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Os Lusíadas para gente nova

A abordagem de Os Lusíadas e da obra de Camões em geral, por parte dos mais novos,
torna-se atualmente cada vez mais problemática: o descaso dos programas escolares em relação
à língua portuguesa nas últimas décadas, com uma confrangedora desvalorização dos seus
clássicos, e a própria impreparação de muitos professores, que já foram vítimas de um ensino e
de uma formação deficientes, contribuem para essa situação. Por outro lado, não obstante o
mérito de algumas abordagens didáticas tentadas aqui e ali, a matéria verbal do poema é muito
complexa, do léxico à sintaxe e ao tecido de processos
retóricos e figuras de estilo, sem contar as constantes
alusões a personagens da mitologia e da História e ainda a
própria extensão de uma epopeia que se prolonga por 1102
estâncias. Tudo isso contribui para gerar um desinteresse
que se vai traduzindo numa gravíssima «desaprendizagem»
da língua portuguesa e numa espécie de renitência
enfadada, quando não de rejeição total, para com os seus
principais autores.
Por isso, teve o autor a ideia de preparar «uns»
Lusíadas para os mais novos, reduzindo-lhes a extensão em
cerca de dois terços, estruturando os episódios mais
conhecidos em termos bastante simplificados, enfim
procurando explicar, comentar, interpretar em termos
muito acessíveis as passagens principais da epopeia, mas
fazendo-o também em oitava rima de matriz camoniana, de
modo a que os leitores mais novos, digamos entre os 12 e os
15 anos, possam «entrar» mais fácil e amenamente na matéria do poema.
Vai assinalado em itálico tudo o que corresponde à autoria camoniana (estâncias, partes
de estâncias, simples versos ou fragmentos deles); em redondo vai o resto. É evidente que a
síntese apresentada não pode dispensar a leitura da obra original. Nunca será demais repetir
esta prevenção. Aqui pretende-se, tão somente, fornecer uma espécie de guia de leitura desse
monumento esplendoroso da nossa língua que é o texto integral de Os Lusíadas, para pessoas
que, por qualquer razão, não possam fazê-lo por enquanto, muito em especial para os
adolescentes que ainda não tenham tido oportunidade de contactar com o poema camoniano.

VASCO GRAÇA MOURA

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Os Lusíadas para gente nova, Vasco Graça Moura (texto com supressões) Página | 1
SABEMOS MUITO POUCO DE CAMÕES

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A Dom Sebastião, que assim se chama
O jovem rei de Portugal, oferece
O seu poema e lhe promete a fama
Que a nossa terra junto ao mar merece.
Diz como navegou Vasco da Gama
Mas conta a nossa História, não se esquece
Do que antes sucedeu, nem dos perigos
Que o mar nos fez correr, mais que aos antigos.
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Sabemos muito pouco de Camões, O inimigo às vezes é Castela,
Mal sabemos quem foram os seus pais, Que nem bons ventos traz, nem casamentos;
Quanto ao seu nascimento há discussões, Outras vezes são Mouros, na querela
Dos seus estudos não se sabe mais. Com os Cristãos em todos os momentos,
Passou dezassete anos aos baldões E depois, pelo mundo, ao ir à vela,
Na Índia e em paragens orientais. São Muçulmanos sempre e aos seus intentos
Fazia belos versos muitas vezes. Camões dá nomes feios e cruéis,
N'0s Lusíadas canta os Portugueses. De que o menos cruel é «infiéis».
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Quando voltou a Portugal, saiu E assim vai n'Os Lusíadas contando
O seu livro. Camões era tão pobre Como é que Portugal se originou
Que não se sabe como o conseguiu. E teve reis que o foram aumentando,
Talvez tivesse a ajuda de algum nobre E depois como é que navegou
E ajuda com certeza ele pediu. Até chegar à Índia, mas quando
Enfim, o livro sai e se descobre Lá foi parar, na Índia não parou,
Que aquele altivo português de gema E foi mais longe ainda, coisa rara!
Pusera a nossa História num poema. E se mais mundo houvera, lá chegara.
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Esse poema chama-se epopeia Também é importante ter presente
Que era uma forma usada antigamente Que há deuses e deusas em conflito,
Em que um herói levando a vida cheia Coisa que enche de espanto toda a gente
De combates terríveis segue em frente Porque pintam o bom e o bonito
E acaba vencedor, porque guerreia Fazendo andar a história para a frente,
Em nome do seu povo e é tão valente O que para o leitor é esquisito,
Que em coragem e força é sobre-humano. Pois Camões é cristão, muito cristão,
O povo aqui é o peito lusitano. Mas quanto à fantasia é bem pagão.
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Para o fazer, Camões usou a oitava O que ele aqui nos conta tem três planos:
Que é feita de oito versos a rimar. O dos deuses de outrora, céu além,
Até ao sexto as rimas alternava, O dos homens, na terra e oceanos,
Nos dois finais a rima vai a par. E no fundo do mar, deuses também.
Com oitavas assim, organizava Façam o que fizerem, os humanos
Essa história que tinha de contar Vão encontrar os deuses e convém
Em cantos que são dez e a nós, ao lê-los, Lembrar essa maneira de fazer
Espanta como pôde ele escrevê-los. Uns belos versos para a gente ler.

