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LOCKE, John.

Segundo tratado sobre o governo In: Carta acerca tolerância; Segundo


tratado sobre o governo; Ensaio acerca do entendimento humano. 2. ed. São Paulo: Abril
Cultural, 1978. Caps. II, III, V, VII, VIII, IX, XIX.

Segundo Tratado Sobre o Governo

Capítulo II – Do Estado de Natureza

1. Locke descreve o estado de natureza como “um estado de perfeita liberdade para
ordenar-lhes as ações e regular-lhes as posses e as pessoas conforme acharem conveniente,
dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir permissão ou depender da vontade de
qualquer outro homem”. (p. 35)
2. “Contudo, embora seja este um estado de liberdade, não o é de licenciosidade; apesar
de ter o homem naquele estado liberdade incontrolável de dispor da própria pessoa e posses,
não tem a de destruir-se a si mesmo ou a qualquer criatura que esteja em sua posse, senão
quando uso mais nobre do que a simples conservação o exija.”
3. O estado de natureza é governado por uma lei de natureza, que obriga a todos e
consiste na razão, pois é a razão que ensina aos homens que a consultam que, sendo todos
iguais e independentes, nenhum deveria prejudicar a vida, saúde, liberdade ou as posses dos
outros.
4. Por todos os homens serem iguais, não se pode presumir nenhuma autorização para
que os homens possam destruir-se uns aos outros. Cada um está obrigado a preservar-se e,
pela mesma razão, quando a sua própria preservação não estiver em risco, o homem deve
buscar preservar o resto da humanidade. O homem não pode tirar ou prejudicar a vida de
outro, a não ser que este outro seja um infrator, alguém que atenta contra a vida, liberdade,
saúde e integridade dos bens de outrem.
5. A fim de impedir o descumprimento da lei da natureza, põe-se nas mãos de toda a
humanidade a responsabilidade pela execução daquela lei no estado de natureza. Isso dá o
direito de qualquer um punir os transgressores dessa lei, pois, para uma lei ter efeito, há
necessidade de alguém para executá-la.
6. Os homens, baseados no direito de preservação da espécie, podem, também, no estado
de natureza, destruir aquilo que é nocivo à humanidade, punindo os crimes que ponham em
risco a espécie toda.
7. Um homem torna-se degenerado através do crime, que consiste em um desvio da
correta regra da razão e uma violação à lei. O homem degenerado é aquele que declara o seu
rompimento com os princípios da natureza humana e se torna uma criatura nociva.
8. As violações à lei natural podem ser punidas castigando o transgressor, de modo que
este se arrependa do seu ato, e que a hipótese de alguém cometer o mesmo crime não se torne
atraente. A pessoa prejudicada tem o direito de exigir reparação por parte do agressor,
apropriando-se dos bens ou dos serviços do ofensor como forma de compensação.
9. Pois os homens, devido às suas paixões, tendem a ser benevolentes consigo e com seus
amigos e demasiadamente rígidos com seus inimigos. Para que não haja desordem, faz-se
essencial que se estabeleça um governo para conter a parcialidade e a violência dos homens.
10. O estado de natureza é preferível em relação a determinados governos nos quais
alguns homens, no comando de multidões, possuem a liberdade de serem juízes para
defenderem suas próprias causas e determinarem aos seus súditos tudo o que desejarem, sem
que estes tenham sequer outra opção ou ao menos a liberdade de questionar os seus
comandantes.
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11. Todos os príncipes e chefes de governos independentes do mundo inteiro encontram-


se num estado de natureza. Segundo Locke não é qualquer pacto que põe fim ao estado de
natureza entre os homens, mas apenas o acordo mútuo e conjunto de constituir uma
comunidade e formar um corpo político; os homens podem celebrar entre si outros pactos e
promessas e, mesmo assim, continuar no estado de natureza.
12. Os homens, portanto, permanecem no estado de natureza até quando, por seu próprio
consentimento, se tornam membros de alguma sociedade política.

