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Resumo
1
Mestre em Antropologia Social pelo PPGAS/USP, pesquisador do CEstA e membro do Centro de
Trabalho Indigenista (CTI). email: lucaskeese@gmail.com
No jogo de temporalidades que seguirá, comecemos voltando um pouco ao
passado.
A missão e a selva
É muito comum ouvir dos Guarani Mbya que ocupam a região do Sudeste e
Sul brasileiros que os Guarani são um dos povos que há mais tempo resistem à
invasão dos jurua (como denominam os não indígenas), pois seu território foi um dos
primeiros a ser invadido pelos europeus no século XVI e onde o processo de
colonização se deu logo de início de modo intenso e em várias frentes.
Em meio a esses turbulentos conflitos que mudavam brutalmente a paisagem
de seu território, uma das estratégias de resistência foi a participação no projeto das
missões jesuítas na bacia platina, experiência que, em termos gerais, foi do início do
século XVII até a segunda metade do século XVIII, ou seja, pouco mais de 150
anos. A adesão guarani às missões jesuítas foi motivada, entre outros fatores, como
forma de resistir aos ataques dos bandeirantes paulistas para captura de escravos
indígenas para São Paulo.2
Nas reduções, os Guarani viviam concentrados aos milhares, numa
organização espacial como uma pequena cidade, e produziam mais e melhor que a
maioria dos demais empreendimentos coloniais da época. Além disso, as missões
propiciaram, após uma série de fracassos iniciais, que os Guarani resistissem
militarmente aos ataques paulistas, infligindo importantes derrotas aos bandeirantes,
como na Batalha de Mbororé, quando em 1641 os Guarani missioneiros
conseguiram impor um limite à expansão paulista, que já chegava às margens do rio
Uruguai.
Tal estratégia de adesão por parte dos Guarani ao projeto jesuíta é complexa
no que concerne as negociações, apropriações e adaptações de ambos os lados
desse processo, cuja história está repleta de crises e conflitos internos e não deve
2
Conforme apontou Monteiro (1994), os portugueses em São Vicente utilizaram-se da já existente
dinâmica de guerras de vingança que marcava a relação entre os povos tupi-guarani para intensificar
as incursões bélicas e alterar a finalidade da captura dos cativos: sai a antropofagia e a vingança, e
entra o acúmulo de mão de obra escrava para a nascente economia colonial paulista. Estima-se que
centenas de milhares de Guarani foram capturados para servirem de escravos nos arredores de São
Paulo, uma cifra provavelmente maior que o total da população guarani existente no Brasil, Paraguai
e Argentina, que hoje é de aproximadamente 200.000 (Guarani Continental, 2016). Assim, o primeiro
ciclo de acumulação de riqueza de São Paulo e que garantiu o caminho para tornar-se a metrópole
que é hoje, foi baseado na exploração da mão de obra indígena, principalmente Guarani.
ser reduzida a uma total subordinação indígena aos jesuítas, nem a um idealizado
retrato de comunhão social. Se por um lado os Guarani tiveram que se adaptar a
outras formas de habitação, por exemplo, no intuito de se manterem livres da
escravidão colonial, aos padres, por sua vez, citando John Monteiro, “não bastava
apenas ser jesuíta, portador da verdade cristã ou de uma civilização superior, como
quer uma parte da bibliografia jesuítica: os grandes missionários foram justamente
aqueles que mais bem se adequaram ao processo de formação de lideranças
indígenas” (Monteiro, 1992, p. 488). Segundo o autor, os menos hábeis nessa tarefa
corriam grande risco de contestação, que não raro redundava em sua morte.
Contudo, tal estratégia de permanecer junto aos jesuítas nas missões não era
a única colocada em prática pelos Guarani. Ela coexistia com uma outra importante
vertente de resistência. Estima-se que uma variedade considerável de grupos
guarani sobreviventes dos apresamentos coloniais não aderiu às missões jesuítas.
(Susnik, 1965; Dobrizhoffer, 1967 [1783]). Acossados pelos paulistas e Tupi que
vinham do leste e pelos espanhóis e povos chaquenhos que vinham do oeste, os
esconderijos possíveis concentravam-se sobretudo em terras mesopotâmicas, nas
densas matas dos afluentes ocidentais do caudaloso rio Paraná.
