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Artigo Original

Adaptação transcultural para o


português da escala Adult Self-Report
Scale para avaliação do transtorno
de déficit de atenção/hiperatividade
(TDAH) em adultos
Transcultural adaptation of the Adult Self-Report Scale into portuguese for evaluation
of adult attention-deficit/hyperactivity disorder (ADHD)

PAULO MATTOS1 Resumo


DANIEL SEGENREICH2
Os critérios mais utilizados para o diagnóstico de transtorno do déficit de atenção/hiper-
ELOÍSA SABOYA3 atividade (TDAH) são aqueles listados pela quarta edição do Diagnostic and Statistical
MÁRIO LOUZÃ4 Manual (DSM-IV) da Associação Americana de Psiquiatria, baseados em estudos de campo
com crianças e adolescentes. A Adult Self-Report Scale (ASRS, versão 1.1) foi desenvolvida
GABRIELA DIAS5 para adaptar os sintomas listados no DSM-IV para o contexto da vida adulta. O presente
MARCOS ROMANO6 estudo consistiu em uma adaptação transcultural do instrumento original em inglês para
uma versão final para uso corrente no Brasil. Os resultados indicaram uma equivalência
satisfatória entre as versões, tendo sido realizadas alterações após o debriefing, ressaltando
a importância dessa etapa em estudos desta natureza.

Palavras-chave: Transtorno do déficit de atenção/hiperatividade, questionários, adaptação


transcultural, validação, ASRS.

Recebido: 19/12/2005 - Aceito: 13/03/2006


1 Professor adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutor em psiquiatria, coorde-
nador do Grupo de Estudos do Déficit de Atenção (GEDA) do Instituto de Psiquiatria da UFRJ.
2 Mestrando em psiquiatria, médico pesquisador do GEDA do Instituto de Psiquiatria da UFRJ.
3 Doutora em saúde mental, psicóloga pesquisadora do GEDA do Instituto de Psiquiatria da UFRJ.
4 Doutor em medicina pela Universidade de Würzburg, Alemanha, médico assistente e coordenador
do Projeto Déficit de Atenção e Hiperatividade no adulto (PRODATH) do Instituto de Psiquiatria do
Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP).
5 Médica pesquisadora do GEDA do Instituto de Psiquiatria da UFRJ.
6 Médico do Ambulatório de Déficit de Atenção/Hiperatividade da Unidade de Estudos em Álcool e
Drogas (UNIAD) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Endereço para correspondência: Dr. Paulo Mattos. Rua Paulo Barreto, 91 – 22280-010 – Rio de Janeiro, RJ.
Fone: (21) 2295-3796. E-mail: paulomattos@mandic.com.br

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Abstract context. The present study consisted of a transcultural adaptation


of the original instrument in English into a final version to be used
The criteria listed in the fourth edition of the Diagnostic and in Brazil. Results indicated a satisfactory equivalence between
Statistical Manual (DSM-IV) from the American Psychiatric Asso- versions, with some modifications being done after debriefing,
ciation are the most used ones for the diagnosis of Attention-Deficit supporting the importance of this step in studies like this.
Hyperactivity Disorder (ADHD) being based on field studies with
children and adolescents. The Adult Self-Report Scale (ASRS, ver- Key-words: Attention-deficit/hyperactivity disorder, questionnaires,
sion 1.1) was developed to adapt those symptoms to an adult life transcultural adaptation, validation, ASRS.

