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Curso: Terapia Nutricional na Insuficiência Hepática

Versão 1.1

Avaliação Nutricional: particularidades no paciente com Doença Hepática


Giliane Belarmino

O fígado é um órgão essencialmente metabólico que assume posição anatômica


estratégica na circulação portal e sistêmica. Trata-se do centro de regulação dos
nutrientes ingeridos, exercendo papel fundamental na sua metabolização. O fígado, via
circulação portal, recebe vários nutrientes e após a absorção retém alguns destes para
sua reserva e metabolismo distribuindo outros para circulação sistêmica, onde serão
utilizados eventualmente ou depositados em outros tecidos. Uma vez que ocorra dano
funcional no fígado, esse mecanismo será afetado, podendo levar à desnutrição 1.
A doença hepática avançada é responsável por alterações metabólicas
acompanhadas de perda da massa e função muscular, com consequente deficiência
motora global e inatividade física, as quais interferem negativamente na qualidade de
vida dos pacientes2.
A prevalência de desnutrição proteico-energética (DPE) pode variar entre 10 a
100%, isso é, reflexo de sua análise nas diversas fases da doença hepática 3,4.
Vale notar que os mecanismos envolvidos na desnutrição em vigência da doença
hepática envolvem a formação de um ciclo vicioso, onde a doença agrava o estado
nutricional, e a desnutrição agrava a doença. A DPE também pode levar ao dano
hepático, uma vez que o indivíduo se torna mais suscetível às infecções e à agentes
tóxicos 1. Mccullough et al, citam que a DPE levaria à deterioração mais rápida da função
hepática. Portanto, a detecção precoce da desnutrição em pacientes com doença
hepática é fundamental para prevenir a progressão da doença 5.
Os sinais associados à hepatopatia crônica, tais como ascite, edema, alteração
da imunocompetência, diminuição da síntese protéica e insuficiência renal, podem
alterar os critérios objetivos tradicionalmente utilizados na avaliação nutricional 6.
Desta forma, o percentual de perda de peso, medidas antropométricas, índice
creatinina-altura, balanço nitrogenado, excreção de 3-metil-histidina, testes de
sensibilidade cutânea, contagem de linfócitos e dosagem sérica de albumina,

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© Ao aluno é permitido fazer uma cópia do material didático disponibilizado para uso próprio. De acordo
com a Lei no. 9.610 de 19/02/1998, que trata de direitos autorais, todo aluno fica proibido de propagar,
distribuir e vender o material de qualquer forma, sob pena de responder civil e criminalmente por
violação da propriedade material e intelectual.
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transferrina, pré-albumina e proteína ligada ao retinol devem ser interpretados com


restrições na avaliação do estado nutricional destes pacientes 7.
Venegas-Tresierra et al., em 43 pacientes com cirrose hepática hospitalizados
com e sem ascite, encontraram presença de obesidade em 30,2%, sobrepeso em 20,1%,
eutrofia em 46,5% e apenas 3,2% dos pacientes tinham baixo peso. Para
Roongpisuthipong et al., a prevalência de DPE em pacientes com doença hepática ficou
em torno de 13,3%. Os parâmetros utilizados foram percentagem do peso atual em
relação ao peso ideal (< 90%) e índice de massa corporal (IMC) (<18,5 kg/m2),
subestimando-se o número de desnutridos da amostra. Gottschall et al, ao avaliarem o
estado nutricional por meio do cálculo de IMC em uma amostra de 34 indivíduos com
cirrose causada pelo vírus da hepatite C, onde 11,7% apresentava ascite, não
encontraram nenhum paciente desnutrido. Pelo contrário, foi encontrada alta
prevalência de sobrepeso (62%) 1.
A retenção hídrica, por sua vez, não influencia as medidas da prega cutânea
triciptal (PCT), prega cutânea subescapular, circunferência muscular do braço (CMB) e
circunferência do braço (CB), quando não existe edema generalizado 8. Porém, o uso
desses parâmetros não é fidedigno em estágios finais da doença, uma vez que os
parâmetros podem ser alterados devido ao aumento na utilização de lipídeos
endógenos nessa fase da doença. Além disso, há grande variação entre as medidas de
avaliação do estado nutricional realizadas por diferentes observadores, além de não
haver equações específicas para pacientes com doença hepática, uma vez que os
estudos de validação destas equações até o momento utilizaram apenas indivíduos
saudáveis 1.
A maioria dos estudos de DPE envolve técnicas baseadas no modelo de dois
compartimentos quimicamente distintos, no qual o peso corporal é dividido em massa
de gordura e massa sem gordura. A primeira pode ser avaliada pela antropometria,
através da mensuração das dobras cutâneas, e a segunda pelo índice de creatinina, pelas
circunferências musculares (proteína somática), e pela dosagem de proteínas séricas
(proteína visceral). A grande limitação do modelo de dois compartimentos é a
pressuposição de que os componentes dentro da massa sem gordura estão presentes