Apesar da escassez de dados mais precisos a respeito, é abundante nas
fontes coloniais a alcunha generalizante com que esses grupos guarani eram
chamados: os “monteses”, ou variações em guarani deste significado: kaygua,
kayngua, ka’aguigua, kaiowa, isto é, “habitantes das selvas”, dos “montes”, etnônimo
empregado de modo genérico até o início do século XX, e que ainda hoje é utilizado
como autodenominação por um dos grupos de língua guarani no Brasil, os Kaiowa
do Mato Grosso do Sul.
Os Guarani “monteses” do período colonial viviam dispersos em coletivos
relativamente pequenos em comparação com a densa demografia das missões. A
região de matas que esses grupos habitavam permaneceu inacessível à empresa
colonial até ao menos fins do século XVIII, algo que ocorreu não só devido às
dificuldades do terreno, mas também pela resistência ativa dos Guarani, cujas
descrições (Dobrizhoffer, 1967 [1783]), mais do que restritas a processos de fugas,
nos remetem também a táticas guerrilheiras. Por meio delas, esses grupos
conseguiram durante um período considerável repelir os colonos que tentavam
adentrar seu território, seja para o extrativismo de erva-mate ou para a captura de
indígenas.
Assim, o que temos nessa época é uma configuração em que coexistiam
estratégias de resistência diversas e até contrastantes entre os Guarani, e que longe
de formas isoladas – e isso será central para o argumento aqui – estavam em
contato. Embora de modo sucinto, as fontes históricas (Susnik, 1965) demonstram
que havia um intercâmbio entre os Guarani que habitavam as missões jesuítas e os
que estavam imersos nas matas. Esse intercâmbio era de pessoas, mas também de
práticas, movimentos e cosmologias – de modos de existência e resistência.
Contudo, tais possibilidades ficam obliteradas quando a relação entre os
Guarani históricos e os grupos guarani atuais é posta em termos lineares e um tanto
cristalizados. Desde a primeira metade do século XX, a etnologia tem formulado
uma questão de modo problemático: seriam os atuais grupos guarani (Mbya,
Ava/Nhandeva e os Kaiowa) os descendentes dos que foram reduzidos nas missões
jesuítas, ou daqueles que viviam nas matas, os “monteses”? Entre as respostas, há
quem sustentou que apenas um dos grupos seria descendente dos que viveram nas
missões. Há outros ainda que dizem que nenhum deles. Hélène Clastres, por
exemplo, argumenta que seria “bem difícil acreditar que os Guarani fossem capazes
de, após um século [de vida nas missões], de regressar simplesmente à floresta”
(Clastres, 1978, p.12).
Contudo, ao formular a questão perguntando se determinado grupo
contemporâneo seria descendente dos Guarani que viveram nas missões ou
daqueles que viveram nas matas de modo mutuamente exclusivo, pressupõe-se o
isolamento entre os diferentes grupos guarani de outrora, um isolamento que me
parece tão falso no passado, quanto o é no presente. Desse modo, nega-se a
possibilidade de entender que tanto a experiência na missão, como a experiência na
selva, foram tributárias de múltiplos aspectos que redundaram nos Guarani atuais,
sejam aspectos genealógicos ou culturais.
Seria um tanto mais fácil – como sempre – se os Guarani fossem mais
ouvidos nesse assunto: eles ao mesmo tempo que frequentemente dizem ser
descendentes daqueles que sempre viveram “nas matas” (ka’aguy re), também
consideram os Guarani que construíram as missões e os que lutaram na guerra
guaranítica como seus antepassados. Sepé Tiaraju, célebre líder guarani na guerra,
não teria morrido como contam os brancos, diz um xeramoĩ (ancião ou xamã) no
filme Desterro Guarani (2011). O guerreiro “enganou” os brancos e sobreviveu,
passando incólume às moradas divinas. “Enganar” (-mbotavy), segundo esse
mesmo xamoĩ, era o que faziam os Guarani com a catequese dos jesuítas: fingiam
que aprendiam, “tal qual fazem vocês jovens na escola dos brancos hoje em dia”, diz
ele rindo. Vê-se, assim, que o paralelo entre a missão e as aldeias hoje tomadas por
instituições dos brancos, como a escola, é explícito no ponto de vista deste ancião
guarani.