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Às vezes é difícil a leitura Dos chamados clássicos, Camões
Dos nomes que esses deuses pagãos tinham: Muita coisa aprendeu e imitou.
Apolo ou Febo para o Sol na altura Um clássico só dá boas lições:
E Marte para a Guerra. Outros alinham: É um modelo antigo que ensinou
Baco, que é contra nós nessa aventura, Gerações, gerações e gerações
E Vénus, deusa amada, a quem convinham E que a nossa cultura assim marcou.
Os feitos portugueses e que é filha Ora Camões os clássicos leu bem
Do pai Júpiter que acima deles brilha. E os soube usar melhor do que ninguém.
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Neptuno é o deus dos mares, o dos ventos, De Homero, da Ilíada e Odisseia,
Éolo, também faz aparições, De Virgílio e da Eneida e seus heróis,
E há vários outros deuses turbulentos, Tinha Camões sempre a memória cheia
Velhos mitos e grandes invenções: E muito o inspiraram esses dois:
Ulisses e Eneias são portentos «Canto as armas e o homem» é a ideia
De manha e luta, ardis, complicações, Do começo da Eneida, o que depois
E há deusas, como Tétis ou Diana, A sua voz imita em altos brados:
Muito formosas na aparência humana. […] «As armas e os Barões assinalados»...
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E à nossa língua deu um brilho novo E assim ele começa anunciando
E uma moderna musicalidade, O que é que vai cantar, homens e feitos
Com palavras que são de todo o povo Que os portugueses foram praticando
E algumas mais difíceis, é verdade. Com esforço e valor de heroicos peitos,
Só de ver como o faz eu me comovo, A triunfar na guerra e dominando
Como ele exprime a nossa identidade, Mares que a Neptuno eram sujeitos.
Dizendo o que se pensa, sabe e sente, Há nesse começar um grande estilo,
De uma maneira muito cá da gente. E acreditem, vale a pena ouvi-lo:

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CANTO De grego Ulisses, de Eneias troiano,
Cessem as grandes rotas que fizeram;
PRIMEIRO Cale-se de Alexandre e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Proposição Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
Invocação A quem Neptuno e Marte obedeceram.
Dedicatória Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Consílio dos deuses Que outro valor mais alto se alevanta.
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As armas e os Barões assinalados Se na proposição Camões coloca
Que da Ocidental praia Lusitana O que nos quer contar, logo a seguir
Por mares nunca de antes navegados As suas musas, Tágides, invoca,
Passaram ainda além da Taprobana, Ninfas do Tejo às quais passa a pedir
Em perigos e guerras esforçados Deem ao seu engenho ardente, em troca
Mais do que Prometia a força humana, Da flauta amável que fazia ouvir,
E entre gente remota edificaram Aquela força retumbante e cheia
Novo Reino, que tanto sublimaram; De um instrumento próprio da epopeia.
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E também as memórias gloriosas E vós, Tágides minhas, pois criado
Daqueles Reis que foram dilatando Tendes em mi um novo engenho ardente,
A Fé, o Império, e as terras viciosas Se sempre em verso humilde celebrado
De África e de Ásia andaram devastando, Foi de mim vosso rio alegremente,
E aqueles que por obras valorosas Dai-me agora um som alto e sublimado,
Se vão da lei da Morte libertando, Um estilo grandíloco e corrente,
Cantando espalharei por toda parte, Por que de vosso Tejo já se diga
Se a tanto me ajudar o engenho e arte. Que às Musas não inveja a fonte antiga.

