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PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2607.

NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

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ARTES, LETRAS E IDEIAS

FISIOGNOMONIA O QUE DIZ UMA FACE


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FISIOGNOMONIA
Notas sobre a face, o carácter, a expressão das emoções e da sua aplicação nas ciências e nas artes

Fisiognomonia (gr. physiognomia; Zazie


in. physiognomonics; fr. Physiognomo- in Conta Natura

R
nie; al. Physiognomik; it. Fisiognomicà). azão deve ter tido Momus que
de todos os deuses troçava e
não perdoou a Hefesto não ter
Arte de julgar o caráter  do  homem, colocado uma janela no peito
seu  modo  de sentir e de  pensar, a partir dos humanos de modo a desvendar-se-
de sua aparência visível, especialmente a -lhes os segredos. E não faltou ao longo
partir dos traços fisionômicos.  Aristóte- dos tempos quem procurasse por outras
vias essas manifestações mais escondi-
les (seguido por muitos escritores antigos das da alma. O corpo, principalmente
e medievais) já admitira a  possibilida- a face, há-de mostrar essas marcas da
de de julgar a natureza de uma coisa com personalidade e do carácter humano –
base em sua forma corpórea (An. pr., II, a máscara sempre foi a persona, coube
27, 70 b 7). Cícero falava de um fisiog- aos fisionomistas a tarefa mágica ou
nomonista, Zopiro, que se vangloriava científica da decifração dessas marcas
impossíveis de esconder.
de conhecer a natureza e ocaráter  dos A prática já era conhecida na Suméria e
homens pelo exame de seu corpo, ou seja, antigo Egipto. Na antiga Roma tornou-
de seus olhos, seu rosto e sua testa (De -se comum entre os grandes senhores
Fato, V, 10). Mas foi principalmente possuírem um metoposcopi com dons
no Renascimento que essa arte foi culti- para ler nas rugas da face o carácter dos
vada, a começar por Giambattista della que os rodeavam, numa antecipação da
psicologia política que mais tarde tam-
Porta, que, em 1580, publicou o livro bém será receita recomendada por um
Sulla fisiognomonia umana. Esse tipo de Castiglione ou Maquiavel.
estudo foi muito difundido no séc. XVIII O percurso da magia para a ciência vai
por Lavater (Fragmentos fisiognomonia, ter muitos elos e entrosamentos. Da
1775-78). O  próprio  Kant  reconheceu busca esotérica dos sintomas da alma
o valor da fisiognomonia (Antr., 11, cap. cósmica aos estudos da psicologia mo-
derna, muitos entrosamentos houve
III). Hegel distingue-a das más artes e dos pelo caminho e à fisionomia tanto se
estudos inúteis porque ela afirma a uni- dedicaram médicos como filósofos, ma-
dade entre interior e exterior (Phänomen. gos e artistas. A adivinhação da alma e
des Geistes, I, parte 1, cap. V; trad. it., as bizarrias zoomórifcas da animalidade
p. 281). Nos tempos modernos a fisiog- escondida por baixo da pele necessita-
nomonia  também tem defensores  não  só rão tanto do mistério como da arte da
revelação.
entre os psicólogos  e caracterologistas, Em pleno século XVII ainda Lavater
mas também entre filósofos. Spengler dis- questionava a importância das mani-
se: “A  morfologia  do que é mecânico e festações físicas do psiquismo humano,
amplo, ciência que descobre e ordena re- interrogando-se sobre a sua natureza:
lações causais, é chamada de sistemática. “o que é a natureza universal senão fi-
A morfologia do que é orgânico, da his- sionomia. Não se reduz tudo a superfí-
cie e conteúdos? Corpo e alma? Efeito
tória e da vida, de tudo aquilo que traz em externo e faculdade interna? Princípio
si direção e destino, é chamada fisiogno- invisível e fim visível?”
monia” (Untergang des Abendlandes, I, Em pleno século XVII ainda Lavater Como pesquisas associadas à medicina
p. 134). R. Kassner afirmou a identida- as fisionomias têm em Hipócrates o ini-
de entre psicologia e fisiognomonia, ale- questionava a importância das manifestações ciador, usando pela primeira vez o ter-
mo no tratado acerca das epidemias, no
gando que a antiga distinção entre ser e
aparecer não tem valor: “A psicologia físicas do psiquismo humano, interrogando- sentido do julgamento de alguém pela
aparência física.
deve então ser  fisiognomonia  e qualquer
outra é tediosa e banal, pois, como tudo
se sobre a sua natureza: “o que é a natureza O desenvolvimento desta arte divina-
tória entre as formas animais e as fisio-
consiste na visão, nada há que precise ser universal senão fisionomia. Não se reduz tudo nomias humanas chega à Idade Média
através de outros tratados em que o
mais investigado ou descoberto, retiran-
do uma camada de aparência depois da a superfície e conteúdos? Corpo e alma? Efeito carácter hermético predomina. Tal é o
caso dos estudos do Pseudo Aristóteles,
outra” (Dasphysiognomische Weltbild,
Intr.; trad. it. em Os elementos da gran- externo e faculdade interna? Princípio invisível Adamantios, Polemon e o pseudo Apu-
leius que transitam do mundo clássico
deza  humana, 1942, pp. 6l ss.). [Ab- e fim visível?” por via de traduções e tratados árabes
bagnano] do género, como o manual de medici-
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na de Kitab al-Mansuri fi al-tibb (The cos, chegou a sistematizar 800 tipolo-


Book of Medicine para Mansur), de gias capazes de identificarem idênticas
Rhazes ou o de Kitâb al Firâsa de Al- variantes de carácter e outros efeitos
-Râzi (1209) acessórios como a detecção de uma mu-
Por influência do neoplatonismo e re- lher adúltera por esta forma.
crudescimento do fundo de tradição Della Porta não se limita a compilar a
mágica, estas artes ganham novo fôlego tradição do passado. As suas tipologias
a partir do Renascimento. faciais e psíquicas vão mais longe que a
Giambatista della Porta (1541- 1615), moralização em torno da bestialização
personagem de gostos excêntricos e do homem, como acontecia nos tra-
dotado de conhecimento enciclopédi- tados medievais. Basta recordar que o
co que abarcava criptografia, horticul- fabulário no género como é o caso do
tura, estudos de óptica, astrologia, ma- Roman de Fauvel que fazia parte de uma
temática e fortificações, retoma e coli- recolha em que incluía também o velho
ge estes estudos no tratado De Humana Segredo dos Segredos de tradição aris-
Physiognomia, publicado em Nápoles totélica.
no ano de 1586. Giambattista della Porta acentua o lado
O corpo humano é visto como um li- bizarro nas ilustrações que acompa-
vro, passível de ser lido por quem pos- nham o tratado e insinua-se por áreas
sua a arte dos oráculos. O intuito da em que a humanidade se expande para
obra explica-se silogisticamente. outros reinos A pesquisa de semelhanças
1- cada espécie animal tem a sua for- cósmicas leva-o a procurar semelhanças
ma correspondente às suas proprieda- no próprio reino vegetal, afastando-se
des e às suas paixões; 2- os elementos assim da legitimação moralizadora em
dessas figuras encontram-se no homem; que ainda se podiam incluir os zoomor-
3- o homem possui esses mesmos tra- fismos.
ços tem, por consequência, um carácter São os olhos, as sobrancelhas, que se
análogo. comparam a ramos e raízes, como se
O homem-leão - poderoso e generoso, toda a geração estivesse sujeita aos mes-
possui peito largo, espáduas amplas e mos princípios indecifráveis, caminhan-
mãos e pés longos. do para a possibilidade do homúnculo
Neste exercício todos os detalhes são liberto das grilhetas adamitas. O corpo
analisados minuciosamente do nariz, e o natureza fundem-se; ramificam-se os
à forma das sobrancelhas, tipologia da dedos das mãos do mesmo modo que
boca, etc., nada fica de fora. O exercí- as raízes de uma planta; arqueiam-se so-
cio é magnificamente ilustrado em gra- brancelhas como o corpo de um roedor;
vuras, procurando imagens históricas todos os detalhes e partes da antureza
de personagens notáveis tornam-se metáforas recíprocas, exa-
Gravuras zoomórficas de Charles Le Brun E assim aparece o Platão-cão; o Só-
crates-veado; o Sérgius Galba- águia
minadas como se de uma enciclopédia
das formas se tratasse. NoDe Huma-
e muito outros. Curiosa é a explicação na Physiognomia (1586) os paralelos
das características de Sócrates – o nariz transformam-se numa autêntica taxio-
achatado nítido revelador da luxúria... nomia iconográfica.Os dentes humanos
mas a mais exótica é esta novidade do fazem lembrar os “dentes” na casca de
famoso rinoceronte de Durer justapos- um ananás, nas sementes de um fruto ou
to à efígie do grande poeta Policiano. na raiz de uma flor. As expressões fa-
Alguns exemplos parecem recolhidos ciais conjugam-se com um catálogo do
do senso comum. O Pseudo Aristóte- reino vegetal e incluem receitas à base
les, por exemplo, dizia que os cabelos de ervanária aplicada a cada órgão do
finos, o corpo flácido, os molares acha- corpo.
tados, face pálida e olhos fracos e pes- Esta cartografia da face e da alma, ainda
tanejantes são características de pesso- esteve sob censura por parte da Igreja,
as tímidas. Mas outras características a quem nunca agradaram as artes mági-
provêm da tradição astrológica baseada cas, mas escapou ao Índex com o bom
na crença da ligação do macrocosmos argumento que os traços humanos ape-
ao microcosmos e na velha teoria dos nas atestam predisposições e que o li-
humores. Em cada indivíduos seria pos- vre-arbítrio da consciência permanecia.
sível detectar as marcas desse todo ope- A convivência destas tradições ma-
rante, pois o ser humano não possuía terialistas com a ortodoxia religiosa
uma natureza particular em relação aos prossegue de forma mais pacífica que
outros seres vivos. muitas vezes se supõe. Em pleno sécu-
Nesta base serão vão estabelecidas as lo XVII o erudito médico Sir Thomas
características psicológicas comuns Browne (1605-82) na Religio medici
ao próprio temperamento dos animais (1635) continua a afirmar que certos
“patronos” do seu nascimento. Acres- caracteres na nossa face que transpor-
cente-se o contributo da Metoposco- tam o moto das nossas almas, discor-
pia, ciência inventada pelo notável dando que tal se deva à influência pla-
matemático e físico Gerolamo Carda- netária pois pensa que apenas exprime
no (1501-1576), que traçava paralelos o temperamento.
entre as rugas da testa e o efeito dos A importância da ilustração figurativa
planetas sob cuja égide o indivíduo é decisiva, razão pela qual os próprios
nasceu. médicos conseguiam maior aprovação
Cardano, cuja vida trágica atesta tam- das teorias pela capacidade de ilustra-
bém o carácter aventureiro destes pri- rem os seus tratados. No caso destas
mórdios místicos dos estudos científi- experiências em torno das marcas fisio-
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nómicas os caminhos entrecruzam-se e


