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ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO
NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO
EIXO ACADÊMICO MESTRADO/DOUTORADO
A SUSTENTABILIDADE EM ECOVILAS:
PRÁTICAS E DEFINIÇÕES SEGUNDO O MARCO DA ECONOMIA
SOLIDÁRIA
Salvador
Março/2012
EDUARDO VIVIAN DA CUNHA
A SUSTENTABILIDADE EM ECOVILAS:
práticas e definições segundo o marco da economia solidária
Dentre aqueles que compartilham comigo a caminhada nesta vida, tenho também muitos
nomes a lembrar. Assim, em primeiro lugar, agradeço à minha família, especialmente pela
compreensão das ausências provocadas por um trabalho como este, lembrando minha amada
esposa Fernanda e meus queridos filhos Lívia e Murilo, este último tendo surgido em nossas
vidas quase no final deste trabalho, como que dando sua bênção para a sua conclusão. Devo
agradecer também à minha mãe Eli Odete pela acolhida e amparo decisivos nos momentos
finais deste trabalho, quando o sossego se me fazia necessário. Agradeço também à minha
irmã Luciana, pela revisão do texto, trabalho extenuante mas muito útil para a finalização
desta tese.
Agradeço também de forma especial aos integrantes das ecovilas visitadas, que gentilmente
nos receberam para a realização deste estudo, como Khalyna, Maria, Yla, Mhynana, Joseh,
Josemeire, André, Lucia, João, Tânia, Otávio, dentre muitos outros.
Por fim, agradeço o apoio do meu orientador neste processo, o prof. Genauto França Filho,
alguém com quem a relação supera a simples orientação acadêmica, bem como dos demais
professores do Núcleo de Pós-graduação em Administração e dos colegas de curso. Faço
menção ainda à Dacy e Anaélia, sempre prestativas e eficientes no apoio às nossas “angústias
acadêmicas”.
A utopia está lá no horizonte. Me
aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho
dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu
caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia?
Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar
Eduardo Galeano
RESUMO
This work focuses on the phenomenon of ecovillages in the brazilian context, focusing its
sustainability practices. As theoretical reference to support the understanding of these
experiences, were used the concepts related to ecophilosophy, as the principle responsibility
and deep ecology, as well as those related to economic anthropology and sociology, as the
solidarity economy. In addition, was sought a meaning to the concept of sustainability from
the discussions given by ecological economics, as well as the connection with historical
background related to the idea of utopia. As research method it was done a multicase study
(three cases, two of which were used as illustrative and one as contrast), with data collected
through participant and non-participant observation, from the researcher's stay in the
experiences as well as through interviews and documentary analysis. The results showed that
the practices can be understood as solidarity economy, by adhering to its principles. In this
sense, these practices would be singular when assuming, as collectives, characteristics of
solidarity economic enterprises, at the same time that articulate many enterprises in a structure
of local solidarity economy. Moreover, the experiences can be properly understood from the
concept of ecovillages, with the exception of one of them. In this sense they have in common
nine main characteristics: an effective articulation of different economic principles; the
combination of the existence of individual and collective enterprises; the links established
between the residents are chosen; they work with the concept of integral or complementary
health; the work with education is central; existence of a stimulus to the achievement of
cultural and spiritual activities; presence of democratic decision-making processes and spaces;
existence of a relevant community joint; and they propose a redefinition of the relationship
with the natural environment. As differentiating elements, it is noted that each experience
develops a specialty, with some of its dimensions more developed in terms of its socio-
historical context. In the two main experiments it is observed that in the first one, prevail a
development of the cultural / spiritual dimension, and in the second one the technical /
ecological dimension.
INTRODUÇÃO......................................................................................................................................................1
3 O CONCEITO DE ECOVILAS........................................................................................................................43
3.4 LIMITES DAS PRÁTICAS DAS ECOVILAS: UM DEBATE SOBRE O ALCANCE DA MUDANÇA SOCIAL E DA SUA
PERTINÊNCIA NO CONTEXTO ATUAL........................................................................................................................55
5 COMPREENDENDO A SUSTENTABILIDADE...........................................................................................77
5.1 BREVE HISTÓRICO...........................................................................................................................................80
6.1.1 O problema da manipulação da natureza e suas implicações para uma ética ecológica.................99
6.3 OUTROS EXEMPLOS DE UMA ÉTICA ECOLÓGICA: OS CASOS DOS POVOS ANDINOS E DOS POVOS GUARANIS...............105
11 A ECOOVILA 1 – ARCOO...........................................................................................................................179
CONCLUSÃO....................................................................................................................................................187
REFERÊNCIAS.................................................................................................................................................202
INTRODUÇÃO
Ecovilas são comunidades que surgem a partir da reunião voluntária de indivíduos que
buscam construir um tipo de sociabilidade diferente da comumente encontrada nas sociedades
industriais contemporâneas. As ecovilas envolvem, para além do resgate de um padrão de
convívio mais próximo e harmonizado (o que é comum a muitas comunidades intencionais
criadas na modernidade), uma filosofia de vida que inclui a preocupação com o meio
ambiente nas suas ações.
Embora esses elementos citados acima sejam o que há em comum nestas práticas, as ecovilas
podem variar muito em tamanho e formato, envolvendo desde poucas famílias (como os casos
brasileiros, por exemplo) até centenas de moradores; podem ser mais coletivizadas em termos
da propriedade e do trabalho dos seus membros até mais individualizadas, em que cada um
tem um lote individual no local e a maior parte dos membros realiza suas atividades
profissionais fora deste ambiente; podem ainda ter em comum frequentes atividades
espirituais ou apenas alguns encontros casuais; podem se apoiar intensamente em tecnologias
ambientais e na permacultura ou apenas estar ensaiando estas práticas; podem produzir
localmente diversos dos seus produtos, inclusive alimentos ou comprar quase tudo o que é
necessário para a sobrevivência externamente.
Alguns desafios são também comuns a estas práticas. Muitos são antigos, estando presentes
em quase todas as comunidades intencionalmente criadas, como por exemplo, a construção de
uma sociabilidade harmonizada entre seus integrantes; outros são mais modernos, como a
dificuldade em prosperar em meio a uma cultura a qual ela se coloca como tendo valores
opostos, ou ainda a dificuldade de conciliar contradições provenientes deste conflito de
valores e da necessidade de sobrevivência econômica nesse meio. Talvez um desafio sintetize
todos os demais: o de se firmar enquanto uma prática alternativa viável e acessível,
especialmente considerando-se um eventual contexto de mudança ambiental (e
socioeconômica).
2
O presente trabalho se propõe à realização de um estudo das práticas das ecovilas, tendo como
recorte empírico experiências em curso no Brasil, e tomando-se em perspectiva algumas que
se dão em âmbito internacional. O esforço de conhecer este tipo de prática está vinculado ao
propósito de demonstrar, ou mais modestamente, tentar perceber a construção de uma “outra
economia” ou de economia solidária que as ecovilas eventualmente experimentam.
Tal esforço, entretanto, não se apresentou fácil. Em primeiro lugar, pela própria característica
das experiências, especialmente no âmbito nacional, que se encontram em fase de
amadurecimento (em comparação a outras internacionais, que contam com processos mais
antigos e com um porte já muito maior), e que apresentam uma grande diversidade, ou seja,
muitas experiências brasileiras são ainda incipientes e se aproximam apenas parcialmente da
prática das ecovilas no âmbito internacional.
Em segundo lugar, a tarefa não é simples pelo desafio apontado a partir dos marcos teórico-
conceituais escolhidos. Este segundo desafio está mais precisamente no fato de que o termo
“sustentabilidade” refere-se a um conceito relativamente largo, o que implica em uma
designação que remete a ideias e práticas múltiplas, além de normalmente não estar associado
ao debate que se dá no campo da economia solidária. Esta noção de sustentabilidade traria
uma complexidade ainda maior pela popularidade a qual o termo foi alçado, sendo possível
encontrá-lo como rótulo de um sem-número de ações.
Tendo isto em vista, e o próprio propósito deste trabalho, o qual foi enunciado logo acima,
poderia causar estranheza a utilização da concepção de sustentabilidade, especialmente com o
destaque que ela recebe neste estudo. Aqui, o que anteriormente se apresentou como um
obstáculo aponta para a justificativa da utilização do termo: é que a sustentabilidade acaba se
tornando uma ideia-força, também, dentro do próprio fenômeno em estudo, o das ecovilas.
Seus discursos (formais ou informais), as publicações do tema (acadêmicas ou não) estão
permeadas largamente por essa noção, de forma que, não utilizá-la aqui, poderia acarretar em
maior prejuízo conceitual, ou pelo menos em maior esforço argumentativo na tentativa de
escapar da sua influência.
Tal forma de conduzir o trabalho, poderia apontar para caracterizá-lo como sendo de natureza
3
As justificativas para a realização deste estudo poderiam ser percebidas a partir de três
argumentos mais gerais: os problemas ambientais hoje vividos, que têm sua origem também
na nossa forma de organização socioeconômica; a particularidade das experiência das
ecovilas, especialmente tendo-se em conta sua proposta de ação frente a estes problemas; e a
relevância acadêmica do estudo, haja visto a pouco exploração do tema nestes espaços de
discussão.
Um ponto deve ser apontado nas experiências das ecovilas. Refere-se ao debate sobre o tipo
de mudança que se quer realizar. As questões levantadas aqui seriam: se realmente seria
suficiente (ou desejável) realizarmos uma mudança apenas no sentido de obtermos nossa
sobrevivência, e ainda, se essa mudança não poderia ser mais profunda, no sentido de se (re)
construir um outro tipo de vivência, superior à atual.
uma sociabilidade e de uma vida econômica mais saudável. Tais experiências partem da
consideração, tomando principalmente as hipóteses da ecologia profunda (GEN, 2009), de
que o meio ambiente é parte integrante do ser humano (ou mais precisamente o contrário, de
que o ser humano estaria integrado a ele), e que por isto o meio natural deve ser sempre
conscientemente considerado nas suas ações. Com isto, essas práticas propõem que a natureza
seja considerada segundo outros padrões, que envolveriam o respeito pelo valor intrínseco que
ela possui. Por outro lado, as práticas das ecovilas tentam definir, ainda, uma forma de
vivência que rompe com a lógica de estratificação social posta em nossa sociedade,
considerando práticas de horizontalidade e de respeito à cada individualidade.
Por fim, remetendo-nos ao último elemento justificativo do trabalho, vemos que, apesar desta
expressividade do campo, especialmente no contexto internacional (em termos de número e
de visibilidade das práticas) a quantidade de estudos acadêmicos sobre elas é ainda pequeno,
tanto no cenário internacional quanto (e principalmente) no brasileiro. Enquanto no mundo
percebe-se a existência de ainda poucos trabalhos sobre as ecovilas, no Brasil eles são ainda
mais raros, tanto no campo das ciências sociais, quanto no campo específico da
administração, em que eles aparecem principalmente em algumas monografias de graduação.
Acreditamos, em especial, que trabalhos com este tipo de objeto devem ser estimulados no
ambiente acadêmico, pois partimos do pressuposto que o conhecimento deve ser socialmente
relevante, ou seja, cumprir com o papel de tentar responder questões que inquietem nossa
sociedade ao mesmo tempo em que tomam parte das suas possíveis soluções.
Cabe ainda, uma breve explicação sobre a inserção do estudo no campo da administração.
Tradicionalmente, este é um campo reservado à gestão e, mais particularmente, à gestão de
empresas. É inegável que seu perfil está marcado pelo trabalho feito pelos autores clássicos
(como Taylor e Fayol), construindo um perfil mais pragmático em torno do campo. Na
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Por outro lado, sua inserção dentro de um campo da gestão – nomeadamente a gestão social -
também é singular, por ser novo e estar buscando seu espaço dentro da disciplina da
administração. Além da gestão de empresas, esta disciplina é formada também pela gestão
pública, que apesar de não tão presente no meio, também já possui certa tradição, e se difere
da primeira por ser constituída a partir de uma lógica diferente: enquanto na gestão privada
prevalece a racionalidade instrumental, os resultados econômicos e a apropriação individual
(ou de pequenos grupos) da riqueza, a gestão pública deve-se pautar (pelo menos em tese) na
busca pelo bem público e na consecução de diversos objetivos (ligados aos objetivos da
sociedade como um todo) (FRANÇA FILHO, 2003). A primeira se dá essencialmente dentro
das empresas e a segunda no chamado espaço público, especialmente no que se refere ao
aparelho estatal. Entretanto, esses dois tipos de gestão começaram, nos últimos anos a serem
acompanhados por uma terceira forma: a gestão social. Esta surge com o objetivo de dar conta
da complexidade que a atuação no espaço público vêm assumindo, especialmente aquele
espaço não vinculado ao Estado, mas sim às expressões da sociedade civil organizada.
Assim, a gestão social se refere àquelas organizações vinculadas a um tipo de ação que tem
como objetivos principais os sociais, políticos, ambientais, etc, tendo os econômicos mais
como intermediários (FRANÇA FILHO, 2003). A gestão social assume, com isto,
características distintas das duas outras formas citadas: se difere da visão empresarial por não
ter como propósito central as atividades econômicas e o lucro, e da visão pública-estatal por
não estar atuando por dentro do complexo e burocratizado aparelho do Estado, embora, neste
último caso, tenha aproximações significativas em termos de propósito. O tipo de gestão que
as organizações da sociedade civil incitam, entretanto, é diferente também da gestão pública,
justamente pelas diferenças significativas na estrutura da organização a partir do qual ela age.
Dessa forma, mais uma vez as ecovilas se inserem num campo de estudo atendido pela
administração. Neste caso, a compreensão do seu funcionamento pode ampliar o
conhecimento em termos das práticas de gestão das organizações que compõe este setor. Mais
do que isto, o conhecimento permitido pelo estudo das práticas em referência podem apoiar o
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desenvolvimento das duas outras áreas, ajudando a definir e aperfeiçoar práticas de gestão
ambiental que podem ser utilizadas em empresas e dar subsídios para a definição de políticas
públicas sobre o tema.
A questão problema deste trabalho se coloca da seguinte forma: em que medida a lógica da
sustentabilidade nas ecovilas se define enquanto economia solidária? Mais do que
simplesmente definir um painel das práticas de sustentabilidade das ecovilas no contexto
brasileiro, a ideia é lê-las a partir de um quadro que as colocam dentro de uma discussão mais
ampla, buscando apreender que tipo de organização socioeconômica surge das ecovilas.
Procedimentos metodológicos
Com relação às escolhas metodológicas, a pesquisa foi realizada com base no método de
multicasos (ou estudos de casos coletivos), que tem como propósito o desenvolvimento ou
validação de uma teoria (STAKE, 2005). Neste estudo, a intenção se alinha mais com o
primeiro propósito do que com o segundo, já que deve-se partir de referenciais conhecidos e
rearranjá-los de forma que eles sejam validados pelo universo sob análise. A utilização de
mais de um caso pretende reduzir em parte as limitações que seriam inerentes a um estudo
deste tipo como a dificuldade de generalização, a baixa preocupação com a validade dos
resultados e a baixa preocupação com a construção de um modelo teórico (GONDIN et alli,
2005). Neste sentido, Gondin e outros (2005) chamam a atenção que a generalização é sempre
teórica, nunca empírica (a menos que seja validado com vários outros casos), já que o caso
não é uma amostra.
Os dois casos selecionados para a realização da pesquisa foram a Fundação Terra Mirim, no
município de Simões Filho, BA e o Instituto de Permacultura e Ecovilas do Cerrado
(IPEC), em Pirenópolis, GO. O critério utilizado para essa escolha foi a relevância do caso no
campo em estudo, medida pela indicação de pesquisas exploratórios que envolveram internet,
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contatos pessoais e as próprias referências bibliográficas deste trabalho1. Elas apontam que
estas práticas estão entre as mais desenvolvidas no Brasil, pelo tempo de constituição,
tamanho e ações implementadas. Inicialmente, a intenção era incluir três casos vinculados à
GEN, mas pela dificuldade obtida junto às ecovilas, inseriu-se nas análises o caso da Ecoovila
1, situado em Porto Alegre, RS. Este caso surgiu de um estudo realizado logo no início da
presente pesquisa, e tinha cunho exploratório. Entretanto, foi considerado no trabalho final
pela contribuição que pode dar na compreensão do tema, principalmente pela comparação das
experiências, já que as conclusões sobre este caso indicam que ele se afasta, em alguns
aspectos da compreensão adotada neste estudo sobre ecovilas. Esta iniciativa foi eleita para
este primeiro estudo com base no critério da conveniência, dada a maior facilidade de acesso
aos dados e à visitação por parte do pesquisador. Apesar desta ecovila não estar associada a
Global Ecovillage Network, sua escolha se justifica também, pelo fato de ela se
autodenominar ecovila, compondo aquelas poucas experiências que assim se designam dentro
do estado do RS (assim como no Brasil, em que o número é relativamente baixo ao se
comparar ao contexto internacional).
IPEC
Pirenópolis
Ecoovila 1
Porto Alegre
acredita-se que a natureza deste trabalho demanda uma análise aprofundada de determinados
elementos. Segundo Stake (2005), um estudo de caso demanda uma boa presença e
concentração do pesquisador junto ao objeto estudado. Neste caso, lançou-se mão da
observação participante (preferencialmente) e da não-participante. O pesquisador se alojou
por um período nas ecovilas apontadas, conforme as possibilidades e disponibilidades do local
(nos dois casos citados existem programas de aceitação de participantes de fora da ecovila,
que envolvem estadia, cursos e participação em atividades específicas por um período
determinado).
Com relação às atividades, foi realizada uma visita de cerca de um turno na Ecoovila 1, onde
foi também aplicou-se uma entrevista em profundidade e a atividade de observação não
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Estruturação do trabalho
Por fim, o presente trabalho está dividido em três partes principais, contendo ao total dez
capítulos, além desta introdução e da conclusão. Na primeira, é empreendida tentativa de uma
compreensão mais geral para as práticas de ecovilas, sendo dividida em quatro capítulos, em
que são abordadas as questões históricas e conceituas, além de serem elencadas algumas
experiências internacionais das ecovilas. Além disso, nesta primeira parte são apresentadas
alguns elementos sobre a crise ambiental contemporânea, a fim de compreender o contexto do
surgimento das ecovilas. A este momento chamamos de primeira aproximação ao tema, que
implica na definição do objeto de estudo (conforme pode ser visto no esquema apresentado na
Figura 2). Na segunda parte do trabalho, dividida também em quatro capítulos, são
apresentados alguns debates que cercam o tema em estudo, em que fazemos a segunda
aproximação. Neste ponto é realizado o esforço de articulação de alguns dos referenciais mais
relevantes para o trabalho, como os de sustentabilidade, de socioeconomia (mais precisamente
de economia solidária) e de ecofilosofia, culminando na construção de um marco de análise
para as experiências nacionais em tela. A terceira parte do trabalho conta, então, com dois
capítulos, nos quais são feitas a apresentação e a análise propriamente dita das experiências.
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No segundo capítulo são apresentados os antecedentes destas práticas, que vão desde os ideais
utópicos até a concretização de comunidades alternativas conforme defendido pelos assim
chamados socialistas utópicos. Pretende-se aqui, identificar os elementos destas sociedades
que eventualmente inspiraram as práticas das ecovilas. Além disso, surgem aqui também
elementos para o debate mais contextual realizado na segunda parte, especialmente os ligados
à sociologia e antropologia econômica.
presentes em cada uma delas que contribuam neste sentido. Neste caso, são buscados aqueles
elementos que ligam estes casos às discussões conceituais, realizadas no capítulo anterior,
assim como aos debates realizados na sequencia, especialmente no Capítulo 8.
No sexto capítulo são apontadas algumas discussões em torno da ética ecológica, e como elas
redefinem as relações do ser humano com a natureza, trazendo à tona as implicações deste
debate para o agir humano e para sua organização socioeconômica. Aqui, busca-se apreender
principalmente as noções do princípio responsabilidade e da ecologia profunda de forma
aplicada às discussões realizadas.
O oitavo capítulo apresenta-se como uma culminância das discussões realizadas nos três
capítulos prévios, fechando a segunda parte do trabalho. A partir da contribuição de três
trabalhos, ligados a estas discussões, é apresentada uma proposta de quadro analítico da
sustentabilidade para as práticas. Este é o quadro que servirá como base para a leitura dos
casos, que se dará nos Capítulos 9, 10 e 11.
Assim, o nono, o décimo e o décimo primeiro capítulos apresentam cada uma das três práticas
estudadas, apontando o seu histórico, uma caracterização geral e as ações, projetos e
programas que cada uma realiza no presente. Além disto é feita, a análise destes casos tendo-
se em vista o referencial desenvolvido e o quadro analítico definido no Capítulo 8. Neste
momento, cada prática é avaliada em todas as dimensões da sustentabilidade propostas,
verificando sua aderência ao quadro e consequentemente o tipo de sustentabilidade que elas
definem. Além disto, se verificará como a prática pode se enquadrar nas definições dadas para
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ecovilas (especialmente a de Gilman) e para economia solidária. Além disto, este será o
momento de considerações mais livres sobre os casos, levando-se em conta, de forma geral, as
discussões apontadas neste trabalho e, de forma específica, as noções fornecidas pelo quadro
analítico principal.
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PARTE I
Em primeiro lugar, para situar os problemas vividos pela sociedade atual, podemos apresentar
alguns panoramas que definem uma preocupante situação, especialmente pensando nos
cenários que brevemente teremos que enfrentar. Brown (2009) aponta que já estamos
começando a perceber algumas consequências ligadas ao aumento da população, à diminuição
dos recursos hídricos, ao derretimento de geleiras, e ao uso dos grãos para produzir
combustível e proteína animal, e uma das principais é a escassez de alimentos. Entretanto ,
esta escassez não se apresenta de forma sazonal como em outros tempos, mas consistente. Tal
fato está provocando gradualmente o aumento no número de famintos no mundo e talvez, em
algum momento no futuro, o fará em ritmo acelerado. Como consequência disso, ainda, se
inicia uma disputa por terras cultiváveis, o que tem levado países importadores a comprar ou
alugar grandes áreas em outros países (BROWN, 2009).
O referido autor aponta ainda, que é necessário que se haja rapidamente, já que em avaliação
feita em seu livro Plano B (em 2009), três anos após o relatório do IPCC (Painel
Intergovernamental de Mudanças Climáticas, gerido pela ONU), os resultados em termos de
derretimento de geleiras, aumento da temperatura global e a elevação do nível do mar estão
ocorrendo de forma mais acelerada do que o pior cenário previsto neste relatório. Vale
ressaltar que o pior cenário previa a elevação de 6,4 oC até o ano de 2100, considerada
catastrófica em termos de impactos globais. Para manter a elevação em 2 oC, considerado o
cenário mais otimista (mas mesmo assim com mudanças perigosas), seria necessária uma
redução imediata de 60 a 80% nas emissões de gases do efeito estufa (BROWN, 2009).
solos em várias partes do mundo (pela destruição das pastagens, aragem intensiva e o
desflorestamento o que permite o avanço de regiões desérticas), o esvaziamento de aquíferos,
as ondas de calor que afetam as plantações, as camadas de gelos que ao derreterem aumentam
o nível do mar (consumindo deltas produtivos), o derretimento das geleiras das montanhas
que alimentam rios (e sistemas de irrigação) em períodos de seca, a perda de terras cultiváveis
para uso não-agrícola, a transferência da água de irrigação para as cidades e a esperada
redução da oferta do petróleo (grande parte da produção agrícola atual depende dos seus
derivados, no formato de adubos, defensivos e combustível para os equipamentos).
Brown afirma que isto ocorre porque estamos vivendo numa espécie de Esquema Ponzi2
global, numa referência ao esquema de Madoff3 que ruiu durante a crise financeira de 2008.
Este esquema funcionava como uma espécie de pirâmide, em que os ativos de clientes novos
que entravam eram utilizados para pagar altas taxas de remuneração para quem já estava
investindo. Como todo esquema do tipo, o esquema de Madoff ruiu quando diminuiu a
quantidade de novos entrantes, de forma que não foi mais possível manter o pagamento dos
demais. Estamos fazendo isto com a Terra, e segundo dados apresentados por Brown (2009),
em 1980 superamos sua capacidade regenerativa e passamos a consumir seus “ativos”, sendo
que em 2009 já estávamos usando cerca de 30% a mais do que a capacidade dos sistemas
naturais se reporem. Esta informação é muito parecida com a já bastante divulgada estimativa
do WWF, com base nos cálculos da pegada ecológica global, que informa que a sobre-
exploração em nível mundial é de cerca de 25% , sendo que ela chega a 522% (ou seja, mais
de cinco vezes a capacidade de regeneração do planeta) no caso dos Estados Unidos, que é o
índice mais alto do mundo (WWF, 2011).
os discursos políticos sobre o tema (que possuem sempre um interesse específico associado).
Estima-se que ainda reste aproximadamente a metade das reservas originais de petróleo (o que
dá em torno de 1 trilhão de barris) (BROWN, 2009), entretanto a sua utilização não deve ser
mais tão simples como a da outra metade. Acontece que há um fenômeno chamado pico do
petróleo, primeiramente descrito por Hubbert (1956), que afirma que todos os poços tem um
pico de produção, a partir do qual a extração vai se tornando gradativamente mais difícil
(Figura 3). O pico dos EUA como um todo (média da produção de todos os seus poços,
incluindo-se as novas descobertas) já foi atingido nos anos 70 e estima-se que o pico global,
nas previsões mais otimistas, será atingido em poucos anos; outros, como os respeitados
consultores do meio C. Campbell e J. Laherrére, prevêem que ele possivelmente já tenha sido
atingido na metade da década passada (ver Figura 4), já que quase todos os grandes poços de
petróleo foram descobertos até os anos 60 (CAMPBELL & LAHERRÈRE, 1998; ASPO,
2011). O que se sabe é que o momento exato do pico só será conhecido após ter se passado
alguns anos, pela análise da série histórica. Campbell, entretanto, em revisão posterior (2008)
mantém suas previsões iniciais.
Figura 4: Projeção para o pico do petróleo. Fonte: Campbell & Laherrère (1998)
A consequência do atingimento deste pico é que se verá uma escalada constante no seu preço,
até que sua utilização da forma como se dá hoje ficará cada vez mais inviável. No limite, para
cada poço, chega-se num ponto em que a energia empregada para a extração e processamento
do petróleo é igual a que pode ser obtida com a sua queima. Ou seja, o petróleo nunca vai
acabar, mas a utilização no ritmo atual estaria com os dias contados. Neste caso, como visto
logo acima, a saída não seria a substituição do petróleo por biocombustíveis. Ela terá de
passar necessariamente pelo repensar dos paradigmas econômicos que dominam a
organização da nossa sociedade, especialmente no que toda a ideia de crescimento ilimitado,
que é financiado pela disponibilidade abundante deste recurso.
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O primeiro dos cenários apontados pelo texto é a continuidade de como as coisas vêm sendo
feitas hoje (que os autores chamam de “business as usual”). Neste caso, a população segue
crescendo até cerca de 2030, mas a economia pararia de crescer logo nas primeiras décadas do
século XXI, passando a cair abruptamente. Cria-se um ciclo vicioso: como os recursos se
tornam gradualmente mais difíceis de obter, o capital gradualmente deixa o investimento
industrial, fazendo com que todos os setores da economia decaiam. Com isto, a partir de 2030
a população começa também a cair pela falta de comida e de serviços de saúde. Num cenário
mais otimista, que considera que os recursos seriam, na verdade, o dobro do que se conhece
hoje, este evento seria adiado por cerca de 10 a 20 anos. Entretanto, as práticas industriais
predatórias da atualidade deixariam um legado de poluição inimaginável (Figura 5). Mesmo
um cenário, em que se adote desde já tecnologias mais efetivas no controle da poluição e de
melhor uso da terra, com controle da erosão, haveria em algum momento o colapso
(provavelmente depois de 2070), advindo do custo que se tornaria cada vez maior para a
obtenção dos recursos não-renováveis. No caso da redução drástica da utilização de não-
renováveis, a perda de qualidade de vida seria menos abrupta, porém constante a partir de
2040, pelo aumento também constante dos custos de proteção da população contra os efeitos
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Figura 5: Simulação das condições futuras num cenário com o dobro dos recursos naturais conhecidos, mantidas
as práticas atuais. Fonte: Meadows, Randeres e Meadows (2002)
Figura 6: Simulação das condições futuras num cenário com controle populacional, limite na produção industrial
e utilização de tecnologias para produção, agricultura e poluição. Fonte: Meadows, Randeres e Meadows (2002)
Os autores apontam dois insights que surgem destas análises: o primeiro deles é que a demora
na introdução destas mudanças reduz as escolhas no futuro; e o segundo é que não é possível
um cenário sustentável com mais de 7 bilhões de pessoas no planeta, mesmo com metas de
limitação da produção industrial e da adoção de tecnologias ambientais (MEADOWS,
RANDERES & MEADOWS, 2002).
Trazendo para mais perto dos debates que serão realizados no presente trabalho, poderíamos
compreender os problemas apontados a partir de três elementos explicativos. Todos elas
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dizem respeito, de alguma maneira, à influência do modelo criado pela revolução industrial
associada à disseminação de um mercado livre (ou autorregulado ou capitalista, conforme a
referência utilizada). Como veremos adiante, muitos outros elementos poderiam ser
referenciados, mas a citação destes pontos não é arbitrária, e está ligada aos argumentos
mobilizados para a construção da noção de economia solidária utilizada nesse trabalho.
4
Esta é a ideia por trás do chamado “efeito cascata” ou “trick in down” (VEIGA, 2005), que pressupõe, como
sugere o nome, que o crescimento teria como resultado automático a distribuição da riqueza por parcelas
cada vez maiores da população, mesmo que se parta de uma camada pequena desta.
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O terceiro elemento pode ser tomado como sendo fundante dos outros dois, especialmente se
tomarmos em conta os argumentos das correntes críticas da sociologia e da antropologia
econômica. É a onipresença (ou a busca da) dos chamados mercado autorregulados ou
mercados capitalistas. A sua lógica intrínseca tende a transformar tudo em mercadoria e
eliminar os limites éticos e morais da ação humana, normalmente (fora do regime do
mercado) determinados pelas relações sociais. Dotado de uma ideia de expansão irrefreável
(e considerada necessária, dado que os economistas ortodoxos apontam que este sistema só
pode se estabilizar em movimento de crescimento, de preferência acelerado), permitida pela
eliminação de tais limites, o mercado capitalista faz-nos deparar hoje com riscos que parecem
se multiplicar diariamente. Brown (2009) chama a atenção ainda pelo fato de o mercado, além
de não conhecer os limites físicos da sua atuação, também tem outro grave problema, que é o
de não apresentar o custo real do produtos. O baixo preço da gasolina nos EUA, por exemplo,
não considera as mudanças climáticas, os pesados subsídios para a indústria petrolífera
(existe, nos Estados Unidos, a chamada “cota de exaustão” do petróleo americano), os
altíssimos custos militares diretos para proteger os poços no Oriente Médio e os custos da
saúde para tratar de doenças respiratórias causadas pela poluição.
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Neste contexto, podem ser situadas as noções de utopia de Thomas More, Tommaso
Campannela, Platão e Francis Bacon, bem como as sociedades idealizadas pelos socialistas
utópicos, especialmente Owen e Fourier, o conceito de cidade-jardim de Howard e, mais
recentemente, as práticas de comunidades intencionais criadas a partir dos movimentos da
contracultura. Enquanto os autores de “utopias” anteriores ao séculos XIX se preocupam mais
com a crítica social e com a descrição abstrata de sociedades ideais (ou seja, que nunca
existiram ou não tiveram existência comprovada), os demais projetos, além de incorporarem
esses pontos procuram avançar na experimentação, assumindo uma perspectiva mais prática.
5
De fato a noção de “sociedade ideais” se considerarmos o termo da forma mais genérica possível perpassa
praticamente todas as culturas, nas diversas noções de paraíso e de lugares perfeitos que elas constroem. Por
isto, tal restrição de tempo só faz sentido a partir dos referenciais da civilização ocidental.
23
pelo fato de que as discussões hoje em voga se originaram especialmente a partir da metade
do século XX6. Na maioria dos casos, a preocupação é mais no sentido de manter o contato
com a natureza, como algo bom para a saúde do ser humano; no caso dos socialistas utópicos
e de Howard, há um outro elemento que surge quando se fala em meio ambiente: busca-se um
“retorno à natureza”, pela perda que existiu com o processo de industrialização e
consequentemente a expulsão do homem do campo em direção à cidade.
Atlântida é reportada por Platão (2011)7 como sendo uma cidade, componente de uma nação,
que existiu a cerca de nove mil anos antes da sua época 8 e cuja descrição teria sobrevivido a
partir de uma transcrição oral que se iniciou com seus sobreviventes. Esta nação era formada
por uma confederação de reis e ficava situada em uma ilha 9 no Oceano Atlântico, além das
“Colunas de Hércules” (Estreito de Gibraltar), e que submergiu em um dia e uma noite devido
a um terremoto.
[Posídon] desfez num círculo o monte em que ela [Leucipe] habitava, e construiu à
volta anéis de terra alternados com outros de mar, uns maiores, uns mais pequenos –
dois de terra e três de mar, no total, torneados a partir do centro da ilha e
equidistantes em todos os pontos, para que fosse inacessível aos homens . (Idem,
p.230).
6
Embora seja um fato conhecido que muitas cidades e civilizações colapsaram no passado devido ao desgaste
ambiental local, conforme citado por Brown (2010).
7
Estima-se que a data provável em que a obra foi escrita é entre os anos 430 e 425 aC (LOPES apud
PLATÃO, 2011).
8
Ou seja, cerca de 11.500 anos atrás.
9
De fato, a descrição de Platão faz crer que o local seria mais apropriadamente um continente, pelas suas
dimensões. “era maior do que a Líbia e a Ásia juntas, a partir da qual havia acesso para os homens daquele
tempo irem às outras ilhas e destas ilhas iam directamente para todo o território continental que se
encontrava diante delas e rodeava o verdadeiro oceano ” (PLATÃO, 2011, p. 88). Segundo nota no mesmo
livro, “a Líbia corresponde, actualmente, a todo o Norte de África, e a Ásia ao território que se estende desde
a Península Arábica até ao Norte da Índia. ” (PLATÃO, 2011, p. 220).
24
Primeiro, fizeram pontes sobre os anéis de mar que estavam à volta da metrópole
antiga, criando deste modo um acesso para o exterior e para a zona real. Esta zona
real, fizeram-na logo de princípio no local onde estava estabelecida a do deus e a dos
seus antepassados.
(…) Escavaram um canal com três pletros 10 de largura, cem pés11 de profundidade e
cinquenta estádios12 de comprimento, que começaram a partir do mar até ao anel
mais exterior, e naquele local construíram uma via de acesso do mar àquele ponto,
como a um porto; também abriram uma barra adequada para a entrada de naus muito
grandes. Também abriram os anéis de terra, que separavam os de mar, obedecendo à
direcção e das pontes, de modo a criar uma via de acesso entre os canais para uma só
trirreme, e cobriram a parte superior para que o canal ficasse por baixo; é que as
bordas dos anéis de terra tinham uma altura suficiente para suster o mar.
Ainda, segundo Platão, havia uma muralha que revestia todo o perímetro externo da cidade,
coberta de cobre pelo exterior e de estanho pela parte interna. O seu centro continha diversos
edifícios suntuosos, como templos, hipódromo e outros edifícios. A cidade possuía ainda
fontes naturais frias e quentes, que serviam a diversos propósitos.
A zona exterior à cidade era formada por quadriláteros circundados por canais feitos à mão,
por onde eram transportadas a madeira e demais produtos por barco até a cidade. Toda a
região era dividida por distritos de dez por dez estádios, totalizando 60.000 distritos, sendo
que todos eles deveriam contribuir com um número específico de homens e equipamentos em
caso de guerra.
10
88,8m
11
29,6m
12
8880m
25
O país era dividido em dez regiões, cada uma governada por um rei, sendo um deles o
soberano. Eles governavam com um poder absoluto:
Cada um dos dez reis, na sua região e na sua cidade, detinha um poder absoluto
sobre as leis e sobre os homens, pois castigava e condenava à morte quem quer que
quisesse. Por outro lado, a autoridade que tinham uns sobre os outros e as relações
mútuas dependiam das determinações de Posídon, tal como lhes transmitira a lei que
havia sido fixada na escrita pelos primeiros reis numa estela de oricalco, que se
encontrava no centro da ilha num templo de Posídon. Nesse local, os reis reuniam-se
de cinco em cinco e de seis em seis anos, alternadamente, distribuindo assim
equitativamente ciclos de anos pares e ímpares; durante essas reuniões, deliberavam
26
nunca, em circunstância alguma, lutarem entre si; ajudarem-se todos uns aos outros,
caso algum deles tentasse alguma vez destituir a família real numa cidade; e, tal
como os antepassados, deliberar em comunhão as resoluções respeitantes à guerra e
a outros assuntos, atribuindo o comando à estirpe de Atla13s. Não era lícito que um
rei determinasse a morte de nenhum membro da sua família, se não tivesse o voto de
metade dos dez reis (PLATÃO, 2011, p. 244).