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Dai-me uma fúria grande e sonorosa, Pouco depois, começa-se a narrar
E não de agreste avena ou frauta ruda, A viagem dos nossos marinheiros.
Mas de tuba canora e belicosa, Lá vai Vasco da Gama a navegar,
Que o peito acende e a cor ao gesto muda. E vão com ele muitos companheiros.
Segue a dedicatória e é bem vistosa: Querem chegar à Índia pelo mar
Nela Camões o jovem rei saúda, E são nessa viagem pioneiros.
Porque ao nascer nos trouxe a evidência No momento em que os vemos assim ir,
De Portugal manter a independência. E que os deuses resolvem reunir.
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Dai-me uma fúria grande e sonorosa, Já no largo Oceano navegavam,
E não de agreste avena ou frauta ruda, As inquietas ondas apartando;
Mas de tuba canora e belicosa, Os ventos brandamente respiravam,
Que o peito acende e a cor ao gesto muda. Das naus as velas côncavas inchando;
Segue a dedicatória e é bem vistosa: Da branca escuma os mares se mostravam
Nela Camões o jovem rei saúda, Cobertos, onde as proas vão cortando
Porque ao nascer nos trouxe a evidência As marítimas águas consagradas,
De Portugal manter a independência. Que de animais marinhos são cortadas,
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E vós, ó bem nascida segurança Quando os Deuses no Olimpo luminoso,
Da Lusitana antiga liberdade, Onde o governo está da humana gente,
E não menos certíssima esperança Se ajuntam em consílio glorioso,
De aumento da pequena Cristandade; Sobre as cousas futuras do Oriente.
Vós, ó novo temor da Maura lança, Preocupa-os o nome já famoso
Maravilha fatal da nossa idade, Que os Portugueses têm claramente
Dada ao mundo por Deus, que todo o mande, E também esta nova expedição:
Para do mundo a Deus dar parte grande. Uns são a favor dela e outros não.
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Vereis amor da pátria, não movido E Júpiter dizia: «Têm passados
De prémio vil, mas alto e quase eterno; Na viagem tão ásperos perigos,
Que não é prémio vil ser conhecido for um pregão Tantos climas e céus experimentados,
do ninho meu paterno. Tanto furor de ventos inimigos,
Ouvi: vereis o nome engrandecido Que sejam, determino, agasalhados
Daqueles de quem sois senhor superno, Nesta costa Africana como amigos;
E julgareis qual é mais excelente, E, tendo guarnecido a lassa frota,
Se ser do mundo Rei, se de tal gente. Tornarão a seguir sua longa rota.»
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Ouvi, que não vereis com vãs façanhas, Mas Baco não podia estar de acordo
Fantásticas, fingidas, mentirosas, Porque tinha ficado convencido
Louvar os vossos, nem com as patranhas De que esta gente que ia agora a bordo
De antigas musas: só com gloriosas O faria nas Índias esquecido.
Ações de portugueses e tamanhas, Ele era o deus do vinho e era gordo
E verdadeiras, mais que fabulosas. E, aqui pra nós, bastante presumido.
Ouvi meu canto então, ó jovem rei, Porém Vénus mostrava-se a favor,
Que em vez de fantasias vos darei: Por ter aos Portugueses grande amor.
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Egas Moniz, Fuas Roupinho, Nuno, É por isso que vemos Vénus bela,
Os doze de Inglaterra e o seu Magriço, Afeiçoada à gente Lusitana,
O Gama que no mar venceu Neptuno, Nas qualidades a lembrar-lhe aquela
Um Pacheco fortíssimo e com isso Gente que ela tanto ama e que é a romana,
Mais reis e mais heróis, e lhes reúno E em toda a valentia que revela
Almeidas que morreram em serviço, A sua audácia em terra mauritana,
Albuquerque terríbil, Castro forte, E na língua, na qual quando imagina,
E outros em quem poder não teve a morte. Com pouca corrupção crê que é a Latina.