O ponto que quero ressaltar ao sugerir que ambas experiências históricas (a
missão e a selva) foram fundamentais para a resistência guarani e contribuíram na
formação dos grupos contemporâneos, é que elas não foram fundamentais apesar
de seus aspectos serem contrastantes, mas precisamente em razão disso. É
justamente a capacidade de transitar entre diferentes e complementares formas de
resistências que acredito ser um dos grandes trunfos para a sobrevivência dos
Guarani durante a hecatombe colonial, desvinculando seu destino da fatídica
destruição das missões e, por sua vez, buscando novos refúgios de resistência
quando as densas matas mesopotâmicas na região da tríplice fronteira já não eram
mais adequadas3. É, de certa forma, como se eles fizessem conviver diferentes
tempos e espaços por meio de modos distintos de se viver e lutar, legando tal
processo à posteridade.
3
Com o bandeirantismo paulista arrefecido a partir de fins do século XVIII, as matas do litoral
atlântico voltavam a ser uma região segura, possibilitando que os Guarani reocupassem essa porção
de seu território com maior intensidade, reativando a circulação milenar entre as aldeias do interior do
continente e as aldeias do litoral.
de diversas pequenas aldeias na região, cujos habitantes mantinham-se bem
distantes do mundo não indígena. Tratam-se de pequenas aldeias compostas
normalmente de um único núcleo familiar e que estão em áreas de mata de difícil
acesso, unicamente por meio trilhas de algumas horas de travessia. Em alguns
casos, seus moradores, além de evitar ativamente o contato 4, recusam o consumo
de alimentos e remédios produzidos pelos não indígenas.
Também na região da aldeia Tamanduá, próxima ao município de Veinte y
Cinco de Mayo, descreveram-me situação semelhante: além da aldeia maior, com
acesso de estrada, posto de saúde e escola etc., existem outras menores dispersas
nas matas da região. A dificuldade de acesso e o afastamento ativo em relação ao
mundo não indígena podem variar de intensidade entre essas pequenas aldeias,
algumas alcançando experiências mais radicais, similares ao caso do vale do Cuña
Piru. Essas descrições sugerem um paralelo entre tais grupos e os antigos Guarani
“monteses”. Contudo, não se trata de ver aí uma simples permanência entre grupos
de diferentes contextos históricos, mas justamente sublinhar a atualização das
relações de contraste e complementaridade entre os modos de resistência das
aldeias guarani.
Nas aldeias dos Guarani Mbya no Brasil não cheguei a conhecer nenhum
caso de distanciamento tão extremo em relação ao mundo dos jurua. Contudo, creio
que há o mesmo princípio na variedade de conformação das aldeias, marcadas por
contrastes similares: de um lado estão algumas aldeias grandes, mais abertas ao
mundo não indígena, com suas mercadorias e instituições; de outro, muitas outras
aldeias menores, com distanciamentos mais acentuados – não necessariamente
espaciais – em relação aos não indígenas, mas variando relações com o que vem
de fora e produzindo parentesco com os Guarani das aldeias “capitais”, tal qual
faziam, mesmo que de modo pontual, os “monteses” com as missões.
É mais comum encontrarmos nas grandes aldeias mais próximas ao mundo
jurua uma maior presença de lideranças guarani articuladas nos saberes técnicos
dos brancos, atuando como professores, estudantes, agentes de saúde, agentes
4
Esse caso dos Guarani Mbya mais afastados em Misiones, embora guarde diferenças abissais com
os casos dos grupos em isolamento voluntário na Amazônia, já que o processo histórico e a condição
de afastamento no caso desses Guarani é diferente em variados graus e aspectos, creio que aponta
para pensarmos que a condição de afastamento não é uma via de mão única entre os povos
ameríndios. Assim como os indígenas em geral, os grupos ditos isolados não têm como única deriva
histórica possível deixar pouco a pouco de existir. Mas, ao contrário, mesmo em meio às turbulentas
condições para sua existência, seria possível encontrarmos casos em que eles não só resistem, mas
ressurgem.
ambientais, representantes em organizações indígenas etc., e que impulsionam o
protagonismo de uma luta política guarani junto ao mundo não indígena. Tais
incidências políticas são fundamentais para apoiar os parentes que vivem mais
afastados em pequenas aldeias no território. Por sua vez, são justamente as
pequenas aldeias dispersas nas matas que permanecem como refúgio aos Guarani
das grandes aldeias, que frequentemente encontram ali espaços mais adequados
para fortalecerem seus corpos por meio de práticas xamânicas e da produção de
distâncias – cosmológicas e territoriais – mais acentuadas em relação ao mundo dos
jurua. Dessa maneira, podemos também dizer que tal variação contrastante nos
assentamentos guarani constitui diferentes expressões, em termos geográficos, de
seus distintos modos de existir como coletivos.
