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DOI: 10.1590/1413-81232022273.

42612020 937

Frantz Fanon, descolonização e o saber em saúde mental:

revisão review
contribuições para a saúde coletiva brasileira

Frantz Fanon, decolonization and knowledge in mental health:


contribution for Brazilian public health

Gil Sevalho (https://orcid.org/0000-0002-1370-1856) 1


João Vinícius dos Santos Dias (https://orcid.org/0000-0003-1691-5507) 1

Abstract The essay emphasizes the psychosocial Resumo O ensaio enfatiza a reflexão psicosso-
reflection of the Martinican psychiatrist Frantz cial do psiquiatra martinicano Frantz Fanon. Seu
Fanon. Fanon’s thought is marked by criticism pensamento tem expressão na crítica da domina-
of colonial domination and racism, as in “Black ção colonial e do racismo, destacando-se as obras
Skin, White Masks” and “The Damned of the Pele negra, máscaras brancas e Os condenados
Earth.” A literary transcendence signalizes his da Terra. Uma transcendência literária forja seu
passionate and liberating speech, relevant in pos- discurso apaixonado e libertador, relevante nas
tcolonial and decolonial theories. Fanon is incre- teorizações pós-coloniais e decoloniais. Crescen-
asingly acknowledged for his political discussion temente reconhecido pela discussão política do
of the diasporic contemporary world, although mundo diaspórico contemporâneo, suas ideias e
his medical and social ideas and practices, as pre- práticas médico-sociais, precursoras na atenção à
cursors in mental health assistance, are less well saúde mental, são menos conhecidas. Referencia-
known. Mentioned by Paulo Freire and Boaven- do por Paulo Freire e Boaventura de Sousa San-
tura de Sousa Santos, Fanon stresses culture in tos, Fanon releva a cultura na discussão de uma
his sociogenesis and when he criticizes the inade- sociogênese do sofrimento mental e na crítica à
quacy of Eurocentric psychoanalysis to deal with inadequação da psicanálise eurocêntrica para li-
colonial oppression and racism. Although he was dar com a opressão colonial e o racismo. Fanon,
cited by Franco Basaglia, Fanon did not feature embora citado por Franco Baságlia, não figurou
as a benchmark in Brazilian Psychiatric Reform, como referência para a Reforma Psiquiátrica Bra-
though his decolonial and antiracist thought, is, sileira, mas seu pensamento descolonial e antir-
when viewed in perspective, is an important con- racista se revela, em perspectiva, uma importante
tribution to Public Health. contribuição para a saúde coletiva.
Key words Racism and sociogenesis, Decoloniza- Palavras-chave Racismo e sociogênese, Descolo-
tion, Frantz Fanon, Mental health, Public health nização e decolonialidade, Frantz Fanon, Saúde
mental, Saúde coletiva

1
Escola Nacional de Saúde
Pública Sérgio Arouca,
Fiocruz. R. Leopoldo
Bulhões 1.480, Manguinhos.
21041-210 Rio de Janeiro RJ
Brasil. gsev@terra.com.br
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Sevalho G, Dias JVS

Introdução Ao apresentar o pensamento e a prática de


Fanon como psiquiatra, gestor e formulador de
Na saúde coletiva, campo interdisciplinar estru- modelos de atenção em saúde mental, admite-se
turado pela Reforma Sanitária, saúde é objeto que as faces do trabalho revolucionário do autor
complexo referido ao coletivo, onde concorrem a como intelectual, político e médico sejam indis-
reconfiguração do biológico e do social e a com- sociáveis.
binação de ação e reflexão como projeto cultural
e político de transformação social. Dessa cons- Uma apresentação de Frantz Fanon
trução, com especial relevância, participa a Re-
forma Psiquiátrica, que Yasui1 caracteriza como Frantz Omar Fanon nasceu em 1925 na ilha
transição paradigmática entre um modelo pau- antilhana da Martinica, submetida ao domínio
tado na racionalidade médico-científica e outro colonial francês. De família de classe média ne-
cuja dimensão social representa ruptura radical gra, “assimilada”, como afirma Faustino7, foi edu-
com o modelo asilar. Reviram-se fundamentos, cado sob orientação francesa e cedo entendeu
conceitos, práticas, e desde a década de 1970 que a ordem colonial lhe usurpava a língua, a
transformou-se significativamente a atenção às cultura, a relação com a ilha.
pessoas com transtornos mentais no país. Segundo Sardar8, sua impressão crítica a res-
Operou-se a redução de leitos vinculados ao peito da opressão colonial muito se deveu à con-
modelo asilar, enfatizando-se processos de desos- vivência com o poeta Aimé Césaire, de quem foi
pitalização, e criaram-se redes de serviços substi- aluno. Os ensinamentos de Césaire o levaram,
tutivas ao hospital, privilegiando-se a lógica in- desde a condição de jovem dissidente, a apoiar
tersetorial e comunitária focada na integralidade ideias e movimentos de resistência ao domínio
dos sujeitos. A retirada da doença do centro da francês no Caribe.
