátima. e voltaremos a ouvir
da boca de jornalistas sem qualquer formação teológica
ilustrada, que todas estas mulheres e todos estes homens, nossos
conterrâneos, vão ali movidos pela fé.
entretanto, da parte das igrejas locais a que tais peregrinos
pertencem, nomeadamente, da parte dos respectivos bispos e
párocos, ninguém costuma aparecer a dar a cara, para dizer
desassombradamente que este fenómeno pode ter muito a ver com
rituais de velhas e novas religiões do paganismo, que incitavam
e incitam os seus fiéis a práticas sacrificiais em honra de
míticas deusas e deuses, mas que não tem nada a ver com a fé
cristã, nem sequer com a fé simplesmente humana.
É um fenómeno que envolve apenas mulheres e homens,
universitários que sejam, cujo inconsciente continua possesso ou
prisioneiro de ancestrais medos, os quais, enquanto não forem
radicalmente expulsos pela verdade que liberta - "eu sou a
verdade", diz jesus, no evangelho de joão (14, 6) -, continuarão

--151--

a fazer daquelas e daqueles em quem permanecerem alojados


gato-sapato, concretamente, levando-os a realizar práticas
religiosas sacrificiais, as mais aberrantes e desumanas.
É verdade que desde o princípio, ou seja, desde abraão, a fé
cristã sempre se assumiu como via ou caminho - deixa a tua
terra, os teus parentes e a casa de teu pai, e vai para a terra
que eu te vou mostrar (gn 12, 1) -, e o próprio jesus de nazaré,
o homem de fé por antonomásia, chegou a proclamar que, ao
contrário das raposas que têm tocas e das aves do céu que têm
ninhos, ele não tinha onde reclinar a cabeça (mt 8, 20); sinal
inequívoco de que a fé cristã nunca se deu bem com vidas
instaladas e autistas, que só se ouvem a si próprias; pelo
contrário, tem tudo a ver com aquele movimento que nos faz saír
de nós próprios, até fazer de nós mulheres e homens em contínua
relação-comunhão.
mas é também claro que o caminho que a fé cristã percorre, na
pessoa das mulheres e dos homens que por ela estão possuídos e
animados, nunca é o que leva das suas casas aos templos e dos
templos a suas casas, muito menos o que, hoje, leva das aldeias
e cidades do nosso país e do mundo ao santuário da senhora de
fátima, e deste às mesmas aldeias e cidades, mas apenas o
caminho que leva de cada uma e de cada um de nós aos demais,
nomeadamente, aos mais empobrecidos e excluídos, aos mais
marginalizados e desprezados pela sociedade, a começar pelos
seus membros mais fanaticamente religiosos, estilo fariseus do
tempo de jesus de nazaré.
quer isto dizer que a fé cristã, onde existir, anima cada homem
e cada mulher a saír de si mesmo, do seu egoísmo ou torre de
marfim, para que se atreva a fazer-se próxima e próximo dos
demais. É a grande força-dom de deus, mas daquele deus da vida
revelado em jesus de nazaré, que sempre nos pergunta "onde está
o teu irmão? que fizeste do teu irmão?" (gn 4, 9), e que, por
isso, leva quem dela estiver animado a criar pontes entre todos
os homens e todas as mulheres, seja qual for a cor da sua pele,
credo, nacionalidade, condição social ou comportamento moral,
numa cada vez mais alargada rede de relações fraternas e
solidárias, com vista à edificação duma terra/sociedade cada vez
mais humana e solidária, o mesmo é dizer, bem à altura de

--152--

satisfazer todas as legítimas aspirações e necessidades reais da


humanidade, no seu todo.
mas não faz falta grande engenho e arte, para se perceber por
que é que nem os bispos nem os párocos de portugal têm saído
alguma vez, a terreiro com estes e outros desassombrados
esclarecimentos sobre fátima e sobre as múltiplas e sucessivas
peregrinações, a pé ou de carro, que, desde 1917, para lá se
fazem, e que configurariam uma pastoral evangélica, de cariz
fecundamente conscientizador e libertador.
É que eles próprios são parte interessada em fátima, no seu
santuário e na senhora que lá pontifica, como a mais recente
metamorfose da ancestral grande mãe dos deuses do paganismo
pré-cristão e que, pelos vistos, dois mil anos depois de cristo,
ainda não morreu de todo; pelo contrário, sempre renasce numa
variada gama de nossas senhoras disto, nossas senhoras daquilo,
uma espécie de pronto-a-vestir de nossas senhoras para todos os
gostos, feitios e necessidades, as quais, em lugar de servirem a
humanidade mais desfavorecida, exigem dela, a tempo e fora de
tempo, cultos religiosos, os mais exóticos e extravagantes,
práticas sacrificiais, as mais absurdas e sádicas, e, acima de
tudo, dinheiro, muito dinheiro.
para assumirem, até às últimas consequências, o ministério
profético de evangelizar os pobres, missão primeira de um bispo
e de um pároco que explicitamente façam referência a jesus
cristo - é sabido que jesus acabou crucificado, por ter nascido
e vindo ao mundo para dar testemunho da verdade e por jamais, em
momento algum da sua vida, ter traído esta missão que lhe fora
confiada pelo deus da vida e que ele, uma vez ressuscitado,
confiou também a todo o homem e mulher que nele cressem e com
ele estivessem dispostos a cooperar activamente -, os bispos e
os párocos terão, primeiro, de demarcar-se de fátima, do seu
santuário e da senhora que lá pontifica, como deusa que se
alimenta de gente, particularmente, de gente empobrecida,
oprimida, assustada, subdesenvolvida e confrangedoramente
ignorante nas coisas de deus, pelo menos, do espantoso e
misericordioso deus da vida, já que do deus da religião ou do
deus da senhora de fátima, ela, para seu mal, conhece bem de
mais.

--153--

ora, é notório que não é por aí que, hoje, avançam os bispos e


os párocos católicos portugueses. pelo contrário, é ver como
todos, à uma, com mais ou menos entusiasmo, e com mais ou menos
ignorância teológica e alguma ingenuidade, aceitam fátima e o
tipo de cristianismo católico que lá se realiza, totalmente à
revelia do evangelho ou boa notícia de deus que jesus foi e
continua a ser entre nós e connosco, e também à revelia do que
de melhor trouxe à nossa igreja católica romana o concílio
vaticano ii, e que, bem vistas as coisas, mais não é do que uma
reprodução dos cultos sacrificiais que, antes de cristo, as
populações oprimidas eram levadas a realizar em honra de deusas
e deuses e, através dos quais, eram mais facilmente mantidas na
resignação e na apatia, mesmo que o seu dia-a-dia fosse um
rosário de frustrações e um vale de lágrimas.
mas, é claro, não foi para alimentar estes cultos idolátricos e
sacrificiais - desde o princípio, segundo o relato do génesis
(3, 1-7), a grande tentação que sempre tem afectado a humanidade
e a tem impedido de ser, como deus quer, uma humanidade liberta
para a liberdade e uma humanidade responsávelmente protagonista
na história - que, há dois mil anos nasceu o movimento de jesus,
do qual veio depois a nascer a igreja.
tal como jesus cristo, também a igreja que se reivindica do seu
nome está aí, enquanto durar a história, não para fazer religião
e, com ela, servir doses e doses de espiritualismo-ópio que
ajude a humanidade a suportar o vale de lágrimas em que a ordem
mundial dominante a condena a viver, mas sim para, a tempo e
fora de tempo, evangelizar os pobres, o mesmo é dizer, libertar,
pelo diálogo maiêutico, todas as potencialidades fraternas e
solidárias, mais ou menos adormecidas e alienadas em todos e
cada um dos seres humanos, de modo que eles se descubram irmãs e
irmãos uns dos outros, no mesmo acto em que se descobrem filhas
e filhos de deus, que os criou e que, por isso mesmo, só pode
ser o deus da vida.
se ela o fizer, teremos então a incontida alegria de vermos essa
mesma humanidade, de que a igreja sempre deveria ser a parcela
mais consciente, a crescer na audácia de ser, progressivamente,
uma humanidade livre e protagonista, fraterna e solidária, cada
vez mais igual àquela que o mundo pôde ver

--154--

plenamente realizada em jesus de nazaré, o cristo de deus. e,


por ele, nele e com ele, também em maria, sua mãe e discípula,
mulher de carne e osso já ressuscitada, que, felizmente, não tem
nada a ver com a mítica senhora de fátima, nem com o culto
idolátrico e sacrificial que as populações desesperadas lhe
promovem. e que, objectivamente, constitui um insulto à memória
da mãe de jesus e ao deus da vida que ela tão belamente cantou
no seu magnificat (lc l, 46-55).