Essa dinâmica é possível, entre outros fatores, devido à intensa circulação
dos Guarani Mbya sobre a rede de aldeias presente em seu território, que em linhas
gerais e de modo não exclusivo, abarca o litoral e o interior dos atuais estados do
Sul do Brasil, assim como parte do interior de São Paulo e do litoral Sudeste,
abrangendo ainda toda a porção oriental do Paraguai e o noroeste da Argentina.
Assim, desde um passado longínquo, os Guarani circulam por suas aldeias
transitando por vastidões territoriais, como pôde atestar Cabeza de Vaca (1987,
[1542], p.159), que no início do século XVI encontra um Guarani cruzando o
continente a partir de uma aldeia próxima à Assunção para visitar sua terra natal no
litoral catarinense. Tal circulação, portanto, também lhes possibilita que transitem
por variedades de aldeias e grupos, vivendo em diferentes modos e escalas de
relação, um intercâmbio que, a despeito de variações e limitações, persistiu durante
o período missioneiro e é facilmente constatado na atualidade.
10
Sobre essa oposição fundamental na cosmologia e corporalidade guarani entre o perecível e o
imperecível, ver Pierri (2018).
Apesar de Pierre Clastres ter sido um dos primeiros a sintetizar a
radicalidade das concepções guarani, “da potência secreta que pode
silenciosamente enunciar que isto é isto, e ao mesmo tempo aquilo, que os Guarani
são homens e ao mesmo tempo deuses” (Clastres, 2003 [1974]), p. 188), ele
frequentemente flertava com concepções de uma temporalidade linear, que via na
emergência das formas estatais e centralizadas de política um caminho sem volta.
Ele seguia demasiadamente tributário de pensar tal problema a partir do filósofo
quinhentista Étienne de La Boétie (Clastres, 2004 [1980], 108) e do mau encontro: o
fatídico momento em que um povo abraça a desigualdade política da servidão
voluntária como modo preponderante e irreversível em suas relações.
No entanto, a variedade de ações políticas ameríndias que a etnologia
recente nos apresenta, especialmente reunidas e analisadas em Sztutman (2012),
são constituídas por diferentes vetores tanto estatais como contra-estatais, que
promovem pulsações pendulares e a coexistência de diferentes modos de relação,
diferentes temporalidades que não apontam para uma única e necessária direção de
mudança nos modos de se viver coletivamente.
Também a arqueologia recente tem sugerido questões similares. Graeber e
Wengrow (2018) apontam que a comum crença na história humana ser uma
progressão necessária de coletivos menores e mais igualitários rumo a sociedades
mais complexas, desiguais e hierárquicas, além de ser falsa, tem um resultado
nefasto, o que ela faz é justamente nos roubar a imaginação política, nos levando a
acreditar que não há alternativa à coerção dos poderes políticos centralizados e o
estatuto de sua desigualdade estável entre dominantes e dominados.
Evidências arqueológicas sugerem que nos ambientes altamente sazonais [da
Eurásia] da última Idade do Gelo, nossos antepassados remotos estavam se
comportando de formas bastante próximas: deslocando-se entre arranjos sociais
alternativos, permitindo o surgimento de estruturas autoritárias durante certas
épocas do ano, com a condição de que elas não podiam durar; no entendimento
de que nenhuma ordem social específica foi fixa ou imutável. Dentro da mesma
população, pode-se viver às vezes o que parece, à distância, como um bando,
às vezes uma tribo e às vezes uma sociedade com muitas das características
que agora nós identificamos com os estados. Junto à tal flexibilidade institucional
vem a capacidade de pisar fora dos limites de qualquer estrutura social dada e
refletir; tanto para fazer como para desfazer os mundos políticos em que
vivemos.
11
Criada em 2006 durante uma grande assembleia de lideranças de diferentes regiões dos estados
do Sul e do Sudeste do Brasil, a Comissão Guarani Yvyrupa (CGY) vem se consolidando como
organização política do povo Guarani no país. Sua principal pauta é a luta pelo reconhecimento e
garantia das terras tradicionais guarani.