Capítulo III – Do Estado de Guerra

1. “O estado de guerra é um estado de inimizade e destruição; e, portanto um estado que


declara desígnio inalterável e calmo com relação à vida de outrem, por meio de palavra ou
ação”. (p.40) Da mesma forma, cada um, no estado de guerra, tem o direito de aniquilar quem
o ameaça.
2. Os homens se colocam em estado de guerra quando tentam colocar o outro sob seu
poder e tirar-lhe a sua liberdade natural.
3. O atentado contra a liberdade de alguém é uma declaração de um propósito contrário à
própria vida, e no momento em que um homem perde a sua a liberdade, perde também a
garantia da conservação de suas posses e de sua própria vida. Então, aquele que, no estado de
natureza, tira a liberdade que cabe a todos, deve ser considerado ameaçador, afinal pode
atentar, da mesma forma, contra as posses alheias.
4. O estado de natureza difere-se do estado de guerra por ser um estado de paz, boa
vontade, assistência mútua e preservação. Distante de um estado de inimizade, malícia,
violência e destruição mútua como o de guerra.
5. Quando os homens vivem juntos conforme a razão, sem autoridade superior que os
julgue eles estão no estado de natureza. Todavia, a força ou a intenção declarada contra a
pessoa de outrem põe os homens em estado de guerra.
6. Para evitar o estado de guerra – no qual não há apelo senão para o céu – os homens
submetem-se a um governo civil, deixando o estado de natureza. Essa nova sociedade teria
uma autoridade, poder terreno, capaz de amparar os membros da sociedade mediante apelo e
decidir as controvérsias.

Capítulo V – Da Propriedade

1. Locke defende que, embora a terra e todos os seus frutos tenham sido dados por Deus
a todos os homens, sendo bens comuns, tudo aquilo que um homem retirar da natureza através
do trabalho e do esforço é propriedade dele.
2. Propriedade é, pois, a exclusão do direito que todos os homens tinham sobre algo –
deixa de ser bem comum.
3. Ela é fixada pelo trabalho que cada homem emprega para apanhar o bem, ou seja, o
trabalho faz com que um bem deixe de ser de domínio coletivo.
4. Porém, a natureza fixou bem a medida da propriedade dos homens. Limitam-se pela
extensão do trabalho do homem e conveniências da vida.
5. Assim, mesmo através do trabalho, o homem não pode apoderar-se de tudo.
6. Daí resulta a regra da propriedade: todo homem deve possuir tanto quanto possa
utilizar, não causando prejuízo a outrem. (Locke era contra o desperdício).
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7. Entretanto, a regra da propriedade é muitas vezes pervertida pela ganância.


8. O que concede valor às coisas é o trabalho, quando por meio deste o homem retira
algo da natureza, transforma ou beneficia algo.
9. A invenção do dinheiro possibilitou ao homem a acumulação, deu-o a oportunidade de
ter algo duradouro com que pudesse efetuar suas trocas por itens úteis.

Capítulo VII – Da Sociedade Política Ou Civil

1. “A primeira sociedade foi entre homem e mulher, que deu origem à de pais e filhos; a
que, em tempo veio juntar-se a de senhor para servo”. (p.64) A primogênita tem origem de um
pacto voluntário entre homem e mulher que traz consigo principalmente o direito ao corpo,
mas também o sustento e assistência mútuos.
2. O governo doméstico de uma família é caracterizado pela organização social de
esposa, filhos, servidores e escravos sob o poder de um chefe de família. Sendo este um pater
famílias, seu poder ainda seria limitado se comparado ao monarca absoluto, pois, com
exceção dos escravos, ele não teria o direito de vida e morte sobre os demais familiares.
3. Tendo o homem nascido com título à liberdade e ao gozo irrestrito de todos os
privilégios da lei de natureza, esta lhes concedeu os poderes de preservação da propriedade,
incluindo vida, liberdade e bens, contra as injúrias de outros homens e ainda o de punição, até
mesmo com a morte ou conforme se convença merecer o delito, aos que violarem esta lei de
preservação da propriedade.
4. A sociedade política se estabelece apenas quando os seus membros renunciam ao
direito de preservar a propriedade e punir os que a ameaçam, colocando esse poder nas mãos
de um corpo político que não impeça aos homens de apelar à proteção da lei estabelecida.
5. Estão em sociedade política aqueles que são unidos em um corpo político único e
possuem uma lei estabelecida em comum e uma judicatura à qual apelar, com autoridade para
julgar os conflitos e punir infratores. Mas, aqueles que não possuem a possibilidade de apelo e
julgam e executam a lei por si mesmos, não estão em sociedade política e sim em estado de
natureza.
6. O poder legislativo é o que elabora as leis; enquanto que o poder executivo é aquele
decorrente da autorização do uso da força para a execução dos julgamentos na sociedade
política, sendo este direito concedido pelos homens a um corpo político. Os poderes
legislativo e executivo da sociedade civil julgam, segundo as leis vigentes, em que medida os
delitos cometidos devem ser punidos.
7. Os homens se encontram efetivamente em sociedade civil quando estão reunidos de
forma que todos aceitam renunciar ao poder executivo da lei de natureza e transferi-lo para
um poder público.
8. Um povo, segundo Locke, pode ser definido como qualquer número de homens que
renunciam ao estado de natureza para formar um corpo político sob um único governo
supremo.
9. O homem é retirado do estado de natureza pelo estabelecimento da sociedade civil, na
qual os seus membros concedem ao legislativo o poder de elaborar leis em seus nomes e se
submetem ao julgamento de um juiz na Terra (magistrado), investido de autoridade para
resolver as controvérsias e reparar os danos sofridos pelos membros da sociedade.
10. A monarquia absoluta é incompatível com a sociedade civil e, por isso, não pode ser
considerada como uma forma de governo civil.
11. A finalidade da sociedade civil é evitar e remediar as inconveniências do estado de
natureza que são decorrentes do fato de ser cada homem um juiz em causa própria.
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12. O estado de natureza é preferível à monarquia porque o súdito de um príncipe absoluto


