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Análise literária do poema ´´As cousas do mundo´´, de Gregório de

Matos

Matheusa Fernanda Melo S Barros² (UFNT)

Considerações Iniciais:
Nessa análise iremos apresentar alguns possíveis sentidos para o poema
´´As cousas do mundo´´, de Gregório de Matos Guerra. O objetivo é analisar
como o poema se constituiu dentro da proposta gregoriana. O poema foi escrito
no século XVI no Brasil colonial, período em que a coroa portuguesa regia o
país. Gregório traz à tona todas as mazelas da sociedade Baiana da época,
denunciando a corrupção política, as contradições morais, administrativas e
religiosas.

Análise da estrutura

Como apresentado anteriormente, a ideia é analisar possíveis sentidos para o


poema gregoriano. Nesse contexto, iniciamos trazendo o soneto:

A cousas do mundo

Neste mundo é mais rico o que mais rapa:


Quem mais limpo se faz, tem mais carepa;
Com sua língua, ao nobre o vil decepa:
O velhaco maior sempre tem capa.

Mostra o patife da nobreza o mapa:


Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa;
Quem menos falar pode, mais increpa:
Quem dinheiro tiver, pode ser Papa.

A flor baixa se inculca por tulipa;


Bengala hoje na mão, ontem garlopa,
Mais isento se mostra o que mais chupa.
Para a tropa do trapo vazo a tripa
E mais não digo, porque a Musa topa
Em apa, epa, ipa, opa, upa.

Diferentemente de outros poemas Barrocos, esse soneto é mais original, tendo


como plano de fundo a sátira, pois se desprende dos padrões em vigor da
descrição formal do Barroco e atenta para a realidade baiana do século XVII.
Ademais, é composto por 14 versos decassílabos em esquemas de rimas
ABBA, ABBA, CDE e CDE. Sendo, dividido por 2 (dois) quartetos e 2 (dois)
tercetos, além de, muitas antíteses, figura de linguagem que aproxima pares de
opostos.

Iniciamos a análise observando possíveis significados para o título ´´As cousas


do mundo´, mais especificamente para a palavra ´´cousas´´, essa pode remeter
´´coisa´´ que existiu e que sempre hão de existir na sociedade em que há
subversão dos valores, que privilegia os desonestos e corruptos para
administrar o poder. Assim, já no título Gregório utiliza o linguajar da época
para demonstrar do que o soneto irá se tratar.

O poema pode remeter a um eu lírico que brinca com as palavras, como


também com os sons.

Assim, analisaremos o primeiro quarteto:

Neste mundo é mais rico o que mais rapa:


Quem mais limpo se faz, tem mais carepa;
Com sua língua, ao nobre o vil decepa:
O velhaco maior sempre tem capa.

De modo efetivo, podemos apresentar possíveis analises para esse primeiro


quarteto. Neste primeiro verso o eu-lírico faz uma crítica à situação em que a
Bahia colonial se encontrava no século XVII, vivendo um período de corrupção
dos abastados. Assim, podemos enfatizar a palavra ´´rapa´´, trazendo como
significado que quem enriquece não são as pessoas que trabalham bastante,
de forma honesta, mas aquelas que trapaceia, rouba para obter riqueza.
Já no segundo verso, o eu lírico inicia com uma antítese, ou seja, traz uma
ideia contraria, que pode ser percebida, quando analisamos do seguinte modo:
como um indivíduo pode ser limpo e ao mesmo tempo ter ´´carepa´´, ou seja,
ser sujo? Revela um contraste em relação a pessoas nobres, porque as
pessoas da sociedade da época, não conseguiam ver o verdadeiro caráter dos
poderosos, pois só se preocupavam em analisar o status - se iludiam com
aparências, assim, não percebiam que os poderosos tinham um caráter
duvidoso, que praticavam pensamentos e práticas perversas.

No terceiro verso, quando o eu-lírico traz ``Com sua língua, ao nobre o vil
decepa´´, remete a ideia de pessoa de pouco valor. Assim, nesse viés,
percebemos que Gregório foi além nas suas críticas, vemos isso no quarto
verso, quando ele traz ´´ O velhaco maior sempre tem capa´´, podemos
interpretar de algumas maneiras distintas - a primeira dela, seria ´´velhaco´´
pode referir-se a pessoa que não paga o que deve, ou referir-se a uma pessoa
com mais conhecimento ou idade. Logo, por ser maior, não pode ser
considerado qualquer um, mas alguém que dispõe de status social, financeiro e
também político, ou seja, pode ser um indivíduo de confiança da nobreza.
Porém, além das acepções para ´´velhaco´´, chama atenção a ´´capa´´ que é
utilizada por essa pessoa, empregada de forma atroz, porque o indivíduo que
tem essa capa pode ser considerado uma pessoa de má índole, que esconde
seu verdadeiro caráter, portanto, um usurpador da colônia, mas é acobertado
por alguém importante da nobreza. Nesse sentido, Gregório utiliza da crítica
através da sátira para denunciar de forma direta, a falta de ética na esfera
administrativa do governo da época, fazendo uso de um teor ora voraz e ora
leve.