Este país possuía uma sociedade dividida em castas, separadas pelas funções que cada
indivíduo exercia. A mais alta era a dos sacerdotes, seguida pelos trabalhadores (também
separados entre si conforme o ofício) e os guerreiros (que exerciam esta atividade de forma
exclusiva). Segundo Platão, essa era uma sociedade muito evoluída, dominando os
conhecimentos sobre astronomia e medicina e a arte da guerra. Tinha ainda muitas riquezas, e
um tipo específico de minério, que só dava na ilha e que revestia as muralhas centrais da
cidade. Além disto, tudo era produzido em abundância, e havia uma grande riqueza animal e
vegetal, além de belíssimas paisagens compostas por montanhas e vales.
Conta Platão em seu diálogo de Crítias que o exército de Atlântida tentou, em certa ocasião,
subjugar de um só golpe toda a Grécia, tendo Atenas triunfado no confronto e ainda libertado
todos os demais povos que haviam sido derrotados, até o limite do Estreito de Gibraltar.
A queda de Atlântida se deu por um castigo de Zeus, já que o seu povo estava se desviando da
virtude e da obediência aos deuses.
Platão não informa mais detalhes sobe a organização social e econômica da cidade. Muitos
textos especulam sobre estes detalhes, já que Atlântida assumiu uma posição de mito na
cultura ocidental. Com isto, sobre sua existência real recaem muitas hipóteses e especulações,
em diversos ramos do conhecimento, científico ou não.
Utopia, segundo Thomas More14, é uma ilha hipotética situada em um oceano ou mar
13
Soberano de Atlântida, designado por Posídon.
14
A referência utilizada não contém a data de publicação, entretanto o original de Utopia, segundo referências
internas do próprio texto foi escrito em 1516.
27
Mais do que a beleza natural e arquitetônica que o autor procura destacar no seu país
hipotético, chama a atenção a forma de organização sociopolítica e socioeconômica que lá
prevalecem. De fato, a Utopia de Tomar More pode ser considerada como precursora do
comunismo, já que ele propõe uma sociedade sem propriedade privada e sem classes sociais
(pelos menos não associadas às condições econômicas, embora possa haver ali uma
estratificação em função de atribuições políticas, a maioria delas acessível a todos).
Figura 9: Utopia
especificamente no âmbito doméstico. Apesar
disso, pode-se mudar de profissão, e se o pretendente a tal mudança for uma criança, pode
“ser adotada” por outra família para tal. Entretanto, quem organiza as necessidades produtivas
é o Estado, que estipula que nenhum trabalhador deve ter uma jornada de trabalho maior do
que de seis horas (a menos que assim o queira), e que pode ser reduzida, para toda a
população, se a produção atingir um certo nível de excedente; outrossim, os filarcas assumem
a função de vigiar os trabalhadores para que dediquem-se efetivamente ao trabalho.
A parte do trabalho mais pesado é feito por escravos, que são compostos por presos de guerra,
condenados a morte de outros países (que seriam comprados por Utopia) e, principalmente,
28
por cidadãos que infringiram as leis e perderam sua liberdade. Uma outra classe de escravos
são os cidadãos de outros países que se apresentam voluntariamente, e que são, por isto,
melhor tratados do que os demais, podendo ter sua liberdade restituída quando assim o
quiserem. Dentre as atribuições dos escravos está o abate de animais e os trabalhos mais
pesados nas cozinhas comunitárias.
Estão liberados do trabalho braçal todas as pessoas que assumem os cargos políticos, os
sacerdotes e aqueles considerados dedicados aos estudos. Estes últimos são dispensados para
esta função por indicação de filarcas e sacerdotes e por referendo popular, sendo geralmente
os que assumem, futuramente, os cargos políticos. Por voto direto são escolhidos, ainda, os
sacerdotes.
Enquanto sistema político, ele é definido a partir da ideia de representação. Cada grupo
familiar, conta com um homem e uma mulher, que servem como “pai” e “mãe” deste grupo.
Cada trinta grupos familiares elegem um “filarca”, que cuida dos seus interesses. Na cidade,
esta figura é denominada magistrado, também eleito por um grupo de trinta famílias. Cada
dez filarcas elegem, então um protofilarca e o conjunto dos filarcas de uma cidade elegem o
príncipe a partir de uma lista de quatro nomes indicados pelo povo. Todos os cargos têm
mandato de um ano, exceto o príncipe, cuja função é vitalícia. O príncipe governa junto com
um conselho formado pelos protofilarcas, bem como presta contas a um senado, que é
composto a partir do encontro anual em assembleia de três anciãos enviados por cada cidade à
capital.
A vida social dos utopianos é ocupada com recreações diárias ao final do dia, em praças ou
salões públicos. Apoiam a realização de prazeres, desde que sejam sóbrios e sem excessos.
Também realizam suas refeições de forma coletiva na área urbana, em refeitórios
administrados pelos filarcas, com capacidade para agrupar as trinta famílias sob sua
responsabilidade. As mulheres preparam as refeições e os adolescentes servem a mesa. Conta-
se que a refeição, especialmente o jantar é sempre um momento animado de convívio social, e
nunca falta uma música e outros agrados para companhá-la.
Em Utopia, são permitidos a eutanásia (que seria recomendada em certos casos) e o divórcio
(entretanto apenas em certas circunstâncias e aprovado pelo senado). O adultério, todavia, é
29
considerado crime. Não existem penas definidas de antemão para as infrações, cada caso é
analisado pelo senado, sendo a pena mais comum a da escravidão, além daquelas a serem
aplicadas no âmbito doméstico. A pena de morte é aplicada somente nos casos de revolta do
condenado.
A cidade descrita por Tommaso Campanella (2011)15 se encontra em um lugar ermo, numa
floresta perto de Taprobana16. Sua descrição aponta que ela está situada numa vasta planície e
é composta por sete círculos concêntricos protegidos por muralhas sobre uma elevação,
perfazendo um diâmetro externo de pelo menos duas milhas. Os muros, extensamente
adornados com pinturas representando as ciências, fornecem a proteção para a cidade,
juntamente com equipamentos de guerra e proteção. No centro da cidade, que compreende
uma planície, encontra-se um extenso e suntuoso templo.
O supremo regente da cidade é um sacerdote, denominado Hoh (ou Metafísico), que detém
autoridade absoluta, tanto do ponto de vista espiritual quanto temporal, exercendo o cargo
vitaliciamente. Ele é apoiado por três chefes: Pon (ou Potência), Sin (ou Sabedoria) e Mor (ou
15
A obra original foi publicada em 1623.
16
Ilha do Mar das Índias, atualmente Ceilão.
30
Amor), que também exercem esta função de forma vitalícia. O primeiro está encarregado dos
assuntos de paz e guerra, o segundo das artes, ciências, dos doutores, dos magistrados e da
educação e o terceiro à geração (uniões amorosas), a agricultura, a pecuária, a farmácia, ao
vestuário, a preparação dos alimentos e a educação das crianças. Estes são, entretanto, como
que cargos executivos, a colocarem em práticas as decisões tomadas a partir de discussões em
assembleias gerais quinzenais, das quais podem participar quaisquer cidadãos com mais de
vinte anos (CAMPANELLA, 2001).
Campanella (2001) ainda informa que na Cidade do Sol, não existe propriedade privada e
tudo é comum, inclusive as “dignidades e os prazeres” e “casas, filhos e mulheres”, cabendo
aos magistrados regular esta igualdade. Com isto, o próprio conceito de família é redefinido,
sendo todos como que pertencentes a uma única família.
A vestimenta, que é feita de forma que esteja preparada para guerra, também é uniforme,
apenas com pequenas diferenças entre homens e mulheres.
Os magistrados são escolhidos com base no destaque de aptidões individuais. As crianças são
educadas desde uma tenra idade, quando começam também a praticar exercícios físicos. Eles
passam por oficinas, em que aprendem todos os ofícios, assim como por aulas de outras
ciências (matemática, medicina e outras), sendo que os que apresentarem mais destaques em
todas estas artes são os que futuramente exercerão esta função. Os demais funcionários
(denominados mestres) são eleitos em assembleia dos magistrados mais os quatro regentes, e
esta eleição se dá com base nos seus conhecimentos, especialmente sobre a arte que irá se
consagrar, bem como na sua idoneidade. Assim também, se dá a escolha do próximo Hoh, que
deve ter mais de trinta e cinco anos e ter todas estas qualidades no mais elevado grau.
Segundo o autor, ainda, a execução dos ofícios tem apenas pequenas diferenças entre os
homens e as mulheres, ficando os primeiros em geral com os trabalhos mais pesados (arar,
semear, colher frutas, trabalhar na vindima, trabalhar com madeira e ferro, etc) e as últimas
com os mais delicados (ordenhar o gado, fazer o queijo, cultivar e colher legumes, tecer, fiar,
cortar cabelo e barba, preparar remédios, etc), bem como ao exercício da música, que também
pode ser feito por crianças. Todos devem conhecer três artes fundamentais: guerra, agricultura
e pecuária. Todas elas são elaboradas com base nos conhecimentos elaborados sobre as
atividades. As atividades mais pesadas da agricultura são realizadas em mutirão, por boa parte
dos moradores da cidade, no período apropriado. Aos jovens (menores que vinte anos)
também competem atribuições específicas, como os serviços da mesa. Eles ainda devem
31
servir aos que passaram dos quarenta anos, além de se servir reciprocamente.
Cada círculo da cidade tem sua própria cozinha e despensas próprias, e são presididos por um
“velho” e uma “velha”. Estes se encarregam de castigar ou ordenar o castigo quando ocorre
alguma falta, além de observar as aptidões de destaque de cada menino ou menina. Não há
prisões na Cidade do Sol, e as principais punições podem ser o exílio, a agressão física, a
privação da mesa comum, a interdição ao templo, a proibição das mulheres e, nos casos mais
graves, a pena de morte. O condenado pode, entretanto, recorrer às estâncias superiores, até a
Hoh, único que pode eventualmente perdoar a falta.
O jantar é sempre feito em silêncio, exceto em dias de festa, quando é acompanhado de canto
e música. O magistrado normalmente recebe uma porção maior e melhor do alimento, que é
dividida com aqueles que mais se destacaram na atividade do dia. A hora do jantar é também
o momento de prestar as homenagens aos heróis e heroínas da cidade, com presentes como
grinaldas, alimentos agradáveis, roupas elegantes, e outros.
O tempo de trabalho diário é de, no máximo quatro horas, ficando o resto do tempo ao estudo,
à leitura, a discussões científicas, à escrita, à conversação, além de outras atividades
consideradas úteis ao corpo e à mente. Os cidadãos não se dedicam a jogos que mantenham o
corpo parado, como xadrez, dados e outros, mas preferem aqueles mais movimentados.
Aqueles que possuem algum tipo de limitação também tem ocupação útil na Cidade do Sol:
Quanto à religião, se afiliam à crença em Jesus e seus apóstolos, mas adotam práticas e
algumas crenças diferentes de quaisquer práticas cristãs. Os sacerdotes principais são os
próprios governantes, e no templo central são realizadas as principais cerimônias. Em dado
32
momento do ano é realizado um sacrifício humano, com uma pessoa que voluntariamente fica
isolada na abóbada do templo por trinta a quarenta dias com parca alimentação, com o
propósito de purificar a república. Há ainda o sacrifício perpétuo, ou seja, um homem comum
reza por uma hora sendo sempre substituído por outro. No alto do templo habitam vinte e
quatro sacerdotes, que se aplicam a cantar salmos a Deus, realizar quatro orações diárias e
estudar astrologia, aplicando-a para orientar os destinos da cidade. Há ainda outras festas
religiosas e os corpos são cremados depois da morte (CAMPANELLA, 2011).
Em Nova Atlântida (ou Bensalem), Francis Bacon (2011) 17 apresenta um país distante,
perdido em alguma ilha no meio do Oceano Pacífico. Na aventura narrada pelo autor, um
grupo de navegadores encontra a cidade acidentalmente, após perderem-se no caminho entre o
Peru e a China.
No seu texto, Bacon dedica grande espaço para descrever como o país recebe os estrangeiros
(sempre muito raros) e as cerimônias para celebrar a paternidade. No primeiro caso, os
visitantes são sempre recebidos com cortesia e dignidade, mas são estabelecidas regras para
estadia e para o intercâmbio com o exterior, com o fim de se manter o isolamento (ou a
ignorância por parte do resto do mundo) da cidade. Neste sentido, o único intercâmbio
realizado é o de conhecimentos, quando emissários vivem secretamente em outros países para
aprender sobre outros costumes e ciências, além de trazer tudo o que lá pode ser valioso com
relação a este tema. Sobre a celebração da paternidade, cada homem que atinge mais de trinta
descendentes recebe uma honraria especial em formato de uma cerimônia e festa, na qual está
presente o próprio governador da cidade, e onde recebe, também, títulos, privilégios e rendas.
Um espaço muito importante da cidade é a Casa de Salomão, local muito antigo dedicado ao
conhecimento e às ciências, da qual são integrantes notórios cidadãos. Esta casa, segundo
Bacon, tinha por objetivo “el conocimiento de las causas y movimientos secretos de las cosas,
así como la ampliación de los límites del imperio humano para hacer posibles todas las cosas”
(BACON, 2011, p. 37).
17
O original foi publicado em 1627.
33
científicos na cidade. Esta instituição tinha tal importância que podia tomar decisões a revelia
do Estado, como não revelar determinada descoberta. Bacon utiliza boa parte do texto para
citar as invenções e aplicações da Casa, apontando diversos inventos que se assemelham aos
que hoje dispomos (como o telefone, o submarino, a manipulação genética, o microscópio, o
telescópio, a engenharia de materiais, dentre outros).
Nova Atlântida se difere das demais utopias descritas por não apresentar uma descrição mais
detalhada dos sistemas econômicos, sociais ou políticos, além de conter elementos que
indicam a existência da propriedade privada (omo observa Meneguello (2001)) e da função de
servo, o que aponta para uma sociedade de classes no sentido mais marxista. Um dos pontos
principais, entretanto, do texto é o domínio do ser humano sobre a natureza, questão que é
tomada como um dos pontos de partida para as críticas de Jonas (2006) ao pensamento
científico-tecnológico moderno, consubstanciado no que o autor chama de “ideal baconiano”,
como se verá mais adiante
a) Robert Owen
Owen (2010), em seus principais ensaios, propõe uma forma alternativa de organizar a
sociedade que tem na educação um dos seus elementos centrais. Ele chega a esta proposta a
partir da ideia de que somos seres plásticos, ou seja, temos a personalidade em grande parte
definida pelo meio. A educação proposta por Owen, estaria, então, fortemente relacionada
com as emoções e com a moral, em que o “certo” e o “errado” se refeririam ao bem estar e a
felicidade proporcionada a si mesmo e aos outros pela ação individual, bem como aos males
evitados. Esta educação, que deveria se iniciar já nos primeiros momentos de vida seria
também crítica, fornecendo ao indivíduo a capacidade de fazer seus próprios julgamentos
relativos às consequências destas ações.
Com base nestes mesmos princípios (construídas a partir da sua própria experiência pessoal,
especialmente em New Lanarck), Owen defendia ainda que, um tratamento adequado aos
operários traria um resultado positivo, no sentido da construção de uma vida social mais
harmonizada e feliz. Este tratamento incluiria atender os indivíduos nas suas necessidades e
induzi-los a se comportar de forma solidária aos demais. Tal prática, pela sua superioridade
34
em termos de resultados (de melhor bem estar para todos), acabaria por naturalmente esgotar
todos os maus comportamentos. Com isto, não seriam necessárias punições (prática que Owen
criticava justamente pela ineficácia e implícita falta de compreensão do comportamento
humano), apenas orientações para aquelas situações não solucionadas pela mudança de
tratamento proposta.
Apesar de a experiência de New Lanarck ser a mais significativa de Owen, e de ele não
concentrar sua proposta de mudança social na luta de classes, o socialismo comunitário era
um dos elementos centrais que ele advogava (MENEGUELLO, 2001). Ainda segundo
Meneguello (2001), a comunidade ideal de Owen seria o paralelogramo (ou a aldeia de
cooperação), conforme divulgado em jornais londrinos no ano de 1817:
Meneguello segue na descrição da proposta owenista, agora no que diz respeito à estrutura
organizativa:
Nesse sistema, as funções estavam também divididas por sexo: as crianças deveriam
comer no refeitório e dormir em seus próprios dormitórios “sendo que os pais
podem, é claro, vê-las e falar com elas durante as refeições e em outros momentos
apropriados (...), pois as crianças devem ser instruídas a não adquirir os maus
hábitos de seus pais”. As mulheres deveriam, em primeiro lugar, cuidar das crianças;
em seguida, cultivar as hortas; poderiam trabalhar na manufatura, mas não mais do
que quatro a cinco horas por dia; por fim, deveriam fazer as roupas, cuidar da
cozinha e dos dormitórios e supervisionar a educação das crianças na escola. As cri-
anças mais velhas teriam funções semelhantes (Idem) .
Com isso, sob sua influência direta ou indireta dessas ideias, sugiram, após New Lanarck,
diversas sociedades cooperativas, em que os indivíduos morariam e produziriam em regime
coletivo de apoio mútuo. Segundo ainda Meneguello (2001), nos Estados Unidos, surgiram
sete comunidades (e mais três comparticipação incidental de owenistas), das quais New
Harmony, no estado de Indiana (ver Figura 10) é a mais conhecida delas, sendo que as demais
possuem documentação muito escassa. Todas estas comunidades terminaram em poucos anos,
e mesmo em New Harmony chegou-se a produzir os tijolos para a construção, mas ela não foi
erguida conforme o projeto. Entretanto, o impulso owenista retomou sua força a partir dos
anos 40 (quando muitas comunidades passaram também a ter uma influência fourierista),
chegando a mais de 130 comunidades antes da Guerra Civil americana (MENEGUELLO,
2001).
36
Figura 10: Projeto de New Harmony nos Estados Unidos. Fonte: BRONA (2007 )
Já na Inglaterra, surgiram diversas sociedades cooperativas, como uma formada por gráficos
em Londres, em 1821, e outra em Motherwell, em 1822, que não chegou a ter início. Outras
experiências relevantes foram a Orbiston Comunity, de 1825 a 1827, na Inglaterra, e na cidade
de Talahine, na Irlanda, entre 1831 e 1833, na Irlanda. O esforço considerado mais relevante,
contudo, envolve a comunidade Harmony Hall em East Tytherly, Hampshire, de 1839 a 1845
(MENEGUELLO, 2001).
b) Charles Fourier
Da mesma forma que Owen, Fourier (2010) propõe uma reorganização da sociedade com o
objetivo de vencer os problemas sociais criados pela revolução industrial, e também não
trabalha com a ideia de luta de classes, tendo como um dos pontos importantes a educação,
que deveria começar desde a tenra infância.
Fourier, todavia, critica ferozmente Owen, especialmente devido a três fatores que este último
defendia em jornais europeus da época: a abolição dos cultos e dos padres, a posse
comunitária dos bens e o fim do casamento, fatores que ele considerava “monstruosidades
políticas”, apesar de ele próprio repensar também a noção tradicional de família, considerada
muitas vezes monótona e opressiva. Além do mais, suas considerações para as mudanças de
comportamento dos indivíduos estão mais voltadas para as paixões humanas. Fourier
considera que estas deveriam ser ordenadas no sentido de produzir bens úteis à sociedade,
voltando-se, especialmente, ao trabalho, ou melhor, ao ser humano deveria ser dada a
condição de amar ao seu trabalho.
37
Fourier é também um forte crítico da sociedade industrial, sendo o seu modelo ideal de
organização o que ele chama de Harmonia. Para Fourier, o trabalho (ou a sociedade
industrial), deveria conter, em essência, quatro elementos atrativos principais: a) bem estar de
subsistência, ou luxo corporal interno, ligado principalmente à alimentação; b) bem estar em
vestimentas, habitação e transporte, ou luxo corporal externo; c) estilo de vida alegre,
vencendo o que seria a monotonia corriqueira da vida familiar a partir da ampliação do seu
núcleo, combinado com outros da comunidade; e d) participação, em que cada classe (rica,
pobre ou média) poderia combinar aqueles prazeres que são tipicamente seus com os
proporcionados pelas demais.
De fato, uma das diferenças mais significativas entre Fourier e Owen parece ser a forma como
estes encaram a sociedade industrial. Enquanto o segundo caminha no sentido de reformar o
modelo, mantendo, contudo, a noção mais geral de industrialização e do seu trabalho típico,
Fourier recusa a noção de indústria como ela existia: Segundo o autor,
Harmonia seria organizada a partir da associação de séries passionais, tendo como base uma
lei universal da atração que levaria os seres humanos a se aproximar e agir segundo as suas
paixões. Para Fourier, esta lei seria uma manifestação específica da lei geral de atração do
universo, manifestada, neste caso, como atração passional entre seres humanos.
(ALBORNOZ, 2007). Harmonia, teria, assim, características totalmente diversas do
industrialismo vigente:
As séries passionais são grupos de atividades organizadas conforme os talentos e paixões dos
indivíduos. Estas séries não são permanentes, mas mudam, já que estariam também sujeitos à
variação, outra lei definida por Fourier, destinada a tornar as atividades ainda mais atraentes.
Outra consequência direta desta organização seria o próprio aumento na produtividade e na
prosperidade geral (ALBANOZ, 2007).
38
No entanto, Harmonia não seria uma conquista imediata, mas sim resultado da evolução da
humanidade segundo nove estágios (FOURIER, 2010, p. 11)18: a) “Bastardo, sem homem”, b)
“Primitivo, pequena cultura” e c) “Selvageria ou inércia”, compondo o grupo do “Estado
Bruto, anterior à grande cultura”; d) “Patriarcado, média cultura”, e) “Barbárie, grande
cultura” e f) “Civilização, ciência e arte”, compondo o grupo do “estado falso, cultura
dividida e repugnante”; g) “Garantismo, semi-associação”, h) “Sociantismo, associação
simples” e, finalmente i) “Harmonismo, associação completa”, compondo o que seria o
“estado verdadeiro, cultura combinada e atraente”.
O projeto social de Fourier que materializa estas propostas seriam os falanstérios (ver Figura
11), que segundo Albornoz (2007) podem ser entendidos como um:
18
Tradução livre.
39
Ebenezer Howard (1996) com sua proposta das cidades-jardins inaugura um movimento, que
tenta redefinir as cidades na tentativa da realização de uma ocupação mais harmonizada do
espaço físico e da constituição de um espaço mais saudável e atrativo para a vivência humana.
O referido autor, com base no cenário da Inglaterra do final do século XIX, de intenso êxodo
rural e inchamento descontrolado das grandes metrópoles (especialmente Londres), propõe
um conceito de cidade que superaria a separação urbano-rural, por meio de um planejamento
que colocaria, em um só espaço, o que seriam os atrativos (que ele chama de imãs) de cada
um destes ambientes, e eliminaria, ao mesmo tempo, as suas desvantagens. Ao construir um
novo espaço, a cidade-jardim, segundo estes parâmetros, o seu imã seria atrativo o suficiente
para tornar este tipo de organização (ou outros que tenham um princípio semelhante)
predominante frente aos demais (Figura 12). Sendo assim, Howard foge ainda da ideia de
“levar o homem de volta ao campo”, julgado impróprio por ele, já que o fato de vir à cidade
está vinculado aos atrativos que ela ofereceria.
A cidade não teria lotes privados, mas sim concessões para utilização. A sua propriedade seria
da municipalidade, e ela seria administrada por um conselho deliberativo e estruturas
administrativas constituídas para tal. O arranjo proposto pelo autor é similar ao de uma
cooperativa, com a diferença de que toda a terra poderia ser previamente comprada por
investidores privados que teriam o seu investimento restituído a uma dada taxa de retorno.
Nesta situação, na cidade conviveriam tanto investidores privados, interessados nos seus
negócios quanto operários, profissionais liberais e agricultores, além daqueles
empreendimentos públicos administrados pela municipalidade.
Neste arranjo, a principal (e exclusiva) fonte de receita da cidade seria a renda fundiária,
depois de pagos os juros e a parcela de amortização do investimento. O principal objetivo
deste formato é o de evitar a especulação imobiliária e manter atrativa a ocupação da área
rural, já que o custo de distribuição (o que inclui atravessadores) poderia ser
consideravelmente reduzido e, com o planejamento adequado, aumentar a fertilidade do solo
(ver logo adiante). Assim, todo o recurso que seria pago para o proprietário privado do lote, o
qual aumenta com a sua valorização e vira apropriação privada, seria também, utilizado para
investimento no bem estar da cidade. Um efeito direto disso, seria a redução do custo de cada
morador, que ficaria liberado de outras taxas municipais.
40
Howard (1996) prevê ainda, que a cidade seria mais harmonizada com o seu entorno, além de
ser mais agradável e saudável para os seus moradores. Dentro de uma ideia que poderia ser
considerada visionária para a época (o livro foi escrito em 1896), o autor propõe que o lixo da
cidade seja utilizado nas parcelas agrícolas, além de prever a reconstituição dos ciclos naturais
na água:
Do ponto de vista do planejamento físico, as cidades jardins seriam compostas por núcleos
urbanizados, construídos de forma circular, com todos os equipamentos comumente vistos na
zona urbana, circundados por uma região rural (ver Figura 13). A área total da cidade, que
poderia abrigar até 32.000 habitantes, seria de 2400 hectares, sendo 2000 dedicados à zona
rural e o restante compondo o núcleo urbano. A cidade circular seria dividida por bulevares
arborizados de 36m de largura em seis setores e seria circundada por ferrovias que ligariam às
demais cidades. No centro haveria um grande parque, equipado com sanitários e espaços de
41
Figura 13: Planos da cidade jardim. Acima, contendo toda a área da cidade; abaixo, o recorte dado por dois
bulevares. Fonte: http://www.sacred-texts.com/utopia/gcot/
b) a participação dos indivíduos nas decisões que lhe impactam (embora os processos
democráticos descritos nas utopias não coincidam com os contemporâneos);
d) a ideia da vida constituída sobre o consumo do suficiente (ou seja sem a noção de acúmulo
ou consumo excessivo).
3 O CONCEITO DE ECOVILAS
Segundo Metcalf e Christian (2003), comunidades intencionais são “formadas quando grupos
de pessoas escolhem viver juntas ou próximas o suficiente para buscar um estilo de vida
compartilhado com um propósito comum”19. A chave principal que une uma comunidade
intencional seria justamente a intenção, a escolha do estilo de vida, mais do que simplesmente
o compartilhamento do lugar comum.
Além disso, as comunidades intencionais podem apresentar uma diversidade muito grande
dos valores comuns, que podem ser tanto econômicos, sociais, espirituais, políticos e/ou
ecológicos. (CHRISTIAN apud METCALF & CHRISTIAN, 2003).
Um dos coautores define, em outro texto, questões como o número de pessoas, que teria que
ser acima de cinco e em mais de uma família, além de colocar em evidência o fato de que eles
dividem diversos aspectos das suas vidas, sendo caracterizados por uma consciência coletiva
(“we-consciouness”). Eles se enxergariam como um grupo contínuo, porém separados e
melhores, sob muitos aspectos, da sociedade de onde vieram (METCALF apud METCALF &
19
Tradução livre. Do original “[intencional communities] are formed when groups of people choose to live
with or near enough to each other to carry out a shared lifestyle with a common purpose” (METCALF &
CHRISTIAN, 2003).
44
CHRISTIAN, 2003).
As comunidades intencionais podem ser de diversos tipos, sendo sua classificação difícil por
causa dessa diversidade, que pode variar conforme todas as dimensões citadas acima; elas
podem ser seculares ou religiosas, mais coletivistas ou individualistas, tanto no aspecto da
propriedade quando da renda; do pondo de vista político, podem ser mais radicais, liberais ou
conservadoras ou mesmo nenhum deles; umas podem dar um valor muito alto à questão
ambiental (mesmo observá-la com um fervor religioso), enquanto outras ignorar este aspecto;
elas podem nem mesmo ser contrárias à cultura dominante, mas apenas trabalhar aspectos que
sejam complementares a esta. As comunidades intencionais podem ainda ser auto-
organizadas, organizadas pelo Estado (como na Dinamarca, na Austrália, em Nova Zelândia e
em Israel) ou por alguma instituição em particular (a igreja, por exemplo); elas podem estar
situadas em regiões urbanas (como o exemplo do cohousing, assim como as que promovem
um ativismo político) ou rurais; podem estar mais isoladas ou organizadas em grandes redes e
confederações (como as comunidades Yamagishi, do Japão, que também estão presentes no
Brasil) (METCALF & CHRISTIAN, 2003).
Santos Júnior (2006) aponta que as ecovilas têm um laço histórico mais estreito com as
comunidades que surgiram principalmente após a segunda guerra mundial, nos países
centrais, e tinham como características o fato de serem movimentos “contestatórios e
libertários que visavam questionar todos os setores constituídos da sociedade da época:
hábitos, ideias, corporeidade, arte, organização política, espiritualidade, estrutura produtiva e
social, tecnologia” (SANTOS JÚNIOR, 2006, p.3), o que implicava também em uma
mudança de valores e na forma de relacionamento com a natureza. Diversos movimentos
representavam esta forma de agir e pensar, ficando conhecidos genericamente como
contracultura, e incluíam temas como ecologismo, feminismo, pacifismo, movimento negro,
hippies, etc.
Metcalf e Christian (2003) apontam ainda algumas questões relevantes que atualmente a
maioria das comunidades intencionais tem de enfrentar: o primeiro dos aspectos é a
governança, em que algumas comunidades são governadas por líderes carismáticos
fundadores. Enquanto, outras são teocráticas e outras ainda por líderes eleitos; outra questão é
a resolução de conflitos, já que as comunidades devem aprender a resolver conflitos
produtivamente. Toca-se ainda na questão das finanças, que pode variar desde aquelas
comunidades em que o indivíduo é suportado pelo coletivo (quando há coletivização geral)
até aquelas em que o indivíduo suporta o coletivo. Outro ponto é o recrutamento, em que o
desafio é conciliar as propostas da comunidade com a intenção do novo membro; a
socialização, que está ligada ao item anterior, se refere ao processo de fazer o novo membro
se tornar “um de nós” ao invés de “um deles”. Há ainda, a preocupação com o
comprometimento, que é algo que se requer de todos os membros; um outro aspecto é a
mistura de idades, desafio para muitas comunidades, já que a maioria dos jovens tendem a
não permanecer residentes, pondo em risco a continuação da experiência. Um ponto tocado
ainda pelos autores é a relação com o governo e a vizinhança, já brevemente comentada, que
pode ir desde a contraposição até o apoio, neste caso, os autores apontam que normalmente a
posição da grande mídia é de animosidade, quadro que tem sofrido alterações com o tempo. O
grau de comunalismo é outro aspecto evidenciado, em que as atividades da comunidade
podem ser realizadas mais ou menos coletivamente; os autores colocam as ecovilas dentro
desta característica como relativamente pouco comunal. A tecnologia (ou seu uso) é também
um aspecto apresentado, sendo relevante a forma como a comunidade se apropria das
soluções tecnológicas ou se as rechaça; por fim, os autores se referem à questão dos visitantes,
em que muitas comunidades incentivam a presença, pois representam também uma fonte de
renda.
46
Santos Júnior (2006) defende que, apesar de as ecovilas serem herdeiras das comunidades
intencionais surgidas após a metade do século XX, continuando algumas de suas
características, elas produzem uma síntese de um amplo leque de experiências, que abarca
muito da história das comunidades intencionais, e que tiveram, em sua época, igualmente um
caráter de contestação e de tentativa de definição de um outro tipo de vivência em sociedade,
como o exemplo do socialismo utópico, ou do movimento quilombola, que ensejou a
construção de quilombos com uma grande longevidade (muitos perduram até hoje).
Esta síntese definiu, segundo Santos Júnior (2006), o formato específico das ecovilas, que se
apresentou mais claramente nos anos 90. Elas se assentam, dessa forma, no debate que
envolve as questões de esgotamento da natureza, por um lado e os crescentes desníveis sociais
a se propagarem pelo mundo, por outro. Esses dois pontos fundam alguns dos propósitos nos
quais se assentam as ecovilas: de um lado, uma transformação na forma do relacionamento
com a natureza, que implica fundamentalmente numa mudança na maneira como ela é
percebida – deixando de ser um “pano de fundo”, com todas as implicações que isto têm, e
passando a ter um papel central nas atividades humanas – que deveriam se integrar a ela como
num sistema, adotando-se uma forma de viver com baixo impacto ambiental. De outro lado,
busca-se a definição de um novo formato de estruturação social que superaria a “dicotomia
entre os assentamentos rurais e urbanos” (SVENSSON apud SANTOS JÚNIOR, 2006, p.8), e
que se estabeleceria sobre valores comunitários, implicando em, por exemplo, respeito à
diversidade, a cooperação, a solidariedade, a autonomia, a liberdade, e novamente, o profundo
respeito à natureza; numa perspectiva está em foco a vivência em harmonia com a natureza,
na outra a vivência em harmonia com os outros. Tais características fazem com que as
ecovilas sejam singulares em cada uma de suas iniciativas, tendo, entretanto uma unificação a
partir do fato de elas serem, ao mesmo tempo, intencionais e sustentáveis (SANTOS
JÚNIOR, 2006).
Em complemento a esta definição mais abrangente, podemos tomar a definição que Gilman
(1991) dá às ecovilas, experiências que ele aponta como sendo uma expressão da tentativa de
concretização de um sonho de vivência harmoniosa. Ele propõe uma caracterização que
engloba cinco pontos principais: são assentamentos em escala humana, completos, nos quais
as atividades humanas são integradas sem danos ao meio natural, de uma forma que se
permita o desenvolvimento humano saudável e que possa ser continuada com sucesso no
47
futuro20. Interessante notar que na definição de Gilman, não está presente o debate sobre a
intencionalidade da comunidade, o que poderia levar a uma ampliação do leque de possíveis
comunidades que teriam as características apontadas.
a) “escala humana”: refere-se ao tamanho adequado para que as pessoas possam conhecer e
ser conhecidas por outras numa comunidade, e no qual as pessoas percebam que podem
influenciar na sua direção. Gilman (1991) aponta que este número gira em torno de 500
pessoas, podendo ser maior (em comunidades isoladas) ou menor (em sociedades industriais
modernas).
c) atividades humanas integradas ao mundo natural sem danos: uma ideia importante aqui é a
da igualdade entre os seres humanos e outras formas de vida, em que o ser humano busca o
seu lugar na natureza, ao invés de dominá-la. Outra questão relevante é a utilização cíclica dos
recursos, ao invés da linear que predomina na sociedade industrial, o que aponta para
utilização de fontes alternativas de energia e reutilização/reciclagem de resíduos ao máximo
nível possível.
20
Tradução livre. Do original: a) "A human-scale...; b) “...full-featured settlement...”; c) “...in which human
activities are harmlessly integrated into the natural world...”; d) “...in a way that is supportive of healthy
human development...” e e)” ...and can be successfully continued into the indefinite future”. (GILMANN,
1991)
48
sustentabilidade das ecovilas. Gilman (1991) reconhece, entretanto, que hoje dificilmente uma
ecovila alcance um status de plena sustentabilidade, pois suas atividades tendem sempre a
depender de outras “insustentáveis” em outros lugares, mesmo que se consiga internamente
alcançá-la num nível elevado.
Uma terceira definição que é relevante também apresentarmos aqui é aquela dada pelo Global
Ecovillage Network (GEN, 2010). Esta rede define ecovilas como sendo
Com base também na noção de comunidades intencionais, a GEN (2010) aponta que a
motivação para a constituição das ecovilas está na escolha (e no compromisso) de reverter os
problemas atuais do nosso planeta, provocados pelas práticas destrutivas que se dão nas
esferas sociais, culturais e ambientais. Neste sentido, a rede aponta que, de fato, sempre
existiram pessoas que viveram (e algumas ainda tentam sobreviver) em comunidades ligadas
à natureza e com estruturas sociais mais adequadas, e que hoje as ecovilas são “criadas
intencionalmente, de forma que as pessoas podem ainda mais uma vez viver em comunidades
conectadas com a Terra de uma forma que permita o bem-viver de todas as formas num futuro
indefinido”22.
Apesar da força desta ideia de que as ecovilas são herdeiras de práticas tradicionais, Gilman
(1991) defende que elas representam, na verdade, um tipo de prática nova. Por um lado,
porque as comunidades agrícolas tradicionais tem alguns problemas do ponto de vista
ambiental e social (pelo menos segundo os parâmetros modernos). Elas dependem, pelos tipos
de tecnologias utilizadas na agricultura, de uma baixa densidade populacional, além de
utilizarem muitas técnicas que também são ambientalmente agressivas. Além disso, estas vilas
tradicionais nem sempre são um espaço para a convivência humana harmoniosa, uma vez que
são frequentemente patriarcais, havendo “enfeudamentos” e desconfianças entre vizinhos e
com o mundo em volta.
21
Tradução livre. Do original “Ecovillages are urban or rural communities of people, who strive to integrate a
supportive social environment with a low-impact way of life. To achieve this, they integrate various aspects
of ecological design, permaculture, ecological building, green production, alternative energy, community
building practices, and much more.” (GEN, 2010)
22
Tradução livre. Do original “Ecovillages are now being created intentionally, so people can once more live in
communities that are connected to the Earth in a way that ensures the well-being of all life-forms into the
indefinite future.” (GEN, 2010).