é, antes, um escravo. Diferentemente do homem no estado de natureza, o qual pode julgar o
seu próprio direito e sustentá-lo caso lhe seja possível, ao súdito não lhe cabe a liberdade de
julgar e defender seu próprio direito, ficando ele sujeito aos caprichos do poder irrestrito do
soberano.
13. Quando os homens não sentem mais a proteção do Estado e não têm mais a quem
apelar contra possíveis moléstias, eles consideram-se de volta ao estado natural.
14. Ninguém na sociedade civil pode considerar-se acima das leis promulgadas a preço de
voltar ao estado de natureza.

Capítulo VIII – Do Início das Sociedades Políticas

1. Visto que os homens são, por natureza, todos livres, iguais e independentes, ninguém
pode ser submetido ao poder de outrem a não ser haja consentimento. E este só é dado quando
os homens nele vêem a proteção de sua propriedade e abdicam da própria liberdade natural
em nome das garantias de seus domínios.
2. Os homens passam a formar um único corpo político quando “assume[m] a obrigação
para com todos os membros dessa sociedade a submeter-se à resolução da maioria”. (p.71)
3. O corpo político tem o poder de agir como um corpo único, e a partir deste momento,
a obrigação do homem perante os demais membros da sociedade civil é a de submeter-se à
determinação da maioria e acatar a decisão desta, isto para que o ato da maioria possa
efetivamente tornar-se o ato do todo.
4. Quando a maioria não puder decidir pelos demais, não poderá agir como um corpo e
será dissolvida.
5. O pacto político consiste na concordância daqueles que abandonam o estado de
natureza e que para se unirem a uma comunidade, abdicam, em favor da maioria, ao poder
necessário para atingirem esse fim. O pacto ocorre, conseqüentemente, pela concordância em
unir-se a uma sociedade política.
6. O que inicia, de fato, qualquer sociedade política é o consentimento de qualquer
número de homens livres capazes de uma maioria no sentido de se unirem e incorporarem a
tal sociedade.
7. Sendo o homem naturalmente livre, uma declaração suficiente do seu consentimento,
para que ele se sujeite às leis de um governo, pode ser obtida através do consentimento
expresso ou tácito.
8. O consentimento expresso é o que faz do homem que ingressa em uma sociedade um
súdito de seu governo. O consentimento é tácito quando um homem consente e se submete a
um governo, mesmo que não o faça expressamente.
9. “Submeter-se às leis de qualquer país, viver tranqüilamente e gozar dos privilégios e
da proteção que ele proporciona, não torna um homem membro de uma sociedade.”
10. O que faz do homem um membro de uma sociedade é sua efetiva entrada através de
compromisso positivo, isto é, uma promessa e um pacto expressos.