Introdução investigação daqueles (Kessler et al., 2005a). Os sinto-


mas listados no DSM-IV para o diagnóstico de crianças
A existência de uma forma adulta do transtorno do défi- e adolescentes foram adaptados para adultos na escala
cit de atenção/hiperatividade (TDAH) – denominada à Adult Self-Report Scale (ASRS, versão 1.1, disponível em
época de “tipo residual” – foi oficialmente reconhecida http://www.hcp.med.harvard.edu/ncs/asrs.php), cuja
pela Associação Americana de Psiquiatria em 1980 por calibração foi realizada durante o National Comorbidity
ocasião da publicação do DSM-III (Diagnostic and Statis- Survey-Replication (Kessler et al., 2005b), um recente
tical Manual, 3rd edition; American Psychiatric Associa- estudo epidemiológico norte-americano.
tion, 1980). O texto da edição atual, DSM-IV (American A escala ASRS possui 18 itens que contemplam
Psychiatric Association, 1994), indica que, em alguns os sintomas do critério A do DSM-IV modificados para
casos, o transtorno persiste até a vida adulta, denotando o contexto da vida adulta, uma vez que vários itens
que a melhora da hiperatividade e da impulsividade ao dizem respeito a comportamentos próprios da infância
final da adolescência poderia ser parcial, sem remissão ou da adolescência (por exemplo, “correr e escalar”).
completa do transtorno, ao contrário do que anterior- Algumas perguntas que endereçavam mais de um
mente se acreditava (Laufer e Denhoff, 1957). aspecto ou sintoma (double barrel, em inglês) foram
Estudos longitudinais demonstraram que o TDAH transformadas (por exemplo, “não seguir instruções
persiste na vida adulta em torno de 60% a 70% dos casos até o final e deixar suas tarefas sem terminar”). A ASRS
(Barkley et al., 2002), sendo as diferenças encontradas oferece cinco opções de resposta de freqüência: nunca,
nas taxas de remissão mais bem atribuídas às diferentes raramente, algumas vezes, freqüentemente e muito
definições de TDAH ao longo do tempo do que ao curso freqüentemente.
do transtorno ao longo da vida (Biederman et al., 2000). Na validação na população estadunidense, para
Embora o diagnóstico de TDAH em adultos ainda seja algumas perguntas (itens 3, 4, 5 e 9 da parte A e itens
motivo de embates (McCough e Barkley, 2004), consi- 2, 7 e 9 da parte B), foi considerada “positiva” a resposta
dera-se que ele possa ser realizado de modo confiável envolvendo uma freqüência menor (“algumas vezes”),
quando são utilizados critérios bem definidos, tais como mas para a maioria dos itens são consideradas positivas
os empregados pelo sistema DSM (Spencer et al., 1994; apenas as respostas envolvendo as freqüências “freqüen-
1998). Os sintomas listados no DSM-IV, entretanto, temente” e “muito freqüentemente”. A análise dos dados
foram concebidos a partir de estudos de campo com obtidos com amostras populacionais e subamostras com
crianças e adolescentes de 7 a 17 anos, tendo-se obtido TDAH também ofereceram escores calculados de acor-
como pontos de corte para o diagnóstico seis entre nove do com cada item, em que zero corresponde a “nunca”
sintomas de desatenção e/ou seis entre nove sintomas e quatro, a “muito freqüentemente”.
de hiperatividade-impulsividade (critério A) (Lahey et No estudo de calibração da ASRS, os autores
al., 1994). Mesmo não tendo sido inicialmente preten- indicaram que pontuação total acima de 24 pontos era
dida para o diagnóstico em adultos, inúmeros estudos fortemente sugestiva de TDAH. Não há dados até o mo-
clínicos, farmacológicos, genéticos e de neuroimagem mento para a população brasileira, o que indica cautela
utilizaram o DSM-IV, adaptando os sintomas e os crité- em utilizar a pontuação dos itens ou mesmo considerar
rios ali indicados (Barkley e Gordon, 2002). respostas “algumas vezes” como positivas até que haja
Uma revisão realizada por um grupo estabeleci- dados disponíveis no País. A ASRS foi validada numa
do pela Organização Mundial da Saúde (OMS) havia população adulta dos Estados Unidos no National Co-
concluído que tanto as escalas disponíveis para uso morbidity Survey-Replication (Kessler et al. 2005a).
com adultos como as entrevistas semi-estruturadas, Há uma versão de rastreio (screening) consistindo
incluindo o MINI-Plus (Sheehan et al., 1998), ou não de apenas seis itens da mesma escala (itens 4, 5, 6 e 9
contemplavam a totalidade dos itens do DSM-IV, ou da parte A e itens 1 e 5 da parte B) a ser empregada em
incluíam perguntas consideradas inadequadas para a estudos populacionais. No caso do rastreio de seis itens,