--155--

21
fátima: a glória da nossa terra ou a nossa vergonha?
fátima, com a sua cruz alta, a convidar simbolicamente o povo ao
sofrimento e à sua aceitação resignada; com o seu espaçoso
recinto, por onde continuamente rastejam penitentes-pagadores de
promessas; com as suas bocas de mealheiro-cofre, disfarçadas de
caixas de esmolas, por onde entram rios de dinheiro oferecido
por milhares de peregrinos, cultural e teologicamente,
subdesenvolvidos; com o seu grandioso e esmagador santuário,
servido, no exterior, por uma soberba escadaria e um enorme
altar, onde, todos os dias 13, de maio a outubro, pontifica a
hierarquia eclesiástica católica, constituída exclusivamente por
homens celibatários; com a sua capelinha das aparições,
ferozmente anticomunista, antiprotestante e antifestiva; e,
sobretudo, com a sua senhora toda branca, sempre de mãos postas,
vestida até ao chão, e que não ouve, não fala, não come, não ri,
não chora, não se comove, não caminha, não acena a ninguém, não
tem coração nem entranhas de misericórdia, e que até para saír
da capela exige que alguns seres humanos se metam por debaixo do
seu andor e a carreguem aos ombros, numa postura que,
simbolicamente, tem tudo de indignidade e de escravidão-é um
local de graça, ou pedra de tropeço? É epifania de deus, ou uma
bem concebida e bem montada multinacional de religião que,
habilmente, sabe tirar partido, sobretudo, financeiro, da
situação de pessoas e populações carregadas de aflições e
problemas sem solução à vista? É ocasião de encontro com deus e
com os outros ou ocasião de alienação individual e colectiva? É
centro de espiritualidade libertadora e geradora de fraternidade
solidária ou uma espécie de grande superfície de

--157--

comércio religioso e de espiritualisnw desencarnado, feito de


devoções, de terços recitados em diferentes línguas,
de missas em série e sem eucaristia, de assustadas confissões
individuais sem consequente conversão ao evangelho de jesus, de
cânticos sem poesia e sem mensagem, numa palavra, um
espiritualismo sem espírito santo? É uma experiência que ajuda a
despertar a fé cristã, e, consequentemente, promove a
libertação, o desenvolvimento e a dignificação das pessoas e das
populações ou é um sítio onde a fé cristã é devorada pela
religião e pela idolatria? É a glória da nossa terra ou a nossa
vergonha?
o jornal fraternizar tem consciência do melindre das
questões, mas não pode deixar de as formular. fá-lo
animado de um grande amor à igreja e à verdade do evangelho de
jesus cristo. não com a leviandade de quem ridiculariza, mas com
a seriedade de quem procura viver, permanentemente, à escuta dos
sinais dos tempos e do que o espírito está a dizer às igrejas.
usa da nossa vergonha
ca desde os tempos do cardeal cerejeira e do seu amigo
salazar, tem-se dito e repetido que foi fátima que se impôs à
igreja (a igreja católica romana, já se vê, uma vez que as
outras igrejas cristãs, como tais, não têm lá entrada!) e não a
igreja que impôs fátima. a afirmação, se calhar, até é
verdadeira, pelo menos, em parte.
mas, ao dizer e repetir isso, não nos damos conta de que é
precisamente esse facto a principal causa da nossa vergonha.
porque a igreja deveria ter sido capaz de resistir a fátima e à
sua matriarcal senhora ou grande deusa. deveria, em nome da fé
cristã e do evangelho, por cujo anúncio é institucionalmente
responsável, ter recusado liminarmente as chamadas aparições aos
pastorinhos, bem como a mensagem de terror e manifestamente
anti-evangélica que lhes é atribuída.
em lugar de consentir que fátima se lhe impusesse e, agora, até
se orgulhar desse facto, deveria ter-lhe resistido com todas as
forças, mesmo que, por via disso, portugal deixasse de ser, como
é, um país maioritariamente católico.

--158--

porque não o fez (pelo contrário, acabou, em 1930 - quatro anos


depois da implantação do famigerado estado novo de salazar - por
aceitar/fomentar fátima e reconhecer como autênticas as suas
aparições), continuamos, hoje, a ser um país maioritariamente
católico, sim senhor, mas muito pouco cristão; por isso, um país
subdesenvolvido, uma espécie de portugal de pequeninos, sempre
de mão estendida aos santos e à "senhora" europa, à espera de
milagres e de subsídios, muito devotos da senhora de fátima, mas
confrangedoramente despojados de conhecimento bíblico-teológico,
campeões em romarias religiosas, onde não faltam foguetes, fogo
de artifício, música pimba, comes e bebes, mas manifestamente
incapazes de saciarmos alguma das verdadeiras fomes que nos
devoram por dentro, nomeadamente, as fomes de afecto, de
ternura, de companhia, de beleza, de cultura, de liberdade, de
participação e de autêntica festa.
fátima, a tentação
infelizmente, só há bem pouco tempo é que a maior parte da
população portuguesa começou a ouvir dizer - as catequeses
paroquiais sempre lho silenciaram! -que se pode ser
cristã/cristão católico romano e não acreditar nas chamadas
aparições de fátima. aliás, o jornal fraternizar tem sido, neste
particular, um dos portadores desta boa notícia.
mas, agora, é preciso, imperioso e urgentemente, dar um passo
mais, e passar a proclamar com audácia, que fátima e a sua
senhora não só não fazem parte da fé cristã, como até constituem
uma tentação e são, porventura, o maior perigo e o maior
obstáculo ao despertar e ao desenvolvimento da genuína fé cristã
no nosso país e no mundo.
É verdade que muita gente, quase em desespero de causa,
contra-argumenta: mas: e o milagre do sol? não prova nada? não
foi a confirmação da verdade das aparições de fátima?
para o jornal fraternizar, o milagre do sol é uma narrativa em
tudo idêntica às narrativas de milagres que os fanáticos dos
cultos em honra das deusas das religiões agrárias e pré-cristãs
do paganismo não se cansavam de proclamar aos quatro ventos, na
esperança de, assim, conseguirem novos adeptos.

--159--

felizmente, não é por aí que vai a fé cristã. nos milagres, a


fé cristã vê manifestação de poder demoníaco, que oprime e
aliena as pessoas, desperta e alimenta medos, tolhe movimentos
libertadores e reivindicativos, fomenta submissão e gera
passividade.
basta ver o que, a propósito, escreve o livro do apocalipse, no
capítulo 13, sobre os milagres que a "fera", controlada pelo
"dragão" - uma espécie de anti-deus - realiza no império
izomano, para mais facilmente subjugar as populações.
ora, o deus que se nos revelou em jesus cristo e em maria, sua
mãe, recusa a autoria dos milagres, o que, só por si explica por
que as populações não evangelizadas estão sempre prontas a
correr para as deusas e os deuses do paganismo, estilo senhora
de fátima, mais do que a acolher deus e o seu espírito, no mais
dentro da sua consciência.
mas deus, ao contrário dos deuses e das deusas, recusa os
milagres, pela simples razão de que a sua glória não consiste na
subjugação/humilhação do ser humano, mas na sua integral
libertação/exaltação e plena autogestão. por sinal, duas coisas
que a senhora branca de fátima jamais conseguiu fomentar nas
multidões subdesenvolvidas e tolhidas por medos ancestrais que,
infantilmente, se lhe dirigem.
por isso, tem de se concluir que, por maiores e numerosos que
possam ser os milagres atribuídos à senhora de fátima, ela não
tem a inconfundível marca de deus - e que, historicamente, não é
outra senão a libertação da alienação para a liberdade fraternal
e solidária (cf. mt 12, 28 e gálatas 5, 1) -, pelo menos, do
deus de jesus e de maria. tem, isso sim, tudo a ver com a "fera"
manipulada pelo "dragão" (ou anti-deus), de que fala o
apocalipse, capítulo 13.