vão caminhar a par até muito tarde.
Assiste-se a uma
Lavater tanto recebe esta herança por
via de Giambattista como usa os desen-
evolução da própria
volvimentos que Charles le Brun, pintor
de corte de Luís XV e ditador das belas
noção de riso medieval-
artes conservadoras da corte havia de-
senvolvido.
grotesco e escancarado
O talento de desenhador está bem
patente no refinamento que imprime
- para a um gozo mais
nestes desvios por trabalhos “menores”
que só vieram a ser publicados postu-
subtil, a partir do
mamente em 1698, como “método para
aprender a desenhar as paixões”.
Renascimento.
A ilustração torna-se decisiva para a di-
vulgação destes estudos, motivo pelo
qual deparamos com trocas entre artis- por esta diferenciação, a que no entan-
tas e “fisiólogos”. No entanto nem to- to nunca conseguiu dar forma convin-
dos seguem as taxionomias e desenhos cente. Um ano antes de morrer ainda
espartilhados. andava à volta do assunto, a propósito
Foi o que aconteceu com Rubens, igual- dos desenhos dos prepotentes juízes
mente atraído por estas derivações em da série The Bench. Queixava-se que
torno da bestialização da alma humana. não lhe entendiam as marcações de ca-
Nos esboços que executou em Itália e rácter, insistindo em confundi-las com
que acabou por inserir no Tratado da a caricatura, tal como as suas pinturas
figura humana há toda uma interiori- e gravuras satíricas também eram con-
zação da força bestial, em fisionomias sideradas uma arte de segunda.
inquietas e agitadas, cuja potência se Importa salientar a mudança progres-
exterioriza numa espécie de “terriblitá” siva do uso de um bestiário moraliza-
mais próxima de Miguel Angelo que do para uma posterior ideia de mundo
dos catálogos analíticos dos restantes como animal vivo- que tem equivalên-
fisionomistas. cia artística nas bizarrias de um Arcim-
Não terá sido por acaso que foi nele que boldo, como o tem nas ligações éticas
Masson veio beber as influências, quan- e físicas de um Giordano Bruno ou de
do as experiências surrealistas se volta- um Hobbes-, a que se vai seguir a in-
ram de novo para estas tradições mais teriorização no eu psíquico que com
“underground” da arte. Descartes se afasta definitivamente do
Paralelamente também se tinha dado mundo das associações mágicas.
uma bifurcação artística entre esta “car- As trocas de influências entre a arte e
tografia” de marcas astrológicas do ca- a ciência continuaram na obra de La-
rácter humano e as derivações “bárba- vater e atingiram um dos momentos
ras” e satíricas, mais próximas da etimo- mais importantes quando, Theódore
logia das momices do deus grego. Géricault acompanhou os estudos de
Com efeito, assiste-se a uma evolução Georget, precursor da psicanálise, cap-
da própria noção de riso medieval- gro- tando na tela as primeiras tipologias de
tesco e escancarado - para a um gozo doenças mentais. Com este passo sepa-
mais subtil, a partir do Renascimento. rava-se a caricatura monstruosa como
Artisticamente os zoomorfismos vão marca de Deus para assinalar o desvio
dando lugar a exageros caricaturais das maligno, da patologia humana passível
próprias feições, tornando-as bestiais de entendimento e cura.
sem necessitarem de perder a intrínse- Contudo, o velho Tratado de Lavater
ca natureza humana. Leonardo da Vinci não estava esquecido. No apogeu do
praticou-o à margem, neste caso sem nazismo recuperam-se estas “cartogra-
qualquer intuito para-científico, apenas fias” da alma, frenologias e metrosco-
como um refinamento do humor dando pias congéneres, no intuito de se cria-
origem à caricatura. rem definitivas taxionomias de raças.
Simplesmente a caricatura era um des- O corpo teórico da Ciência, tal como
regramento facial, uma bestialização do o da Arte, nunca foi neutro mas os
ser humano por excessos que monstruo- cruzamentos operados atestam como
sos em que perde a sua humanidade sem o percurso de institucionalização da
no entanto reflectir qualquer particula- primeira também equivalem à des-
ridade cósmica ou psicológica passível montagem dosatus quo da segunda.
de organização sistémica. Na charneira encontra-se a valoriza-
O problema não será detectado por ção do grande iceberg escondido- as
um cientista mas por um pintor satí- pulsões automáticas que constituem o
rico. Hogarth, (1697-1764) deu se- Eu- capazes de o universalizar dispen-
guimento à fisionomia e no tratado de sando na Arte o génio-criador e dando
estética-Analysis of Beauty(1753), não origem na Ciência a “novos magos”. A
só aconselha os artistas a estudarem os psicologia moderna também ganhou
trabalhos de Le Brun como tentou (ain- em precisão tanto quanto perdeu em
da que sem grandes resultados) separar ambição cósmica- os remendos dos
os traços de carácter das caricaturas, de novos “psico-oráculos” deixaram de as-
modo a que estes não fossem tomados pirar a harmonias que vão muito mais
por troça. além do mundo do emprego ou do
Hogarth teve uma verdadeira obsessão apartamento.
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BREVÍSSIMAS NOTAS DE FISIOGNOMIA CHINESA