atenção modifica o objeto do cuidado, reduz o Em 1944, Fanon alistou-se no Exército fran-
estigma associado ao adoecimento mental, ques- cês para combater o nazismo e no serviço mili-
tiona a segregação e a assistência passa a ser en- tar enfrentou o racismo entre companheiros de
tendida não mais como processo curativo, mas farda7,9.
como produção de vida, sentido, sociabilidade2. Prestigiado como ex-combatente Fanon,
O psiquiatra martinicano Frantz Fanon fa- ingressou no curso de psiquiatria em Lyon, ca-
leceu prematuramente em 1961 e produziu, em sando-se com Marie-Josèphe Dublé em 1952.
36 anos de vida, um pensamento vigoroso, com Quando universitário, de 1946 a 1950, integrou-
notável expressão na consideração do racismo e se às ideias revolucionárias e conheceu grandes
da dominação colonial. Fanon é crescentemente escritores e pensadores do ambiente europeu,
reconhecido por sua crítica política, embora suas como Sartre, Marx, Lacan e Hegel7. Foi também
ideias e práticas médico-sociais na formulação da quando conheceu os ideais africanos de resistên-
atenção à saúde mental, como médico ou gestor cia ao imperialismo colonial francês e definiu sua
de serviços, sejam menos informadas, como per- identidade crítica negra8.
cebem Butts3, Keller4 e Uvais5. É de 1950, como trabalho de conclusão do
A relação de Fanon com a saúde coletiva é curso de psiquiatria, uma versão anterior do que
pouco identificada e merece ser pesquisada. Fa- seria mais tarde o livro Pele negra, máscaras bran-
non é presença obrigatória na discussão contem- cas, publicado em 1952. Crítico e político, o texto
porânea sobre racismo e opressão social, sendo não foi aceito e se impôs a Fanon a redação de
seu pensamento referência fundamental nas teo- um trabalho moldado ao pensamento médico
rizações críticas pós-coloniais e descoloniais, que positivista imperante em Lyon.
estiveram ausentes como fontes da construção do Formado em psiquiatria, Fanon rumou para
saber para a Reforma Psiquiátrica brasileira. a região alpina francesa de Saint-Alban, onde ini-
O texto aqui apresentado procura envolver o ciou aprendizado com o psiquiatra catalão Fran-
pensamento de Frantz Fanon numa reflexão so- çois Tosquelles. A experiência com Tosquelles foi
bre o saber e a atenção em saúde mental, aproxi- relevante para a estruturação do conhecimento
mando-o da saúde coletiva brasileira. É ancorado que Fanon desenvolveria ao assumir a direção do
em referências bibliográficas selecionadas, carac- hospital psiquiátrico de Blida-Joinville, na Argé-
terizando-se como um ensaio, forma textual de lia.
procedência literária que se conforma à liberdade Fanon, asseguram Gibson e Beneduce10, não
expressiva e à natureza crítica, constituindo um chegou à Argélia em 1953 para se incorporar à
discurso que se constrói no ato de sua realização6. revolução anticolonial. O dramático impacto da
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tragédia da dominação colonial em sua ativida- mento psicossocial, como pensador político e
de médica foi que o levou a integrar a Frente de revolucionário, realizou-se em cerca de dez anos,
Libertação Nacional argelina, primeiro clandesti- da década de 1950 à de 1960.
namente, depois oficialmente, após a entrega de
sua famosa carta de demissão ao governo colo- A prática psiquiátrica e o pensamento
nial em 1956. psicossocial de Frantz Fanon
Em seu livro mais conhecido, Os condenados
da Terra, Fanon11 reflete sobre a luta pela liber- Saído de Lyon, Fanon apresentou-se a Fran-
tação da Argélia e apresenta casos psiquiátricos çois Tosquelles em 1952 no Hospital Psiquiátrico
atendidos na violência da guerra, enumerados de Saint-Alban. Tosquelles participou da Guer-
segundo a natureza patológica sempre vinculada ra Civil Espanhola na luta contra o fascismo e,
à opressão e à agressão infligida ao povo argelino com a vitória do franquismo, fora para a França,
pelos agentes do imperialismo francês. Os relatos iniciando seu trabalho em Saint-Alban em 1940.
compõem o depoimento revoltado do humanis- Trabalhou em situação precária até a regulariza-
ta quando confronta a crueldade e representam ção de sua formação médica lhe propiciar assu-
denso contraponto para aqueles que, reagindo mir a direção do hospital no início da década de
ao capítulo inicial do livro, reduzem Fanon a um 195013.