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é considerado “suspeito” o indivíduo com pelo menos pas consecutivas: 1) tradução do instrumento original;
quatro itens positivos. No caso de utilização da versão de 2) retrotradução; 3) apreciação formal de equivalência;
18 itens (partes A + B), segue-se o mesmo ponto de corte 4) debriefing com amostra de conveniência; e 5) crítica
estabelecido no DSM-IV: são considerados como tendo final por especialistas na área.
diagnóstico possível aqueles indivíduos que apresentam,
no mínimo, seis sintomas em pelo menos um dos domínios A etapa 1 consistiu em duas traduções do instru-
(desatenção – itens 1 a 9 da parte A – e hiperatividade-im- mento original em inglês para o português realizadas
pulsividade – itens 1 a 9 da parte B) ou em ambos. A versão de forma independente: a primeira delas (T1) por um
de rastreio em português foi disponibilizada somente após profissional formado em letras e com especialização
ter sido iniciado o presente estudo, em 2004. Nenhum dos em inglês, e a segunda (T2) por um psiquiatra com
autores deste estudo participou do processo de tradução da experiência na área e fluente no idioma inglês, capaz de
versão de rastreio, para a qual não há dados publicados. identificar o conceito que sustenta cada um dos itens no
Cumpre ressaltar que a ASRS serve para identificar instrumento original. Nesta etapa, respeitou-se a equiva-
sintomas do critério A, porém, para o diagnóstico de lência operacional, que objetiva manter características
TDAH em adultos, é necessário que outros critérios sejam originais, auferindo maior confiabilidade e validade
atendidos: idade precoce de início, antes dos 7 anos de do instrumento, mantendo o mesmo número de itens
idade (critério B), universalidade dos sintomas, isto é, (18), o mesmo enunciado e as mesmas cinco opções de
manifestação em pelo menos dois ambientes diferentes respostas de freqüência.
(critério C), comprometimento funcional clinicamente sig- A etapa 2 consistiu nas retrotraduções de T1 e T2
nificativo (critério D) e decisão clínica de os sintomas não para o inglês, respectivamente, por outro profissional
serem mais bem atribuídos a outros transtornos (critério formado em letras e com especialização em inglês (R1)
E), em especial transtornos do humor e ansiedade. e um psiquiatra com experiência na área e fluente no
Estudos comparando o auto-relato de adultos com idioma inglês (R2). As retrotraduções ocorreram de
o relato de informantes tendem a mostrar o mesmo modo independente, além de cegas com relação ao perfil
grau de discrepância observado quando se comparam o dos profissionais da primeira etapa.
auto-relato de crianças e o relato de pais, com tendência A etapa 3 consistiu na apreciação formal de
a menor número de sintomas nos relatos dos próprios
equivalência semântica com profissionais com o
indivíduos (Jensen et al., 1999; Zucker et al., 2002). Um
mesmo perfil das etapas 1 e 2. Para o julgamento da
estudo com amostra não-clínica, entretanto, demonstrou
equivalência semântica, avaliaram-se os significados
concordância quanto ao número e à gravidade dos sinto-
geral e referencial dos termos e das expressões de
mas (Murphy e Schachar, 2000). A entrevista clínica não
pode ser substituída pelo auto-relato, mesmo com o uso cada um dos 18 itens que compõem a escala (Herdman
da ASRS (Spencer e Adler, 2004; Kessler et al., 2005b). et al., 1998; Reichenheim et al., 2000). Os significados
Em várias áreas da medicina em nosso meio, in- referenciais dizem respeito à correspondência literal
cluindo a psiquiatria (Jorge, 1998), tem-se optado pela entre as palavras no instrumento original e as retrotra-
tradução e adaptação transcultural de questionários e duções. Os significados gerais representam as idéias
escalas já existentes, uma vez que tal procedimento (conceitos) a que uma única palavra ou um conjunto
é mais prático e operacional que a concepção de um de palavras aludem, levando em conta aspectos mais
instrumento novo, além de permitir a comparação entre sutis que a correspondência literal. Assim, na equiva-
países distintos (Massoubre e Lang, 2002; Hunt et al., lência semântica, leva-se em consideração não apenas o
1991). Entretanto, confusões terminológicas freqüentes significado das palavras entre dois idiomas diferentes,
e pobreza de sistematização das adaptações transcultu- como também se procura atingir o mesmo efeito que
rais têm sido apontadas na literatura como deficiências os itens (perguntas) têm em culturas distintas. Para
que podem comprometer a qualidade das informações cada item, foi utilizado um formulário no qual os pares
colhidas, em especial nos estudos epidemiológicos de traduções e retrotraduções (T1-R1) e (T2-R2) eram
(Herdman et al., 1998; Reichenheim et al., 2000). apresentados e os profissionais julgavam a equivalência
entre pares em quatro níveis: inalterado, pouco altera-
Objetivo do, muito alterado e completamente alterado. Após a
avaliação e a discussão em conjunto, procedeu-se a uma
Realização da adaptação transcultural da escala ASRS-18 versão-síntese com base no julgamento de cada um
(v.1.1) pela avaliação do instrumento original e de suas dos itens. Dois dos autores que não participaram das
versões para o português, propondo uma versão final em etapas anteriores (MR e ML), de duas instituições uni-
língua portuguesa para uso corrente no Brasil. versitárias distintas, com ampla experiência na avaliação
de TDAH em adultos, receberam esta versão-síntese
Método e forneceram comentários e críticas com base em sua
experiência. Uma nova versão-síntese foi então prepa-
Utilizaram-se as diretrizes gerais do método proposto rada contemplando essas contribuições após discussão
por Herdman et al. (1998). Foram realizadas cinco eta- com todos os envolvidos.