O
S ANTIGOS CHINESES uma personalidade forte e saúde perfeita. turbado. A clareza mental fica prejudica-
davam grande importância Maçãs do rosto arredondadas, ideias pró- da. Já um tom rosado na face mostra um
a todos os detalhes da face, prias. shen forte, sadio. 
pois acreditavam que simbo- Nariz reto com ponta arredondada, gran- Face esverdeada: quando uma raiva sú-
lizam o destino da pessoa. Testa larga, de capacidade de ganhar dinheiro. E boca bita e intensa é despertada, ela pertur-
lisa e brilhante, por exemplo, indicava exuberante com os cantos virados para ba o espírito hun, que reside no fígado,
uma pessoa com espírito de liderança e baixo, personalidade emotiva. Porém a e obscurece a criação, a coragem e a
comunicativa, com promessa de carreira leitura parte de quatro formatos básicos intuição. Também indica desarmonia
profissional bem-sucedida. Têmporas lar- de rosto.  emocional. 
gas, claras, cheias, sem pintas, linhas ou Segundo a medicina chinesa, a cor das Face esbranquiçada: sensações fortes de
cabelos prometiam viagens agradáveis. Já faces é alterada quando existem desarmo- perigo eminente e tristeza desarmonizam
a vida tranquila, sem doenças e dificulda- nias ou perturbações nos cinco espíritos, o espírito po, relacionado ao pulmão.
des, dependia do espaço entre as sobran- cada um deles relacionado a um órgão: Ele fornece o instinto de conservação e
celhas. O espírito shen corresponde a mente e as reações imediatas. Em desequilíbrio,
A técnica chinesa de leitura do rosto, a coração. Hun rege o fígado. Por relacio- diminui a energia vital. 
fisiognomonia, analisa boca, olhos, so- na-se ao pulmão. Yi é associado ao inte- Face amarelada: desequilíbrio no espírito
brancelhas, nariz, queixo, testa e orelhas, lecto e ao baço-pâncreas. E zhi aos rins. yi (intelecto). Sinal de sobrecarga mental
separadamente. Face com vermelhidão forte e persisten- e falta de concentração. 
A testa grande e lisa, por exemplo, indica te: indica que shen, o espírito responsável Pele acinzentada: o medo profundo afec-
uma infância feliz e inteligência. Sobran- pelas actividades mentais (pensamento, ta o espírito zhi. E assim diminui a força
celhas grossas e bem desenhadas mostram memória e consciência), pode estar per- de vontade e a determinação.

ROSTO DE MADEIRA
É comprido e fino. Todo o
contorno é rectangular, desde
a testa até o queixo. Também
costuma ter nariz recto, orelhas
compridas, sulcos profundos
e sobrancelhas longas e finas.
Este formato fica mais evidente
quando a pessoa é alta e magra.
É considerada amável, solidária
e preocupada com as questões
sociais, como uma árvore fron-
dosa que protege as pessoas do
sol quente.

ROSTO DE ÁGUA ROSTO DE FOGO ROSTO DE METAL ROSTO DE TERRA


Arredondado e cheio, sendo quase im- A região média é mais larga, destacan- Bem quadrado. Os ossos e a pele são firmes, Aspecto pesado, com cabeça e
possível ver os ossos e as depressões. do as maçãs e o nariz. A região inferior, a testa é larga e a boca e o queixo, grandes boca grandes, maçãs cheias, so-
Fica ainda mais caracterizado quando ao contrário, é mais estreita, maxilar e e cheios. A estrutura óssea é mais visível do brancelhas grossas, nariz e ore-
a pessoa é baixinha e gordinha, com queixo recuados. Normalmente, são que no rosto de água. Transmite uma ima- lhas carnudas. São pessoas de
a barriga saliente e as costas largas. A pessoas de cabeça quente, corajosas, gem de força e firmeza. Pessoas com rosto temperamento estável, calmas,
personalidade é tão flexível e adaptável ambiciosas, impetuosas e, algumas ve- de metal são sinceras e directas. Têm bas- reservadas. São também exigen-
quanto a água.  zes, cruéis.  tante clareza mental e podem ser calculistas. tes, responsáveis e rigorosas. 
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Luís Bernatrdi
In O Holoscópio O EXCÊNTRICO CONSELHEIRO comendador não tem pés nem cabeça”.
Sobre a recepção que esta obra teve em

GAMA MACHADO
Portugal, o mesmo Alberto Pessoa escre-
veu o seguinte:
JOSÉ JOAQUIM Gama Machado A Academia de Sciências de Lisboa não
(1775-1861), fidalgo da Casa Real, co- só agradeceu por mais duma vez, em ter-
mendador da Ordem de Cristo, conse- mos elogiosos, a oferta dos volumes da
lheiro de Legação de Portugal em Paris Théorie des Ressemblances, mas chegou mes-
e sócio correspondente da Academia mo a eleger o seu autor, na sessão da As-
Real de Ciências de Lisboa foi uma ex- sembleia de Efectivos de 4 de Fevereiro
cêntrica figura portuguesa, que viveu de 1853, sócio correspondente […].
em Paris desde 1806 até à sua morte. A O cardeal Saraiva recebeu igualmente
excentricidade deste homem, celebra- uma cópia da  Théorie, tendo agradecido
da na obra Les Excentriques de Cham- ao autor por carta e onde escreveu “há
pfleury, revelou-se na sua forma de vida, muito tempo não li huma Obra, que tan-
na obra que escreveu e publicou e no to me recreasse, instruisse e illustrasse”.
conteúdo do seu testamento. Este era um comentário inesperado já
Gama Machado dedicou-se com paixão que o clero francês tinha criticado com
violenta ao estudo da história natural, muita veemência as ideias materialistas
uma actividade que o absorveu total- expressas nesse livro.
mente nos últimos anos da sua vida, ao A biblioteca da Câmara dos Pares foi
ponto de se levantarem justas dúvidas igualmente contemplada com uma có-
sobre a integridade das suas capacidades pia da  Théorie, que foi aparentemente
mentais. Com o objectivo de satisfazer muito apreciada. A Mesa da Câmara foi
a enorme curiosidade e de ter sempre à encarregada de endereçar ao distinto co-
mão os objectos dos seus estudos, este mendador uma carta de agradecimento a
ilustre português vivia rodeado de pás- qual muito o sensibilizou.
saros vivos das mais variadas espécies, Como se explica, então, que uma obra de
sendo alguns de grande raridade. Pos- tão má qualidade científica e com ideias
suía, além disso, “aves e outros animais tão contrárias à religião fosse tão elogia-
ampalhados, caixas com borboletas e da pela Academia de Ciências, pelo car-
outros insectos” provenientes de todas deal de Lisboa e pela Câmara dos Pares?
as partes do mundo. Alberto Pessoa apresenta uma justifi-
Segundo as suas próprias palavras, o fim cação possível, que parece igualmente
essencial do seu trabalho era: muito acertada:
Demonstrar duma maneira incontestá- O homem era rico, amável, bem rela-
vel, para as pessoas mesmo as menos cionado, tinha amigos e parentes em
familiarizadas com o estudo das sciên- altas situações. Ninguém o queria des-
cias naturais, que aí onde se encontrem gostar, a êle que se desfazia em amabi-
formas, robes [roupagens] e côres idên- lidades para tôda a gente. A obra tinha
ticas, na imensa série dos seres orga- aspecto considerável, grande formato,
nizados, aí se encontrarão também as óptimo papel, elegância tipográfica,
mesmas conformidades de instintos, de magníficas estampas. Tudo isto infun-
habitos e costumes. de respeito. Quem recebia um volume,
Noutras palavras, Gama Machado pro- oferecido pelo autor, folheava-o, ad-
punha-se estabelecer as leis gerais de mirava as figuras, lia bocado aqui, bo-
semelhanças comportamentais entre
animais e o próprio homem, com base
em semelhanças na morfologia exte-
rior desses seres animados. Expôs as sua
originais teorias na obra  Théorie des
Ressemblances  (1831-1858), constitu- O fim essencial do seu trabalho era:
ída por 4 grossos volumes e mandada
imprimir à sua custa. Nela cita obras de Demonstrar duma maneira
autores famosos como o frenologista
Franz Gall (1758-1828), o naturalista incontestável, para as pessoas mesmo
Charles Bonnet (1720-1793), e, prin-
cipalmente, o filósofo natural renas- as menos familiarizadas com o estudo
centista Giovanni Battista della Porta
(1535?-1615) – autor deDe Humana das sciências naturais, que aí onde se
Physiognomonia (1586), Phytognomo-
niae  (1591) eCoelestis Physiognomo- encontrem formas, robes [roupagens]
niae (1601) – o qual parece ter sido seu
grande inspirador e mestre. e côres idênticas, na imensa série dos
Em 1926, o médico Alberto Pessoa
(1883-1942) escreveu um extenso ar- seres organizados, aí se encontrarão
tigo, na Revista da Universidade de
Coimbra, onde fez o relato da vida e também as mesmas conformidades de
obra de J. J. da Gama Machado e onde
afirma que “o grande livro do nosso José instintos, de habitos e costumes.
Joaquim da Gama Machado é, e sempre
foi, uma das mais extraordinárias colec-
ções de disparates que têm aparecido
à superfície da terra” e que “o livro do
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cado acolá, achava tudo muito curioso