incitador da violência. Sobre a afirmação de Fa- Segundo Passos13, Tosquelles participava da
non de que “a descolonização é sempre um fenô- vanguarda francesa, posicionando-se contra o
meno violento”, Wallerstein12 (p. 31) entende que modelo asilar e em defesa da socioterapia e da
se coloca mais a função psíquica do leitor que psiquiatria institucional. Ruiz et al.14 e Friche
interpreta do que a do escritor. “O que obtemos Passos15 identificam a importância de Tosquel-
de Fanon é algo mais que paixão e mais do que les para o processo de desinstitucionalização,
um modelo acabado para a ação política”, é “um embora anotem a restrição da importância do
brilhante delineamento de nossos dilemas coleti- psiquiatra catalão para a Reforma Psiquiátrica
vos”12 (p. 37). As contribuições para a construção brasileira. Marcado sobremaneira pela concep-
de sociedades livres da crueldade e da opressão ção antimanicomial da Psiquiatria Democrática
representam o legado mais importante de Fanon. italiana, o pensamento reformador brasileiro
Em 1956, na Tunísia, Fanon se entrega à ati- vincula Tosquelles à psicoterapia institucional,
vidade revolucionária em defesa da libertação da circunscrevendo criticamente suas propostas
Argélia e prossegue seu trabalho como psiquia- ao âmbito asilar. Ressaltamos que a presença de
tra. Em 1959, publica seu segundo livro, Socio- Fanon junto à Tosquelles não é mencionada por
logie d’une révolution: l’n V de la révolution algé- Ruiz et al. e é apenas pontualmente assinalada
rienne, cuja tradução para o inglês tem o título de por Friche Passos.
A dying colonialism. O hospital de Saint-Alban era, de fato, aber-
Em 1960, sabendo-se com leucemia, vai, relu- to, servindo de trajeto de livre passagem para os
tante, tratar-se em Washington, nos Estados Uni- habitantes locais. Segundo Ruiz et al.14 (p. 860),
dos. Wallerstein12 (p. 30), pensador que combina ser “um lugar de passagem” condiz com o que
a ideia da longa duração da história, herdada do pensava Tosquelles de um serviço psiquiátrico.
historiador francês Fernand Braudel, com a re- Privilegiavam-se ali o contato com a população
flexão descolonial, o visitou no hospital e o viu e sua participação ativa nos serviços, presentes
escrevendo “furiosamente” o livro Os condenados na prática de Tosquelles por conta de sua des-
da Terra, que seria publicado em 1962, após sua confiança em relação à psiquiatria formalmente
morte em dezembro de 1961. estabelecida. O lugar, de remoto acesso na época,
Nos Estados Unidos, Fanon lamentava mor- serviu para encontros disseminadores da resis-
rer longe da Argélia, afirmando-se um argelino. tência ao nazi-fascismo. Georges Canguilhem,
A coletânea de artigos Em defesa da revolução futuro orientador de Michel Foucault, participou
africana foi organizada por sua companheira, Jo- desses encontros.
sie Fanon, e publicada postumamente em 1964. Revelador de sua humanidade e generosida-
É admirável que Fanon tenha estruturado sua de é o fato de que Fanon, ao ser indagado sobre
vida como pensador e militante da luta pela li- o que procurava em Saint-Alban, respondeu
berdade em período de tempo tão curto. Como a Tosquelles16 (p. 231) que soubera que ali im-
acentuam Gibson e Beneduce10, a produção de plementavam “uma prática psiquiátrica focada
Fanon em vida, como escritor, como psiquiatra especialmente na complexidade das diferenças”
desenvolvendo sua prática clínica e seu pensa- que, por vezes tragicamente, “uniam os homens”.
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O convívio com o intelectual e médico martinica- potência da psiquiatria ao se colocar “como téc-
no constituiu uma experiência inesquecível para nica médica que se propõe a permitir ao homem
Tosquelles17 (p. 224): “em minha vida, Fanon sur- deixar de ser estranho ao que o rodeia”, ao lidar
ge como uma fonte e um divisor de águas”. com o encurralamento, a despersonalização e a
Em 1953, Fanon inicia suas atividades no “desumanização sistematizada” promovidas pela
Hospital Psiquiátrico de Blida, na Argélia, colônia opressão colonial20 (p. 58). Na carta, Fanon de-
francesa como a Martinica. Na chefia do serviço clara sua participação na luta pela libertação do
hospitalar, como refere Butts3, influenciado pelo povo argelino.