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A etapa 4 consistiu na aplicação da versão-sín- Resultados


tese em uma amostra de conveniência composta de 20
adultos portadores de TDAH diagnosticados segundo os A tabela 1 exemplifica os resultados das etapas 1, 2 e 3
critérios do DSM-IV e 10 adultos controles não-pareados para quatro questões da ASRS. As duas retrotraduções
de ambos os sexos no Grupo de Estudos do Déficit de do instrumento obtiveram boas medidas de equiva-
Atenção (GEDA) do Instituto de Psiquiatria da Univer- lência de significado referencial e geral em relação ao
sidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Nesta etapa, instrumento original. No primeiro caso, a concordância
solicitava-se ao entrevistado que desse um exemplo da entre os pares variou de 80% a 100% para os 18 itens; no
vida diária correspondente ao item que acabara de res- segundo caso, a concordância variou entre 60% e 95%.
ponder; o entrevistador, então, julgava a compreensão Nenhum item foi avaliado como completamente alterado
com base na pertinência do exemplo, registrando seus e apenas um item foi avaliado como “muito alterado”
comentários para cada um dos itens. (que incluía o vocábulo “tarefa”).
A etapa 5 consistiu na coleta dos comentários Na etapa 3, em algumas perguntas, decidiu-se por
dos aplicadores das versões-sinteses e na análise uma terceira alternativa, com pequenas modificações,
pelos mesmos profissionais da etapa 3. A partir da sem alterar o sentido pretendido. Na totalidade dos
discussão dos itens que apresentaram problemas de casos, a opção consistiu na escolha de palavras que pu-
entendimento pela população avaliada, procedeu-se à dessem ser compreendidas por indivíduos numa faixa
versão final. ampla de escolaridade (aspecto para o qual os tradutores

Tabela 1. Exemplos de itens da ASRS e resultados nas etapas de tradução (T1 e T2), retrotradução (R1 e R2) e versão-síntese.

Original T1 R1 T2 R2 Síntese
How often do you Com que How frequently do Com que How often do you Com que
make careless freqüência você you make mistakes freqüência você make slips because freqüência você
mistakes when you comete erros por due to lack of comete erros of lack of attention faz erros por falta
have to work on a descuido, quando attention when you por desatenção when you have to de atenção quando
boring or difficult você tem que work on a dull or quando você tem work on a boring or está trabalhando
project? trabalhar num difficult project? de trabalhar em um difficult project? num projeto chato
projeto difícil ou projeto chato ou ou difícil?
enfadonho? difícil?

How often do you Com que How frequently do Com que How often do you Com que
have difficulty freqüência você you find it difficult freqüência você find it difficult to freqüência você
concentrating on tem dificuldade to concentrate on tem dificuldade concentrate on tem dificuldade
what people say to em se concentrar what people tell em se concentrar what people are para se concentrar
you, no que as pessoas you, even when no que as pessoas saying to you, even no que as pessoas
even when they estão lhe dizendo, they are speaking lhe dizem, mesmo when they are dizem, mesmo
are speaking to you mesmo quando elas directly to you? quando elas speaking directly quando elas
directly? estão se dirigindo estão falando to you? estão falando
diretamente a diretamente com diretamente com
você? você? você?