--160--

22
teologicamente, um vómito .
os dois textos que o jornal fraternizar apresenta a seguir são
não só eventualmente chocantes, mas sobretudo, eventualmente
repugnantes, asquerosos, repelentes. e, do ponto de vista da
teologia cristã, são um vómito. um escarro.
apesar disso, nunca foram denunciados pela nossa igreja
católica. nem pela respectiva universidade. tão-pouco pela sua
faculdade de teologia. pelo contrário, sempre contaram com o
canónico aval da hierarquia da nossa igreja. e, ainda hoje, são
apresentados por ela, como se fossem a melhor actualização do
próprio evangelho de deus que a humanidade, um dia, pôde
conhecer, de forma plena e definitiva, em jesus de nazaré, o
cristo. quando, afinal, bem vistas as coisas, tanto um como
outro são a sua negação pura e simples.
urge, por isso, denunciá-los. combatê-los. desautorizá-los. e
ter a audácia de apresentar, em seu lugar, o autêntico evangelho
de deus que ajude a libertar de raíz o inconsciente colectivo
das populações do mundo, nomeadamente, das populações
portuguesas e ocidentais que, durante gerações e gerações, foram
sistematicamente massacradas por uma catequese clérical
terrorista, como a que estes dois textos veiculam, e da qual
muitas e muitos de nós continuamos, ainda hoje, infelizmente,
mais ou menos prisioneiros. pior tolhidos. vítimas, por isso, de
ancestrais medos que nos levam a comportamentos
religiosos/sacrificiais, os mais aberrantes em santuários e
recintos, como os da senhora de fátima, por exemplo, que temos
como casas de oração, mas que não passam de covis de ladrões,
onde, em nome de deus, as populações mais oprimidas e assustadas
são, descaradamente,

--161--

roubadas dos seus bens materiais e - o que é pior - da própria


alma, isto é, da própria identidade.
ambos os textos são de autores portugueses. o
primeiro, intitulado "sobre o inferno", é a 12. meditação de um
livro que no século passado e nas primeiras décadas deste
século, foi sucessivamente reeditado, lido e pregado até à
exaustão, nas paróquias católicas do país.
chama-se "a missão abreviada" e foi escrito pelo
pe. manoel josé gonçalves couto, nascido a 1 de agosto de 1819,
na freguesia de telões, concelho de chaves, e falecido a 1 de
setembro de 1897.
a obra estava há muito esgotada, mas a comissão
de festas daquela freguesia, referente ao ano de 1995,
reeditou-a tal e qual - até com a mesma grafia - como ela saíu
das mãos do autor, e onde não falta sequer o "aditamento" que o
próprio pe. manoel do couto havia já introduzido nas últimas
edições.
o segundo texto, bem mais recente, é oficialmente
atribuído à irmã lúcia, a única sobrevivente das chamadas
"aparições de fátima", em 1917. tem por título "terceira
memória" e faz parte do livro "memórias da irmã lúcia".
trata-se duma carta que ela dirige ao então bispo
de leiria, d. josé alves correia da silva, na qual, a pretexto
de lhe contar certos pormenores sobre a pequenina jacinta,
aproveita para relatar a chamada visão do inferno que teria
ocorrido durante a chamada terceira aparição da senhora de
fátima. fala também da devoção ao imaculado coração de maria, da
qual, pelos jeitos, estará dependente a paz no mundo e a
salvação "dos pobres pecadores"!.
cristianismo terrorista
com a publicação destes dois textos, o jornal
fraternizar pretende mostrar que o cristianismo das chamadas
aparições de fátima mais não é do que a reprodução do
cristianismo terrorista veiculado pelo livro "a missão
abreviada" e pelas pregações da
chamada santa missão que, durante décadas,
nomeadamente a seguir à implantação da república, por estas
nossas paróquias de portugal fora, não só reproduziram à letra e
ao vivo a doutrina
--162--

desse livro, como até ampliaram em muito e de forma mais ou


menos dramatizada e teatralizada as múltiplas expressões de
terror nele contidas.
quem, hoje, lê a meditação sobre o inferno, apresentada pelo pe.
manoel do couto, na sua "missão abreviada", e depois, sem
solução de continuidade, lê o relato da visão do inferno que é
suposto ter sido escrito, em 1941, pela irmã lúcia, numa altura
em que ela se encontrava, há anos, enclausurada num convento
fora de portugal, mais concretamente, na cidade de tui (galiza),
não pode deixar de reparar nas semelhanças entre uma e outra
visão. as semelhanças são tantas que pode dizer-se que o texto
sobre a visão do inferno atribuído à irmã lúcia mais não é do
que uma reprodução, em poucas palavras, da meditação do pe.
manoel do couto.
temos, igualmente, de dizer que a visão do inferno que a senhora
de fátima teve o mau gosto de apresentar às crianças, na chamada
aparição de julho de 1917, não tem qualquer originalidade; pelo
contrário, coincide em tudo com a visão que, largas dezenas de
anos antes, o pe. manoel do couto, sem precisar de qualquer
"aparição", já havia apresentado às freiras do convento de
chaves, onde, durante toda a sua vida de padre, foi capelão, e
que, depois, através do livro que escreveu e das pregações da
santa missão que fanaticamente também ajudou a promover, acabou
por se espalhar por todo o país.
mas não é só a visão do inferno que coincide num e noutro
relato. também coincide a insistência que num e noutro se faz
sobre os "pecadores" e o tipo de "pecados" que levam fatalmente
ao inferno, se quem os cometer deles se não arrepender a tempo,
com verdadeira contrição.
assim como coincide a importância que um e outro texto atribuem
à "senhora", para que os pecadores, já condenados ao inferno,
por simplesmente terem faltado à missa ao domingo, ou por terem
pronunciado palavras feias, ou por terem tido alguma vida sexual
- até namorar era perigoso! -, possam ainda alcançar a graça do
perdão e, assim, escapar do seu fogo "devorante".
a única diferença, aqui, é que o texto do pe. manoel do couto
fala da senhora como "mãe das graças", ao passo que o relato

--163--

atribuído à irmã lúcia fala tão-só do "imaculado coração de


maria" (é como se, com o tempo, o resto do corpo da "senhora"
tivesse perdido importância salvífica!).
basta-lhes fátima
como o livro do pe. manoel do couto é que está na origem do tipo
de cristianismo que, mais tarde, as chamadas aparições de fátima
vieram, definitivamente, canonizar e fazer difundir por toda a
europa e até por muitas outras partes do mundo, é ele que mais
precisa de ser criticamente estudado e aprofundado.
espanta, por isso, que, até hoje, ninguém tenha saltado a
terreiro, por parte da hierarquia católica e da própria
universidade católica, para desmascarar o tipo de cristianismo
manifestamente anti-evangélico e desumano que o referido livro
difunde e que, ainda hoje, é o que mais "faz" o nosso
inconsciente colectivo católico. pelo contrário, tanto uma como
outra parecem até apostadas em contribuir para a sua
perpetuação, terceiro milénio além. .
É certo que, hoje, nem os nossos bispos, nem a universidade
católica aparecem aí empenhados na difusão do livro do pe.
manoel do couto. tão-pouco estão empenhados na promoção, no
terreno paroquial católico, da pregação das suas terríficas
santas missões. caíriam no ridículo, se o fizessem.
mas também é certo que não precisam de o fazer, para alcançarem
o mesmo resultado. basta-lhes estar, como infelizmente estão, de
corpo e alma com a senhora de fátima que, desde 1917, fez seu o
cristianismo terrorista da "missão abreviada", mediante o
recurso a um hábil contexto popular e mítico de aparições, que
mais não são do que macabras reproduções das encenações
teatralizadas pelos pregadores da santa missão, nas paróquias
católicas do país.
além disso, tudo o que de verdadeiramente substancial é hoje
atribuído às míticas aparições de fátima só veio a ser
conhecido, mais de vinte anos depois, através das chamadas
"memórias da irmã lúcia", a única das três crianças que
sobreviveu à catequese terrorista da senhora de fátima, mas a
quem, entretanto, certos eclesiásticos, manifestamente
interessados na "verdade" das