e, se não era do métier, ficava pensando
que por certo lá estaria a última palavra
da sciência. Os outros, os naturalistas,
esses é de crer que não tomassem muito
a sério as descobertas do comendador.
Lá uns com os outros, sabe Deus o que
diriam; mas, coitados, em público, não
diziam nada, calavam-se prudentemen-
te, bem sabiam que, se falassem, nin-
guém os acreditaria e que se sujeitavam
a ser acusados de invejosos. Assim se
criou e sòlidamente se estabeleceu uma
reputação que o Parlamento, as Uni-
versidades, as Academias e os eruditos
consagraram…
E talvez não seja caso único…
Alberto Pessoa conclui esta discussão
com alguma graça:
A obra de Gama Machado está hoje
completamente esquecida. Desconfio
mesmo que fui eu a única pessoa que re-
centemente a leu de fio a pavio. Alguma
coisa também havia de fazer um dia, que
os outros não tivessem feito…
O testamento de Gama Machado (que
morreu com 86 ou 87 anos) foi sendo
escrito ao longo de décadas. Tinha um
elevado número de correcções e adita-
mentos e estava cheio de incongruên-
cias e incompatibilidades. Após a sua a do monetário importante. Toda esta
morte, a partilha da enorme fortuna que generosidade não pôde no entanto ser
deixava – avaliada em cerca de um mi- concretizada, porque a fortuna, embo-
lhão de francos – teve que ser decidida ra grande, não cobria todas as despesas
em tribunal durante um julgamento que indicadas pelo benemérito conselheiro.
deu brado em toda a cidade de Paris. A A excentricidade mais notável do testa-
sua colecção de pássaros foi deixada à mento de Gama Machado relaciona-se
governanta, Elisabeth Perrot, da qual no entanto com o seu funeral:
tinha tido um “filho natural”. A maior Desejo que o meu corpo seja guardado
parte do dinheiro foi distribuído por fa- o mais tempo possível, e colocado num
miliares. Alguns objectos foram doados caixão de chumbo. O meu corpo será le-
a entidades portuguesas: à Academia de vado directamente ao cemitério do Pire-
Ciências de Lisboa – uma colecção de -Lachaise: gastar-se-à o menos dinheiro
aves empalhadas e desenhos originais da possível (despesa inútil de vaidade).
sua Théorie des Ressemblances – à Uni- Tomar-se-á para modêlo do meu túmu-
versidade de Coimbra – cabeças de ges- lo o que mandei elevar ao meu estor-
so do sistema Gall, um pequeno busto ninho; esta ave, estando embalsamada,
do comendador, dois vasos de porcelana depositar-se-à o seu corpo com o meu.
e dois quadros – e ao Príncipe Real de Este modêlo será enviado para Lisboa.
Portugal – algumas colecções de histó- Os meus cavalos acompanharão o meu
ria natural (aves embalsamadas). Deixou entêrro sem puxar ao meu carro, o meu
ainda fundos destinados à divulgação da criado de quarto levará numa pequena
teoria das semelhanças para que pudesse gaiola uma das minhas aves favoritas.
ser professada em cursos no Ateneu Real Proíbo expressamente que se convide
de Paris, na Société des Sciences Natu- seja quem fôr para o meu entêrro. Os
relles, de que era membro, e na Acade- meus criados acompanharão o meu cor-
mia de Ciências de Lisboa. Neste últi- po no meu entêrro; será o último teste-
mo caso, o fundo deveria ser “aplicado munho de reconhecimento por todas as
expressamente ao estudo dos costumes bondades que tive para com eles. […] O
das aves de capoeira, indígenas e exóti- meu entêrro terá logar às três horas da
cas” e, em princípio, os cursos deveriam tarde, à hora em que os corvos do Lou-
realizar-se em Lisboa e em Coimbra. À vre têm o costume de vir procurar o seu
Academia de Ciências de Paris deixou jantar”[…]. Servir-se-ão do meu caixão
um fundo para um “Prix da Gama Ma- que tem relação com o meu trabalho das
chado” destinado “à melhor memória sciências naturais. Êste caixão encontra-
sobre as partes coloridas dos sistemas -se em minha casa, bem como a morta-
tegumentosos dos animais ou sobre a lha. […] Depositar-se-ão no meu caixão
matéria fecundante dos seres animados”, as aves contidas nos quatro túmulos que
o qual, efectivamente, foi atribuído de ornam as minhas colecções de história
três em três anos a vários investigado- natural.
res franceses. O seu amor pelos animais Gama Machado parece ter ainda deter-
tornou-se lendário e naturalmente não minado que lhe metessem no caixão um
podia deixar de legar à Sociedade Pro- volume com as obras de Lucrécio, o seu
tectora dos Animais de Paris um fun- autor favorito!...
h
11 5 2012 8 C H I N A C

NÉVOAS E BRUMAS EM
António Graça de Abreu
黄山 HUANG
ANTÓNIO GRAÇA DE ABREU
O PRIMEIRO dos doze notáveis textos
das Conversas do Chá e do Café1, -- da pena e
inteligência de António Conceição Júnior,
filho de Macau e homem de cultura --, fala
do encontro entre o narrador e Zhou Yun,
uma tocadora de pipa natural da província
de Anhui que lhe vai dedicar um trecho
musical intitulado 黄山云 Huangshan Yun,
ou seja, “Nuvens na Montanha Amarela”.
Terminados os acordes subtis e intensos, o
narrador perguntou a Zhou Yun:

“Quem compôs esta peça?”


A jovem chinesa responde:
“Alguém escutou a montanha!”2

Vamos tentar ouvir a música de Huangshan


ou montanha Amarela que se levanta no sul
da província de Anhui, 450 quilómetros a
oeste de Xangai. É por certo a mais miste-
riosa, surreal e mágica montanha entre to-
das as que polvilham as terras da China, se
esquecermos os Himalaias tibetanos. Tem
também muito menor dimensão do que as
cordilheiras do Tecto do Mundo e apenas
1864 metros de altitude. Mas que interessa
a altura da montanha? Importa é ser habi-
tada por deuses e imortais. Quais deuses,
quais imortais? Os deuses que inventaram
a montanha e os deuses e imortais que os
homens inventaram, e acreditam habitar a
montanha. De resto, “imortal” em chinês
escreve-se 仙xian, ou seja a união dos ca-
racteres人山ren e shan, o que corresponde a
“homem” e “montanha.” Imortal será o ho-
mem que fez sua a montanha e que é per-
tença da montanha.
Cheguei a Huangshan pela primeira vez
na Páscoa do ano de 1998. Viajei então de
avião de Pequim para Tunxi, o aeroporto
que serve a região. Mais uma hora de via-
gem de autocarro, pelo fundo de vales bor-
dejando rios e campos amarelos de colza,
verdes de trigo e dos arbustos do chá, ver-
melhos de azáleas e ameixieiras em flor, e
estava na cidadezinha de Huangshan, no
sopé da serrania.
Depois, foi a subida de teleférico, 3.709
metros de extensão a trepar na cabine numa
viagem de quinze minutos entre picos e o
respirar da névoa. Levava comigo uma pe-
quena trouxa composta por uma muda de
roupa porque ia dormir num hotel lá no
alto, no meio das nuvens. Da saída do tele-
férico até ao hotel Xihai, que significa “Mar
(de Nuvens) do Oeste”, são uns quatro qui- em tudo o que é saliência e reentrância do tro de distância, onde iria ver nascer o sol. Depois, caminhar por Huangshan. Tape-
lómetros a pé com subidas e descidas por corpo, encharcado até ao tutano. Anoite- No lusco-fusco do amanhecer trepei por tes de névoa perfurados aqui e além pelos
escadarias de pedra e caminhos de terra e cia. No hotel, envolto por uma floresta de escadarias íngremes e tortas, tudo enchar- cumes aguçados dos montes como lâminas
gravilha solta. A meio da caminhada come- nuvens, um banho, um jantar simples e o cado pela chuva da noite, agarrando-me a de gigantescas espadas apontando para o
çou a cair uma chuva impiedosa, milhões e descanso da noite. correntes de ferro e corrimãos não muito céu, pinheiros retorcidos pendurados na
milhões de torneirinhas abertas despejando Acordaram-me de madrugada, ainda não seguros. Lá em cima, o sol rompia entre falésia ou crescendo sobre rochedos solitá-
a água do céu sobre o surpreendido turista nascera o dia. Fazia frio e emprestaram- mares e mares de nuvens brancas. Respirei rios, cascatas de brumas subindo e descen-
lusitano e mais umas centenas de despreve- -me um casacão acolchoado para subir ao o silêncio, comi mil pedaços de névoa e do pela penedia empurradas pelo vento,
nidos chineses. Cheguei ao hotel molhado pico das Rochas Flutuantes, a um quilóme- bebi a montanha. vertentes escarpadas cortadas por infindá-
h 9