convívio com Tosquelles, Fanon estabelece ino- A desilusão com uma psiquiatria posta a ser-
vações: suprime a separação nos atendimentos viço do colonialismo transparece nos casos clíni-
a nativos argelinos e europeus, abre as portas do cos apresentados no capítulo 5 de Os condenados
hospital para aqueles considerados aptos para o da Terra. Os transtornos mentais identificados
convívio externo, institui programas de terapia em agentes da repressão, membros da resistência
ocupacional e, sobretudo, reformula a atenção e outros são relacionados por Fanon à violência
priorizando a integração entre os serviços e a co- da guerra e da opressão. As descrições, referidas à
munidade. Argélia de 1954 a 1959, despontam subitamente
Segundo Khalfa18 (p. 107), Fanon estudou em no livro. Em especial, um caso ilustra a dura re-
Blida como a doença mental era compreendida alidade vivida pelo psiquiatra: o relato se refere
pela cultura muçulmana, instituiu um “café mou- a um agente das forças governamentais com a
ro, celebrações de festas tradicionais, encontros função de torturador, que sente a necessidade de
com contadores de história e grupos de música procurar atenção médica quando espanca com
locais, implicando cada vez mais a participação selvageria os filhos e a mulher. O homem, conta
dos pacientes”. Comparando o isolamento colo- Fanon11 (p. 228, 229), não quer se afastar da ati-
nial com o asilar, Fanon se posicionava contra o vidade de torturador profissional, quer apenas se
segregamento e a estigmatização da loucura. livrar da inquietação, que atribui vagamente aos
As mudanças introduzidas por Fanon nas “acontecimentos”, para voltar a desenvolver suas
abordagens utilizadas em Blida, integrando cul- tarefas “sem remorso de consciência”.
turas e linguagens, vinham da identificação do No diagnóstico de Fanon11 (p. 212, 249)
racismo como favorecedor da dominação e da “abunda na Argélia uma patologia de atmosfe-
opressão. Para Butts3, o trabalho de Fanon se rela- ra”, dispersamente entremeada no tecido social,
ciona com a psicologia do racismo e do colonia- e mesmo no “período calmo de colonização vi-
lismo quando desnuda os mitos sexuais concer- toriosa” há “uma regular e importante patologia
nentes à potência em sua relação com pretensas mental produzida pela opressão”, e as pessoas,
brutalidade e animalidade do negro. Fanon pensa com suas defesas desmoronadas, “se veem então
essas projeções como elementos que compõem em grande número nos hospitais psiquiátricos”.
a dominação colonial e incorpora a reflexão na Erudito, transitando com desenvoltura em
prática psiquiátrica. A descentralização de servi- campos diversos como a filosofia, as ciências so-
ços gerais substitutivos da hospitalização e a uti- ciais e a psiquiatria, Fanon é também um escritor
lização de pessoal paramédico, praticadas por ele que imprime forte sentido literário e emocio-
no início da década de 1950, são constitutivas do nal às suas observações, unindo reflexão e prá-
caráter precursor de Fanon, pois a ênfase sistema- tica psiquiátrica na luta política pela liberdade.
tizada na psiquiatria social e comunitária, anota Hook21 percebe a descontinuidade e a mistura
Butts3, só se estabeleceria na década de 1970. de gêneros de escrita na composição do texto de
A violência imperialista francesa afeta o mé- Pele negra, máscaras brancas como qualidade que
dico Fanon, como ilustra Keller4. Em Blida ele se distingue Fanon. Tal forma de registro também
depara com contradições incontornáveis. O con- pode ser observada em Os condenados da Terra,
tato profissional com o sofrimento imposto pela quando o ritmo da narrativa é abalado com a ir-
guerra a colonizadores e colonizados, descrito rupção do relato dramático de casos clínicos en-
nos casos relatados em Os condenados da Terra, o tremeado com poesia e análise crítico-literária. A
coloca no limite de seu desempenho médico, ou, maneira forte e genuína de escrever dá reconhe-
segundo Silbertin-Blanc19, diante da impossibili- cimento único a Fanon e confere permanência e
dade da psicanálise como abordagem terapêutica. atualidade ao seu pensamento.
Isso é revelado por Fanon em sua carta de de- Atento à importância antropológica, socio-
missão enviada ao governo colonial em 1956. O lógica e política da cultura, e crítico da opressão
pequeno texto de trágica beleza denuncia a im- colonizadora, Fanon integra à prática médica a
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realidade e os valores locais, opondo-se, como português Boaventura de Sousa Santos, autores
aponta Hook21, à universalização da psicanáli- de expressão latino-americanos criticam o pon-
se eurocentrada, que impede a compreensão da to de vista pós-colonial, identificando-o como
situação psicossocial do negro. O conhecimento remissão ao imperialismo europeu. Caracteriza-
psicanalítico hegemônico, modelado por padrões do como indicativo de insurgência cotidiana, o
sociais estranhos aos antilhanos da Martinica e termo decolonial marca as raízes latino-america-
aos africanos da Argélia, não é capaz de captar a nas e a transcendência transgressiva em relação
essência das relações narcísicas que, para Fanon22, à perspectiva descolonial clássica. Fanon é asso-
conformam o racismo e a ambivalência das pes- ciado por autores decoloniais, como a norte-a-
soas negras ao se projetarem no mundo a partir mericana radicada no Equador Catherine Walsh,
da imagem dos brancos. o peruano Anibal Quijano, o argentino Walter
O conhecimento produzido por Fanon se Mignolo e os porto-riquenhos Nelson Maldona-
constrói com a vivência das relações de domina- do-Torres e Ramon Grosfoguel, às ideias de colo-
ção colonial entre pessoas negras e brancas, mas nização do poder, do saber, do ser.