--164--

"aparições", nunca mais deixaram que levasse uma vida como as


outras raparigas da sua aldeia. e, por isso, acabaram por fazer
dela uma freira quase analfabeta - tem apenas a quarta classe do
ensino primário, talvez, porque a senhora de fátima, que
prometeu levá-la para o céu, esqueceu-se de lhe recomendar que
estudasse, abrisse os olhos e se desenvolvesse! - num convento
de clausura total; por isso, sem mais qualquer contacto com o
mundo, sob o nome de irmã lúcia de jesus e do coração imaculado.
ora, foi a esta mulher, completamente sequestrada e manipulada
por alguns eclesiásticos, a quem, para cúmulo, ela pensa que
deve voto de obediência - entre eles, estava, na altura, o pe.
josé bernardo gonçalves, um dos seus directores espirituais,
falecido em 1966 -, que, a partir de 1935, foi dada a ordem, em
nome da "santa obediência", para que escrevesse as suas
"memórias" da infância, das quais também faz parte,
evidentemente, a "terceira memória" que o jornal fraternizar
reproduz mais adiante, quase integralmente.
entretanto, como se tudo isto não fosse já bastante perturbador,
para a "verdade" das "aparições" de fátima, ainda há um outro
dado não menos perturbador a ter em conta, e que ressalta dos
próprios textos das "memórias" e de outros escritos conhecidos e
oficialmente atribuídos à irmã lúcia.
É que, a fazer fé em todos estes escritos, teremos de concluir
que a antiga "vidente" estará a viver, desde as "aparições" de
1917, num infantil e doentio tu-cá-tu-lá com a senhora de fátima
e o seu imaculado coração (!), com visões a todas as horas e em
todos os cantos e esquinas, o que, só por si, parece configurar
um tipo de vida alienada em sucessivos delírios demenciais, sem
nada de saudavelmente espiritual e humano. uma hipótese que não
pode deixar de ser manifestamente preocupante, sobretudo, se
tivermos em conta que, mesmo assim, a nossa igreja, com o papa
joão paulo ii à cabeça, insiste em fazer desta enclausurada
religiosa, a quem criminosamente impediram de ser mulher como as
demais, uma especial interlocutora de deus, para o nosso hoje e
aqui!...

--165--

falam por si
os textos que se seguem falam por si. ninguém deixe de os ler
com atenção e sentido crítico. sem infantilismos.nem
ingenuidades. facilmente concluiremos que o deus que neles é
apresentado não tem nada a ver com a boa notícia que jesus de
nazaré nos deu dele e a propósito de quem maria, sua mãe e
discípula, tão entusiasticamente cantou.
como veremos, o deus da "missão abreviada" não passa dum
terrorista, dos piores, e dum sádico. parece que nos criou só
para nos torturar nesta vida e, não satisfeito com isso, também
para nos torturar por toda a eternidade sem fim. nem sequer se
limita, como os outros terroristas da história, a torturar-nos
até ao limite de nos tirar a vida; faz-nos viver para lá da
morte, só para ter o sádico prazer de poder continuar a
torturar-nos para sempre!
igualmente, o deus da senhora de fátima e das "memórias da irmã
lúcia" não fica nada atrás do deus da "missão abreviada". dá-se
ao luxo de aterrorizar três crianças-era nitidamente um caso
policial -duas das quais, precisamente, as mais novinhas e
também as mais fragilizadas, não conseguiram resistir a tão
terrível pedagogia e, por isso, morreram antes do tempo, na
ilusão de que as suas vidas, assim precocemente interrompidas,
valiam para a "conversão dos pecadores".
É, por isso, um deus que se alimenta de criancinhas, como os
antigos deuses do paganismo, que só se deixavam aplacar na sua
fúria contra os humanos, se estes os apaziguassem com o
sacrifício de inocentes crianças. (que mãe, que pai, podem
aceitar um deus assim?!)
mas o mais caricato da teologia subjacentes às "memórias da irmã
lúcia" é a afirmação da senhora de fátima, de que o próprio deus
está empenhado em "estabelecer no mundo a devoção ao meu
imaculado coração", para, com isso, garantir a salvação "das
almas dos pobres pecadores".
do ponto de vista da teologia cristã- como é que a hierarquia da
igreja e a universidade católica não conseguem ver isso? esta
afirmação não é apenas caricata. É cretina. e, só por si,
provoca o total descrédito das "aparições", da sua "senhora" e
da sua "vidente".

--166--

por outro lado, afirmar que passaremos a viver no melhor


dos mundos, se o santo padre consagrar a rússia ao imaculado
coração (da senhora de fátima) e se as igrejas passarem a fazer
a comunhão reparadora nos primeiros sábados (por que não nos
últimos, ou nos intermédios?!), é dum infantilismo e duma
ingenuidade atrozes. e também dum anticomunismo primário
verdadeiramente preocupante.
até porque toda a revelação bíblica nunca se afligiu por aí além
com a proliferação do ateísmo no mundo, mas, sim com a
proliferação da idolatria. porque só esta, e não aquele, é que
faz dos seres humanos, escravos e súbditos, alienados e
dependentes.
o ateísmo, pelo contrário, é, em si mesmo, uma implícita
afirmação de fé cristã, na medida em que é a recusa de todas as
imagens de deus que as religiões por aí fazem proliferar e com
as quais, quem habilmente as manipula, também manipula as
populações que, nos seus medos, correm aos templos
concretamente, ao santuário de fátima, em portugal, onde tais
imagens de deus são descaradamente promovidas e cultuadas para
aí mendigarem a satisfação de múltiplas e legitimas aspirações
que, bem vistas as coisas, pertence a todos nós, seres humanos
organizados, e não a deus, satisfazer sempre com muito trabalho,
muita criatividade, muita generosidade e muita solidariedade.
os textos aí ficam. leiam-nos. e tirem as vossas conclusões.
quem sabe se, depois de tudo isto, não acabaremos todas e todos
a dizer como, em 1917, começou por dizer a senhora maria rosa,
mãe de lúcia, a propósito das chamadas aparições de fátima:
"tolices de miúdas". e quem sabe também se depois não nos vamos
decidir, finalmente, a ser cristãs e cristãos à maneira de
maria, mãe de jesus, e nunca mais à maneira da mítica senhora de
fátima que, qual vampiro, não tem escrúpulos em sugar o dinheiro
e até o sangue dos seus assustados e perturbados adoradores.

--167--

23
12. meditação do livro "a missão abreviada"
no inferno, os pecadores uivam como cães danados
considera, pecador, que o inferno é um lugar no centro da terra;
é uma caverna profundíssìma cheia de escuridão, de tristeza e
horror; é uma caverna cheia de labaredas de fogo e de nuvens de
espesso fumo. lá são atormentados os pecadores na companhia dos
demónios; lá estão bramindo e uivando como cães danados,
proferindo terríveis blasfémias contra deus. lá são atormentados
os pecadores com a pena de dano, isto é, por terem perdido
tantos e tão grandes bens que poderiam alcançar. oh! quanto
perderam aqueles infelizes! pois perderam a companhia
amabilíssima de jesus cristo e de sua mãe santíssima; perderam
também a companhia dos anjos e dos santos; perderam os deleites
inefáveis de todos os sentidos que no reino dos céus logram os
bem-aventurados; perderam a paz interior; perderam as virtudes
todas e dons da graça divina; perderam a honra de serem filhos e
herdeiros do mesmo deus; perderam a vista clara de deus;
perderam o seu último fim, o sumo bem, para que foram criados;
finalmente, perderam a felicidade eterna, e com ela tudo
perderam; só não perderam a vida para sentirem tantas e tão
grandes perdas por toda a eternidade!...
É possível, poderá exclamar o reprovado lá no inferno
desesperado; é possível que por minha culpa e própria vontade,
tenha perdido para sempre o meu deus, o meu sumo bem! por via de
coisas de sonho, por coisas passageiras perder o reino dos céus,
que era a minha eterna bem-aventurança, para me sepultar para
sempre, para sempre aqui. no inferno! antes escolher o tormento
eterno do que a glória eterna! antes escolher a maldição de deus
do que a sua bênção! antes a companhia dos demónios