11 5 2012
R Ó N I C A

GSHAN, A MONTANHA AMARELA


nhos, e pode-se contar com duas horas de
fila para se subir e descer a montanha em
cada um dos três teleféricos que a cruzam.
A montanha suspensa no fio Para a inserção total do viajante no imenso
corpo da montanha poder-se-á ascender a
das nuvens, o beijo das brumas pé até aos cumes mágicos seguindo a rota
dos caminhos e escadarias, desde os vales
voando, todos os sonhos do ano luxuriantes até aos penhascos pendurados
nas nuvens. É um dia inteiro de escalada
diluídos na névoa. que se prolonga por dez ou quinze quiló-
metros de maravilhas, com milhares e mi-
lhares de degraus a subir. Uma hora depois
de se chegar lá acima, os músculos das per-
nas bamboleiam como se tivessem sido re-
cheados com geleia, em todo o corpo paira
uma esmagadora sensação de cansaço, não
muito agradável.
Como não existem estradas que conduzam
ao topo, muitos dos produtos levados para
os três ou quatro hotéis existentes no cimo
de Huangshan são transportados às costas
por carregadores que sobem as infindáveis
escadarias curvados ao peso das mercado-
rias que oscilam num equilíbrio ritmado na
extremidade de varapaus flexíveis de bam-
bu. Os homens estão habituados, mas dói
de ver.
Lá em cima, o viajante pode sempre entrar
pelos recantos mais escondidos e menos
percorridos pela correnteza de chineses. A
vastidão da montanha Amarela possibilita
o comungar solitário com os imortais e os
pequenos deuses da grande natureza. E dá
para procurar o afastamento das gentes, ca-
minhar no silêncio por vales sinuosos, com
rochas à solta suspensas nas alturas, e ouvir
pinheiros imponentes sussurrando na brisa.
Na Abril de 2011, à noite, no pequeno
quarto do hotel Shizi Lin, ou seja, do “Bos-
que do Leão”, meio escondido numa plata-
forma abrigada da montanha, fiz o balanço
do dia e escrevi:

Entro pelo vale Esmeralda,


um pinheiro com mil anos saúda o viajante,
lá em cima, acenam picos habitados por deuses.
Avanço entre penhascos por montanhas verdes,
lavo os olhos nas torrentes brancas,
os ouvidos na música das cascatas,
o corpo leve flutua na neblina azul.

Os imortais vêm ao meu encontro e dizem:


“Esta é a nossa casa
e também o teu lar”.

Regressando às Conversas do António Con-


ceição Júnior, é bom seguir o conselho de
Zhou Yun, a bonita mulher de Anhui expa-
veis degraus rasgados na pedra, pequenas ou menos o seguinte: “Depois de visitar Desta vez, quase não havia nuvens. Con- triada em Macau, e viajar até Huangshan.
quedas de água faiscando ao longe. Huangshan, para quê subir outras monta- templar toda a majestade da montanha, os Para escutar a montanha.
A montanha suspensa no fio das nuvens, o nhas”. Tenho-me perdido em ascensões mais espaços imensos do vazio, os horizontes
beijo das brumas voando, todos os sonhos ou menos amenas por umas tantas montanhas recortados na pedra e no azul baço do céu.
do ano diluídos na névoa. sagradas da velha China, mas o bom filho à Mas nem tudo são perfeições em Huan-
É Primavera, mas que importa? Na monta- casa torna e como a montanha Amarela é uma gshan, também por culpa dos homens.
nha Amarela, sol, chuva ou neve, é-me mi- das mães da natureza, lugar onde os homens Se é um dos lugares de beleza natural mais 1 António Conceição Júnior, Conversas do Chá e do Café,
nuciosamente indiferente. se perdem e reencontram, no ano de 2011 eis- famosos da China, a multidão de turistas Macau, Livros do Meio, 2011.
Na China existe um provérbio que diz mais -me de regresso a Huangshan. chineses atravanca picos, escadas e cami- 2 Idem, ibidem, pag. 21
h
11 5 2012 10 D E P R O F U N D I S

a revolta do emir Pedro Lystmann

MINT JULEP OU PIMM’S CUP ?


Estas linhas receberam inspiração de vários
vectores. De um amigo com quem uma convi-
vência longa desenvolveu piadas privadas em
torno do Pimm’s n.1, de um livro de Miguel Es-
teves Cardoso que se chama Com os Copos, e de
uma senhora que escreveu um livro sobre bebi-
das que se chama Victoria Moore (a senhora, o
livro chama-se How to Drink, é de 2009 e é ex-
celente). Este livro, que se debruça sobre bebi-
das alcoólicas e não, está organizado de acordo
com as estações do ano e nele se aconselham
várias bebidas para a celebração desta mais
pagã das estações. Não me desinclino também
a dar a estas crónicas uma pertinência sazonal.
De súbito, estamos de novo na primavera
e, curiosamente, é num bar com uma vocação
muito específica e decididamente não primave-
ril que vamos encontrar feitas à perfeição estas
duas bebidas solares, gloriosas e celebrativas,
onde figura, brilhante, um ingrediente que é a
própria imagem apolínea da frescura e das pro-
messas de março, abril e maio – a hortelã. (Era
necessário que alguém com coragem e sentido
das prioridades escrevesse um artigo sobre a
borragem). e ruidosa, a um acontecimento muito menos
Por teimosia e como modo de excitar no pacífico e impossível de reproduzir num lugar
leitor uma propensão decifratória escolho não como Macau, onde impera um sentido burgue-
identificar o bar onde se podem melhor (penso sinho da ordem e um horror estupidificante
que não haverá em Macau lugar que o ultrapas- pelo desconhecido e pelo excesso: o Derby de
se) apreciar esta duas misturas. Kentucky, em Louisville.
Confesso que a minha surpresa foi relativa. A propósito da edição deste ano da famosa
Já antes, neste bar mais outonal que primaveril, corrida recordem-se com apetite palavras do
reparara que a atenção na confecção das mis- mais famoso cronista deste acontecimento “de-
turas está a um nível superior. O culpado fora cadente e depravado”, um ex-Anjo do Inferno
um Dry Martini preparado com um brilho que de cabeça rapada, Hunter S. Thompson. Esco-
só engana os mais incautos. Não vale a pena lho apenas dois instantes onde figuram referên-
entrar em pormenores. Nos olhos do barman cias à bebida oficial do decadente evento:
que o preparou apercebi uma interrogação e “We could always load up on acid and spend the day
um receio que revelam um tipo de brio que em roaming around the clubhouse grounds with bit sketch
Macau é uma surpresa. pads, laughing hysterically at the natives and swilling
O mesmo se passou, uns dias depois, duran- mint juleps so the cops wouldn’t think we’re abnormal.”
te a prova das bebidas de primavera, o Pimm’s “Thousands of raving, stumbling drunks, getting an-
Cup e o Mint Julep. Um outro engenheiro deste grier and angrier as they lose more and more money. By
mesmo bar dificilmente disfarçou, igualmente, midafternoon they’ll be guzzling mint juleps with both
primeiro a expectativa e depois a satisfação à hands and vomitting on each other between races.”
minha reacção. Um bar que leva tão a sério um Estamos em 1970 e o Derby já acabou.
dos seus elementos fundamentais, o gelo, não Nada de novo na América: “A radio news bulletin
poderia deixar de ser um campeão (no sentido says the National Guard is massacring students at Kent
daquele que pugna por algo) da qualidade. State and Nixon is still bombing Cambodia”. O que
Estas duas bebidas aparecem, no entan- é um Mint Julep? Que melhor sugestão para o
to, irremediavelmente ligadas a dois eventos fim de semana que percorrer os bares de Macau
desportivos primaveris de ar livre e não a uma até chegar finalmente ao único lugar onde este
dissolução de interiores. O Pimm’s Cup, de que será servido com o profissionalismo que os 3
trataremos com mais minúcia noutra altura, primeiros pedem? Ao terceiro I’ll Have Another
àquele que será o acontecimento desportivo o alegre bebente poderá notar que deixou defi-
que mais claramente marca uma época do ano, nitivamente de ligar aos cavalos. Este ano, esta
a do início do Verão: o Torneio de Wimbledon. expressão poderá ter outro gosto. I’ll Have Ano-
O Mint Julep, uma coisa americana boa, sólida ther é o nome do cavalo que ganhou a edição
e perigosa, porventura muito mais masculina deste ano. Mas isso, pouca gente sabe.
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T E R C E I R O O U V I D O