Por conseguinte, observamos que o soneto é desenvolvido através da


metalinguagem, ou seja, a língua é alta explicativa. Podemos entender sobre
essa questão no segundo quarteto:

Mostra o patife da nobreza o mapa:


Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa;
Quem menos falar pode, mais increpa:
Quem dinheiro tiver, pode ser Papa
Já no primeiro verso, vemos uma referência novamente a nobreza através do
substantivo ´´patife´´, que pode ser interpretado como uma pessoa que não tem
dignidade, sórdida, todavia, tem o respeito da sociedade porque ocupa cargo
importante na política. No segundo verso podemos destacar ´´agarrar´´ e
também ´´trepa´´, ou seja, são as pessoas que tem a capacidade e agilidade de
ascender socialmente e politicamente de maneira rápida e utilizando os
métodos que acharem necessário.
O terceiro verso o “eu” do poema mostra que a pessoa que mais queixa-se da
situação caótica em que a sociedade vive, é o que menos deve queixar-se,
porque ele também é corrupto. Portanto, o indivíduo não tem razão para fazer
críticas, porque ele também é responsável por essa decadência.
Para finalizar o quarto verso desse segundo quarteto, percebemos que há uma
crítica a igreja católica e essa ideia é corroborada na seguinte palavra ´´papa´´,
aqui podemos trazer o seguinte sentido, de ascensão social, porque critica a
postura da igreja. Ou melhor dizendo, significa que basta ter dinheiro para
conseguir qualquer coisa, inclusive, ser Papa.

Já o primeiro terceto traz um esquema rítmico e de rimas muito ricas,


evidenciando a provocação ao sistema social do Brasil colonial, como podemos
perceber no seguinte trecho:

A flor baixa se inculca por tulipa;


Bengala hoje na mão, ontem garlopa,
Mais isento se mostra o que mais chupa.

Posto isto, no primeiro verso a expressão ´´a flor baixa´´, pode retomar ao fato
de que, alguns nobres querem ser o que não são, associando a palavra ´´tulipa
´´, pode remeter ao fato de que a tulipa é uma flor nobre e, assim, alguns
nobres querem ser iguais a flor. Já as palavras “bengala” e “garlopa”, por sua
vez, podem referir a um tipo de comparação. A “garlopa” é um instrumento de
carpinteiro, utilizado por pessoas que trabalham em carpintaria. A “bengala”, no
que lhe concerne, é um símbolo que, nesta época, evidenciava status, em
razão de quem a possuía ser rico. Assim, o eu-satírico mostra que esse nobre
um dia foi um trabalhador comum, mas que, por vantagem, se
encontra em lugar de destaque. Já o último verso mostra a expressão “mais
chupa”, pode referir-se aos que tiram proveito da situação social. De outra
forma, os que mais roubam são os que menos sofrem as penas atribuída pelo
Estado.

Por fim, no primeiro terceto, fica mais evidenciado ainda a sátira que Gregório
utiliza para criticar o sistema social, seus costumes, suas ideias, seus
representantes, bem como sua forma de governar, e tudo que se refere à
instância social da época.
No último terceto do poema, Gregório utiliza-se de aliterações constantes de
consoantes, ou seja, repetição de fonemas consonânticos, que dá ao poema
um ritmo e uma sonoridade única.

Para a tropa do trapo vazo a tripa


E mais não digo, porque a Musa topa
Em apa, epa, ipa, opa, upa

O primeiro verso percebemos que o eu-lírico foi cuidadoso com a seleção e


disposição das palavras que compõem a sonoridade do verso, para evidenciar
certos fonemas que se repetem (principalmente os "pês" e os "tês"), utilizando,
concomitante com palavras que se diferenciam por mudanças fonéticas
mínimas (tropa/trapo/tripa). Um segundo sentido pode ser dado a esse primeiro
verso, assim, a palavra ´´ tropa´´ pode fazer alusão aos poetas da época, e
´´trapo´´ pode ser referência ao tecido utilizado na época para escrever os
poemas e serem colocados nas portas das igrejas católicas para que todos
pudessem ver e ler. E por fim, ´´tripa´´ pode aludir a um esvaziamento de
ideias.
O segundo verso enfatizamos a palavra ´´Musa´´, que pode remeter a ideia de
inspiração para os poetas. Percebemos que, no soneto todas as palavras que
fazem a rima, são terminadas em: apa; epa; ipa; opa; upa, como exemplo,
rapa, increpa, tulipa, topa, chupa, assim, no último verso do segundo terceto,
ele traz isso novamente, fazendo um jogo de palavras, utilizando somente as 3
(três) últimas letras para se referir as palavras que compuseram o esquema
rítmico.

Considerações finais

Posto isto, podemos perceber que a categoria da sátira no poema é bastante


forte, pois toma o satírico como meio para denunciar as irregularidades de uma
sociedade, em que se vive à mercê da administração da nobreza, mas também
ridiculariza a omissão da população e a corrupção da Igreja. Dessa forma, o
soneto se constrói a partir dessa insatisfação social e política, e é por meio dele
que o eu-satírico expõe sua indignação em relação ás condições em que se
encontrava a Bahia. Depreendemos ainda que, além dessas críticas, há outro
aspecto bem interesse no soneto: a relação entre o ritmo e as rimas; as figuras
de linguagem recorrentes no poema, dando assim mais veracidade e também
ênfase ao que está sendo dito.

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