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ABRE ASPAS n BRUNO DURÃES n SOCIÓLOGO

«É POSSÍVEL PENSAR UM
ALESSANDRA OLIVEIRA

A mudança do regime de trabalho

presencial para o teletrabalho, que

NOVO TIPO DE SOCIEDADE»

é realizado distante do centro de
produção e implica o uso de tec-
nologias da comunicação, passou a
ser feita no Brasil sem aviso prévio.
A medida é uma das tentativas do
governo federal para frear a crise
advinda da pandemia do corona-
vírus. A inesperada e ampla pro- Arquivo pessoal
pagação dessa modalidade de tra-
balho mostrou que ela pode ser
eficiente, mas, para o sociólogo e
professor da Universidade Federal
do Recôncavo da Bahia (UFRB) Bru-
no Durães, ainda é cedo para afir-
mar se a tendência permanecerá no
futuro e, o mais importante, se será
benéfica para o trabalhador.
“Quais sofrimentos subjetivos vão
surgir do trabalho realizado no es-
paço que é predominantemente
privado? Será que já não temos
pessoas adoecidas por não conse-
guirem exercer o trabalho como
queriam ou como a empresa de-
manda e obriga?”, questiona.

O teletrabalho veio para ficar?

Primeiramente, o teletrabalho
não pode ser entendido sepa-
rado de suas formas históricas de
trabalho domiciliar, como o par-
cial, home office, remoto... É im-
portante juntar essas categorias
para não cairmos na superva-
lorização do termo nem do fe-
nômeno do teletrabalho e dar-
mos ao momento uma conota-
ção superpositiva e cheia de ex-
pectativas boas de futuro. Diver-
sas formas de trabalho a dis-
tância já ocorriam no Brasil antes
da pandemia, na área do direito,
contabilidade, informática, mar-
keting, comércio virtual... até
formas mais recentes, talvez dos
últimos 10 anos, conhecidas co-
mo “trabalho por demanda” ou
“tarefas por click”, em que a pes-
soa é paga para fazer pequenas
tarefas e funções para outra pes-
soa ou para empresas.

A questão é que acredita-se que

empresas que antes não aderiam presas, sobretudo para peque- toricamente, vivemos isso.
à modalidade passarão a aderir. nas e médias; suspender tem- Quando a globalização, na sua
Obviamente que fomos, em porariamente o pagamento de vertente neoliberal e individua-

