Você está na página 1de 7

Relato de uma Visita ao Presídio

Bom dia a todos. Meu nome é D.J. sou um portador da doença do alcoolismo,
recuperado de muitas situações às quais eu vivia anteriormente. Hoje pela graça de
um Poder Superior, estou sóbrio. Minha vida pregressa alcoólica nada mais é que
um instrumento usado para transmitir a mensagem ao alcoólico que sofre e garantir
minha sobriedade hoje. No último parágrafo de nosso preâmbulo diz “O propósito
primordial é permanecer sóbrio e transmitir esta mensagem ao alcoólico que sofre.”
É por isso que estou aqui hoje, limpo, sóbrio portador dessa mensagem a alguém
que se interessa. Não estamos em qualquer lugar que seja um presídio, uma escola,
uma empresa, um hospital com intuito de arrebanhar membros para Irmandade de
Alcoólicos Anônimos. Em hipótese alguma esse não é nosso propósito. É bem mais
profundo do que isso. Ao passo que transpareço sóbrio, e alguém percebe essa
minha sobriedade poderão ficarem convícios que passei pelas veredas do
alcoolismo e recuperei minha sanidade. Talvez podem observar e dizerem. Funciona
esse tal A.A.. Como estão hoje totalmente diferentes de antes! Se funcionou para ele
pode funcionar para mim.
A participação de qualquer pessoa em alcoólicos anônimos é de livre e
espontânea vontade, ou seja, se alguém ouvir dizeres de fulano ou cicrano que deve
ir para alcoólicos anônimos para se curar do alcoolismo, esta pessoa provavelmente
não é um A.A. pois, um de nossos objetivos em Alcoólicos Anônimos é servir de
atração, e transcender uma vida nova com qualidade, para que as pessoas vendo
um A.A. em transformação possa sentir atraída, proporcionando-a a conhecer e
participar das terapias de recuperação em grupo. Instigando a questionamentos
internos. Como é que conseguiram tal façanha? Nesse caso é de responsabilidade
de cada um de nós contarmos como conseguimos esse nascer de novo. Como
Alcoólicos Anônimos nos chegou até nós. E quem são esses alcoólicos anônimos?
É um prédio? Um grupo de pessoas? Existe um presidente? Um chefe? Não.
Podemos dizer que é uma anarquia organizada em prol de um interesse comum.
Permanecer sóbrios e transmitir a mensagem ao alcoólico que sofre.
Depois de vivermos a filosofia de alcoólicos anônimos por algum tempo.
descobrimos um paradoxo diferente. Uma força invisível, um Poder Superior
manifestado em uma consciência coletiva com uma espiritualidade extremamente
profunda, cativante. Nesse ínterim nasce a oportunidade e o desejo de ajudar
alguém. Passar adiante aquilo que foi recebido de graça de forma indireta e
despretensiosa. Isso é simplesmente extraordinário. Lá em alcoólicos anônimos
costumamos dizer que usamos as ferramentas espirituais para permanecermos
sóbrios. E essas ferramentas espirituais são as nossas literaturas, a minha
experiência, os companheiro com suas experiências, aquele que chega hoje em
situação muito difícil, aquele que está em situação de rua sofrendo, aquele que tá no
presídio, aquele que está perdido, aquele que acha que não está perdido, aquele
que está na sociedade e aquele que também acha que não está, etc.
Em alcoólicos anônimos conhecemos algumas palavras interessantes e eu
faço questão de ressaltar uma delas. “Os paradoxos misteriosos”. os paradoxos nos
dizem muito nas entrelinhas as quais não percebemos em nosso cotidiano. Tal
como. A força nascendo da fraqueza e da derrota completa. Um exemplo clássico:
Quando existe dois times de futebol jogando existe uma máxima. Nem sempre
ganha o melhor. As vezes por uma razão ou outra aquele que é mais fraco retira do
fundo da sua alma uma força imensurável. Uma força tirada das suas fraquezas
proporcionando a vencer o mais forte. Em Alcoólicos Anônimos não é diferente.