49
Por outro lado, o autor aponta que ecovilas “verdadeiras” são um fenômeno “pós-industrial” e
mesmo “pós-agrícola”, que tira das experiências humanas lições para constituir suas práticas.
Elas surgem num contexto diferente destas práticas tradicionais, pois: existem novas
constrições ecológicas (alta população e nova capacidade tecnológica); elas defrontam-se com
novas técnicas e tecnologias, o que implica desde mais conhecimento sobre os ecossistemas
até novas formas de comunicação, ou ainda tecnologias mais eficientes para os recursos
renováveis e novas formas de organização humanas e; há um outro nível de consciência e
cautela, especialmente considerando-se nosso posicionamento na história da Terra e a sua
finitude física.
Todas as definições aqui apontadas trazem alguns elementos em comum: a) a ideia de que as
práticas representam uma nova forma de relação do ser humano com a natureza, baseada em
valores diferentes dos predominantes nas sociedades industriais modernas, ou seja, num
sentido de integração, de valorização e respeito, em contraposição às ideias de separação,
utilitarismo e não-reconhecimento de um valor próprio para natureza; b) a noção de que as
ecovilas constituem práticas que vão além da questão ambiental ou ecológica, e avançam
sobre a questão social e econômica, buscando a valorização ou a reconstituição de um tipo de
relação humana mais harmonizada e c) que, apesar de serem herdeiras de diversas práticas
tradicionais constituem um tipo de prática nova. Neste último ponto há uma certa variação nas
percepções, desde a ideia de que elas se diferenciam principalmente com relação à
intencionalidade (GEN, 2010) até a noção de que elas constituem uma síntese nova,
principalmente em função do contexto dado pela sociedade moderna e industrial.
Outros conceitos relevantes para o entendimento das ecovilas são os de permacultura e seus
derivados23, já que eles aparecem com frequência em textos e discursos ligados às práticas24.
Dentro da ideia de permacultura, estão também estabelecidas (como nas discussões sobre
sustentabilidade apresentadas no Capítulo 6) críticas aos modelos de desenvolvimento
23
Como bioconstrução, alguns tipos de aproveitamento cíclico de recursos, a policultura, hortas em mandala,
etc. Nem todos são derivados diretamente da ideia da permacultura, mas são normalmente utilizados em seu
nome, devido à convergência conceitual.
24
Ver GEN (2010), ENA(2009), IPEC (2010), RAINHO (2006), BISSOLOTTI (2004), apenas para citarmos
alguns exemplos.
50
dominantes. Holmgren (2007) aponta que vivemos em uma cultura dominada pelo
consumismo, e que é impulsionada por medidas econômicas equivocadas de bem-estar e
progresso. Estas medidas criam distorções, fazendo com que, para a maioria da população
mundial, a renda real seja baixa com relação ao custo das necessidades básicas, ao contrário
de uma parcela mais privilegiada, especialmente do Norte, em que estes custos são baixos e
mesmo decrescentes com relação à renda. Isto tem dois efeitos, simultaneamente para cada
uma destas parcelas da população: no primeiro caso, convive-se com cada vez mais
dificuldades de manter ou encontrar meios mais diretos e sob o próprio controle para
satisfazer suas necessidades, devido à exaustão dos recursos naturais, conflitos étnicos,
exploração de governos e empresas, gerando pressões para a mudança do campo para a
cidade, por exemplo. No segundo caso, há um isolamento dos consumidores dos sinais de
esgotamento ambiental, fazendo com que estes não percebam a necessidade do
desenvolvimento de estilos de vida mais sustentáveis e arrefeçam a busca por políticas
públicas neste sentido. Com isto, estas políticas e estes hábitos tendem somente a
desenvolver-se e crescer em sentido contrário; ironicamente, os indicadores de bem-estar e
capital social caem constantemente desde o pico dos anos 70 (HOLMGREN, 2007), o que
pode ser explicado, em grande parte, pelos cortes nos gastos públicos em educação e saúde e
outros serviços básicos por conta dos ajustes estruturais impostos por organismos como FMI e
Banco Mundial.
Numa definição mais atual de permacultura, HOLMGREN (2009) aponta para a noção de:
“paisagens conscientemente desenhadas que reproduzem padrões e relações encontradas na
natureza e que, ao mesmo tempo, produzem alimentos, fibras e energia em abundância e
suficientes para prover as necessidades locais” (p.xix) 25, o que envolve as pessoas, a forma
como se organizam e suas edificações. Este conceito, segundo o autor citado, representa uma
evolução com relação à sua designação inicial (cunhada pelo autor em parceria com Bill
Mollison), passando da ideia de uma “agricultura permanente ou sustentável” para uma
“cultura permanente e sustentável”.
25
Tradução livre. Do original em inglês: “consciously designed landscapes wich mimic the patterns and
relationships found in nature, while yielding an abundance of food, fiber and energy for provision of local
needs”
51
Os princípios da permacultura, por sua vez, partem da ideia de que é possível a derivação de
regras gerais a partir do conhecimento do mundo natural ou de sociedades sustentáveis da era
pré-industrial. Eles são pensados em termos de aplicabilidade universal, para diversos
contextos, embora os métodos específicos de aplicação possam ter uma grande variação em
função das características dos locais da sua utilização. Segundo Holmgren (2009), os
princípios podem ser pensados como slogans ou check lists para pensar o design e evolução
de sistemas de suporte ecológico.
De forma geral, estes princípios podem ser divididos em dois grupos: os éticos e os de design,
sendo este segundo tipo os que se ajustam mais especificamente às características citadas logo
acima e que por isto são apresentados de forma mais detalhada no livro em referência. Os
primeiros podem, então, ser genericamente agrupados em três principais: a) cuidado com a
Terra (solos, florestas e água); b) cuidado com as pessoas (consigo mesmo, com parentes e
com comunidades) e c) partilha justa (limites para consumo e reprodução e redistribuição do
excedente). Já os segundos são apresentados a partir de doze princípios fundamentais, listados
a seguir:
a) Observe e interaja: aqui entra em prática a ideia da criação de pensamento de longo prazo e
independente, mais do que a duplicação de soluções já desenvolvidas em outros lugares, dado
que modelos externos tem menos chances de aplicação, por questões culturais e podem ser
menos eficientes devido às particularidades locais. Tal fato não elimina a possibilidade do que
Holmgren (2009) denomina de “fertilização cruzada”, que é a influenciação e aprendizado
mútuo entre técnicas aplicadas em locais distintos.
b) Capte e armazene energia: a ideia aqui é repensar o uso excessivo de energia não-
renovável, além de aprender a economizar a energia consumida e desperdiçada. Estas fontes
incluiriam sol, vento e escoamento superficial de água, além dos recursos desperdiçados nas
atividades agrícolas, comerciais e industriais. O estoque para o futuro envolveria questões
como solo com alto teor de húmus, sistemas de vegetação perene, corpos e tanques de água e
edificações com a utilização passiva da energia solar.
c) Obtenha rendimento: o que se propõe é que qualquer sistema ou processo seja pensado para
ser produtivo, desde os prazos mais curtos. Em paisagens urbanas, por exemplo, evitar-se-ia a
utilização de plantas meramente ornamentais, de forma a se criar sistemas funcionais e
produtivos. Tal princípio iria contra à ideia disseminada de desenvolvimento que tende a
afastar as pessoas da necessidade de se manter um tipo de ambiente como este, funcional e
53
f) Não produza desperdícios: este princípio contrapõe-se ao modelo de consumo humano, que
está estruturado na forma “consumo-excreção”, ou seja, pior do que desperdiçar é gerar
poluição, um tipo de resíduo que não é reaproveitável de forma produtiva por outras partes do
sistema. A ideia é constituir sistemas que possam fazer uso dos produtos e subprodutos
internamente, além de definir estratégias para o aproveitamento de “abundâncias
indesejadas”, geradas por desequilíbrios nos sistemas.
g) Design partindo de padrões para chegar aos detalhes: com este princípio, passa-se à
leitura do sistema a partir das características mais gerais (padrões). Parte-se da ideia de que
existem traços comuns observáveis na natureza e que podem ser úteis para aplicações em
diversas situações. Além disso, supõe-se também que a percepção de novas experiências pode
26
Homeostase se refere à capacidade de um sistema aberto manter uma condição interna estável para a
manutenção da vida, mesmo com mudanças exteriores.
27
A Hipótese Gaia aponta que a Terra possui comportamentos autoregulatórios que podem ser comparados ao
de um ser vivo qualquer. Dada que esta é uma das principais características que fazem com que a vida se
mantenha, ela seria, assim, um superorganismo, dos quais seriam parte importante tanto os organismos que
nela habitam, como todos os seus elementos inanimados.
54
i) Use soluções pequenas e lentas: considera-se que a escala adequada para os processos seja
a da capacidade humana, conforme já anteriormente defendido por Schumacher (apud
HOLMGREN, 2007). Este aspecto refere-se a pequenas atividades domésticas até a compra
de pequenos comerciantes locais. Por outro lado, questiona-se a velocidade cada vez maior
das sociedades modernas, tidas como positivas em si. O exemplo disto é que as plantas de
crescimento rápido muitas vezes tem vida curta, ou a adubação com componentes de
absorção mais lenta são as que tornam as plantas mais saudáveis.
j) Use e valorize a diversidade: por trás deste princípio está a ideia de que a diversidade
permite o equilíbrio dos sistemas ecológicos e que, por exemplo, a adoção de monoculturas
tem sido a causa da grande vulnerabilidade às pragas e às doenças, requerendo um uso cada
vez maior de agrotóxicos e outras tecnologias de cultivo não-sustentáveis. Esta ideia é
extrapolada para a cultura humana, pressupondo-se que a sua variedade também é vital para a
manutenção do equilíbrio sistêmico.
k) Use as bordas e valorize os elementos marginais: a ideia aqui é valorizar aqueles espaços
relegados pelo cultivo humano, que são as bordas ou interfaces entre subsistemas. Exemplos
disso são os espaços de transição entre área cultivada e floresta, rio e mares, demarcações do
espaço urbano, etc. Supõe-se ainda que o melhor aproveitamento (e ampliação) destes espaços
possa aumentar a produtividade a a estabilidade dos sistemas.
3.4 Limites Das Práticas Das Ecovilas: Um Debate Sobre O Alcance Da Mudança
Social E Da Sua Pertinência No Contexto Atual
Um interessante debate sobre o alcance das práticas das ecovilas se deu no âmbito da revista
“The International Journal of Inclusive Democracy”, entre os anos de 1998 e 2006, a partir
de uma série de artigos assinados por Fotopoulos (1998, 2000, 2002, 2006), criticando a
prática e Trainer (2000, 2002 e 2006), ainda com a participação de Garden (2006a, 2006b). A
questão central deste debate era se as ecovilas podem ou não representar um modelo ou uma
prática que promoveriam uma mudança socioeconômica em escala significativa.
Segundo Fotopoulos (2000), o movimento das ecovilas seria falho, porque se foca mais na
questão da mudança de valores do que na mudança da estrutura. Uma mudança apenas nos
valores seria ineficaz, pois poderia ser contida ou cooptada pelas estruturas de poder
dominantes, como o ocorre em muitos casos. Mesmo que a mudança de valor fosse uma tática
efetiva, Fotopoulos (2000) diz que as ecovilas não estariam credenciadas para realizá-la, já
que estas práticas não se constituem efetivamente como um movimento. Isto porque lhes
faltariam objetivos e estratégias comuns, além de serem mais uma aglutinação de indivíduos
de classe média com interesses próprios: “Many eco-villages simply involve people in trying
to build better circumstances for themselves, often within the rich world in quite self-
indulgent ways”.
Além disso, as ecovilas são consideradas apolíticas, ou seja, não se envolveriam em nenhuma
proposta direcionada de mudança, fato que pode ser ilustrado pela aproximação com a ONU e
que pode ser observado diretamente em diversas práticas, que envolvem relações de
dependência com o estado e com o sistema econômico atual (FOTOPOULOS, 2006). De fato,
Fotopoulos acusa as práticas de monotemáticas, já que se focariam apenas na questão
ambiental. Esta questão é considerado pelo autor um fato grave, visto que apenas uma
mudança de comportamento de alguns indivíduos, sem estar acompanhada por uma mudança
institucional (nos mecanismos de poder e decisão) não seria efetiva.
Um outro problema é que elas seriam práticas baseadas em um irracionalismo, já que teriam
por base princípios espirituais. Com isto, ele sentencia:
The conclusion is that the activities of the anti-globalisation movement, like those of
the ecovillage movement, have no chance of functioning as transitional strategies for
systemic change, unless they become an integral part of a programmatic political
mass movement for such a change.
56
(…) Such activities could include both direct action and life-style activities, as well
as other forms of action aiming at creating alternative institutions at a significant
social scale through, for instance, the taking over of local authorities. The condition
for such activities to be characterised as confronting the system is that they are an
integral part of a mass political movement for systemic change. (FOTOPOULOS,
2000)
A partir disso, as ecovilas não seriam mesmo parte da solução, mas sim do problema a ser
enfrentado:
Trainer (2006), por outro lado, ao defender a prática das ecovilas, defende que sua posição
não difere tanto da de Fotopoulos (conquanto o último discorde disto), pois também acredita
que deve haver uma mudança estrutural. Todavia, o autor afirma que esta crítica é pouco
produtiva, já que, ao ser formulada, não apresenta nenhuma alternativa viável para a mudança,
ao contrário das ecovilas.
My main difference with Takis [Fotopoulos] is that he gives us no help regarding the
ways we might begin the required political movement. It is precisely that problem
that I am claiming that the eco-village vision and the formation of Community
Development Cooperatives addresses (p. 3)
Além disso, Trainer diz que o tipo de mudança requerido, envolvendo uma redução drástica
no nível de consumo não pode ser realizada apenas com mudanças técnicas, mas sim com
uma mudança radical no estilo de vida e nos valores, no sentido de adoção de uma espécie de
“Modo mais Simples”28 de vida, em que se adote um estilo de vida frugal e autossuficiente,
em economias essencialmente pequenas e fortemente localizadas, autossuficientes,
cooperativas e sob controle social (não determinadas pelo mercado e pelo lucro) e sem
crescimento econômico. Estas condições, segundo o autor, seriam atendidas principalmente
pelas ecovilas (TRAINER, 2006).
This is not salvation through the creation of eco-villages in the sense of intentional
communities made up of people who come together with the right vision to form a
new society on a new patch of ground. It is about beginning with existing
settlements and gradually converting them into eco-villages of a kind, not
necessarily with common ownership of most property. What matters in the middle
distance future is the establishment of sufficient collective property and spirit
28
“Simpler Way”
57
O que Trainer (2006) sustenta é que se houver uma grande crise em breve, a janela de
oportunidade provavelmente será pequena, e se não houver nenhuma experiência efetiva para
um processo de transição, em que as pessoas tenham alguma proposta de ação, o que se verá é
uma resposta das elites, no sentido de se reorganizarem para a manutenção do status quo.
Trainer acredita que poderá haver uma resposta a partir de um “solavanco” em que a
população perceberá que não pode mais ser atendida da maneira habitual, o que a forçará a
buscar uma solução local, situação que é contestada por Fotopoulos (2006) por acreditar que
as elites já vêm de fato se preparando para a escassez através de medidas de contenção do
consumo dos mais pobres, e que isto iria se intensificar na mesma medida do agravamento da
crise.
Trainer (2006) concorda que deve haver uma mudança política, mas que não se deve esperar
por ela. Neste caso, o melhor que se pode fazer é dar às pessoas uma motivação positiva para
a mudança, o que ele considera única força possível para uma mudança
The new economies can only work if people are motivated by positive forces, by
desire to run things, cooperate, share, care for each other, build good systems.
People must be willing to go to working bees and committees, because they are
enjoyable, and because they provide a satisfying sense of empowerment, worthwhile
activity, security, camaraderie and collectivism (TRAINER, 2006).
O autor defende ainda que, a solução não esta em tomar o poder estatal nem tampouco lutar
diretamente contra o capitalismo, o que seria um “jogo mortal”. A mudança se daria pela sua
morte lenta, a partir da aderência dos indivíduos ao novo modelo.
58
O propósito deste capítulo está ligado à apresentação de alguns casos internacionais, a título
de ilustração das discussões realizadas neste trabalho. Os elementos selecionados para
apresentação estão ligados, na medida do possível (disponibilidade de informação) à
discussão conceitual realizada até aqui, bem como ao debate e elementos da sustentabilidade
que veremos mais adiante neste trabalho. Isto servirá ao propósito de minimamente contrastar
estas experiências com os casos nacionais.
A rede está articulada em escritórios regionais que cobrem todos os continentes. Nas
Américas ela se chama Ecovillage Network of Américas (ENA), e possui sede nos Estados
Unidos; na Oceania e na Ásia tem a denominação de Global Ecovillage Network Oceania e
Asia Inc. (GENOA) e, por fim, o escritório que cobre a Europa, a África e o Oriente Médio,
denominado European Ecovillage Network (GEN Europe). Esta rede vem adquirindo um
forte peso político na articulação global, tendo assumido, frente a ONU, um status consultivo
e tendo sido incluída na lista das 100 melhores práticas da ONU em 1998 (GEN, 2010).
O painel apresentado traz quatro experiências internacionais vinculadas a esta rede, escolhidas
entre aquelas com uma presença relvante na literatura sobre o tema.
59
Localizada em local de clima temperado e ventos fortes e gelados vindos do Mar do Norte, a
ecovila de Findhorn, na Escócia, foi uma das primeiras a ser fundada no mundo. O seu início
remonta a 1962, quando o casal de fundadores Peter e Eileen Caddy, seus três filhos e
Dorothy MacLean foram morar no acampamento de trailers na Baía de Findhorn. A
aglutinação de pessoas, que começou a ocorrer pela identidade com o estilo de vida que os
pioneiros adotavam (como o cultivo orgânico de alimentos, adquirido após um árduo trabalho
para tornar o solo produtivo, proposta de desenvolvimento espiritual, harmonia com a
natureza), fez com que a ecovila crescesse nos anos seguintes.
Nos primeiros anos, todos os moradores ainda moravam em trailers e bangalôs, entretanto
ainda nos anos 60, foram sendo construídas as primeiras edificações, como o Santuário da
Natureza e o Centro Comunitário. Nos anos 70, foram inaugurados o Universal Hall (que
contém um moderno teatro), a sala de concertos, a sala de computadores, o café e o estúdio
fotográfico, de dança e de gravação. Os anos 70 e 80, foram marcados por diversas
aquisições, inclusive o Parque de Trailers onde estavam instalados e o hotel em que
originalmente trabalhavam os primeiros moradores. Tais fatos ampliaram significativamente o
patrimônio e o trabalho da Fundação, que foi instituída enquanto tal em 1972,
responsabilizando-se pelas questões organizativas da comunidade, bem como as de educação
e difusão internacional da sua concepção sobre a vivência humana.
No início a experiência se apresentava mais como um ashram, ou seja, era uma comunidade
espiritual, que tinha como foco a transformação da consciência por meio de práticas
meditativas. A metamorfose veio com os anos, e as preocupações ambientais mudaram o
perfil do local, que, no entanto, não abandonou
sua proposta inicial (DAWSON, 2009).
Além disto, foi feito um trabalho específico de recuperação da vegetação local, com posterior
reflorestamento, sendo a iniciativa mesmo premiada pelo governo escocês pelos seus esforços
(BRAUN, 2001). Atualmente, o design da ecovila é, em essência, baseado na permacultura.
flores, entre outros, que são também vendidos para outras regiões do Reino Unido. Além
desses, podem ser encontrados lojas diversas, cafés, editora, gráfica, além de produtores de
queijos orgânicos, vinhos, frutas, hortaliças, prestadores de serviço de saúde alternativa,
cursos e outros, o que denota uma vitalidade econômica muito grande no local (DAWSON,
2006; FINDHORN FUNDATION, 2010)30. Isto mostra a convivência de diversos tipos de
empreendimentos, tanto de iniciativa individual quanto comunitária (promovidos pela
Fundação). Com isto, o número de empregos criados quase equivalente ao tamanho da
população da ecovila (DAWSON, 2004).
A comunidade constituiu uma cooperativa local, responsável pelo investimento dos recursos
poupados por seus membros (que chegam a um montante de 600.000 libras). Esta cooperativa
tem sido responsável pelo investimento no seu parque eólico, melhoria nas casas e a
constituição da loja comunitária. Também há no local uma moeda própria (denominada Eko e
paritária com a moeda local), instituída num circuito econômico local complementar 31
(DAWSON, 2009). Este sistema é organizado por um banco local, gerenciado pela
comunidade, que realiza também operações de microcrédito e aconselhamento técnico com o
objetivo de fomentar a atividade econômica da ecovila. As políticas e investimentos mais
gerais do banco são orientadas conforme um planejamento anual, que procura perceber o que
a comunidade ainda compra fora, no sentido de fomentar empreendimentos nas áreas ainda
deficitárias (DAWSON, 2004). Findhorn adota ainda um sistema LETS – local exchange
trading system (BRAUN, 2001), o que, junto com o banco comunitário e de moeda social
denota a existência de uma extensa articulação entre as diferentes lógicas econômicas.
Além destas questões, há um acordo feito com produtores rurais (que utilizam manejo
orgânico) no sentido de garantir o fornecimento dos alimentos, aumentando a taxa de
consumo dos produtos do local.
Há, aparentemente, uma estabilidade na população da ecovila, o que denota algum vínculo
entre os moradores, já que trata-se de uma comunidade intencional. Relatos informais dão
conta também de que as relações sociais são um item fortemente valorizado em Findhorn 32.
Há também forte ênfase na questão da educação, pela oferta constante de cursos no local, com
diversos formatos e durações. Ocorre um afluxo muito grande de visitantes que buscam os
30
Dawson (2004) informa que um estudo sobre o impacto econômica da comundiade de Findhorn na região
aponta que a experiência cria 400 empregos e movimenta mais de 5 milhões de libras em negócios por ano.
31
Segundo Dawson (2004), no primeiro ano foram emitidos cerca de 38.500 Ekos, sendo registrada uma
circulação local de $150.000 neste mesmo ano.
32
Segundo depoimento de um antigo morador da comunidade, em conversa informal realizada a partir de uma
visita sua ao Brasil.
62
cursos, cerca de 14.000 por ano, de forma que pelo menos dois prédios (um antigo hotel e
uma antiga escola) são destinados a estas atividades (BRAUN, 2001).
Do ponto de vista cultural, a ecovila conta com espaços que atraem muitas pessoas das
redondezas para as peças de teatro, concertos e sessões de cinema (DAWSON, 2006b).
A articulação externa é um dos pontos fortes da experiência. A GEN surgiu, em grande parte,
pela articulação feita a partir da Fundação Findhorn. Isto é tão significativo que a grande
quantidade de viagens realizadas por seus moradores é considerado um dos pontos
problemáticos no cálculo da sua pegada ecológica (DAWSON, 2009). Além disto, há também
influência da experiência no âmbito de programas das Nações Unidas.
Auroville é uma comunidade, que pelas suas dimensões, vem se constituindo como uma
ecocidade. Habitam em seu espaço cerca de 2.160 pessoas, de diversas idades (mas com uma
média geral de 30 anos) e de 45 nacionalidades, sendo cerca de um terço indianos. Ela tem
como meta, entretanto, abrigar cerca de 50.000 pessoas, de todas as nacionalidades do mundo.
Por esta diversidade, e pelos propósitos que encampa (dentre eles buscar a Unidade Humana)
é considerada pelo governo indiano e pela Unesco uma cidade internacional e universal.
Ela carrega em seus propósitos, ser referência na construção de uma nova humanidade, e vale
citar as quatro assertivas definidas pela “Mãe” desde a sua fundação:
3. Auroville wants to be the bridge between the past and the future. Taking
advantage of all discoveries from without and from within, Auroville will boldly
spring towards future realisations.
33
A maior parte das informações desta seção são, salvo quando informado, tem como fonte o site da ecovila
(AUROVILLE, 2010).
63
A experiência está instalada no sul da Índia, na baía de Bengal, com a maior parte da área no
estado de Tamil Nadu, um local de clima seco. Foi iniciada em 1968, a partir de uma reunião
de cerca de 5.000 pessoas no que viria a ser o centro da comunidade, estando representadas
124 nações, incluindo todos os estados indianos. O processo de constituição da comunidade
teve influência decisiva da “Mãe”, importante guia espiritual de origem francesa (que morava
no local e era seguidora de Sri Aurobindo – o que inspirou o nome da localidade). Este foi
resultado de um longo trabalho, já que a guia espiritual vinha trabalhando no conceito da
Auroville desde os anos 1930.
Do ponto de vista econômico, a comunidade tem como princípio básico a busca de uma
economia interna autossustentável de base não-monetária. Neste sentido, as atividades se
organizam de três formas distintas: segundo uma economia coletiva, que se dá a partir de um
planejamento realizado por um Fundo Central (Figura 18) ou da realização de atividades não-
lucrativas (ou ambas). São realizadas, neste sentido, atividades rurais, preparação e
distribuição de alimentos, provisão de eletricidade, água e telefone, estradas e cuidados
pessoais de saúde, roupas ou de cabeleireiros. Dentro da ideia de constituir uma economia não
monetária, a comunidade conta já com uma loja gratuita (ou seja, os moradores apenas tomam
o que precisam), havendo a intenção de se inaugurar outras. Há também uma economia
comercial, dedicada à produção principalmente
de artesanato orientado para vendas externas.
Nestes casos, as atividades não são baseadas na
ideia de propriedade individual, mas sim numa
espécie de curadoria, em que os
empreendimentos dão também sua contribuição
para o equilíbrio do Fundo Central, de forma
proporcional ao seu tamanho, ou seja, os
Figura 18: Fundo Central. Fonte: Auroville, 2010
65
Estima-se que a experiência empregue cerca de 5.000 pessoas da região, embora uma
limitação seja de que boa parte é, ainda, de trabalhos considerados mais servis (SOBO &
HOBERG, 2010). Além disso, por princípio, há a intenção da utilização da maior quantidade
possível de insumos locais. Há uma intensa produção agrícola, e muitos serviços e produtos
são realizados na própria comunidade.
34
Tradução livre. Do original “An 'in kind' economy” (AUROVILLE, 2010).
66
Com relação ao elemento político, Auroville, a partir do seu princípio “de não pertencer a
ninguém em particular e ser, ao mesmo tempo da humanidade”, e apesar das fortes referências
espirituais, não tem hoje nenhum indivíduo como guia. Há um comitê de planejamento, de
forma que as principais decisões são coletivas. Além disto, muitas outras decisões são
tomadas de forma descentralizada, dentro de um dos 18 setores responsáveis por diversas
atividades na localidade (SOBO & HOBERG, 2010). Estes processos participativos e
descentralizados são valorizados desde a constituição da comunidade, o que provavelmente
explica o sucesso da continuidade da experiência.
Além disto, há uma relevante interação da ecovila com o entorno, que Dawson (2006b) chama
a atenção como sendo das mais relevantes em termos das práticas das ecovilas. Os moradores
do entorno tomam parte da vida econômica da cidade, especialmente no tipo de economia
considerada “em espécie”. Entretanto, ao que parece, é uma relação que não se dá
absolutamente sem tensão, haja visto as diferenças culturais e de propósitos que se
estabelecem.
35
Segundo informações do site da experiência (AUROVILE, 2010), as escolas são organizadas sem níveis, e
sem quaisquer tipos de exames ou provas, além de os estudantes serem totalmente livres, o que lembra o
estilo de educação adotado em tribos guaranis. Interessantemente, aparecem no site depoimentos informando
que alguns jovens buscam algo diferente do que é oferecido localmente, tanto em termos de método de
ensino quanto de vivência pessoal. A justificativa seria a atração que a forma de vida ocidental exerce pelos
meios que chegam aos jovens do local.
67
A ecovila The Farm está localizada na costa leste dos Estados Unidos, Estado do Tennessee,
próximo à cidade de Nashville, sua capital. A região tem um clima temperado, com
precipitação pluviométrica abundante durante todo o ano.
A origem da comunidade está muito ligada aos movimentos hippie dos anos 60. Ela surgiu a
partir da “Caravana”, uma jornada realizada por cerca de 320 pessoas lideradas por Stephen
Gaskin, que percorreu boa parte do território dos Estados Unidos em cerca de 60 ônibus
escolares, tentando deixar uma mensagem de paz por onde passava. Ao aportar, em 1971, no
local onde hoje é a ecovila, os “caravaneiros” resolveram se estabelecer e formar ali uma
comunidade alternativa. Compraram, então, 200 acres de terra com recursos próprios e
iniciaram o processo de organização do local, a partir dos trabalhos de cultivo da terra e
morando inicialmente nos próprios ônibus.
36
A maior parte das informações sobre a ecovila forma extraídas do site da experiência (THE FARM, 2010).
68
infraestrutura. Logo em seguida, foram comprados mais 750 acres de terra e o número de
habitantes chegou a 750 em 1975 e a perto de 1500 no início dos anos 80. Devido à muitas
dificuldades encontradas nos anos posteriores, principalmente com relação à agricultura, a
comunidade passou por uma forte retração, tendo muitos de seus moradores se retirado já a
partir de 1983, até se chegar ao seu número atual, que é de em torno de 250 moradores. A área
ocupada hoje é de 4000 acres (sendo a maior parte dela adquirida com o único fim de realizar
reflorestamento e preservação ambiental), e a experiência passa por um momento de
estabilidade e crescimento planejado e ordenado, restando da aventura inicial principalmente
os princípios que fundaram a comunidade.
No início, a vida era totalmente comunal, mas atualmente os moradores tem a opção de se
tornar simples membros ou de participar mais efetivamente da coletividade. Com isto, todos
os moradores fazem parte da Fundação, instituição que representa a experiência, mas a
chamada “Segunda Fundação”, que é a experimentação coletiva, é opcional.
As moradias evoluíram dos antigos ônibus para casas construídas a partir de técnicas de
bioconstrução, envolvendo madeira, pedra, palha e argila, que são os materiais localmente
disponíveis. Já as tecnologias ambientais utilizadas envolvem a geração de energia a partir
utilização de painéis solares (para aquecimento da água e geração de energia elétrica), que
foram desenvolvidos e são produzidos na própria
comunidade, geradores eólicos e biomassa, bem
como o tratamento biológico das águas servidas e a
captação da água da chuva. Outras práticas
realizadas são o cultivo orgânico de alimentos e o
vegetarianismo, o planejamento da ocupação do
espaço (utilizando-se dos princípios da
permacultura), e a gestão democrática e igualitária.
médica, posto de gasolina, escolas, farmácia, correios, editora, centro de mídia, lojas,
fabricação de leite de soja, produção e venda de matrizes de cogumelos para cultivos. Conta
ainda com serviço de advogado, escavação de terras (com máquinas), plantio e processamento
de soja, produção de cogumelo, painéis solares, produção de catálogos, loja, estúdio de yoga,
produção de tempeh, guia turístico, restauração e pintura, fabricação de contador Gaiger,
produção multimídia, produção de workshops, tratamentos de saúde holístico, além dos
diversos projetos não-lucrativos como a Swan Trust (que tem o propósito de realizar a
recuperação da bacia do Rio Swan, pela compra da maior área de terra possível), além de
dezenas de outras iniciativas econômicas, sócioculturais ou ambientais. Por fim, a produção
de alimentos local pode atender toda a comunidade. No início dos anos 90 eram em torno de
30 iniciativas (GILMAN & GILMAN, 1991).
Do ponto de vista da sua organização social, a comunidade já passou por muitos altos e
baixos, chegando a ter muito mais moradores do que atualmente. No entanto, vive uma
situação de estabilidade, aparentemente com algo nível de “enraizamento” dos moradores
com relação à experiência. A identidade hippie é relembrada no local pela inauguração de um
museu com a história da ecovila.
No local são realizadas também, atividades ligadas a práticas espirituais, que ocorrem,
70
Do ponto de vista político, uma diretoria eleita pelos moradores governa a ecovila por três
anos. Há também um comitê de membros, eleitos por dois anos, que se encarregam da
mediação de conflitos e da entrada de novos moradores. Existem ainda outros comitês,
assumidos voluntariamente pelos moradores, que se encarregam de outras questões, como uso
da terra e finanças.
A sua interação com o entorno se dá pela pela participação de estudantes das cercanias na sua
escola. Além disso, são realizados também projetos com as crianças e adolescentes, com o
tema da educação ecológica. Percebe-se que as práticas de educação são fortemente
desenvolvidas na localidade, com programas de educação regular e de formação específica
para visitantes.
Crystal Waters Permaculture Village é uma comunidade rural localizada no Vale do Rio
Mary, na Costa Sunshine, interior do estado de Queensland, Austrália. Está situada em uma
região de clima temperado, com precipitação pluviométrica concentrada principalmente nos
primeiros meses do ano. É considerada a “primeira vila intencional permacultural”
(ATKISSON, 1991).
A ecovila surgiu em 1986, a partir do projeto de Max Lindegger, Robert Tap, Barry Goodman
e Geoff Young. O lugar escolhido para o estabelecimento da inciativa encontrava-se, na
época, fortemente degradado, com vastas áreas sofrendo pelo processo de exploração de
37
A maior parte da informação aqui apresentadas foram colhidas no site da experiência (CRYSTAL WATERS,
2010).
71
Um outro problema na origem da ecovila, que preocupava os seus 7 moradores inciais, era de
ordem legal. Na região do seu estabelecimento, por ser definida como área rural, eram
permitidas subdivisões (loteamentos) de terras com no mínimo 40 acres, o que apontava para
a irregularidade do assentamento realizado. Através de um processo de negociação política
com as autoridades governamentais do local, viabilizou-se a aprovação do plano da ecovila, o
que foi apoiado pela constituição de uma cooperativa dos moradores, detentora, então, da
maior parte do terreno e administradora do projeto.
Inicialmente, a proposta não contava com qualquer tipo de financiamento, o que levou à
aquisição da terra por meio de uma permuta com o seu proprietário, que ficou com 10 lotes do
projeto permacultural realizado. Além deste, cada um dos designers da ecovila ficou com 3
lotes como pagamento pelos seus serviços. A construção da infraestrutura foi viabilizada após
a venda dos primeiros lotes, cujo excedente, administrado pela cooperativa, foi empregado
para a construção de alguns equipamentos públicos.
38
O World Habitat Awards é uma premiação ligada ao programa HABITAT da ONU, que, a cada ano, distribui,
além de um troféu e um título, um prêmio de L$10.000 para dois projetos considerados referência em “boas
práticas de habitat”. A Crystal Waters foi finalista da premiação no ano de 1996 (WORLD HABITAT
AWARDS, 2010).
72
Figura 22: Leiaute dos lotes e ruas na ecovila. Fonte: Crystal Waters, 2010
73
Figura 23: Waterbreath Retreat. Fonte: Waterbreath educacionais. O local possui ainda um café (que
Retreat, 2010. se apresenta como ponto de referência para
encontros sócioculturais, envolvendo música, yoga, permacultura, esportes, teatro e discussão
sobre os assuntos comunitários); muitos moradores cultivam, em seu espaço doméstico, hortas
e pomares, galinhas, mel, vacas, ovelhas, porcos, gansos, etc (entretanto não há produção de
alimentos de forma coletiva). A ecovila conta ainda com webdesigners, serviços de
consultoria, educação e capacitação (em diversas áreas), tratamento biológico de pragas;
produção de instrumentos musicais; pintores artísticos; serviços de acomodação no parque,
que dão direito a estadia e ao turismo local; acomodação em pousadas que oferecem serviços
de saúde alternativa e bem estar inclusos (ver Figura 23); com o Crystal Water Ecocentre (ver
Figura 24), espaço educativo que serve também ao GENOA; além de outros serviços e
atividades comerciais e culturais. Além disso, os moradores que empreendem procuram
empregar prioritariamente outros moradores nas suas inciativas.
Sob o lema “Care of the Earth; Care of the People; and Dispersal of that which is surplus to
our needs" (ATKISSON, 1991), os moradores contam com normas gerais que definem, por
exemplo, que cada um deve responsabilizar-se pela satisfação de suas necessidades e pelos
74
resíduos gerados, que devem ser dispostos adequadamente. Ainda com relação à questão
ambiental, a ecovila preza pela qualidade das águas servidas (eventualmente testes
independentes são realizados para assegurar esta qualidade), que são reutilizadas localmente;
pela captação da água da chuva; pela construção das casas, que utilizam madeira reciclada,
terra e evitam a utilização de materiais tóxicos; pelo reflorestamento da área, visando também
ao fornecimento de madeira localmente; pela economia de energia elétrica, por meio da
utilização de um cabo de baixa tensão e com uma meta máxima de consumo por residência.
Ainda com relação à energia, é utilizado o princípio da orientação solar passiva e do
aproveitamento da circulação por gravidade (que estão entre as práticas de permacultura).
Da mesma forma que nas outra experiências apresentadas, existe um importante enfoque na
questão da educação, com a presença de um ecocentro no local. Não é observado, contudo, a
existência de escola para a formação regular dos moradores e comunidade do entorno
(especialmente os mais jovens).