muitas situações, empurrados
para essa realidade. Mas nem
tudo poderá ser feito em casa ou
à distância. Temos que ter cui-
dado para não acharmos que
isso vai ser implementado em
definitivo e que isso represen-
tará o melhor dos mundos. É
muito mais provável que o futuro
imediato nos leve a ampliação
de formas de trabalho precárias
e informais. Já tínhamos formas
mistas de trabalho. Os profes-
sores no Brasil, por exemplo, le-
vam para casa inúmeras leituras,
correção de textos, preparação
de aulas. A questão é que, agora,
esse e outros trabalhos foram
transformados em totalmente
remotos. Essa é uma realidade
nova, sim, e cheia de contradi-
ções e adversidades.
Como por exemplo?
Isso tem impacto na subjetivi-
dade do trabalhador e trabalha-
dora. Quais sofrimentos subje-
tivos vão surgir do trabalho rea-
lizado no espaço que é predo-
minantemente privado? Será
que já não temos pessoas adoe-
cidas por não conseguirem exer-
cer o trabalho como queriam ou
como a empresa demanda e
obriga? Com o ensino a distân-
cia, há a cobrança para estimular
os filhos a prestarem atenção. E
no caso dos estudantes que não
possuem acesso adequado aos
meios digitais? O adoecimento e
pressão subjetiva vão andar lado
a lado com essa modernidade. E
o aumento da exploração, ritmo
e velocidade do trabalho decor-
rente de a pessoa estar em casa?
Qual o tempo do ócio? Isso será
computado pela super vigilância
digital e algorítmica de hoje? No
pós-pandemia, a pessoa estará
em casa ou na rua e, em certa
medida, seguirá trabalhando de
forma isolada, sem poder par-
tilhar com outros trabalhadores
de forma imediata e por contato
corporal, suas angústias, senti-
mentos, perspectivas e sensa-
ções. E quem vai arcar com os
custos de energia elétrica e des-
gaste de equipamento? Será
que essa nova forma de trabalho
não seria apenas uma forma das
empresas deixarem de cumprir
sua responsabilidade social? Ou-
tra coisa a ser levada em conta é
que o home office será diverso
«Trabalhos foram
transformados em
totalmente remotos.
Essa é uma realidade nova
e cheia de contradições»
para homens e mulheres e entre
negros, negras e brancos. É pre-
ciso pensar nessas interseções
históricas e de desigualdades.
Quais aspectos brasileiros devem
ser levados em conta?
No Brasil, temos a lógica que
praticamente virou regra, que é
a terceirização. Costumo dizer
que a terceirização é o coringa do
baralho, pode ser usado em di-
versas situações para reduzir cus-
tos e explorar. Tivemos a refor-
ma trabalhista em 2017, no go-
verno Temer, que trouxe o tra-
balho intermitente, colocou a
prevalência do negociado pela
empresa sobre a convenção co-
letiva, a possibilidade de demis-
são com redução de indenização
e o custo da ação trabalhista po-
dendo recair no trabalhador. No
Brasil, os cerca de 40 milhões de
informais estão em atividades
precárias. Talvez, o teletrabalho
irá significar nada mais nada me-
nos do que uma nova forma de
exploração e ainda mais cruel,
pois muitos vão trabalhar nessa
condição por necessidade e acre-
ditarão nisso como opção, como
acreditamos em muitas coisas,
como o empreendedorismo,
que hoje mostra sua face mais
cruel. Uma gama enorme de en-
tregadores por aplicativos cor-
rem riscos nas ruas para ma-
nutenção do isolamento social.
Não fazem isso por vontade, mas
por necessidade. Falar em te-
letrabalho em países com altos
níveis de seguridade social e
educação de qualidade, é uma
coisa, falar sobre isso com nosso
passado e presente de mazelas,
violências e desigualdades, é to-
talmente diferente.
O discurso pró-empreendedoris-
mo sairá enfraquecido?
Totalmente.
O Benefício Emergencial de Pre-
servação do Emprego e da Renda
(BEm), do governo federal, dá
complementação financeira aos
trabalhadores que tiveram a jor-
nada reduzida e seguro-desempre-
go para os que tiveram contrato
suspenso, sendo que a redução de
jornadas e a suspensão de con-
tratos foram permitidos pelo Es-
tado. Como avalia a estratégia?
Totalmente insuficiente. Penali-
za o lado mais fraco da relação
contratual, o trabalhador. Para
os informais, autônomos e de-
sempregados, o governo tentou
oferecer apenas R$ 200. O valor
de R$ 600 por mês também é
muito pouco, mas já melhorou.
Estavam com medo de endividar
o Estado, mas é melhor endi-
vidar e garantir o isolamento e
que as pessoas não morram
também de fome, desnutrição e
baixa imunidade. Ou será que o
receio era faltar dinheiro para os