12
Cronologias das lutas das Terras Indígenas de São Paulo. Disponíveis em: <www.
socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-monitoramento/terra-indigena-tenonde-pora-e-oficialmente-dos-
guarani>, <http://trabalhoindigenista.org.br/noticia/tenondé-porã-os-muitos-anos-de-luta-por-
reconhecimento>. Ver também Pereira (2018) que faz uma análise focada nos comunicados da CGY.
13
O Relatório Circunstanciado de Identificação de Delimitação da TI Tenondé Porã (Pimentel, Pierri e
Bellenzani, 2012) argumenta, de modo muito próximo ao que fazemos aqui, sobre a dinâmica que
esta aldeia, também chamada Tenonde Porã, exerceu dentro da região da TI, como uma espécie de
“capital”. O relatório também traz outro dado interessante à luz da discussão em tela: nem sempre foi
a tekoa Tenonde Porã que exerceu esse papel na TI, mostrando a variação interna nesse jogo de
contrastes entre aldeias.
extremamente alta para os padrões dos Guarani Mbya), a comunidade resolveu
instituir um modo de organização interna que extinguiu a figura do cacique, e
consolidou uma gestão coletiva por meio do conselho de lideranças.
A questão aqui me parece menos tentar entender o quanto que a figura do
cacique remete a modos tradicionais de liderança entre os Guarani ou o quanto ela
deriva de imposições do mundo não indígena, mas simplesmente notar como esse
inusitado feito, já que atualmente a figura do cacique é um tanto onipresente nas
aldeias guarani mbya no Brasil, revela que os Guarani mantêm a dimensão
imanente na criação e transformação desses “cargos”, transitando entre diferentes
temporalidades e seus sentidos.
As lideranças que defenderam tal mudança destacavam a importância de não
deixar concentrar as decisões relativas a uma comunidade tão grande nas mãos de
uma única pessoa14, fato que era especialmente aproveitado pelos não indígenas,
sempre sedentos de forças centrípetas como forma de exercer controle. Outra
justificativa remetia justamente a percepção de que os Guarani não viveram sempre
assim15, sob a condução formal de um cacique, e que, portanto, seria possível viver
diferente e contrariar tendências cristalizadas.
Tal modo coletivo de condução política abarcou ainda as novas aldeias frutos
das reocupações do território, promovendo um intenso processo de formação de
novas lideranças entre os jovens e mulheres, estas últimas protagonistas na
condução das novas comunidades e na recuperação das roças tradicionais, aspecto
central para uma menor dependência alimentar dos Guarani em relação aos
mercados não indígenas.
No atual modo de organização das lideranças colocado em prática na
Tenondé Porã, que buscou dissolver a figura do cacique e sua tendência a uma
reciprocidade negativa em meio à grande escala da aldeia, são incentivadas a
participação de lideranças de diferentes parentelas, principalmente mulheres, que
14
Recentemente, outras organizações guarani mbya que agregam diversas aldeias também aderiram
a essa conformação de coordenações colegiadas, como o Comitê Interaldeias (que articula os
Guarani da Tenondé Porã e de aldeias do litoral no sul na luta por direitos de compensação de
empreendimentos) e a CGY, já citada aqui.
15
Além dos muitos relatos dos anciãos guarani, que descrevem como antigamente eram mais os
xeramoĩ e xejaryi (xamãs mbya e anciãos) os condutores e conselheiros das parentelas que
compõem uma aldeia, também a etnologia aponta diferentes configurações: Bertoni (1920, 1922),
reúne diversos relatos sobre modos de organização baseados em conselhos e federações
supralocais entre os Guarani do início do século XX na região da tríplice fronteira. Também Schaden
(1974) relatou a conformação de conselhos para a condução das aldeias guarani de meados do
século XX, como uma espécie de “senado informal”.
distribuem e fazem circular as tarefas e responsabilidades das lideranças, mediando
de forma efetiva a relação entre as parentelas, numa complexa diplomacia
multilateral.
Se essa conformação de lideranças parece estar sendo exitosa no caso das
aldeias desta Terra Indígena, não necessariamente ela deve servir a outros e
distintos casos de aldeias guarani, como as menores e mais afastadas do mundo
não indígena, que podem contrastá-la com outros modos, servindo de contraponto
complementar e sugerindo outras soluções para se viver e se diferenciar como
Guarani.
