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Seja usando animais na agricultura, a impressora ou o computador moderno, não há

dúvida de que a tecnologia desempenhou um papel extremamente importante em nossas vidas


pelo tempo que conseguimos nos lembrar. Hoje, porém, há cada vez mais pessoas misturando
tecnologia e biologia no que está emergindo rapidamente como uma identidade ​ciborgue​.
Mas o que conta como ​ciborgue​? Marcapassos e membros biônicos, claro, mas e os óculos?
Rastreadores fitness? Ioga? Ou até mesmo métodos contraceptivos? E ainda, no que essa
nova identidade emergente implica em nosso conceito de humanidade?
Quando falamos sobre ciborgues, o que vem à mente, na maioria das vezes, é alguma
coisa muito específica, algo como um computador por baixo de carne humana. Porém,
quando foi primeiramente usado, o termo possuía um significado muito mais amplo. No anos
1960, durante toda a turbulência cultural causada pela perspectiva da ida do homem para a
lua, Manfred Clynes e Nathan Kline, dois professores do MIT, estavam preocupados com o
fato de que não sabemos como as condições do espaço afetariam o corpo humano e pensavam
em maneiras de transformar nossa prisão carnal em algo mais seguro para nossas futuras
viagens estelares, afirmando que,

“In the past evolution brought about the altering of bodily functions to suit
different environments. Starting as of now, it will be possible to achieve this
to some degree without alteration of heredity by suitable biochemical,
physiological, and electronic modifications of man’s existing modus
vivendi.” (CLYNES & KLINE, 1960, p. 26)

Foi nesse contexto que o termo ciborgue foi criado e era imaginado como algo em que
se incorpora elementos exógenos ao corpo para que possa-se estender o controle auto
regulatório e assim ser capaz de se adaptar aos mais diferentes tipos novos de ambientes.
É interessante notar que nessa primeira definição de ciborgue não há nada que
especifique esses componentes externos como sendo necessariamente componentes de
máquinas, isto é, a questão, realmente, é: como ter certeza que a nave espacial, o qualquer
outra coisa que esteja ao redor do astronauta, saiba o que ele precisa sem a necessidade se
apertar botões ou qualquer coisa do tipo. Dessa forma, eles também falam de coisas como
hipnose, yoga, drogas de uso contínuo e todas esses seriam “ciborgueanas”, pois partem do
princípio de que você pode estender as funções e controle do seu corpo fazendo esse tipo de
melhoramento ou aprendendo como melhor aproveitar sua mente.
Se fala de tecnologia sobre coisas como linguagem, animais, carruagens e os mais
diversos tipos de ferramentas e elas realmente se encaixam em um tipo de definição mais
ampla do que é a tecnologia, baseada em critérios como a maneira que as pessoas a utilizam e
o que ela faz. No caso da discussão sobre ciborgues isso é particularmente interessante pois,
por conta das diferentes ideias sobre o que é tecnologia, alguns podem dizer que coisas como
óculos são tecnologias que te fazem um ciborgue, ou que todas as pessoas com marca-passo
são ciborgues, enquanto outros podem se sentir incomodados com essas afirmações.
​O relativamente recente crescimento da popularidade do conceito de ​body hacking
é também interessante para essa discussão. Há um grande espectro que vai desde pessoas
implantando antenas em suas cabeças para conseguir ver cores, como o artista Neil
Harbisson, até pessoas colocando manteiga em seus cafés e todas essas diferentes formas se
encaixam debaixo do conceito guarda-chuva que é o body hacking. Unir todas essas práticas
em um só termo pode ser um importante movimento político, na medida em que ajuda a
normalizar aquelas que se encontram mais perto da extremidade desse espectro e, dessa
forma, conseguir que médicos estejam mais dispostos a fazer algumas dessas cirurgias, por
exemplo. Por isso é importante trabalhar a semântica de tudo isso, é preciso descobrir o que
está no centro do diagrama de Venn, onde tudo se sobrepõe.
As mulheres vem fazendo coisas para controlar o corpo, sendo os métodos
contraceptivos os melhores exemplos, além de tecnologias mais atuais como aplicativos de
acompanhamento e controle do ciclo menstrual. Então, basicamente, as mulheres tem sido
muito conscientes sobre o funcionamento da fertilidade há muito tempo, provavelmente há
mais tempo que os médicos. Esse tipo de tecnologia, como o DIU, que permite as mulheres
um controle maior sobre seus corpos podem as constituir como ciborgues.
https://splinternews.com/bodyhackers-are-all-around-you-they-re-called-women-1793856408