Chegamos Deverasmente derrotado. A partir do momento que admitimos essa
derrota, saímos vencedores. Com essa atitude é possível sim, colher Vitória diante
dessas derrotas. Ou seja, a perda de uma vida antiga condicionada a encontrar uma
nova.
Podemos observar isso nas doutrinas religiosas em que eles dizem que para
nascemos de novo é necessário morrermos. Deixar morrer uma vida antiga para
começar uma outra nova. São os paradoxos de alcoólicos anônimos. ...Eles não
computam, porém quando conhecidos e aceitos eles reafirmam alguma coisa no
universo além da lógica humana.
Em psicanálise entendo esse princípio como ressignificação, ressignificar algo
em nós é habilidade para poucos. Em alcoólicos anônimos fazemos isso com
maestria. Somos simples. Dizemos: o ontem já passou, o amanhã está por vir, vive
o hoje. Ao viver o hoje, estarei ressignificando aquilo que que ficou lá trás. Aquilo
que aconteceu na minha vida que jamais será apagado, e pior ainda, aquilo que
aconteceu na minha vida que, se eu colocar uma pedra em cima ficará pior. Pior
ainda, se eu ficar remoendo meu passado, revivendo-o a cada instante. Estarei
perdendo uma oportunidade imensurável de viver o meu presente o hoje.
Independentemente de qualquer situação, jamais irei conviver com meu futuro
significativamente.
Então, a palavra-chave chama-se ressignificação. Ressignificar é primordial
para uma boa recuperação, uma recuperação saudável e de qualidade. Há
possibilidades de ressignificar algo que ficou mal-entendido ou mal interpretado? Há
a possibilidade de encontrar forças em minhas fraquezas? Há a possibilidade de
consertar algo que ficou errado? Sim. É preciso deixar essa velha vida morrer para,
consequentemente surgir uma nova. Através da ressignificação é possível sim.
Isso pode ser observado nos meios industriais das reciclagens. Aqui em
minha cidade já existe algumas indústrias de reciclagens. Aquilo que ficou perdido
no lixo. Aquilo que vai para o esgoto, para o aterro, para os rios já existe uma
possibilidade do reaproveito, ou seja, ser reutilizado. Quem sabe talvez até eu esteja
usando algo nesse momento em minha vestimenta que possa ser de um produto
reciclado. O lixo alojado em nossa psique, os quais ficaram recalcado em meu
inconsciente, pode e deve ser ressignificado. Em alcoólicos anônimos aprendemos
esses detalhes da ressignificação individual da vida pessoal, e individual em cada
um de nós.
O programa de recuperação em Alcoólicos Anônimos é estritamente
individual. A maneira que vejo para lidar com meus fantasmas dentro do programa
não é de maneira coletiva. Nossas histórias têm semelhanças, mas jamais será igual
à do outro. Portanto a recuperação encontrada pelo outro pode não ter os mesmos
caminhos para a minha. A dor é única. É impossível sentirmos a dor do outro,
embora podemos compreendê-lo.
Entendemos em Alcoólicos Anônimos que a bebida alcoólica é a porta de
entrada de todas as outras desgraças da vida, pois a partir do momento que se
passa a usar qualquer droga que altera o humor, seja ela álcool ou qualquer outra
de preferência, deixar-me-ei de ser eu o animal racional. O selvagem e pré-histórico,
aquele que viveu lá nos primórdios da humanidade aflora com todas as suas
parafilias identificada. O DNA humano não foi modificado, foi sim, a evolução
intelectual.
A partir do momento que se usa qualquer tipo de droga, aquilo que reside nas
profundezas do inconsciente sairá totalmente alterado. Proporcionando-o, a volta à
matriz da existente humana. Esse animal sai para fora com toda sua verocidade.
Violências podem ser praticadas com a família, com os amigos, no meio social onde
vive, no trânsito etc. Podem até usar de outras violências que não estejam ligadas
ao mundo da dependência. Tudo que foi recalcado, no inconsciente vai sair para
fora. O gatilho foi acionado através da droga que foi ingerida. Podemos concluir que
o álcool e qualquer outro tipo de droga é a porta de entrada para toda e qualquer
desgraça que venha acontecer na vida de qualquer indivíduo.