Capítulo IX – Dos Fins da Sociedade Política

1. Um homem renuncia às suas prerrogativas do estado de natureza devido à incerteza do


usufruto que lhe cabe da propriedade nesse estado, onde todos são iguais, mas a eqüidade e a
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justiça não são respeitadas. O estado de natureza é, então, repleto de temores e perigos
constantes.
2. “O objetivo grande e principal, portanto, da união dos homens em comunidades,
colocando-se eles sob governo é a preservação da propriedade.”
3. Para este objetivo, muitas condições faltam no estado de natureza: uma lei
estabelecida, conhecida, recebida e aceita mediante consenso comum; juiz conhecido e
indiferente com autoridade para resolver quaisquer questões; e, poder que apóie e sustente a
sentença quando justa, dando-lhe a devida execução.
4. O direito original – e a origem – dos poderes legislativo e executivo consiste na
abdicação dos direitos individuais de cada homem, em favor da comunidade. Esta deterá o
monopólio da elaboração das leis, bem como o de sua execução.
5. No estado de natureza, o homem possui dois poderes inerentes: o primeiro é o de fazer
tudo o que julgar adequado para a preservação de si mesmo e dos outros, dentro do que
permite a lei da natureza; o segundo é o poder de castigar os crimes cometidos contra essa lei.
6. A entrega da igualdade, da liberdade e do poder executivo, por parte dos homens que
entram em sociedade não significa de forma alguma que, como seres racionais, eles estejam
mudando para uma condição pior de existência.
7. O poder da sociedade ou o legislativo por esta constituído não se estende para além do
bem comum, garantindo a propriedade de cada um, a qual era incerta quando os homens
encontravam-se no estado de natureza.
8. O governo é exercido através da observância às normas pré-estabelecidas, promulgadas e
conhecidas pelo povo. Juízes imparciais deverão resolver as controvérsias à luz dessas
normas, empregando a força da comunidade dentro do território na execução de tais leis, e
fora dele para prevenir ou remediar males causados por estrangeiros. Tudo isso visando à paz,
à segurança e ao bem público do povo.

Capítulo XIX – Da Dissolução do Governo

1. Há distinção entre dissolução do governo e dissolução da sociedade. A sociedade


política, a qual é formada quando os homens saem do estado livre de natureza para comporem
uma comunidade apenas é dissolvida quando a sua união se desfaz, o que geralmente ocorre
pela invasão de uma força estrangeira que a conquiste. Toda vez que uma sociedade se
dissolve, conseqüentemente o seu governo também se desfaz, pois é impossível ao governo
permanecer sem a sociedade que o compõe.
2. Já os governos, podem ser destruídos, além da hipótese da invasão estrangeira, por
motivos internos. O primeiro ocorre quando o legislativo, através do qual todos os membros
da sociedade se unem para formar um só corpo vivo e coerente, é alterado, produzindo leis
sem autoridade, às quais o povo não está obrigado a obedecer. O segundo é quando o poder
executivo supremo (legislativo) abandona o seu cargo, de forma que as leis já não podem ser
postas em execução e a anarquia leva à dissolução do governo. Outro motivo para a
dissolução é quando o legislativo ou o príncipe age contrariamente ao encargo que lhe foi
confiado, através da tentativa de violação da propriedade do súdito.
3. O primeiro e fundamental ato da sociedade é a constituição do legislativo, pelo qual se
provê a continuação de sua união, sob a direção de pessoas autorizadas e vínculos das leis
elaboradas por essas, mediante o consentimento e a nomeação por parte do povo.
4. Quando as leis postas não podem mais ser executadas é porque aquele que exerce o
poder executivo supremo renunciou ao seu cargo, instaurando a situação de anarquia e
dissolvendo o governo.
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5. Não resta poder algum quando o governo visivelmente cessa e o povo torna-se uma
multidão confusa, destituída de ordem ou conexão. Não há governo ou poder algum onde não
há a administração da justiça para a garantia dos direitos dos homens e quando a comunidade
não consegue dirigir a força ou prover as necessidades ao público.
6. Quando um governo é dissolvido o povo fica livre para prover para si, instituindo
novo legislativo, diferente do anterior no que diz respeito às formas e às pessoas. A sociedade
não perde nunca, pela culpa de quem quer que seja, o direito natural e primário de se
preservar.
7. Quando o poder legislativo age contrariamente ao encargo que lhe foi confiado,
ocorre, conforme dito anteriormente, a dissolução do governo.
8. Quando os legisladores tentam violar ou destruir a propriedade do povo ou reduzi-lo à
escravidão sob um poder arbitrário, fica estabelecido o estado de guerra entre o legislativo e o
povo, o qual fica desobrigado de sua obediência, restando a todos o uso da força e violência.
9. Quando um povo é levado à miséria e se encontra exposto ao abuso do poder
arbitrário, insurge uma disposição para que, em qualquer situação possível, o povo se rebele e
procure se livrar da carga que o maltrata contrariamente ao seu direito.
10. Assim, o poder do povo pode destituir um governo e prover novamente a sua
segurança através de um novo legislativo.
11. Pois o fim do governo é o bem da humanidade, através da preservação das
propriedades de seu povo.
12. Todos aqueles que usam a força sem direito colocam-se em estado de guerra com
aqueles contra os quais a usam, nesse caso invalidam-se todos os vínculos, e todos têm o
direito de se defender e resistir ao agressor.
13. O poder que cada indivíduo cedeu quando entrou em sociedade não pode nunca
retornar a ele enquanto durar a sociedade, ficando sempre na comunidade, pois, sem isso, ela
deixaria de existir.

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