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Marte, que amava Vénus, decidiu Vasco da Gama, o forte Capitão,
Apoiar tudo quanto ela dizia Que a tamanhas empresas se oferece,
E com ar furioso repetiu De soberbo e de altivo coração,
Que dar ajuda aos nossos se devia. A quem fortuna sempre favorece,
E a Júpiter seu pai então pediu Para se aqui deter não vê razão,
Que desse apoio a tanta valentia. Que inabitada a terra lhe parece.
Júpiter concordou, baixando a face, Por diante passar determinava,
Que o bom caminho ao Gama se mostrasse. Mas não lhe sucedeu como cuidava.
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As naus já navegavam entretanto Eis aparecem logo em companhia
Perto de Moçambique e não sabiam Uns pequenos batéis, que vêm daquela
Que terra fosse aquela nem, portanto, Que mais chegada à terra parecia,
Que gentes afinal ali viviam Cortando o longo mar com larga vela.
E que ao verem a armada, com espanto A gente se alvoroça e, de alegria,
Em seus pequenos barcos acorriam E o sabe mais que olhar a causa dela.
E um grita, outro exclama, um outro aponta, «Que gente será esta?» (em si diziam)
É isso o que Camões aqui nos conta: «Que costumes, que Lei, que Rei teriam?» […]

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Do teu Príncipe ali te respondiam
CANTO As lembranças que na alma lhe moravam,
Que sempre ante seus olhos te traziam,
TERCEIRO Quando dos teus formosos se apartavam;
Inês de Castro
De noite, em doces sonhos que mentiam,
De dia, em pensamentos que voavam;
E quanto, enfim, cuidava e quanto via
[…] Eram tudo memórias de alegria.
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Ainda na primeira dinastia É quando o pai de Pedro, cruelmente,
Que fundou e deu força a Portugal, Tirar Inês ao mundo determina
Camões conta outro caso (e bem valia Numa altura em que o filho estava ausente,
A pena ler aqui o original), E com os seus amigos a assassina,
Depois de a formosíssima Maria O que não foi assim muito valente,
Ter conseguido o apoio paternal. E quanto ela sofreu bem se imagina,
Já vamos fazer assim como se fez Pedindo ao rei que a vida lhe poupasse
O drama de Dom Pedro e Dona Inês. E c’os filhos pequenos a deixasse.
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É o trágico amor da nossa história: Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito
O rei Afonso Quarto vem da guerra (Se de humano é matar uma donzela,
E da batalha que o cobriu de glória, Fraca e sem força, só por ter sujeito
Porém, quem muito acerta, muito erra: O coração a quem soube vencê-la),
O caso triste, e dino da memória A estas criancinhas tem respeito,
Que do sepulcro os homens desenterra, Pois o não tens à morte escura dela;
Aconteceu da mísera e mesquinha Mova-te a piedade sua e minha,
Que despois de ser morta foi Rainha. Pois te não move a culpa que não tinha.
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Estavas, linda Inês, posta em sossego, Queria perdoar-lhe o rei benino,
De teus anos colhendo doce fruto, Ouvindo-a, mas há outros que são
Naquele engano da alma, ledo e cego, Pela morte de Inês: foi o destino
Que a Fortuna não deixa durar muito, E gente que assim quis sem mais perdão.
Nos saudosos campos do Mondego, Arrancam das espadas de aço fino
De teus formosos olhos nunca enxuto, Os que defendem essa opinião.
Aos montes ensinando e às ervinhas Ó peitos carniceiros!, a ironia
O nome que no peito escrito tinhas. É de Camões por tanta valentia.
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Os brutos matadores não ouvem nada Não correu muito tempo que a vingança
Do que lhes suplicava ali aquela Não visse Pedro das mortais feridas,
Pobre mulher que matam com a espada. Que, tomando do reino a governança,
E como a fresca flor, mesmo a mais bela, A tomou dos fugidos homicidas.
Perde perfume e cor sendo cortada, É Pedro de Castela quem lhos lança,
Tal está morta a pálida donzela, Que ambos respeitam pouco humanas vidas
Secas do rosto as roas e perdida E cada um combina de entregar
A branca e viva cor, co’a doce vida. Inimigos do outro que apanhar.
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As filhas do Mondego a morte escura Do justo e duro Pedro nasce o brando
Longo tempo chorando memoravam, (Vede da natureza o desconcerto!)
E, por memória eterna, em fonte pura Remisso e sem cuidado algum, Fernando,
As lágrimas choradas transformaram. Que todo o Reino pôs em muito aperto;
O nome lhe puseram, que inda dura, Que, vindo o castelhano devastando
Dos amores de Inês, que ali passaram. As terras sem defesa, esteve perto
Vede que fresca fonte rega as flores, De destruir-se o reino totalmente,
Que lágrimas são a água e o nome Amores! Que um fraco Rei faz fraca a forte gente.