próximo oriente Hugo Pinto

UMA CONVERSA NO TEXAS


COM A “INDIECHINA” EM FUNDO
Já lá vão quase dois meses. No dia 16 de electrónicos como Altered Zones (www.alte- direito a presença assídua em todas as reuniões
Março, trouxe a estas páginas a participação redzones.com) e Tiny Mix Tapes (www.tiny- de família.”
inédita de sete bandas chinesas num dos maio- mixtapes.com). Nem de propósito, a meio da conferência,
res festivais de música de todo o mundo, o nor- A moderação da conversa esteve a cargo um dos oradores lembrou-se de fazer o exer-
te-americano South by Southwest (SXSW), de Charles Saliba, um dos fundadores da edi- cício de perguntar quem, de entre a audiên-
realizado anualmente em Austin, no estado do tora Maybe Mars, de Pequim, considerada a cia, conseguia nomear pelo menos uma banda
Texas. Além dos concertos de Snapline, Carsi- segunda maior editora independente da Chi- chinesa que já tivesse ouvido; levantaram-se
ck Cars, Re-TROS, Duck Fight Goose, Rustic, na; também em parceria com Michael Pettis, quatro braços.
Deadly Cradle Death e Nova Heart, o cartaz o antigo banqueiro de investimento de Wall Neste ponto, unanimidade entre os con-
do festival incluiu uma conferência que tinha Street tornado mecenas do rock alternativo vidados. A posição consensual foi sintetizada
por título “Why the Global Music Industry chinês, Saliba ajudou a fundar o D-22, o clube por Josh Feola: “A música chinesa ainda não
Needs China”. de música ao vivo da capital chinesa que foi passou a fazer parte do ‘mainstream’, nem é
Eram quatro os oradores convidados para uma espécie de segunda casa para uma parte algo familiar” fora da China. Ainda assim, re-
perorar sobre a importância da China para a significativa das bandas locais. cordou, têm sido atingidos “vários marcos” no
indústria musical: Tony Ward, antigo execu- Graças à Internet, não foi necessário ter es- caminho desse objectivo, destacando-se as
tivo de várias editoras multinacionais sedeado tado no Austin Convention Center para seguir presenças, nos últimos três anos, no SWSX. O
em Hong Kong, cidade a partir da qual dirige a conversa. futuro promete ser “excitante”, prevê Feola. Xi
a empresa de consultadoria e “marketing” mu- O tema que deu título à conferência ocu- Chen acrescenta que o crescimento tem sido
sical Man On the Ground, e director do Music pou pouco mais de cinco minutos do total de “consistente” e que “há mais visibilidade” ac-
Matters, festival realizado em Singapura; Li cerca de uma hora. A maior parte do tempo, tualmente.
Si Si, fundadora da S.T.D. Promotions, uma assim se impunha, foi passada a tentar explicar Ainda assim, menos optimismo quando a
das maiores empresas de promoção de even- o que é, afinal, a música alternativa chinesa à questão passa pelo estabelecimento de uma
tos musicais da China, além de responsável audiência, bem como a dissecar as abundantes verdadeira indústria a partir do universo das
pelo departamento de comunicação da divisão especificidades do Império do Meio. bandas alternativas chinesas. Tony Ward ob-
chinesa da empresa Converse; Xi Chen, vo- No meu texto de 16 de Março, considera- serva, e lamenta, que “é difícil fazer dinhei-
calista da banda Snapline, activa desde 2005 va que a presença de sete bandas no cartaz do ro da música na China, até nos concertos”,
e, actualmente, uma das mais relevantes; e, fi- SXSW, um número recorde, era um indicador cujos bilhetes são forçosamente baratos para
nalmente, Josh Feola, fundador do excelente de que “a música chinesa alternativa e inde- corresponder a um poder de compra de uma
sítio electrónico “Pangbianr” (www.pangbianr. pendente vai ocupando o seu lugar na compe- maioria que ainda vive à margem do “boom”
com), plataforma através da qual promove e titiva (e complicada) indústria musical global”, económico. Ward avisa: o negócio da música
organiza eventos ligados, sobretudo, à músi- contrapondo, de seguida, que “estamos ainda “é um investimento e tem que se ter uma visão
ca chinesa experimental e “avant-garde”, além longe de poder afirmar que o espaço tomado de longo prazo”, já que “as coisas acontecem
de ter sido o autor de diversos textos sobre actualmente pela “indiechina” granjeou reco- devagar”.
música chinesa que foram dados à estampa nhecimento e popularidade suficientes para
em publicações como The Wire, ou em sítios que as bandas chinesas sejam já parentes com (continua)
h
11 5 2012 12 À S U P E R F Í C I E

PENSAMENTO
POSITIVO,
MEU AMIGO,
PENSAMENTO
POSITIVO

António Lobo Antunes de costume, a uma editora que me não


agrada. Não tenho grandes ilusões. Nem
depois o que faço eu, diga lá? Aos qua-
renta e cinco anos quem me dá trabalho?
fale da Saúde, da electricidade, dos
transportes, da prestação da casa, da
In Visão
pequenas, aliás. A árvore, em frente da Ninguém, claro. É capaz de haver uns prestação do carro, da prestação da
AOS QUARENTA e cinco anos quem minha janela perdeu as folhas: ramos tor- contentores do lixo com restos de comi- máquina de lavar, dos preços no super-
me dá trabalho? Ninguém, claro. É capaz cidos, sombras de pássaros nem sonhar. da, e também se podem comer os filhos, mercado, dos sapatos que o meu ma-
de haver uns contentores de lixo com res- Eu reflectido no vidro, sentado a esta como propunha Swift para combater a rido precisa, da penúria em que ando.
tos de comida, e também se podem co- mesa. Esferográficas, páginas, uma lupa, fome na Irlanda. E quando os filhos se Isto não é uma crónica, é um gemido
mer os filhos, como propunha Swift para porque as primeiras versões são numa le- acabarem coma-se a si mesmo. Ossinhos indistinto, a minha mãe
combater a fome na Irlanda. E quando os trinha minúscula que, por vezes, me cus- dos dedos chupados um a um. Nunca - Não compraste umas hortaliças, filho?
filhos se acabarem coma-se a si mesmo. ta ler. Trago uma espada no peito. Volta me foi tão difícil escrever uma crónica. o carro parado há dois meses que não há
Ossinhos dos dedos chupados um a um e meia torce-se nos pulmões. E lá está a Olhe, já agora experimente comê-la em- para a gasolina. Já não haverá mais para
Nunca me foi tão difícil escrever uma crónica a resistir. Não quer ser feita, tem bora deva saber mal como rabo de gato a gasolina. Talvez para uma garrafinha de
crónica: três dias a rasgar papel. Normal- a consciência de não valer grande coisa. e não alimente nada. Estou a compor isto petróleo
mente fico uma hora ou isso, de caneta E, mesmo que valesse grande coisa, o que enjoado de mim, embora tenha batido (pode ser que exista quem fie)
suspensa, e depois as palavras começam valia? Não há imortalidade: há o silên- um record. Seis pessoas é obra. Aguen- verter a garrafa em cima de mim e che-
a sair sozinhas. Esta não, e já estou farto cio que se vai espessando à volta de um ta mais um mês, António, e logo sabes. gar-lhe um fósforo. Depois uns tempos
de deitar frases para o lixo. Julgo que se nome, até o nome desaparecer por intei- Talvez te comam numa urgência interna. na enfermaria até as queimaduras do ter-
deve ao facto de ter demasiadas coisas ro. E, até desaparecer, tanta inveja, tanta - Como se chamava aquele? ceiro grau resolverem o assunto. E não
dentro de mim, de viver uma altura di- mesquinhez, tanta patetice. Para quê? A - Não me vem agora o nome mas escrevia é preciso emprego. Quer dizer, já não
fícil, de me achar melancólico e revolta- nossa existência é um pequeno evento livros. é preciso emprego. Quer dizer, já não é
do. Melancólico com a minha situação, pedestre: quem se rala? Os outros, por - Desses que a gente gosta? preciso preocuparmo-nos com a saúde.
revoltado com a situação do meu país. É muito que nos queiram, estão de fora. E, - Não, dos complicados, dos que dão tra- Já não é preciso comer o filho. Já não
raro o dia em que não me pedem depois, partem, construindo-se uma nova balho. é preciso comer nada. Nem acabar esta
- Não me arranja um emprego? alma. Aqueles de quem gostei tornaram- Livros que não falavam, ouviam. Eu pre- crónica. Nem rasgar papel. Nem deitar
a mim, que não possuo poder nenhum, -se ausências que se estreitam. Continuo firo coisas que distraiam, para maçadas períodos para o lixo. Nem estar à espe-
e lá fico a ouvir histórias desesperadas a lembrar-me deles: vai doendo menos. basta a vida. Conselho de um editor ra do exame no mês de abril. Nem ter
e tristes. Os portugueses estão a sofrer Vai doendo menos? Vai doendo menos. - Publique histórias leves, histórias que demasiadas coisas dentro. Nem de não
muito, e o sofrimento dos portugueses é Quem se lembrará de eu pequeno? distraiam estar satisfeito com a editora que, essa
mais importante do que o meu: que direi- - Fale do que se está a passar na Saúde E tem razão, para maçadas basta a vida, sim, ficará satisfeita dado que quando um
to tenho de me queixar seja do que for? e qual saúde, Zé? A nossa, a dos outros? dêem-me episódios que me divirtam, que escritor pifa vende mais e é maçador falar
Quanto a mim não consigo fazer nada, Lembro-me que na primeira urgência in- chumbada pensar. nisto mas vender é importante. A cultura
quanto aos outros a minha importância terna que fiz no Hospital de Santa Maria, - Não me arranja um emprego? é muito bonita porém, como deve calcu-
colectiva é nula. Um amigo médico, por depois do curso, morreram seis doentes. um emprego, um empregozinho, dinhei- lar, como suponho que calcula, como cal-
exemplo Um médico, no dia seguinte ro para pagar as contas, seja o que for cula com certeza, é necessário ganhar a
- Fale do que se está a passar na Saúde - Eh pá você bateu o record preferível a esta angústia, tudo é preferí- vidinha. Nunca lhe foi tão difícil escrever
como se aquilo que eu escrevesse mu- e eu, que era um miúdo, atarantado com vel a esta angústia. E tem razão. Tudo é uma crónica? Pois olhe, já a terminou, vê,
dasse alguma coisa. Não muda. Sou ape- a minha proeza. preferível a esta angústia, tudo é preferí- você lamenta-se, lamenta-se, mas acaba
nas um homem que faz livros, preso por - Não me arranja um emprego? vel a esta miséria. por cumprir o trabalho. Muito gostam os
um contrato que assinei sem ler, como porque o subsídio acaba daqui a nada e - Fale da Saúde artistas de choramingarem.
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À S U P E R F Í C I E

