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HARDT, Michael. A Sociedade Mundial de Controle. In: ALLIEZ, Éric (org.).

Gilles
Deleuze: uma vida filosófica. Trad. Ana Lúcia de Oliveira. São Paulo: Ed. 34, 2000.

Mas, sobretudo, pretendo situar a formação de que fala Deleuze em termos de dois
processos que Toni Negri e eu tentamos elaborar ao longo dos últimos anos:
qualificamos o primeiro desses processos de enfraquecimento da sociedade civil, o
que, assim como a passagem à sociedade de controle, remete ao declínio das
funções medidoras das instituições sociais; com o segundo, ocorre a passagem do
imperialismo, produzido, inicialmente pelos Estados-nação europeus, ao império, à
nova ordem mundial, que se entende hoje em torno dos Estados Unidos, com as
instituições transnacionais e o mercado mundial. Dito de outro modo, quando falo de
império entendo uma forma jurídica e uma forma de poder bastante diferente dos
velhos imperialismos europeus. Por um lado, segundo a tradição antiga, o império é
o poder universal, a ordem mundial, que talvez se realize hoje pela primeira vez. Por
outro, o império é a forma de poder que tem por objetivo a natureza humana,
portanto o bio-poder. O que gostaria de sugerir é que a forma social tomada por
esse novo Império é a sociedade de controle mundial. 358).

NÃO HÁ MAIS FORA

Em um mundo pós-moderno, todos os fenômenos e forças são artificiais, ou, como


dizem alguns, fazem parte da história. A dialética moderna do fora e do dentro foi
substituída por um jogo de graus e intensidades, de hibridismo, e artificialidade.
359).

A arquitetura e o urbanismo de certas megalópoles, como Los Angeles e São Paulo,


tenderam a limitar o acesso público e a interação, criando, antes, uma série de
espaços interiores protegidos e isolados. Poderíamos igualmente observar que o
subúrbio parisiense se tornou uma série de espaços amorfos e não-definidos que
favorecem o isolamento, em detrimento de qualquer interação ou comunicação. O
espaço público foi a tal ponto privatizado que já não é mais possível compreender a
organização social em termos da dialética espaços privados/espaços públicos, ou
dentro/fora. O lugar da atividade política liberal moderna desapareceu, e, assim, a
partir dessa perspectiva, nossa sociedade imperial pós-moderna se caracteriza por
um déficit do político. De fato, o lugar da política foi desrealizado. 360).

A história terminou precisamente e, apenas, na medida em que é concebida em


termos hegelianos – como o movimento de uma dialética de contradições com o
jogo de negações e de superações absolutas. Os pares que definiam o conflito
moderno se embaralharam. O Outro que podia limitar um Eu soberano se estilhaçou,
tornou-se indistinto, de modo que não há mais um fora para circunscrever o lugar da
soberania. Ao passo que, durante a Guerra Fria, numa versão exagerada da crise da
modernidade, todo inimigo imaginável dos clubes de jardinagem para senhoras e
dos filmes hollywoodianos até os movimentos de liberação nacional podia ser
identificado como comunista, ou seja, como expressão do inimigo unificado. O fora
era o que dava coerência à crise do mundo moderno e imperialista. Atualmente, é
cada vez mais difícil para os ideólogos dos Estados Unidos nomear o inimigo, ou
melhor: parece que há, em todos os lugares, inimigos menores e imperceptíveis. O
fim da crise da modernidade engendrou uma proliferação de crises menores e mal
definidas na sociedade imperial de controle, ou, como preferimos dizer, gerou uma
oni-crise. 361).