75
Com relação à questão política, existem espaços de debates instituídos na comunidade, onde
as posições são sempre negociadas. Com isto, embora existam regras, não existem
mecanismos institucionalizados de coerção direta sobre os moradores, que neste espaço
acertam suas dificuldades. (ATKISSON, 1991).
76
PARTE II
5 COMPREENDENDO A SUSTENTABILIDADE
Como já dissemos em outra parte do trabalho, definir sustentabilidade não é algo simples.
Uma das razões para isto é que o termo normalmente se coloca na posição de adjetivo:
desenvolvimento sustentável, empresa sustentável, ações sustentáveis, etc. Sustentável passa a
ser, assim, uma forma de especificar algo, dando-lhe características especiais. O dicionário
Aurélio define a palavra mais ou menos nestes mesmos termos: “adj. Que se pode sustentar,
manter; suportável: peso que não é sustentável. / Defensável: opinião sustentável.”
Entretanto, outros elementos, que vão além da questão semântica dificultam ainda mais o
processo de entendimento do conceito: primeiro, ser sustentável passou a ser algo bom;
muitos querem, de alguma maneira, portar esta característica; segundo, não há uma
especificação mais precisa sobre o que é ser sustentável, ou seja, não existem normas nem
definições genericamente convergentes e operacionais para o termo.
What these calculations make clear is that technology is the key to accommodating
developing country and global growth. We need to lower the costs of mitigation. Put
differently, we need to build more economic value on top of a limited energy base.
For that we need new knowledge.
No que toca ao terceiro tipo de uso, percebe-se que é onde está a gênese do debate sobre o
tema, como se verá logo adiante. No entanto, o uso do termo sustentabilidade aqui não é
menos indiscriminado e implica também em diversos tipos de práticas contraditórias. No caso
brasileiro existem, hoje, programas como o “desenvolvimento rural sustentável”, bem como a
adoção de princípios como a “prudência”, que significa “entender que várias atividades
humanas podem ter consequências desconhecidas e potencialmente perigosas na natureza e,
diante disso, agir de maneira equilibrada para minimizar esses efeitos” (PORTAL BRASIL,
2012), mas que entram em contradição com outras práticas que visam o crescimento
econômico. Tal fato leva a práticas como o estímulo ao consumo (como por exemplo o de
carros, que apresentam altos impactos ambientais) e à construção de obras com impactos
ambientais e humanitários pouco esclarecidos, como a usina de Belo Monte (PINTO, 2011).
Sérgio Abranches (2011), ao citar diversas contradições que permeiam as políticas do governo
(que envolvem também BNDES, o Banco da Amazônia e Banco do Brasil) destaca estas
contradições:
Temos legislação ambiental bastante efetiva na letra, mas desobedecida urbi et orbi,
inclusive pelos governos. Temos um compromisso internacional de redução de gases
de efeito estufa, mas as políticas industrial, de energia e de transportes do Brasil dão
prioridade a atividades de alto carbono, logo alta emissão. Temos metas de redução
do desmatamento, mas agentes federais sistematicamente financiam empresas que
80
Rigorosamente, nenhuma destas utilizações atende ao que seria efetivamente uma prática
sustentável, pelo menos não nos moldes que este conceito vem sendo desenhado, e que será
visto logo adiante, no histórico sobre o tema. Parece que, no final das contas, a
sustentabilidade deva ser vista mais como um processo, uma ideia que direciona as ações em
um sentido específico. Porém, mesmo esta utilização não deve ser tomada de uma forma
descuidada e vinculada a um interesse mais na imagem do que no fundo das ações.
É na busca deste sentido que as próximas seções deste capítulo (que deve ser complementado
pelos demais) se direciona: como a sustentabilidade deve ser qualificada, tendo em vista a
necessidade de constituição de uma prática que conduza efetivamente a uma mudança com
relação ao tratamento das questões ambientais?
O marco inicial desta inserção pode ser considerado o início dos anos 70, quando as políticas
desenvolvimentistas predominantes desde o pós-guerra, focadas no crescimento econômico e
na multiplicação de modelos tecnocráticos, começaram a ser questionadas mais seriamente.
Este questionamento vinha, especialmente, de movimentos de contestação ambientalistas e
feministas, que nesta época se ampliaram em número e em tamanho, passando a agir cada vez
mais globalmente (SANTOS e RODRIGUÉZ, 2002). Estes movimentos adquiriram espaço
principalmente em função do questionamento dos resultados que estas políticas tradicionais
vinham então produzindo, especialmente com a geração cada vez mais ampliada de
degradação ambiental e de desigualdades de diversos tipos.
Um dos primeiros eventos relevantes deste movimento foi a criação do Clube de Roma, em
81
1968. O Clube foi fundado e ainda é composto por profissionais de diversas áreas, como
diplomatas, industriais e acadêmicos, com o propósito de refletir sobre as consequências do
consumo exacerbado dos recursos naturais, assim como a integração internacional (THE
CLUB OF ROME, 2011). Em 1972, este clube divulgou seu primeiro relatório, denominado
“Os Limites do Crescimento”. Num ataque frontal às teorias econômicas dominantes, este
relatório mostrava, como sugere o seu próprio nome, que haveria um limite efetivo para o
crescimento econômico a ser atingido em menos de um século, e que o atingimento deste
limite traria resultados catastróficos. Como saída, o texto propunha um congelamento tanto do
crescimento da população humana como do capital industrial.
Os alertas veiculados por este relatório influenciaram os debates da própria Conferência das
Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano de 1972 (que ficou mais conhecida como
Conferência de Estocolmo), outro momento importante do debate internacional sobre o tema.
Esta conferência foi precedida ainda pelo encontro de Founex (Suíça), que definiu 26
princípios com relação ao meio ambiente a serem seguidos pelo ser humano. Depois, em
1975, surgiu o relatório relatório What Now, sendo resultado de uma negociação entre as
posições extremas de defesa do meio ambiente, por um lado e das necessidades que haveria
de crescimento econômico, por outro (VAN BELLEN, 2006).
Este encontro contou com a pactuação dos oito objetivos do milênio e das 18 metas
relacionadas, a serem cumpridas até 2015. Dez anos depois, em 2002, ocorreu a conferência
de Joanesburgo, que reafirmou os objetivos e metas do milênio, gerando ainda a “Declaração
de Joanesburgo” e o “Plano de Implementação”, que propunham concretamente ações a serem
realizadas com o objetivo de preservação dos recursos naturais.
Em decorrência destas conferências, foi assinado em 1997 o protocolo de Quioto (do qual os
Estados Unidos não foram signatários) e que entrou em vigor em 2005, devendo expirar em
2012. As diversas conferências que aconteceram depois desta data, tinham como preocupação
central o fortalecimento deste mecanismo, bem como a busca de um substituto apropriado
após a sua expiração.
Por fim, vale citar a ocorrência da 15 a Seções da Conferência das Partes (COP-15), em 2009,
que foi outro nome dado para a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança
Climática (UNFCCC42), ocorrida em Copenhague/Dinamarca. Esta conferência (assim como a
posterior, a COP-16, em 2010, realizada em Cancún/México) foi cercada de expectativas
antes da sua ocorrência, pela percepção da necessidade de ações cada vez mais urgentes dada
pelas informações da comunidade científica (especialmente a partir do relatório do IPCC em
2007) e pela massiva participação dos países membros da ONU (192 em 2009 e 194 em
2010). Entretanto, os resultados de cada um destes encontros (especialmente o COP-15) foi
considerado insuficiente pela imprensa internacional43, já que não criaram compromissos
vinculantes e teve um documento assinado às pressas por apenas 20 países (COPENHAGEN
ACCORD, 2009). A COP-15 parece ter inaugurado uma nova série de rodadas de negociações
relacionadas ao meio ambiente, dentro do âmbito da ONU, dada pela urgência em se alcançar
uma solução efetiva para os problemas do aquecimento global e das mudanças climáticas,
além da construção de uma geopolítica internacional um pouco diferente, com maior
relevância dos países ditos “emergentes”.
42
United Nations Framework Convention on Climate Change
43
Como pode ser amplamente observado pela cobertura do evento dada pela mídia.
83
Na busca por parâmetros que possam definir que práticas poderiam ser classificadas como
“sustentáveis”, podemos tentar perceber como alguns debates vêm colocando a questão. Nesta
seção, veremos algumas vertentes que podem lançar alguma luz no debate e orientar a
construção de um marco que defina a sustentabilidade, para além da necessidade de um rigor
metodológico de análise.
Lester Brown (2009), em função do desgaste do termo, chega a propor que a discussão não
deva mais se dar em torno da noção da sustentabilidade, mas sim da “salvação da civilização”,
que seria uma ideia mais precisa e mobilizadora. Neste sentido, não haveriam classificações
para a ideia de sustentabilidade, mas sim uma série de ações a serem adotadas com este fim
(salvar a civilização). Como já vimos no primeiro capítulo deste trabalho, ele aponta
concisamente os diversos problemas ambientais (atuais e potenciais) enfrentados pelas
sociedades modernas, enfatizando soluções que implicam, evidentemente, em mudanças no
chamado “business as usual”. Entretanto, como o autor passa ao largo de uma discussão mais
conceitual sobre o papel do mercado e seus mecanismos de regulação para a definição de uma
sociedade melhor, é bem possível que muitos dos vícios da sociedade atual se mantivessem na
sua concepção implícita de “sociedade sustentável”44.
Para buscarmos a compreensão dos debates em torno do tema, podemos tomar como ponto de
partida a noção mais geral para a definição das práticas de sustentabilidade trazida por Sachs
(2002). Partindo da ideia de desenvolvimento, o autor aponta que a sua diversidade de
concepções poderia ser classificada dentro de um campo que variaria entre dois polos
extremos: um que o entende como crescimento econômico e outro que o nega absolutamente.
A solução apontada por Sachs é que se deveria seguir por uma espécie de “caminho do meio”,
que estaria identificado com os conceitos de ecodesenvolvimento ou desenvolvimento
sustentável. Esta abordagem se coloca de forma crítica ao crescimento selvagem (ou
perverso), que traz junto sempre altos custos sociais e ambientais, sem descartar
absolutamente, a necessidade do crescimento. Nesta noção, está presente ainda a ideia de que
o jogo do mercado livre não é compatível com a noção de desenvolvimento sustentável,
principalmente porque só consegue enxergar o curto prazo, a busca de lucro e da eficiência na
alocação de recursos.
44
De fato, o autor não problematiza o que seria esta sociedade futura, apenas aponta os problemas atuais
ligados à ação humana e um possível caminho para sair da difícil situação em que nos encontramos hoje.
84
Sachs traz esta definição provavelmente tentando conciliar os debates que confrontam a teoria
econômica neoclássica do crescimento estabelecida nos últimos anos, especialmente a partir
dos anos 70 e que ganharam mais força nos anos 90. No entanto, ela revela apenas parte da
complexidade da questão, por ignorar elementos não resolvidos no debate, bem como não
levar em conta outras possibilidades da discussão (embora não acreditemos que Sachs as
ignore ou tenha uma visão simplista da questão).
Os debates provocados pela assim chamada vertente da economia ecológica (ou bioeconomia)
tem como eixo central a crítica ao modelo de crescimento neoclássico, especialmente na sua
representação contemporânea dada por R. Solow e J. Stiglitz45. Esta crítica parte da ignorância
destes modelos acerca das leis da termodinâmica (especialmente da Segunda Lei – a Lei da
Entropia) e dos limites materiais do planeta. Georgescu-Roegen, considerado um dos “pais”
da economia ecológica (juntamente com Herman Daly) defendia que a economia era, de fato,
parte de um “sistema vivo e atuante”, e não um processo isolado da natureza (CECHIN e
VEIGA, 2010).
Cechin e Veiga (2010) informam que os modelos econômicos, desde a origem da disciplina da
economia, carregam dois pressupostos fundamentais problemáticos para a compreensão da
disciplina a partir dos limites da natureza: o primeiro é a ideia de interdependência entre os
processo produtivos, ligados à noção de equilíbrio do sistema econômico, e o segundo é a
forma que é feita a representação das trocas econômicas, ou seja, a partir de fluxos circulares
e fechados que envolvem bens e dinheiro entre os vários setores da economia. Na mesma
linha, e carregando um pouco mais na tinta, Cavalcanti e outros (1994), afirmam que há uma
errada noção de que “natureza se percebe como uma cornucópia fornecedora inexaurível de
recursos e, ao mesmo tempo, como um esgoto de infinita capacidade de absorção de dejetos”
(Idem, p. 8).
Em função disto, o modelo matemático proposto por Solow (modelo de Solow-Swan), tem
45
Robert Merton Solow é um influente economista que desenvolveu um dos principais modelos econômicos
(Solow-Swan) para o crescimento, tendo sido assessor e consultor econômico do governo norte-americano.
Foi ainda ganhador do “Prêmio Nobel de Economia”; Joseph Eugene Stiglitz também outro importante
economista, foi também assessor do governo americano e economista chefe do Banco Mundial, além de ter
também ganhando um “Prêmio Nobel”. Apesar de ser considerado um economista menos ortodoxo (é crítico
ao mercado livre), apoia suas teorias de desenvolvimento na tese do crescimento econômico.
85
A justificativa para esta ausência, segundo Solow (1997) é que o elemento não muda em nada
a resposta que o modelo propõe ao problema de quanto crescimento é possível obter no futuro
(ou no presente) dadas as condições atuais dos recursos. Solow, também, considera que os
recursos podem ser substituídos, notadamente pelo fator capital (a partir da evolução
tecnológica); que a questão do balanço de massa mais geral não entra nas considerações das
atividades econômicas por escaparem do seu escopo; considera também, implicitamente, que
o meio ambiente é um subsistema da economia e não o contrário (DALY, 1997b) e que a lei
da entropia, conquanto válida, não tem aplicação prática para as análises no âmbito em que a
economia se propõe a trabalhar.
No entanto, estes argumentos não respondem às criticas formuladas desde o início por
Georgescu-Roegen e outros economistas ecológicos. Um deles é que os fatores do modelo
não podem substituir os recursos, por serem qualitativamente diferentes. Além disso, o
aumento da produção não pode ocorrer só com base do aumento de valor agregado e seria
uma abstração considerar que estes processos poderiam prescindir de recursos materiais. Em
suma, tal ação é uma substituição que não pode se dar senão em proporções muito pequenas e
46
De fato, a redução de todos os fatores econômicos a estes dois remonta ao século XIX e é considerada uma
das bases das considerações da economia neoclássica nos seus moldes atuais. Também é tido como um
elemento chave na história da ciência econômica, em que se estabelece a exclusão do meio natural das suas
considerações (LATOUCHE, 1999).
47
Chechin e Veiga (2010) fornecem alguns exemplos deste argumento. Um deles é a suposta substituibilidade,
por exemplo, da atividade agrícola dos EUA, cuja economia seria pouco afetada pelo aquecimento global e
eventual perda na sua safra, já que este setor não representa mais do que 3% do seu PIB. Isto evidentemente
desconsidera o caráter primário deste tipo de atividade e os impactos diretos e indiretos e toda a economia (e
toda a sociedade) que a sua eliminação traria. O mesmo argumento é utilizado para dizer que a quebra da
indústria de petróleo seria pouco significativa em nível global, já que ela representa menos de 1% do PIB
global e menos de 5% dos custos industriais.
86
sob condições muito específicas (DALY, 1997a). Tal abstração, embora possa ser útil em
determinadas situações, como defende Solow (1997), se apresenta como extremamente
perigosa, já que o seu horizonte de utilização (limite de aplicação) nunca parece tão claro, e é
sempre empurrado para frente (CECHIN e VEIGA, 2010). Não considerar, desde o início, a
questão dos limites da exploração da natureza pode levar a uma depredação irreversível dos
recursos mesmo quando a ameaça não se apresente concreta. Não devemos desconsiderar que
os processos ecológicos funcionam sobre mecanismos de equilíbrios específicos e, em alguns
casos ainda não completamente conhecidos pelo ser humano.
Um outro elemento é o dado pela consideração da Segunda Lei da Termodinâmica. Esta lei
estabelece que a entropia de dado sistema isolado tende a aumentar com o tempo até atingir
um máximo. É também conhecida como lei da desordem, que postula que o universo tende a
esta desordem ou caos. Ou seja, enquanto a primeira lei estabelece que a energia se conserva
em uma transformação qualquer, esta define qual o sentido em que ela ocorre e que condições
são necessárias para que ela se dê.
Ao não incorporar este conhecimento, as teorias econômicas deixam de fora duas questões
importantes: a primeira é a explicação de como os sistemas econômicos se complexificam
(aumentam a ordem, ou seja, diminuem a entropia), o que é impossível de ocorrer em
sistemas fechados e estáveis, e a segunda, ligada à primeira é que desconsideram o fato de que
a economia é um sistema aberto interagindo continuamento com o meio que o cerca, isto é,
que ela é um subsistema do meio ambiente, limitado pelas suas condições (DALY, 2009), e
não o contrário, como estabelecem as visões neoclássicas.
Esta limitação define até onde os processos econômicos podem ir. Cavalcanti (1994) ao
considerar estes limites afirma que “tal visão de um fluxo entre dois infinitos, o que implica
que sua vazão possa crescer ilimitadamente (Lutzemberger, 1984) é incompatível com o
modelo dos ciclos de materiais do ecossistema, regidos pela bússola da homeostase e por
predicados frugais” (Idem, p.8). Ou seja, tal consideração põe em revisão a noção de
economia enquanto ciclo fechado, rompendo com a lógica mecanicista da economia herdada
do século XIX, para defini-la como um processo aberto e irreversível.
O que torna a utilização dos modelos econômicos neoclássicos um tanto mais grave é que a
abordagem convencional não considera na sua contabilidade a “descapitalização” do planeta
(perda de recursos naturais), mas ao contrário, a toma como um fator positivo na conta da
87
riqueza48 (DOWBOR, 2010). Esta ciência se concentra no curto prazo, sendo míope para estes
e diversos outros custos do modelo adotado (como a polarização entre ricos e pobres, o
desperdício generalizado de recursos e a desarticulação social).
Com isto, surge um outro problema: a utilização de recursos não-renováveis (além da geração
de resíduos) traz necessariamente consequências negativas para a qualidade de vida das
gerações futuras. Este problema também não pode ser resolvido pelos paradigmas econômicos
dominantes, que não consideram a questão temporal (GEORGESCU-ROEGEN, 1975). Todos
estas falhas e simplificações feitas nos modelos neoclássicos (e, em especial o de Solow-
Swan) levaram Georgescu-Roegen a afirmar que eles modelam o “Jardim do Éden”, ao invés
do mundo real. De qualquer forma, a utilização dos recursos não renováveis da Terra seria
algo sem sentido, já que a quantidade total de energia estocada sob esta forma é equivalente a
menos de duas semanas da energia do sol que atinge a superfície do planeta (Idem).
2. Toda esta força produtiva, além de outras adicionais deveriam ser utilizadas para a
melhoria na qualidade de vida dos países subdesenvolvidos; além disso, seria necessário
um esforço no sentido da redução na polarização entre os países;
3. A população mundial deveria ser reduzida até um ponto em que ela pudesse ser
completamente sustentada somente pela agricultura orgânica;
48
Argumento que se aproxima muito da crítica ao PIB, como veremos na seção seguinte.
88
4. Enquanto o uso direto da energia solar não for amplamente aplicada ou a utilização
da energia proveniente da fusão nuclear não for realidade, toda a perda de energia
deveria ser evitada ou fortemente regulada;
6. Teríamos que nos livrar da moda, no sentido de utilizarmos os produtos enquanto eles
cumprem o fim a que foi destinado;
7. Relacionado ao item anterior, deveriam ser desenvolvidos produtos com vida longa e
passíveis de serem reparados;
Uma questão que se coloca neste debate e que vem assumindo um aspecto um tanto central é
sobre a postura a ser assumida com relação à questão do crescimento econômico: neste caso,
existem as noções de “economia do estado-estacionário” e de “decrescimento econômico”.
Georgescu-Roegen afirma que qualquer tipo de economia humana que se utilize de recursos
naturais, num ambiente finito está fadada ao colapso, segundo o que define a Segunda Lei da
Termodinâmica. A grande questão é o tempo que isto levaria, e somente numa economia de
decrescimento é que a duração poderia ser muito longa; ao contrário, numa economia de
crescimento, o colapso se daria muito em breve (Idem, 1975). Observemos que o autor faz
esta advertência num cenário com uma população de cerca de 4 bilhões de habitantes, com
um consumo de recursos naturais per capita inferior ao de hoje e com um nível de poluição
também muito menor do que o que temos atualmente.
Daly (1974) aponta, entretanto, que uma economia de decrescimento (assim como de
crescimento) deveriam ser apenas estágios temporários entre diferentes “estados
estacionários”, a serem utilizados apenas em momentos específicos mediantes acordos
coletivos balizados por questões éticas e ambientais. Evidentemente que, utilizando dos
argumentos de Georgescu-Rogen, Daly condena a ideia de crescimento permanente das
89
Este estado, não representa, no entanto um estado estático. Embora, a proposta preveja a
existência de um “estoque” (tanto de pessoas quanto artefatos) constante, este deve ser
mantido por um fluxo econômico. Este fluxo pode mudar com o tempo, e uma maior
eficiência envolveria a tentativa de minimizá-lo para um dado estoque desejado (parte-se do
pressuposto de que os estoques é que trazem o bem-estar e não a sua crescente reposição
numa lógica de consumo estimulado). Outra forma de aumentar a eficiência seria fornecer
mais serviços para um dado nível de estoque (DALY, 1974). Contra o argumento de que esta
situação seria pouco aplicável, Daly diz que inevitavelmente, num sistema estacionário aberto
como parece ser a Terra, inevitavelmente a economia atingiria este ponto, e podemos
acrescentar, com base nos argumentos desta seção, que a partir do qual fatalmente decairia a
qualidade de vida geral dos indivíduos. A noção de que a tecnologia exponencialmente
crescente poderia substituir os processos naturais, mantendo o crescimento também
exponencial da economia (como está implícito no modelo de substituibilidade ligados às
noções neoclássicas) não daria conta de resolver este problema, pois além de ir contra o senso
comum fere também os princípios da física, como já vimos logo acima.
Tal economia, segundo Daly (1979), deveria dispor de mecanismos que dispusessem de um
controle social com o mínimo sacrifício possível da liberdade pessoal e que garantissem a
estabilidade no nível macro enquanto permitem a variabilidade no nível micro (ou seja, ao
mesmo tempo uma macroestática e uma microdinâmica). Além disso, deveria ser adotado o
princípio de manter uma folga entre a capacidade máxima da natureza em suportar a
exploração e sua efetiva utilização, de forma a permitir que os ciclos se regulem
automaticamente (já que, conforme lembra Daly, não teríamos nem capacidade nem
conhecimento para assumir um controle muito detalhado de todos os processos do planeta).
Um terceiro princípio seria partir das condições atuais (ao invés de um abstrato e impreciso
estado “mais limpo”) e o quarto seria trabalhar gradualmente para constranger as condições de
exploração.
Daly (1979) propõe ainda a existência de três instituições para regular um tal sistema
90
econômico: uma para estabilizar a população, uma segunda para estabilizar o bem-estar físico
e manter o fluxo material abaixo do limite ecológico e uma terceira para limitar o grau de
desigualdade na distribuição dos estoques constantes entre uma população constante (já que o
crescimento não mais seria a solução para esta demanda). Tais instituições seriam baseadas
nos mecanismos de definição de preço de mercado, por meio de quotas agregadas que se
relacionam com cada um dos elementos a serem controlados. Com relação aos recursos, Daly
propõe que o seu controle se dê na extração e não no final da cadeia produtiva (ao contrário
do hoje vigente mercado de carbono, por exemplo).
A relação entre estes diferentes tipos de capital é o que definiria o tipo de sustentabilidade
envolvido. Neste caso, ela seria colocada nos termos “da manutenção destes quatro tipos de
capital, enquanto são produzidos fluxos crescentes de benefícios para indivíduos e sociedade
como um todo”50 (SERAGELDIN & STEER, 1994, p. 31). Assim, a sustentabilidade que se
obteria poderia ser de quatro tipos: a) fraca, que é quando os capitais são totalmente
intercambiáveis, sendo importante apenas o capital total (soma dos quatro tipos); b) sensível,
que se dá quando há um nível mínimo para cada um dos capitais, ou seja a existência de todos
é importante; c) forte, quando é requerida a manutenção de alguns subcomponentes de capital
intactos e d) absurdamente forte, que não aceitaria a redução do que quer que seja; recursos
não renováveis, por exemplo, não poderiam ser usados de forma alguma. De certa forma, as
duas primeiras se aproximariam mais da visão de Solow e Stiglitz e as duas últimas da de
Goergescu-Roegen.
49
Um debate atualmente em voga é sobre a dimensão do desenvolvimento humano nas concepções do
desenvolvimento (crescimento econômico). Stiglitz (2010) afirma que o principal vetor para o crescimento
econômico é o aumento do conhecimento. De fato, ao fazer isto, Stiglitz critica também o modelo
neoclássico que atribui o crescimento à alocação eficiente de recursos e ao aumento do capital. Entretanto,
seu modelo não questiona o mercado em si, mas pressupõe uma regulação feita pelo Estado.
50
Tradução livre. Do original “of the maintenance of these types of capital while producing an increasing
stream of benefits to individuals and society as a whole”.
91
Uma questão que parece faltar neste debate e que se nos apresenta um tanto central é se o
mecanismo do mercado pode dar conta das mudanças em direção à sustentabilidade. Dito de
outra forma, se a regulação deste mecanismo, via implantação de uma política de não
crescimento (ou de estado-estacionário), seria suportável pela sua dinâmica e de uma maneira
que fosse adequada para a maior parte da população.
Neste sentido, e lançando uma luz sobre a questão, Dowbor (2010) propõe que a problemática
ambiental está vinculada à questão dos valores (que se referem ao sentido do que fazemos) e
da ética, o que implicaria em repensar elementos dos paradigmas econômicos que nos afastam
dos objetivos desejados. Este seria o caso do estímulo à competição, que leva à depredação do
recursos e à perda da otimização na sua utilização, especialmente quando se refere à gestão
dos bens comuns51. O autor aponta que, em muitos casos, uma forma colaborativa e
comunitária de gestão trariam melhores resultados. Usando as palavras de Daly, Dowbor
(2010) afirma que:
51
Para ilustrar isto o autor cita o exemplo da utilização da água. Segundo à teoria econômica convencional, os
bens escassos tem mais valor, sendo que a contaminação da água favoreceria, por exemplo, o aumento dos
lucros empresariais.
92
Seguindo a linha argumentativa de Daly, Van Bellen (2006) coloca que não existem indícios
de que a simples restrição ao crescimento ou a ampliação da regulação do mercado
conduziriam, necessariamente, à sustentabilidade. Neste caso, o autor tem a mesma posição,
de que considerar a sustentabilidade apenas no sentido de manter e prolongar a existência
humana, sem levar em conta a questão dos valores, pode trazer resultados catastróficos. Basta
que consideremos hipoteticamente o prolongamento das tendências atuais, assumindo que as
práticas passem a restringir a carga total sobre o planeta, levando-se em conta a sua
capacidade de regeneração. O que se veria seria uma cristalização das desigualdades já que
muitos deveriam se manter privados do consumo para que poucos usufruíssem. Somando-se a
isto, a orientação para a exploração limítrofe da capacidade ambiental, se veria reforçada a
ideia de exploração utilitária da natureza, degradando-a e deformando-a cada vez mais, o que
daria espaço para a criação de um sistema social, psicológico e culturalmente insustentável.
Para além do foco sobre a questão do crescimento, há um campo de discussão que propõe que
a questão está na validade de se utilizar estes modelos econômicos – e a sua mensuração
comumente utilizada, conhecida como Produto Interno Bruto (PIB) – para a avaliação do
desenvolvimento de determinada região. Neste caso, o debate se concentra na questão de
“qual o desenvolvimento desejável”, e como ele se definiria a partir da adoção de práticas
efetivamente sustentáveis, e provavelmente não em torno de “que nível de crescimento do
PIB é mais adequado”. Isto implicaria numa mudança substancial na forma como o
desenvolvimento é medido.
Podemos utilizar dois exemplos em que esta construção em torno da ideia do produto interno
bruto (e a ideia de desenvolvimento subjacente) é posta em cheque: a primeira delas se refere
ao movimento da ecologia profunda e a segunda ao indicador da Felicidade Interna Bruta
(FIB). O primeiro caso (cujas características serão apontadas com mais detalhes mais adiante
neste trabalho), se refere a uma mudança na postura com relação ao meio ambiente, que
93
implica em outro tipo de relacionamento do ser humano com a natureza, que passaria a estar
pautado pela consideração do seu valor intrínseco. Naess (1989), uma das referências mais
importantes sobre este tema, aponta que o crescimento econômico conforme concebido e
implementado hoje pelos estados industriais não é compatível justamente com o
“florescimento da vida na Terra como valor intrínseco” (p. 29) e com o necessário
decrescimento populacional, uma das premissas do movimento. O autor elenca nove
argumentos para ignorar52 a ideia de PIB: a) a ideia do crescimento do PIB tem valor apenas
em contextos históricos específicos, mais precisamente no do pós-guerra (II Guerra Mundial),
em que as economias precisavam voltar a “andar”; além disso, este crescimento incluiu (e
inclui) todo o tipo de atividade econômica, não apenas aquelas que aumentam a qualidade de
vida da população; b) o PIB não é uma medida de bem-estar, porque 1. envolve poucas
mercadorias que as pessoas de fato usam, 2. o peso de cada componente na medição não
corresponde ao efeito de bem estar que ele proporciona, 3. o resultado diz nada sobre a
distribuição dos bens entre as pessoas e 4. o PIB apenas reflete as atividades em andamento,
sem dar informações sobre suas consequências futuras; dando exemplos sobre estes pontos, o
autor aponta que o acréscimo de gasto de $1.000 em uma campanha antifumo que resulte em
$10.000 em redução de vendas, ou ainda a mudança de hábito de almoçar em restaurantes
para almoçar com a família, ou muitos outros exemplos que pudessem ser reputados como
mudanças para práticas “saudáveis” resultariam sempre em um “lamentável” decrescimento
do PIB, ao passo que o aumento do consumo de pílulas antidepressivas provocariam uma
aumento neste indicador; c) o PIB cresce mais rapidamente sobre tecnologias “duras” (hard
technology) e que requerem longos tempos e distâncias de transporte, de acordo com a ideia
de ampliação de lucros e de atividades econômicas; d) o crescimento favorece desejos
(superfluidades), não necessidades; de fato, a lógica de expansão indefinida do mercado e a
sua justificação está baseada na ideia de ilimitação dos desejos; e) a medida do PIB discrimina
quem trabalha em casa de forma não-remunerada; f) o crescimento do PIB apoia o consumo
irresponsável e não-solidário de recursos e a poluição global, já que o compartilhamento de
tecnologias não contribui para este incremento; g) o crescimento econômico não é relevante,
justamente porque o foco de uma política econômica está em cada entrada que forma um
único número, especialmente neste caso, que mede o tamanho agregado (contribuição
específica para o PIB, em termos de valor) de quase tudo. Assim sendo, defender o
crescimento, estabilidade ou decrescimento deste número não é importante; h) As tentativas
de salvar (reformas) o PIB são perdidas, porque é necessária uma mudança mais profunda,
que inclua os sistemas de valores envolvidos em cada caso; e i) a relação entre crescimento e
52
“Arguments for ignoring GNP in the industrial countries” (p. 111). Grifo nosso.
94
emprego nem sempre é satisfeita; se houver uma política econômica que estimule a produção
trabalho-intensiva ao invés de capital-intensiva, haveria uma parada no crescimento
econômico ou mesmo uma retração no PIB.
O segundo exemplo citado, o da Felicidade Interna Bruta (FIB), diz respeito a uma ideia
criada e inicialmente adotada pelo governo do Butão, um pequeno país com 634.982
habitantes e com regime de governo monárquico parlamentarista, situado no Himalaia, entre a
China e a Índia (NATIONAL PORTAL OF BUTHAN, 2010 53). Segundo esta referência, o
país é o único no mundo a adotar oficialmente o FIB como forma de medida de riqueza, ao
invés do PIB, sendo esta política efetivamente implantada a partir de 2008 (embora as
discussões e preparativos remontem aos anos 70). A ideia do FIB 54 é que ele seja definido a
partir de diversos itens que possam medir o bem-estar (e a felicidade mesma) efetivo da
população, sendo composto a partir de nove dimensões básicas que se desdobram, por sua
vez, em diversos indicadores (GROSS NATIONAL HAPINESS, 2010): a) bem-estar
psicológico, que inclui indicadores gerais de angústias psicológicas, das emoções
prevalecentes e da espiritualidade; b) uso do tempo, em que se inclui com especial relevância
o tempo de não-trabalho e o tempo de trabalho não remunerado (como cuidado com crianças e
atividades domésticas); c) vitalidade comunitária, que envolve questões como vitalidade da
família, segurança, reciprocidade, confiança, apoio social, sociabilidade e densidade de
parentesco; d) cultura, que envolve indicadores que buscam perceber sua diversidade, como
utilização de dialetos, existência de atividades tradicionais, festivais comunitários,
transmissão de valores; e) saúde, que compreende a avaliação do estado de saúde, os
conhecimentos apropriados pela população (adoção de práticas consideradas saudáveis) e o
acesso à saúde; f) educação, que envolve a formação adquirida, o conhecimento da literatura
folclórica e histórica e o conhecimento da língua local; g) diversidade ecológica e resiliência,
que inclui indicadores de degradação ambiental, de conhecimento sobre o meio ambiente, e de
desmatamento; h) padrão de vida, que envolve a leitura de questões como renda, condições de
moradia, segurança alimentar, e medição dos níveis de privação; i) boa governança, que inclui
a avaliação da performance do governo, da liberdade e da confiança institucional.
Por fim, há a perspectiva que percebe a sustentabilidade a partir da relação ética entre os seres
humanos e a natureza. Neste caso, é possível a construção de uma ponte entre as discussões
53
Para evitar a repetição exaustiva da longa referência, todos os dados referentes ao Butão e ao seu governo
foram extraídos da referência citada (NATIONAL PORTAL OF BUTHAN, 2010).
54
GNH – Gross National Happiness – em inglês, em similitude com GNP – Gross National Product. A
tradução para o português guarda esta similaridade, o que faz referência à intenção da substituição do
tradicional indicador de produto interno bruto (em português a mudança seria de PIB para FIB)
95
realizadas neste capítulo e que serão continuadas no capítulo seguinte. Uma exemplo que
pode ser aqui referido é Capra (2002), que parte da consideração de que nós fazemos parte de
duas comunidades, considerando em nível planetário: a raça humana e a biosfera global.
Assim, deveríamos nos comportar como os demais moradores do “oikos” ou “casa Terra” - as
plantas, os animais e os micro-organismos – que formam uma vasta rede global, denominada
pelo autor como “teia da vida”. Destas considerações surge a concepção de sustentabilidade
de Capra:
Vale ressaltar que a utilização do termo radical aqui tem a ver com a ideia de ir “à raiz” das
questões, nos temos propostos por Giddens (2001). Neste sentido, uma classificação como
esta deveria fazer vir à tona não somente as normas propostas por cada corrente ideológica,
mas também os valores que as definem. Além do entendimento de como elas percebem as
questões do crescimento econômico ou da atuação do mercado, é preciso também que se
96
compreenda sobre que bases eles se constituem, o que definirá os seus próprios limites, além
de abrir espaço para a discussão das possibilidades e o alcance de novas formas de
organização socioeconômica que aparecem no seio da nossa sociedade, como é o caso das
ecovilas. Neste sentido, a discussão do capítulo seguinte procurará compreender que tipo de
ética pode dar conta do entendimento de práticas como estas, bem como da necessidade de
redefinir alguns paradigmas sobre os quais se assentam a noção de sustentabilidade.
Além disso, algumas visões apontadas neste capítulo carecem de um olhar mais crítico com
relação ao mercado e de um sentido mais claro da busca da construção de alternativas
econômicas que o superem. De fato, a maioria delas ou trabalha isto de forma implícita, ou
este elemento é consequência diretas das suas colocações, mas elas trazem isto de maneira
pouco sistemática. Tendo isto em vista, esta questão será trabalhada com maior
aprofundamento no capítulo 7.
Por fim, uma noção a se reter sobre a sustentabilidade é que ela não representa um fenômeno
unidimensional, ou seja, somente relativo ao meio ambiente. A própria evolução do seu
debate, como vimos nos histórico, indica que uma ação sustentável deve considerar diversas
dimensões da vida social do ser humano. Hoje fala-se muito do “tripé da sustentabilidade”,
que envolve as dimensões econômica, social e ambiental, considerando-se que o fenômeno
vai efetivamente muito além da questão ambiental (SACHS, 2002).
97
Este capítulo representa o esforço de entendimento da relação do ser humano com a natureza,
buscando a compreensão de como ela se dá atualmente, quais suas limitações e que
implicações isto teria para as noções de sustentabilidade em discussão. Isto é especialmente
importante, tomando-se como perspectiva o objeto de estudo deste trabalho, que está
vinculado à tentativa de definição de uma outra relação do ser humano com o seu meio.