VIAGEM OU TRAVESSIA INICIÁTICA?


FELICIDADE OU SALVAÇÃO?
Manuel Afonso Costa no fim, a marcar as jornadas decisivas em gem essa que é isomórfica da viagem do travessia da água funciona (...) como pro-
direcção ao paraíso e ao inferno: Gilga- devir própria à odisseia do homem do va que escolhe os puros”4. Em muitos ca-
NO CASO das ilhas convergem pelo mesh, as arcas fúnebres egípcias etc. Na nascimento à morte e para lá dela já que sos este sonho concretiza-se apenas num
menos três elementos de grande signi- Demanda do Santo Graal, Lancelot tem a morte é a viagem arquetipal de todas as lugar retirado, agradável e tranquilo, na
ficado simbólico: a ilha em si mesma, o a visão do inferno para lá de um gran- viagens. Note-se de passagem que a via- pervivência do topos greco-latino do locus
elemento água e a ideia de travessia. A de rio. Na descida de Eneias aos antros gem também pressupõe a ideia de traves- amoenus, que é permanente no imaginário
ilha é um terra isolada, espécie de deser- infernais, o mais famoso dos rios infer- sia e esta é sempre encarada como uma ocidental da vida feliz, na vida ou na lite-
to no meio do mar. E sabe-se o quanto nais o Aqueronte e seus afluentes lá estão prova, algumas vezes iniciática, como já ratura e ao qual se atribuem as qualidades
o desejo religioso se concretiza melhor organizando todo um labirinto aquoso e disse. sonhadas: Fontaine de Vaucluse para Petrar-
nos espaços ermos e afastados do mundo lodoso, envolvendo o acesso ao inferno. Sabe-se do papel que as navegações fú- ca, a Saint Victoire para Cézanne, A Fonte
e quanto o sentimento de espera ganha aí E finalmente ainda na Eneida aparece o nebres desempenharam nos mitos de Santa para Correia Garção, Monticello para
uma intensa dimensão espiritual. A água Letes ou rio do esquecimento que assina- fundação assim como em muitas escato- Jefferson, Tusculum para Cícero, a Proprie-
porque se sabe também que o elemento la a passagem para o Eliseu, lugar reser- logias. “No diálogo dos mortos, de Lu- dade de Sabina ou a Propriedade de Tivoli para
água estimula simbolicamente a purifi- vado aos eleitos e virtuosos. Em todos os ciano, para entrar na barca de Caronte os Horácio e Andes ou a Villa de Posilipo para
cação e purga porque a água separa os casos, porém, prevalece uma ideia de via- mortos têm de entrar nus e sem bagagem. Virgílio, ou ainda Shepherd’s Cottage para a
mundos1. E finalmente a ideia de traves- gem, seja ela catabase (descensus ad inferos) Têm também de se separar da beleza, da princesa Perdita de Shakespeare, etc.
sia porque ela é indissociável de todos os ou ascensão, em meio aquoso ou ctónico arrogância, do orgulho, da cólera, da in- O paraíso é ainda inseparável da ideia
perigos, sabendo-se que eles nobilitam que introduz como essencial a ideia de solência, das paixões: a vaidade, o luxo, de viagem, pelo facto de uma das ca-
iniciaticamente. deslocação no tempo e no espaço, via- a glória, o nascimento, os títulos (...) A racterísticas do paraíso ser a distância,
Se a ideia de travessia em si mesma pode distância que se concretiza nas ilhas lon-
ser investida de um poderoso significado gínquas, nos oceanos profundos ou nas
simbólico a travessia dos rios e dos ma- montanhas de difícil acesso. Aliás à ideia
res tem uma grande tradição iniciática. de viagem está associado um sentido de
Como diz Catalão: “A viagem para lá do purificação, mas também de repouso me-
mar provoca uma libertação do tempo recido, após a longa provação iniciática.
anterior, um corte com o tempo e o mun- A transcendência geográfica valoriza os
do antigo, (...) porque o mar é em si mes- lugares distantes e viajar é simbolicamen-
mo (...) e foi o mar que deu à luz a terra te uma saída do eu. Só saindo de si se em-
e o homem”2. Esta relevância do mar é preende o caminho da busca primordial.
confirmada por inúmeras cosmogonias, Fechamento no ser, saída e regresso5, eis
entre as quais destaco o poema cosmo- os tempos implícitos em toda a viagem.
gónico acádio, Poema da Criação (Enuma E a viagem é além disso vencer o perigo,
elish) onde o herói Marduk mata a deusa daí que o acesso ao paraíso em Dante, por
má Tiamat (o mar) e a partir do seu corpo exemplo, obrigue à travessia do fogo.
constrói o universo e o homem3. É enor-
me o número de aventureiros, ascetas e
místicos que procuraram o paraíso em
ilhas perdidas no meio das grandes mas-
sas marítimas. No fundo, a ilha é ao mes- Bibliografia
mo tempo terra, realidade e ficção, existe Catalão, Pedro Miguel
mas não existia antes, estava lá para ser s. d. O motivo da ilha mítica na literatura me-
descoberta, mas protegida do mundo, ela dieval portuguesa, Lisboa: Universidade Nova de
oferecia-se à descoberta mas só os puros Lisboa (Texto policopiado).
poderiam atingi-la. Ela está separada dos Le Goff, Jacques
homens pelo mar e a travessia do mar é a 1984b «Idades míticas», in Enciclopédia Einau-
iniciação por excelência. di. Memória-História, Lisboa: Imprensa Nacio-
Os rios são também um elemento de- nal-Casa da Moeda.
terminante na geografia dos paraísos,
não só porque o paraíso é ele-mesmo o
lugar de origem dos maiores rios como,
associados a fenómenos de catabase, eles
aparecem como as grandes fronteiras se- Notas
paradoras do mundo real e do mundo es- 1 E é porque separa os mundos, que purifica. A
catológico. São em geral rios as derradei- purificação é esta separação judiciosa. Todas as
figuras da purificação estão investidas desta função
ras sentinelas não só do paraíso como dos de separação. É quase uma tautologia, a expressão:
antros infernais. Por outro lado os rios «separação das águas».
são adereços recorrentes no processo ini- 2 Catalão s/d: 168.
ciático de personagens eleitas, destinadas 3 Síntese feita a partir de Le Goff 1984.
a grandes feitos, tais como Moisés, Ama- 4 Catalão s/d: 46 e 47.
5 Como na Odisseia. Mas Lévinas virá a propor
dis de Gaula etc. Se os rios aparecem no modernamente uma outra aventura. Aventura que não
início a ungir de predestinação os eleitos é uma odisseia. Uma aventura que não culmina num
sujeitos à sua prova aparecem também regresso a si.
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gente sagrada José Simões Morais