--169--

do que a de jesus cristo, dos santos e anjos! e então tendo eu


perfeito juízo e entendimento! sendo eu cristão, e tantas vezes
avisado e chamado por deus, e esperando-me deus tantos anos,
para que fizesse uma verdadeira penitência! ai de mim! infeliz
de mim, que fui um louco e um insensato! de que me aproveitaram
as riquezas e os prazeres do mundo? de que me aproveitaram os
regalos e os divertimentos? de que me serviram os amigos e as
amizades? tudo se dissipou como fumo; tudo desapareceu como
sombra; tudo, finalmente, foi loucura e vaidade, porque agora me
vejo com tudo perdido, e condenado! oh! quão grande foi a minha
cegueira!...
além disto, os pecadores lá no inferno também sofrem a pena dos
sentidos, isto é, também são atormentados por um fogo o mais
devorante. os demónios, que são os executores da justiça divina,
lançarão suas garras aos pecadores reprovados e atirarão com
eles a esse poço de incêndios devoradores, onde ficarão
sepultados em camas de fogo por toda a eternidade, não
respirando senão fogo, não tocando senão fogo, não sentindo
senão fogo, não comendo senão fogo, não bebendo senão fogo... de
todo ficarão convertidos em fogo; nos olhos, nos ouvidos, na
língua, na garganta, no peito, no coração, nas entranhas, nos
pés, nas mãos; finalmente, em tudo fogo; e então um fogo, não
como este que na terra vemos, mas sim um fogo escuro, fétido e
abrasador; ainda mais horroroso que o do metal derretido; é um
tal fogo, que com as suas línguas ata e prende os membros dos
condenados, como uma serpente com as suas roscas; é um fogo que
faz um tal ruído, como se fora uma tempestade de furiosos
ventos... talvez alguém dirá: ora isso nem tanto. nem tanto!
pois desengana-te; tudo isto é uma fraca pintura, é uma ligeira
sombra, é um sonho, é nada (deixem-me dizer assim) em comparação
da verdade; para o quê, lê as sagradas escrituras.
de duas uma: ou hás-de negar a fé que professas ou admitir esta
verdade do fogo do inferno. se eu agora (deve considerar um
pecador) não posso sofrer a luz de um candeeiro, ou uma faísca
de fogo, como hei-de sofrer para sempre e para sempre, este fogo
abrasador do inferno? como hei-de habitar eternamente enterrado
em uma cama de fogo tão devorante?

--170--

vem cá, ó néscio, ó louco; tu, que ainda vives no pecado, e


alegre vais caminhando para o fogo eterno, diz-me: que há-de ser
de ti, quando te vires lá no fogo do inferno? quem te há-de
valer? porventura, tens algum remédio para apagar esse fogo? ou
podes duvidar das sagradas escrituras? ou cuidas tu que podes
andar a fazer pecados e, sem emenda, nem penitência, escapar do
fogo do inferno? se assim o pensas, oh, quanto vives enganado!...
além disto, os pecadores do inferno padecem todos os tormentos e
todos eternos, todos em sumo grau e sem esperança de alívio. lá
no inferno cada sentido tem seu próprio tormento: esses olhos
lascivos e desonestos lá são atormentados com a visão horrível
dos demónios; esses ouvidos, que se empregaram em ouvir as
murmurações, as palavras torpes e desonestas lá são atormentados
com perpétuas maldições, blasfémias e alaridos; o gosto, que se
regalava com manjares proibidos, lá é atormentado da sede e da
fome; essa língua maldita, que rogava pragas que fazia juras,
que proferia maldições e que murmurava, lá é atormentada com fel
de dragões.
também são atormentados os pecadores lá no inferno com dores
presentes, com a recordação dos prazeres passados, com a
representação dos males futuros, e com grandes iras e raivas
contra o mesmo deus; iras e raivas contra si próprios; iras e
raivas para os demónios; iras e raivas para os outros condenados
seus companheiros; finalmente, por toda a eternidade se estarão
despedaçando, cortando e mordendo uns aos outros... homem
desonesto, desengana-te; lá hás-de encontrar no inferno, talvez,
essa criatura desgraçada com quem ofendes a deus; se lá estiver,
por não se ter convertido, ela será um dos teus tormentos
eternos; ainda há-de atormentar-te mais que todos os demónios;
por toda a eternidade vos estareis mordendo e despedaçando um ao
outro... os vossos amores criminosos se converterão em iras e
raivas para sempre, enquanto deus for deus e o inferno durar...
e como são os cânticos do condenado lá no inferno? qualquer
condenado lá no inferno, raivoso e desesperado, gritará:
malditos!... malditos sejam os meus pais, porque me não deram a
verdadeira educação! maldito seja aquele confessor que me
absolveu, sem eu dar provas de emenda; seja ele maldito, porque
me enganou; foi ele a minha condenação, e guia para este inferno!

--171--

maldito seja aquele ímpio, que me perverteu; aquele escandaloso,


que me ensinou a pecar com o seu escândalo e mau exemplo!
maldito seja o anjo da minha guarda, porque me não guardou!
malditos sejam os santos e os anjos, porque me não valeram!
malditos sejam os sacramentos, porque me não aproveitaram!
maldito seja deus!... maldita seja... -cala-te, desgraçado. -não
posso. maldita seja a mãe de deus, maria santíssima, porque não
pediu por mim!...
que me dizes, pecador? queres uma sorte destas lá na eternidade?
se queres, continua na tua vida criminosa, em que tens vivido;
porque infalivelmente lá vais ter sem remédio. mas não seja
assim; emenda o pecado, e cuida em fazer uma verdadeira
penitência. a penitência mortifica-te, é verdade, mas ainda mais
te há-de mortificar o fogo do inferno por toda a eternidade, se
lá caíres. a penitência custa-te, mas ainda mais te há-de custar
um só momento no meio desse fogo devorador. não digas que não
podes, porque tu bem valente tens sido para ofender a deus.
paga, porque deves; paga agora com pouco, o que depois não podes
pagar nem ainda com tormentos eternos. e então volta-te deveras
para deus; e como nada podes sem a graça, recorre à mãe das
graças, dizendo: Ó minha mãe, ajudai-me, senhora, eu não sabia
que coisa era o inferno; estava cego de todo; vivia as maiores
misérias; porém agora estou desenganado, estou resolvido, e
quero salvar-me, minha mãe; antes quero morrer, antes caír no
inferno, do que tornar a ofender o meu deus. ajudai-me, pois,
senhora, e não permitais que eu chegue a odiar-vos e a
maldizer-vos para sempre no inferno; salvai-me, esperança minha,
salvai-me do inferno; e antes disso livrai-me de todo o pecado,
que só ele me pode condenar ao inferno; de vós espero as graças
que me são necessárias para fazer uma boa confissão, emendar
toda a culpa e dar-me todo a deus.

--172--

24
texto (quase) integral da terceira memória da irmã lúcia
como brasas transparentes
em obediência à ordem que v. ex. rev. me dá, na carta de 26 de
julho 1941, de pensar e apontar alguma coisa mais que da jacinta
me possa lembrar, pensei e pareceu-me que, por essa ordem, deus
falava, e era chegado o momento de responder a dois pontos de
interrogação que várias vezes me têm sido enviados e aos quais
tenho diferido a resposta.
parece-me que seria do agrado de deus e do imaculado coração de
maria que no livro "jacinta" se dedicasse um capítulo a falar do
inferno e outro do imaculado coração de maria. v ex. vai decerto
achar esquisito e fora de jeito este parecer, mas ele não é meu;
e deus fará ver a v. ex. rev. que aí vai a sua glória e o bem
das almas. terei, para isso, que falar algo do segredo e
responder ao primeiro ponto de interrogação.
1. o que é o segredo
o que é o segredo? parece-me que o posso dizer, pois que do céu
tenho já a licença. os representantes de deus na terra têm-me
autorizado a isso várias vezes e em várias cartas, uma das
quais, julgo que conserva v. ex. rev., do senhor pe. josé
bernardo gonçalves, em que me manda escrever ao santo padre. um
dos pontos que me indica é a revelação do segredo. algo disse;
mas, para não alongar mais esse escrito, que devia ser breve,
limitei-me ao indispensável, deixando a deus a oportunidade dum
momento mais favorável.
expus já, no segundo escrito, a dúvida que de 13 de junho a 13
de julho me atormentou e que nessa aparição tudo se desvaneceu.