Hans Jonas (2006) considera que as formas tradicionais de postular a ética não dão mais conta
da natureza do comportamento humano, modificado principalmente em função do imperativo
da tecnologia presente nas sociedades modernas. Segundo Jonas (2006), cinco foram as
características do agir humano (nas sociedades pré-modernas) que definiram a ética em
98
vigência e que não se verificariam mais na atualidade: a) todo o trato com o mundo extra-
humano era eticamente neutro, pois não afetava significativamente a natureza das coisas e as
habilidades humanas (techne) eram consideradas um meio e não um fim como hoje; b) a ética
era antropocêntrica, ou seja, dizia respeito da relação do ser humano com o ser humano ou
com ele mesmo; c) na ação ética, o ser humano era considerado constante quanto a sua
essência, sem se reconfigurar pela techne; d) o bem ou o mal da ação humana tinha um
alcance limitado, tanto no tempo quanto no espaço; isto é os critérios do comportamento
correto eram relativos a ações imediatas, assim como sua consecução e a ética era a do “aqui e
agora”; e) em função disso, o saber requerido para a prática da moral era facilmente acessível
a quaisquer indivíduos, portanto todos sabiam “o que deveria ser feito”; as consequências
futuras de dado ato (fora do curto prazo) não eram postas em julgamento.
O que há de novo em termos da definição de uma nova ética é que a ação humana adquiriu
uma capacidade de intervenção no meio externo que pode romper com os equilíbrios
ecológicos estabelecidos e, no limite, provocar a destruição da sua própria espécie por meio
da destruição da natureza que supre suas necessidades. Com isso, o autor estabelece uma ética
vinculada à responsabilidade, ao introduzir uma nova forma de pensar a ética, vinculada ao
presente e ao futuro, ao contrário de outros filósofos clássicos (KUIAVA, 2006).
Jonas (2006) considera que mesmo que os valores éticos construídos num contexto não mais
prevalecente (a ética “do próximo” - relacionados à justiça, misericórdia, honradez, etc) ainda
continuem válidos, especialmente para a esfera mais próxima, cotidiana, estes fatos novos
apontam uma outra dimensão até então inédita à ética: a responsabilidade. Isto amplia os
horizontes espaço-temporais dos atos humanos que deveriam ser avaliados segundo
postulados éticos, passando-se a considerar tanto os reflexos das suas ações sobre as gerações
futuras quanto sobre o meio ambiente:
Assim, a nova ética teria seus imperativos da ação mais relacionados com a política pública,
ao contrário do imperativo kantiano55, ligado à conduta privada. Enquanto neste segundo não
55
“Aja de modo que tu também possas querer que tua máxima se torne lei geral” (JONAS, 2005, p. 47)
99
Os esforços teóricos e práticos envolveriam ainda a construção do que seria uma “ética do
futuro”. Neste caso, deveria haver uma “ciência do futuro”, que envolveria uma capacidade
de apontar cenários futuros do ser humano no mundo. Isto implicaria, por um lado na adoção
de uma postura mental correspondente, assumindo-se que o malum imaginado seria
equivalente a um malum experimentado, adotando-se uma postura adequada a um
“sentimento mobilizador” (JONAS, 2005). Por outro lado, a efetivação de tal ética deveria ter
como ponto de partida a escolha do mau prognóstico sobre o bom, e as justificativas seriam
que apostas altas envolvem riscos altos (por isto a natureza faz pequenas apostas e seleciona
dentre elas as exitosas) e que a tecnologia tem um alto poder de autonomização, ou seja,
assim que colocada em movimento assume uma dinâmica de crescimento compulsivo e
muitas vezes irreversível, dificultando a realização de correções 56. Jonas (2005) admite a
existência de dificuldades que a aplicação destas posturas teriam no ambiente prático-político,
em função de que a sua adoção certamente implicaria no abandono de políticas com impactos
de curto prazo.
6.1.1 O problema da manipulação da natureza e suas implicações para uma ética ecológica
Jonas (2005) concentra seus argumentos na definição da relação dos seres humanos com
outros seres humanos (que estão, neste caso, em um tempo futuro). Entretanto, ele não ignora
as implicações que tal definição traria para a forma com que o ser humano se relaciona com o
meio ambiente. Neste caso, o dever para com o futuro da humanidade envolveria também um
dever para com a natureza, já que a sobrevivência do segundo seria condição sine qua non
para a do primeiro. Esta sobrevivência, entretanto, não deveria ser perseguida a qualquer
custo, mas a própria natureza deveria ser preservada na sua dignidade, já que a própria
dignidade do ser humano também guardaria relação direta com a da natureza.
56
De fato, o autor apresenta e trabalha posteriormente um outro argumento para justificar a ação cautelosa: a de
que a “aniquilação de toda humanidade” nunca poderia ser objeto de aposta (já que qualquer decisão implica
em uma aposta, com menor ou maior risco), em quaisquer circunstâncias, especialmente porque não é
possível supor que a humanidade futura concordaria com tal decisão. Esta consideração leva ao postulamento
do que seria o primeiro princípio ético fundamental dentro do método proposto: “a existência ou a essência
do homem, em sua totalidade, nunca podem ser transformadas em apostas do agir” (JONAS, 2005, p. 86), no
que seria uma inversão do princípio cartesiano da dúvida.
100
O autor considera, porém, que estas duas obrigações (com o futuro da humanidade e com a
natureza) estão implícitas no que seria o “dever para com o ser humano”. Na relação com a
natureza, o ser humano teria uma espécie de “direito maior”, que se manifestaria quando da
necessidade de uma escolha entre um e outro. Tal supremacia poderia ser justificada pelo
egoísmo das espécies e pela própria condição natural que há de uma espécie se alimentar da
outra e de intervir em dados ambientes, o que representa uma contínua interferência no
equilíbrio existente.
Contudo isso, não exclui a solidariedade existente entre o ser humano e a natureza, bem como
a própria obrigação (dever) do primeiro em preservar a dignidade do segundo. Na definição
do que seria este dever, tem-se como premissa de que o ser humano não mais se adéqua ao
equilíbrio geral que é sempre mantido por limitações contidas nas leis da ecologia. Este
desajuste passou a se definir com mais evidência a partir do século XX, com a aceleração do
desenvolvimento científico longamente gestado. Com isto, o dever do ser humano com a
própria existência incluiria um outro dever: “que ela seja humana”, ou seja, que ela exista em
um ambiente satisfatório. No final das contas, este seria um dever negativo: “não ao não-ser”,
especialmente ao “não-ser” do ser humano, que designa a obrigação de não destruir as
condições que tornam a existência do ser humano digna, o que incluiria a própria natureza.
Existem outros autores que dão destaque mais central aos argumentos que definiriam uma
ética ambiental a partir da relação do ser humano com a natureza. Thielen (2001), por
exemplo, aponta que a ética poderia ser construída a partir da ideia de um “ser outro” da
natureza, passível de ser respeitado na sua dignidade, ou seja, sem expectativa de qualquer
utilidade. Esta ideia é construída, por um lado, a partir das contribuições da teoria crítica
(especialmente Adorno), que se baseia na ideia de que a natureza, enquanto objeto não-
idêntico, não é passível da opressão que o ser humano usualmente realiza. Por outro lado, o
seu argumento baseia-se na “Hipótese Gaia”57, em que a Terra seria um quasi-sujeito,
merecedora, por isso, de respeito e de um tratamento ético que se daria a um sujeito.
A contradição que surgiria nesta dupla consideração (já que a primeira trata a natureza como
objeto e a segunda como sujeito), segundo Thielen (2001), seria apenas aparente, já que
ambas perseguem o mesmo objetivo (“salvar a natureza da opressão, da danificação e da
destruição”, Idem, p.30). Além disso, a relação sujeito/objeto que surge na primeira delas tem
um sentido heterodoxo, ou seja, não indica submissão.
57
A Hipótese Gaia foi formulada, inicialmente, por James Loverlock, ao observar que os processos químicos e
biológicos da Terra tem um comportamento autopoiético, e portanto similar a dos organismos vivos. O nome
surge da mitologia grega, que considera a divindade Gaia como sendo o espírito da Terra.
101
A questão de considerar, no entanto, a natureza como sujeito (que é vista como a ideia mais
forte das duas por Thielen) coloca um problema que é o da negação da possibilidade, em tese,
do seu uso por parte do ser humano. Thielen (2001), todavia, coloca que esta situação deve ser
considerada mais como uma abstração para a contenção da dominação humana na natureza
dentro de limites o mais estreitos possíveis. Com isso, uma contradição básica e inevitável a
qual o ser humano deveria suportar estaria nesta tensão entre o explorar e o não explorar a
natureza: “uma dominação básica da natureza é conditio sine qua non da não-dominação”
(Idem, 2001, p. 32). Portanto, a realização de um tipo de intervenção fortemente regulada,
limitada e planejada da natureza evitaria os processos de degradação que podem ser hoje
testemunhados em função da ação humana.
Branco (1995) considera, por outro lado, que uma ética ecológica (ou ambiental) somente
pode existir como referência à própria sociedade humana, ou seja, a ideia de preservação
ambiental só faz sentido se vinculada à noção da sobrevivência do ser humano (deveres para
com o ser humano ao invés de para com a natureza). Isto porque a ideia de considerar os
demais seres vivos como portadores de um “estatuto jurídico” próprio traria dificuldades de
ordem prática, pela dúvida de se saber que espécies deveriam ser prioritariamente protegidas
58
Apesar de o autor utilizar a palavra religioso, o sentido que ele parece dar ao termo tem maior relação com o
atualmente mais usual “espiritual”, ou seja contendo os elementos simbólicos e místicos da experiência
individual, que neste caso envolve também sua relação com a natureza.
102
(já que o autor parte da premissa de qualquer ação humana traz impactos ambientais), o que
envolve um forte grau de subjetividade. Além disso, a necessidade de redução de populações
(com vista ao controle de desequilíbrios populacionais), bem como a existência de espécies
incompatíveis (mesmo nocivas) com (ao) ser humano levariam sempre inevitavelmente à
morte provocada.
Uma concepção como esta poderia, entretanto, abrir o precedente para a manipulação
desmedida da natureza, já que o pré-requisito fundamental é a sobrevivência do ser humano (e
do equilíbrio ecológico, aqui compreendido no sentido de manter as funções úteis ao ser
humano, embora seja perfeitamente discutível se do ponto de vista ecossistêmico isto seria
viável). O desenvolvimento tecnológico poderia suprimir partes ou processos inteiros da
natureza, desde que se mantivesse o referido pré-requisito fundamental. Mesmo que, neste
caso, o autor aponte para a abrangência que a visão do equilíbrio ecológico tenha com a
diversidade da natureza, ou seja, uma certa integridade da natureza seria considerada também
nesta visão, o esvaziamento do elemento místico-idealista na relação do ser humano com o
meio ambiente (segundo defende o autor) poderia deixar um campo aberto para o
prevalecimento da visão utilitária de exploração e subjugação da natureza.
Enquanto Jonas (2005) direciona suas preocupações para o relacionamento do ser humano
103
Naess (1989) parte ainda da consideração de que a relação com a natureza não se dá a partir
de um objetivismo, nem de um subjetivismo, mas sim de um processo fenomenológico. Por
um lado, as definições objetivas da natureza não estão somente nela, já que os referenciais a
partir dos quais ela é lida são definidas pelo ser humano, mais ou menos arbitrariamente; por
outro lado, as impressões despertadas pelo contato com a natureza não são apenas uma
experiência do ser humano, mas típicas do contato e da relação estabelecida. Isto define,
necessariamente, um valor intrínseco para a natureza, dada pela sua própria existência e
superando qualquer relação instrumental.
Conquanto a filosofia proposta por Naess tenha bases precisas – constituindo uma
ecofilosofia – ela daria ensejo à definição de uma ecosofia, ou de ecosofias, que são sistemas
individuais de visão de mundo, articulados de uma “maneira filosófica” e que conduziriam a
uma mesma base – aquela da ecologia profunda. Com isto, o próprio autor define um destes
sistemas, batizado de Ecosofia T59, e que é apresentado com detalhes no seu livro (Idem).
Para Naess (1989), portanto, a ecologia profunda seria, ao mesmo tempo, um sistema
filosófico e um movimento político, por trazer um corpo de ideias coerente e lógico que
59
Nome que faz referência à montanha Tvergastein (que cruza as pedras, na tradução para o português),
inspiradora de algumas de suas ideias; além disso, o nome remete à noção de que muitas outras ecosofias
poderiam existir (A, B, C...)
104
procura apontar para o entendimento da natureza humana e por permitir inspirações para a
ação prática. Enquanto movimento político, ela estaria assentada em oito premissas básicas
(NAESS, 1989, p. 29)60:
2) Riqueza e diversidade das formas de vida tem valor por si e contribuem para o
florescimento da vida humana e não-humana na Terra;
3) Os seres humanos não tem o direito de reduzir esta riqueza e diversidade exceto
para satisfazer necessidades vitais;
8) Aqueles que aderem aos pontos anteriores tem uma obrigação direta ou indireta
de participar do esforço de implementar as mudanças necessárias.
Por sua vez Capra (1996), a partir das ideias da ecologia profunda, articuladas com conceitos
da física, da biologia e da psicologia (como teoria dos sistemas, ecologia, equilíbrio dinâmico,
autopoiese e processos cognitivos), procura precisar o que seriam as bases científicas da
relação do ser humano com a natureza. O autor define a constituição da vida a partir de três
elementos básicos: padrão de organização, estrutura e processo vital, estreitamente
interligados de forma que a sua existência só tem sentido em conjunto. Assim, o padrão da
vida seria a autopoiese (conforme definida por Maturana e Varela), a estrutura dos sistemas
vivos seria estrutura dissipativa (conforme Prigogine) e o processo da vida como sendo a
cognição (nos moldes apontados por Gregory Bateson e mais recentemente por Maturana e
Varela).
Dado que, segundo esta concepção, a condição básica para a existência da vida é o fluxo
incessante de matéria e energia, organizadas pela autopoiese através de processos cognitivos,
estamos intimamente ligados a todas as formas de vida e ao ambiente que nos cerca. A nossa
natureza (humana) está inextricavelmente ligada ao meio que nos cerca, desde o mais
próximo até o mais distante, principalmente se partirmos da noção de que o meio ambiente (e
o planeta terra, de forma mais abrangente) se organiza também segundo um padrão
autopoiético (o que fortalece a hipótese Gaia).
Tal argumentação fornece-nos ainda outra base para compreendermos a noção de Naess de
conhecimento intuitivo da natureza. O sentimento de fazer parte do que nos cerca seria uma
ressonância da nossa própria condição de integração viva com o sistema natural. Esta situação
pode ter o poder de infundir o profundo respeito, admiração, sentimento de pertença e de
amor pela natureza como um todo, conforme já sugerido por Thielen (2001). Tais sentimentos
conduziriam, por sua vez, a uma sacralização e a uma relação de certa forma mística com a
natureza, levando à ideia de preservação, ou antes disto, de coexistência profundamente
harmonizada.
6.3 Outros Exemplos De Uma Ética Ecológica: Os Casos Dos Povos Andinos E Dos
Povos Guaranis
Uma visão muito parecida com a da ecologia profunda (e de fato muito anterior a sua
sistematização) são as desenvolvidas por diversos povos tradicionais, especialmente
indígenas, a exemplo de povos da América d Sul e dos Andes como os Guaranis, Aymaras e
os Quechuos.
Os Quechuos e Aymaras constroem um tipo de cosmovisão que está inserido dentro do que é
conhecido como “pensamento andino”. Esta cosmovisão define seus pressupostos em torno
106
das ideias do respeito à natureza e da integração do ser humano no seu contexto. Sobre elas,
Hidalgo (2006), com base em Quiroga, assim se refere:
O homem não está acima dos demais; talvez ao centro esteja a terra. O homem está
convivendo. A melhor sabedoria do homem originário é conhecer a lei da natureza e
respeitar essa lei porque através disso ele sobrevive. E é por isso que esta
cosmovisão fez que as únicas sociedades realmente com possibilidades de
sobrevivência no futuro sejam as sociedades dos indígenas. Porque nós sabemos,
surgiram grandes impérios, na Antigüidade: o império romano, grandes civilizações
que desapareceram, mas estas sociedades indígenas baseadas nesta cosmo-visão
ainda sobrevivem. É a esperança de que através desta cosmo-visão nós possamos
sobreviver no futuro. Possamos enfrentar a depredação da sociedade do livre
mercado e de consumo. (QUIROGA apud HIDALGO, 2006, p.104).
A pacha como tempo e espaço é uma categoria do pensamento andino que expressa
a dimensão global da vida e não-vida no universo. [...]. Pacha expressa que o tempo
e o espaço são infinito e finito ao mesmo tempo, onde o tempo não tem princípio
nem fim, senão é uma constante volta conhecida com o nome de kutipacha, é como
o universo, um infinito em ordem . Daí que se afirma que a pacha é cíclica e
esferoidal, como o pensamento andino. (p. 104).
Hidalgo (2006) aponta que a partir da dimensão humana do pacha61, o ser humano define-se,
ao mesmo tempo como semelhante (pela sua condição natural e cósmica) e diferente (por
causa da sua racionalidade e consciência) à natureza e ao cosmo. Este seria em si uma
totalidade, não se concebendo mundos isolados em quaisquer dos seus componentes, seja o
ser humano ou os outros seres vivos. A partir desta identidade, a ação do homem andino se
daria de forma integrada ao meio natural: Ele “procura a complementação com tudo,
identifica-se com cada um dos elementos naturais e cósmicos e suas ações respondem como
se tivessem sido aprovadas em consenso com a natureza e seu cosmos” (HIDALGO, 2006, p.
105).
Já no caso dos povos guaranis, embora não haja o mesmo nível de organização em um
extenso território, muitos de seus valores e práticas são equivalentes ao dos povos andinos.
Assim como estes, os guaranis não se consideravam donos do território ou da floresta, já que
esta última seria cuidada pelos seus espíritos guardiões. Um exemplo a respeito disso é, por
exemplo, a tradição dos índios Guarani/Kaiowá62 pedirem licença ao “dono da floresta” para
poder retirar a madeira ou entrar na mata com outros fins (COLMAN & BRAND, 2010).
A ligação do ser humano com a natureza também pode ser tida, em certos aspectos como
similar ao dos andinos. Colman e Brand (2010) colhem ainda um depoimento significativo
neste sentido, que reflete a relação com a natureza e justifica o fato de os Guaranis serem
conhecidos como os povos do mato (ka'aguy): “nós mesmos somos os do mato, nós somos o
mato. Olha, antigamente, nós éramos do mato, fazemos parte, com os bichos, com o meio
ambiente, nós somos o meio ambiente, o mato” (Idem, p.5).
O próprio cultivo agrícola é realizado de forma itinerante, ou seja, escolhia-se uma área, que
era derrubada, queimada e cultivada, e depois de um período ela era deixada para descansar,
de forma que pudesse se refazer. Estas migrações estão ligadas, de fato a duas outras questões:
em primeiro lugar ao mito da Terra Sem Males, e as constantes viagens para encontrar
parentes, especialmente vista no caso dos Mbyas, que as realizavam em um amplo território,
inclusive cruzando a fronteira entre os países do sul da América do Sul, visitas estas que estão
vinculadas a um tradicional impulso recíprocitário deste povo. Isto tem levado a constantes
migrações destas comunidades mesmo nos tempos atuais e a locais fora de reservas (ZANIN,
2006)).
62
Os Kaiowá são considerados também como pertencentes ao tronco Guarani, que ocupava a região que hoje é
o Brasil, Paraguai, Argentina e parte da Bolívia , entretanto esta denominação é utilizada para referenciar
especificamente o povo que habita a porção meridional do Estado do Mato Grosso do Sul (COLMAN &
BRAND, 2010).
108
As implicações que este debate tem para nossa discussão mais geral e definição dos critérios
de análise podem ser resumidas em dois pontos:
Assim, o capítulo passa pela discussão sobre a pluralidade de princípios econômicos e sua
respectiva crítica ao mercado, apresentada especialmente por Karl Polanyi, e pontuada, em
alguns aspectos por duas outras referências: Marcel Mauss e Guerreiro Ramos. Por fim, são
apresentadas as discussões da economia solidária, em que se procura alinhar as principais
vertentes e discussões dentro do campo.
Dentro do propósito aqui levantado, os debates que se colocam em evidência são aqueles
trazidos pela chamada sociologia e/ou antropologia econômica. Dentro destes, são relevantes
as discussões que tiveram origem com Karl Polanyi, especialmente com o seu livro de 1944
“The Great Transformation – The Political and Economics Origins of Our Time” (POLANYI,
2001). Apesar de ser apontado como um autor historicamente pouco explorado dentro campo
da sociologia econômica, cuja obra passou muitos anos na obscuridade, seu trabalho é
reconhecido pela consistente crítica que apresenta ao mercado autorregulado (BLOCK, 2003),
110
Para construir sua tese e sua leitura do surgimento e desenvolvimento do capitalismo (ou mais
precisamente, do mercado autorregulado, já que o autor utiliza pouco este termo no seu livro,
mas há uma certa indissociabilidade entre ambos), Polanyi desenvolve dois tipos de
argumentos complementares: um histórico e outro antropológico (MARTINS, 2007). No
primeiro caso, o desenvolvimento das suas ideias se baseia em dados da Inglaterra entre o
final do século XVIII e início do século XIX, focando o contexto e os fenômenos que fizeram
surgir o mercado autorregulado. No segundo, é feita também uma pesquisa histórica,
entretanto ela assume um caráter antropológico na medida em que Polanyi procura revelar
algo sobre a natureza humana e das suas relações a partir da análise de sociedades pré-
modernas. O autor percebe, neste sentido, um ponto importante desta natureza que seria a
“não modificação do homem como ser social”63, e que, neste caso, a imbricação da economia
na sociedade (ou das atividades econômicas nas relações sociais) seria um traço do
comportamento humano que aparece em toda a sua história em sociedade.
Do ponto de vista da origem do mercado autorregulado, Polanyi identifica, numa série de leis
adotadas na Inglaterra no período citado, as condições que foram sendo dadas para o seu
estabelecimento (ou pela tentativa de, já que em contrapartida, Polanyi mostra também as
constantes reações da sociedade contra este intento, no que ele chamou de movimento duplo).
O movimento que precedeu tudo foi a Revolução Industrial e os chamados enclosures, que
representavam o fechamento dos campos e a sua transformação em pastagens. Este
movimento (que envolveu também a violência física), no final das contas, acabou por
transformar boa parte dos campos em propriedade de mercadores e de ricos agricultores
(POLANYI, 2001).
A criação das fábricas tinha que ser acompanhada por toda uma reorganização social, de
forma que pudessem ser garantidos os requisitos para o seu funcionamento: era preciso a
existência ampla de um mercado autorregulado, de forma que cada fábrica tivesse de quem
comprar e para quem vender, de forma regular; era necessário que a obtenção do lucro fosse
garantida, já que os novos equipamentos, mais complexos, despendiam um grande
investimento para serem adquiridos. A partir daí, toda a vida em sociedade não estaria mais
ligada à subsistência, mas seria necessário que todos dependessem da troca monetária para
63
“the changelessness of man as a social being” (POLANYI, 2001, p. 48)
111
The transformation to this system from the earlier economy is so complete that it
resembles more the metamorphosis of the caterpillar than any alteration that can be
expressed in terms of continuous growth and development. Contrast, for example,
the merchant-producer's selling activities with his buying activities; his sales
concern only artifacts; whether he succeeds or not in finding purchasers, the fabric
of society need not be affected. But what he fowys is raw materials and labor—
nature and man. Machine production in a commercial society involves, in effect, no
less a transformation than that of the natural and human substance of society into
commodities. The conclusion, though weird, is inevitable; nothing less will serve the
purpose: obviously, the dislocation caused by such devices must disjoint man's
relationships and threaten his natural habitat with annihilation. (POLANYI, 2001, p.
44).
Com os problemas apontados pelas mudanças socioeconômicas em curso, surgiram leis que
buscavam frear em parte seu movimento, na tentativa de conter a dissolução social
generalizada. Destaca-se, neste caso, a Speenhamland, introduzida em 1795, que apesar do
seu caráter protecionista, que ajudou a retardar a implantação do mercado de trabalho livre,
teria promovido sérios danos morais às diversas classes trabalhadores do país. Esta lei criava
um sistema de abonos, que na verdade eram adiantamentos tabelados de salários, dada aos
pobres pelo governo, garantindo um ganho mínimo às famílias. Nas palavras de Polanyi
(2001, p.82), a lei “introduziu não menos do que uma inovação social e econômica que o
“direito de viver”, e até ser abolida, em 1834, ela efetivamente evitou o estabelecimento de
um mercado de trabalho competitivo”64. Entretanto, a lei acabava subsidiando os fazendeiros
empregadores, já que o governo complementava os baixos salários pagos, e só o fazia se o
trabalhador estivesse empregado ou provasse a não existência de trabalho. Além disso, esta lei
reforçava um sistema paternalista herdado dos Stuarts e Tudors: acordos eram estabelecidos
com os empregados em troca de favores, já que o rendimento não dependia do trabalho, mas
do “emprego”, muitas vezes de fachada, fornecido por estes administradores (POLANYI,
2001).
No final das contas, do ponto de vista da implantação de um sistema capitalista, existia uma
contradição intrínseca: enquanto os demais fatores continuavam sob o mesmo status de
mercadoria, visto que a terra continuava sendo comercializada, o trabalho não estava
submetido a estas regras livres do mercado. Mesmo que fosse possível expulsar o trabalhador
da terra, com a sua mercantilização, através da speenhamland ele ficava de certa forma
assegurado contra o jogo do mercado de trabalho. Os resultados deste processo
demonstravam que o mercado autorregulado não podia prescindir do mercado de trabalho.
64
Tradução livre. Do original: “it introduced no less a social and economic innovation than the "right to live,"
and until abolished in 1834, it effectively prevented the establishment of a competitive labor market. ”
112
Assim, o Poor Law Reform Act, instituído em 1834, foi um marco decisivo no
estabelecimento deste mercado de forma livre na Inglaterra, por derrubar todas estas práticas
anteriormente estabelecidas. Um dos problemas deste processo abrupto foi que, devido aos
vícios da Speehamland, o valor do trabalho no mercado estava completamente destruído, e a
retirada do subsídio jogou uma massa de trabalhadores e suas respectivas famílias na
indigência. Este é considerado por Polanyi um dos atos de reforma social mais rudes da
história moderna, realizado sob a alegação de que a assistência criava vícios como a preguiça,
e que era mesmo necessário certos níveis de tortura psicológica sobre os pobres para que eles
produzissem adequadamente. Assim, o que se deu depois da criação da Poor Law Reform Act
inaugurou, na sua visão, problemas ainda mais profundos do que a pressão dos burocratas
sobre esta classe: a própria opressão do mercado livre. A continuidade deste pesadelo se deu
até aproximadamente 1870, que foi a terceira fase do processo de instituição do mercado de
trabalho na Inglaterra, quando os trabalhadores puderam se organizar coletivamente para
revindicar seus direitos (POLANYI, 2001).
O mercado livre então criado (no século XIX) incluía o trabalho e a terra como mercadorias e
adotava o padrão ouro como referência dos sistemas monetários, desbloqueando o processo de
criação de preços de maneira abstrata, que passaria a ser definido na esfera (internacional) de
um comércio livre. Com isto, foram criadas o que Polanyi chamou de mercadorias fictícias.
Dentro da reorganização social demandada pela ideia de mercado autorregulado, tudo deveria
se tornar mercadoria, ou seja, ser comercializado em um mercado com base numa regulação
automática dos preços, oferta e demanda. A transformação destes elementos foi vital para a
consolidação do sistema socioeconômico que se desenvolvia. Entretanto, Polanyi via uma
problema na essência desta definição, já que estes três elementos (trabalho, terra e dinheiro)
não têm a mesma natureza que as mercadorias “convencionais” transacionadas na lógica de
mercado:
The crucial point is this: labor, land, and money are essential elements of industry;
they also must be organized in markets; in fact, these markets form an absolutely
vital part of the economic system. But labor, land, and money are obviously not
commodities; the postulate that anything that is bought and sold must have been
produced for sale is emphatically untrue in regard to them. In other words, according
to the empirical definition of a commodity they are not commodities. Labor is only
another name for a human activity which goes with life itself, which in its turn is not
produced for sale but for entirely different reasons, nor can that activity be detached
from the rest of life, be stored or mobilized; land is only another name for nature,
which is not produced by man; actual money, finally, is merely a token of
purchasing power which, as a rule, is not produced at all, but comes into being
through the mechanism of banking or state finance. None of them is produced for
sale. The commodity description of labor, land, and money is entirely fictitious.
(POLANYI, 2001, p. 77).
113
Polanyi via que esta forma de organizar estes elementos tenderiam a provocar o
desmoronamento da sociedade. Já que o portador do trabalho é um ser humano ao “dispor da
força de trabalho de um homem, o sistema disporia também, incidentalmente, da entidade
física, psicológica e moral do 'homem' ligado a essa etiqueta ” 65 (POLANYI, 2001, p. 76),
levando-o a sucumbir ao abandono social; a própria natureza tenderia a ser explorada até o
limite, aniquilando-se sua capacidade produtiva. Nem as empresas suportariam as injunções
destruidoras do mercado, provocadas pelo excesso ou escassez que o manejo do dinheiro na
lógica do mercado livre traria.
Na outra parte do seu trabalho, em que Polanyi realiza o esforço de reconceituar a economia,
o foco são as sociedades antigas. Neste caso, Polanyi defende uma outra definição de
economia, a substantiva. Ela se coloca em contraponto ao que seria uma definição formalista,
que estaria mais ligada aos conceitos neoclássicos da economia, baseados na alocação de
recursos raros para fins alternativos, e seria aplicável apenas ao contexto moderno, ou seja, de
mercado. Já a definição substantiva percebe a economia enquanto processo de interação entre
o ser humano e o seu ambiente, com o propósito de gerar uma oferta de meios materiais para
satisfazer suas necessidades, e é considerada como tendo um caráter mais universal
(LAVILLE, 2003; MACHADO, 2009; POLANYI, 2001).
Esta definição substantiva está ligada a uma forma de análise, nomeadamente a institucional.
A análise institucional se dá pela observação de padrões que emergem dos arranjos sociais
concretos. Assim, com base nesta forma de análise, o registro etnográfico mostra que a
economia tem sido organizada nas sociedades humanas apenas por um conjunto reduzido de
padrões (MACHADO, 2009).
65
Do original: “In disposing of a man's labor power the system would, incidentally, dispose of the physical,
psychological, and moral entity "man" attached to that tag.”
114
haver uma centralidade nas relações, ao contrário da reciprocidade, em que o que deve
predominar é a simetria. Além disso, este formato predomina nas chamadas sociedades
arcaicas, que podem apresentar também certo grau de troca mercantil ou de reciprocidade. O
terceiro tipo de relação econômica é a troca mercantil, que se dá mediante um movimento
bidirecional entre dois participantes , orientada pelo ganho individual. Ela apenas ocorre
quando há um apoio institucional que permita a formação de preços. (POLANYI, 2001).
Normalmente, na troca mercantil, ao contrário dos outros sistemas, que são formadores do
laço social, a relação se encerra com a própria troca (GOUDBOUT, 1999, CAIULLÉ, 2001).
Em comparação com o modelo de mercado, as duas primeiras instituições não tinham a
motivação pelo ganho individual (lucro), pelo trabalho remunerado e pelo princípio do
“mínimo esforço”, e principalmente, não tinham uma instituição separada e distinta baseada
em motivações exclusivamente econômicas (POLANYI, 2001, p. 49).
Ressalta-se que a predominância de determinado tipo de princípio econômico está mais ligado
à presença de arranjos institucionais do que a práticas individuais:
Vale ressaltar que os diferentes princípios não representam estágios evolutivos de uma dada
sociedade, nem comportam uma classificação numa escala temporal. Todas elas aparecem em
momentos distintos da humanidade e das sociedades. Mesmo os mercados já assumiram
115
algum papel em momentos da história. A novidade de hoje é que ele nunca havia assumido
um espaço tão preponderante e tão abrangente.
Neste sentido, Polanyi reforça que a organização econômica das sociedades antigas não
incluíam necessariamente, nem predominantemente a instituição do mercado. Quando ele
existia, normalmente ali se dispunha apenas os excedentes da produção que não eram trocados
segundo os outros princípios econômicos. De fato, a presença ou a ausência de mercado não
implicava em diferença significativa no modelo econômico de uma sociedade primitiva, o que
vai contra o argumento liberal de que a invenção da moeda levou ao inevitável surgimento e
expansão do mercado, da divisão do trabalho e da realização da propensão natural para
negociar (POLANY, 2001, p. 61).
A instituição de um mercado em escala nacional somente foi possível com a intervenção dos
Estados nacionais. Este processo foi consolidado com a tomada do poder político pela classe
burguesa, que ao remover as barreiras culturais das tradições e costumes locais, conseguiu
instituir o mercado livre. A sua criação não foi resultado de um processo natural, que envolvia
a expansão de mercados locais. Ao contrário, ela se deu a partir da criação artificial de um
sistema econômico sobreposto à sociedade, movimento que foi fortalecido (e eventualmente
viabilizado) por outro fenômeno artificial: a produção em fábricas.
Assim, para Polanyi, o mercado autorregulado seria uma inovação da modernidade. A esta
inovação está ligado, além da ideia da intervenção externa e orientada para sua constituição, o
fato de ela não cumprir uma função específica na constituição da sociedade, como os outros
princípios econômicos (reciprocidade, redistribuição e domesticidade). Além disso, nenhuma
forma de organização social anterior havia criado um sistema econômico distinto, ao contrário
do que se deu com o advento do mercado capitalista.
Todos esses fatores, que criaram atividades estranhas às relações sociais então existentes, e
que geraram diversas consequências negativas, como o rompimento das relações sociais, a
perda da autoestima, a perda da identidade do ser humano com a terra (principalmente os
trabalhadores do campo), além de todos os problemas laborais relacionados com a indústria,
116
acabaram provocando uma resposta da sociedade, assumindo o que Polanyi designa como
“duplo-movimento”. Ele seria caracterizado por um jogo de forças em que se enfrentam, por
um lado, a intenção de criar o mercado livre e por outro, a defesa da sociedade, no sentido de
proteger o próprio ser humano e a natureza:
Let us return to what we have called the double movement. It can be personified as
the action of two organizing principles in society, each of them setting itself specific
institutional aims, having the support of definite social forces and using its own
distinctive methods. The one was the principle of economic liberalism, aiming at the
establishment of a self-regulating market, relying on the support of the trading
classes, and using largely laissez-faire and free trade as its methods; the other was
the principle of social protection aiming at the conservation of man and nature as
well as productive organization, relying on the varying support of those most
immediately affected by the deleterious action of the market —primarily, but not
exclusively, the working and the landed classes — and using protective legislation,
restrictive associations, and other instruments of intervention as its methods.
(POLANYI, 2001, p. 139).
Este contra-movimento, constante e até certo ponto efetivo, é o que permite a manutenção das
bases da sociedade. Polanyi chega a prever que o mercado autorregulado nunca poderia se
estabelecer de fato, pois, no limite, ele representaria o total desencastramento da economia da
sociedade (precisamente pelo fato de as novas mercadorias que ele cria – trabalho, terra e
moeda – serem fictícias, segundo Block (2003)), o que implicaria inclusive na própria
degradação física do ser humano e do meio ambiente. Polanyi mostra ainda que em apenas
alguns momentos pontuais ele se deu próximo a sua forma “ideal”, não sem consequências
desastrosas e sem retornar para algum controle em seguida. Block (2003) defende que estes
controles agiriam como uma espécie de “reencastramento” da economia na sociedade, o que
acaba sendo, paradoxalmente, uma condição necessária para a própria existência do modelo
de mercado.
Mauss (2001), por outro lado, parece estar preocupado mais com as questões sociológicas do
que as socioeconômicas, se tomarmos seu trabalho de forma comparada a Polanyi 66. No
entanto, como este último, desenvolve a noção de que as sociedade ancestrais tinham sistemas
econômicos baseados numa lógica muito diversa daquela do mercado. Estes sistemas
poderiam ser generalizados a partir da ideia da reciprocidade construída a partir do sistema da
dádiva, que compõe o circuito dar-receber-retribuir. As diferenças de um sistema da dádiva
para as trocas mercantis residiriam, em primeiro lugar, no fato de que o “dar” constituir-se-ia
em uma obrigação, sob pena de provocar uma guerra (SABOURIN, 2008). Estas obrigações
criariam, assim, um laço espiritual entre os atores da dádiva, o que os forçaria à retribuição e à
criação do circuito referido, que nunca se fecharia. Em segundo lugar, não seriam os
indivíduos, mas sim as coletividades que manteriam estas obrigações recíprocas, num
processo em que se misturariam “almas e coisas”, riquezas materiais e espirituais, ao contrário
das sociedades modernas, em que estas questões estão muito bem separadas (SABOURIN,
2008). Além disso, as trocas não seriam apenas entre coisas “úteis” economicamente, mas
66
Embora possa se considerar uma indissociabilidade entre ambas as questões, parece evidente que as
preocupações com Mauss se direcionam mais ao entendimento do processo da troca em si (dádiva), ao
contrário de Polanyi, que foca suas atenções numa crítica ao mercado auto-regulado e procura desmitificar
algumas de suas “verdades” econômicas a partir de dados antropológicos e sociológicos.