seu pensamento crítico, como ideal humanista de Walsh25 explora a aproximação entre Fanon
liberdade e justiça, transcende a consideração da e o brasileiro Paulo Freire na perspectiva de uma
cor da pele e abraça todas as formas de opressão. “pedagogia decolonial” marcada por uma “inter-
Estende-se a todos os “condenados da terra”, dis- culturalidade crítica” contra-hegemônica. Para a
tribuídos nos confins remotos e grandes metró- autora, Fanon e Freire contam com a esperança
poles da África, Ásia, América Latina e onde mais como necessidade ontológica para enfrentamen-
a desigualdade intrínseca ao capitalismo impõe to da desumanização provocada pela opressão
injustiça e exclusão. colonial.
Keller4 e Uvais5 percebem um recrudescimen- Quijano26 é referência seminal para o pen-
to do interesse em Fanon no desenvolvimento do samento decolonial, devendo-se a ele a concep-
pensamento pós-colonial, que se estrutura epis- ção de colonização do poder e o alicerçamento
têmica e politicamente no reconhecimento da da ideia de colonização do saber. Para o autor, o
permanência da dominação colonial no mundo controle capitalista do trabalho e a invenção da
atual costurado por diásporas e migrações que ideia de raça, uma falsa prerrogativa biológica,
impõem o convívio das diferenças étnicas, eco- servem de justificativa para racismo e opressão
nômicas, sociais, políticas. social. A invenção europeia da modernidade
Na reflexão pós-colonial, o filósofo e crítico substanciou um tempo linear que inicia com a
literário indiano Homi Bhabha é leitor de Fanon. chegada dos europeus e progride como processo
Utilizando recursos filosóficos, psicanalíticos e li- de dominação sobre negros e índios, classifica-
terários, Bhabha23 interpreta o pensamento de Fa- dos como não-humanos ou inferiores diante do
non acerca da ambivalência e da hierarquização branco europeu colonizador.
na relação entre negros e brancos no contexto da Em referência a Quijano, Mignolo27considera
dominação colonial, percebendo a estruturação a opção analítica decolonial para entendimento e
de uma tradução cultural hibridizada como re- superação da lógica da colonialidade que sustenta
sistência à opressão. A hibridização é construção o elogio da modernidade. A colonialidade é pauta
discursiva que se realiza no locus de enunciação oculta, escura, da modernidade. Para Mignolo, a
atravessado pelas temporalidades descontínuas invenção da América serviu para o mapeamento
do desejo sempre a partir da projeção no Outro, e a exploração pela missão civilizatória cristã eu-
impossibilitando a existência de alteridade pura ropeia, bem como para a fundamentação racial e
nas relações e impondo o aprisionamento nas patriarcal do conhecimento, hierarquizando raça
posições de superioridade e inferioridade. e gênero e invisibilizando saberes num contexto
A crítica psicossocial e política de Fanon, in- de colonização do espaço e do tempo.
dica Ferrara24, embora não se aprofunde na ques- Maldonado-Torres28 (p. 402) percebe um “ra-
tão da mulher, contribui para a análise feminista cismo” e um “imperialismo epistêmicos” em de-
sobre gênero, seja em articulações pós-coloniais terminada perspectiva da filosofia europeia. Ele se
ou decoloniais. Esses pontos de vista, juntamente reporta à Mignolo ao localizar o engendramento
com o feminismo, têm em comum a percepção da colonialidade do ser no discurso da moder-
crítica da permanência da opressão colonizadora nidade, na composição entre colonialidade do
no tecido social contemporâneo. poder e colonialidade do saber. Para Maldonado-
No contexto decolonial, em que se incluem Torres28 (p. 409) os conceitos de colonialidade do
o norte-americano Immanuel Wallerstein e o poder, do saber e do ser remetem ao radicalismo
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de Fanon e sua “geopolítica” de natureza “trans- brasileiros, salientamos Glauber Rocha, Abdias
gressiva, descolonial e cosmopolita”. Maldonado- do Nascimento, Paulo Freire.
Torres afirma que o ser colonizado, em qualquer Em Pedagogia do oprimido, Freire33 cita Fa-
parte do mundo, será o condenado da terra. non e em várias oportunidades se refere à expres-
Grosfoguel29 posiciona a discussão de Fanon são “os condenados da Terra”. O pensamento de
relativa ao racismo sobre uma linha que, definin- Freire não é “racializado” como o de Fanon, mas
do hierarquias de superioridade e inferioridade, ambos se debruçam sobre a opressão, e Sevalho34
separa o humano do não-humano. O autor re- destaca um tópico relacionando os dois autores.