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Em tão longo caminho e duvidoso
CANTO Por perdidos as gentes nos julgavam,
QUARTO As mulheres c'um choro piedoso,
Os homens com suspiros que arrancavam.
As despedidas de Mães, Esposas, Irmãs, que o temeroso
Belém Amor mais desconfia, acrescentavam
O Velho do Restelo A desesperação e frio medo
[…] De já nos não tornar a ver tão cedo.
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Um dia, estava Manuel dormindo Qual vai dizendo: ‘— Ó filho, a quem eu tinha
E sonhou que dois rios lhe surgiam Só para refrigério e doce emparo
Como dois velhos que ali tinham vindo, Desta cansada já velhice minha,
E a conquista da Ásia lhe anunciam; Que em choro acabará, penoso e amaro,
Um deles era o Ganges, outro o Indo, Porque me deixas, mísera e mesquinha?
Que de antemão vencidos se diziam. Porque de mim te vás, ó filho caro,
«Pois este sonho intriga o rei, que chama A fazer o funéreo enterramento
A mim e à corte», continua o Gama. Onde sejas de peixes mantimento?'
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«E ouvindo então conselhos que lhe deram, Qual em cabelo: '— Ó doce e amado esposo,
Tomou a decisão de nos mandar Sem quem não quis Amor que viver possa,
Com estas naus que nos aqui trouxeram Porque is aventurar ao mar iroso
Entre perigos e medos pelo mar. Essa vida que é minha e não é vossa?
Há reis assim que um tal sucesso esperam Como, por um caminho duvidoso,
Dos sonhos que se põem a interpretar. Vos esquece a afeição tão doce nossa?
E pôs-me então o rei nas mãos a chave Nosso amor, nosso vão contentamento,
Deste cometimento grande e grave. Quereis que com as velas leve o vento?'
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A gente da cidade, aquele dia, Nestas e outras palavras que diziam,
(Uns por amigos, outros por parentes, De amor e de piedosa humanidade,
Outros por ver somente) concorria, Os velhos e os meninos os seguiam,
Saudosos na vista e descontentes. Em quem menos esforço põe a idade.
E nós, co'a virtuosa companhia Os montes de mais perto respondiam,
De mil Religiosos diligentes, Quase movidos de alta piedade;
Em procissão solene, a Deus orando, A branca areia as lágrimas banhavam,
Para os batéis viemos caminhando. Que em multidão com elas se igualavam.