Convém lembrar, aqui, que o mercado capitalista é uma máquina que sempre foi de
encontro a qualquer divisão entre o dentro e o fora. O mercado capitalista é
contrariado pelas exclusões e prospera incluindo, em sua esfera, efetivos sempre
crescentes. O lucro só pode ser gerado pelo contato, pelo compromisso, pela troca e
pelo comércio. A realização do mercado mundial constituiria o ponto de chegada
dessa tendência. Em sua forma ideal, não há um fora do mercado mundial: o planeta
inteiro é seu domínio. Poderíamos utilizar a forma do mercado mundial como modelo
para compreender a forma da soberania imperial em sua totalidade. Da mesma
maneira, talvez, com que Foucault reconheceu no panóptico o diagrama do poder
moderno e da sociedade disciplinar, o mercado mundial poderia fornecer uma
arquitetura de diagrama (mesmo não sendo arquitetura) para o poder imperial e a
sociedade de controle. 361).
Neste sentido, à crise claramente definida da modernidade se substitui uma oni-crise
na estrutura imperial. Nesse espaço liso do império, não há o lugar do poder: ele
está em todos os lugares e em nenhum deles. O império é uma u-topia, ou, antes,
um não-lugar. 362).

O RACISMO IMPERIAL

No entanto, a passagem ao império, à sociedade de controle, à pós-modernidade,


acarretou um deslizamento na direção dominante da teoria racista, de maneira que
as diferenças biológicas, como representação-chave do ódio e do medo raciais,
foram submetidas por significantes sociológicos e culturais. Desse modo, a teoria
racista imperial surpreende, pela retaguarda, o anti-racismo moderno, e de fato
coopta e alista seus argumentos. 363).

Em outras palavras, a hierarquia entre as raças não é entendida como causa, mas
como efeito das circunstâncias sociais. Por exemplo, os alunos abro-americanos de
determinada região têm, nos testes de aptidão escolar, resultados em geral mais
fracos do que os alunos de origem asiática. A teoria imperial não enxerga, aí, o
resultado de uma inferioridade racial necessária, mas de diferenças culturais: a
cultura dos americanos de origem asiática atribui à educação uma importância
maior, encoraja os alunos a estudar em grupo, e assim por diante. A hierarquia entre
diferentes raças só é determinada a posteriori, como efeito de suas culturas, ou seja,
a partir de sua performance. Segundo a teoria imperial, a hegemonia e a submissão
das raças não é uma questão teórica, mas advêm de uma livre competição, de uma
espécie de lei do mercado da meritocracia cultural. 365).

Não há mais dentro e fora, a xenofobia se transforma.


O próprio da dominação branca é de enganar inicialmente o contato com a
alteridade para, em seguida, submeter as diferenças, segundo os graus de
afastamento do elemento branco. Isso nada tem a ver com a xenofobia, que é o ódio
e o medo face ao bárbaro desconhecido. É um ódio nascido da proximidade, e que
se desenvolve a partir dos graus de diferença em relação ao vizinho. 366).
A diferença não está inscrita no texto das leis, e a imposição da alteridade não
chega ao ponto de designar alguém como Outro. O império não pensa as diferenças
em termos absolutos: ele jamais coloca as diferenças raciais como diferença de
natureza, mas sempre como diferença de grau; ele jamais as coloca como
necessárias, mas sempre como acidentais. A submissão é efetuada nos regimes de
práticas cotidianas mais móveis e flexíveis, mas que criam hierarquias racionais não
menos estáveis e brutais. 366).

DA GERAÇÃO E CORRUPÇÃO DA SUBJETIVIDADE

No decurso de uma vida, um indivíduo entra nessas diversas instituições (da escola
à caserna e à fábrica) e delas saem de maneira linear, por elas formado. Cada
instituição tem suas regras e lógicas de subjetivação: "A escola nos diz: 'Você não
está mais na sua família'; e o exército diz: 'Você não está mais na escola'. Em
contrapartida, no lado de dentro dos muros de cada instituição, o indivíduo está pelo
menos parcialmente protegido das forças das outras instituições -- no conventos em
princípio se está em segurança em relação ao aparelho da famílias em casa, em
princípio se está fora do alcance da disciplina da fábrica/ A relação entre dentro e
fora é central para o funcionamento das instituições modernas; com efeito, o lugar
claramente delimitado das instituições se reflete na forma regular e fixada das
subjetividades produzidas. 368).