118
entre diversos elementos simbólicos da relação, em que o mercado seria apenas uma parte
circunscrita (MAUSS, 2001)67.
Com isto, enquanto Polanyi se refere a existência de três outros princípios econômicos
anteriores ao mercado autorregulado (reciprocidade, redistribuição e familiaridade), Laville
(2003) aponta que em Marcel Mauss é possível perceber que as sociedades modernas não se
sustentam com base em uma só organização econômica, ou em um sistema unificado. Ao
contrário, existiria um conjunto de formas de produção e repartição coexistentes, de forma
que só faria sentido qualificar a sociedade atual como predominantemente capitalista,
composta por “um sistema econômico (que) se compõe de mecanismos institucionais
contraditórios, irredutíveis uns aos outros” (MAUSS apud LAVILLE, 2003, p. 240)68, em que
o capitalismo seria apenas umas das formas (mesmo que a mais relevante) presentes.
A partir disso, Mauss chega a sugerir, com o fim de se reduzir as desigualdades estabelecidas
pela troca mercantil nas sociedades modernas, que se estimulasse mais as formas de trocas
tipicamente ligadas à dádiva, não com o propósito de substituir imediatamente o capitalismo,
porém na intenção de que as primeiras se sobrepusessem gradualmente às segundas (LANNA,
2000), definindo um novo sistema econômico.
Por fim, poderíamos destacar aqui também brevemente a contribuição de Guerreiro Ramos
(1989). O autor não segue o mesmo caminho apontado pelos dois anteriores, no sentido de
definir uma economia plural, mas constrói a noção de multiplicidade de sistemas sociais, cuja
análise se conformaria segundo a ideia do “paradigma paraeconômico” (RAMOS, 1989).
Além disso, o autor está alinhado no que diz respeito à crítica do mercado autorregulado,
trazendo, evidentemente, outra ordem de argumentos, já que ele tem como ponto de partida as
organizações e a constituição de uma nova teoria das organizações.
Guerreiro Ramos se filia a um tipo de abordagem sociológica que se propõe crítica aos
padrões desta ciência social contemporânea. Ele combate a ideia de uma educação e uma
ciência baseada nos “pressupostos de uma sociedade de mercado”, defendendo que
67
De plus, ce qu'ils échangent, ce n'est pas exclusivement des biens et des richesses, des meubles et des
immeubles, des choses utiles économiquement. Ce sont avant tout des politesses, des festins, des rites, des
services militaires, des femmes, des enfants, des danses, des fêtes, des foires dont le marché n'est qu'un des
moments et où la circulation des richesses n'est qu'un des termes d'un contrat beaucoup plus général et
beaucoup plus permanent. (MAUSS, 2001, p. 9).
68
Tradução livre. Do original “un système économique se compose de mécanismes institutionnels
contradictoires, irréductibles les uns aux autres”.
119
Sua crítica à teoria social se baseia na crítica à razão nela implícita, propondo um alargamento
do conceito de forma que possa ser incluída a noção de racionalidade substantiva, já presente
em alguns autores, como Max Weber e nas noção de economia substantiva de Polanyi.
Propõe, com isto, a restauração de uma “teoria substantiva da vida humana associada”. Esta
teoria (que não se confunde com o conceito de economia substantiva de Polanyi), subverte
algumas noções ligadas a um conceito mais formalista69.
O autor estende ainda sua crítica à sociedade centrada no mercado ao que ele chama de
“síndrome psicológica”. Esta síndrome, que é também denominada no texto de
“comportamentalista” teria como traços principais a fluidez da individualidade, o
perspectivismo, o formalismo e o operacionalismo. Com esta crítica o autor quer combater a
visão desenvolvida pelas teorias das organizações correntes do ser humano como sendo
essencialmente utilitário. Ele defende que este tipo de pensamento é apenas uma transferência
conceitual, já que este comportamento é característico de determinadas organizações, e que é
assimilado, na maioria das vezes de forma inconsciente e inadvertida, por indivíduos nela
inseridos.
Guerreiro Ramos parte, então para a definição do que seria um sistema social mais apropriado
para a expressão de uma teoria substantiva. Assim, o seu conceito de paraeconomia pode ser
compreendido, a partir de três argumentos articulados (FRANÇA FILHO, 2010): o primeiro
deles seria uma teoria da delimitação dos sistemas sociais, em que a sociedade seria composta
de diversos enclaves, e o mercado seria apenas um deles; estes enclaves teriam como função
permitir aos indivíduos o desenvolvimento de atividades substantivas (o que o mercado, em si
não permitiria). Vale ressaltar, que com base nos pressupostos levantados acima, Guerreiro
Ramos aponta que, mesmo no espaço social que, neste esquema, seria ocupado pelo mercado,
“só incidentalmente o indivíduo é um maximizador da utilidade e seu esforço básico é no
sentido da ordenação de sua existência de acordo com as próprias necessidades de atualização
pessoal” (RAMOS, 1989, p.141), o que é condizente com a sua percepção da natureza
humana.
Com isso, Guerreiro Ramos define seis enclaves, enquadrados segundo duas dimensões
69
Ramos (1989) aponta cinco traços gerais que marcam esta diferenciação, que são: a) os critérios para
ordenação das associações humanas, b) a condição fundamental da ordem social, c) a relação entre valor e
fatos, d) a apreensão do sentido da história e e) a relação epistemológica com as ciências naturais.
120
Prescrição
Economia Isolado
Orientação comunitária
Orientação Individual
Fenonomia
Isonomia
Motim Anomia
Ausência de normas
Figura 25: Enclaves do paradigma paraeconômico. Adaptado de Ramos (1989)
O segundo argumento de Guerreiro Ramos diz respeito aos requisitos adequados para cada
um dos sistemas sociais apresentados. Refere-se às dimensões e às respectivas características
que definiriam cada um destes sistemas. A primeira delas seria a tecnologia, em que o autor
faz referência a uma “adequação aos objetivos do sistema”. Entretanto, este aspecto não é
121
muito trabalhado no seu texto, e o autor assume que este é um assunto resolvido, quando há
um relevante debate em curso sobre o papel da tecnologia na determinação de sistemas
sociais; fala-se, por exemplo, em tecnologia social como o formato mais adequado para as
organizações de economia solidária (DAGNINO, 2004), que por exemplo, o autor
provavelmente enquadraria no campo da isonomia. Uma segunda dimensão seria o tamanho,
em que deve ser levado em conta, de que a intensidade das relações diretas tende a diminuir
com o seu aumento, e que cada sistema tem um limite mínimo e máximo adequado para sua
eficiência. A terceira é a cognição, já que a forma do conhecimento também variaria conforme
o sistema social, ou seja, eles podem ser classificados de acordo com seus interesses
dominantes, segundo informa Guerreiro Ramos com base em Habermas. O espaço, é a quarta
delas, e deveria ser planejado conforme as necessidades dos ambientes sociais. Neste caso, o
trabalho nesta dimensão teria como missão conter a predominância do mercado, que moldou
os cenários das cidades contemporâneas e que é intrinsecamente “sócio-afastador”. Por fim,
tem-se a dimensão tempo, que está conectada com a dimensão espaço. Considera-se que nem
sempre ele é linear ou serial em outras esferas sociais que não o mercado, podendo ser
convivial (baseado nas relações e típico da isonomia), de salto (baseado na criatividade e
típico da fenonomia) ou errante (de direção inconsciente, típicos de anomias).
Um dos artifícios criados para a contenção do aumento da emissão de gases do efeito estufa
(cujo mais importante é o CO2) são os mecanismos de desenvolvimento limpo (MDL), cujo
principal operador é o chamado “mercado de carbono” (VENTURA, 2008). Tal mecanismo,
ao estipular uma lógica de mercado, cria a possibilidade de desresponsabilização direta
daqueles países poluentes, que podem “comprar” cotas de poluição em outros lugares (no
formato de redução dos gases do efeito estufa). Além disso, ao ser organizado segundo um
123
Uma outra consequência, ainda mais cruel do sistema é que os créditos são estabelecidos com
base em projetos que sequestram carbono da atmosfera. Por ser um mecanismo de mercado,
este sequestro é definido por critérios de custo, e uma floresta de eucaliptos ou pinheiros, por
exemplo, pode ser plantada para este fim, desde que seja a solução economicamente mais
viável70. O que aparece aqui é um conflito entre as necessidades econômicas e a relevância de
determinado projeto do ponto de vista sistêmico com relação ao meio ambiente. As ações são
realizadas unicamente com um fim instrumental, de obtenção do lucro e de um serviço
específico para o ser humano, sem considerar as especificidades do que seria uma restauração
ecológica mais adequada, mais focada nos resultados de longo prazo e dificilmente
mensuráveis economicamente. A grande questão que fica é: seria o mercado capaz de definir
quais processos devem ser adotados e qual a prioridade de investimento, considerando as
necessidades ambientais? A resposta mais imediata é que, evidentemente, existem diversos
elementos “antieconômicos” do pondo de vista do mercado que devem ser levados a cabo se
se quer uma solução efetiva para o problema ambiental.
De fato, esta injunção está presente de forma geral nas práticas de sustentabilidade. Conforme
se pode depreender da análise feita no início do Capítulo 5, as práticas de desenvolvimento
70
Ver por exemplo o caso do Grupo Plantar (www.plantar.com.br)
124
A economia solidária pode ser tida como um conceito privilegiado para se pensar a ideia de
uma outra economia e para a leitura de práticas econômicas alternativas. Isto pode ser
percebido no trecho referido no início do capítulo 8, mas se fundamenta também em outras
questões. Percebe-se, ao se tomar os verbetes do Dicionário Internacional da Outra
Economia71 (HESPANHA et alli, 2009), que uma parte dele se refere a discussões que
poderiam ser consideradas mais gerais (inclusive com um escopo mais abrangente), que
teriam mais o papel de ajudar na leitura do contexto ou na construção do embasamento teórico
do debate, como altermundialização, antiutilitarismo, associativismo, cidadania, emancipação
social, dádiva, solidariedade, capital social, políticas públicas, entre outros. Outra parte tem
uma discussão que poderia ser considerada derivada ou abarcada pela economia solidária,
como por exemplo, autogestão, cadeias solidárias, comércio justo, bancos comunitários,
economia do trabalho, incubação, microcrédito, redes de colaboração solidária. Por fim,
outros, se inseririam na categoria de práticas que se dão dentro de um outro tipo de contexto,
ou seja, de organizações imersas nas práticas capitalistas, como conselhos de empresa e
responsabilidade social empresarial, que não interessam a este trabalho.
une face réciprocitaire qui désigne le lien social volontaire entre citoyens libres et
égaux; une face redistributive qui pointe les normes et les prestations de l’État pour
renforcer la cohésion sociale et corriger les inégalités. (Idem, p. 241).
Dando ênfase à questão ecológica, Dagnino e Dagnino (2007) enfatizam uma abordagem que
integraria os conceitos de economia, ecologia e solidariedade: a eco-solidariedade. Isto
implica no dever de a solidariedade, segundo a visão da economia solidária, ter de se estender
para o próprio planeta como um todo. No entanto, os autores apontam que as práticas ligadas
a este fenômeno ainda não tem contemplado suficientemente as preocupações associadas
“com o planejamento da casa ou dos recursos do planeta”, por ela estar ainda muito
“institucionalizada e impregnada pelo pragmatismo” (DAGNINO e DAGNINO, 2007).
Exemplos destes enfoques são o aporte do paradigma antropológico da dádiva por França
Filho (2004), que acaba seguindo a linha de discussão dada pela primeira parte deste capítulo.
A definição mais humanista de Arruda (2000, 2004), entendendo a economia solidária dentro
de um movimento de amorização e de feminização da economia; o reavivamento das
discussões sobre um “novo socialismo” a partir de formas organizativas inovadoras dos
trabalhadores, em termos de produção e de comercialização (SINGER 1999; GAIGER 2000,
2004); e a “economia do trabalho” de Coraggio (2003). Podemos citar ainda o enfoque que
Vieira (2005) chama de racionalista, da abordagem de Mance (2001), que procura definir a
economia solidária (na verdade ele trabalha com o conceito de redes de colaboração solidária)
a partir do seu potencial organizativo, com base nas noções de emergência e de autopoiese.
Para uma visão conceitual mais abrangente, podemos tomar a definição que Costa (2003) traz
sobre a questão que, embora não seja exaustiva, pode representar uma caracterização possível
do que há em comum envolvendo o conceito de economia solidária:
De par com esta diversidade de enfoques, existe uma ampla gama de experiências que são
enquadradas segundo a denominação de economia solidária. Em função destes dois elementos
(diversidade de práticas e de enfoques teóricos), propomos um agrupamento destes enfoques
da economia solidária a partir de três dimensões: ela seria ao mesmo tempo uma economia
que privilegia os laços sociais, uma economia plural e uma prática sociopolítica.
Arruda (2004) afirma que um fator ontológico para o surgimento da economia solidária é “o
profundo desejo de felicidade, que não pode existir sem autorrespeito, respeito mútuo e laços
de amor entre as pessoas” (p. 1). Os conceitos em que ele se inspira são aqueles de Theilard
127
O amor pode ser entendido aí tanto como um sentimento que parte de um processo
autorreferente do indivíduo (ou seja, pode ser desenvolvido de forma individual), como
quanto um parâmetro para a atuação numa dinâmica relacional. Isto se torna mais evidente
quando se percebe que para Arruda, o direcionamento da construção da economia solidária
aponta para o desenvolvimento individual ao mesmo tempo em que se dá o coletivo.
O sentido de completude da ação humana pode ser dado ainda a partir do entendimento do
paradigma antropológico da dádiva (MAUSS, 2001; GOUDBOUT, 1999; CAILLÉ, 2001),
que vincula o impulso da troca ao da própria formação do laço social. O circuito do dar,
receber e retribuir, ao ser alimentado é o que reforçaria este laço social. Isto se daria numa
articulação entre interesse e desinteresse, obrigação e liberdade, pares indissociáveis que não
permitem a redução da ação humana como exclusivamente movida pelo interesse e pelo
cálculo.
A economia solidária estaria baseada nestes elementos das trocas tradicionais, que envolve o
circuito da dádiva. Observa-se, por exemplo, que as relações comunitárias não se dissociam
do processo de troca econômica realizada por um empreendimento solidário. Em função
disso, França Filho (2006b) observa que “o processo produtivo não tem condições de existir
independente do próprio tecido da vida social entre as pessoas” (p. 73), asserção polanyiana
que se reflete nas práticas da economia solidária.
A noção de economia plural é ainda reforçada por dois outros fatores: a construção conjunta
da oferta e da demanda (ANDION, 2001; FRANÇA FILHO e LAVILLE, 2004; MANCE
2001) e a constituição de redes (ARRUDA, 2000, FRANÇA FILHO e LAVILLE, 2004;
MANCE 2001). Ambas as práticas surgem com o objetivo de articular as relações entre
empreendimentos solidários, e entre estes e consumidores, criando uma demanda efetiva que
asseguraria a sua viabilidade e rompendo com a lógica do mercado autorregulado (ou seja,
que equilibra abstratamente a oferta e a procura). Com estas práticas, o que se assiste é a um
desenvolvimento do caráter democrático das experiências, num processo de articulação entre
atores locais. Elas ainda teriam como papel o fomento a práticas integradas, que se articulam
para o desenvolvimento local. As redes de economia solidária podem atingir grande
amplitude, chegando a níveis globais, como é o caso do chamado Fair Trade (ou Comércio
Justo).
A leitura do segundo aspecto pode ser entendida especialmente a partir do entendimento das
práticas da economia solidária segundo uma visão mais inspirada na tradição marxista,
conforme o faz, por exemplo, Paul Singer. Neste caso, a leitura é mais próxima da tradicional
lutas de classes, que opõe o trabalhador ao capital, identificando na economia solidária um
novo modo de produção:
Vale ressaltar que uma lógica de análise não exclui a outra, já que temos no segundo caso,
uma leitura especialmente de dinâmicas associadas aos empreendimentos, no que toca às
questões de gestão e propriedade dos meios de produção, ao passo que no primeiro temos uma
leitura da articulação comunitária, mais externa às organizações. Esta leitura não deve reduzir,
porém, a perspectiva da segunda lógica a uma simples mudança confinada às organizações,
pois a efetivação destas mudanças implicariam na articulação destas organizações em diversos
níveis (fóruns e redes), e nas suas próprias comunidades.
130
Figura 26: Desenho do campo da economia popular e solidária no Brasil. Fonte França Filho (2006b)
131
A Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES), ligada ao governo federal por meio
do Ministério do Trabalho e Emprego, também possui sua própria definição para os EESs,
que podemos considerar como relevante por ser adotada na definição de políticas para o setor.
Para esta secretaria um empreendimento deste tipo deve ter cinco características principais
(SENAES, 2011): a) são grupos coletivos e suprafamiliares, com trabalhos urbanos ou rurais,
em que está presente a prática da autogestão; b) são permanentes (não eventuais); c)
independem de registro legal, ou seja, prevalece a existência real (e não formal) da
organização; d) as atividades econômicas devem ser permanentes e centrais no
empreendimento, podendo ser de diversos tipos (produção de bens, prestação de serviços,
fundos de crédito, de comercialização ou de consumo solidário) e e) podem ser singulares ou
complexas, ou seja, podem ter diferentes graus ou níveis (podem ser centrais de associação ou
de cooperativas, complexos cooperativos, redes de empreendimentos ou outros).
França Filho e Laville (2004), por sua vez, apresentam as organizações de economia solidária
a partir de cinco elementos mais gerais. Este é o modelo que adotaremos para analisar as
práticas em estudo, por se alinhar, do ponto de vista epistemológico, às demais discussões
desta parte (II) do trabalho. As características podem ser assim descritas:
c) Democratização dos processos decisórios, que diz respeito a coletivização dos mecanismos
de decisão, ou seja, com a participação de todos os associados;
132
Para a construção deste quadro, lançar-se-á mão de três proposições conectadas com os
debates acima e que definem a sustentabilidade a partir desta concepção multidimensional. O
intendo, com isso, é tomar estas contribuições como pontos de partida, já que elas definem
uma estrutura geral de análise que podem fornecer uma “moldura” para o quadro analítico,
que deve ser complementado, então, pelas contribuições dos debates apresentados até aqui.
Estas três proposições podem ser assim identificadas
c) a proposta a partir da leitura das ecovilas, como pode ser observado em Jackson e Swenson
(apud BISSOLOTTI, 2002), que incorpora a parte dos debates especialmente relacionados à
ecologia profunda e à permacultura.
Assim, a primeira das proposições (SACHS, 2002) apresenta o conceito como composto de
seis dimensões principais: social, ambiental, cultural, territorial, econômica e política
(nacional e internacional). Na visão de Sachs (2002), a sustentabilidade social assume uma
posição prioritária, subordinando as demais, já que deve ser o objetivo mesmo do
desenvolvimento e pela probabilidade de que um colapso social preceda uma catástrofe
ambiental. Na sua visão, “a parte mais importante da revolução ambiental no pensamento que
135
ocorreu nos anos de 1970 foi a percepção de que não se pode dissociar a problemática
ambiental da social” (SACHS, 2004; p. 359). As dimensões culturais e ambientais são
consideradas uma decorrência, além da distribuição territorial mais equilibrada. Já a
sustentabilidade econômica é vista como uma necessidade, mas não condição para a
existência das demais, pois ela pode ser uma grande desestabilizadora das outras dimensões.
Finalmente, Sachs aponta a sustentabilidade política nacional (no âmbito da governabilidade)
e internacional, olhando o tema a partir da perspectiva da manutenção da paz, já que as
guerras modernas seriam também “ecocidas”.
b) dimensão social: coesão social entre as pessoas envolvidas, expresso em questões como o
tipo de sociabilidade vivido no território, o grau de confiança e a natureza do vínculo na
relação entre as pessoas.
c) dimensão cultural: grau de afirmação identitária, grau de identificação das pessoas com
sua história, o que envolve o sentimento de pertencimento das pessoas em relação ao
seu território, práticas e valores comuns compartilhados; grau de enraizamento das
atividades empreendidas no tecido da vida cultural local.
d) dimensão política: tem um triplo aspecto: grau de autonomia dos grupos locais no
processo de gestão da experiência (considerando-se o grau de democratização das relações e
o nível de participação das pessoas); capacidade da experiência em fomentar um modo de
ação pública no território; nível de articulação da experiência, tanto em redes no âmbito da
própria sociedade civil, quanto no estabelecimento de pactos ou interações com poderes
136
Por fim, os conceitos de Jackson e Swenson (apud BISSOLOTTI, 2004) envolvem a leitura
da sustentabilidade a partir de três dimensões: a ecológica, a social/comunitária e a
cultural/espiritual, que são consideradas também os três tipos de “colas” das ecovilas,
conceitos que aparecem também em outros trabalhos da área (RAINHO, 2006; SANTOS
JUNIOR, 2006). A ênfase em cada uma destas dimensões tende a variar segundo a
experiência, o que dá a identidade a cada uma delas, há uma ênfase de que todas devem se
fazer presente em favor da “harmonia dos assentamentos” (JACKSON E SWENSON apud
BISSOLOTTI, 2004, p. 39). Estas dimensões podem ser assim descritas:
a) dimensão ecológica: envolve o senso de local e lugar (conexão com o local em que vivem
e convivência harmônica com o sistema ecológico); produção e distribuição de alimentos (de
forma orgânica e biodinâmica); esquemas de reciclagem (e reutilização); cuidado com a água
(principalmente com as fontes e efluentes, que devem ter qualidade igual ou melhor do que
antes da utilização); utilização de sistemas de energia renovável; restauração ecológica (que
envolve a utilização da permacultura e da bioconstrução).
Destas três abordagens (em que se percebe, aliás, diversos elementos similares), combinadas
com as contribuições dos debates apresentados, surge a Tabela 2, que sintetiza as variáveis
propostas, agrupadas por componentes e dimensões.
PARTE III
O Ecocentro IPEC está situado na zona rural da cidade de Pirenópolis/GO, município turístico
que dista 160 km de Brasília, próximo a uma rodovia que faz rota entre a capital federal e
Goiânia. Mais precisamente, tem como endereço Rodovia GO 338, Km 47, Fazenda Mar e
Guerra. Sua área total é de 25 ha, sendo que destes são utilizados 5 ha para o ecocentro
propriamente dito (onde se encontra o centro de referência e todas as construções
relacionadas, conforme pode ser observado na Figura 27, e onde atualmente ficam instalados
os moradores) e 20 ha para as futuras instalações dos atuais e novos moradores.
Estes 20 ha deverão abrigar o que os moradores chamam efetivamente de ecovila, pois será
um local destinado para moradia mais definitiva, ao contrário da área do IPEC que é
principalmente destinada para as atividades de educação e desenvolvimento das tecnologias
ambientais.
Atualmente, estes (os moradores permanentes) são em número em quinze, sendo que desses,
três são casais (dois com filhos). Eles compõem a população total da ecovila com mais sete
voluntários, em sua maior parte estrangeiros.
A origem do Ecocentro remonta à aquisição da sua área pelo casal de fundadores – Lucia
Leagan e André Soares – ainda nos anos 80. Na época, esta era uma região degradada, com a
cobertura vegetal quase totalmente extinta. A partir do interesse desse casal, com as condições
dadas pela posse da terra e com o apoio de outras pessoas, em 1998, foi fundando, então, o
Ecocentro IPEC.
Um dos primeiros trabalhos realizados pelo instituto, e que continua até o presente, é o
processo de reflorestamento da área. Já foram plantadas cerca de 20.000 mudas de árvores,
dentro e fora da área do Ecocentro, o que vêm alterando a paisagem da região (ver Figura 28).
Figura 28: Comparativo da paisagem referente ao terreno onde está implantado o Ecocentro. À esquerda, foto
tirada antes do início das suas atividades, em 1998. À direita, após, em 2004. Fonte www.ecocentro.org
Em 1999, iniciou-se sua construção na área, sendo realizado, no mesmo ano um curso de
capacitação, Design de Ecovilas, Permacultura e Uso sustentável da Água. Os cursos
seguiram sendo a tônica do local, sendo realizados todos os anos diversos dos seus módulos, e
tendo se expandido pela parceria com outras instituições como a Gaia University. Segundo
Lucia, nos primeiros anos, os participantes dos cursos ficavam todos acomodados na única
casa do local ou então em barracas, sendo o espaço transformado em um grande camping
improvisado.
Já no ano de 2000, o Ecocentro IPEC, juntamente com Sarvodhaya no Sri Lanka e Eco Yoff,
no Senegal são reconhecidos como “Centros de Capacitação internacional da Rede Global de
Ecovilas” denotando um reconhecimento para o trabalho realizado. Além desse, o Ecocentro
recebeu ainda outros prêmios e distinções na sua trajetória: o Prêmio Planeta Casa de
Arquitetura Social, em 2004; uma Menção Honrosa no prêmio Casa Cláudia pelo seu projeto
142
"Casa Sustentável" em 2005, ano que recebe também uma menção honrosa do CREA-GO; a
certificação como tecnologias sociais pela Fundação Banco do Brasil das tecnologias
superadobe, biorremediação, húmus sapiens e captação e armazenamento de água da chuva
em 2005, sendo no mesmo ano as tecnologias húmus sapiens e captação e armazenamento de
água da chuva finalistas do prêmio Fundação Banco do Brasil de Tecnologia Social; o prêmio
"Global Harmony Award" 2007, oferecido pela ONU, pela "distinta contribuição para
construção de uma comunidade harmoniosa e ecológica"; vencedora da região centro-oeste do
Prêmio FINEP de Inovação Tecnológica com a tecnologia húmus sapiens, tornando-se
finalista nacional do mesmo Prêmio, em 2007. Neste mesmo ano, a Fundação Banco do Brasil
certifica a tecnologia social "Habitats - Sua Escola Sustentável"; André Soares, diretor do
Ecocentro IPEC, é um dos 6 finalistas do prêmio Empreendedor Social, em 2007.
Em 2001, se inicia o curso estendido de capacitação que ocorre até hoje, denominado
“Ecoversidade”. Neste mesmo ano, iniciam-se também os convênios do IPEC com
universidades para créditos e reconhecimento profissional. O primeiro caso foi o da
Universidade da Cataluña, mas que depois se deram com a Universidade de Massachusetts,
Estados Unidos (em 2004), especialmente para contar créditos para o programa americano
Living Routes, e com a Universidade de Brasília, também em 2004, contando com créditos em
diversos dos seus cursos.
Na área do ecocentro são encontradas as seguintes construções (que podem ser localizadas na
Figura 27): recepção, onde fica também fica a “Loja Verde”, espaço de exposição e vendas de
produtos relacionados ao Ecocentro (Figura 29), inclusive as publicações da editora
+Calango; a primeira casa do local, única preexistente, e que serve atualmente de alojamento
de estudantes e voluntários; a praça de alimentação; quatro sanitários secos (Figura 31); um
sanitário com água; dois viveiros de plantas (Figura 30); um minhocário (Figura 33); uma
área de chuveiros e lavanderia; uma casa de taipa e madeira (Figura 34); uma casa construída
com a técnica do cob (Figura 36); uma casa de fardos de palha; a Vila Ecoversitária (Figura
32), acompanhada da Cozinha Ecoversitária (Figura 44); a “Toca do Tatu” , espaço educativo
e demonstrativo sobre a vida do solo e subsolo (Figura 35); a “Estação Digital”, que abriga
também um centro de educação (Figura 37); um espaço de eventos e formação, em formato de
cúpula - “Centro Molisson de Estudos Sustentáveis” (Figura 38); uma biblioteca (Figura 39);
uma casa para voluntários, que é também a casa central do projeto “sítio sustentável” (Figura
Figura 34: Casa de taipa e Figura 35: "Toca do Tatu". Fonte: Figura 36: Casa de cob. Fonte IPEC
madeira. Fonte: autor autor (2010c)
144
40); uma construção que serve como sede administrativa (Figura 42); o Museu das Técnicas
de Construção em barro (Figura 45), a “Casa do Mel” e a cozinha/restaurante comunitário
(Figura 43).
Além destes prédios, o Ecocentro conta com áreas como a “Praça do Amor”; um canteiro de
ervas (Figura 41); uma horta; um galinheiro; um chiqueiro; o anfiteatro da mangueira; uma
cozinha comunitária para eventos; as agroflorestas e, por fim, o “Sítio Sustentável”.
Figura 37: Estação Digital. Fonte: Figura 39: Biblioteca. Fonte: autor Figura 38: Espaço de eventos.
autor Fonte: autor
Figura 41: Horta de ervas. Fonte: Figura 40: Casa dos voluntários Figura 42: Sede administrativa do
autor (em construção). Fonte: autor ecocentro. Fonte autor
O ecocentro está construindo, ainda uma espécie de “área de transição” para o futuro espaço
da ecovila. Nesta área estão sendo construídas quatro residências todas aproximadamente com
o mesmo tamanho, com dois quartos, banheiro, sala e cozinha, e que adotam todas as
tecnologias ambientais aplicadas e desenvolvidas no ecocentro. Estas casas servirão para que
as pessoas que tenham a intenção de morar na ecovila possam alugá-las temporariamente e
vivenciar a experiência antes de tomar a sua decisão final.
145
Figura 46: Casas em construção na área de transição para a ecovila. Fonte: autor
Esta missão é estabelecida a partir de cinco focos principais: água, alimentação, abrigo
(habitação), energia e saneamento. Para cada uma delas, são experimentadas e estabelecidas
soluções concretas e ligadas à ideia de sustentabilidade, que se desdobram em diversas das
ações citadas acima e que serão melhor detalhadas na seção seguinte. Estas ações, por sua
vez, convergem em quatro elementos componentes da estrutura organizativa do Ecocentro: as
atividades de consultoria, uma ONG, o projeto Habitats e os mininegócios. Estes elementos
podem ser assim descritos:
a) Consultoria: atividade realizada por membros do ecocentro, que tem como proposta
realizar a replicabilidade das ações e tecnologias desenvolvidas internamente. Normalmente,
suas ações se dão a partir de demandas externas colocadas por outras organizações ou
indivíduos. Um exemplo deste trabalho, é a realização de construção de cisternas de
ferrocimento, sanitários secos e superadobe, e capacitação técnica realizada no Vale do
Jequetinhonha, projeto com diversas ações realizado em 2006.
b) ONG: tendo formato de uma associação, fornece o respaldo jurídico para algumas ações
realizadas pela comunidade. Permite a realização de diversos contratos, ficando responsável
especialmente pela captação de recursos para os projetos locais. Entretanto, por decisão
146
estratégica local, com o objetivo de se ter uma maior autonomia e reduzir as atividades
burocráticas do IPEC está reduzindo-se esta fonte de financiamento e focando-se mais nas
atividades dos cursos e das consultorias. Isto é respaldado pelo sucesso de participação obtido
nos cursos (desde 2006 eles normalmente funcionam com todas as vagas preenchidas), o que
os torna largamente a principal fonte de receita do espaço.
d) Mininegócios: são responsáveis pelas entradas de recursos ao ecocentro por meio da oferta
de produtos e serviços próprios (juntamente com as consultorias) e de seus membros de forma
individual. Estes últimos seguem diretrizes mais gerais da ecovila, o chamado “DNA
Sustentável”, existente desde 2007. Destacam-se, neste caso, a Mampiara Alimentos,
dedicado a produzir e comercializar plantas medicinais e a Planta Viva Produtos Conscientes.
• Loja Verde: existente desde 2006, vende as publicações da editora Mais Calango e
outros livros relacionados com os temas do meio ambiente e sustentabilidade. Possui
um espaço físico na sede do Ecocentro e uma loja virtual, onde podem ser comprados
os títulos referidos. Na loja virtual podem ser adquiridos, ainda, os cursos oferecidos
148
pelo IPEC. Por sua vez, na loja física são também vendidos produtos artesanais do
Ecocentro e das comunidades com as quais o instituto tem relação.
Outras atividades que se destacam no IPEC estão relacionadas com a interação com as
comunidades vizinhas, especialmente do vale do córrego Mar e Guerra. Neste sentido, no
149
final de 2005 iniciou-se um mutirão em conjunto com os moradores para recuperação deste
córrego. Além dessa ação, existe um processo de interação contínuo que envolve a realização
de oficinas junto com moradores, em que são abordadas muitas das tecnologias aplicadas pelo
IPEC, bem como a participação destes em muitos eventos realizados pelo próprio Ecocentro.
a) Dimensão econômica
Sobre o impacto gerado na distribuição de renda do local, as atividades realizadas pelo IPEC
geram postos de trabalho tanto internamente quanto externamente à ecovila. Internamente,
eles são criados especialmente pelos serviços prestados, já que o IPEC é um ecocentro, e tem
vocação para realização de consultorias, cursos e outras atividades similares. Neste sentido,
quase todos os seus moradores realizam alguma destas atividades, exceto aqueles que
trabalham na manutenção do local. De fato, o IPEC não se caracteriza como uma ecovila que
conta com moradores que trabalham fora e dedicam apenas parte do seu tempo para o local,
tendo apenas um morador nesta condição.
Do ponto de vista externo, um dos tipos de trabalho gerado está associado com o consumo dos
moradores da vila. No caso dos alimentos, ele é, em sua maior parte, produzido localmente
ou comprado nas cercanias (comunidade Mar e Guerra). Neste sentido, o ecocentro conta com
produtores orgânicos que suprem suas necessidades, numa espécie de contrato que garante o
fornecimento e a compra por um dado período.
Alguns destes produtores se articulam para vender também seus produtos na cidade (zona
urbana de Pirenópolis, já que o IPEC fica na zona rural), tendo aprendido e desenvolvido suas
técnicas junto ao próprio IPEC, através de projetos específicos e de cursos realizados com as
comunidades do entorno.
Com relação à articulação entre as diferentes lógicas econômicas, o IPEC se utiliza das três
formas referidas (mercantis, não-mercantis e não-monetárias). As trocas mercantis se dão por
meio dos serviços prestados, dos cursos oferecidos, da Loja Verde e da Editora +Calango. As
formas não-mercantis, se dão por meio de convênios com governo e outros financiadores
privados (HSBC e Sebrae, por exemplo) para realização de projetos específicos. As formas
não-monetárias se realizam na produção local de alimentos, das habitações e da infraestrutura.
Do ponto de vista financeiro, atualmente, a principal fonte de recursos provém das formas
mercantis. Esta participação deve ainda aumentar com o tempo, em função da mencionada
decisão estratégica do Ecocentro de depender mais de recursos próprios (serviços oferecidos
ao mercado) do que de convênios, pelas razões já expostas no capítulo anterior. Entretanto, se
considerarmos o aspecto econômico como um todo, ou seja, para além da questão
financeira/monetária, percebe-se que o trabalho realizado no local com relação aos três
elementos referidos compõe um importante fator de sustentabilidade da ecovila. O caso das
habitações e da infraestrutura, em especial, recebem importante incremento periodicamente,
pela ação dos voluntários e cursistas. De fato, boa parte das edificações existentes no local
foram realizadas por meio deste trabalho ou com uma grande participação dele em
determinado momento do processo de construção.
Sobre a produção local, o ecocentro conta com uma cozinha comunitária, em que trabalham
três pessoas (uma moradora da ecovila) que serve a alimentação para todos os moradores e
visitantes. A alimentação é composta, como já referido, de insumos externos e internos à
151
ecovila. Não foi possível obter a fração exata de participação da produção interna de
alimentos, já que esta pode variar muito, contudo, segundo relato de um morador, numa
eventualidade seria possível suprir toda a demanda de consumo (em termos quantitativo) com
a produção interna. O que se reduziria, nesta hipótese, é a variedade de alimentos atualmente
utilizada. Outro serviço atendido internamente é a manutenção (exceto quando se requer
algum serviço específico), bem com as construções (com o apoio de mão de obra externa,
conforme já referido).
b) Dimensão social/comunitária
Percebe-se um alto nível de coesão entre os moradores, que pode ser observado no trato
cordial e na aparente amizade entre os indivíduos no local. Isto se reflete, por exemplo, nos
momentos de despedida, quando um morador vai embora. Segundo relato dos moradores, este
é um momento marcado por lágrimas: “é um sofrimento muito grande”, relata uma moradora.
“Mas depois de um tempo a gente aprende a lidar com isto”, continua ela. Isto porque há uma
certa rotatividade entre os moradores da ecovila, permanecendo, desde a sua fundação,
basicamente o casal fundador e sua filha. A população formada por estrangeiros ou brasileiros
em estágio, que normalmente é temporário, é o que forma a maior parte dos moradores. Há
ainda outros que vivem por um período no local e depois mudam-se, por razões diversas,
como o final de um período previamente determinado para executar um projeto pessoal ligado
ao Ecocentro, além de mudanças na vida pessoal (como um casamento) ou ainda a busca de
formas de trabalho diferentes. Um morador mais antigo afirma que “o processo de mudança é
natural e a maioria vai embora depois de algum tempo”; ainda outra trabalhadora diz que
“normalmente as pessoas vêm para passar o tempo de uma proposta de trabalho e depois vão
embora., outros acabam ficando, mas depois de um tempo também vão”. Segundo a mesma
trabalhadora, há os que ainda permanecem sem previsão de saída desde que chegaram.