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Nós outros, sem a vista alevantarmos A que novos desastres determinas
Nem a mãe, nem a esposa, neste estado, De levar estes Reinos e esta gente?
Por nos não magoarmos, ou mudarmos Que perigos, que mortes lhe destinas,
Do propósito firme começado, Debaixo dalgum nome preminente?
Determinei de assim nos embarcarmos, Que promessas de reinos e de minas
Sem o despedimento costumado, D'ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que, posto que é de amor usança boa, Que famas lhe prometerás? Que histórias?
A quem se aparta, ou fica, mais magoa. Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?
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Ao partirem as naus para a viagem Oh, maldito o primeiro que, no mundo,
Chorava toda a gente à despedida Nas ondas vela pôs em seco lenho!
Na praia do Restelo, e pela aragem Digno da eterna pena do Profundo,
Veio uma voz que era na praia ouvida, Se é justa a justa Lei que sigo e tenho!
E que trazia ali uma mensagem Nunca juízo algum, alto e profundo,
Que ninguém quis ouvir, nem de fugida. Nem cítara sonora ou vivo engenho
Era um homem e então podiam vê-lo Te dê por isso fama nem memória,
A bradar para todos no Restelo: Mas contigo se acabe o nome e glória!'»
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Era um velho, d'aspeito venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
C'um saber só d'experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:
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‘— Ó glória de mandar, ó vã cobiça (O velho do Restelo não se cala,
Desta vaidade a quem chamamos Fama! Apela à sensatez e à prudência:
Ó fraudulento gosto, que se atiça É um homem que sabe do que fala
C'ua aura popular, que honra se chama! E faz ouvir a voz da experiência,
Que castigo tamanho e que justiça Já muita gente veio a interpretá-la
Fazes no peito vão que muito te ama! Como a defesa de uma desistência,
Que mortes, que perigos, que tormentas, Mas ele só previu nos seus lamentos
Que crueldades neles experimentas! O preço humano dos Descobrimentos.)

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E nessa ocasião que uma figura
CANTO Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De disforme e grandíssima estatura;
QUINTO O rosto carregado, a barba esquálida,
Os olhos encovados, e a postura
O Adamastor
Medonha e má e a cor terrena e pálida;
Cheios de terra e crespos os cabelos,
[…] A boca negra, os dentes amarelos.»
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Porém já cinco Sóis eram passados Estavam a passar aquele oculto
Que dali nos partíramos, cortando E grande cabo dito Tormentório,
Os mares nunca d'outrem navegados, Nesse lugar lhes surge o escuro vulto
Prosperamente os ventos assoprando, Feito dum gigantesco promontório.
Quando uma noite, estando descuidados Ora ameaça, ora prefere o insulto,
Na cortadora proa vigiando, Ora se mostra muito merencório.
Uma nuvem que os ares escurece, E viram nessas vagas violentas
Sobre nossas cabeças aparece. Que passavam o Cabo das Tormentas.

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Mas seria um gigante ou um penedo? E verão mais os olhos que escaparem
Mas seria um penedo ou um gigante? De tanto mal, de tanta desventura,
o que fosse ali metia medo Os dois amantes míseros ficarem
Ao coração de cada navegante, Na férvida, implacável espessura.
E Camões inventou logo um enredo Ali, depois que as pedras abrandarem
Naquela ponta de África distante, Com lágrimas de dor, de mágoa pura,
Chamando-lhe o gigante Adamastor Abraçados, as almas soltarão
E pondo-o a descrever um grande amor. Da formosa e misérrima prisão.
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E o mesmo Adamastor fez profecias Os dois casos mais tristes de um amor
Das desgraças que ali se iam passar, Que acaba mal, em más ocasiões,
De mortes e naufrágios e avarias, São o de Inês e agora o de Leonor:
Das coisas más na terra e más no mar, Acasos, infortúnios, sem razões,
De tristezas, azares e arrelias, E a morte vil depois de muita dor.
Que muita gente iriam castigar E a contar como foi, lembra Camões
Por ter a audácia, a força e a coragem Que a beleza do corpo pouco dura,
De passar esse cabo na viagem. Prende a alma, porém não a segura.
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«Pois vens ver os segredos escondidos O Adamastor tivera uma paixão
Da natureza e do húmido elemento, Por Tétis, uma deusa do mar bela,
A nenhum grande humano concedidos, E sentindo estalar-lhe o coração
Sabe que haveis de ter o sofrimento Mandou dizer-lhe o seu amor por ela.
Das vidas e navios já perdidos A deusa, sem dizer logo que não,
Por causa deste grande atrevimento: Marcou-lhe encontro e ele, sem cautela,
Naufrágios, perdições de toda sorte, Mal se julgou a Tétis abraçado,
Que o menor mal de todos seja a morte!» Viu-se em negro rochedo transformado:
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A primeira das suas profecias «Converte-se-me a carne em terra dura;
Anunciava logo por vingança Em penedos os ossos se fizeram;
A morte ali de Bartolomeu Dias, Estes membros que vês, e esta figura,
Que o Cabo Tormentório um dia alcança Por estas longas águas se estenderam.
E por mar para a Índia abriu as vias. Enfim, minha grandíssima estatura
Passou o cabo a ser da Boa Esperança, Neste remoto Cabo converteram
Que este nome lhe deu o nosso rei, Os Deuses; e, por mais dobradas mágoas,
Impondo à Natureza a sua lei. Me anda Tétis cercando destas águas.»
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Previu também, para outro que ali passa, E agora lamentava tanto dano,
Um fidalgo importante, Manuel Enquanto ia gemendo em voz magoada:
Sousa Sepúlveda, a maior desgraça. «Ó ninfa, a mais formosa do oceano,
Dele, mulher e filhos, foi cruel Já que a minha presença não te agrada,
Esse naufrágio de que Camões traça Que te custava ter-me nesse engano,
A cena comovente em terra infiel, Ou fosse monte, nuvem, sonho ou nada?»
Vendo morrer com fome os filhos queridos, Há nestes versos uma dor extrema:
Em tanto amor gerados e nascidos. São talvez os mais belos do poema.
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E Leonor, sua mulher, a quem E o Gama diz então que o desaforo
Os vestidos seriam arrancados Da tremenda visão se dissipou:
Por nativos ferozes e não tem «Assim contava; e, c'um medonho choro,
O pobre corpo e os membros resguardados Súbito d'ante os olhos se apartou;
Nem do frio da noite, nem do ar, nem Desfez-se a nuvem negra, e c'um sonoro
Da torreira em que ficam abrasados, Bramido muito longe o mar soou.»
Depois de ter pisada, longamente, E um grande poeta a transformar
C'os delicados pés a areia ardente. Uma forma gigante em sons do mar. […]

