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Gilles
Deleuze: uma vida filosófica. Trad. Ana Lúcia de Oliveira. São Paulo: Ed. 34, 2000.
Mas, sobretudo, pretendo situar a formação de que fala Deleuze em termos de dois
processos que Toni Negri e eu tentamos elaborar ao longo dos últimos anos:
qualificamos o primeiro desses processos de enfraquecimento da sociedade civil, o
que, assim como a passagem à sociedade de controle, remete ao declínio das
funções medidoras das instituições sociais; com o segundo, ocorre a passagem do
imperialismo, produzido, inicialmente pelos Estados-nação europeus, ao império, à
nova ordem mundial, que se entende hoje em torno dos Estados Unidos, com as
instituições transnacionais e o mercado mundial. Dito de outro modo, quando falo de
império entendo uma forma jurídica e uma forma de poder bastante diferente dos
velhos imperialismos europeus. Por um lado, segundo a tradição antiga, o império é
o poder universal, a ordem mundial, que talvez se realize hoje pela primeira vez. Por
outro, o império é a forma de poder que tem por objetivo a natureza humana,
portanto o bio-poder. O que gostaria de sugerir é que a forma social tomada por
esse novo Império é a sociedade de controle mundial. 358).
Convém lembrar, aqui, que o mercado capitalista é uma máquina que sempre foi de
encontro a qualquer divisão entre o dentro e o fora. O mercado capitalista é
contrariado pelas exclusões e prospera incluindo, em sua esfera, efetivos sempre
crescentes. O lucro só pode ser gerado pelo contato, pelo compromisso, pela troca e
pelo comércio. A realização do mercado mundial constituiria o ponto de chegada
dessa tendência. Em sua forma ideal, não há um fora do mercado mundial: o planeta
inteiro é seu domínio. Poderíamos utilizar a forma do mercado mundial como modelo
para compreender a forma da soberania imperial em sua totalidade. Da mesma
maneira, talvez, com que Foucault reconheceu no panóptico o diagrama do poder
moderno e da sociedade disciplinar, o mercado mundial poderia fornecer uma
arquitetura de diagrama (mesmo não sendo arquitetura) para o poder imperial e a
sociedade de controle. 361).
Neste sentido, à crise claramente definida da modernidade se substitui uma oni-crise
na estrutura imperial. Nesse espaço liso do império, não há o lugar do poder: ele
está em todos os lugares e em nenhum deles. O império é uma u-topia, ou, antes,
um não-lugar. 362).
O RACISMO IMPERIAL
Em outras palavras, a hierarquia entre as raças não é entendida como causa, mas
como efeito das circunstâncias sociais. Por exemplo, os alunos abro-americanos de
determinada região têm, nos testes de aptidão escolar, resultados em geral mais
fracos do que os alunos de origem asiática. A teoria imperial não enxerga, aí, o
resultado de uma inferioridade racial necessária, mas de diferenças culturais: a
cultura dos americanos de origem asiática atribui à educação uma importância
maior, encoraja os alunos a estudar em grupo, e assim por diante. A hierarquia entre
diferentes raças só é determinada a posteriori, como efeito de suas culturas, ou seja,
a partir de sua performance. Segundo a teoria imperial, a hegemonia e a submissão
das raças não é uma questão teórica, mas advêm de uma livre competição, de uma
espécie de lei do mercado da meritocracia cultural. 365).
No decurso de uma vida, um indivíduo entra nessas diversas instituições (da escola
à caserna e à fábrica) e delas saem de maneira linear, por elas formado. Cada
instituição tem suas regras e lógicas de subjetivação: "A escola nos diz: 'Você não
está mais na sua família'; e o exército diz: 'Você não está mais na escola'. Em
contrapartida, no lado de dentro dos muros de cada instituição, o indivíduo está pelo
menos parcialmente protegido das forças das outras instituições -- no conventos em
princípio se está em segurança em relação ao aparelho da famílias em casa, em
princípio se está fora do alcance da disciplina da fábrica/ A relação entre dentro e
fora é central para o funcionamento das instituições modernas; com efeito, o lugar
claramente delimitado das instituições se reflete na forma regular e fixada das
subjetividades produzidas. 368).
Os muros das instituições desabam; de modo que se torna impossível distinguir fora
e dentro. Não se deveria pensar que a crise da família nuclear tenha acarretado um
declínio das forças patriarcais; pelo contrário, os discursos e as práticas que
invocam os “valores da família” parecem investir todo o campo social. A crise da
prisão significa igualmente que as lógicas e técnicas carcerárias se estenderam,
progressivamente, a outros campos da sociedade. A produção da subjetividade na
sociedade imperial de controle tende a não se limitar a lugares específicos.
Continuamos ainda em família, na escola, na prisão, e assim por diante. Portanto, no
colapso generalizado, o funcionamento das instituições é, ao mesmo tempo, mais
intensivo e mais disseminado. Assim como o capitalismo, quanto mais elas se
desregram melhor elas funcionam. De fato, começa-se a saber que a máquina
capitalista só funciona se esfacelando. Suas lógicas percorrem superfícies sociais
ondulantes, em ondas de intensidade. A não-definição do lugar da produção
corresponde à indeterminação da forma das subjetividades produzidas. 369).