bancos e rentistas? Não implan-
tar uma política séria de apoio
social agora é um ato, no mí-
nimo, genocida, de eugenista,
pois passa a ideia de que os mais
fracos e vulneráveis devem mor-
rer para os fortes triunfarem. A
professora de direito Renata Dul-
tra, da UnB, fez uma análise ex-
celente sobre a MP 927. Ela sin-
tetiza que a MP recomendou, de
fato, os trabalhadores a ficarem
em casa, mas com perda de di-
reitos. Isso é regressão social.
Quais seriam as soluções alterna-
tivas a essas medidas?
Redução de impostos para em-
juros da dívida pública, que vai
para bancos e acionistas, para
gerar dinheiro para o Estado
apoiar trabalhadores e empre-
sas; instituir, de forma urgente,
o imposto sobre grandes fortu-
nas e grandes heranças, como
acontece em quase todos os paí-
ses do mundo e como vem sendo
dito e redito por economistas e
intelectuais. Esses são alguns ca-
minhos. Pode também retomar
a lógica de estilo keynesiano do
Estado participar da economia,
regular e proteger, como ocor-
reu após as guerras mundiais,
quando se criou o estado de
bem-estar social e também o
pacto fordista de dar uma con-
dição mínima para o trabalha-
dor. Temos possibilidades de
pensar um novo tipo de socie-
dade, mais coletiva, solidária,
humanitária e socialista. Pode
ser uma nova era de utopias.
Os sindicatos brasileiros têm cum-
prido seu papel nessa discussão?
Eles não estão nem sendo cha-
mados para dialogar. Também,
que tipo de governo federal é
esse que temos? Um presidente
que vai em ato pró-AI-5 e pró-di-
tadura, que ameaça STF, ridicu-
lariza a morte de brasileiros. Um
governo que governa isolado,
por si e para si, e para os seus,
que não conversa com o par-
lamento e muito menos com sin-
dicatos. Vivemos um show de
horrores nunca visto em gover-
nos eleitos após o fim da di-
tadura civil-militar no Brasil. Os
sindicatos devem se unir, pres-
sionar mais e se prepararem pa-
ra a crise econômica e política
que está aí, com mais unidade e
parcerias, menos divergências.
Precisam baixar bandeiras seto-
riais e concepções individualiza-
das e seguir em uma frente co-
mum em defesa da democracia,
dos direitos e da vida.
O isolamento dos trabalhadores
no teletrabalho pode enfraquecer
mais sua organização política?
Sim, mas é preciso inventar no-
vas formas de mobilização e, em
parte, isso já vem ocorrendo com
os panelaços e nas redes sociais.
Acho que o pós-pandemia, ape-
sar da grande crise econômica
que teremos, vai ser de mais
mobilização e ação coletiva. His-
lista, se expandiu impondo
agendas de destruição do meio
ambiente, austeridade e redu-
ção de direitos, tivemos resis-
tência, contestações nas ruas,
black blocks, fortalecimento de
grupos progressistas, culturais…
Sou otimista. Acho que pode-
mos ter outra globalização, co-
mo pregava nosso conterrâneo
baiano e grandioso professor
Milton Santos.
A exploração da classe trabalha-
dora é tema recorrente na filosofia
e sociologia. Alguns pensadores
dessas áreas, porém, apontam
que a chegada da tecnologia em
quase todas as áreas laborais fará
com que a classe de explorados se
torne a de “pessoas inúteis”. Como
avalia essa previsão?
Um equívoco total. Novas for-
mas de trabalho e de vida sem-
pre vão surgindo. É assim desde
que o mundo é mundo. A an-
tropologia já mostrou outras ló-
gicas e arranjos sociais que não
seguem o modo de ser e de viver
do capitalismo. É o caso de povos
indígenas, comunidades qui-
lombolas, rurais, de outros paí-
ses. O mundo não é igual. De
fato, a globalização mostrou sua
conexão trágica pelo coronaví-
rus. Mas temos que ter o olhar
crítico para evitar o mito salva-
cionista do mundo digital. Pri-
meiro, a tecnologia não existe
por si, mas com mediação hu-
mana. Segundo, profissões de-
saparecem e outras surgem.
Lembra do amolador de tesoura
e faca? O taboqueiro em Sal-
vador? Devemos considerar
também que, em plena socie-
dade digital, ainda precisamos
de coisas básicas, como produ-
ção agrícola e limpeza urbana.
Nem tudo vai junto nesse novo
mundo, nem da mesma forma.
Terceiro, se algumas pessoas são
tidas como inúteis, isso revela
um problema social. Por que
umas são classificadas assim e
outras não? Quem define isso?
Por que elas estão nessa con-
dição? Será que a culpa não é da
sociedade que não forneceu
meios iguais de inserção social e
qualificação laboral e educacio-
nal? Precisamos colocar na roda
elementos estruturais para de-
pois falar nesse binômio “útil” e
“não útil”.