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E tendo assim as coisas resolvido,
Logo atravessa o céu e pede ajuda
Ao próprio filho e deus do Amor, Cupido,
CANTO NONO Para o doce programa que ela estuda.
Ilha dos Amores Cupido andava então muito entretido
A ver se ao mundo alguns costumes muda,
E com mais uns, tem em preparação
[…] Fazer uma famosa expedição.
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Parte-se então o Gama, porque entende (E aqui uma vez mais Camões entende
Que era em vão que ali negociava Criticar todo o desamor do mundo)
Uma paz com o rei, bem que a pretende Cupido sabe disso e assim pretende
Por firmar o comércio que tratava; Ver bem o que se passa lá no fundo
E como aquela terra, que se estende Dos corações, de modo que se emende
Tão longe, descoberta já deixava, Muito erro grande, muito mal profundo,
Com estas novas torna à pátria cara, Amando coisas que nos foram dadas,
Certos sinais levando do que achara. Não para ser amadas, mas usadas.
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Leva alguns Malabares, que mandou E vê do mundo todo os principais
prender, dos que o Samorim mandara Que nenhum no bem público imagina;
Quando os seus dois homens lhe enviou; Vê neles egoísmo e nada mais,
Leva pimenta ardente, que comprara; E vício, e adulação que determina
Ficar a noz-moscada não deixou, Que a vida se corrompa e haja tais
Nem o negro cravinho, que faz clara Maldades contra a boa e sã doutrina,
A ilha de Maluco, nem canela Que de fazerem tantas coisas dessas
Que faz Ceilão tão rica, ilustre e bela. O mundo estão a pôr todo às avessas.
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Leva o fiel Monçaide e já da costa Vê que aqueles que devem à pobreza
Abrasadora as naus viram a proa Amor divino, e ao povo caridade,
E seguem para o Sul onde era posta Amam somente mandos e riqueza,
Num grande cabo aquela Esperança Simulando justiça e integridade;
Boa, Levando alegres novas e resposta Da feia tirania e de aspereza
Da parte Oriental para Lisboa, Fazem direito e vã severidade;
Pois descobrir é isso: ir e voltar Leis em favor do Rei se estabelecem,
E aquilo que se achou poder contar. As em favor do povo só perecem.
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Mas Vénus irá dar aos Lusitanos Vê, enfim, que ninguém ama o que deve,
No regresso uma bela recompensa. Senão o que somente mal deseja,
Tinham feito esforços sobre-humanos E com mais cupidinhos quer em breve
E um prémio ela quer dar-lhes sem detença, Lutar contra o que é vil e que assim seja
Enquanto vão cruzando os oceanos. A isso posto um fim, pois que se atreve
E, tendo muitas ilhas, logo pensa, A esperar vitória que se veja.
Antes do seu retorno ao pátrio ninho, E diligentes todos se debruçam
Pôr-lhes uma no meio do caminho. Sobre as pontas das setas e as aguçam.
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(Hoje discutem os especialistas Então Vénus lhe conta do seu plano
Onde ficava a ilha namorada. De preparar depressa o merecido
Seguem sem resultado várias pistas; Prémio do peito ilustre lusitano,
Nem precisava a ilha para nada E por isso lhe faz o seu pedido
De ser posta no mar para turistas; De atingir as ninfas do oceano,
Precisava de ser, sim, inventada, Ferindo-as com as setas de Cupido,
Lugar da Fama que é prémio da História Para que aos portugueses venham dar
E da literatura e da memória.) Prémios de amor que possam desejar.