Os muros das instituições desabam; de modo que se torna impossível distinguir fora
e dentro. Não se deveria pensar que a crise da família nuclear tenha acarretado um
declínio das forças patriarcais; pelo contrário, os discursos e as práticas que
invocam os “valores da família” parecem investir todo o campo social. A crise da
prisão significa igualmente que as lógicas e técnicas carcerárias se estenderam,
progressivamente, a outros campos da sociedade. A produção da subjetividade na
sociedade imperial de controle tende a não se limitar a lugares específicos.
Continuamos ainda em família, na escola, na prisão, e assim por diante. Portanto, no
colapso generalizado, o funcionamento das instituições é, ao mesmo tempo, mais
intensivo e mais disseminado. Assim como o capitalismo, quanto mais elas se
desregram melhor elas funcionam. De fato, começa-se a saber que a máquina
capitalista só funciona se esfacelando. Suas lógicas percorrem superfícies sociais
ondulantes, em ondas de intensidade. A não-definição do lugar da produção
corresponde à indeterminação da forma das subjetividades produzidas. 369).

O controle é, assim, uma intensificação e uma generalização da disciplina, em que


as fronteiras das instituições foram ultrapassadas, tornadas permeáveis, de forma
que não há mais distinção entre fora e dentro. 369-370).

A estrutura institucional do império é como um programa de computador que


conteria um vírus, de forma que ele modulada e corromperia continuamente as
formas institucionais que o cercam. Devemos esquecer qualquer noção de
sequência linear de formas pelas quais cada sociedade deveria passar – do suposto
"estágio primitivo" até a "civilização" –, como se, atualmente, as sociedades da
América Latina ou da África pudessem tomar a forma que a sociedade européia
tinha há cem anos. Cada formação social contemporânea está ligada a todas as
outras, como parte do projeto imperial. 370).

Corrupção no sentido de desfazimento.


Primeira hipótese. A sociedade de controle imperial ou pós-moderna se caracteriza
pela corrupção. Já a sociedade moderna, como se sabe, se caracterizava pela crise,
ou seja, por uma contradição bipolar e uma divisão maniqueísta. Pensem, se
quiserem, na Guerra fria ou no modelo moderno do racismo. A sociedade de
controle, ao contrário, não se organiza em torno de um conflito central, mas em uma
rede flexível de microconflitualidades. As contradições, na sociedade imperial, são
múltiplas, e proliferam em todos os lugares. Os espaços dessa sociedade são
impuros, híbridos. O conceito que a caracteriza, portanto, não é o de crise, mas o de
oni-crise ou, como prefiro dizer, de corrupção. 371).

Segunda hipótese. A sociedade de controle representa uma etapa posterior em


direção a uma sociedade propriamente capitalista, no sentido de que ela propõe
uma forma de soberania ou uma forma de governo que tende para o campo de
imanência. Ora, parece-me que, na época moderna, sempre houve um conflito entre
a transcendência da soberania e a iminência do capitalismo. O conceito de
soberania moderna sempre marcou uma transcendência, ou seja, uma superioridade
e uma distância entre o poder (do Estado por exemplo) e as potências da sociedade.
Até mesmo a noção de instituição na sociedade disciplinar, com sua territorialização
e estriamento do espaço social, indicava uma certa distância, uma certa
transcendência em relação às forças sociais imanentes. Já o capitalismo não é uma
forma transcendente. 371).

O desmoronamento dos muros das instituições que caracteriza a passagem para a


sociedade de controle constitui uma passagem para o campo de imanência, para
uma nova axiomática social, talvez mais adequada a uma soberania propriamente
capitalista. Mais uma vez, como o próprio capitalismo, a sociedade de controle só
funciona se esfacelando. 372).

Terceira e última hipótese. Não se pode pensar a sociedade de controle sem se


pensar o mercado mundial. O mercado mundial, segundo Marx, é o ponto de partida
e o ponto de chegada do capitalismo. Com a sociedade de controle, chegamos
finalmente a esse ponto, o ponto de chegada do capitalismo. Como o mercado
mundial, ela é uma forma que não tem fora, fronteiras, ou então possui limites fluidos
e móveis. Para retomar o título de minha exposição, a sociedade de controle já é, de
modo imediato, uma sociedade mundial de controle. 372).

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