How often are Com que How frequently are Com que How often do you Com que
you distracted by freqüência você you distracted by freqüência você get distracted by freqüência você
activity or noise se distrai devido activity or noises se distrai com activities or noise se distrai com
around you? a atividades ou around you? atividades ou going on around atividades ou
ruídos ao seu barulhos a sua you? barulhos a sua
redor? volta? volta?

How often do you Com que How frequently do Com que How often do Com que
have difficulty freqüência você you find it difficult freqüência você you have trouble freqüência você
unwinding and tem dificuldade to calm down and tem dificuldades winding down and tem dificuldade
relaxing when em relaxar quando relax when you em ficar sossegado relaxing when you para sossegar e
you have time to você tem um tempo have free time for e relaxado quando have some time to relaxar quando
yourself? para si mesmo? yourself? você tem tempo pra yourself? você tem tempo
você? livre para você?

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não foram orientados inicialmente). Assim, as palavras o significado de “falar além da conta”, e, embora diga
“compelido”, “cometer” e “enfadonha” foram substituí- respeito a um aspecto do TDAH (impulsividade), não
das pelos seus equivalentes considerados de maior uso é o sentido pretendido no instrumento original (“falar
na comunicação oral coloquial. Além disso, foi procurada em excesso”, item constante do módulo de hiperativi-
uma correspondência entre de percepção e de impacto dade); entretanto, mesmo no original em inglês, essas
dos diferentes vocábulos (Herdman et al., 1998). possibilidades de entendimento existem, e a opção “falar
Um único item foi considerado como “muito alte- muito” foi descartada devido à discrepância do original
rado” quanto à equivalência geral, aquele que incluía a em língua inglesa (“too much”).
palavra “tarefa”. Embora seja a tradução correta de “task”, A expressão “dificuldade para finalizar os últimos
ela não é regularmente empregada em nosso meio e detalhes de um projeto depois de já ter feito as partes
apresenta grande potencial de não ser compreendida. De mais desafiadoras” não era compreendida por um nu-
fato, o termo “trabalho”, opção discutida e selecionada mero significativo de indivíduos entrevistados, aspecto
pelos profissionais na etapa 3, foi utilizado com boa com- identificado pelos exemplos que forneciam após suas
preensão pelos indivíduos entrevistados na etapa 5. respostas aos entrevistadores. Optou-se por transformá-
As etapas 4 e 5 trouxeram contribuições para a lo em “deixar um projeto pela metade depois de ter feito
melhor percepção das dificuldades de aplicação da as partes mais difíceis”, sendo esta a única alteração
escala, mas apenas em um item as alterações foram in- proposta pela etapa 4 (debriefing com pacientes adultos
corporadas na versão final, conforme indicado a seguir. e controles). A versão final da ASRS é apresentada na
Identificou-se que a expressão “falar demais” pode ter tabela 2.

Tabela 2. ASRS 18 itens (versão 1.1) – versão final em português.

Por favor, responda as perguntas abaixo se avaliando de acordo com os critérios do lado direito da página. Após

Freqüentemente

freqüentemente
Algumas vezes
Raramente
responder cada uma das perguntas, circule o número que corresponde a como você se sentiu e se comportou

Nunca

Muito
nos últimos seis meses. Por favor, dê este questionário completo ao profissional de saúde para que vocês
possam discutir na consulta de hoje.

1. Com que freqüência você comete erros por falta de atenção quando tem de trabalhar num projeto chato ou difícil? 0 1 2 3 4
2. Com que freqüência você tem dificuldade para manter a atenção quando está fazendo um trabalho chato ou
0 1 2 3 4
repetitivo?
3. Com que freqüência você tem dificuldade para se concentrar no que as pessoas dizem, mesmo quando elas
0 1 2 3 4
estão falando diretamente com você?
4. Com que freqüência você deixa um projeto pela metade depois de já ter feito as partes mais difíceis? 0 1 2 3 4
5. Com que freqüência você tem dificuldade para fazer um trabalho que exige organização? 0 1 2 3 4
6. Quando você precisa fazer algo que exige muita concentração, com que freqüência você evita ou adia o início? 0 1 2 3 4
7. Com que freqüência você coloca as coisas fora do lugar ou tem de dificuldade de encontrar as coisas em
0 1 2 3 4
casa ou no trabalho?
8. Com que freqüência você se distrai com atividades ou barulho a sua volta? 0 1 2 3 4
9. Com que freqüência você tem dificuldade para lembrar de compromissos ou obrigações? 0 1 2 3 4
PARTE A – TOTAL