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na mesma proporção em todos os indivíduos. Porém, em várias situações clínicas ou


fisiológicas tais como idade, gravidez, obesidade podem ocorrer erros nestas
estimativas, sub ou superestimando os componentes e tornando este modelo impreciso
na avaliação da composição corporal 4.
A impedância bioelétrica (BIA) é método seguro, barato, não-invasivo e rápido
para a determinação do compartimento de água corporal total. Entretanto, em
pacientes com ascite ou retenção hídrica, o uso da BIA é limitado devido às alterações
ocorridas na distribuição da água intracelular e extracelular, comumente observadas em
doentes hepáticos.
Atualmente, pesquisadores da área propõem avaliações baseadas em modelos
de quatro a seis compartimentos 9.
Figueiredo et al, mostraram que o uso do método de avaliação nutricional
multicompartimental foi sensível o bastante na detecção de desnutrição em pacientes
que se encontravam nos estágios iniciais de doença hepática, como naqueles com
desnutrição não detectada clinicamente por outros métodos. Os autores verificaram a
ocorrência de perdas significativas de gordura nos estágios iniciais da doença (Child A) e
acelerada perda de massa celular nos estágios mais avançados (Child B e C), sendo que
31,6 % dos pacientes da amostra apresentaram perda em mais de um compartimento.
Mudanças nos compartimentos corporais foram observadas, mesmo antes da detecção
clínica de retenção hídrica 10,11.
Apesar dos resultados animadores, o uso da avaliação nutricional
multicompartimental implica em alto custo financeiro destinado à saúde, o que limita
drasticamente sua aplicação na prática clínica rotineira. Para Figueiredo et al., o uso do
modelo de quatro compartimentos (tecido muscular, água corporal total – intracelular
e extracelular, gordura corporal e conteúdo mineral ósseo), apresenta a vantagem de
menor custo, quando comparado ao modelo de seis compartimentos que utiliza a
análise de ativação neutrônica 10,11.
A comparação entre os métodos de avaliação da composição corporal mais
rotineiramente utilizados na prática clínica revela resultados desanimadores 1. Em
estudo conduzido por Figueiredo et al., 69 pacientes tiveram o tecido muscular e a

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massa de gordura corporal mensurados por meio da técnica de diluição isotópica, e os


resultados foram comparados com as técnicas de avaliação nutricional tradicionais
(avaliação subjetiva global, DCT, CB, CMB, teste laboratoriais, absortímetro de dupla
energia de raios-X - DEXA e dinamometria). Houve pouca relação entre a técnica de
diluição isotópica e os demais métodos tradicionais. Apenas o dinamômetro e a CMB se
mostraram sensíveis na detecção de perdas do tecido muscular nesses pacientes 11.
Não é fácil a aplicação de métodos usuais na avaliação nutricional de pacientes
com doença hepática. Não existe, até o momento, um método considerado como
padrão-ouro nesta situação clínica. Especificamente em pacientes cirróticos a
prevalência de desnutrição é alta, independente da causa da doença. O diagnóstico da
desnutrição nesse grupo e a intervenção nutricional precoce são essenciais para o
acompanhamento destes pacientes. O consenso mais atual da Sociedade Europeia de
Nutrição (ESPEN, 2019) recomenda utilizar a medida de força do aperto de mão ou
dinamometria e ângulo de fase (AF), obtido pela BIA, para complementar a avaliação
nutricional nesses pacientes. Esses parâmetros, além de avaliar a composição corporal
e força muscular, são preditores de morbimortalidade na doença hepática 12.
Nesse consenso, é chamado a atenção para avaliar o risco de sarcopenia, uma
condição que ocorre pela perda progressiva de massa e força muscular. Pacientes
hepáticos sarcopênicos apresentam maior risco de complicações e do tempo de
hospitalização. Mais recomendações do consenso encontram-se no quadro 1.
Estudos sugerem que o modelo de BIA multicompartimental (massa celular
corporal, água corporal total-intracelular e extracelular, gordura corporal, conteúdo
mineral ósseo) proporcionou avaliação mais precisa da desnutrição protéico-energética.
Tomadas em conjunto, essas observações apontam a urgência em se obter um
método adequado para a avaliação da composição corporal de pacientes com doença
hepática na prática clínica.

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Quadro 1: Recomendações da ESPEN para avaliação nutricional nas doenças hepáticas:

Métodos Recomendações Grau de evidência


Triagem nutricional NRS-2002, MUST Grau B
Avaliação do Gasto Calorimetria indireta ou uso de
Energético de Repouso calorímetros portáteis
(GER)
Fórmulas: 1,3 x GER Opinião de especialistas
(usar peso real na ausência de
ascite. Peso ideal para altura na
ascite)
Composição corporal Força do aperto de mão ou Opinião de especialistas
dinamometria e ângulo de fase
(AF)
Diagnóstico de DEXA, Tomografia Grau B
sarcopenia computadorizada
Fonte: ESPEN guidelines, 2019

Referências Bibliográficas

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subjective or multicompartmental approach? Arq Gastroenterol. 2006;43(1):66-
70.

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Etiologia da cirrose: experiência da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre.
Rev AMRIGS. 1995;39:25-31.

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3. Gottschall CA, Álvares-da-Silva MR, Camargo AC, Burtett RM, Silveira TR.
Avaliação nutricional de pacientes com cirrose pelo vírus da hepatite C: a
aplicação da calorimetria indireta. Arq Gastroenterol. 2004;41:220-4

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5. McCullough AJ. Malnutrition in liver disease. Liver Transpl. 2000;6 (Suppl 1):85-
96.

6. Álvares-da-Siva MR, Silveira TR. Comparison between handgrip strength,


subjective global assessment, and prognostic nutritional index in assessing
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2005;21:113-7.

7. Barbosa-Silva MCG, Barros AJD. Subjective global assessment. Part 2. Review of


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8. Roongpisunthipong C, Sobhonslidsuk A, Nantiruj K, Songchitsomboon S.


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11. Figueiredo FA, Perez RM, Kondo M. Effect of liver cirrhosis on body composition:
evidence of significant depletion even in mild disease. J Gastroenterol Hepatol.
2005;20:209-16.

12. Plauth M, Bernal W, Dasarathy S, Merli M, Plank LD, Schütz T, Bischoff SC.
ESPEN guideline on clinical nutrition in liver disease. Clin Nutr. 2019.

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