--173--
2. visão do inferno
bem; o segredo consta de três coisas distintas, duas das quais
vou revelar. a primeira foi, pois, a vista do inferno!
nossa senhora mostrou-nos um grande mar de fogo que parecia
estar debaixo da terra. mergulhados em esse fogo, os demónios e
as almas, como se fossem brasas transparentes e negras ou
bronzeadas, com forma humana, que flutuavam no incêndio levadas
pelas chamas que delas mesmas saíam juntamente com nuvens de
fumo, caíndo para todos os lados, semelhantes ao caír das
faúlhas em os grandes incêndios, sem peso nem equilíbrio, entre
gritos e gemidos de dor e desespero que horrorizava e fazia
estremecer de pavor. os demónios distinguiam-se por formas
horríveis e asquerosas de animais espantosos e desconhecidos,
mas transparentes e negros. esta vista foi um momento, e graças
à nossa boa mãe do céu, que antes nos tinha prevenido com a
promessa de nos levar para o céu (na primeira aparição)! se
assim não fosse, creio que teríamos morrido de susto e pavor.
em seguida, levantámos os olhos para nossa senhora que nos disse
com bondade e tristeza:
viste o inferno, para onde vão as almas dos pobres pecadores;
para as salvar, deus quer estabelecer no mundo a devoção a meu
imaculado coração. se fizerem o que eu vos disser, salvar-se-ão
muitas almas e terão paz. a guerra vai acabar. mas, se não
deixarem de ofender a deus, no reinado de pio xi começará outra
pior. quando virdes uma noite alumiada por uma luz desconhecida,
sabei que é o grande sinal que deus vos dá de que vai a punir o
mundo de seus crimes, por meio da guerra, da fome e de
perseguições à igreja e ao santo padre. para a impedir, virei
pedir a consagração da rússia a meu imaculado coração e a
comunhão reparadora nos primeiros sábados. se atenderem a meus
pedidos, a rússia se converterá e terão paz; senão, espalhará
seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à
igreja; os bons serão martirizados, o santo padre terá muito que
sofrer, várias nações serão aniquiladas, por fim o meu imaculado
coração triunfará. o santo padre consagrar-me-á a rússia, que se
converterá, e será concedido ao mundo algum tempo de paz.

--174--

3. forte impressão para a jacinta


excelentíssimo e reverendíssimo senhor bispo: disse já a v. ex.
rev. em os apontamentos que enviei depois de ler o livro
"jacinta", que ela se impressionava muito com algumas coisas
reveladas no segredo. realmente, assim era. a vista do inferno
tinha-a horrorizado a tal ponto, que todas as penitências e
mortificações lhe pareciam nada, para conseguir livrar de lá
algumas almas.
bem; agora respondo já ao segundo ponto de interrogação que, de
várias partes, aqui me tem chegado. como é que a jacinta, tão
pequenina, se deixou possuir e compreendeu um tal espírito de
mortificação e penitência?
parece-me que foi: primeiro, por uma graça especial que deus,
por meio do imaculado coração de maria, lhe quis conceder;
segundo, olhando para o inferno e desgraça das almas que aí caem.
algumas pessoas, mesmo piedosas, não querem falar às crianças do
inferno, para não as assustar; mas deus não hesitou em mostrá-lo
a três, e uma de 6 anos apenas, e que ele sabia se havia de
horrorizar a ponto de, quase me atrevia a dizer, de susto se
definhar.
com frequência, se sentava no chão ou em alguma pedra e,
pensativa, começava a dizer: o inferno! o inferno! que pena eu
tenho das almas que vão para o infernno! e as pessoas lá vivas a
arder como a lenha no fogo! e meio trémula ajoelhava, de mãos
postas, a rezar a oração que nossa senhora nos tinha ensinado: Ó
meu jesus, perdoai-nos, livrai-nos do fogo do inferno, levai as
alminhas todas para o céu, principalmente as que mais precisarem.
agora, ex. e rev. senhor bispo, já v. ex. rev. compreenderá por
que a mim me ficou a impressão de que as últimas palavras desta
oração se referiam às almas que se encontram em maior perigo ou
mais iminente de condenação.
e ela permanecia assim, por grandes espaços de tempo, de
joelhos, repetindo a mesma oração. de vez em quando, chamava por
mim ou pelo irmão (como que acordando dum sono): francisco,
francisco, vocês estão a rezar comigo? É preciso rezar muito,
para livrar as almas do inferno. vão para lá tantas! tantas!

--175--

outras vezes, perguntava: por que é que nossa senhora não mostra
o inferno aos pecadores? se eles o vissem, já não pecavam, para
não irem para lá! hás-de dizer àquela senhora que mostre o
inferno a toda aquela gente (referia-se aos que se encontravam
na cova da iria, no momento da aparição). verás como se
convértem.
depois, meio descontente, perguntava-me: por que não disseste a
nossa senhora que mostrasse o inferno àquela gente? -
esqueci-me, respondia. - também não me lembrei!, dizia com ar
triste.
às vezes, perguntava ainda: que pecados são os que essa gente
faz, para ir para o inferno? - não sei. talvez o pecado de não
ir à missa ao domingo, de roubar, de dizer palavras feias, rogar
pragas, jurar. - e só assim por uma palavra vão para o inferno?!
- pois! É pecado! - que lhes custava estar calados e ir à
missa?! que pena eu tenho dos pecadores! se eu pudesse
mostrar-lhes o inferno!
repentinamente, às vezes, agarrava-se a mim e dizia: eu vou para
o céu; mas tu ficas cá; se nossa senhora te deixar, diz a toda a
gente como é o inferno, para que não façam mais pecados e não
vão para lá.
outras vezes, depois de estar um pouco de tempo a pensar, dizia:
não tenhas medo; tu vais para o céu. - pois vou, dizia com paz,
mas eu queria que toda aquela gente para lá fosse também.
quando ela, por mortificação, não queria comer dizia-lhe:
jacinta! anda, agora come. - não. ofereço este sacrifício pelos
pecadores que comem de mais.
quando já na doença, ia algum dia à missa, dizia-lhe: jacinta,
não venhas; tu não podes. hoje não é domingo! - não importa. vou
por os pecadores que nem ao domingo vão.
se calhava de ouvir algumas dessas palavras que alguma gente
parece fazer alarde de pronunciar, encobria a cara com as mãos e
dizia: Ó meu deus! esta gente não saberá que por dizer estas
coisas pode ir para o inferno? perdoa-lhes, meu jesus, e
converte-os. decerto não sabem que, com isto, ofendem a deus.
que pena, meu jesus! eu rezo por eles. e lá repetia a oração
ensinada por nossa senhora: Ó meu jesus, perdoai-nos...

--176--

4. olhar retrospectivo de lúcìa


aqui, ex. e rev. senhor bispo, me vem à mente uma reflexão.
por vezes me têm perguntado se nossa senhora, em alguma das
aparições, nos indicou que classe de pecados ofendiam mais a
deus, pois, segundo dizem, a jacinta, em lisboa, nomeou o da
carne. talvez, penso eu agora, como era uma das perguntas que às
vezes me fazia a mim, lhe ocorresse fazê-la, em lisboa, a nossa
senhora e que, então, lhe fosse indicado esse.
5. o coração imaculado de maria
bem, ex. e rev. senhor bispo, parece-me ter já manifestado a
primeira parte do segredo. a segunda refere-se à devoção do
imaculado coração de maria. já disse, no segundo escrito, que
nossa senhora, a 13 de junho 1917, me disse que nunca me
deixaria e que seu imaculado coração seria o meu refúgio e o
caminho que me conduziria a deus. que foi a dizer estas palavras
que abriu as mãos, fazendo-nos penetrar no peito o reflexo que
delas expedia. parece-me que, em este dia, este reflexo teve por
fim principal infundir em nós um conhecimento e amor especial
pelo coração imaculado de maria; assim como das outras duas
vezes o teve, me parece, a respeito de deus e do mistério da
santíssima trindade. desde esse dia, sentimos no coração um amor
mais ardente pelo coração imaculado de maria.
a jacinta dizia-me, de vez em quando: aquela senhora disse que o
seu imaculado coração será o teu refúgio e o caminho que te
conduzirá a deus. não gostas tanto? e gosto tanto do seu
coração! É tão bom!
depois que, em julho, no segredo, como já deixo exposto, nos
disse que deus queria estabelecer no mundo a devoção a seu
imaculado coração; que, para impedir a futura guerra, viria
pedir a consagração da rússia a seu imaculado coração e a
comunhão reparadora nos primeiros sábados, falando disto entre
nós, a jacinta dizia: tenho tanta pena de não poder comungar em
reparação dos pecados cometidos contra o imaculado coração de
maria!
já disse também como a jacinta escolheu, entre a ladaínha de
jaculatórias que o senhor pe. cruz nos sugeriu, a de: doce
coração de maria sede a minha salvação! às vezes, depois de a
dizer,