Vale ressaltar que há, no local, uma preocupação com a resolução de conflitos. Sempre que
eles surgem são tratados. Existem, para isto, e para todos os encaminhamentos diários,
reuniões frequentes (as chamadas “rodas”), todas as manhãs, às 8 horas e todas às tardes, às
18 horas. Além disso, quando surge uma questão mais importante, a roda é mediada por outro
morador junto aos envolvidos.
Sobre a questão da saúde na comunidade, ela é percebida como integral, ou seja, passa por
questões mais “físicas”, como alimentação saudável (orgânica), tratamento adequado de
resíduos, moradia adequada (neste caso, bioconstruída), contato com a natureza, até as mais
152
“mentais”, através da prática da meditação (que alguns moradores realizam), do trabalho com
significado e da própria resolução de conflitos. Alguns moradores fazem uso de medicina
natural, com ervas plantadas no próprio local. Entretanto, isto não parece ser uma prática
institucionalizada na comunidade. Com relação aos tratamentos convencionais, os moradores
os buscam individualmente fora da comunidade.
c) Dimensão cultural/espiritual
A vivência na ecovila obedece ainda certos rituais, além dos já citados. Um deles é relativo
aos horários das atividades. Antes das refeições e sempre nos mesmos horários, soa um sinal
informando aos moradores e visitantes o momento em que ela se encontra disponível.
Algumas atividades contêm recomendações diretas, como o tempo de banho, a lavagem da
louça (realizada individualmente por todos), a utilização da água e a forma de uso dos
sanitários compostáveis, questões ligadas ao propósito da instituição. Existem ainda rituais de
153
Além destes rituais, existem no local atividades mais ligadas à espiritualidade, como prática
matinal de yoga e de meditação ao final do dia, sempre em horários determinados, e realizada
voluntariamente por alguns moradores e visitantes. Não há, entretanto, uma orientação,
propósito ou referência geral na comunidade com relação ao aspecto espiritual, como se
observa em outros casos.
d) Dimensão Política
Como relação à participação dos moradores, conforme já referido, existe a “roda” diária em
que são discutidos os problemas e fatos que ocorrem cotidianamente no IPEC. Neste
momento são também tomadas decisões conjuntas e realizados encaminhamentos sobre
eventuais conflitos e demandas.
Algumas decisões estratégicas do IPEC são tomadas, porém, em foro reduzido. Uma das
justificativas para isto é a referida rotatividade dos moradores, o que gera um relativamente
baixo envolvimento com as questões de longo prazo. Segundo depoimento do casal de líderes
do local, é desejo que novas lideranças surjam e que compartilhem mais responsabilidades
sobre o ecocentro. Neste sentido, há a intenção declarada de um dia afastarem-se das
atividades do local, para que ela possa florescer com mais participação dos demais
integrantes.
Quanto à ação pública no território, percebe-se que há uma relação com a comunidade em
que o ecocentro está inserido. Isto se reflete em elementos como as já referidas compras locais
de alimentos, além dos projetos realizados com as comunidades vizinhas, como o
desenvolvimento de métodos de cultivo orgânicos, trabalho com hortas mandalas, fomento à
organização local, trabalhos de restauração ambiental, além de projetos como o Habitats,
realizado nas escolas públicas do município.
Com relação às articulações externas, o IPEC procura participar das ações públicas
relacionadas ao governo municipal. Entretanto, segundo depoimento do diretor local, a
154
instituição normalmente não é convidada para participar das discussões sobre as políticas
locais, o que, segundo sua percepção, se deve ao posicionamento político do IPEC,
considerado “radical” com relação às concepções dominantes localmente. O instituto,
contudo, não se furta em buscar a participação nas discussões, apresentando-se sempre aos
governantes locais e se fazendo presente em encontros e reuniões quando possível. De
qualquer forma, o governo municipal tem convidado o ecocentro à participação em eventos
públicos, como festas e feiras temáticas (sobre a questão ambiental). A hipótese para esta
participação seletiva, ainda segundo o mesmo depoimento seria a “vocação do IPEC para a
realização de eventos” (que já ajudou na organização de eventos internacionais, como o SWU,
por exemplo72).
O IPEC possui, ainda, relacionamento com a rede global de ecovilas (GEN), desde a sua
fundação, assim como participa de discussões internacionais sobre o tema, apesar de divergir
em alguns pontos com relação às definições e políticas desta, como por exemplo a forma
como se define uma ecovila. Neste caso, a divergência seria no fato da GEN considerar
ecovila apenas aquelas comunidades definidas como “intencionais”, deixando de fora uma
série de experiências que poderiam ser exemplares para o campo ou que poderiam se
beneficiar das articulações políticas da rede.
Além disso, o Ecocentro se articula ainda com outras instituições que trabalham com
permacultura e ecovilas no Brasil, embora esta não se dê de forma institucionalizada como no
primeiro caso.
e) Dimensão Técnica/Ecológica
Com relação à questão tecnológica, percebe-se que a tecnologia utilizada pelo IPEC possui
características que a permitem definir como social. Primeiro, com relação ao seu uso, já que
elas são desenhadas para terem baixo custo e fácil aplicação, o que a torna facilmente
aplicável em qualquer meio social. Além disso, as suas origens estão fortemente relacionadas
às referências locais ou populares, mesmo quando adaptadas de outros locais. Este é o caso,
por exemplo, das técnicas construtivas baseadas no barro, como o adobe ou a taipa, que é uma
técnica tipicamente utilizada na região (bem como em diversas regiões do Brasil). Outras
técnicas mais recentes, como o superadobe, o canteiro biosséptico, o painel solar de baixo
72
Starts With You, organização que congrega personalidades em torno da militância em favor da
sustentabilidade. Organiza festivais de massa com artistas com base no princípio de baixo impacto ambiental.
Fonte: www.swu.com.br.
155
custo, dentre outros73, apesar de não ter a origem local ou não serem adaptações de técnicas
tradicionais, tem o mesmo princípio de replicação simples e de baixo custo. Esta definição é
apoiada ainda pelo reconhecimento dado às práticas por instituições como a Fundação Banco
do Brasil, que fomenta a ideia de tecnologia social no Brasil
Estas tecnologias tem um forte cuidado com relação à questão ambiental. Citam-se como
exemplo o cultivo dos alimentos, que é feito de maneira orgânica e com adubo produzido
localmente (a partir da compostagem e de outros processos), o controle na utilização da água
potável, obtida a partir da reserva em cisternas, e o controle no uso da energia (o aquecimento
de água é todo realizado por painéis solares). A produção de resíduos é minimizada pela
reutilização da água (toda água é tratada antes de ser devolvida ao meio ambiente), pela já
referida compostagem e pela minimização do uso de embalagens.
Com relação à identidade ecológica, observa-se que ela se manifesta em ações como o
reflorestamento já realizado na área da ecovila e a revitalização e a limpeza das margens do
córrego Mar e Guerra que cruza a propriedade mas que vai além dela. Na comunidade,
também, não são permitidos animais de estimação, com o objetivo de não afugentar a fauna
local. Fica evidente, nas ações da ecovila que a preocupação ecológica se estende além dos
limites locais.
73
Estas técnicas serão melhor detalhadas na sequência.
156
Figura 47: Bacia para recuperação da água dos Figura 48: Manta para separação do gás
porcos natural
Com relação à utilização da água, diversos processos com preocupação ambiental são
utilizados. O primeiro que podemos citar é a lavagem da louça. Cada morador e visitante é
responsável pela sua própria louça, e este processo é realizado com três bacias em série, ou
seja, sem a utilização de água corrente. Uma segunda, é a utilização da água das pias dos
banheiros secos, que são esgotadas próximas a cada sanitário, em pequenos jardins. O terceiro
é a própria não utilização da água nos sanitários, que são compostáveis. Ainda ligada a esta
questão, está o fato de os sanitários e os chuveiros serem de utilização coletiva. Uma quinta
prática é a utilização de cisternas de ferrocimento, que estão presentes junto a maior parte dos
telhados das construções locais. Sobre esta questão, vale ressaltar que existe cerca de 230.000
litros de capacidade de armazenamento na comunidade. Esta fonte é utilizada
preferencialmente às outras, que são um poço semiartesiano e uma fonte natural, que não é
utilizada como fonte de água potável.
Um sexto processo é o tratamento biológico, aplicado à água da cozinha e dos chuveiros. Ele
tem por objetivo a devolução da água no estado captado, ou seja, próximo à potabilidade. Um
esquema deste processo, utilizado para a água da cozinha, pode ser visualizado a seguir, na
Figura 49. O tamanho e as fases deste sistema foram definidos em função da meta da
qualidade da água ao final. Assim mesmo, depois de construído, o sistema foi aumentado em
dois tanques de filtros aquáticos para se atingir a qualidade desejada.
157
Com relação à utilização de energia, a maior fonte é a própria rede de distribuição. Outras
fontes utilizadas são o aquecimento solar da água dos banhos, pela adoção da técnica do
Aquecedor Solar de Baixo Custo (ASBC)74, conforme pode ser observado na Figura 50. Outra
forma de utilização de energia é o aproveitamento da gravidade para o escoamento de água,
como é o caso dos sistemas de tratamento dos efluentes.
74
Técnica desenvolvida pela Sociedade do Sol, que consiste na confecção de painéis solares a partir de forro e
tubos de pvc. Fonte: www.sociedadedosol.com.br
158
Já no que se refere ao segundo elemento, não se pode dizer que o IPEC seja “completo”,
embora esta definição seja um tanto difusa, já que o próprio autor (Gilman) afirma que não se
espera (e mesmo não é desejável) que tudo seja produzido localmente. Entretanto, observa-se
uma potencial76 autossuficiência no que se refere à alimentação (em todo o processo, desde o
cultivo até o descarte do não utilizado, passando pela sua preparação), construção de moradias
e suprimento e tratamento de água.
No que diz respeito à integração sem danos ao meio natural, este é de fato um dos princípios
que pela observação, se percebe que norteia as práticas locais. Procura-se definir todos os
processos de forma cíclica, como pode-se notar pelas descrições realizadas neste capítulo,
mas não podemos considerar que as atividades não ocorrem absolutamente “sem danos”,
justamente porque se conectam com processos externos que nem sempre tem estas
características. Se considerarmos, no entanto, a prática a partir das experiências dadas pela
modernidade (de onde excluiríamos as comunidades tradicionais indígenas, por exemplo),
certamente elas estão entre aquelas que ocorrem como o “menor dano possível”.
O desenvolvimento humano saudável (outro conceito que pode ser problemático, já que
poderia ser avaliado a partir de diferentes perspectivas culturais ou pessoais) pode ser também
facilmente observado pelas diversas práticas adotadas no local, que envolvem a dimensão
espiritual, social e simbólica, além dos aspectos físicos dada por um estilo de vida que
envolve uma alimentação e um trabalho mais saudáveis.
Por fim, com relação ao último aspecto, é difícil concluir sobre se a experiência pode ser
continuada indefinidamente. Do ponto de vista material parece que sim, já que, como dito
logo acima, muitos processos poderiam continuar mesmo se não houvesse relação com o
exterior (embora provavelmente sem a mesma “qualidade”). Entretanto, parece que este não é
o único fator a ser considerado para se pensar na continuidade da existência da ecovila.
Assim, do ponto de vista político e social, existem algumas restrições que fazem com que, em
caso de mudanças externas, a experiência hoje não seguiria sem grandes abalos. Estas
restrições são a liderança ainda um tanto concentrada no casal fundador (cuja afastamento
definitivo traria, certamente, dificuldades para o funcionamento da experiência) e a relativa
rotatividade de boa parte dos moradores do local que indica uma vinculação mais de caráter
76
Potencial porque nenhum dos elementos exemplificados se realiza totalmente na ecovila. Todos possuem
algum nível de intercâmbio com o exterior, mas dada a expertise observada no local e a disponibilidade dos
insumos utilizados (ou seus substitutos), percebe-se que poderia haver uma continuidade no seu fornecimento
mesmo numa eventual interrupção deste intercâmbio.
160
temporário desta parcela da população, o que seria uma fragilidade do ponto de vista desta
continuidade.
Vale ressaltar sobre o enquadramento da experiência como ecovila, que alguns moradores não
a entendem como tal. Uma diretora do local afirma que, a ecovila não pode ser considerada
assim pelas suas dimensões, ou seja, é pequena demais se for comparada com as experiências
fora do Brasil. Uma outra trabalhadora diz que o IPEC é “mais um centro de referência, uma
ONG; as pessoas vêm até aqui mais para trabalhar e vivenciar uma experiência".
Com relação ao quadro analítico, de forma geral percebe-se que a experiência possui uma
grande aderência à noção de sustentabilidade proposta. Ela apresenta resultados que
contemplam a maior parte das variáveis levantadas, perpassando todas as dimensões. É
possível, perceber, entretanto, que há uma grande ênfase na dimensão técnica/ecológica, que
se traduz no esforço por desenvolver e implementar soluções que se expressariam na lógica
das tecnologias sociais, como já afirmado anteriormente. Esta seria a “cola” da experiência,
ou seja, o elemento de maior atração, tanto para os moradores quanto para os visitantes. As
161
A ecovila conta com sete funcionários, que são monitorados especialmente pelos sete
moradores da ecovila que estão instalados na propriedade da fundação, e que trabalham
principalmente nas suas atividades internas (embora na maioria dos casos não
exclusivamente). Estes, com outras 18 pessoas (residentes fora da área de propriedade da
instituição) compõem a população total do local de 25 moradores.
Sobre a população total, observa-se que a maioria é de mulheres (72%), com uma idade média
de 39 anos, com idades desde recém-nascido até 65 anos. A maior parte das pessoas é
proveniente de Salvador (60%), mas a população é composta de indivíduos de diversas
origens (dentro da Bahia e de outros estados e países). Além disto, predomina o nível superior
(76% do total), sendo que 8% dos moradores estão fora da idade escolar.
A profissão dos moradores varia muito, sendo que se repete duas vezes a de pedagogia e a de
psicologia, e quatro vezes a de estudante. O tempo médio de moradia na comunidade é de
163
cerca de 8 anos e meio, sendo que os moradores mais antigos (3 deles) estão há entre 18 e 19
anos estabelecidos no local.
No seu percurso histórico, observa-se que a Fundação começa a tomar a sua forma atual a
partir da realização das primeiras atividades de vivências coletivas realizadas no local, em
1989, promovidas pela principal liderança do local (cuja família era então proprietária das
terras), guia espiritual e uma das peças fundamentais para a estruturação da instituição e para
a compreensão de muitos elementos do seu funcionamento.
77
O formato de fundação foi o escolhido para regulamentar a comunidade então em formação por ser o mais
apropriado as suas intenções no momento, já que ela possui, ao mesmo tempo, um interesse público e a
propriedade desvinculada dos seus eventuais sócios ou gestores.
164
Nesta ocasião, os moradores se instalaram na casa em que hoje fica a administração. Nos anos
seguintes foram sendo construídas a Casa de Recolhimento, os chalés, além de algumas casas
individuais (nos condomínios que cercam a área da Fundação), tendo todos os moradores se
acomodado nestas novas construções e liberado a construção original para as funções que hoje
ela cumpre.
O trabalho social (ligado para as comunidades do entorno) começa no ano 2000, com o
projeto Águas Puras, que visava a limpeza do Rio Itamboatá e a recuperação das suas
margens. A partir daí, estes trabalhos se ampliaram em escopo e em abrangência das
comunidades atingidas, sendo que hoje são realizados trabalhos com as ervateiras da região,
com a recuperação da Fonte da Guia, o plantio de mudas de árvores, dentre outros, conforme
será detalhado mais adiante.
A área da Fundação é cortada pelo Rio Itamboatá, conforme pode ser visto na Figura 51. Da
sua entrada principal até a margem do rio, podem ser visualizados os seguintes prédios: uma
construção preexistente abriga atualmente a parte administrativa da instituição (Figura 52),
bem como uma biblioteca, cozinha e refeitório; contíguo
a este prédio (dividindo uma varanda) encontra-se a sede
da Editora Calango; atrás encontra-se um espaço que
abriga a padaria, e uma varanda com mesas e cadeiras
para usos diversos (Figura 55); são observados ainda o
prédio da Ambiental Terra Mirim (Figura 54), onde fica
sediado o departamento que cuida das questões relativas
ao meio ambiente; a lavanderia; um pequeno templo para Figura 52: Prédio administrativo da FTM.
Fonte: autor
meditação; a “Casa das Artes”, espaço para
apresentações artístico-culturais (Figura 56); a “Casa do Recolhimento” (ao lado da Casa das
Artes), local de alojamento com quartos individuais, onde residem alguns moradores
permanentes e voluntários (Figura 53); uma casa de manutenção, onde ficam guardadas
ferramentas e equipamentos; um galinheiro; uma área com chalés para hóspedes, que é
ladeado por uma construção com cozinha e sanitários (Figura 58); e a “Casa da Lua”, local de
pequenas reuniões, meditações, práticas de yoga e outras atividades (Figura 57).
165
Figura 55: Padaria Mirim. Fonte: Figura 54: Ambiental Terra Mirim. Figura 53: "Casa do Recolhimento".
autor Fonte: autor Fonte: autor
Figura 56: Casa das Artes. Fonte: Figura 58: Chalés (à esquerda). Figura 57: "Casa da Lua". Fonte:
autor Sanitários e cozinha (à direita). autor
Fonte: autor
Figura 61: Escola Ecológica. Fonte: Figura 62: Pomar. Fonte: autor
Figura 63: Sharimar. Fonte: autor
autor
Figura 64: Templo do Fogo. Fonte: Figura 65: Templo do Vento. Fonte: Figura 66: Área de compostagem.
autor autor Fonte: autor
Nas “Terras de São Francisco”, são realizados o cultivo de diversos tipos de alimento e de
plantas medicinais. O propósito da utilização deste espaço é de, além de produzir estes
gêneros para consumo interno (da ecovila) e eventualmente venda, que ele possa servir como
um local para a realização de atividades de educação ambiental.
A estrutura de gestão é ainda composta pelos órgãos estratégicos que são o conselho curador,
167
No início das suas atividades, a Terra Mirim concentrava suas ações em torno das vivências
promovidas pela Xamã, o que foi consolidando a ocupação do local. Com o desenvolvimento
da organização da comunidade, e a divisão nos setores de trabalho, a maioria das atividades
passaram a ser organizadas no formato de programas e projetos, compondo todas as ações
realizadas. A maioria destas atividades é financiada a partir de quatro fontes principais:
doações, especialmente de parceiros internacionais, contribuição mensal dos moradores,
serviços prestados e convênios/parcerias para execução de projetos específicos.
b) Projeto Ser Adolescente: atividades realizadas com jovens das comunidades do entorno,
que envolvem vivências e momentos de reflexão sobre as questões da adolescência e sobre
outros temas, como meio ambiente.
c) Projeto Águas Puras: iniciado no ano de 2000, previa o reflorestamento de 13,5 hectares
de Matas Ciliares do Rio Itamboatá, bem como a limpeza e restauração das suas margens,
tendo já sido realizado o plantio de 10.000 mudas de árvores nativas. Para isto, foram
realizadas ações de educação ambiental nas escolas municipais, além de diversos mutirões
ecológicos de limpeza, envolvendo a participação de centenas de moradores das comunidades
vizinhas. O projeto conta ainda com a formação contínua de professores, que funcionam,
como uma espécie de multiplicadores nas escolas. Este projeto recebeu financiamento do
Fundo Nacional do Meio Ambiente para o período de 2001 a 2003 (fase I), e novamente para
o período atual, que corresponde à sua segunda fase.
f) Projeto de Recuperação da Fonte da Guia: atividade assumida pela instituição que prevê a
recuperação de uma fonte em terra contígua, de propriedade de uma olaria, atualmente
169
desativada. A fonte estava degradada e assoreada, tendo sido restaurada, limpa recuperada na
sua vegetação de entorno. Por ser considerada importante elemento natural e cultural do
município (era antigo destino de romeiros), recentemente sua área foi considerada como
“Unidade de Conservação e Reserva Biológica Fonte Nossa Senhora da Guia”, primeira de
Simões Filho, depois de mobilização popular que envolveu participação ativa da Fundação e
que colocou esta demanda ao poder público local (FUNDAÇÃO TERRA MIRIM, 2010).
A Fundação realiza ainda ações que não parecem se enquadrar no formato de programas ou
projetos, que estão vinculados principalmente aos trabalhos com as comunidades do entorno.
O primeiro conjunto destas ações estão associadas a atividades de organização dos produtores
das comunidades vizinhas. Neste sentido, vêm sendo estimulada a constituição de uma
Associação no Oiteiro (comunidade do Vale), bem como de um conselho de anciãos da
região. Além disso, são constituídas diversas oficinas sobre plantio e outros temas de interesse
dos produtores rurais, muitas vezes ministradas por membros da própria comunidade.
Outro conjunto de ações é aquele realizado visando o desenvolvimento da região nos seus
diversos aspectos (ambientais, sociais, culturais, econômicos, etc). Similarmente ao projeto de
recuperação da Fonte da Guia, foram realizadas ações para definir condicionantes para a
170
Por fim, a Fundação já tem realizado diversos levantamentos da região, como o diagnóstico
socioeconômico do Vale do Itamboatá, o Diagnóstico Ambiental da hidrodinâmica do Rio
Itamboatá, ligado ao Projeto Águas Puras, o Diagnóstico Ambiental apoiado por professores
do Curso de Direito Ambiental Comunitário, o Levantamento e Proposições das Associações e
lideranças comunitárias do Vale do Itamboatá e a Agenda Socioambiental do Vale do
Itamboatá (FUNDAÇÃO TERRA MIRIM, 200x).
Com estes trabalhos referidos, há interação direta com seis comunidades do Vale: Convel,
Jardim Renatão, Oiteiro, Santa Rosa, Dandá (quilombola), Palmares e Pitanga de Palmares
(FUNDAÇÃO TERRA MIRIM, 200x).
a) Dimensão econômica
sua maior parte de fora, embora se observe a utilização de elementos (como partes das
estruturas de madeira) provenientes do local.
Sobre a produção local, existe a cozinha comunitária, em que trabalham duas pessoas, sendo
coordenada por duas moradoras do local. A manutenção também é outro serviço atendido
internamente, porém com a contratação de serviços externos.
b) Dimensão social/comunitária
Percebe-se um alto nível de coesão entre os moradores, com uma sociabilidade primária e um
alto grau de confiança entre os indivíduos. Alguns moradores (três deles) estão presentes
desde a constituição da comunidade (em 1994), tendo vínculos mesmo anteriores a este
momento. Outros já estão também a muitos anos morando e convivendo no local (mais de
40% morá lá a mais de 12 anos), o que faz com que seja apresentado um forte laço, que
lembra o de uma família. O nível de reconhecimento entre os moradores também é
satisfatório, já que eles são em pequeno número. Vale ressaltar, sobre estes aspectos, o fato de
ter sido observada apenas a interação de parte dos moradores, já que alguns deles não tomam
parte das atividades diárias da fundação, mesmo morando na comunidade. Este aspecto
apresenta um diferencial em relação ao caso anterior: enquanto no IPEC a relação com a
172
ecovila está fortemente vinculada à questão trabalho, na FTM a maior parte dos moradores
tem mais uma relação de moradia e um envolvimento menor nas suas atividades diárias,
relacionadas aos projetos, programas e serviços prestados, e apenas um morador tem maior
parte da sua renda proveniente do local. De qualquer forma, todos se envolvem em alguma
atividade administrativa ou de apoio à fundação.
Destaque-se que este formato é similar ao que pretende ser seguido pelo IPEC na constituição
de um espaço de moradia na área externa ao do instituto. Assim, como na FTM, haveria uma
divisão entre a propriedade da organização, com seus propósitos bem definidos, e a dos
moradores.
Com relação à questão da saúde, percebe-se o acesso dos moradores aos tratamentos, quando
requerido. Neste aspecto, destaca-se a preocupação da comunidade com a utilização de
tratamentos complementares, com a utilização de ervas medicinais e de terapias alternativas,
apresentando-se mesmo como uma das vocações do local.
No que diz respeito à educação, tem-se também outro dos elementos centrais da ecovila, cujas
ações ocorrem com especial destaque, sendo inclusive previstas estatutariamente dentro dos
objetivos gerais da instituição. Neste caso, existe a Escola Ecológica, que apoia a educação
dos jovens da região, bem como os cursos de capacitação e sensibilização para os temas
trabalhados na instituição para os moradores da região. Aparece aqui outra diferença do caso
em destaque com relação ao anterior: na Terra Mirim, as atividades da educação estão mais
voltadas para o público do entorno onde ela está inserida. Já no IPEC, mesmo que exista este
elemento, grande parte das atividades de formação se inserem no formato de cursos para o
público mais distante, sendo a maioria de outras cidades e estados do Brasil e mesmo de
outros países.
c) Dimensão cultural/espiritual
Um elemento que chama a atenção é a vinculação dos moradores à experiência por sua
proposta filosófica de vivência. Isto está presente na maioria dos discursos, onde se percebe,
por um lado, o engajamento dos moradores nesta proposta, e por outro, a escolha intencional
por este estilo de vida, mesmo com eventuais “custos emocionais” que tal mudança enseja.
Conforme depoimento de uma moradora, eram pessoas acostumadas com uma forma de vida
urbana e que resolveram trocar este estilo por um outro que contemplasse também outros
tipos de atividades. Outro dado que reforça o laço escolhido é que cerca da metade dos
moradores (48%) não possuem qualquer relação de parentesco entre si na ecovila, e em 24%
173
estes laços são o de união conjugal. Assim, percebe-se que existe uma identidade dos
moradores com a proposta da comunidade, mais do que com o local.
A comunidade formada pela Terra Mirim assume ainda um caráter multicultural, já que é
constituída por indivíduos de origens diversas. Entretanto, a maior parte dos moradores é da
Região Metropolitana de Salvador, e a grande maioria dos moradores adultos possui nivel
superior.
As atividades culturais são também valorizadas no local. Num espaço próprio para a
realização de eventos (ver Figura 56), em que especialmente os jovens da região acorrem, são
promovidas ações de desenvolvimento e expressão da cultura local. Os tipos de atividade que
ocorrem envolvem dança, teatro, música e outros.
Com relação às expressões materiais da cultura, observa-se alguns detalhes que marcam as
características locais, como a existência de construções circulares (especialmente as
destinadas à meditação e a encontros), os telhados de palha, as pinturas decorativas em
algumas edificações e as decorações da Casa das Artes com motivos regionais (bambu e
tecidos de chita). A noção de construção circular tem a ver com os princípios do local: “o
círculo permite uma maior circulação da energia, além de aproximar as pessoas”, conforme
explica uma moradora. O círculo daria ainda a noção de horizontalidade (todos se tornam
mais iguais no formato circular, não há posição de destaque, se formos tomar em comparação
com outros formatos). Além disso, o desenho dos templos refletem a integração mística com
os elementos da natureza.
d) Dimensão Política
No que se refere à participação dos moradores, a prática corrente é que todos participam das
174
decisões, normalmente tomadas de forma colegiada. O próprio estatuto prevê que no conselho
curador seja composto por 1/3 de voluntários da fundação e que os outros 2/3 sejam
escolhidos pelos envolvidos na organização (incluindo gerências, voluntários, diretores, e
superintendente). A tomada de decisão acaba sendo também descentralizada, com cada
gerência tendo uma certa autonomia dentro da sua esfera de atuação. A liderança espiritual é
uma referência marcante, sendo uma instância de aconselhamento e, em alguns casos, de
decisão final, pela posição de respeito que goza entre os moradores. No entanto, é sempre
fomentado um processo de discussão e decisão horizontalizada.
Quanto à atuação pública no território, a Terra Mirim tem atuação mais relevante
especialmente no âmbito local, em temas que tocam à defesa das questões ambientais e
tradicionais da região. A instituição participa regularmente de conselhos sobre o assunto, além
de articular mobilizações em torno de temas de interesse público local. Neste sentido, teve,
por exemplo, papel importante na constituição, em junho de 2010, da Unidade de
Conservação e Reserva Biológica Fonte Nossa Senhora da Guia, primeira do tipo aprovada na
Câmara Municipal de Simões Filho, formada a partir de extensa articulação com as
comunidades do entorno. Nesta ocasião, uma moradora relata que houve um explosivo
processo de mobilização: “as comunidades foram chamadas e compareceram em massa nas
audiências públicas e na seção da câmara de vereadores”. Assim, a Fundação procura interagir
com as comunidades do entorno de diversas formas (realizando oficinas, mutirões, conversas,
encontros, etc), além de chamar o poder público local quando pertinente, no intuito de
fomentar a consciência cidadã na região.. Ainda no que se refere à articulação com as
comunidades do entorno, poderíamos apontar aqui novamente o trabalho realizado junto à
oito delas (conforme citadas na seção de descrição da experiência), especialmente direcionado
ao apoio a sua organização política e produtiva. Uma das metas desta articulação é a
constituição de um “conselho de anciãos” na região, conforme relato obtido na comunidade.
No que diz respeito às articulações externas, vemos que a FTM foi umas primeiras iniciativas
a se filiarem a GEN. Entretanto, ela não tem uma atuação muito ativa nesta rede, e se percebe
no discurso dos moradores que a ideia de ecovila não é presente nas discussões internas.
Parece que não existe uma oposição elaborada ou alguma restrição com relação a este
movimento, mas apenas uma ausência de participação nele. Também não há atuação junto ao
movimento da economia solidária, embora também este conceito não seja desconhecido dos
moradores. Neste caso, o posicionamento parece muito similar ao com relação ao movimento
das ecovilas, em que se percebe uma forte articulação externa, como já apontado, é nas ações
de defesa ambiental que se referem diretamente à região. Neste sentido a atuação junto ao
175
poder público é sempre na busca do diálogo (ou da pressão, quando necessário) com vistas a
definir as melhores políticas para a localidade.
e) Dimensão Técnica/Ecológica
Além disso, há uma forte identidade ecológica com o entorno da ecovila. Os moradores
assumem a defesa do ambiente mais próximo, protegendo-o e recuperando em ocasiões
específicas (ver o caso do Projeto Águas Puras e da luta pela criação da reserva, por
exemplo). Isto se dá porque existe um princípio que perpassa à comunidade e que busca
estabelecer uma intensa relação com o meio ambiente, estando também definida
estatutariamente. Esta relação tem suas bases na própria espiritualidade vivenciada no local, e
estabelece que deve haver uma relação de respeito e proteção “ao meio ambiente, à vida
vegetal, animal e mineral” (FUNDAÇÃO TERRA MIRIM, 2003, p. 3), devendo haver ainda
um “equilíbrio harmônico da ecologia, da vida comunitária e do trabalho” (Idem, p. 3).
Dentro da filosofia defendida na comunidade, entende-se que há uma identidade entre a
própria natureza humana e o meio que o cerca, de forma que se estabelece uma relação
mística e profunda entre estes, o que define, por fim, um dos propósito “firmes e
permanentes” da FTM: “colaborar para o desenvolvimento de uma ecologia integrativa em
que a natureza interna ao ser humano e natureza externa são consideradas interdependentes
(...)” (Idem, p. 2).
o caso de alguns telhados, feitos de palha e de partes de construção feitas de madeira local,
como já referido. Isto, entretanto, não representa um uso sistemático ou pautados pela ideia de
bioconstrução.
Tomando-se os cinco elementos de Gilman (1991) que tipificam as ecovilas, temos para o
caso a seguinte situação: a) a comunidade do Terra Mirim possui uma escala humana, pelo
número de moradores e pelo fato de todos se reconhecerem e de poderem influenciar a
direção da comunidade; b) a experiência não pode ser considerada completa, nem mesmo
parcialmente, já que, como visto, ela tem poucos elementos que indiquem uma produção local
que atenda a demandas locais, restringindo-se à cozinha e à manutenção interna; c) com
relação a integração sem danos ao meio natural, a FTM tem algumas preocupações neste
sentido, entretanto parece ter ainda algum percurso a trilhar, especialmente se considerarmos
os ciclos da água e da energia, bem como as construções. O cuidado que existe com relação
177
Uma informação que pode ser relevante nesta discussão, especialmente para se destacar o
perfil da sustentabilidade ambiental da Terra Mirim (embora não tenha entrado no marco
analítico pelas informações a mais que demandaria para o seu cálculo), é a sua “Pegada
Ecológica”. Este indicador foi calculado num trabalho de monografia da Escola de
Administração da UFBA (MELLER, 2010) e aponta que a comunidade Terra Mirim apresenta
um valor de 1,7 gha/ano, muito inferior ao valor médio brasileiro (2,9 gha/ano), ao mundial
(2,7 gha/ano), além de estar, também, abaixo do nível máximo para a regeneração da Terra
(1,8 gha/ano) o que indica que as práticas adotadas são muito mais adequadas que a média
geral em se tratando da dimensão ambiental.
Com relação à leitura a partir do quadro da economia solidária, podemos perceber que a) o
caso em estudo apresenta expressões dos três princípios econômicos, conforme apontado na
dimensão econômica; b) existe autonomia institucional, especialmente considerando-se que
grande parte da receita é proveniente de contribuições dos moradores; c) os moradores e
voluntários participam dos processos decisórios; mas há uma papel preponderante da
liderança espiritual; d) a FTM interage fortemente com as comunidade do entorno; e) a
finalidade multidimensional se dá pelo fato de a comunidade ter outros objetivos para além
dos econômicos (esta dimensão é até, em certos momentos, deficitária, sendo um dos grandes
desafios da organização o seu desenvolvimento).
De forma geral, o caso aqui apresentado possui também uma boa aderência à sustentabilidade
178
11 A ECOOVILA 1 – ARCOO
A constituição da Ecoovila 1 foi precedida pela fundação da Arcoo, em 1992. Esta última é
uma cooperativa de trabalho fundada por um grupo de profissionais que se interessavam pelo
tema de construções sustentáveis, e que atuam em campos como planejamento urbano e
condominial, decoração e outros correlatos. A ideia da ecovila começou a se concretizar
efetivamente a partir da criação do setor de habitação na cooperativa, em 2001. Nesta fase de
operação a cooperativa passou a abrir a possibilidade de ingresso a todos interessados em
participar da proposta, a partir da ideia de que os moradores da ecovila fossem também
associados da cooperativa.
O terreno pôde ser adquirido no primeiro ano da criação do setor habitação, já que o valor
integralizado pelos sócios que haviam entrado até então já representava o montante necessário
para a compra. O plano urbanístico foi também realizado em seguida, restando a construção
das unidades individuais, que seria realizada conforme a disponibilidade financeira de cada
associado.
O terreno adquirido tem 26.000 m², e é situado na zona sul da cidade de Porto Alegre (bairro
Vila Nova), na Estrada João Passuelo. É uma região da cidade com urbanização recente, em
que se observa ainda uma baixa taxa de ocupação de terrenos, contendo ainda alguma
180
O plano proposto para o assentamento pode ser visto na Figura 69. Ele prevê a instituição de
uma área de jardim individual de 200 m² e outra de 18.000 m² para uso coletivo, sendo 8.000
m² destes reservados para o bosque nativo, preexistente no local.
A construção das casas se deu no transcurso dos anos seguintes, sendo que atualmente 23 das
28 casas individuais inicialmente previstas já foram construídas. Os projetos seguem um
padrão, tendo, entretanto, itens customizáveis, procurando equilibrar as propostas de
construção segundo os pré-requisitos ambientais definidos e as necessidades de cada família.
Alguns detalhes das construções podem ser vistas na Figura 70.
Figura 70: à esquerda, parreiras de duas residências, utilizadas como garagem; à direita bananeiras para o
tratamento das águas servidas
Para a execução dos trabalhos (produção das habitações), foi definido um subsetor de
trabalho, dentro do setor de habitação da cooperativa, através do qual todos os trabalhadores
que atuaram na construção foram também associados à cooperativa. Isto cumpriu uma dupla
função: o amparo legal aos trabalhadores e a sua integração aos princípios adotados pela
cooperativa.
181
A cooperativa, desde 2005 vem, entretanto, passando por dificuldades de gestão devido a
conflitos internos, sendo que algumas propostas iniciais não foram colocadas em prática,
devido a uma certa paralisação em suas atividades. As propostas hoje adotadas (e as previstas)
serão apresentadas na seção seguinte, ao se analisar o caso, segundo o modelo de leitura
proposto. Além disso, alguns elementos ligados à questão ambiental também tiveram
dificuldade de implantação, em função de imposições dadas pelo poder público municipal por
ocasião da liberação dos projetos, como por exemplo, os sistemas de tratamento da água.