金花 A FLOR DE OURO, KAM FA


São várias as histórias que en-
contramos sobre a deusa Flor de
Desde então, a senhora Kang Fa
tornou-se uma divindade mui-
Ouro, (金花, Jin Hua em man- to querida pelas devotas mães
darim e Kam Fa em cantonen- chinesas, pois é protectora dos
se), que é celebrada no dia 17 nascimentos e das crianças,
da 4.ª lua, este ano a ocorrer a socorrendo-as também nas suas
7 de Maio do ano solar. Sendo enfermidades, nunca deixando
a principal das 18 amas do pan- de atender uma mãe aflita que a
teão budista, grupo de senho- invoque.
ras que estão prontas a ajudar Mas esta rapariga, que na sua
as crianças a nascer e a crescer, juventude se tornou uma deu-
educando-as e livrando-as de sa, passou a ter uma história de
doenças, será como a represen- vida difícil pois, não havia ho-
tante das parteiras, num tempo mem algum que a quisesse des-
em que ainda se nascia na casa posar. Já como mulher e com
familiar. Mas esse período, que essa triste sina, um dia resolveu
durou todo o Neolítico, termi- suicidar-se, atirando-se ao lago
nou agora com a maioria dos em frente de sua casa. Após sete
nascimentos a ocorrerem nos dias, surgiu das águas uma es-
hospitais. Lugar de um nós do- tátua de madeira cujo rosto era
ente, que se reflecte no grande o de Kam Fa. As pessoas para
número de cesarianas ocorridas a homenagear construíram-lhe
mesmo nas maternidades. um templo em frente à sua casa,
Na província de Kuangtung que desapareceu no reinado do
(Guangdong em mandarim), du- imperador Jiajing (1521-1566),
rante o reinado do primeiro im- devido à intransigência de um
perador da dinastia Ming (1368- alto funcionário que por aí que-
1398), conta a História que a ria passar e por isso mandou que
esposa de um capitão de Cantão derrubassem o templo, mas a
estava para dar à luz, mas o par- rua continuou a existir. Conhe-
to adivinhava-se muito difícil. cida por Kam Fa kai hoje a rua
Durante um sonho, ao capitão chama-se Lâi Wán (Li Wan em
apareceu um ancião dizendo- mandarim).
-lhe que deveria procurar uma Mas há uma outra história sobre
senhora cujo nome era Kam Fa, a origem de Kam Fa, que diz ter
pois só ela poderia ajudar a sua ela vivido há cerca de três mil
esposa e o filho que ia nascer, a anos num lugar em Jiangsu. Ao
sobreviver das complicações do contrário da versão acima re-
parto. ferida, aí se refere que Kam Fa
Ao acordar, o militar mandou nunca quis casar, tendo dedica-
enviados pela cidade à procura do a sua vida às crianças, tanto
de todas as pessoas que tinham ajudando-as a nascer, como edu-
o nome Kam Fa e foram mais de cadora, ou salvando-as através
uma centena as que apareceram. de curas milagrosas devido ao
Uma a uma foram entrando no seu conhecimento da medicina
quarto da parturiente e quando das plantas. Após passar esta
uma rapariga com apenas 14 vida, Kam Fa, pelas suas virtu-
anos aí se encontrava, ouviu-se des, foi entronizada e o seu cul-
Mas esta rapariga, que na sua juventude por fim o choro do bebé mas- to continuou muito popular até
culino que acabava de nascer. A aos nossos dias. Em Macau não
se tornou uma deusa, passou a ter uma alegria do pai foi enorme e este há nenhum templo a ela dedica-
olhando para a rapariga que aju- da, mas apenas altares onde está
história de vida difícil pois, não havia dara a sua esposa, viu nela uma a sua estátua, como os existentes
deusa e rapidamente a notícia se nos templos de Pau Kong e Lin
homem algum que a quisesse desposar espalhou pela cidade. Fong.
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L E T R A S S Í N I C A S

HUAI NAN ZI 淮南子 O LIVRO DOS MESTRES DE HUAINAN

Tentando assim governar, fizeram crescer a desordem.

DO ESTADO trivial; diminuindo recompensas, aumentavam soberanos são muito exigentes, os seus súbditos Huai Nan Zi (淮南子), O Livro dos Mestres
E DA SOCIEDADE – 4 os castigos. Tentando assim governar, fizeram são contenciosos. Se não endireitares estas coisas de Huainan foi composto por um conjunto
de sábios taoistas na corte de Huainan (actu-
crescer a desordem. logo na raiz, mas te preocupares com os ramos,
al Província de Anhui), no século II a.C., no
Outrora, sob a liderança dos sábios, as leis eram tal é como levantar pó ao tentar limpar uma sala,
decorrer da Dinastia Han do Oeste (206 a.C.
liberais e leves os castigos. As prisões estavam *** ou transportar contigo lenha enquanto tentas a 9 d.C.).
vazias, todos partilhavam a mesma moralidade apagar um fogo. Conhecidos como “Os Oito Imortais”, estes
e ninguém era traiçoeiro. Grande número de intelectuais na sociedade se Assim, os assuntos dos sábios são limitados e sábios destilaram e refinaram o corpo de ensi-
Nos tempos que se seguiram, o governo não foi afastou da raiz da Via e do seu poder, dizendo fáceis de gerir; as suas exigências são diminutas namentos taoistas já existente (ou seja, o Tao Te
assim. Os que estavam acima tornaram-se incon- que a boa educação e o cumprimento de deveres e fáceis de satisfazer. São benévolos sem esfor- Qing e o Chuang Tzu) num só volume, sob o
trolavelmente rapaces, enquanto os que estavam bastam para governar o mundo. É impossível ço; neles se confia sem palavras; tudo obtêm patrocínio e coordenação do lendário Príncipe
em baixo se encheram de cobiça e desrespeito. falar com eles acerca das artes da liderança. sem nada procurarem; são bem sucedidos sem Liu An de Huainan. A versão portuguesa que aqui
O povo comum era pobre e miserável, lutando denodo. Atêm-se apenas à realidade, abraçam se apresenta segue uma selecção de extractos fun-
entre si. Apesar de trabalharem duramente, nada *** a virtude e fazem proliferar a sinceridade. Toda damentais, efectuada a partir do texto canónico
completo pelo Professor Thomas Cleary e por si
alcançavam. Surgiram os ardilosos e muitos a gente os segue, como ecos de um som, como
traduzida em Taoist Classics, Volume I, Shambha-
ladrões e assaltantes. Quando os soberanos são muito ardilosos, os reflexos de uma forma. Aquilo que cultivam é
la: Boston, 2003. Estes extractos encontram-se or-
Os superiores e os subordinados mantinham um seus súbditos são muito traiçoeiros. Quando fundamental. ganizados em quatro grupos: “Da Sociedade e do
ressentimento mútuo, as directivas não eram os soberanos mantêm muitos interesses e ob- Estado”; “Da Guerra”; “Da Paz” e “Da Sabedoria”.
postas em prática, e os oficiais do governo não sessões, os seus súbditos são muito afectados. O texto original chinês pode ser consultado na
se empenhavam em regressar ao Tao. Ignoran- Quando os soberanos sofrem de pouca confian- Tradução de Rui Cascais íntegra em www.ctext.org, na secção intitulada
do o fundamental, os oficiais dedicavam-se ao ça, os seus súbditos andam inquietos. Quando os Ilustração de Rui Rasquinho “Miscellaneous Schools”.
FERNANDA DIAS
Uma leitura do

YI JING
O SOL, A LUA
E A VIA DO FIO DE SEDA

A nova tradução do livro que há milénios


ilumina a civilização chinesa

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