--177--

acrescentava, com aquela simplicidade que lhe era natural: gosto


tanto do coração imaculado de maria! É o coração da nossa
mãezinha do céu! tu não gostas tanto de dizer muitas vezes: doce
coração de maria! imaculado coração de maria? eu gosto tanto,
tanto!
às vezes, andava a apanhar as flores do campo e a cantar com uma
música arranjada por ela no mesmo momento: doce coração de
maria, sede a minha salvação! imaculado coração de maria,
converte os pecadores, livra as almas do inferno!
6. visões da guerra
um dia fui a sua casa, para estar um pouco com ela. encontrei-a
na cama muito pensativa. - jacinta, que estás a pensar? - na
guerra que há-de vir. há-de morrer tanta gente! e vai quase toda
a gente para o inferno! hão-de ser arrasadas muitas casas e
mortos muitos padres. olha: eu vou para o céu. e tu, quando
vires de noite essa luz que aquela senhora disse que vem antes,
foge para lá também. - não vês que para o céu não se pode fugir?
- É verdade! não podes. mas não tenhas medo! eu no céu hei-de
pedir muito por ti, por o santo padre, por portugal, para que a
guerra não venha para cá e por todos os sacerdotes.
ex. e rev. senhor bispo! v. ex. não ignora como há alguns anos
deus manifestou esse sinal que os astrólogos quiseram designar
com o nome de aurora boreal. não sei. parece-me que, se
examinarem bem, verão que não foi nem podia ser, da forma que se
apresentou, tal aurora. mas seja o que quiserem. deus serviu-se
disso para me fazer compreender que a sua justiça estava prestes
a descarregar um golpe sobre as nações culpadas, e comecei, por
isso, a pedir, com insistência, a comunhão reparadora nos
primeiros sábados e a consagração da rússia. o meu fim era não
só conseguir misericórdia e perdão de todo o mundo, mas em
especial para a europa. deus, na sua infinita misericórdia,
foi-me fazendo sentir como esse terrível momento se aproximava,
e v. ex. rev. não ignora como, nas ocasiões oportunas, o fui
indicando. e digo ainda que a oração e penitência que se tem
feito em portugal não aplacou ainda a divina justiça, porque não
tem sido acompanhada de contrição nem emenda. espero que a
jacinta interceda por nós no céu.

--178--

25
e a imagem da senhora de fátima chorou!...
está visto que maio continua a ser o mês propício a aparições e
a outros fenómenos de cariz religioso. depois das cada vez mais
remotas aparições da senhora de fátima - um delírio demencial
que, pelos vistos, resultou em cheio e, 81 anos depois, continua
ainda a trazer chorudos lucros financeiros e outros aos
responsáveis do santuário local e à hierarquia da igreja
católica -, eis que a moda parece ter pegado e a verdade é que,
um pouco por todo o lado, tanto no nosso país, como no
estrangeiro, múltiplas outras pessoas, geralmente mulheres pouco
escolarizadas e com ar manifestamente perturbado, têm-se
reivindicado de idênticos favores celestiais, protagonizados por
nossas senhoras qualquer coisa. por outro lado, sempre tem
havido quem deixe logo tudo e vá a correr ver para crer, sempre
na esperança de poder beneficiar de algum milagre. que a vida
dos pobres não está para folias. e um milagre faz sempre um
jeito do caraças.
desta vez, voltou a ser em portugal que ocorreu mais um
fenómeno, relacionado com a senhora de fátima. ou nós não
fôssemos um país onde a devoção à "senhora" sempre gozou de
grande aceitação, por parte das populações mais carenciadas e
oprimidas, em busca, não da indispensável e desejável
libertação, mas do ópio, com o qual, mais facilmente, possam
continuar, de geração em geração, a sobreviver no vale de
lágrimas que é a sua vida, e, durante a qual, não se cansam de
repetir, todos os dias e muitas vezes ao dia, aquela demoníaca
oração de arrepiar, que certas catequeses eclesiásticas lhe
ensinaram: "Ó meu jesus

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perdoai-nos e livrai-nos do fogo do inferno, levai as almas


todas para o céu, principalmente as que mais precisarem".
os jornais e alguns telejornais informaram que o estranho
fenómeno celestial aconteceu, no primeiro domingo de maio
último, agora crismado pelos donos-sacerdotes dos grandes e
pequenos centros comerciais, como o "dia da mãe". o local
escolhido foi uma desconhecida capela de um colégio, que dá pelo
nome de colégio do sagrado coração de jesus, em oleiros,
distrito de castelo branco.
a capela é do coração de jesus, mas desenganem-se os que
poderiam ser levados a pensar que foi a imagem dele que resolveu
dar espectáculo e aparecer de lágrimas nos olhos e de rosto
pintalgado de sangue. nada disso. a capela é do coração de
jesus, mas quem chorou lágrimas de sangue foi ela, a senhora de
fátima, que lá se encontra a fazer-lhe concorrência e, pelos
vistos, o deixa a léguas de distância, no que respeita a
popularidade e a fama de poder milagroso.
mas é claro que só podia ser mesmo a senhora de fátima a
protagonizar este "fenómeno celestial". porque, como por aí se
costuma dizer à boca cheia que um homem nunca chora, de modo
algum ficaria bem que o sagrado coração de jesus chorasse. isso
de chorar tem a ver, no dizer popular com o coração das
mulheres, não com o dos homens. menos ainda com o coração de
jesus.
É verdade que o evangelho de joão tem o desplante de afirmar que
jesus, no seu tempo histórico, chegou a chorar junto do túmulo
do amigo lázaro. mas essas foram lágrimas sentidamente
solidárias e, por isso, libertadoras e cheias de força
insurreccional, capazes até de levantar mortos daqueles túmulos
em que minorias privilegiadas nos querem condenar a viver; não
foram lágrimas de crocodilo, hipócritas quanto baste e que mais
não são do que lágrimas estéreis, próprias de quem faz de conta
que pretende consolar populações em desgraça, mas o que
verdadeiramente pretende é ajudar a mantê-las por todo o sempre,
na vergonhosa postura de mão estendida.
o mais chocante, porém, foi verificar que tanto o frade fundador
do colégio do sagrado coração de jesus, como o pároco onde esse
colégiv se situa, logo apareceram a tentar aproveitar-se do

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disparate, ou seja, a insinuar que se poderia estar em presença


de um fenómeno sobrenatural, portador duma mensagem da "mãe do
céu" dirigida a todas as mães da terra, e uma pública
manifestação da sua tristeza pela lei de despenalização do
aborto, recentemente aprovada pelo parlamento português, e que,
este mês de junho, vai ser sujeita a referendo nacional.
É preciso não ter um pingo de vergonha na cara. nem ter o mínimo
de bom senso e de inteligência. mas, se calhar, até foi melhor
assim. porque trata-se de um disparate tão grande e tão mal
cozinhado, que acabou por redundar num tiro que sai pela culatra
e um tiro no próprio pé.
mesmo assim, houve de imediato movimentação de populações, tão
crédulas, quanto incultas e quanto assustadas, cujas vidas mais
parecem becos sem saída, e para as quais continua a não haver
ministérios da cultura e da cìência, da educação e da saúde que
lhes valham.
o jornal fraternizar regista o facto e, mais uma vez, lamenta
que a nossa igreja católica teime em recorrer a processos deste
calibre, para levar a água ao seu moìnho. com pedagogias destas,
nos antípodas do evangelho de jesus e do evangelho de maria, sua
mãe e discípula, a nossa igreja pode continuar a contar, entre
as suas fileiras, com grande número de populações
subdesenvolvidas e aterrorizadas, que nem por isso deixa de ser
uma igreja em vertiginosa queda para o descrédito total.
"ide contar a joão baptista o que vistes e ouvistes: cegos vêem,
paralíticos andam, leprosos são purificados e surdos ouvem,
mortos ressuscitam e pobres são evangelizados. e feliz daquele
que não se escandalizar comigo" (lc 7, 22-23).
era também assim que, como igreja que se reclama do nome de
jesus cristo crucificado-ressuscitado, sempre havíamos de ser e
proceder, ou seja, sermos uma presença misericordiosa e
companheira, junto das populações roubadas de tudo, até da
consciência da própria dignidade, para, qual parteira, as
ajudarmos a saír da miséria, do subdesenvolvimento, da
consciência ingénua e do atraso cultural em que vegetam.
em vez disso, teimamos em aproveitar-nos da sua desgraça e do
seu subdesenvolvimento, ao ponto de mandarmos instalar

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mealheiros-cofre em tudo quanto é local de culto, especialmente,


em fátima e noutros grandes santuários ditos marianos, para
neles recebermos as "esmolas" e as "promessas" que nos
enriquecem a nós e as empobrecem a elas. em troca,
fornecemo-lhes overdoses de religião que têm tudo a ver com o
ópio do povo e com o medo dos deuses que as escravizam e matam.
e jamais lhes anunciamos o evangelho da libertação, que as faria
nascer de novo e ser gente de pé e protagonista.