Os conflitos surgiram a partir das divergências com relação ao uso do recurso financeiro
acumulado pelos sócios. Houveram desconfianças com relação à sua administração, de forma
que um processo de troca de acusações fez com que minasse os processos políticos de
construção coletiva da proposta. Tal conflito deu origem, inclusive, a litígios judiciais, que se
arrastavam até o momento da realização desta pesquisa.
a) Dimensão econômica
A iniciativa permitiu a geração de trabalho e renda de duas formas: pela geração de cerca de
40 postos na construção das casas e pela compra de materiais para as construções no próprio
bairro. O número de pessoas trabalhando diretamente na construção das casas variou durante
todo o processo pelo próprio ritmo das obras, e atualmente apenas uma casa encontra-se em
construção, com um número muito mais reduzido de trabalhadores.
ecovila, que deveria gerar outros postos de trabalho. Seguindo a ideia de redução dos custos
condominiais, cada casa deveria cultivar no espaço reservado para o estacionamento dos
carros uma parreira de uvas (Figura 70), cuja produção deveria cobrir os custos desta
manutenção. Além destas iniciativas, também estava previsto um espiral de ervas em cada
residência, a ser utilizado a critério de cada família para o seu consumo próprio. Estas
iniciativas foram parcialmente implantadas (a parreira de uvas e a espiral de ervas estão
produzindo em diversas residências), porém não foi colocada ainda em prática a utilização da
produção de uvas com o propósito da geração de recursos para a manutenção condominial.
b) Dimensão social/comunitária
Não se percebe uma coesão social forte na ecovila, pelo menos no presente. Tal fato pode ter
sido gerado pelos conflitos que ocorreram no interior da cooperativa, já citados previamente,
que dividiram e afastaram os moradores. As reuniões periódicas para discussão dos propósitos
comuns, que existiam na ecovila até a intensificação dos conflitos, não existem mais. Isto
provocou a decisão de converter a administração da ecovila aos moldes comuns adotados
pelos condomínios, em prejuízo da proposta de organização coletiva inicial.
Sobre esta dimensão, pode-se dizer que havia ainda, no projeto original, uma proposta de
utilização do Bosque do Silêncio para educação ambiental e arrecadação de fundos para
183
manutenção da ecovila, função que atualmente não está sendo utilizada, já que as intenções de
educação ecológica também não foram coladas em prática.
c) Dimensão cultural/espiritual
d) Dimensão política
A dimensão política é um dos traços marcantes da experiência, já que ela surgiu a partir da
forma organizativa de uma cooperativa, que envolveram discussões e articulações com todos
os membros da ecovila. Este elemento, entretanto, representou o centro da própria
desarticulação da construção coletiva a partir do momento em que os moradores passaram a
divergir mais seriamente sobre algumas questões específicas.
A experiência não se articula com outras similares (no movimento de ecovilas, por exemplo),
embora houvesse a intenção na sua fundação (prevista estatutariamente) em se vincular às
redes internacionais.
e) Dimensão ambiental/ecológica
orgânico) e captação das águas pluviais. Estas estratégias não foram adotadas, assim como
parte do esgoto também não está recebendo ainda tratamento conforme descrito acima.
Figura 73: Detalhes do duto de ventilação natural, do painel solar e do telhado verde
A experiência, ao ser posta junto as demais pode servir como um caso de contraste. Isto
porque, ao analisarmos a prática observa-se que, no momento atual, a Ecoovila 1 não
consegue experienciar todas as dimensões da sustentabilidade, mesmo que muitos de seus
185
elementos tivessem sido previstos e de fato tentados na sua constituição. As dimensões mais
intensamente desenvolvidas nesta experiência foram a política e a ambiental. Além de ambas
serem as intencionalmente mais trabalhadas, temos, de um lado, o fato de a ecovila surgir
justamente de uma proposta advinda da articulação em torno de uma cooperativa de trabalho
(e habitação) e de outro, a questão de, no seu planejamento, serem inclusas cuidadosamente
diversas soluções ambientais de baixo impacto e integradas ao meio ambiente.
Em que pese a maior ênfase nesta duas dimensões, destaca-se que a econômica e a social
também tiveram atividades planejadas, como as questões de geração de renda, compra local e
a preocupação com a educação ambiental. Alguns elementos da dimensão econômica
puderam ser colocados em prática na construção da ecovila, mas esta dimensão apresenta hoje
poucas atividades sendo realizadas. Já a dimensão social/comunitária apresentou poucos
elementos em ação, desde o início das atividades, e não se observou uma vivência
comunitária mais intensa entre os moradores.
Fato que chama atenção e que não pode deixar de ser destacado é o processo de
desarticulação vivido na cooperativa, por conta dos conflitos internos que surgiram. Tal
situação contribuiu fundamentalmente para a depreciação de algumas propostas, nas diversas
dimensões citadas. Com isso, embora nem todas as ações apontadas nos indicadores tivessem
sido previstas, boa parte delas era contemplada no planejamento inicial da ecovila.
Além disso, e provavelmente em função destas questões, a prática, hoje, não pode ser
plenamente entendida como sendo de economia solidária. Mais uma vez, enquanto proposta
havia uma aproximação maior com todos os critérios apontados. Embora, não haja uma
classificação rigidamente marcada para as práticas de economia solidária, algumas
características importantes não são mais observadas, como a sociabilidade comunitário-
política e a pluralidade dos princípios econômicos.
Devido a estes elementos, podemos concluir que esta é uma experiência que fornece um
grande espaço para o aprendizado, permitindo, com isto, a aquisição de conhecimentos para o
refinamento do quadro analítico proposto neste trabalho.
187
CONCLUSÃO
Apontamos como questão problema deste trabalho a seguinte pergunta: “em que medida a
lógica da sustentabilidade nas ecovilas se define enquanto economia solidária?”, o que
implicava no seguinte objetivo geral: “entender como as ecovilas se organizam em temos
socioeconômicos a partir da leitura das suas práticas de sustentabilidade e como elas se
articulam segundo os marcos desta outra economia.”
Em função destes propósitos, dois foram os pressupostos definidos para o presente trabalho.
Começaremos por analisar o segundo, que permitirá a utilização de uma cadeia de argumentos
mais fluida até se chegar ao primeiro:
Este pressuposto nos remete ao exercício de procurar definir o que há em comum entre as
práticas e o que as distingue. Dentre os elementos em comum, pontuando-se a observação das
experiências nacionais com os dados das internacionais, podemos evidenciar nove traços
gerais:
78
A de que cada indivíduo, no jogo de mercado ao buscar a satisfação do seu interesse egoísta estaria
satisfazendo automaticamente aos interesses de outros indivíduos.
79
Aqui não vale a contra-argumentação tipicamente liberal de que “qualquer atividade de mercado traz em si
benefícios, traduzidos no interesse de compra de alguém”. Primeiro, porque há muitos produtos em que isto
poderia ser colocado claramente em dúvida, como o consumo de cigarros, por exemplo. Segundo, e mais
importante, é porque o que se quer frisar, neste caso, é que a decisão normalmente tem um cunho mais
substantivo, ou seja, não está baseado na lógica de “oportunidade de mercado”, embora esta possa ser
avaliada antes da decisão de empreender.
190
Neste sentido, os empreendimentos suportam uma certa diversidade, mas estão mais ligados à
prestação de serviços (conquanto apareçam produtos como a confecção de painéis solares –
fotovoltaicos inclusive), que vão desde assessorias até tratamentos de saúde (geralmente na
lógica holística), passando por serviços ligados à área de TI e de manutenção e jardinagem. É
interessante notar também que, apesar da orientação para a autossuficiência local, a maioria
destes serviços acaba atendendo mais ao público externo da ecovila, seja ele de visitantes ou
não.
Como muitas vezes a vinculação entre a produção e o consumo local acaba não sendo
atendida espontaneamente pelas iniciativas individuais, os empreendimentos coletivos
encampados pela comunidade acabam, estrategicamente, assumindo alguns papéis neste
processo. Este é o caso, por exemplo, da produção de alimentos local, das cozinhas
comunitárias, dos serviços de manutenção e dos fundos financeiros coletivos. Além desses,
geralmente também são de responsabilidade coletiva os centro de formação e os sistemas de
acomodação (com algumas exceções, que aparecem também por iniciativas de indivíduos).
Muitos destes empreendimentos aparentemente só podem ser organizados assim
(comunitariamente), pela sua natureza ou pela necessidade de legitimação. Por fim, todos
estes elementos estão presentes em todos os casos estudados, exceto o cultivo de alimento
organizado coletivamente, que não se dá em Terra Mirim (embora já tenha sido feito e há um
espaço reservado para esta prática, conforme planos da comunidade) e em Crystal Waters,
que, aparentemente conta com a produção de alimentos apenas no contexto
familiar/doméstico.
c) Os vínculos estabelecidos entre os moradores são escolhidos. De fato, isto não apresentaria
novidade, já que poderia ser tomado como um traço típico de uma comunidade intencional.
Entretanto, quando se analisa esta questão, deve-se compreender o propósito das pessoas em
aderir a uma ecovila: neste caso, ele não está só ligado à questão ambiental, mas também, à
social. Normalmente (como indicam os depoimentos colhidos), a intenção está ligada à
possibilidade de (re)construção de laços sociocomunitários, ou seja, da (re)definição de
vínculos perdidos pela forma de vida formada pela sociedade de mercado. Além disso, a
busca é por uma vida “integral”, ou seja, com a experimentação saudável nas diversas
dimensões da vida humana, o que incluiria também a questão espiritual. Isto não torna,
necessariamente, a convivência social mais simples, já que se observa que uma das limitações
das ecovilas está justamente na certa rotatividade e flutuação das suas populações (as
experiências do IPEC e da FTM já passaram por diversas dificuldades do tipo, estando,
aparentemente a população da FTM mais estabilizada no momento). No entanto, este fato faz
191
com que a questão da sociabilidade seja trabalhada de forma consciente nas ecovilas. Reflexo
disto, é que geralmente são instituídos processos de resolução local de conflitos, nos mais
diversos formatos.
e) O trabalho com educação é central nas ecovilas. Todas as ecovilas contam com instituições
internas constituídas com este propósito (geralmente são denominados ecocentros, centros de
educação ecológica ou similares). Grande parte do tempo e dos recursos são despedidos em
torno destas atividades que são, por outro lado, uma de suas principais fontes de recursos. São
ofertados, de forma mais ou menos contínua, diversos tipos de cursos, que variam tanto em
tempo de duração, nível de imersão ou temas tratados. A maioria dos temas está relacionado
com a questão ecológica, espiritualidade, permacultura e outros associados à questão das
ecovilas. Nos casos sob estudo, uma prática comum é a também a oferta de cursos para as
comunidades do entorno, especialmente no sentido de promover a disseminação das práticas
agroecológicas, mas também no de realizar a autodesenvolvimento destas comunidades. No
caso da FTM, há ainda outra particularidade, que é a constituição de uma escola com
educação complementar para os jovens das comunidades do seu entorno. Neste caso, existem
práticas similares, como a da ecovilla Crystal Waters, por exemplo. Aqui aparece um
elemento de orientação para o exterior, dentro do que seria uma das vocações das experiências
e quem sabe um dos seus serviços mais relevantes prestados à sociedade como um todo.
assunto); todavia, elas parecem receber críticas com relação a este aspecto (ver Fotopoulos
(2000), Garden (2006a) e Dawson (2009)). Dawson (2009) afirma que este elemento é
considerado vital nos processos de consolidação e continuidade das ecovilas, especialmente
frente a um contexto de mudanças sociais severas que provavelmente virá em breve. Isto
porque, somente com o apoio das comunidades do entorno, que se dará mediante uma
interdependência recíproca é que a sobrevivência da ecovila poderá se dar.
i) Há uma redefinição na relação com o meio natural, tanto em termos de postura (valores e
práticas individuais), quanto em termos tecnológicos e comunitários. Isto está presente em
elevado grau, até onde se pode perceber, em todas as experiências apontadas. Aqui vale
destacar que prevalece mais a noção de consideração pela natureza pela seu valor intrínseco,
ou seja, como um ente que merece respeito e um tratamento digno, como um sujeito,
definindo-se uma relação, em muitos casos, mística com o meio natural, numa lógica que
mais se aproxima da ecologia profunda. Tal visão prevalece sobre aquela que trata de uma
ética intergeracional, no sentido da garantia dos direitos da geração futura, nos moldes das
definições tradicionais do desenvolvimento sustentável e das discussões sobre o princípio
responsabilidade. Isto se traduz nas práticas de restauração ecológica e de conservação da
biodiversidade do entorno, bem como no uso de tecnologias ambientais. Estas tecnologias tem
o viés de tecnologias sociais, ou seja, apresentam baixo impacto, tem baixo custo, e são de
simples confecção e aplicação. Geralmente elas são também socialmente referenciadas e
desenvolvida para e a partir das especificidades locais, o que permite sua fácil disseminação.
Uma exceção com relação às tecnologias é a comunidade do Terra Mirim, posto que, utilize
algumas técnicas, como reciclagem e compostagem, além de cultivo orgânico ainda não
apresenta um uso disseminado destas tecnologias.
194
A partir destes nove traços mais gerais, poderíamos buscar uma definição mais concisa para as
ecovilas. Tomaremos a definição de Gilman (1991) como ponto de partida, redefinindo alguns
de seus elementos. Em primeiro lugar, devemos relembrar as limitações de alguns dos pontos
elencados pelo autor. O primeiro deles se refere à definição de “assentamento completo”. Este
é um conceito que apresenta alguma dificuldade para ser utilizado como distintivo de uma
prática de ecovila, já que uma comunidade nunca conseguirá ser completa; mesmo na
hipótese de ela adquirir certa autossuficiência e se fechar para a troca com o mundo exterior,
provavelmente haveria grandes prejuízos ao modo de vida dos seus moradores. O próprio
Gilman assume que isto não seria desejável. Poder-se-ia afirmar, então, que este é um
conceito a ser relativizado, mas até que ponto? Autossuficiência em produção de alimento é
suficiente, ou precisaria algo mais? O que seria este algo mais? Seria necessário um parâmetro
para definir este elemento, pois a grande maioria dos assentamentos humanos (sendo ele
ecovila ou qualquer outro), a partir de um certo tamanho conta com uma série de serviços
oferecidos localmente. Parece que mais importante do que a quantidade de serviços e
produtos seria o como eles se organizam e como eles se inserem na dinâmica da comunidade
como um todo.
Neste sentido, deveríamos considerar que as ecovilas, sob este aspecto, redefinem (ou
superam) o paradigma econômico dominante: há o rompimento com a lógica reducionista de
mercado, pela definição de uma economia plural, que inclui outros princípios (que implicam
em outras práticas, como as ligadas à ideia de redistribuição e reciprocidade já citadas) e que
restringe o mercado a certos espaços e atividades e o submete, no âmbito local, a outros
imperativos, realizando uma “reimbricação da economia na sociedade”, se fôssemos utilizar a
linguagem polanyiana. Estes outros imperativos estariam ligados às questões comunitárias e
ambientais, o que levaria ao fato de os empreendimentos estarem, por um lado, ligados aos
interesses da comunidade e, por outro, submetidos às determinações das questões ambientais.
Neste caso, o meio ambiente não seria só mais uma variável a mais a ser considerada na
equação da viabilidade ou das definições de investimento 80, mas sim um imperativo
categórico.
Outro ponto que merece uma análise mais aprofundada é o que se refere ao “desenvolvimento
humano saudável”. O problema deste tipo de consideração é que “desenvolvimento humano
saudável” é uma assertiva por natureza carregada de valor. Cada cultura e, talvez, cada ecovila
80
As decisões de investimento relativizam sempre a variável ambiental quando os prováveis benefícios
econômicos superam os prováveis impactos ambientais negativos. Isto é especialmente válido em decisões
que envolvem empreendimentos de grandes proporções.
195
pode ter sua própria consideração sobre o que seria saudável ou não. É claro que alguns
elementos provavelmente seriam universais, especialmente se considerarmos a saúde física.
Entretanto, a definição comporta uma dimensão substantiva, nos moldes apontados por
Guerreiro Ramos.
Com relação ainda a este ponto, uma limitação que consideramos importante é que apesar da
definição tocar na questão do desenvolvimento humano, não fala nada sobre os indivíduos nas
ecovilas. Teríamos ainda que levar em conta a questão da intenção, conforme comentado
acima (item c). Aderir a uma ecovila significa abrir mão de práticas comuns e mesmo
estimuladas pela sociedade moderna, como o consumo exagerado e a busca pelo conforto sem
levar em consideração as consequências desta busca. Chega um momento, no entanto, que a
renúncia a estas questões não é mais um custo, mas uma necessidade individual.
Por fim, há um elemento que consideramos relevante numa definição de ecovila, e que não
aparece na definição de Gilman. É o fato de estas práticas serem orientadas para fora, ou
seja, realiza ações voltadas também para a sociedade como um todo, pelo menos no contexto
das experiências que analisamos. Isto é o oposto do que ocorria com a maioria das
comunidades hippies dos anos 60 e 70 ou das comunidades ligadas ao socialismo utópico do
século XIX, que estavam mais voltadas para si e buscavam o isolamento da sociedade da
época, na tentativa de, a partir do seu movimento, construir uma sociedade melhor. As
ecovilas estão conectadas com o mundo de diversas formas (algumas delas indesejáveis,
através do consumo de embalagens ou combustível fóssil, por exemplo), quer por meio das
suas práticas de educação sobre as questões ambientais, sempre muito concorridas em termos
de participação, quer por meio da prestação de serviços diversos (tanto a partir dos seus
empreendimentos individuais quanto a partir dos empreendimentos comunitários) ou quer
ainda por meio da articulação com as comunidades do entorno e com alguns espaços políticos
(consideradas as ressalvas já feitas pouco acima). Tudo isto se dá sem o descuido dos
processos internos (especialmente os políticos e sociais). Parece que as ecovilas vem
196
buscando encontrar o ponto ideal entre as duas questões: deve voltar-se para fora, ao mesmo
tempo em que tenta-se preservar seus princípios de constituição.
Sobre a questão da diferenciação entre as práticas, vemos que a noção de “colas” dentro da
ecovila faz sentido apenas até certo ponto. Fica evidente, nas análises dos casos, que não é
apenas um elemento que promove a coesão dentro da experiência, mas a combinação de quase
tudo o que se faz na comunidade, numa relação complexa entre diversos fatores. Assim, por
exemplo, é difícil afirmar que a questão técnico/ecológica ou a questão espiritual é o que
principalmente mantém a pessoa dentro da experiência. O que se dá é que a vivência integral
do indivíduo, em tudo o que ela oferece, é que cumpre esse papel. Isto porque as próprias
experiências das ecovilas vêm atuando na construção deste holismo, já que trabalham,
simultaneamente e com muito cuidado, as questões sociais, comunitárias e espirituais em
conjunto com a questão ambiental.
Neste sentido, não se quer afirmar aqui, que as práticas são uniformes. Ao contrário, a história
de cada comunidade acaba definindo uma (ou mais) expertise, em função dos eventos ligados
à sua fundação, dos membros fundadores e do perfil dos moradores que vão se agregando a
ela. A diferença é que aqui não estaríamos trabalhando mais com a noção de diferenciação
pela forma de coesão social, mas sim pela especialidade criada em função deste contexto
histórico-social.
Tomando-se isto como ponto de partida, verifica-se uma diferença importante entre as duas
principais práticas analisadas no presente trabalho: enquanto na Fundação Terra Mirim,
existe um desenvolvimento maior da dimensão cultural/espiritual, no Instituto de
Permacultura e Ecovilas do Cerrado a dimensão técnica/ecológica se apresenta em
evidência. No primeiro caso, isto pode ser explicado pelo perfil da experiência dado a partir
da sua fundação, ligado à ideia de desenvolvimento espiritual e de uma relação mística com a
natureza. No segundo, pela intenção, também declarada desde a fundação, de trabalhar
fortemente a questão das tecnologias ambientais com base na permacultura, bem como a sua
difusão.
Este pressuposto remete à questão principal deste estudo e procura perceber se as ecovilas
seriam, de fato, práticas de economia solidária. De uma forma muito simples pudemos
perceber, que as práticas brasileiras (especialmente IPEC e FTM) cumprem as cinco
características básicas que definem um empreendimento de economia solidária, e que são
apresentadas no enunciado do pressuposto. Também as práticas internacionais seriam
enquadradas nesta classificação provavelmente com muito poucas restrições.
Outras considerações que cabem neste espaço de conclusão é sobre como podemos perceber
as ecovilas a partir da ideia de utopia. Se formos considerar as utopias até o século XVI (que
chamamos de “ideais”), o que há em comum com algumas delas é basicamente o sonho de
uma sociedade mais perfeita. Neste caso, as cidades utópicas estavam sempre em lugares não
conhecidos81, distantes no espaço ou no tempo, o que levou a criação do senso comum de que
utopia seria um sonho, uma fantasia, algo não realizável, conquanto bom.
As ecovilas não podem ser entendidas desta forma, porque já são expressões concretas
81
Conforme indica a própria palavra criadas por More: u-topia signfica o não-lugar
198
(embora com suas limitações) de grupos de pessoas. Dizemos isto, não por um purismo
conceitual, que tornaria o comentário evidentemente dispensável, mas pela constatação da
criação de mecanismos que vêm permitindo a experimentação de alguns elementos do que
seria este “sonho”. Assim, cabe discutir se o projeto de sociedade defendido e tentado pelas
ecovilas deveria ou não ser rotulado como “não-alcançável”.
Uma crítica que se faz às descrições de sociedades utópicas é que elas seriam irrealizáveis
porque estariam desconectadas dos processos sócio-históricos da humanidade. Esta é,
entretanto, uma crítica que não cabe às experiências ora em análise, assim como, em certa
medida às ligadas ao socialismo utópico. Sobre estas, entretanto, pesaria uma outra: a da
ineficácia do tipo de ação escolhida para uma mudança social ampla. Esta crítica, por sua vez
poderia ser dividida em outras duas: uma mais “externa”, que considera a inevitabilidade e o
determinismo da lógica de mercado e outra mais “interna”, que aponta que as ecovilas não
teriam os elementos suficientes para promover uma mudança nos paradigmas que sustentam
atualmente o sistema capitalista.
A primeira delas está ligada àquela noção liberal dominante desde o século XIX e atualmente
reforçada pela adesão da esquerda à chamada “terceira via” (GIDDENS, 2005), que diz que
por terem todas as demais alternativas fracassadas resta somente aceitar a dominação do
mercado e da globalização econômica; neste caso, o máximo que poderia ser feito seria
ajustar um ou outro elemento de imperfeição. Qualquer outra tentativa seria mera utopia ou
irrealismo. A esta crítica responderíamos a partir do argumento de Polanyi (2010), de que o
mercado não é uma instituição decorrente da natureza humana, nem tampouco o estágio final
de um processo evolutivo, mas é politicamente instituído, cuja dominação se estabelece com
base num conjunto de normas e instrumentos de coerção que o mantém válido; como tal, ele
pode ser transformado ou substituído por mudanças institucionais equivalentes.
Oporíamos, ainda a este argumento, um outro, que diz que esta visão está repleta do
irrealismo do qual acusa as suas alternativas: Polanyi (2010) já afirmava que uma sociedade
com base no mercado autorregulado seria inescapavelmente uma utopia, pois um tal sistema
implica na desimbricação total da sociedade, o que não é possível, pois representaria a
dissolução desta última. A este argumento, adicionaríamos um outro, mais atual, que
confronta este sistema com os limites ecológicos do planeta: neste caso, uma continuação
forçada dos processos de competição e acumulação frente às profundas crises que se
avizinham de esgotamento recursos (especialmente petróleo), redução na produção de
alimentos e de mudança climáticas conduziriam a um cenário distópico ao estilo já desenhado
199
O segundo tipo de crítica, a mais interna, já que proveniente daqueles que acreditam que a
mudança radical no sistema sócioeconômico é possível, pode ser exemplificada àquela já
apresentada no capítulo 3.
Além disso, não parecem práticas ligadas a um tipo de irracionalismo, que seria dada pela
prática espiritual. Por irracionalismo, entendemos, com base no autor, que as considerações
num processo de interação democrática não partiriam dos fatos e da sua análise racional, mas
sim de elementos dados pelas determinações espirituais. Não é isto, contudo, que se observa,
novamente nos casos em tela. A prática espiritual, de forma geral, assume mais um caráter
individual e funciona como um delineador dos valores a serem adotados pelo indivíduo na sua
prática diária, inclusive nos momentos de interlocução com o outro. Seria de se perguntar,
neste caso, se um indivíduo qualquer pode se despir dos seus valores na ação comunicativa
com os outros.
Não devemos deixar de considerar que existe realmente uma limitação mais ou menos
evidente nas práticas, que é a sua articulação, tanto interna (do movimento), quanto externa,
na sua interação com outros em movimentos de mudança social. No primeiro caso, percebe-se
que, no Brasil, as experiências não se “conversam”, e, embora eventualmente alguém de uma
já tenha ouvido falar de outra, elas pouco se conhecem. Assim, forçoso é concordar em parte
com Fotopoulos (2000), já que não existe uma agenda comum com pelos menos alguns
objetivos e estratégias compartilhados. A formação (ou o fortalecimento) de uma rede
nacional poderia contribuir muito para o avanço das práticas, especialmente no sentido de
construção desta agenda e da busca da articulação com a sociedade e com o poder público em
diversos níveis.
A limitação da articulação externa está ligada, justamente, com esta pouca interação com o
poder público, especialmente na formulação das políticas públicas em níveis estaduais e
federais, e que se observa também no nível de cada experiência. Tal deficiência faz com que
não sejam aproveitados os recursos do Estado para o desenvolvimento do campo.
82
Ficções apresentadas no cinema nos anos 80 (Mad Max) e 90 (Waterworld), os dois filmes apresentam um
cenário pós apocalíptico em que grupos brigam em um mundo sem lei pela posse de escassos recursos, tendo
como centro a disputa pela principal fonte de energia disponível – a gasolina.
200
Neste caso, uma aproximação de cada experiência e do conjunto das ecovilas de forma
articulada com outros movimentos, como o da economia solidária, poderia ser benéfico em
duplo sentido. Num primeiro, as ecovilas poderiam aproveitar a inserção que vem sendo
conquistada por este movimento, garantindo os recursos a que nos referíamos; num segundo
sentido, há uma perspectiva de sustentabilidade nas ecovilas que envolve uma mudança
radical que traria benefícios para a proposta encampada pelo movimento da economia
solidária. A identidade de propósitos evidenciada indica que esta junção de forças poderiam
aumentar a massa crítica que se movimenta em direção à desejada mudança.
a) Uma rotatividade relativamente grande dos moradores, o que implica numa dificuldade de
estabilização das práticas; há uma pequena diferença entre os casos apresentados, mas é um
problema presente em ambos, assim como nas experiências internacionais (GARDEN,
2006b).
c) Dificuldade de interação com movimentos sociais, de forma geral e com o poder público,
especialmente nos níveis mais ampliados (estados e união);
Finalmente, como limitação do presente estudo vemos que conhecer mais o campo no Brasil
permitiria reforçar (ou talvez revisar) algumas conclusões, especialmente referente às
características das ecovilas neste contexto. Já que um dos seus propósitos é o
desenvolvimento teórico do campo, um painel mais ampliado das propostas poderia
consolidar esta construção.
– Em função da colocação anterior, seria pertinente ampliar o estudo para mais casos no
contexto nacional, inclusive indo para além das experiências vinculadas à GEN.
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Como não é um propósito central do trabalho, que está mais ligado à análise de experiências
com relação a uma possível noção de sustentabilidade (e as discussões teóricas que tal noção
suscitaria), nesta seção apresentaremos um exercício para a construção de indicadores
quantitativos para a sustentabilidade dentro dos marcos propostos. Este exercício terá como
propósito, além de esboçar o caminho na direção de um indicador que atende à discussão
realizada, o de ajudar na comparação das experiências apresentadas.
Apresentamos, desde já, algumas limitações que este sistema de indicadores apresentados
teria:
a) Ele é calculado em cima de uma “sustentabilidade ideal”. Não sabemos exatamente onde
ela está na escala das variáveis, e a determinação deste ponto demandaria diversos estudos
adicionais, em cada uma das dimensões. Convencionalmente, para se resolver esta questão,
faz-se uma parametrização em que a melhor prática existente representa o valor máximo
possível da escala. Entretanto, este máximo nem sempre é o mais desejável ou o mais
conveniente, tendo-se em conta as necessidades humanas e ambientais.
214
b) Assumidamente cada dimensão tem peso igual. Tal definição é, de certa forma, arbitrária, e
parece que a definição da relação de importância entre as dimensões passaria por uma
“escolha” de uma dada sociedade, com base nos seus próprios parâmetros de avaliação do que
é adequado ou não.
c) A própria definição de algumas variáveis deveria passar por processo parecido, já que
também demandam julgamento valorativo (de fato, isto representaria também uma conexão
com a limitação colocada no primeiro item). As que foram escolhidas para este trabalho
baseiam-se nos debates em curso sobre as práticas de ecovilas e de economia solidária, neste
último especialmente levando-se em conta o contexto brasileiro.
d) A definição dos valores das variáveis deveria ter um resultado dado a partir da análise de
mais de um avaliador, melhorando a validade aos dados.
Todos os agrupamentos são realizados com base em médias simples, ou seja, sem conferir
maior peso a dado algum (conforme descrito na limitação “a”). Eles foram reagrupados nos
componentes e, então, nas dimensões, seguindo o critério citado, independente do número de
variáveis que cada um dos componentes e dimensões têm.
215
Parâmetros para
Avaliação
mensuração
0 1 IPEC FTM Ecoovila 1
Dimensão Econômica 0,71 0,60 0,31
Impacto gerada na distribuição de renda do local 0,73 0,50 0,40
Para todos
moradores/
1 Postos de trabalho criados Nenhum 0,8 0,5 0,4
comunidades
do entorno
2 Rendimentos proporcionados Baixos Altos 0,6 0,5 0,3
3 Utilização de insumos locais Baixa Alta 0,8 0,5 0,5
Articulação entre diferentes lógicas econômicas (mercantis, não-mercantis e não-monetárias) 0,90 0,90 0,30
Equilíbrio
Utilizações alternativas de recursos, além dos mercantis: auto-produção, trocas, utilizações coletivas (finanças Apenas
4 entre 0,9 0,9 0,3
solidárias), fontes governamentais, etc. mercantil
alternativas
Formato dos empreendimentos 0,70 0,70 0,55
Somente Somente
5 Tipo de empreendimentos (individuais, ou coletivos) 0,7 0,7 0,5
individuais coletivos
Apropriação Distribuição
6 Forma de distribuição dos excedentes 0,7 0,7 0,6
individual total
Produção local 0,50 0,30 0,00
7 Nível de atendimento das demandas internas pela produção local Baixa Alta 0,5 0,3 0,0
8 Tipo de produção e prestação de serviços existentes no local Descritivo
Dimensão Social/Comunitária 0,81 0,86 0,30
Coesão social entre os moradores Coesão social entre os moradores 0,88 0,93 0,25
9 Tipo de sociabilidade existente Secundária Primária 0,9 0,9 0,2
10 Existência de confiança entre as pessoas Baixa Alta 0,8 0,9 0,1
11 Natureza dos vínculos estabelecidos Fracos Fortes 0,8 0,9 0,2
12 Nível de reconhecimento entre os moradores Nenhum Pleno 1,0 1,0 0,5
Saúde 0,65 0,75 0,45
13 Acessibilidade aos tratamentos de saúde Nenhum Pleno 0,7 0,6 0,8
14 Existência de integração entre tratamentos ortodoxos e complementares Nenhum Pleno 0,6 0,9 0,1
Educação 0,90 0,90 0,20
15 Existência de práticas de educação, especialmente ligados à questão ecológica Nenhuma Frequente 0,9 0,9 0,2
Parâmetros para
Avaliação
mensuração
0 1 IPEC FTM Ecoovila 1
Dimensão Cultural/Espiritual 0,70 0,80 0,23
Identidade das pessoas com a experiência 0,60 0,80 0,30
16 Grau de enraizamento dos moradores com as atividades realizadas (identidade cultural) Baixo Alto 0,6 0,8 0,3
Atividades culturais
17 Tipos de atividades artísticas/culturais existentes Descritivo
Expressões culturais materiais 0,80 0,70 0,40
18 Reflexos da cultura na arquitetura e desenho da ecovila Baixo Alto 0,8 0,7 0,4
Manifestações espirituais 0,70 0,90 0,00
19 Existência e forma de realização das práticas (abertura para diferentes tipos, realização comunitária, etc) Nenhuma Frequente 0,7 0,9 0,0
Dimensão Política 0,67 0,72 0,32
Participação dos moradores 0,70 0,80 0,65
20 Nível e tipo de participação dos moradores (tomada de decisão democrática) Baixa Alta 0,8 0,9 0,6
Descentraliza
Centralizado,
21 Estilo de liderança existente do, 0,6 0,7 0,7
autocrático
democrático
Tipo de ação pública no território 0,70 0,75 0,15
22 Processos de discussão ampliada (fora da ecovila) existentes Fracos Fortes 0,8 0,8 0,1
23 Convivência com comunidades do entorno Baixa Alta 0,6 0,7 0,2
Articulações externas 0,60 0,60 0,15
Articulação com redes do movimento de ecovilas ou outras pertinentes (meio ambiente, economia solidária,
24 Fraca Forte 0,6 0,6 0,1
assistência social, etc...)
25 Tipo de interação com o poder público e com políticas públicas Fraca Forte 0,6 0,6 0,2
Dimensão Técnica/Ecológica 0,82 0,48 0,40
Uso de tecnologia social 0,90 0,45 0,65
Tipo de tecnologia empregada (originalidade e se é socialmente referenciada ou adaptada de outro local ou Totalmente Totalmente
26 0,9 0,4 0,6
convencional) convencional social
Totalmente Totalmente
27 Origem dos recursos 0,9 0,5 0,7
externo local
Uso de tecnologia ambiental 0,75 0,35 0,20
28 Existência de produção orgânica Inexistente Suficiente 0,6 0,0 0,0
29 Cuidados com relação ao meio ambiente nas atividades de produção ou prestação de serviços Fracos Fortes 0,9 0,7 0,4
Identidade ecológica 0,90 0,80 0,50
30 Tipo de convivência com o sistema ecológico do entorno Predatória Integrada 0,9 0,8 0,5
Parâmetros para
Avaliação
mensuração
0 1 IPEC FTM Ecoovila 1
Esquemas de reciclagem 0,80 0,40 0,30
31 Tipos de sistemas de reciclagem (e reutilização) existentes Inexistentes Plenos 0,8 0,4 0,3
Utilização da água 0,90 0,40 0,30
32 Como a água é captada e descartada (efluentes) Descritivo
33 Nível de tratamento e reciclo Baixo Alto 0,9 0,4 0,3
Utilização de energia 0,70 0,50 0,50
34 Fonte da energia utilizada Descritivo
35 Nível de utilização de tecnologia renovável Baixo Alto 0,7 0,5 0,5
Tipo de técnicas construtivas adotadas 0,60 0,37 0,43
Totalmente
Totalmente
36 Tipos de técnicas construtivas utilizadas convencionai 0,9 0,4 0,6
alternativas
s
37 Participação de materiais locais na construção Baixa Alta 0,8 0,5 0,5
39 Nível de utilização de materiais tóxicos Alta Baixa 0,1 0,2 0,2
Restauração ecológica 1,00 0,60 0,30
40 Adoção de técnicas de recuperação ecológica ou de permacultura ou outros similares Baixa Alta 1,0 0,6 0,3
Econômica
1,00
0,50
0,00
IPEC
Terra Mirim
Ecoovila 1
Figura 74: Indicador de sustentabilidade plotado por dimensão e por experiência. Fonte: elaboração própria
Pelo gráfico percebe-se que o IPEC apresenta-se como o caso mais desenvolvido na dimensão
técnica/ecológica, como já havia sido colocado anteriormente. Apresenta, ainda, algumas
práticas mais consolidadas também na dimensão econômica, o que pode ser justificado
especialmente pelo fato de que consegue obter, enquanto organização, recursos mais estáveis.
Já nas dimensões cultural/espiritual, social/comunitária e política, percebe-se que a FTM
apresenta práticas um pouco mais avançadas no sentido da sustentabilidade proposto. Como
também pode ser explicado pelas colocações das seções anteriores, observa-se que esta
experiência define de forma mais clara suas práticas culturais e espirituais, além de apresentar
uma base social mais sólida pela relação mais consolidada que um número maior de seus
moradores têm com a experiência, em comparação aos outros dois casos. Tal identidade pode
justificar ainda a diferença na dimensão política, que faz com que seus moradores tomem
mais parte dos processos decisórios locais, já que ambas as experiências (IPEC e FTM)
apresentam uma relação com o seu entorno muito similar. Por fim, situando a experiência da
Ecoovila 1, observa-se que ela apresenta todas as dimensões menos desenvolvidas, o que é
condizente com a análise e a apresentação de resultados feitas na seção anterior. Neste caso, a
dimensão de maior destaque, como também pôde-se perceber anteriormente é a
técnica/ecológica, pelas soluções implantadas no âmbito das tecnologias ambientais.
Seguindo no mesmo exercício, se fôssemos definir um indicador mais geral (que no nosso ver
teria menos validade em termos de análise, pois não permite ver as singularidades como a
visualização por dimensões ainda permite, além de considerar todas as dimensões como peso
igual), o IPEC apresentaria um índice de 0,74, a FTM de 0,69 e a Ecoovila 1 de 0,31. A
diferença que se apresenta entre os dois casos mais desenvolvidos é justamente o destaque na
dimensão técnica/ecológica obtida pelo IPEC, que não é compensado pela pouca diferença a
mais que a FTM tem nas outras três dimensões.