Assim, os diferentes modos de resistir dos Guarani parecem preservar, desde
as épocas coloniais, uma certa concomitância de possibilidades contrastantes, com
esses diferentes modos frequentemente se expressando em termos opostos: a fuga
em oposição à resistência guerreira; a concentração em populosas aldeias em
contraste à dispersão de pequenos grupos em matas inacessíveis; a articulação de
grandes organizações supralocais em contraposição à fragmentação politica. Tal
qual uma dança em que não é possível saber quem do par conduz o passo, estes
modos não só expressam uma lógica dualista, como parecem se retroalimentarem
em seu desequilíbrio; não apenas como um diacrônico pêndulo, mas também em
termos sincrônicos. Os Guarani são os dois ao mesmo tempo:
Nas palavras do karai mbyá que nos foram transmitidas por Clastres, o Um é o
Mal, a imperfeição, a finitude, a incompletude. Todo “Um”, finalmente, é recusado
pelo pensamento ameríndio, na medida em que este opera na relação entre
“Um” e “não Um”, o que acarretaria uma “recusa radical” (Clastres, 2003, p. 233),
sim, mas consistentemente dupla. Trata-se de recusar tanto a “divisão” quanto a
“não divisão”, e não caberia afirmar, como o fazia Clastres, que se recusa o
“poder” em nome da “liberdade” ou a “hierarquia” em nome da “igualdade”. Trata-
se de mover-se no espaço-relação entre os polos, sem jamais fixar-se num
deles, o que equivaleria a resolver (abolir) a diferença pela identidade. “Nem
identidade nem contradição, mas recusa propriamente: recusa de escolher,
promovendo uma inquietude ontológica”, como diz Viveiros de Castro a respeito
dos Araweté. (...) Escolheram não escolher. De modo que em seus mundos
tudo é dois, porque tudo é relação e dois é condição, necessária e suficiente, de
relação (Perrone-Moises, 2011, p. 868, 872, grifo meu).
Bibliografia
______. (2003 [1974]). A sociedade contra o Estado. São Paulo: Cosac Naify.
comunidade que subitamente aumentara (urgente), a menina, Defesa Zapatista, se coloca na tarefa
de convencer a assembleia comunitária que uma coisa não poderia excluir a outra. Para tanto, ela
busca inspiração em uma conversa com Subcomandante Galeano, que, por sua vez, resgata escritos
do finado Subcomandante Marcos: “os povos originários, desde séculos, todo o tempo fazem ao
mesmo tempo as duas coisas, o urgente e o importante. O urgente é sobreviver, ou seja, não morrer,
e o importante é viver. E o resolvem com resistência e rebeldia, ou seja, que se resistem a morrer e
ao mesmo tempo criam, com a rebeldia, outra forma de viver. Sempre que se possa, temos que
pensar em criar outra coisa”. http://enlacezapatista.ezln.org.mx/2017/02/21/proximo-passo-ii-o-
urgente-e-o-importante/
17
Este me parece que é um dos argumentos centrais do livro de Tible (2018 [2013]), Marx Selvagem.
______. (1995 [1972]). Crônica dos índios Guayaki: o que sabem os aché,
caçadores nômades do Paraguai. São Paulo: Editora 34.
______. (1990 [1974]). A fala sagrada: mitos e cantos sagrados dos índios
Guarani. Campinas: Papirus.
FAUSTO, Carlos (2005). “Se Deus fosse um jaguar: canibalismo e cristianismo entre
os Guarani (séculos XVI-XX)”. Mana. vol. 11, n. 2, pp. 385-418.
GRAEBER, David; WENGROW, David (2018). “How to change the course of human
history” in Eurozine: https://www.eurozine.com/change-course-human-history/
ORTEGA, Ariel & FERREIRA, Patrícia (2011). Desterro Guarani. (vídeo) Vídeo nas
Aldeias e Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). 78 min.
PIMENTEL, Spensy K.; PIERRI, Daniel C.; BELLENZANI, Maria Lúcia R. Relatório
de identificação e delimitação da Terra Indígena Tenondé Porã. Brasília:
CGID/DPT/Funai, 2010.
______. (2014). Aqueles que não vemos: etnografia das relações de alteridade
entro os Mbya Guarani. (Tese de doutorado). Niterói: UFF.