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26
fátima: a grande ilusão
são ainda muitos os portugueses, mais elas do que eles, que
continuam a correr para fátima, de olhos postos na respectiva
senhora branca, surda e muda. vão na esperança de um milagre
que, felizmente, nunca aconteceu nem poderá alguma vez
acontecer, a não ser na imaginação mais ou menos delirante e
demencial das pessoas carenciadas (as carências levam as pessoas
a ver coisas e a ouvir mensagens, cuja realidade é apenas
virtual, à semelhança de quem avança pelo deserto e, a cada
passo, é atacado por miragens).
mesmo assim, tais pessoas não desistem. tão pouco dão sinais de
frustração. e a prova é que, no ano seguinte, com a chegada do
mês de maio, lá voltam de novo à estrada, muitos deles e delas a
pé, rumo ao recinto de fátima, onde desaguam, mais mortos do que
vivos, pelo menos, os que provêm de mais longe.
pode, por isso, dizer-se que fátima e a sua senhora branca ,
surda e muda, são a última grande ilusão das mulheres e dos
homens mais carenciados de portugal. (; não só. também do mundo.
uma ilusão dm:, no que nos diz respeito, tem muito a ver com um
certo messianismo português, politicamente centrado na figura do
adolescente rei d. sebastião, o desejado. o qual, segundo a
lenda, ainda há-de aparecer por aí, um dia, numa confusa manhã
de nevoeiro. para, finalmente, portugal ser o que até hoje não
foi capaz de ser. (nem será, enquanto nos mantivermos,
infantilmente, à espera de um qualquer messias. em vez de
ousarmos, cada dia, fazermo-nos a nós próprios, com muito suor,
muita inteligência, muita imaginação, muita alegria. e,
evidentemente, também com algum sofrimento.)

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a alimentar toda esta ilusão nacional e internacional, sem


dúvida a maior deste nosso século xx, agora a chegar ao fim, lá
estão ininterruptamente no terreno, e com a auréola de
autoridade eclesial, o reitor do santuário e o bispo de
leiria-fátima.
para cúmulo, não estão sozinhos, neste serviço, manifestamente,
obscurantista e alienante, por isso, de sinal diametralmente
oposto ao do evangelho libertador de jesus cristo que ambos
deveriam anunciar a tempo e fora de tempo.
contam ambos com a presença regular de todos os outros bispos
católicos do país, duma grande parte dos párocos portugueses, de
muitos bispos católicos do resto do mundo e do próprio papa joão
paulo ii!... para não falar já das múltiplas ordens religiosas
femininas e masculinas de portugal que, salvo raras excepções,
estrategicamente, se estabeleceram em fátima, com casas que mais
parecem hotéis, tantos são os quartos de que dispõem, a pensar,
certamente, no chorudo negócio que através delas podem
desenvolver no decorrer dos meses, nomeadamente, entre maio e
outubro.
mas há mais. para dar uma credibilidade ainda maior a esta
ilusão, financeira e politicamente tão rentável para um graúdo
sector da nossa igreja católica, alguns clérigos, mais ou menos
beatos e fanáticos, têm andado, desde há bastantes anos, a fazer
tudo por tudo para que duas das infelizes crianças das chamadas
"aparições de fátima" - o francisco e a jacinta -, que nunca
puderam chegar à idade adulta, também por culpa da senhora
branca, surda e muda, venham finalmente a ser beatificadas e,
depois, canonizadas pelo papa.
o mais trágico é que nem o reitor do santuário de fátima, nem o
bispo de leiria-fátima, nem nenhum dos outros bispos católicos
portugueses, nem nenhum cardeal da cúria do vaticano têm tido o
bom senso de, em nome do evangelho de jesus e da mais elementar
sanidade mental, colocarem um travão em toda esta histeria
católica.
pelo contrário, e a fazer fé no que, nestas últimas semanas ( de
verão, a generalidade dos "media" portugueses se fartou de
dizer, de forma mais ou menos sensacionalista, todos parecem
embarcar nessa hísteria generalizada, e até chegam a juntar as
suas às muitas pressões, oriundas de todo o mundo católico,

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para que o actual papa avance na beatificação dessas duas


infelizes crianças.
(mas que credibilidade podem ter estes pronunciamentos
canónicos, no actual contexto duma sociedade como a nossa
sociedade ocidental, felizmente, cada vez mais independente do
clero e a reger-se por critérios de vida saudavelmente
diferentes dos moralistas critérios eclesiásticos?)
ora, é preciso que se diga, sem rodeios e sem subterfúgios que,
com a beatificação destas duas crianças ou sem ela, fátima é,
hoje, com tudo o que, real e simbolicamente, lá se realiza, o
que temos de mais contrário ao evangelho de jesus cristo, em
portugal.
os bispos da nossa igreja católica e todo o seu clero, bem como
os teólogos da respectiva universidade, sabem que esta
afirmação-denúncia, apesar de soar eventualmente chocante aos
ouvidos de muita gente, nomeadamente, da gente menos ilustrada e
cristãmente menos guarnecida, não deixa de ser, teológica e
evangelicamente, irrefutável.
se, entretanto, não a fazem sua, com esta mesma frontalidade com
que ela aqui acaba de ser publicamente assumida, e tão-pouco são
pastoralmente consequentes, é porque lhes faltarão lucidez e
audácia bastantes. apareça, porém, o primeiro a desmenti-la de
forma, teológica e evangelicamente, fundamentada. fica aqui o
desafio.
nem nos impressione, a este propósito, tão elevado e tão variado
número de pessoas que, de todo país e de todo o mundo, corre
para fátima. nunca o envolvimento das multidões foi, só por si,
sinal automático de verdade. muito pelo contrário.
também no tempo histórico de jesus, jerusalém e o seu grandioso
templo eram objecto de regulares peregrinações, que envolviam
muitos milhares de judeus, oriundos das terras da palestina e
dos países da diáspora; e nem por isso jesus embarca na onda ,
quando, na sua missão de evangelizador enviado por deus, acaba
por ter de enfrentar toda aquela movimentação religiosa e
comercial. pelo contrário, tem a lucidez e a audácia bastantes
para denunciar tudo aquilo como demoníaco e inumano, pois,
embora fosse feito a coberto do nome de deus, não

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passava de iníquo negócio religioso, manipulação e opressão das


multidões carenciadas, numa palavra, blasfémia e sacrilégio.
a denúncia custou-lhe a vida, mas ficou, para sempre, como a
verdade feita gesto histórico que, qual espada de dois gumes,
tem, desde então, atravessado libertadoramente os séculos e,
onde quer que seja proclamado, continua a derrubar as mesas de
todos os cambistas e de todos os comerciantes religiosos,
clérigos ou não, os quais, a coberto do nome de deus, sempre se
governam, reforçam privilégios, consolidam posições de prestígio
e de poder; numa palavra, comportam-se, diante das massas
humanas, como se fossem infalíveis e poderosos deuses, e não
simples mortais como elas. e tanto assim é, que estas mesmas
massas humanas, apesar de (quase) não terem onde caír mortas,
ainda são levadas por eles a pensar que têm de os revemnciar. e
sustentar, nem que seja com o próprio sangue!
o que, objectivamente, materializa um crime de lesa-humanidade e
de lesa-nome de deus. um crime que fátima e a sua senhora
branca, surda e muda, continuam, hoje, a fomentar. impunemente.
pelo menos, até ver.

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