Katherine Hayle “How we became post-human” e a ideia de pós-humanismo talvez


seja uma descrição mais apta do que isso seja, tentando descobrir a pós-humanidade tanto no
sentido de o que vem depois de qualquer que seja nossa definição de humanidade agora, mas
também no sentido de abordar qual e a crise que a humanidade está lidando e está mais
interessado e dá mais ênfase a parte humana, o que nos torna humanos e de que maneiras
estamos todos conectados.
Donna Haraway diz que o ciborgue é algo que promove uma espécie de casamento
entre a tecnologia de mercado e o que é mais pessoal, isto é, o corpo como campo de guerra
político. Ela fala sobre como as mulheres são quase inerentemente subversivas, no sentido de
que o corpo padrão é masculino, branco e “não-deficiente” e, dessa forma, qualquer corpo
que não esteja dentro desses padrões se torna automaticamente subversivo e as coisas que
esses corpos estão fazendo já os torna uma espécie de ciborgue.
Humanismo, focado no humano e Pós-humanismo, que visa a desconstrução e
descentralização do que significa ser humano. Moralidade clássica: acredita no “humano”
como entidade pura e inerentemente valiosa que vale a pena defender. Concebido em um
útero por uma mãe amorosa, au naterau etc. Existem diferentes tipos de humanismo que
acreditam em coisas diferentes, mas será usado aqui o termo humanista para enfatizar um
nível de suposições que elas compartilham: que existe uma natureza humana e que o humano,
em oposição ao “inumano” (animais por exemplo) são os sujeitos primários do mundo. O
ciborgue, essa amalgama entre humano e maquina, ameaça a própria identidade que os
humanistas procuram defender.
A humanidade sempre foi obcecada em definir a si mesma pelo que não são. Não
somos como animais pois usamos ferramentas e temos pensamentos abstratos. Na época da
Grécia antiga essa ansiedade se manifestava principalmente em criaturas interespécies como
centauros e minotauros. A combinação de espécies perturbava os limites tradicionais da
sociedade grega – entre homem e animal, polis e natureza etc. Frankenstein??
Hoje em dia, essa ansiedade sobre os limites do humano se encontra no nosso
relacionamento com a tecnologia. Em vez de humano vs animal, agora temos humano vs
animal/maquina/micróbios. Uma pesquisa básica de filmes do gênero sci-fi revela uma
miríade de filmes com medo de manipulação genética humana, maquinas ultrapassando e
controlando humanos. Em seu ensaio, “O Manifesto Ciborgue”, a filosofa Donna Haraway
investiga nossa construção do humano e como esse abismo entre organismo e máquina é
sempre reforçado por um tipo de “guerra de fronteiras”. Defende-se a figura do humano
contra as degradações, impuridades, infecções etc.
A distinção entre humano e inumano não é tão clara e a própria ideia de humano
vem cercada de diversos mitos. O primeiro mito é sobre a pureza do corpo humano. Para
Haraway, esse limite é sempre uma ficção e os maiores executores da fronteira entre humano
e inumano são ignorantes quanto a quão porosa essa fronteira é. Aquelas coisas que nos
tornam humanos – o uso de ferramentas, linguagem etc – são também vistos em outros
primatas e até mesmo pássaros. Nós também somos moldados, de acordo com Haraway, pelo
ambiente. Na vida real, o corpo humano “puro” está cheio de bactéria e DNA estrangeiros.
O segundo mito é sobre a natureza humana e moralidade. Para muitos humanistas,
ou há uma natureza humana que nos faz inerentemente bons, ou, pelo menos, um livre
arbítrio que permite a possibilidade da ética: diferente dos animais ou maquinas, nós
podemos escolher ser virtuosos. Para Haraway, todo o nosso ser é moldado pelas culturas,
sociedades e ambientes com os quais entramos em contato.
Terceiro mito é o medo da tecnologia invadir a natureza humana. Usar ferramentas
é o que nos permitiu evoluir no que somos hoje e as tecnologias que desenvolvemos pelo
caminho como agricultura, arquitetura e manufatura nos moldaram tanto quanto moldamos o
mundo com elas.
A figura do ciborgue cria uma ruptura no entendimento de humano, complicando
esses mitos. Para Haraway, isso é algo bom: nossa concepção rígida do que é humano é o que
permite as pessoas a ostracizar e justificou séculos de opressão contra o outro racializado.
Haraway argumenta para uma “politica ciborgue”, que rejoices “in the illegitimate
fusion of animal and machine”. Em outras palavras, ao inves de negar que somos ciborgues,
devemos abraçar isso. Não somos apenas a fusão de carne e maquina, mas sociedade, história
e cultura.

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