É por isso que eu estou aqui hoje alimentando meu objetivo de manter-me
sóbrio. Consciente que a partir do momento que retiro isso de mim, estou me
reciclando-me. Estou ressignificando esses lixos encravados nas profundezas de
minha alma. Automaticamente coisas melhores virão.
Quando encaro o medo eu ganho coragem, quando apoio um irmão ou irmã
minha capacidade de amar a mim mesmo aumenta. Parece estranho isso que lhes
digo. Quando saio daqui do presídio chego em casa uma outra pessoa, renovado,
uma pessoa transformada. Não por ver vocês reclusos e saber que estou livre. Isso
faz parte da particularidade individual de cada um que estão aqui. Mas sim, porque
pude contribuir com algo que aconteceu comigo. Algo bom que me troche alegria no
viver. Relatando a vocês isso, poderá vir servir a alguém como primeiro degrau para
uma ressignificação daquilo que os incomoda. Convicto que podem sair daqui com
algo ressignificado. Proporcionando-lhes uma vida melhor.
Já ouvi relato de um ex interno que saiu daqui. Procurou a sala de alcoólicos
anônimos e disse: — Colega como você me ajudou aquele dia que esteve lá no
presídio conosco. — Muito obrigado. Isso é de grande importância para mim e para
qualquer outra pessoa que vem aqui transmitir algo a vocês. Isso torna-se como um
bálsamo em nossa alma de maneira esplêndida. É a gratidão como recompensa a
qual recebemos de maneira despretensiosa.
A tristeza, a angústia de viver o passado já ficou. A expectativa, o sofrimento
de viver o futuro jamais passa por mim hoje. Tenho o prazer em viver o hoje, o aqui
e agora. O hoje pode ter começado à zero hora, como pode ter começado agora.
Passou. Passou de novo. Passou de novo. Começou de novo. O que eu falei de
estranho que desagradou alguém não é possível ser voltado. Acabou. O que eu falei
que agradou alguém, ótimo. Passado, passou. Eu preciso viver o hoje, o aqui e
agora. Independentemente de quaisquer circunstâncias, de qualquer situação que
eu esteja.
Se eu vivo hoje dentro dessa consciência do aqui e agora. Pode até aparecer
aquela droga da minha preferência do passado. Estarei preparado para enfrentá-la.
Usarei uma de nossas ferramentas encontradas em alcoólicos anônimos a qual uma
das que mais identifiquei. O plano das 24 horas. Me oferecem um caminhão de
cerveja na porta da minha casa. Eu digo, não. Só por hoje não. Muito obrigado.
Posso até estar com vontade de beber se meu programa de recuperação estiver
manco, ou não. Porque em alcoólicos anônimos somos embalados por uma
espiritualidade de um Poder Superior que na minha concepção um Deus
amantíssimo que me orienta: Se eu estiver devidamente espiritualizado, estiver em
sintonia com esse poder superior, logado à Ele. Estou protegido. Tendo repetido
várias vezes, Senhor meu Deus, retire de mim esse desejo obsessivo de beber,
qualquer tipo de bebida alcoólica e outras drogas, então o desejo simplesmente
some. Como sumiu de mim.
Quando aceito a dor como parte de uma experiência de crescimento da vida
eu me dou conta de uma felicidade maior. Não cheguei cantarolando e nem tocando
Folia em A.A. cheguei em Alcoólicos Anônimos carregando um saco de tristeza,
angústia, dor e decepção provocada pelo alcoolismo. Tudo em mim doía, porém,
uma dor invisível, não palpável. Mais tarde concluí que era uma dor na alma. Nada
mais dolorido do que no dia seguinte de uma bebedeira alguém nos diz: você fez
isso. — Não lembro. Você fez aquilo. — Não lembro. Você cometeu um acidente,
machucou-se, veja as marcas. — Não lembro. Você matou alguém. — Não lembro.