laciona a consideração de Fanon22 (p. 42) sobre A ambivalência entre colonizador e colonizado
uma “zona do não ser”, dominada pela esterili- pensada por Fanon, e explorada por Bhabha23
dade e pela aridez, com a reflexão de Boaventura como hibridização e impossibilidade de alte-
de Sousa Santos30 (p. 45) acerca de uma dinâmica ridade pura na relação, remete à “aderência ao
abissal, epistêmica e política separando “zonas ci- opressor” formulada por Freire33 (p. 33). A iden-
vilizadas” de “zonas selvagens”. Com Fanon, esta- tificação com o opressor faz com que oprimidos
belece-se a consideração da distinção racializada passem a oprimir outros, a condição de opressor
entre humanos e não-humanos, com Santos se se instala como “interioridade” no ser, “são eles e
identificam a naturalização da violência e a dis- ao mesmo tempo são o outro introjetado neles”,
tribuição injusta de normas de direitos e civilida- define Freire33 (p. 36).
de. Preconceitos e conflitos relativos a raça, classe, Pode-se trazer Fanon para a análise das si-
sexualidade, gênero e credo religioso, participam tuações de opressão e violência das metrópoles
dos contextos de opressão. Grosfoguel considera contemporâneas, como a cidade do Rio de Janei-
que a teoria crítica contemporânea, produzida a ro com seus ambientes de favelas. A descrição de
partir da zona do ser, não sabe lidar com as parti- Fanon11 (p. 29) da “cidade do colonizado”, onde
cularidades coloniais da zona do não-ser. vivem negros e árabes, se ajusta dramaticamente
Boaventura de Sousa Santos é cientista social a cenários atuais espalhados pelo mundo: “a ci-
e epistemólogo com intensa presença na realidade dade do indígena, a cidade negra” é lugar “povoa-
brasileira. Contrapõe31 uma ecologia dos saberes do de homens mal afamados”, onde “se nasce não
a monoculturas que, marcadas pelo conservado- importa onde” nem como, onde se morre “não
rismo, invisibilizam conhecimentos alternativos importa de que”, é “cidade acuada” onde em “um
produzidos fora da ordenação científica coloni- mundo sem intervalos” estão os homens “uns so-
zadora produzida no Norte. Entre conhecimento bre os outros, as casas umas sobre as outras”.
hegemônico regulador e conhecimentos alterna- Lucas35 relacionou a opressão nas comu-
tivos emancipatórios ele vê se interpor uma linha nidades urbanas pobres do Rio de Janeiro ao
abissal que promove epistemicídios dos saberes pensamento de Fanon. A pesquisa utilizou a te-
contradominantes constituintes das “epistemolo- orização do autor martinicano para análise de
gias do Sul”. Santos32 (p. 42) equipara a relevância representações produzidas pela grande mídia so-
de Fanon à de Ghandi, afirmando a presença do bre o consumo de drogas ilícitas. Referindo-os à
pensador antilhano como “incontornável”, por- determinação social da saúde, Lucas conclui que
que “são dele as mais eloquentes denúncias da os aportes de Fanon propiciaram perceber a cul-
linha abissal entre a metropolitanidade e a colo- pabilização do jovem negro e a naturalização da
nialidade e do tipo de exclusões que ela cria”. O violência representadas nas matérias jornalísticas
pensamento de Fanon se ata às epistemologias do examinadas.
Sul quando “corretamente” descreve “o horizonte
último da descolonização como sendo a constru- A voz de Fanon sobre a sociogênese e o
ção de uma nova humanidade capaz de escapar à racismo e a Reforma Psiquiátrica brasileira
lógica da repetição infinita do epistemicídio co-
lonial”32 (p. 167). Uma forma de negação da humanidade mui-
Para Faustino7, o interesse de autores de dife- to presente na sociedade contemporânea é o ra-
rentes campos sugere a ocorrência de “fanonis- cismo. Presente e sempre negado no Brasil, o ra-
mos” diversos. Entre os leitores de Fanon, além cismo persiste impregnando o tecido social.
dos autores já citados, destacamos o palestino Para Faustino36, o velamento do racismo tor-
Edward Said, o jamaicano Stuart Hall, a indiana na-se norma social, e não apenas os preconcei-
Gayatri Spivak, os norte-americanos Angela Da- tos e atitudes isoladas, mas a política, a estética,
vis, Judith Butler e David Harvey, o camaronês a ética de uma sociedade racista, concebem e
Achille M’bembe, o egípcio Samir Amin. Entre os inferiorizam não só o negro, mas todos os que
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são simbolicamente destituídos de seus atributos o indivíduo, substituindo uma “tese filogenética”,
humanos e física, cultural e politicamente segre- relativa à história biológica, por uma “perspecti-
gados. va ontogenética”. Ele afirma que a questão do ne-
Tratando da “descolonização da desrazão” na gro não é individual e por isso é preciso construir
Reforma Psiquiátrica brasileira, Nunes e Siquei- uma “sociogênese” do sofrimento mental22 (p.