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Os Lusíadas para gente nova, Vasco Graça Moura (texto com supressões) Página | 9
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Tendo-lhe assim falado sem entraves, Nesta frescura tal desembarcavam
Uma ilha belíssima aparece, Já das naus os lusitanos nautas,
Onde há flores e frutos, cantos de aves, Onde pela floresta se deixavam
Frescas fontes e tudo o que apetece Andar as belas Deusas, como incautas.
Aos sentidos com músicas suaves, Algumas, doces cítaras tocavam;
Cor viva e cheiros bons, se oferece. Algumas, harpas e sonoras flautas;
É assim que ali nasceu, muito enfeitada, E os nautas avistando-as, por isso,
À flor do mar, a ilha namorada. Atrás delas vão logo em rebuliço.
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Ali, com mil refrescos e manjares, Vão as ninfas correndo entre os arbustos,
Com vinhos odoríferos e rosas, Fugindo aos marinheiros ansiosos,
Em cristalinos paços singulares, Dando saltinhos e fingindo sustos,
Formosos leitos, e elas mais formosas; A pô-los excitados e nervosos,
Enfim, com mil deleites não vulgares, E deixam agarrar pelos robustos
Os esperem as Ninfas amorosas, Braços deles os seus corpos formosos,
D'amor feridas, para lhe entregarem Cada uma a tropeçar na correria
Quanto delas os olhos cobiçarem. E a entregar-se a quem a perseguia.
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Então Cupido lança as suas setas, Iam deixando então cair as suas
Uma após outra: geme o mar c'os tiros; Roupagens pelo chão, aqui, ali,
Direitas pelas ondas inquietas E ao fazerem assim ficavam nuas
Algumas vão, e algumas fazem giros; Ou quase, descuidando-se de si,
— Caem as Ninfas, lançam das secretas Maminhas a saltar duas a duas,
Entranhas ardentíssimos suspiros; Belos rabinhos, bocas de rubi,
Cai qualquer, sem ver o vulto que ama, Cabelos de oiro, a pele como cetim
Que tanto como a vista pode a fama. E grinaldas de rosas e jasmim.
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De longe a Ilha viram, fresca e bela, Camões descreve um quadro sensual
Que Vénus pelas ondas lha levava E as ninfas satisfazem os desejos
(Bem como o vento leva branca vela) Dos pobres marinheiros que afinal
Para onde a forte armada se enxergava; Só na imaginação lhes davam beijos,
Que, por que não passassem, sem que nela E assim foi no regresso a Portugal.
Tomassem porto, como desejava, A fantasia tem desses lampejos
Para onde as naus navegam a movia E as recompensas vão os nautas tê-las
Essa deusa, que tudo, enfim, podia. Numa ilha do amor de cinco estrelas.
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Os Lusíadas para gente nova, Vasco Graça Moura (texto com supressões) Página | 10

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