Isso dói no fundo da alma. Foram dores semelhantes a essas que cheguei em
Alcoólicos Anônimos. E graças a meu Poder Superior, hoje estou sóbrio e meu fardo
está bem mais leve.
Tenho procurado ressignificar muitas dessas coisas que me incomoda,
através de meus compartilhamentos. A partir daí começou a surgir uma felicidade
diferente, da qual eu vivia anteriormente, uma felicidade real e com cor. Hoje
entendo que eu retirara de mim aquilo que me corroía.
Quando olho para o meu lado escuro sou levado para uma nova luz. Esse
lado escuro à qual é relatado são aquelas particularidades em que tentamos
esconder até de Deus. Quem de nós não tem esse lado escuro? E de maneira
enganosa sempre tentei escondê-lo até de mim mesmo. Lado esse que deve ser
revirado e remexido incansavelmente. Ao ser acompanhado desse mesmo Deus,
sou direcionado para esse meu lado escuro e vejo uma grande possibilidade de
encontrar uma nova luz.
Nos Doze passos de recuperação, falando especialmente do quarto passo.
Um minucioso e destemido inventário moral de mim mesmo. Quando sugere esse
mergulho nas mais profundezas da alma, proporcionando ressignificar aquilo que foi
deturpado. Que incomoda tanto, que machuca todos os dias. O propósito é que seja
ressignificado, purificado, objetivando uma vida melhor. É importante ressaltar que
esse exercício não é para qualquer indivíduo, pois se não estiver amparado por um
profissional gabaritado, e um Poder Superior. Pode-se fazer um caminho sem volta.
Sou agraciado com uma força nunca vista, esbarrei com as portas de
Alcoólicos Anônimos em desgraça sem esperar mais nada da vida e ganhei
esperança e dignidade. Isso me proporcionar levantar todas as manhãs e agradecer
ao meu poder superior por estar me proporcionando viver um dia de cada vez de
maneira diferente. Sempre quando acontece algo muito ruim em minha vida hoje.
Fico ciente que devo viver essa dor hoje, pois amanhã tenho plenas convicções que
será outro dia, um dia melhor virá.
Outro detalhe importante. Não é porque estamos nesse programa de
recuperação de vida, não é porque estamos bem perto de Deus que acontecimentos
ruins não irão acontecer conosco. Somos seres humanos passivo de acontecer
coisas boas e ruins. A isso podemos dar o nome de felicidade ou infelicidade.
Também somos passivos de errar e de acertar como qualquer outro ser humano.
Nesse caso milagrosamente a única maneira de manter as dádivas do programa é
transmitindo isso que eu acabei de dizer a vocês. Assim mantenho as dádivas
recebidas de Deus em mim.
Para tanto, não cabe isso tudo dentro do meu peito, preciso compartilhar com
alguém. Devo falar isso para vocês dependentes de álcool ou de outras Drogas. Das
drogas palpáveis e das outras drogas não palpáveis. As drogas que moram na
escuridão da alma. Talvez essa seja a mais perniciosa. A mais pecaminosas. A mais
dolorida e a mais avassaladora do que todas as outras drogas juntas.
hoje em psicologia descobri que vivemos uma doença coletiva social.
Felizmente as autoridades já estão mensurando o mal que essa doença está
causando na sociedade. Mas os doentes sociais não descobriram ainda o mal que
ela os faz. Os quais são os portadores dela. Talvez ainda não saibam que são. A
não descoberta dessas doenças, dessas drogas não palpáveis proporcionam-os a
usarem as drogas palpáveis. A começar pela bebida alcoólica que é a porta de
entrada para as outras. Causando total disfuncionalidade no ser humano. “Volte
seus olhos para dentro, contemple suas profundezas, aprenda primeiro a conhecer-
se então compreenderá porque está destinado a ficar doente e, talvez evite a
adoecer no futuro.” (Freud)

Dalmir Vieira — Unaí-MG. Grupo Despertar

Você também pode gostar