ra-Silva37 afirmam que a negação do estatuto de 45). A fundamentação social da crítica de Fanon22
racionalidade do louco amputou a humanidade à psicanálise eurocentrada evidencia-se também
de muitos e os confinou historicamente, sujeitos diante do inconsciente coletivo e dos arquétipos
a maus-tratos, torturas, abandono, isolamento de Jung, quando aponta a restrição de tais elabo-
social e intervenções agressivas, alegadamente te- rações à herança biológica, confundindo instinto
rapêuticas, que os reduziam a condições menos- e hábito. Um inconsciente coletivo, para Fanon,
do-que-humanas, tudo legitimado em termos le- seria cultural ou adquirido, próprio de condições
gais. Por sua suposta periculosidade, a loucura foi e grupos sociais. “Cada vez que lemos uma obra
explorada e manipulada pela ciência, em busca de psicanálise” e “conversamos com pacientes eu-
de diagnóstico e cura de males sempre remetidos ropeus, nos surpreende a inadequação entre os
às mentes e aos comportamentos de quem foge esquemas correspondentes e a realidade que nos
à normalidade hegemonicamente construída. A oferece o negro”, diz Fanon22 (p. 139).
partir de Fanon22 (p. 42), podemos situar o louco Khalfa18 esclarece que, antes da perspectiva
e a loucura, tal como o negro, segregados na es- socioterapêutica, boa parte dos escritos clínicos
terilidade e na aridez sociais extremas da “zona de Fanon trata de técnicas como eletrochoque,
do não ser”. coma insulínico, curas do sono. Para Fanon22 (p.
Parte importante da reflexão psicossocial de 94), uma sociogênese da doença mental deve ser
Fanon é revelada em Pele negra, máscaras brancas. associada a uma organogênese e a uma psicogê-
Na introdução do livro, ele indaga “o que quer o nese, considerando-se uma participação funda-
homem negro”, e responde afirmando que “ain- mental de “fatores externos”, que não são “nem
da que me exponha ao ressentimento de meus orgânicos nem psíquicos”, mas antropológicos,
irmãos de cor, direi que o negro não é um ho- referentes a dimensões “institucionais, sociais e
mem”22 (p. 42). “O negro que quer branquear sua culturais”. Fanon, aponta Khalfa38 (p. 168), releva
raça é tão desgraçado quanto o que prega o ódio o papel da cultura e recusa todas as formas de
ao branco” (p. 43). Ao negro, “desgarrado, dis- naturalização da doença mental, plenas de “um
perso, confuso” e “condenado a ver dissolverem- biologismo racista”. Em oposição a uma etnop-
se uma a uma as verdades que elaborou”, resta a siquiatria colonial, Fanon desenvolveu uma “et-
constatação de que é um homem que “graças a nopsiquiatria culturalista revolucionária” que
uma série de aberrações afetivas foi instalado em não significa o abandono do caráter científico da
um mundo de onde deve ser retirado” (p. 42). psiquiatria18 (p. 105).
Entendendo que o desejo de afirmação social Fanon22 (p. 44) avalia que a “verdadeira de-
da pessoa negra se dá por meio da projeção no salienação do negro implica uma tomada de
homem branco, o objetivo confesso de Fanon (p. consciência abrupta das realidades econômicas e
42) é “nada menos que libertar o homem de cor sociais”. Se existe um complexo de inferioridade
de si mesmo”. referente à situação relacional do negro, este se
Vivemos num mundo cético, onde, segundo constitui como duplo processo: “econômico, em
uns tantos, “não é possível discernir o que tem primeiro lugar”, seguindo-se uma “interiorização
sentido do que não tem sentido”22 (p. 44). “O ne- ou, melhor dito”, uma “epidermização dessa infe-
gro quer ser branco” e “o branco se empenha em rioridade”22 (p. 44).
realizar sua condição humana”, ambos estão pre- Para Bhabha23 (p. 98), “a psiquiatria socio-
sos, um em “sua negrura”, outro em “sua brancu- diagnóstica de Fanon tende a resolver as voltas e
ra”, e isso tem a ver, para Fanon22 (p. 44), com um revoltas do sujeito do desejo colonial”, revelando a
“duplo narcisismo”, que ele pretende esclarecer. ambivalência do branco e do negro aprisionados
Ao admitir “que os brancos se sentem superiores na relação de dominação e desejo. Ao discorrer
aos negros” e que “os negros querem mostrar aos sobre a distinção feita sobre a potência sexual do
brancos”, a todo custo, “a igual potência de suas negro emaranhada a uma bestialidade selvagem,
mentes”, o que guia Fanon “é a inquietude por e como isso inspira desejo, medo, inveja, atração,
dar fim a um ciclo vicioso” (p. 44). repulsa, fobia, racismo, e ao dizer que “vá aonde
Fanon22 (p. 45) pretende ir além da postula- for, um negro continua sendo um negro”, Fanon22
ção de Freud sobre a necessidade de considerar (p. 152, 190) caracteriza uma relação pautada na
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projeção do outro, no querer ser o outro: “o ne- biologicismo e ao conhecimento eurocentrado,


gro não é”, e “tampouco o branco é”. com sua forte expressão política crítica diante da
Evitando simplificações equivocadas, pode- opressão e do racismo, evidencia-se como poten-
mos assumir que, no âmbito da crítica de Fanon cial referência para a discussão da determinação
ao eurocentramento, suas observações relativas social e da colonização do saber na transformação
à psicanálise europeia podem ser aproximadas da atenção à saúde mental no Brasil.