1. Com que freqüência você fica se mexendo na cadeira ou balançando as mãos ou os pés quando precisa ficar
0 1 2 3 4
sentado (a) por muito tempo?
2. Com que freqüência você se levanta da cadeira em reuniões ou em outras situações onde deveria ficar
0 1 2 3 4
sentado (a)?
3. Com que freqüência você se sente inquieto (a) ou agitado (a)? 0 1 2 3 4
4. Com que freqüência você tem dificuldade para sossegar e relaxar quando tem tempo livre para você? 0 1 2 3 4
5. Com que freqüência você se sente ativo (a) demais e necessitando fazer coisas, como se estivesse “com um
0 1 2 3 4
motor ligado”?
6. Com que freqüência você se pega falando demais em situações sociais? 0 1 2 3 4
7. Quando você está conversando, com que freqüência você se pega terminando as frases das pessoas antes delas? 0 1 2 3 4
8. Com que freqüência você tem dificuldade para esperar nas situações onde cada um tem a sua vez? 0 1 2 3 4
9. Com que freqüência você interrompe os outros quando eles estão ocupados? 0 1 2 3 4
PARTE B – TOTAL

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Discussão português e o original em inglês. Entretanto, na etapa


de debriefing com adultos, identificou-se dificuldade
A necessidade de instrumental para o diagnóstico de com um item que fora considerado como equivalente
TDAH em adultos em nosso meio é grande, uma vez anteriormente, indicando a necessidade dessa etapa em
que inexistem escalas ou questionários adaptados estudos de adaptação transcultural. Também foi dada
para o português. A entrevista estruturada MINI-Plus ênfase à seleção de vocábulos que fossem mais pronta e
(Sheehan et al., 1998), por exemplo, possui versão em facilmente compreendidos por indivíduos pertencentes
português e é utilizada de forma rotineira em pesquisa a classes socioeconômicas mais baixas. Evitaram-se
no Brasil, porém, não contempla os itens do DSM-IV também vocábulos utilizados apenas regionalmente,
em sua totalidade e não permite que o entrevistador sendo procurados aqueles que tivessem uma abran-
aprofunde as questões com o paciente. gência nacional.
A tradução e a adaptação transcultural de instru- O uso de uma sistemática mais detalhada para a
mentos diagnósticos ou escalas de avaliação deve seguir tradução e a adaptação transcultural da escala (Herdman
o paradigma “emic-etic” (Jorge 1998). O vértice “emic” et al., 1998) foi fundamental para que fossem locali-
(termo retirado da palavra phonemic) diz respeito a um zadas as dificuldades de sua equivalência semântica,
olhar do fenômeno a partir do próprio contexto ou da mostrando-se um método mais adequado que a simples
cultura em que ele ocorre; já o vértice “etic” (termo tradução-retrotradução do instrumento.
obtido a partir da palavra phonetic) diz respeito a uma Cumpre ressaltar que não há dados disponíveis até
generalização do fenômeno observado para comparação o momento que permitam estabelecer pontos de corte
em diferentes culturas. Dentro dessa perspectiva, a para suspeição do diagnóstico de TDAH em adultos uti-
tradução de uma escala requer cuidados lingüísticos, lizando-se a ASRS, à semelhança do que já foi proposto
uma vez que termos podem ter diferentes abrangências para a população norte-americana. Mesmo os autores
e especificidades inerentes a cada idioma. Além disso, a da versão original em inglês sugerem cautela na inter-
validação semântica é necessária para a certificação de pretação da pontuação obtida (Kessler et al., 2005b). O
que o instrumento é compreensível a todos os membros presente estudo consiste numa etapa inicial importante
da população à qual se destina (Pasquali, 1998). para posterior aplicação e avaliação do instrumento em
A presente adaptação constatou um nível bastante amostras epidemiológicas brasileiras, o que deve ser
satisfatório de equivalência semântica entre a versão em fortemente estimulado.

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