das que faz quanto à necessidade de reelaborar Segundo Passos13, o trabalho de Fanon foi
a análise marxista, campo que lhe é caro, para algo que “escapou” ao processo da Reforma Psi-
entendimento do racismo no contexto colonial. quiátrica brasileira. Para a autora, Fanon influen-
Fanon11 (p. 29) afirma que na realidade das co- ciou de forma marcante Franco Basaglia, prota-
lônias “o que retalha o mundo é antes de mais gonista da Psiquiatria Democrática italiana que
nada o fato de pertencer ou não a tal espécie, a modelou a reforma brasileira. Passos argumenta
tal raça”, e, aludindo à conhecida metáfora mar- apresentando passagem de A instituição negada
xista da determinação da base econômica sobre em que Basaglia39 considera que, se Fanon optou
a superestrutura sociocultural, complementa que pelo caminho revolucionário na luta contra a
“a infraestrutura econômica é igualmente uma desumanização da psiquiatria, aos italianos res-
superestrutura”, sendo a causa também uma con- tava viver as contradições do sistema, atuando no
sequência: “o indivíduo é rico porque é branco, é contexto da violência disfarçada, e negar o mani-
branco porque é rico”. cômio por dentro.
A Reforma Psiquiátrica considera os sujei- Passos13 atribui criticamente o esquecimento,
tos vinculados à família, ao bairro, ao lazer, ao pela Reforma Psiquiátrica, das influências teó-
trabalho. O cuidado em saúde mental implica a ricas, filosóficas e políticas de Fanon no pensa-
construção de redes de serviços atuantes onde mento de Basaglia ao racismo estrutural à brasi-
circulam as pessoas. No Brasil, os CAPS (Centros leira, que individualiza as relações étnico-raciais
de Atenção Psicossocial), residências terapêuti- e colonialistas. O racismo estrutural conforma
cas, centros de convivência, consultórios na rua “a concepção de mundo dos sujeitos e estrutu-
(CNAR), por sua contextualização territorial e ra as relações institucionais, sendo reproduzido
comunitária, tornaram-se equipamentos estra- nos diversos espaços, inclusive nos serviços que
tégicos, reduzindo significativamente as interna- substituem os hospitais psiquiátricos nas políti-
ções em hospitais psiquiátricos. A reforma brasi- cas públicas e na formação profissional”13 (p. 85).
leira incluiu a mobilização ativa de profissionais, Para a autora, o esquecimento de Fanon privou
usuários dos serviços e familiares na realização a luta antimanicomial brasileira de uma funda-
das mudanças propostas. As dimensões teórico- mental essência antirracista.
conceitual e sociocultural, apontadas por Ama- Para Bhabha23 (p. 101), “relembrar Fanon é
rante2, constroem saberes contra-hegemônicos e um processo de intensa descoberta e desorienta-
constituem novos lugares sociais para a loucura ção”. É por intermédio dele que se pode resgatar
no âmbito da Reforma Psiquiátrica brasileira, “essa memória da história da raça e do racismo,
representando aspectos estratégicos que visam do colonialismo e da questão da identidade cul-
transformar a concepção da loucura no imaginá- tural”, revelada “com maior profundidade e poe-
rio social, promovendo a inclusão social. sia do que qualquer outro escritor”.
Observando esses fundamentos da reforma, Vive-se um tempo de retrocessos culturais e
percebemos como o trabalho e o pensamento de políticos que impõe obstáculos ao livre exercício
Fanon têm, na relevância do cultural e do social, democrático e à conquista da saúde como expres-
relação com o sentido da experiência brasileira. A são de justiça social, e o processo da Reforma Psi-
inserção da arte e da cultura popular no processo quiátrica sofre as consequências desse estado de
terapêutico, o significado dado para a equipe mul- coisas. Tendo-se Fanon em conta, conclui-se que
tiprofissional com a participação de pessoal local, falta, não só à saúde mental, mas à saúde coleti-
a abertura das portas dos centros de tratamento va brasileira, o concurso crítico dos pensamen-
para a comunidade, representam, nesse contexto, tos pós-colonial e decolonial. Sobretudo, fica a
práticas exemplares. A ideia da sociogênese, como convicção de que muito permanece ainda por ser
modelo teórico e epistemológico contraposto ao considerado sobre Frantz Fanon.
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Ciência & Saúde Coletiva, 27(3):937-946, 2022


Colaboradores Referências

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